Você está na página 1de 254

LINGUÍSTICA

Baseada no Uso:
Explorando Métodos,
Construindo Caminhos
LINGUÍSTICA
Baseada no Uso:
Explorando Métodos,
Construindo Caminhos
Maria Maura Cezario
Karen Sampaio B. Alonso
Dennis Castanheira
(org)
1ª Edição 2020

Editores
Denise Corrêa e Daverson Guimarães

Produção gráfica
Maristela Carneiro

Revisão Ortográfica
Algo Mais Soluções

Capa
Romulo Matteoni // 2mL Design

Projeto gráfico e diagramação


Andréa Alves – Algo Mais Soluções

Cezario, Maria Maura / Alonso, Karen Sampaio B. / Castanheira, Dennis


Linguística baseada no uso: Explorando métodos, construindo caminhos –
1 ed. - Rio de Janeiro : Rio Book’s, 2020
252p., 16 x 23 cm
ISBN 978-65-87913-00-1
1. Linguistica 2. Estudos de Discurso 3. Gramática
I. Título
CDD: 410

Todos os direitos desta edição são reservados a:Editora Grupo Rio Books Ltda.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/
ou quaisquer meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocopias e gravação) ou arqui-
vada em qualquer sistema de banco de dados sem permissão escrita do titular do editor.
Os artigos e as imagens reproduzidas nos textos são de inteira responsabilidade
de seus autores.
Todos os esforços foram feitos no sentido de se encontrar a fonte dos direitos
autorais de todo o material contido neste livro. Os editores gostariam de ouvir os de-
tentores dos direitos autorais para corrigir qualquer erro ou omissão.

Rua Valentin da Fonseca 21 / 504 – Sampaio – Rio de Janeiro – RJ


WhatsApp (21) 99312-7220 CEP 20950-220
contato@riobooks.com.br
www.riobooks.com.bro
Apresentação

É com grande satisfação que apresentamos o livro Linguística Baseada


no Uso: Explorando Métodos, Construindo Caminhos, que traz uma série
de textos referentes a algumas das pesquisas apresentadas no XXIV
Seminário Nacional e no XI Seminário Internacional do Grupo de Estudos
Discurso e Gramática (D&G), ocorrido de 4 a 8 de novembro de 2019, na
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O evento teve apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do edital para auxílio de
organização de eventos, e do Programa de Pós-graduação em Linguística
da UFRJ. Destacamos que todos os textos deste livro foram selecionados
a partir de avaliações de pareceristas ad hoc.

Os seminários do D&G promovem, anualmente, a reunião de pes-


quisadores na área da Linguística Baseada no Uso, com a finalidade de:
(i) estabelecer diálogos acadêmicos entre pesquisadores brasileiros e
estrangeiros na área da Linguística; (ii) divulgar resultados de pesquisas
realizadas no Brasil na área da Linguística Funcional Centrada no Uso;
(iii) oferecer cursos de aperfeiçoamento acadêmico a profissionais da
área de Letras e Linguística; e (iv) incentivar a participação de alunos
nas atividades de pesquisa.

Tendo isso em vista, a presente coletânea é um dos produtos do últi-


mo seminário promovido pelo D&G e busca divulgar alguns dos debates

— 5 —
6   —  Coleção Pesquisadores

e resultados de pesquisa que nortearam a última edição. Esse evento,


que teve como foco o suporte metodológico para as pesquisas na área
da Línguística Baseada no Uso, contou com a presença do professor Flo-
rent Perek (Universidade de Birmingham) e da professora Lívia Oushiro
(Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP), além da presença de
vários dos pesquisados do D&G das suas três sedes, a Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF)
e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

A Linguística Baseada no Uso, desenvolvida a partir de contribuições


de teorias linguísticas de base cognitivo-funcional, vem ganhando ter-
reno nos estudos linguísticos mais recentes. Nesse cenário, assumindo
pressupostos cognitivistas convincentes e explorando o uso da língua
como fator crucial para a modelagem da gramática, as pesquisas na área
têm dado uma importante contribuição para um maior entendimento
acerca do conhecimento linguístico do falante.

Ancorada nas bases da Linguística de cunho Cognitivo-Funcional e


preocupada com questões de variação e mudança, a Linguística Baseada
no Uso tem interesse em investigar como construções são abstraídas e
como se relacionam dentro do constructicon, levando em conta tanto a
produção como a recepção de dados linguísticos. Nessa abordagem, são
particularmente profícuas análise‑s baseadas em corpora e experimentos
psicolinguísticos, cujo enfoque está essencialmente na captura do conhe-
cimento linguístico do falante, em termos de sua realidade psicológica.

Assumindo essas premissas, apresentamos, a seguir, os treze capítu-


los que compõem a presente obra, desejando que muitos pesquisadores
possam aproveitar as contribuições trazidas aqui. Acreditamos que a
troca de conhecimento é o melhor caminho para o avanço da ciência – a
forma mais eficaz para a construção de saberes e a solução de desafios
tão complexos como o que nos impõe o estudo da linguagem humana.
Divirtam-se!

O primeiro capítulo, intitulado “Uma análise do verbo ‘arrasar’ a par-


tir da Gramática de Construções (GC)”, escrito por Dany Thomaz Gon-
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  7

çalves e Caroliny Batista Massariol, focaliza a mudança em construções


com o verbo arrasar a partir de publicações de políticos no Twitter. Entre
os objetivos que o trabalho pretende alcançar destaca-se a busca por
fatores que são condicionantes do uso de dada construção, no que diz
respeito à mudança de significado.

Já o segundo texto, “Construções de futuro com verbos volitivos no


português do Brasil: querer + verbo no infinitivo”, de Mariana Gonçalves,
Lais Lima e Marcia Machado Vieira, traz uma pesquisa acerca da relação
entre valor de futuro e verbos volitivos em dadas construções de pre-
dicação no português do Brasil. A partir dos estudos desenvolvidos no
Projeto PREDICAR, o artigo foca na polissemia desses verbos, bem como
na esquematicidade, na composicionalidade e na produtividade dos pa-
drões construcionais que geram inferência de futuro.

O terceiro capítulo, “Construções marcadoras discursivas formadas


por afixoides locativos no português do Brasil: uma abordagem sincrô-
nica”, de Cristian Matias do Nascimento Corrêa e Mariangela Rios de
Oliveira, analisa a construção [VLocaf]MD, no que concerne aos casos em
que o locativo é preenchido por aí e lá, com o intuito de detectar, na
sincronia, a gradiência resultante da formação de um novo nó na rede
dos marcadores discursivos.

Em “‘Olha aqui’ no português brasileiro: uma abordagem funciona-


lista”, quarto capítulo, de Luciana Andrade de Souza, observa-se o re-
sultado do processo de construcionalização de estruturas linguísticas,
na formação de olha aqui, cujos usos parecem se afastar da função de
advérbio indicador de lugar para assumir um lugar na rede dos marca-
dores discursivos do português.

No quinto texto do livro, “Serializações com verbos de movimento


em Wa’ikhana (tukano oriental): uma análise construcionista”, de Bruna
Cezario, a autora descreve dois tipos de construções de verbo seriais na
língua Wa’ikhana – [Vação-Vmov-morf.verbal] e [Vestativo-wa’a-morf.verbal]. A
pesquisa retoma o trabalho de Stenzel (2007), trazendo como contribui-
ção à descrição do objeto da pesquisa uma nova perspectiva de análise,
sob a luz da Gramática de Construções.
8   —  Coleção Pesquisadores

No sexto capítulo, denominado “A presença de complemento verbal


na construção com adjetivo adverbial: um estudo sobre variação na
rede construcional”, Rodrigo Pinto Tiradentes e Priscilla Mouta Marques
oferecem uma análise que explora os fatores contextuais relacionados
aos casos de construção de adjetivo adverbial que apresentam comple-
mento verbal. Além disso, defendem que esses dados são construtos
de padrões construcionais descritos em termos de suas semelhanças e
diferenças, além de avaliar a adequação do tratamento do tema, a partir
da variação linguística.

Como sétimo capítulo deste livro, temos o texto intitulado “Gênero,


sociedade, língua e cognição: uma análise construcionista dos usos de
‘puta’ e ‘puto’ no português brasileiro”, escrito por Andrei Ferreira de
Carvalhaes Pinheiro. O autor realiza uma análise da assimetria das no-
ções de gênero, no que diz respeito aos seus valores sociais. Nesse
sentido, toma como objetivo do trabalho a forma como certos usos da
língua contribuem para a manutenção de uma hierarquia de poder, em
que identidades masculinas se sobrepõem a identidades femininas.

O oitavo texto, de Maria Maura Cezario e Beatriz Lones, denomi-


nado “O coração dispara sempre que o vê" – a competição entre
‘sempre que’ e ‘toda vez’ que em orações hipotáticas no português bra-
sileiro contemporâneo”, procura avaliar os fatores que motivam a es-
colha de orações hipotáticas iniciadas por sempre que e toda vez que.
Foram investigados fatores estruturais e discursivos, como a relação
entre a posição da oração hipotática com sempre que e com toda vez
que, e o status informacional da oração – se nova, velha ou inferível.
Também investigaram se havia diferenças em relação ao grau de integração
de orações.
O nono capítulo, “As orações hipotáticas introduzidas por ‘visto
que’, ‘dado que’ e ‘posto que’”, de Juliana Barboza do Nascimento e
Dennis Castanheira, investiga, assim como o capítulo anterior, o uso
de orações hipotáticas. São analisadas, mais especificamente, orações
hipotáticas introduzidas pelos conectivos [visto que], [dado que] e
[posto que]. Importa, para os autores, o mapeamento das diferenças
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  9

e semelhanças entre as referidas construções, objetivo embasado pelo


princípio da não sinonímia.
O décimo texto, “Formação dos conectores contrastivos ainda que
e mesmo que: uma análise construcional”, de Thiago dos Santos Silva,
procura demonstrar como processos cognitivos de domínio geral, espe-
cialmente chunking e analogia, atuam na formação de conectores con-
trastivos do tipo [Xque]. A pesquisa assume, portanto, um olhar sobre a
mudança linguística e traz resultados de dados que cobrem um período
de tempo que vai desde o século XIII até o século XVIII.
No décimo primeiro capítulo do livro, intitulado “Análise dos usos
de ‘com certeza’ na diacronia”, Ester Moraes Gonçalves e Deise C. de
Moraes Pinto analisam a construção qualitativa [V com certeza]qualitativa
e a construção modalizadora [com certezamodal (or)] de uma perspectiva
diacrônica. As autoras, ao longo da análise de fatores – como os tipos de
itens verbais recrutados –, mostram o comportamento dessas constru-
ções, inclusive em relação a formas concorrentes, ao longo do tempo.
Além disso, ressaltam o papel de processo de domínio geral, com des-
taque para chunking, categorização e analogia.
No décimo segundo texto, “A construção idiomática ‘[VERIMPSE] S’ no
português brasileiro: uma abordagem construcionista para a mudança
linguística”, Dennis de Oliveira Alves procura investigar, primeiramente,
quando e como os usos de [VERIMP SE] S associados a uma leitura idiomá-
tica surgiram no português brasileiro e, a partir disso, busca identificar
e descrever as mudanças as quais esse novo pareamento de forma e
sentido sofreu com o passar o tempo.
O último texto do livro, intitulado “A construção marcadora dis-
cursiva perceptivo-visual em rota de convencionalização”, escrito por
Vania Rosana Mattos Sambrana, tem como foco a análise de marca-
dores discursivos sob um aporte construcionista. Em sua análise, a
autora demonstrou que há três padrões construcionais envolvidos na
rota de convencionalização diretamente relacionados ao mecanismo
de neoanálise.
10   |  Coleção Pesquisadores

Dessa forma, os artigos presentes neste livro, todos embasados pela


abordagem cognitivo-funcional, representam contribuições empíricas
para o estudo da língua em uso e podem ser lidos por interessados
nessa área de investigação. Esperamos, então, que esta obra seja uma
válida contribuição para os pesquisadores e que sua leitura auxilie fu-
turos trabalhos.

Maria Maura Cezario


Karen Sampaio B. Alonso
Dennis Castanheira
Sumário

Apresentação 5
1 Uma análise do verbo “arrasar” a partir da gramática 13
de construções (GC)
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol

2 Construções de futuro com verbos volitivos no 31


português do Brasil: querer + verbo no infinitivo
Mariana G. da Costa / Lais L. de Souza / Marcia dos Santos M. Vieira

3 Construções marcadoras discursivas formadas 51


por afixoides locativos no português do Brasil:
uma abordagem sincrônica
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira

4 “Olha aqui” no português brasileiro: uma abordagem 67


funcionalista
Luciana Andrade de Souza

5 Serializações com verbos de movimento em Wa’ikhana 81


(tukano oriental): uma análise construcionista
Bruna Cezario

6 A presença de complemento verbal na construção com 95


adjetivo adverbial: um estudo sobre variação na rede
construcional
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques

— 11 —
12   —  Coleção Pesquisadores

7 Gênero, sociedade, língua e cognição: uma análise 117


construcionista dos usos de “puta” e “puto” no
português brasileiro
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro

8 “O coração dispara sempre que o vê” – a competição 137


entre “sempre que” e “toda vez que” em orações
hipotáticas no português brasileiro contemporâneo
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones

9 As orações hipotáticas introduzidas por “visto que”, 161


“dado que” e “posto que”
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira

10 Formação dos conectores contrastivos "ainda que" e 185


"mesmo que": uma análise construcional
Thiago dos Santos Silva

11 Análise dos usos de “com certeza” na diacronia 203


Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto

12 A construção idiomática “[VERIMPSE] S” no português 221


brasileiro: uma abordagem construcionista para a
mudança linguística
Dennis de Oliveira Alves

13 A construção marcadora discursiva perceptivo-visual 239


em rota de convencionalização
Vania Rosana Mattos Sambrana
1
Uma Análise do Verbo “Arrasar”
a Partir da Gramática de
Construções (GC)
Dany Thomaz Gonçalves (UFRJ – Doutorando)
Caroliny Batista Massariol (UFRJ – Doutoranda)

– INTRODUÇÃO –
É comum, em plena segunda década do século XXI, a partir dos avanços
tecnológicos, que criaram outras possibilidades de expressões linguís-
ticas, encontrarmos ressignificações em construções gramaticais pro-
venientes de mudança na interface forma função. Essa mudança não
precisa ocorrer na forma e na função concomitantemente; algumas ve-
zes, encontramos uma mudança somente na forma; outras, somente
na função. Este artigo tem o intuito de analisar a mudança nas constru-
ções com o verbo arrasar, realizadas em interações de políticos na rede
social Twitter, à luz dos pressupostos teóricos-metodológicos da GC
(GOLDBERG, 1995, 2006; CROFT, 2001).

Conforme Furtado da Cunha, Bispo e Silva (2013), alguns pressupos-


tos teórico-metodológicos, caros ao tratamento de construções grama-
ticais, têm sido absorvidos pela corrente que vem adotando o rótulo
de linguística funcional baseada no uso (LFBU). Esse modelo linguístico

— 13 —
14   —  Coleção Pesquisadores

engloba a concepção de língua proveniente de uma rede de construções


interconectadas em seus diferentes níveis, por relações diversas, cuja
estrutura se motiva e se regula por fatores cognitivos e sociocomunica-
tivos. Segundo Traugott e Trousdale (2013), os estudos na perspectiva da
LFBU podem ser tanto sincrônicos como diacrônicos.

Partindo da escolha desse modelo, os pressupostos teóricos funda-


mentais que embasam esta pesquisa são:
1) a concepção de língua como emergente, regularizada e aprendida
com base na experiência do indivíduo com o mundo social e bio-
físico;
2) a rejeição à autonomia e à centralidade da sintaxe;
3) o contínuo léxico-gramática; e
4) a integração entre semântica e pragmática na análise linguística.

Dessa forma, língua/linguagem, cognição, cultura, discurso e interação


são articulados (GIVÓN, 2001; TOMASELLO, 2008; BYBEE, 2010; BOAS, 2013).

A partir das articulações propostas pela teoria da LFBU, as questões


aqui levantadas são: como as construções com o verbo arrasar são ana-
lisadas perante a teoria da Gramática de Construções? Existe mudança
no pareamento forma-função? Quais fatores são condicionantes do uso
de determinada construção em relação à sua mudança de significado?
Para responder este último questionamento, foi aplicado um teste de
avaliação subjetiva, com o intuito de verificar a hipótese de que um
novo significado para o verbo arrasar é pautado em fatores sociais como
faixa etária e/ou gênero/sexualidade.

Posto isso, este artigo está organizado em quatro partes: 1) a con-


cepção de mudança postulada pela LFBU; 2) descrição das construções
com o verbo arrasar; 3) avaliação dos falantes de português brasileiro
sobre o novo sentido do verbo conforme os resultados obtidos no teste
de avaliação; e, por fim, 4) as considerações finais.
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  15

1. A CONCEPÇÃO DE MUDANÇA NA LFBU


Antes de começarmos a tratar da mudança linguística para a LFBU, é
importante, primeiramente, que entendamos como são formadas as
construções para essa teoria.

Tais construções são formadas por três propriedades, a saber: esque-


maticidade, composicionalidade e produtividade.

A esquematicidade seria a ampliação ou a redução de abstração sin-


tática e semântica de uma construção. Em outras palavras, a esquemati-
cidade envolveria a medida que uma construção apreende padrões que
são mais gerais em um conjunto específico de construções. Isso permite
ao pesquisador constatar se determinada construção encontra-se mais
ou menos generalizada.

Já a composicionalidade refere-se ao grau de transparência que há


entre a forma e o significado de uma construção.

A produtividade, por sua vez, volta-se para a frequência. Procura-se


observar se em uma construção há aumento ou restrição de subesquemas.
Essas frequências são dadas de duas formas: token (número de ocorrência
de uma unidade) e type (quantidade de expressões de determinado pa-
drão) (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013; BYBEE, 2010; GOLDBERG, 1995).

As três propriedades mencionadas, como pudemos notar, são defi-


nidas conforme as gradiências. Tais gradiências induzem o pesquisador
a observar se determinada construção é mais ou menos esquemática,
composicional ou produtiva.

Apresentadas as propriedades que formam as construções para essa


teoria, voltemo-nos para a mudança linguística.

Os principais expoentes, na área, que abordaram esse tema, foram Trau-


gott e Trousdale (2013). Eles descrevem que a mudança emerge na mente do
falante. Nesse processo, o indivíduo forma uma nova representação de uma
construção. Vale ressaltar que essa nova representação é formada por meio
da alteração de determinado elemento da construção, que já era existente.
Os autores propõem dois tipos de mudança relacionados às construções:
16   —  Coleção Pesquisadores

1) mudança construcional: não é criada uma nova construção; con-


tudo, há uma mudança de suas subpartes, que ocorre em somen-
te um dos planos da construção, na forma ou no sentido. “Uma
mudança na construção é uma mudança que afeta uma dimensão
interna de uma construção. Não envolve a criação de um novo
nó” (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 26, tradução nossa).1
2) construcionalização: uma mudança que afeta os dois planos da
construção, ou seja, a forma e o sentido.
Construcionalização é a criação de um novo significado, novos
(tipos de combinações de) signos. Forma novos nós de tipo, que
têm nova sintaxe ou morfologia e novo significado codificado,
na rede linguística de uma população de falantes. É acompanha-
da por mudanças no grau da esquematicidade, produtividade e
composicionalidade. A construcionalização de esquemas sempre
resulta de uma sucessão de microetapas e, portanto, é gradual.
Da mesma forma, novas microconstruções podem ser criadas gra-
dualmente, mas também podem ser instantâneas. As microcons-
truções criadas gradualmente tendem a ser processuais e as mi-
croconstruções criadas instantaneamente tendem a ser lexicais.
(TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 22, tradução nossa).2

Ao observar esses tipos de mudança na presente pesquisa, notamos


que, nas construções com o verbo arrasar, ocorre somente a mudança
de tipo construcional, haja vista que ela se dá somente no campo do
sentido e não da construção. O sentido deixa de ser de destruir algo,
como é utilizado por Onyx Lorenzoni, na rede social Twitter, em 30 de
junho de 2015 “O bolivarismo avançou pelo continente, arrasando a
economia, pilhando recursos […]”; e passa a ser de desempenhar muito

1
“A constructional change is a change affecting one internal dimension of a construction. It does not
involve the creation of a new node.”
2
“Constructionalization is the creation of form new-meaning new (combinations of) signs. It forms
new type nodes, which have new syntax or morphology and new coded meaning, in the linguistic
network of a population of speakers. It is accompanied by changes in degree of schematicity, produc-
tivity, and compositionality. The constructionalization of schemas always results from a succession of
micro-steps and is therefore gradual. New micro-constructions may likewise be created gradually, but
they may also be instantaneous. Gradually created micro-constructions tend to be procedural, and
instantaneously created micro-constructions tend to be contentful.”
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  17

bem determinada ação, como é usado por Marcelo Freixo em 19 de se-


tembro de 2018 “[...] pra vermos juntos o @MottaTarcisio arrasar mais
uma vez e às 20h [...]”. A respeito da construção do verbo, objeto de
estudo, na próxima seção trataremos, especificamente, sobre isso.

2. DESCRIÇÃO DAS CONSTRUÇÕES


COM O VERBO “ARRASAR”
A partir da noção de construção, formulada pela GC, propomos como ob-
jetivos desta pesquisa descrever e analisar as possíveis construções com o
verbo arrasar. Segundo o dicionário Michaelis On-line,3 existem pelo menos
nove entradas diferentes para o verbo, exemplificados no quadro a seguir.
Quadro 1 – Acepções para o verbete arrasar
FUNÇÃO SIGNIFICADO EXEMPLO
1 – VTD Tornar(-se) raso; pôr(-se) no Arrasam-se os campos.
mesmo nível; igualar, nivelar,
rasar
2 – VTD Deitar abaixo; lançar por terra; O furacão arrasou boa parte da cidade.
demolir, derrubar, destruir
3 – VTD Causar estragos significativos; As chuvas fortes arrasaram o milharal.
arruinar, danificar
4 – VTD/VPR Abater(-se) física e/ou As palavras do marido arrasaram-na.
moralmente; aniquilar (-se), Arrasou-se com tanto trabalho pesado.
exaurir(-se)
5 – VTD/VTI Descompor ou humilhar com João Batista arrasava os falsos religiosos.
injúrias e palavras violentas O delegado arrasou com os meliantes.
6 – VTD Fazer perder os bens, a paz de Negócios malsucedidos o arrasaram.
espírito, a coragem
7 – VPR Perder bens; cair em ruína; Arrasou-se com a sucessão de falências
arruinar-se bancárias.
8 – VINT Fazer sensação ou obter Usando um maiô transparente, a garota
FIG, COLOQ sucesso; impressionar arrasou.
vivamente; abafar, causar
9 – VTD/VPR Encher(-se) até quase Jovialmente, arrasou os copos dos
transbordar companheiros.
Os olhos dos espectadores arrasaram-se
de lágrimas.
Legenda: VTD – Verbo Transitivo Direto; VTI – Verbo Transitivo Indireto; VINT – Verbo Intransitivo;
FIG – Figurativo; COLOQ – Coloquial; VPR – Verbo Pronominal

3
Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php>. Acesso em: 2 dez. 2019.
18   —  Coleção Pesquisadores

A partir dos exemplos expostos pelo dicionário, observamos que, das


nove entradas verificadas, oito são de construções com o verbo arrasar
atuando como verbo transitivo (direto ou indireto) tendo o significado
negativo (salvo a primeira entrada que tem o sentido de nivelar), e a
oitava entrada, fugindo da regra inicial, é uma construção de verbo in-
transitivo, em que o verbo arrasar é utilizado com um novo propósito:
o de significar algo bom, bem-sucedido, marcante. Portanto, é feito um
amálgama, a partir dos significados encontrados, em que verificamos as
microconstruções expostas na figura 1.

Figura 1
Microconstruções com o verbo arrasar

Fonte: Elaborada pelos autoras.

Como proposto por Traugott e Trousdale (2013), a partir de uma hie-


rarquia construcional, pretendemos, com o esquema exposto na figura
1, exemplificar as duas microcronstruções, aqui analisadas, do verbo
arrasar: [X arrasar Y] e [(X) arrasar].
Observemos, então, que a macroconstrução com o verbo arrasar
[(X) arrasar (Y)], quando comparada com a microconstrução [(X) arrasar],
mostra indícios de mudança também em sua forma – havendo uma ex-
pansão de mudança em sua transitividade verbal – quando analisadas
suas possíveis microcronstruções. Dessa maneira, há mudanças no polo
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  19

do sentido e no polo da forma indicando algo como ser bem-sucedido, e


configuramos, então, uma construcionalização.
Um dos motivos que levaram a este estudo foi o significado encon-
trado na microconstrução [(X) arrasar], como fazer sucesso, pois, duran-
te a segunda década do século XXI houve uma aparição desse novo sig-
nificado, que vem crescendo em diversos contextos interacionais. Uma
primeira hipótese era de que fosse mais recorrente na fala/escrita de
pessoas mais próximas (e também adeptas) do mundo LGBT+, segundo
Gonçalves e Massariol (2019). Esses estudiosos observaram, no Twitter,
que pessoas como Preta Gil, Anitta e Daniela Mercury utilizam essa
microconstrução em seus discursos. Essas mulheres, por sua vez, são
cantoras que comumente estendem as bandeiras do universo LGBT+. No
referido estudo, eles notaram, também, que não fora utilizado o verbo
com o novo sentido em perfis como o de Jair Bolsonaro e Damares Alves,
pessoas que tentam se afastar do universo mencionado.
Uma análise mais detalhada foi desenvolvida para este artigo, na
qual observamos perfis de pessoas políticas. Encontramos a nova acep-
ção do verbo somente nos seguintes perfis: homem heterossexual, des-
taca-se no meio político por estender a bandeira de igualdade social
(Marcelo Freixo); perfis de mulheres, sendo elas em defesa da família
ou não. Em geral, são pessoas adultas e não são velhas no meio político.

A partir dessa análise preliminar, uma segunda hipótese foi estabe-


lecida: a possibilidade de que haja uma correlação entre gênero e/ou
sexualidade e a faixa etária do enunciador. Para tanto, no presente es-
tudo, aplicamos um teste de avaliação subjetiva a falantes do português
brasileiros que não fossem da área de Letras, com o intuito de verificar
até que ponto as hipóteses supracitadas podem ser comprovadas.

3. AVALIAÇÃO DOS FALANTES DO PORTUGUÊS


BRASILEIRO (PB) SOBRE O NOVO SENTIDO DO VERBO
Nesta seção, procuramos saber o que os falantes de PB acham a respei-
to do uso do verbo arrasar com o sentido de desempenhar muito bem
20   —  Coleção Pesquisadores

determinada ação, e qual o perfil de pessoas era associado a esse uso.


Para tal, foi realizado um teste de avaliação subjetiva com dezenove
falantes nativos, que é um estudo embrionário para futuras pesquisas.

Antes de descrever o teste e os resultados, é importante ressaltar


sua importância.

A avaliação da língua, por parte do falante, é profícua para se bus-


car as suas identificações linguísticas. Além disso, o valor dado pelas
pessoas e as suas associações a traços sociais ajuda-nos a afirmar, com
maior precisão, o que encontramos no Twitter, ou seja: maior uso do
verbo arrasar no perfil de mulheres, sejam elas heterossexuais ou não,
e no de homens aliados aos movimentos LGBT+.

Há diversas formas para medir a atitude linguística dos falantes. La-


bov (2001, p. 193-194) as descreveu em três tipos:
1) Self Report Test – “Os sujeitos recebem uma variedade de varian-
tes linguísticas e são solicitados a dizer qual delas se aproxima
mais do seu próprio uso” (LABOV, 2001, p. 194, tradução nossa);4
2) Family Background Test – é testada a capacidade dos falantes de
identificar diversos dialetos;
3) Matched Guise Test – mede, de maneira inconsciente, as atitudes
dos sujeitos em relação aos usos da língua.

O teste feito segue as características do primeiro tipo. É importante


ressaltar que o teste de avaliação subjetiva é um instrumento utilizado,
normalmente, em estudos de variação linguística. No entanto, neste
artigo, houve um alinhamento de tal aporte metodológico à LFBU. Sendo
assim, no lugar em que se leem variantes linguísticas, no item 1, enten-
demos, aqui, como significados, tendo em vista que a forma do verbo
arrasar apresenta vários significados, como os expostos no quadro 1,
na seção anterior.

O teste foi desenvolvido na plataforma Google Forms, incluindo infor-


mações de características sociais dos participantes: idade, escolaridade,
4
“Subjects are given a range of linguistic variants and are asked to say which one comes closest to
their own use.”
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  21

identificação de sexo/gênero; identificação com os grupos LGBT+; e se o


participante já foi a alguma parada gay ou marcha pelos direitos LGBT+.

A tarefa do teste consistiu na leitura de diferentes tweets e em segui-


da os participantes deveriam ou identificar alguma(s) característica(s)
de quem havia escrito o texto, ou escolher entre duas construções, con-
forme solicitado. O primeiro texto foi este: “Nosso comitê tá de portas
abertas! Às 17h45 vai rolar exibição do debate no SBT pra vermos juntos
o @MottaTarcisio arrasar mais uma vez e às 20h estarei com @renata-
souzario para um encontro no comitê. Venha, pegue nossos adesivos e
vamos nos encontrar. É reta final!”

Após a leitura, os participantes deveriam responder qual o perfil de


sexo/gênero e escolaridade de quem havia escrito. A seguir, eles foram
expostos à seguinte situação apresentada neste trecho: “Imagine que
seu amigo tenha feito uma ótima apresentação em um congresso. En-
tão, em seguida, você iria falar com ele. Em uma situação descontraída,
como falaria?” Para essa pergunta, havia duas alternativas de respostas,
uma com o uso do verbo arrasar e outra sem esse uso. Posteriormente,
os participantes foram expostos a esta pergunta: “Ao ler o trecho ‘Gente,
rindo muito! Paulo Gustavo arrasou!’, você acha que essa pessoa é...”
Em seguida, os participantes deviam informar se a pessoa que escreveu
é criança, adolescente, adulta ou idosa. Por fim, foi apresentada uma
pergunta aberta em que deviam responder o que achavam do uso do
verbo arrasar com o sentido de desempenhar muito bem determinada
ação. A essa pergunta não havia opções de escolha.

Das dezenove pessoas que participaram do teste, 42,1% eram


mulheres heterossexuais; 26,3% se consideravam homem heteros
sexual; 26,3% se consideravam homem homossexual; e 5,3% eram mu-
lheres homossexuais.

Quanto aos resultados em relação à pergunta sobre qual seria a orien-


tação sexual de quem escreveu a mensagem com o verbo arrasar, corre-
lacionando essa resposta à identificação com o grupo LGBT+, obtivemos os
seguintes resultados:
22   —  Coleção Pesquisadores

Tabela 1 – Correlação entre orientação/identificação versus perfil de quem


os informantes acham que utiliza o verbo arrasar com o novo sentido
ORIENTAÇÃO
HOMEM HOMEM OU MULHER
SEXUAL/ HOMEM
HOMEM OU MULHER MULHER HÉTERO OU
IDENTIFICAÇÃO HOMOS- TOTAL
HÉTERO MULHER HOMOS- HÉTERO HOMEM
COM O GRUPO SEXUAL
HÉTERO SEXUAL HOMOSSEXUAL
LGBT+
HOMEM HÉTERO - - - - - - 5
SIM 0 0 1 0 1 1 3
NÃO 0 1 0 0 0 1 2
HOMEM
- - - - - - 5
HOMOSSEXUAL
SIM 0 3 1 1 0 0 5
MULHER HÉTERO - - - - - - 8
SIM 1 0 0 1 2 1 5
NÃO 0 0 2 0 1 0 3
MULHER
- - - - - - -
HOMOSSEXUAL
SIM 0 0 0 0 0 1 1
TOTAL 1 4 4 2 4 4 19
Fonte: Elaborada pelos autoras.

Verificamos, na tabela 1, que os homens heterossexuais que se


identificam com os LGBT+ associam o novo sentido do verbo a homens
e mulheres heterossexuais; mulheres heterossexuais; e mulher hete-
rossexual ou homem homossexual. Os que não se identificam associam
a nova função aos homens homossexuais e mulheres heterossexuais.
Em contrapartida, os homens homossexuais, em sua maioria, acredi-
tam que quem escreveu foi um homem homossexual, talvez por asso-
ciar tal uso ao seu. Os resultados das mulheres heterossexuais, que
se identificam, mostram disparidade, associada, na maior parte dos
dados, às mulheres heterossexuais, enquanto as mulheres que não se
identificam associam o novo sentido aos heterossexuais. O resultado,
quanto às mulheres homossexuais, é de somente um dado. Em suma,
notamos que há uma grande disparidade de opiniões, o que mostra,
de certo modo, que o uso já se encontra associado a todos os grupos
e orientações sexuais, como podemos notar no gráfico 1, que mostra
uma análise geral dos resultados:
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  23

Gráfico 1
Análise geral dos resultados sobre quem o informante achava
que utilizava o verbo arrasar com o novo sentido

Fonte: Elaborado pelos autoras.

Inicialmente, tínhamos a hipótese de que o uso do verbo com o sentido


de desempenhar muito bem determinada ação seria associado aos que fos-
sem LGBT+ ou aos que se identificassem mais ao universo. Tal hipótese foi posta
abaixo com os resultados obtidos. Entretanto, seria necessária uma maior
exploração do teste, replicando-o a um maior público.

Quanto à pergunta de qual seria a escolaridade de quem escreveu,


encontramos o resultado com significado positivo do verbo arrasar as-
sociado às pessoas com ensino superior:
Gráfico 2
Resultado sobre qual seria a escolaridade de quem
utilizava o verbo arrasar com o novo sentido

Fonte: Elaborado pelos autoras.


24   —  Coleção Pesquisadores

Voltados à pergunta sobre se os informantes utilizariam o verbo ar-


rasar com o sentido de desempenhar muito bem determinada ação,
na ocasião supracitada, notamos que a maioria das pessoas responde-
ram que sim, independentemente de sua identificação ou não ao grupo
LGBT+, tendo uma oscilação maior entre os homens, como podemos
notar na tabela 2.
Tabela 2 – Correlação entre orientação/identificação versus
utilização ou não do verbo arrasar com o novo sentido
ORIENTAÇÃO
SEXUAL/
NOVO SENTIDO DO
IDENTIFICAÇÃO
VERBO ARRASAR
COM O GRUPO
LGBT+
Mulher
Homem Homem
Homem hétero ou
Homem ou ou mulher Mulher
homos- homem Total
hétero mulher homos- hétero
sexual homos-
hétero sexual
sexual
HOMEM
- - - - - - 5
HÉTERO

SIM 0 0 1 0 1 1 3

NÃO 0 1 0 0 0 1 2

HOMEM
- - - - - - 5
HOMOSSEXUAL

SIM 0 3 1 1 0 0 5

MULHER
- - - - - - 8
HÉTERO

SIM 1 0 0 1 2 1 5

NÃO 0 0 2 0 1 0 3

MULHER
- - - - - - -
HOMOSSEXUAL

SIM 0 0 0 0 0 1 1

TOTAL 1 4 4 2 4 4 19

Fonte: Elaborada pelos autoras.


Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  25

Ao aplicarmos o teste, uma de nossas hipóteses era de que a forma


seria correlacionada aos adultos e adolescentes, o que foi ratificado
nos resultados.
Gráfico 3
Resultado sobre qual seria a faixa etária de quem
utilizava o verbo arrasar com o novo sentido

Fonte: Elaborado pelos autoras.

Considerando os resultados obtidos no teste, verificamos que não


basta apenas analisar os dados existentes no Twitter, é necessário apli-
car um teste de avaliação subjetiva para verificar, de maneira mais con-
solidada, os resultados, o que ainda foi pouco explorado na área.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Este artigo traz como algo inovador a aplicação do teste de avalia-
ção subjetiva à LFBU, ainda pouco explorado nos estudos linguísticos
no Brasil, entre os quais destacam-se, na área, os trabalhos de Freitag
(2016), Cardoso (2015) e Oushiro (2015). Todavia, esses estudos são vol-
tados para a sociolinguística. Nossa intenção, com esse teste, era a de
ratificar as hipóteses propostas em Gonçalves e Massariol (2019) de que
a microconstrução “X arrasar” seria mais encontrada na fala/escrita de
jovens e, talvez, a pessoas interligadas ao mundo LGBT+.
26   —  Coleção Pesquisadores

Para testar a hipótese, observamos tweets de políticos no Twitter. A


partir das microconstruções verificadas nesses tweets, categorizamo-las
em duas grandes microconstruções, conforme os significados encon-
trados no dicionário Michaelis. Notamos, a partir da teoria de mudança
proposta pela GC, que o novo significado encontrado em [X arrasar Y] ~
[(X) Arrasar] configura uma construcionalização, havendo mudança no
polo da função e da forma: o da função, neste caso, com um significado
diferente, e o da forma, com uma transitividade diferente.

Voltando à questão da aplicação do teste de avaliação subjetiva,


obtivemos, como resultado, que os participantes homens heterosse-
xuais, que se identificam com o grupo LGBT+, associam o novo sentido
do verbo arrasar a falantes de qualquer orientação sexual. Os que não
se identificam associam o novo significado à fala de homens homos-
sexuais e de mulheres heterossexuais – ou seja, notamos que pode
haver estigma de que homens homossexuais assemelham seus usos
linguísticos ao de mulheres heterossexuais. Por outro lado, os homens
homossexuais, em sua maioria, associam esse uso a um homem ho-
mossexual, talvez por se identificarem com o uso. Corroborando a se-
gunda hipótese de que o verbo arrasar, com o sentido de desempenhar
muito bem determinada ação, seria mais frequente na fala de pessoas
mais jovens, pudemos verificar que os participantes do teste atribuíram
o uso a adultos e adolescentes.

Tendo em vista que, a priori, não há outros estudos envolvendo o


verbo arrasar à luz da GC, conseguimos responder nossas hipóteses ini-
ciais, propostas para esta análise. Porém, deixamos em aberto mais três
possíveis hipóteses para um trabalho futuro: pessoas consideradas mais
conservadoras fazem uso dessa microconstrução? Há algum contexto
favorecedor para o uso desse significado, olhando pelo viés da type
frequency (frequência de tipo)? Até que ponto avaliação do falante é, de
fato, uma resposta relevante sobre o uso concreto da língua?
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  27

Referências bibliográficas
BOAS, H. C. Cognitive construction grammar. GOLDBERG, A. E. Constructions: a
In: HOFFMANN, T.; TROUSDALE, G. (eds.). The construction grammar approach to
Oxford handbook of construction grammar. argument structure. Chicago: CUP, 1995.
Oxford: OUP, 2013. p. 233-254. ______. Constructions at work: the nature of
BYBEE, J. Language, usage and cognition. generalization in language. Oxford: OUP, 2006.
Cambridge: CUP, 2010. GONÇALVES, D. T.; MASSARIOL, C. B. What
CARDOSO, D. P. Atitudes linguísticas e does the Construction Grammar say about
avaliações subjetivas de alguns dialetos the constructions: “X ARRASAR Y” and “X
brasileiros. São Paulo: Blucher, 2015. ARRASAR”?. In: XI Seminário Internacional
CROFT, W. Radical construction grammar: do Grupo de Estudos Discurso e Gramática.
syntactic theory in typological perspective. Rio de Janeiro: UFRJ, 2019.
Oxford: Oxford University Press, 2001. LABOV, W. Principles of linguistic change:
FREITAG, R. M. K. Uso, crença e atitudes social factors. Oxford: Blackwell, 2001
na variação na primeira pessoa do plural OUSHIRO, L. Identidade na pluralidade:
no português brasileiro. Documentação de avaliação, produção e percepção linguística
Estudos em Linguística Teórica e Aplicada na cidade de São Paulo. 2015. 394f. Tese
(DELTA), v. 32, p. 889-917, 2016. (Doutorado em Letras) – Faculdade de
FURTADO DA CUNHA, M. A.; BISPO, E. B.; SILVA, Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
J. R. Linguística funcional centrada no uso: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
conceitos básicos e categorias analíticas. TOMASELLO, M. (ed.). The new psychology
In: CEZARIO, M. M.; FURTADO DA CUNHA, M. of language: cognitive and functional
A. Linguística centrada no uso: uma home- approaches to language structure. Mahwah,
nagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro; NJ; London: LEA, 2003. v. 2.
Cataguases, MG: FAPERJ; Mauad, 2013. TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G.
GIVÓN, T. Syntax: an introduction. Amsterdam; Constructionalization and constructional
Philadelphia: John Benjamins, 2001. v. 1. changes.Oxford: OUP, 2013.
28   —  Coleção Pesquisadores

– ANEXO –
Questionário para um estudo linguístico

Olá, a gente montou este questionário para fazer uma pesquisa linguís-
tica. Você, ao respondê-lo, nos ajudará a saber mais a respeito do por-
tuguês brasileiro a partir de alguém que é nativo da língua. É importante
que você seja informado(a) que não há resposta certa ou errada. Então
fique tranquilo(a) e vamos lá!

1) Você é nativo do Brasil? 5) Você se identifica com os grupos


( ) Sim LGBT+?
( ) Não ( ) Sim
( ) Não
2) Você se considera...
( ) Homem heterossexual 6) Já participou de alguma parada gay
( ) Homem homossexual ou marcha pelos direitos LGBT+?
( ) Mulher heterossexual ( ) Sim
( ) Mulher homossexual ( ) Não

3) Qual é a sua idade? 7) Ao ler este trecho: “Nosso comitê


( ) Tenho entre 10 a 15 anos tá de portas abertas! Às 17h45 vai ro-
( ) Tenho entre 15 a 20 anos lar exibição do debate no SBT pra ver-
( ) Tenho entre 20 a 30 anos mos juntos o @MottaTarcisio arrasar
( ) Tenho entre 30 a 40 anos mais uma vez e às 20h estarei com @
( ) Tenho entre 40 a 50 anos renatasouzario para um encontro no
( ) Tenho mais de 50 anos comitê. Venha, pegue nossos adesivos
e vamos nos encontrar. É reta final!”
4) Qual é a sua escolaridade? Você acredita que quem o escreveu foi:
( ) Ensino fundamental incompleto ( ) Homem heterossexual
( ) Ensino fundamental completo ( ) Mulher heterossexual
( ) Ensino médio incompleto ( ) Homem homossexual
( ) Ensino médio completo ( ) Mulher homossexual
( ) Graduação incompleta ( ) Homem ou mulher heterossexual
( ) Graduação completa ( ) Homem ou mulher homossexual
( ) Pós-graduação incompleta ( ) Mulher heterossexual ou homem
( ) Pós-graduação completa homossexual
Dany Thomaz Gonçalves / Caroliny Batista Massariol   —  29

( ) Homem heterossexual ou mulher iria falar com ele. Em uma situação


homossexual descontraída, como falaria?
( ) Amigo, você arrasou na apresen-
8) Ao ler este trecho: “Nosso comitê tá
tação
de portas abertas! Às 17h45 vai rolar
exibição do debate no SBT pra vermos ( ) Amigo, você foi muito bom na
juntos o @MottaTarcisio arrasar mais apresentação
uma vez e às 20h estarei com @re- 10) Ao ler o trecho “Gente, rindo
natasouzario para um encontro no
muito! Paulo Gustavo arrasou!”, você
comitê. Venha, pegue nossos adesivos
acha que essa pessoa é...
e vamos nos encontrar. É reta final!”
( ) Criança
Você acha que essa pessoa estudou:
( ) Adolescente
( ) Até o fundamental I
( ) Até o fundamental II ( ) Adulto
( ) Até o ensino médio ( ) Idoso
( ) Até o curso superior 11) O que você acha do uso do verbo
( ) Até a pós-graduação
arrasar com o sentido de “ir muito
9) Imagine que seu amigo tenha fei- bem”?
to uma ótima apresentação em um _________________________________
congresso. Então, em seguida, você _______________________________
2
Construções de Futuro com Verbos
Volitivos no Português do Brasil:
querer + Verbo no Infinitivo
Mariana Gonçalves da Costa (UFRJ – CNPq – PIBIC)
Lais Lima de Souza (UFRJ – graduanda)
Marcia dos Santos Machado Vieira (UFRJ)

– INTRODUÇÃO –
O foco deste texto é apresentar o resultado preliminar de um estudo em
andamento sobre o uso do verbo volitivo querer como fonte de constru-
ções com valores de futuro no português brasileiro (PB).

Do ponto de vista semântico, a volição está ligada a noções de vonta-


de e desejo, o que põe em jogo a provável realização/consecução futura.
Desse modo, diversas línguas apresentam a gramaticalização de verbos
volitivos como marcadores de futuro, como é o caso do inglês – o auxi-
liar will decorre de um verbo lexical que significa “querer”; da mesma
forma, o verbo yào, que também expressa o sentido de “querer”, é um
dos marcadores de futuro no mandarim.

Tendo por base os pressupostos teóricos da linguística funcional-cog-


nitiva e da gramática de construções, a pesquisa aqui relatada investiga

— 31 —
32   —  Coleção Pesquisadores

dados da construção querer + verbo no infinitivo no PB. Considerando


as hipóteses estabelecidas por Szcześniak (2017), busca-se averiguar
quais valores gramaticais são relacionados ao uso de construção com
verbos volitivos com base em predicadores complexos com o verbo
querer, bem como identificar os fatores que motivam cada valor.

Pretende-se, com este trabalho, incentivar outros estudos sobre o


tema, especialmente investigações em que outros (co)lexemas verbais
volitivos simples ou complexos (desejar, ter desejo/vontade, por exem-
plo) também venham a ser focalizados.

1. BASES TEÓRICAS
Segundo Bybee e Pagliuca (1987), muitos dos morfemas utilizados por
diversas línguas para sinalizar futuro possuem outros usos que não são
estritamente temporais, expressando, por exemplo, desejo, intenção,
obrigação, entre outros. Os autores explicam que verbos que indicam
desejo ou movimento são as fontes mais frequentes para noções de
futuro. Argumentam, ainda, que marcadores de futuro derivados de ver-
bos de desejo usualmente trazem a percepção de intenção.

Na definição apresentada pelo dicionário virtual Michaelis,1 a volição


é entendida como o “Processo mental pelo qual a pessoa adota uma li-
nha de ação; atividade consciente que visa a determinado fim, manifes-
tada por intenção e decisão”. Ou seja, a volição parece estar relacionada
à ideia de um fim projetado para o futuro. Assim, como explicam Heine
et al. (1991), há uma predisposição nos verbos volitivos a sofrer mu-
danças em direção a uma série de funções gramaticais. Ressalta-se que,
nesta pesquisa, não se faz distinção entre verbos volitivos e verbos de
desejo e, assim, as duas nomenclaturas são utilizadas como sinônimas.

Na língua portuguesa, o emprego do verbo querer seguido de outro


verbo no infinitivo para indicar futuridade tem sido apontado por muitos
autores como resultante de um processo de gramaticalização. Por esse

1
Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/.
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  33

motivo, o verbo querer revelaria perda ou opacidade de seu caráter vo-


litivo ao se compatibilizar em construções de predicadores complexos
com esse tipo de configuração morfossintática, de modo a deixar de
operar como um item meramente lexical no português e a assumir, com
regularidade, as funções gramaticais de um auxiliar de futuro.

Santos (2015) relata que as construções com querer como verbo


auxiliar denotam uma indicação vindoura, pois se uma ação é deseja-
da, ela tem o potencial de ser alcançada futuramente. Seu potencial
de efetivação é projetado para um tempo posterior ao da realização
discursivo-pragmática da proposição que o encaminha. Portanto, a es-
trutura querer + verbo no infinitivo seria associada a uma maneira de
expressar tempo em português, já que apresenta a volição e a indica-
ção de futuro.

De fato, já existem estudos sobre as construções com querer que


apontam para a existência de diferentes valores que expressam graus
variados de realização de uma intenção. Em seu artigo, Szcześniak
(2017) faz uma análise funcionalista da gramaticalização do verbo que-
rer em algumas línguas a fim de observar quatro valores gramaticais
que podem decorrer dessa fonte cognitiva: futuro, proximativo, iminen-
cial inconcluso e concessivo (quadro 1).

Quadro 1 –Valores gramaticais de querer

Fonte: Szcześniak (2017).

O estudo dá atenção especial ao verbo querer na língua portuguesa,


utilizando dados retirados de obras literárias publicadas em português a
partir do século XIII. De acordo com o autor, o verbo querer no português
expressaria apenas dois desses valores, o proximativo e o concessivo,
34   —  Coleção Pesquisadores

sendo o valor futuro e o valor iminencial inconcluso expressos, respecti-


vamente, pelo verbo ir e por advérbios e locuções adverbiais.

Szcześniak (2017) posiciona esses valores em um contínuo, em que


o valor futuro é apresentado em uma das extremidades e expressa a
realização propriamente dita, ao passo que o valor concessivo, situado
no extremo oposto, representa a não realização. No meio, encontram-se
o valor iminencial inconcluso – que expressa uma ação que esteve perto
de ocorrer, mas não se concretizou – e o valor proximativo – que traz a
noção de um futuro próximo.

Quadro 2 – Contínuo de valores relacionados a volição

Fonte: Szcześniak (2017).

Central à nossa pesquisa é o referencial de ligação entre conhe-


cimento linguístico e experiência da linguística funcional centrada no
uso (LFCU). Recorremos aos pressupostos da LFCU que dizem respeito
à importância da análise da língua em uso para o entendimento da
configuração da linguagem e sua representação cognitiva. Com base
nessa perspectiva, entende-se que a língua não só licencia o uso como
também se estrutura a partir dele, sendo modelada pelas práticas dis-
cursivas. Afinal, o falante pode usar a língua e fazer generalizações, indo
além do input, de modo criativo embora tendencialmente sujeito a res-
trições estatísticas (PEREK; GOLDBERG, 2017). A LFCU situa os fenômenos
linguísticos de acordo com as funções (pragmáticas/discursivas/semân-
ticas) desempenhadas nos diferentes contextos de produção linguística.

Diferentemente de Szcześniak (2017), adotamos um referencial de


análise do “fenômeno de gramaticalização” (segundo a nomenclatura
desse autor), que leva em consideração a noção de construção. Parti-
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  35

mos da ideia comum a diferentes enfoques em gramática de constru-


ções de que a língua consiste de uma rede de pareamentos entre forma
e função/significado configurados em diferentes níveis de complexidade
e esquematicidade. Adotamos, mais especificamente, o referencial de
Traugott e Trousdale (2013). Assim, a detecção do verbo volitivo como
auxiliar marcador de algum tipo de futuridade potencializa-se quando o
lexema verbal se combina a um dado pareamento com certos valores de
atributos formais e funcionais. Esse pareamento é, por sua vez, fruto de
um processo diacrônico de construcionalização gramatical. Assim sendo,
nosso entendimento é o de que um verbo volitivo tem, além do papel
de predicador na língua, o potencial de operar gramaticalmente como
(semi)auxiliar via o mecanismo cognitivo de neoanálise.

Ainda de acordo com Traugott e Trousdale (2013), a construcionaliza-


ção gramatical é um processo no qual uma nova construção, com nova
forma e novo significado, se desenvolve. Nossa hipótese é a de que
esse seria o caso da construção [Vvolitivo Auxiliar VPredicador de um estado de coisas
na forma de infinitivo]Predicador complexo para marcação de tempo futuro, licenciada a partir
da construção [Vvolitivo VPredicador de um estado de coisas na forma de infinitivo]Construção
de volição-futuridade. Dessa forma, nosso entendimento é o de que essa cons-
trução atualiza, com o verbo querer, diferentes potencialidades que, em
alguma medida, tendem a reter algum grau dos valores de volição e de
futuridade. Entre essas possibilidades, está a que se vê configurada, em
certos constructos, com verbo auxiliar. Tal verbo exerce valores grama-
ticais típicos de um auxiliar de futuro: ligando-se mais estreitamente a
um verbo na forma de infinitivo, servindo mais para perspectivar tem-
poralmente o estado de coisas que esse verbo representa do que para
acentuar intencionalidade/volição. Assim, é atraído também para predi-
cadores complexos envolvendo participantes sujeitos inanimados e, en-
fim, revelando menos restrições em termos de compatibilizações viáveis
(no que diz respeito à natureza dos lexemas/sintagmas que preenchem
os argumentos do predicador, ao tipo de lexema a preencher o slot V2
no infinitivo, por exemplo). Com isso, em alguns dados, é nítida essa
condição de Vvolitivo Auxiliar de futuro a qual querer passa. Em outros, pode-se
supor apenas algum grau de mudança construcional, em que a alteração
36   —  Coleção Pesquisadores

detectada ou está na forma (na percepção de certa coesão entre querer


e Vinfinitivo), ou está no significado (no eixo volição-futuridade, pen-
dendo um pouco mais para o valor de futuridade).

A percepção da condição de auxiliaridade – que o verbo querer, ao se


compatibilizar ao slot V1 de uma construção com uma configuração tal
qual [V1volitivo (numa forma finita ou não) V2 no infinitivo]Construção de volição-futuridade , pode fazer
emergir com menor ou maior nitidez – depende de certos valores de atri-
butos presentes no enunciado. Além disso, depende também da asso-
ciação dessa configuração mais esquemática à representação cognitiva
de: i) dois predicadores verbais, que, por sua vez, envolvendo ou não
papéis participantes/argumentos, organizam duas predicações/orações
em relação de subordinação, sendo uma delas reduzida de infinitivo –
[V1volitivo Predicador [V2 Predicador de um estado de coisas na forma de infinitivo]predicação OD]Predicação complexa;
ou ii) um predicador verbal complexo, envolvendo verbo (semi)auxiliar
– [V1volitivo V2 Predicador de um estado de coisas na forma de infinitivo]Predicador complexo, em que, a
partir do valor volição-futuridade latente em V1volitivo, pode ter lugar me-
nos ou mais nitidamente a inferência de função de auxiliar de futuro.

2. OBJETIVOS
A partir do que foi mencionado, nossos objetivos são: i) verificar quais
valores são relacionados ao uso de construção com verbos volitivos
com base em predicadores complexos com o verbo querer; e ii) analisar
quais fatores motivam cada valor, levando em consideração as hipóte-
ses estabelecidas por Szcześniak (2017).

Uma de suas hipóteses é a de que não há querer com valor iminen-


cial inconcluso no português, uma vez que seria apenas expresso por
advérbios ou locuções adverbiais, como por um triz, por pouco etc.
Outra hipótese se dá sobre o valor futuro, que apareceria predominan-
temente quando o sujeito da oração está na primeira pessoa gramatical;
todavia, no português seria expresso apenas pelo verbo ir. Por fim,
vale lembrar que os dois valores que o autor reconhece no português
expressos pela perífrase querer + Vinfinitivo são o concessivo e o proxi-
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  37

mativo, sendo o concessivo predominante em orações com o sujeito na


segunda ou terceira pessoa gramatical, ao passo que o valor proximativo
ocorre majoritariamente quando o verbo principal está configurado no
gerúndio.

3. METODOLOGIA
O corpus do estudo que subsidia este artigo foi retirado do acervo
on-line “Roteiro de Cinema”2 e é composto por enunciados de roteiros
de filmes nacionais lançados entre os anos 2001 e 2010, sendo dez lon-
gas e seis curtas, totalizando 240 mil palavras. Apesar de se tratar de
textos escritos, a escolha por roteiros se deu devido à proximidade com
a fala espontânea. Além disso, ressalta-se que a inferência dos valores
dos dados foi feita por meio da composição entre o texto do roteiro e
as cenas dos filmes.

Foram coletados 225 exemplos de predicadores complexos expres-


sos com o verbo volitivo querer nos dez longas, e 28 nos seis curtas,
totalizando 253 dados. Entre esses, foram identificadas 32 ocorrências/
constructos de construções em que há cristalização dos lexemas que as
compõem. Buscamos também dados com os verbos volitivos esperar e
desejar, mas não foram encontrados exemplos de predicadores comple-
xos com eles nos roteiros pesquisados. Vale mencionar que dados de
construções de predicadores complexos com o segundo verbo (verbo
auxiliado) não expresso não foram computados neste corpus.

A partir desses dados foi feita a análise de acordo com os valores


encontrados por Szcześniak (2017), na qual se consideraram não apenas
os textos dos roteiros como também os elementos visuais dos filmes.
A literatura construcionista prevê que as construções gramaticais são
dependentes do contexto de uso, de modo que uma análise que consi-
derasse apenas a forma linguística seria deficiente. Portanto, examinar
visualmente os acontecimentos nas cenas dos filmes foi de grande im-
portância para a inferência dos valores.
2
Disponível em: http://www.roteirodecinema.com.br/roteiros.htm
38   —  Coleção Pesquisadores

Além disso, iniciamos uma análise sobre as seguintes variáveis:


i) metragem do roteiro (longa ou curta); ii) ano de lançamento (de
2000 a 2005 e de 2006 a 2010); iii) tipo de configuração da predicação
verbal (desenvolvida ou reduzida de infinitivo, gerúndio ou particípio);
iv) polaridade da predicação (negativa, afirmativa ou interrogativa);
v) animacidade do sujeito (animado, inanimado ou não identificável);
vi) pessoa gramatical; e vii) presença ou ausência de outras marcas
de futuro (verbos, advérbios, orações vizinhas no futuro, entre outras;
na oração com o predicador complexo ou no entorno). Em seguida, os
dados foram tratados no programa Goldvarb X, procedimento que nos
permitiu medir a distribuição de dados (frequência, em termos percen-
tuais, de tokens e types).

4. RESULTADOS DA PESQUISA SOBRE


A CONSTRUÇÃO QUERER + VINFINITIVO
4.1 Categorização dos dados: exemplos e atributos
Em nosso corpus, foram encontrados cinquenta casos do valor futuro
seguindo a fórmula desenvolvida por Szcześniak (2017) de “X vai fazer
Y”. Apesar de o autor sinalizar que, no português, o valor futuro é de-
sempenhado apenas pelo verbo ir, encontramos exemplos nos quais a
interpretação do verbo querer como meramente volitivo não é possível,
já que ele passa a remeter ao que está por vir e emerge uma inferência li-
gada à realização/consecução de um estado de coisas num tempo futuro:
(1) Você sabe por que o homossexual masculino é chamado de veado? É por-
que durante o inverno os veados machos dormem juntinhos, um agasalhando
o outro contra o frio. Fofo, não é? A pergunta que não quer calar: filho de vea-
do, é veadinho? Você acha que temos dois bambis na escola? Responda. Deixe
aqui sua opinião. Não seja um alienado.
Longa: As melhores coisas do mundo (2010)

Nesse exemplo, pode-se entender que a pergunta não vai se calar


até ser respondida, ou seja, a pergunta será feita. O caráter volitivo de
querer também é afastado por conta da natureza inanimada do sujeito.
Como “a pergunta” é um referente inanimado do sujeito pronominal
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  39

“que”, ela não é passível de volição. Soma-se a isso o fato de que a


pergunta (referida pelo pronome relativo) é materializada logo após a
expressão, o que confere proeminência à inferência de futuridade.

Aqui cabe uma breve consideração a respeito do atributo de (in)


animacidade. Conforme sustentam Heine et al. (1991), no estágio inicial
de gramaticalização, o julgamento fatalmente tende a expressar vonta-
de, evidenciando a restrição contextual de que o sujeito da proposição
é humano e volitivo, ao passo que, no estágio final, o sujeito pode ser
inanimado e, portanto, desprovido de vontade. Isso significa que há
um momento intermediário no qual essa estrutura começa a ser usada
com sujeitos inanimados. Nesse estágio intermediário, o verbo tende a
expressar volição com seres humanos, mas há inferência de futuro com
os sujeitos não humanos.

De fato, o uso de verbos volitivos com sujeitos inanimados é mencio-


nado por Szcześniak (2017) como um sinal da consolidação da relação
do valor futuro a esses verbos. Sendo assim, a relação entre a não ani-
macidade do sujeito e esse valor já estava prevista. Em nosso corpus,
apuramos que nenhum exemplo com sujeito inanimado foi reconhecido
como meramente volitivo, estando os dados distribuídos apenas entre
construção com valor futuro e construções cristalizadas – que explicare-
mos mais adiante.

Voltando ao exemplo (1), consideramos que não é possível inter-


pretar querer com um valor que não seja o de futuro. Cogitamos que
talvez um falante até possa fazer uma leitura dessa expressão com base
na associação entre querer e o verbo modal poder (por exemplo, “que
não se pode calar”/“que não pode ser calada”), em vez da associação
com o verbo ir. Inclusive, nesse caso, entendemos que o falante possa
fazer essa leitura com base na potencialidade de inferência de futuro,
que também emerge de certas construções perifrásticas com poder +
verbo no infinitivo (FERRARI; ALONSO, 2009), e que o caráter de (semi-)
auxiliaridade desse modal envolvido na referida associação só acentue
o estatuto de auxiliar de querer.
40   —  Coleção Pesquisadores

“Que não quer calar” é, por outro lado, uma expressão popularmente
usada no português brasileiro. À primeira vista, parece apresentar-se
relativamente cristalizada no que tange à configuração lexical, morfos-
sintática e semântica, e à frequência com que é empregada sem signi-
ficativa modificação, o que serve de indício à hipótese de que ela pos-
sivelmente resulte de um processo de construcionalização lexical. Uma
rápida pesquisa, via ferramenta de busca na web, revela que não são ra-
ros os constructos envolvendo os lexemas “pergunta” (“uma/a pergunta
que não quer calar”) e “calar”, embora também se encontrem outros
lexemas relacionados a essa expressão, bem como outro formato dela:
“a crise que não quer calar”, “dúvida que não quer calar”, “a moda que
não quer calar”, “perguntas que não querem calar”, “uma pergunta que
não quer silenciar”, “perguntas que querem calar”. De todo modo, esse
tipo de uso do predicador complexo com querer se presta à retomada de
um referente e à preparação do interlocutor para uma proposição/for-
mulação de pergunta que se apresenta em seguida. Consideramos que
também seu estatuto panfórico potencializa a inferência de futuridade,
bem como sua funcionalidade gramatical.

Encontramos também nove ocorrências do valor proximativo em


casos como o do exemplo (2), seguindo a fórmula “X está prestes a
Vinfinitivo”. Em tal exemplo, ao analisar a cena no filme, temos a cons-
tatação de que a personagem Teresa estava prestes a se irritar. Ainda
assim, ocorrências como essa carregam o sentido volitivo mais marcado
do que os exemplos citados por Szcześniak, nos quais a volição não era
presente seja pelo sujeito inanimado, seja pelo fato de o segundo verbo
designar uma ação que não seria tipicamente desejável (e.g. desmaiar).
(2) PEDRO – Por que você quer ver sua mãe no dia que você vai fechar o
contrato?
TERESA – É minha mãe, Pedro.
PEDRO – Bem, você tá querendo se irritar.
Longa: Não por acaso (2007)

Em relação ao valor iminencial inconcluso no português, seguindo


a fórmula “X não faz Y por um triz”, Szcześniak (2017, p. 183) afirma:
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  41

“Em português, o valor iminencial inconcluso não é expresso por um


verbo, mas através de advérbios ou locuções adverbiais quase, por um
triz, ou por pouco”. Esse valor designa uma ação que chega perto de
ocorrer, mas não acontece. Pela descrição do autor, não esperávamos
encontrar tais exemplos no corpus; entretanto, foram encontrados três
exemplos, como em (3):
(3) Pérola e Margherit almoçam em um pequeno restaurante do centro de
Belo Horizonte.
Pérola entrega a ela uma pasta recheada de papéis.
Margherit quer pegar, mas a outra não solta a pasta.
Longa: O contador de histórias (2009)

Para analisar essa ocorrência, baseamo-nos tanto nos elementos tex-


tuais do roteiro como nos visuais do longa. Nessa cena, a personagem
Margherit não apenas quer pegar a pasta como efetivamente tenta pe-
gá-la, tendo sua ação impedida por outra personagem. Essa seria uma
ação que chega a um momento próximo de ocorrer, mas não se con-
cretiza por um triz; e é descrita sem auxílio de advérbios ou locuções
adverbiais. Sendo assim, apesar de não numerosos, foram encontrados
exemplos do valor iminencial inconcluso expresso pela construção que-
rer + Vinfinitivo no PB.

Por fim, o valor concessivo, seguindo a fórmula “quer X, mas aconte-


ce Y”, aparece no corpus nove vezes. Esse valor é baseado na contrapo-
sição entre o desejo e a realização, uma vez que a volição não garante
a realização de uma ação. Nos roteiros encontramos tanto exemplos
em que a conjunção “mas” estava presente como exemplos sem ela,
como em (4):
(4) MANO – Eu queria tocar guitarra. Você me faz ficar tocando violão.
Longa: Carro de paulista (2009)

4.2 Distribuição dos dados por valores


Em relação à distribuição dos dados por valores acionados pela constru-
ção querer + Vinfinitivo (gráfico 1), encontramos um número menor do
que o esperado de dados da construção puramente volitiva – aqueles
42   —  Coleção Pesquisadores

que não possibilitam interpretação como outros valores –, consideran-


do que representaram apenas 150 tokens, ou seja, 59,3% dos dados.
Houve uma diminuição de registros dessa construção entre os recortes
temporais de 2000 a 2005 e de 2006 a 2010. Todavia, como os recortes
temporais são muito próximos, ainda não é possível fazer uma análise
diacrônica do fenômeno. Contudo, identificamos um número maior do
que o esperado de dados da construção com o valor futuro (50 to-
kens/19% dos dados), estando distribuídos em sua maioria em predica-
ções com a primeira pessoa gramatical, como previsto por Szcześniak
(2017). Além disso, apesar de termos identificado apenas três casos do
valor iminencial inconcluso (1,2% dos casos), esse número é significati-
vo, considerando que o autor não previa a existência desse valor no PB.
Já em relação ao valor concessivo e proximativo, ambos representaram
3,6% dos dados, sendo um total de nove instâncias cada.

Gráfico 1
Distribuição dos dados por valores acionados
pela construção querer + Vinfinitivo

12,6%
19,8%

3,6%
1,2%
3,6%

59,3%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Outro ponto de destaque em relação à distribuição dos valores se


deu no caso do valor proximativo que não ocorreu em orações negativas
e interrogativas, apenas nas afirmativas. Ainda é necessário um estudo
mais aprofundado para entender as motivações por trás desse resulta-
do. Além disso, Szcześniak (2017) previu que esse valor estaria relacio-
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  43

nado ao gerúndio e, em nosso corpus, isso ocorreu 55,6% das vezes,


sendo os outros 44,4% de predicação na forma desenvolvida.

Como mencionado anteriormente, não houve instâncias do valor vo-


litivo em orações em que o sujeito era inanimado. Os casos de orações
com sujeitos inanimados – poucos exemplos foram encontrados no cor-
pus – se distribuíram entre construções com valor de futuro e constru-
ções cristalizadas. Além disso, ainda em relação ao sujeito, Szcześniak
apontou a relação entre o valor futuro e a primeira pessoa gramatical,
o que se confirmou em 56% dos exemplos. No caso da relação entre o
valor concessivo e a segunda e a terceira pessoa gramatical, essa rela-
ção se confirmou em 44,5% dos exemplos (4 tokens), sendo 55,5% dos
casos predicações na primeira pessoa gramatical (5 tokens). Entretanto,
foram encontrados apenas 9 tokens do valor concessivo, o que dificulta
uma visão clara dessa distribuição.

Uma categoria relevante no corpus, que não havíamos previsto, diz


respeito à presença de construções cristalizadas (32 tokens), com ne-
nhuma ou quase nenhuma variação do lexema que preenche Vinfinitivo
e com querer com configuração morfossintática restrita, além de atri-
buto funcional diferente do presente nas anteriormente descritas. As
ocorrências dessas construções representaram um percentual de 12,6%
do corpus. Optamos por não as categorizar segundo os valores citados
por acreditarmos que podem possuir propriedades diferentes. Algumas
delas são marcadores discursivos e apareceram, em sua maioria, em
predicações afirmativas e na terceira pessoa gramatical.

4.3 Construções cristalizadas

Como mencionado, identificamos algumas construções cristalizadas no


nosso corpus, considerando aquelas que possuíam características des-
critas por Calzolariet (2002 apud CARNEIRO 2016): composicionalidade,
flexibilidade sintática e transparência semântica reduzidas. Um exemplo
de uma construção identificada foi “quer dizer” no seguinte enunciado:
(5) JORGINHO – Não, ô mané! Chegar quer dizer ir embora.
Longa: Carro de paulista (2009)
44   —  Coleção Pesquisadores

Nesse exemplo temos a construção “X quer dizer Y” que seria relati-


va à “X significa Y”. Pode ser caracterizada como cristalizada/chunking
(expressão fixa), pois não é possível identificar seu significado pelo
significado de suas partes. Essa construção em especial se mostrou bem
produtiva, com um total de 13 tokens no corpus. Todavia, não pode ser
confundida com a construção cristalizada a seguir, que atua como um
marcador discursivo delimitando uma correção durante o ato de fala:
(6) Eu, novo por aqui!? Não... Quer dizer... É... Um pouco, né!?... Quanto o quê?
Longa: Carro de paulista (2009)

Outro marcador discursivo identificado foi o “quer saber”, que carre-


ga um tom de enfrentamento, como no exemplo a seguir:
(7) PEDRÃO – Não te mete! Eu tô falando com o Raíto.
JÚNIOR – Quer saber, veio? Eu vou lá com o Raio Que Os Parta e vou trazer a
cerva. Vem, moleque.
Longa: Carro de paulista (2009)

Por fim, as duas últimas construções encontradas são formadas pela


união do verbo querer com o verbo ver. A primeira, no exemplo (8), traz
um tom de desafio, o que reflete a relação entre desejo e realização.
Essa expressão tem sua ironia baseada na noção de que o falante quer
ver, mas sabe que a ação não será concretizada pelo outro.
(8) MANO – Essa eu quero ver você catar, Deco!
Longa: As melhores coisas do mundo (2010)

Não pudemos delimitar, na segunda construção (9), se incluiria a


conjunção “se” ou não, uma vez que só encontramos esse exemplo.
Entretanto, aparentemente, tal construção faz uma projeção sobre um
acontecimento, sendo enfatizada pela expressão “mais pra frente”:
(9) AURELINA – Meu filho ainda mora comigo. ]/Quero ver se, mais pra frente,
vendo a casa, reparto o dinheiro e vou morar sozinha…
Longa: Chega de saudade (2007)
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  45

4.4 Ambiguidade dos valores


Durante a codificação dos dados, encaramos certa dificuldade em cate-
gorizar cada ocorrência em apenas um valor, encontrando coocorrência
de dois ou até mais valores em um mesmo exemplo. Entretanto, essa
possibilidade já estava prevista, pois, como afirma Szcześniak (2017,
p. 194), todos os valores “abrigam certa ambiguidade no que respeita
ao seu grau de realização”. As fronteiras entre eles não são, portanto,
estreitas, permitindo sobreposição.

Ademais, a permutabilidade de sentido entre os valores não aconte-


ce necessariamente apenas entre valores vizinhos. Houve instâncias em
nosso corpus que indicavam a sobreposição de valores, como o proxi-
mativo e o concessivo: em (10), “prestes a te seduzir” versus “quer, mas
não vai”. Szcześniak trouxe outros exemplos de sobreposições, como
entre os valores futuro – “Vai explicar-me […]?” – e concessivo – já que a
avó sabe que a menina não quer dar a explicação (não quer, mas vai):
(10) MANO – É o próximo passo. Esse folgado tá querendo te seduzir porque
você é bonitinha, novinha e baba por ele, se liga!
Longa: As melhores coisas do mundo (2010)

(11) – Querida, o que se passa para que tu faças isso?


– Desculpa, avó... (e foi a correr para o quarto.)
...
– Queres explicar-me o que se passa, querida?
(ROCHA, 2017 apud SZCZEŚNIAK, 2017).

Vale ressaltar que tal possibilidade foi prevista por Szcześniak em


seu artigo, apesar de não ser contemplada em sua representação em
contínuo, que só ilustra o contato entre um valor com outro
consecuti-vamente menos ou mais realizável. Por esse motivo,
trazemos a proposta da representação dos valores na figura 1,
que permite sobreposições variadas, inclusive a sobreposição
simultânea entre todos os valores, mantendo certas proximidades
e distâncias entre eles:
46   —  Coleção Pesquisadores

Figura 1
Representação dos valores acionados pela construção querer + Vinfinitivo

Fonte: Elaborada pelos autores.

Dessa maneira, contemplamos exemplos como em (12), o qual aceita


interpretação que reúne todos os valores simultaneamente, assim como
exemplos como (1), em que apenas o valor futuro está sendo realizado –
e até mesmo a noção de volição é rejeitada nos dados em que o sujeito
é inanimado.
(12) Lígia (muito séria) – Ele entrou aqui já fazendo confusão. Já tinha vindo a
tarde e tinha feito a maior presepada, e não queria pagar, por isso uns clientes
terminaram colocando ele pra fora. Mas aí ele voltou. Já chegou gritando e
mandando... Dizia que queria a identidade e me queria também. Aí ele puxou
o revólver... morro de medo de revólver. Admito toda coisa do mundo, mas
revólver acho coisa de covarde. Coisa de quem não tem coragem, entendeu?
Coisa de cabra safado…
Longa: Amarelo manga (2002)

No caso do exemplo (12), o fato de os outros clientes terem colocado


o homem para fora indica que ele não tinha apenas vontade de não
pagar (volição), como efetivamente fez algo em relação a isso, aproxi-
mando-se da omissão do pagamento (proximativo), mas sendo impedi-
do pelos outros clientes (iminencial inconcluso). Sendo assim, ele não
queria pagar, mas pagou (concessivo + futuro).
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  47

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Apresentamos aqui um breve mapeamento de potencialidades de sig-
nificação acionadas a partir da construção querer + Vinfinitivo, centrado
na análise de dados oriundos de roteiros de cinema (longas e curtas) e
inspirado em categorização formulada por Szcześniak (2017) pelo viés
do estudo da mudança por gramaticalização e com base em algumas
línguas (entre as quais o português).

Em relação à descrição funcionalista de Szcześniak (2017) sobre o


verbo volitivo querer expressando futuro, identificamos que algumas de
suas observações se mostraram verdadeiras em nosso corpus e outras
não. O uso do valor futuro com a primeira pessoa gramatical se mostrou
verdadeiro 56% das vezes, enquanto o uso do valor concessivo com a
segunda e a terceira pessoa gramatical se mostrou verdadeiro 44,5%
das vezes. Além disso, o valor proximativo foi apontado em orações no
gerúndio 55,6% das vezes. Entretanto, o autor previa que o valor imi-
nencial inconcluso só se manifestaria no português por meio de advér-
bios e locuções adverbiais, e foram encontrados três casos desse valor,
expresso pela construção formada pelo lexema querer e um verbo no
infinitivo em proposição sem a presença de tais elementos (advérbios
ou locuções adverbiais).

Nossa análise centrada em referencial construcionista, diferente do


de Szcześniak (2017), leva-nos a esboçar um quadro que se desenha
com base nesta rede de pareamentos forma-função:

• o verbo querer, ao se compatibilizar ao slot V1 de uma construção


com uma configuração tal qual [V1volitivo (em uma forma finita ou não) V2 no infinitivo]
Construção de volição-futuridade, pode fazer emergir, com maior ou menor niti-

dez, uma inferência de valor volitivo ou de valor de futuridade, a


depender de certos valores de atributos presentes no enunciado e
da associação desse tipo de configuração à representação cognitiva
de: dois predicadores verbais, que, por sua vez, projetando ou não
papéis participantes/argumentos, organizam duas orações/predi-
cações em relação de subordinação (uma delas reduzida de infini-
48   —  Coleção Pesquisadores

tivo) – [V1volitivo Predicador [V2 Predicador de um estado de coisas na forma de infinitivo]Predicação OD]
Predicação complexa – ou de um predicador verbal complexo, envolvendo

verbo (semi) auxiliar – [V1volitivo (Semi)Auxiliar V2 predicador de um estado de coisas na forma


de infinitivo]Predicador complexo;

• querer pode, ainda, integrar construções cristalizadas (tais como


quer dizer, quer saber e quer ver), que indiciam resultarem de um
processo de construcionalização que se nota a partir da opacidade
do significado de desejo de V1 e da repetição de combinações com
algum grau de fossilização de certos lexemas com querer, assim
como das significações inferidas desse chunkings; supomos que
tais combinações estão estocadas na memória como unidades com
forma e funcionalidade (relativamente) fixas;
• ao se combinar no slot de V1volitivo, querer tem o potencial de funcio-
nar como verbo (semi)auxiliar indicador de futuridade, licenciando,
entre outros, constructos a partir de uma representação cognitiva
de [Vvolitivo Auxiliar VPredicador de um estado de coisas na forma de infinitivo]Predicador complexo para
marcação de tempo futuro.

Fizemos o tratamento qualitativo dos dados, inclusive o rastrea-


mento de variáveis que podem interferir na combinação. Porém, ainda
planejamos apurar esse mapeamento com a ampliação da amostra de
usos, bem como continuar as etapas analíticas seguintes relativas à
análise colostrucional (tratamento estatístico). O objetivo é identificar o
sentido atribuído ao predicador mediante o acionamento de verbo voliti-
vo, partindo da ideia de que a semântica de uma construção é baseada
na relação entre possíveis inputs e associações, na compatibilização de
(co)lexemas/construções ou aloconstruções nos slots da construção em
si (relação input-output). Consideramos fatores a examinar: a perspec-
tiva de conceptualização da cena/do estado de coisas, a pessoa gra-
matical e os tipos semânticos de V2 (Vinfinitivo) que podem preencher
as construções, bem como o grau de atração de querer, relativamente
a outras possibilidades de indicação de volição, no preenchimento do
primeiro slot da construção [Vvolitivo Vpredicador de um estado de coisas na forma
de infinitivo]Construção de volição-futuridade. Pretendemos, ainda, fazer o tratamen-
to estatístico da colocação de verbos de desejo (querer) em relação a
Maria Maura Cezario / Karen Sampaio B. Alonso / Dennis Castanheira   —  49

outros slots construcionais (inclusive slots envolvidos na configuração


da proposição que abriga a construção desiderativa), assim como ana-
lisar modalidade e questões aspectuais de dinamicidade, duratividade,
telicidade e homogeneidade (RAPOSO et al., 2013) envolvidas nos esta-
dos de coisas que se configuram em proposições.

Vale ressaltar, por fim, que as construções cristalizadas aqui apre-


sentadas ainda carecem de exame aprofundado quanto aos seus atribu-
tos formais e funcionais, aos seus graus de cristalização, ao estatuto de
chunking (resultante de construcionalização) e a seus possíveis valores
output. Esse mapeamento é outra etapa da pesquisa em andamento,
que nos forneceu os resultados até então reportados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BYBEE, J.; PAGLIUCA, W. The evolution of PEREK, F.; GOLDBERG, A. E. Linguistic
future meaning. In: RAMAT, A. G.; CARRUBA, generalization on the basis of function
O.; BERNINI, G. (eds.). The Evolution of and constraints on the basis of statistical
Future Meaning. Papers from the 7th preemption. Cognition, 168, p. 276-293, 2017.
International Conference on Historical RAPOSO, E. B. P.; BACELAR DO NASCIMENTO, M.
Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, F.; MOTA, M. A. C. da; SEGURA, L.; MENDES, A.
1987. p.107-122. (coords.). Gramática do português. Lisboa:
CARNEIRO, A. Descrição e classificação das Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.
expressões cristalizadas com ser e estar do SANTOS, V. C. Intenção e desejo: os usos
português do Brasil. Universidade Federal de querer com implicaturas de futuridade.
de São Carlos, 2016. Dissertação (Mestrado 2015. 133 f. Dissertação (Mestrado) -
em Linguística) – Programa de Pós- Programa de Pós-graduação em Linguística,
Graduação em Linguística, Universidade Universidade Federal de Santa Catarina,
Federal de São Carlos, São Carlos, 2016. Florianópolis, 2015.
Disponível em: www.repositorio.ufscar.
br/bitstream/handle/ufscar/8015/DissASC. SZCZEŚNIAK, K. É um não querer mais que
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: bem querer: gramaticalização de conceitos
11 jan. 2020. volitivos. Revista de Estudos Linguísticos da
Universidade do Porto, n. 12, p. 179-200, 2017.
FERRARI, L. V.; ALONSO, K. S. B. Subjetividade
e construções de futuro no português TRAUGOTT, E.; TROUSDALE, G.
brasileiro. Alfa, São Paulo, v. 53, n. 1, p. Constructionalization and constructional
223-241, 2009. changes. Oxford: Oxford University Press,
2013.ticais, têm sido absorvidos pela
HEINE, B.; CLAUDI, U.; HÜNNEMEYER, F. corrente que vem adotando o rótulo de
Grammaticalization: a conceptual framework. linguística funcional baseada no uso (LFBU).
Chicago: University of Chicago Press, 1991. Esse modelo linguístico.
3
Construções Marcadoras Discursivas
Formadas Por Afixoides Locativos
No Português do Brasil:
uma Abordagem Sincrônica
Cristian Matias do Nascimento Corrêa (UFF/Pibic)
Mariangela Rios de Oliveira (UFF/CNPq; UERJ/Faperj)

– INTRODUÇÃO –
Neste capítulo, descrevemos e analisamos um tipo de construção do
português brasileiro contemporâneo formado originalmente por uma
parte nuclear verbal e por seu complemento circunstancial – aí e lá. Em
determinados contextos de uso, esses complementos, que têm como
fonte pronomes locativos, passam a exercer papel afixoide, nos ter-
mos de Booij (2010; 2013), ou seja, itens dependentes limítrofes entre o
léxico e a gramática.

Investigamos aqui a construção [VLocaf]MD a partir de microconstru-


ções como vamos lá, vai lá, sei lá, calma aí e espera aí, a fim de detec-
tar, em perspectiva sincrônica e através de diferentes contextos de uso,

— 51 —
52   —  Coleção Pesquisadores

a gradiência1 que deriva na convencionalização de um novo membro do


paradigma dos marcadores discursivos. Essa rota pode ser observada
a partir da taxonomia contextual, nos termos de Heine (2002). O autor
divide os estágios de derivação do uso em três tipos, que têm origem
em contextos normais, como em (1), passa para contextos ponte, como
em (2), até atingir o contexto switch, como em (3), no qual observamos
alto grau de vinculação entre as subpartes verbal e locativa. Postulamos
que, a partir de micropassos contextuais sucessivos, forja-se a constru-
ção [VLocaf]MD, que passa a integrar a classe dos marcadores discursivos,
entrando para o paradigma da língua: o quarto estágio de mudança
preconizado por Heine (2002).

A seguir, ilustramos, com dados de nosso corpus de pesquisa, o cline


contextual referido:

(1) “Falamos com o embaixador sobre a postura da Tüv Süd. Ele nos
garantiu que tomará as providências cabíveis e que a sede da
Tüv Süd na Alemanha estaria disposta a colaborar”, apontou o
deputado Rogério Correia (PT-MG), relator do colegiado. # Os de-
putados também colocaram uma viagem até a Alemanha como
possibilidade para ajudar a CPI. “Colocamos à disposição a nossa
ida para a Alemanha. Não temos data definida, mas vamos lá en-
contrar com os técnicos e responsáveis da Tüv Süd”, disse André
Janones (Avante-MG). # Também estiveram presentes na embai-
xada a deputada Aurea Carolina (PSOL-MG) e Júlio Delgado (PSB-
-MG), presidente do colegiado. (Corpus do Português NOW).
(2) O importante é que você mude e se adapte aos nossos conselhos
e dicas, além de, claro, criar sua forma pessoal de estudos. Isso
vai acontecer, contanto que você continue tentando, se esforçan-
do e nunca desistindo. Agora, vamos lá ao tema de nosso artigo:
a recém-aplicada prova de Aprendiz de Marinheiro. A prova veio
como esperávamos que viria: distinta das anteriores, mais difícil

1
Traugott e Trousdale (2010) fazem distinção entre gradualidade, relativa à dimensão diacrônica da
mudança linguística e sua trajetória unidirecional, e gradiência, que diz respeito aos distintos graus
de gramaticalização manifestados pelos padrões de uso numa mesma sincronia. Dessa maneira, a
gradiência é considerada o resultado sincrônico da gradualidade.
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  53

e com questões muito mais rebuscadas e criativas. Não veio como


antes, em que o foco era dado em cima de questões de pura
aplicação de conceitos imediatos. Essa prova pode ter sido a mais
difícil do concurso, desde que temos conhecimento. (Corpus do
Português NOW).
(3) Enquanto prestava homenagem ao talento do DJ, que conside-
rou “um dos maiores escritores natos de melodias com quem já
trabalhei”, a memória de sua última apresentação juntos – cerca
de três anos antes da entrevista – foi prejudicada pelo hábito de
bebida de Avicii. # “Foi um pouco triste para mim porque ele me
prometeu que ele iria parar de beber, e quando eu o vi naquela
noite ele estava bêbado. E eu fiquei tipo ‘Ei, cara, vamos lá. O que
você está fazendo? O que você está fazendo? Você disse que isso
tinha acabado’”, lembrou Nile. “Nós fizemos o show e eu fiquei
um pouco chateado. Eu nem sequer fiquei por perto para ver o
show dele porque estava partindo meu coração. Mas nós ainda
nos divertimos muito. Foi maravilhoso – nós éramos muito próxi-
mos. (Corpus do Português NOW).

Em (1), num fragmento de discurso direto, o deputado André Janones


argumenta que está disponível para a viagem à Alemanha para ajudar
na CPI. Aqui temos o que Heine (2002) define como contexto normal de
uso, ou seja, instanciação cujas subpartes são ainda composicionais,
num tipo de formação em que pode ser identificado tanto o componente
verbal (vamos), que nesse caso tem sentido pleno de ir junto a algum
lugar, quanto o complemento circunstancial (lá), que retoma anaforica-
mente um lugar físico, Alemanha.

Já em (2), detectamos que não há mais o enquadramento espacial no


contexto, como em (1). Observamos agora que, embora o verbo denote
movimento, inerente a sua semântica fonte, não diz respeito mais ao
plano físico. Tal deslocamento se dá de forma virtual, uma vez que os
interlocutores não estão presentes fisicamente. Além disso, o comple-
mento circunstancial aponta, cataforicamente, para um objeto que não
é prototípico nem concreto: o tema.
54   —  Coleção Pesquisadores

No fragmento (3), o nível de vinculação semântico-sintático de vamos


lá é ainda maior do que em (2), uma vez que suas subpartes perdem
composicionalidade, em prol de ganho de sentido holístico. Além disso,
a construção é altamente independente da oração na qual se insere. Seu
margeamento por pausas corrobora para que funcione como um ele-
mento em prol da marcação discursiva, no nível pragmático da língua.

Como fonte de dados deste trabalho, utilizamos o Corpus do Portu-


guês, na versão NOW,2 e o Corpus do Grupo de Estudos D&G.3 Em levanta-
mento quantitativo, investigamos de forma exaustiva o Corpus D&G e de
forma seletiva o Corpus do Português Now. Analisamos qualitativamente
os contextos de uso em que V e Loc atuam contiguamente, a fim de
detectar a gradiência que culmina na convencionalização da [VLocaf]MD.
Assumimos, assim, que o cline contextual que identifica os micropassos
da mudança que leva à construcionalização referida é passível de ser
atestado na sincronia atual do português, o que demonstra a gradiência
dos usos linguísticos, tal como assumida por Bybee (2010, 2015).

Dividimos o capítulo em quatro seções: a primeira trata dos pressu-


postos teóricos balizadores da nossa pesquisa, fundados na linguística
funcional centrada no uso (doravante LFCU), na interface dos estudos
funcionalistas com a abordagem construcional da gramática, de vertente
cognitivista, tal como apresentado em Oliveira (2012), Oliveira e Cezario
(2017), Furtado da Cunha, Bispo e Silva (2018) Rosário e Oliveira (2016),
Teixeira (2015), Rocha (2016), Rosa (2019), entre outros. Na sequência,
dedicamo-nos à apresentação dos contextos de uso dos arranjos em
estudo e seu caminho rumo à classe dos marcadores discursivos. Em
seguida, apresentamos resultados quantitativos, que demonstram o ní-
vel de produtividade dos dados em análise. Por fim, tecemos algumas
considerações e apontamentos sobre os resultados até agora obtidos
com a nossa pesquisa.

2
Disponível em: www.corpusdoportugues.org.
3
Disponível em: www.discursoegramatica.com.
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  55

1. FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO CENTRADO NO USO


Pautamo-nos na mais recente versão dos estudos funcionalistas, que
alia a perspectiva clássica da vertente norte-americana, com base em
autores como Bybee, Traugott, Hopper, Givón, entre outros, à aborda-
gem construcional da gramática, segundo Goldberg, Croft, Fillmore,
entre outros, na denominada LFCU, como formulado em (BYBEE, 2010;
2015; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013; HILPERT, 2014). De acordo com essa
perspectiva teórica, a língua é formada por construções, que são mode-
los abstratos e convencionais organizados em rede. Esses modelos são
instanciados em padrões de uso, e passam a ser entendidos como um
todo de sentido e forma, em arranjos altamente vinculados. De acordo
com a LFCU, os usos linguísticos são concebidos como motivados via
combinação de três fatores básicos, que são: a) pressões estruturais
e contextuais da língua, b) dimensão cognitiva envolvida na interação
verbal/discursiva e c) motivação sócio-histórica.

A LFCU assume ainda o modelo estrutural formulado por Croft (2001) e


retomado em Croft e Cruse (2004) para a abordagem construcional. Esse
modelo de estrutura simbólica da construção parte de uma abordagem
holística de análise, que procura dar conta das propriedades construcio-
nais divididas em dois eixos maiores – forma e sentido. Assim, tanto a
dimensão da forma (fonética, morfologia e sintaxe) quanto a do sentido
(semântica, pragmática e discurso) motivam os usos linguísticos.

Para além das chamadas versões clássicas da mudança gramatical,


fundadas na trajetória da unidirecionalidade, assumimos, como em
Traugott (2008), as relações entre pares de forma-sentido como prová-
vel direcionalidade ao longo do tempo. Dessa forma, o que antes era
concebido em sentido único de afetação (léxico>gramática ou –grama-
tical > +gramatical) dá lugar à correspondência na base da correlação
(função <–> forma), tal como defendida em Traugott e Trousdale (2013).

Por um lado, examinamos aspectos formais das diversas instancia-


ções que formam parte de nosso esquema, isto é, do nível esquemáti-
co de abstração maior das instanciações de [XLocaf]MD na pesquisa dos
56   —  Coleção Pesquisadores

fatores estruturais de sua composição interna, no nível sintático, morfo-


lógico e fonológico, e de sua ordenação, no nível da cláusula, bem como
consideramos a frequência de seu uso. Por outro lado, investigamos
o sentido dos constructos4 em análise, na consideração dos aspectos
semânticos, pragmáticos e discursivo-funcionais envolvidos no contexto
de sua ocorrência, com destaque para os fatores atinentes à perspecti-
vização espacial (BATORÉO, 2000).

Em termos semânticos, atentamos para a polissemia e o nível de


integração dos afixoides estudados com as demais subpartes da cons-
trução da qual forma parte. Para dar conta do sentido articulado pelos
pronomes locativos, observamos sua polissemia por meio do cline es-
paço >tempo >texto, como assumido classicamente em Heine, Claudi e
Hünnemeyer (1991), e também nos fundamentamos na teoria localista,
como proposta em Batoréo (2000). De acordo com o referido cline, os
sentidos mais concretos ou atinentes ao mundo biossocial são recruta-
dos também para a referência temporal e, na sequência, podem chegar
à dimensão discursiva, como a articulação de noções lógicas. Conforme
a teoria localista, sentidos espaciais, mais básicos e concretos, servem
de ponto inicial de mudança semântica, passando a fazer referência
a sentidos mais abstratos, como os temporais, daí chegando aos lógi-
co-textuais. Do ponto de vista pragmático, investigamos a atuação de
pressões como inferência sugerida,5 nos termos de Traugott e Dasher
(2005), e (inter)subjetivização, bem como o perfil dos interlocutores e
outros fatores intervenientes na interação.

4
Numa perspectiva construcional, o constructo constitui o token empiricamente levantado no
uso linguístico.
5
Referência à negociação de sentidos intersubjetivos em contextos específicos.
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  57

2. A MACROCONSTRUÇÃO [XLOCAF]MD
E SEUS CONTEXTOS DE USO
Teoricamente, concebemos que há ambientes pragmático-discursivos e
semântico-sintáticos que favorecem micropassos ou neoanálises6 que
podem culminar na formação de um novo pareamento de forma e senti-
do, de um novo padrão construcional da gramática de uma língua.

Tais ambientes se configuram como contextos nos quais emergem


inferências pragmáticas, que licenciam sentidos ambíguos e, em pon-
to mais avançado de polissemia, permitem neoanálise estrutural. De
acordo com essa proposta, padrões de uso se iniciam em instanciação
normal, isto é, ambientes nos quais predominam o sentido prototípico
e mais objetivo das subpartes, em que elas assumem seu papel mais
composicional. Na nossa pesquisa, essa função é cumprida sintatica-
mente quando um pronome locativo atua na função de complemen-
to circunstancial de lugar, sem leituras polissêmicas ou ambíguas. O
segundo estágio, denominado ponte, refere-se às instanciações cujo
sentido prototípico sofre desbotamento, pois há perda de composi-
cionalidade e analisabilidade, abrindo espaço para leituras ambíguas
por conta das pressões semântico-sintáticas e pragmático-discursivas.
Nessa fase, no entanto, ainda há presença de traços das categorias
originais das subpartes. O contexto switch é definido como aquele que
consolida o processo de mudança construcional, pois reorganiza e di-
ferencia, por meio de processos de neoanálise, os novos usos, que são
convencionalizados, ou seja, entram de vez para a rede construcional
do paradigma da língua, constituindo-se como um novo membro de
classe gramatical. Neste trabalho, tais constituintes formam parte de
outra classe de palavras no português brasileiro: a dos marcadores
discursivos. Entre algumas definições para essa classe na literatura
linguística consideramos a de Risso, Silva e Urbano (2002, p. 21) para
abranger a [XLocaf]MD:

6
Utilizamos o termo neoanálise no lugar do tradicional rótulo reanálise, no entendimento de
que se trata de nova representação na mente do usuário e não retomada de algo já repre-
sentado.
58   —  Coleção Pesquisadores

Trata-se de amplo grupo de elementos de constituição bastante diversificada,


envolvendo, no plano verbal, sons não lexicalizados, palavras, locuções, e
sintagmas mais desenvolvidos, aos quais se pode atribuir homogeneamente a
condição de uma categoria pragmática bem consolidada no funcionamento da
linguagem. Por seu intermédio, a instância da enunciação marca presença for-
te no enunciado, ao mesmo tempo que se manifestam importantes aspectos
que definem sua relação com a construção textual-interativa.

Para além da definição, estabelecemos critérios de classificação


dos contextos, a fim de dar à nossa pesquisa caráter mais holístico.
Para tanto, nos pautamos nos estudos de Heine, Kaltenböck e Kuteva
(2019), no estabelecimento de propriedades da categoria dos marca-
dores discursivos, quais sejam: a invariabilidade estrutural, a inde-
pendência sintática, a especificidade prosódica e a articulação de um
enunciado à situação do discurso, ao papel dos interlocutores ou aos
propósitos comunicativos.

Assim, assumimos que o esquema [XLocaf]MD apresenta alto grau de


vinculação entre as subpartes, configurando construcionalização, uma
vez que se convencionaliza um novo nó na rede linguística.

Nos termos de Bybee (2010), os objetos tratados neste trabalho per-


tencem a ambientes que exibem gradiência e escalaridade de sentido
e formas envolvidos. Tais usos convivem em uma mesma sincronia do
português brasileiro, como na contemporânea. O exemplo (4) retrata o
uso original ou normal, tal como em (1), apresentado na primeira seção,
em que X e Loc atuam como efetivos membros de sua classe gramatical
fonte, sem maior vinculação entre si, exibindo alto nível de composicio-
nalidade, nos termos de Traugott e Trousdale (2013), como em:

(4) Margateh foi atrás do Pezão. Ao passar por mim, falei baixinho
para ela: – Eu e o gordo vamos esperar por você lá embaixo. –
Ela me olhou espantada. – Como assim? Eu quero dormir! –
[A gente espera] [lá embaixo]. – Não estou te entendendo. (Corpus
do Português: Now).

Como podemos observar, o que temos em (4) é o uso efetivo lexical


de espera lá, em que as personagens dizem a Margateh que irão aguar-
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  59

dá-la em outro lugar. Nesse exemplo, observamos que tanto o verbo


como o locativo são altamente composicionais, ou seja, o verbo denota
ação de aguardar em um local, que é representado pelo complemento
circunstancial de lugar lá, que introduz cataforicamente esse lugar, re-
presentado por embaixo. Existe, nesse caso, perspectivização de frame
espacial (BATORÉO, 2000). Observamos também que ainda não se trata
de uma construção, uma vez que não há vinculação entre os componen-
tes, isto é, não há a formação de um novo esquema.

A partir do sentido espacial, como ilustrado em (4), teríamos senti-


dos contextuais mais subjetivos e usos mais vinculados, com em (5):

(5) Fique à vontade para participar do nosso debate, porque aqui


você sabe: “Assistir é apenas o começo”! Vamos lá analisar o mais
novo filme da DC que chegou aos cinemas: Shazam! Finalmente
temos o filme inspirador que estava faltando nessa nova fase
da DC? O jogo virou? Zachary Levi mandou bem interpretando o
herói? As crianças são o coração do filme? Quais as maiores sur-
presas? (Corpus do Português: Now).

Em (5), vamos lá atua como um efetivo chamamento por parte do


entrevistador, uma vez que não há qualquer deslocamento físico/con-
creto, mas sim um chamamento virtual para que o interlocutor intera-
ja, compartilhando um relato de procedimento. O que marca esse con-
texto é a ambiguidade pragmática e a possibilidade de novas leituras,
diferentes das prototípicas, desses constituintes. Isso se dá por conta
da atuação de pressões de ordem semântico-pragmática, passando
a motivar neoanálises que culminam na instanciação de novos usos.
Ambas as subpartes, V e Loc, ainda preservam traços de seu conteú-
do mais pleno, relativos ao sentido de deslocamento, ainda que seja
virtual; um deslocamento que não se dá de maneira física. Podemos
relacionar a conservação desse sentido ao princípio da persistência de
Hopper (1991), que estabelece que, quando um constituinte passa por
mudança gramatical, alguns traços do significado original permanecem
na nova categoria.
60   —  Coleção Pesquisadores

Embora contextos como (5) ainda não constituam marcação discursi-


va, o locativo lá já não aponta para um local físico/concreto, perdendo,
assim, maior sentido espacial. Com isso, ocorre perda de composiciona-
lidade e analisabilidade e, em contrapartida, ganho de esquematicidade,
o que configura contexto ponte, nos termos de Heine (2002).

Já em (6) temos estágio mais avançado de vinculação semântico-sin-


tática de V e Loc:

(6) “Não sei se você percebeu, mas eu e o Alain estamos juntos. Ele
te contou? Pela sua cara, já vi que o Alain não te contou nada.
Típico de homem. O sonho deles é ter as duas. Eu não topo, não
sei você”, dirá a pilantra. “Você é baixa”, ofenderá Cris. “Pera
aí. Só comecei a aceitar as investidas do Alain depois que você
terminou com ele. Você terminou, não esquece. Deixou ele solto.
Ele está soltinho, miga”, alfinetará Isabel. “Não acredito que vo-
cês estejam juntos. O Alain sente desprezo por você.” (Corpus do
Português: Now).

Em (6), estamos diante do que Heine (2002) chama de switch con-


text, ou contexto de mudança, ambiente no qual se convencionaliza um
novo tipo de pareamento função-forma. Trata-se do uso efetivo de mar-
cador discursivo. O que caracteriza esse estágio é a perda de analisabi-
lidade e composicionalidade das subpartes, com consequente aumento
de esquematicidade da construção. Em outros termos, há alto grau de
vinculação de sentido e forma, de modo que não se pode mais distinguir
o verbo (espera) e o locativo (aí) separadamente – nem a soma dessas
subpartes representa o sentido efetivo desse pareamento. Nesse está-
gio, X e Loc articulam um todo semântico-sintático, em que detectamos
as propriedades dos marcadores discursivos.

No contexto (6), que se trata de situação hipotética, porque ainda


não aconteceu, dado que os verbos estão maioritariamente em futuro
simples, uma das personagens diz que ainda estaria junto com o Alain
e que ele seria um pilantra, já que queria ter as duas mulheres, e não
havia contado para a outra de seu relacionamento. O discurso de Isabel
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  61

é introduzido pelo constructo pera aí, que interrompe o discurso da


outra personagem para que ela possa iniciar o seu, explicando a situa­
ção. Teixeira (2015), em sua tese de doutorado, descreve o uso dessa
construção como interruptivo-opinativo: Isabel interrompe o discurso de
Cris para começar o seu, introduzindo sua opinião.

De acordo com os critérios estabelecidos em Heine, Kaltenböck e


Kuteva (2019, p. 2), no estabelecimento de padrões para a classe dos
marcadores discursivos, o fragmento (6) contempla esses parâmetros,
uma vez que: há invariabilidade estrutural, dado que as subpartes não
são intercambiáveis; há independência sintática, no sentido de que a
construção é desvinculada sintaticamente da oração na qual se insere;
a especificidade prosódica é ratificada pelo margeamento por pausas –
como se trata de uso escrito, isso se evidencia pelo uso de vírgulas; e,
em sua atuação como marcador discursivo, pera aí atua pragmaticamen-
te no estabelecimento de sentidos no discurso.

3. FREQUÊNCIA DE USO DA [XLOCAF]MD


Como já declaramos, os corpora de nossa pesquisa são compostos por
textos orais e escritos coletados no fim do século XX e no século XXI, en-
tre os anos de 1993 e os dias atuais. Os dados coletados no corpus Dis-
curso & Gramática registram a língua em uso da comunidade estudantil
de cinco cidades brasileiras e compõem-se de depoimentos de temática
variada, produzidos por alunos de distintos níveis de ensino, divididos
entre diferentes tipos de sequências – narrativas, descritivas, injuntivas
e expositivas –, que, segundo Marcuschi (2008), são fatores muito rele-
vantes na análise. Já o corpus do Português: NOW (News On the Web) é
composto ao todo por mais de 1,4 bilhão de palavras retiradas das mais
diversas revistas e jornais on-line de 2012 até os dias de hoje.

Os referidos types foram escolhidos por conta de sua recorrência de


uso em face de outros. A seguir, apresentamos a frequência de contex-
tos em que X e Loc são instanciados e os organizamos por contexto, com
base na proposta taxonômica de Heine (2002).
62   —  Coleção Pesquisadores

Tabela 1 – Frequência contextual do arranjo X LOC


ARRANJO USO NORMAL BRINDING CONTEXT SWITCH CONTEXT TOTAL

Sei lá - - 169 169

Espera aí 87 56 33 176

Vamos lá 72 42 15 129

Vai lá 34 11 - 45

Calma aí 19 3 6 28

TOTAL 212 112 223 547

A escala contextual demonstrada na tabela 1 confirma a gradiência


dos usos linguísticos em perspectiva sincrônica, como declarado por
Bybee (2010, 2015). Como podemos observar, dos 212 dados de usos nor-
mais, em que X e Loc atuam de acordo com suas propriedades semânti-
co-sintáticas prototípicas, espera aí e vamos lá são os mais recorrentes.

A menor frequência contextual, com 112 registros, é do brinding con-


text, como previsto pela teoria, já que ambientes de eminente mudança
linguística são menos produtivos na língua; espera aí e vamos lá são
também os mais produtivos nessa etapa de transição. O arranjo vai lá
não tem registro como MD, mostrando-se o formato mais composicional
dos pesquisados, com 34 dados de uso normal e 11 de brinding context.

Por outro lado, sei lá somente ocorre como MD convencionalizado em


169 registros, demonstrando alta produtividade nesse uso.

Dos quatro types da [XLocaf]MD registrados na tabela 1, assumimos que


dois – sei lá e calma aí – são motivados por analogização, nos termos
de Traugott e Trousdale (2013), demonstrando a alta esquematicidade
da construção em análise. Trata-se de um tipo de expansão host-class,
nos termos de Hilmmelmann (2004), relacionado ao aumento de produ-
tividade construcional. Essa assunção é apoiada em Teixeira (2015), que,
em viés histórico, detecta o type vem cá como o contexto original de
marcação discursiva na trajetória da língua, articulado inicialmente em
predicados verbais e na forma imperativa.
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  63

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Da classe dos afixoides, lá e aí, por conta de suas propriedades semân-
ticas (distância espacial e granulidade), são os mais recrutados para a
formação de novos types do esquema [XLocaf]MD. Constatamos também
que essa construcionalização relaciona a sintaxe construcional à mor-
fologia construcional, uma vez que a segunda subparte, Loc, passa a
atuar como afixoide (Booij, 2010; 2013), constituindo-se como elemento
marginal de X.

Em termos contextuais, na articulação dos sentidos de ordem dis-


cursiva, detectamos que contextos marcados por intersubjetividade,
articulações inferenciais, tentativa de persuasão, maior abstração e
informalidade são ambientes pragmático-discursivos favorecedores da
instanciação [XLocaf]MD.

Ao se convencionalizar, via uso linguístico, a [XLocaf]MD passa a inte-


grar o paradigma dos marcadores discursivos do português, ampliando
o conjunto de construções da língua, como preconizado por Diewald e
Smirnova (2012). Já em termos hierárquicos, a [XLocaf]MD pode ser dis-
tribuída em duas subfamílias, a depender da natureza gramatical da
subparte nuclear X: a) uma em que X é elemento de base verbal, em
types como espera aí e vamos lá; b) outra em que X é elemento de base
nominal, como alto lá. A segunda subfamília foi pesquisada historica-
mente por Rosa (2019).

Assim exposto, procuramos apresentar neste estudo os resultados


obtidos até o momento, que fazem parte de uma agenda maior de pes-
quisa, voltada para a atuação dos pronomes locativos (aqui, aí, lá, entre
outros), como afixoides, na formação de construções do português.
64   —  Coleção Pesquisadores

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATORÉO, H. Expressão do espaço On_the_rise_of_discourse_markers. Acesso
no português europeu: contributo em: 27 de jun. 2019.
psicolinguístico para o estudo da linguagem HILMMELMANN, N. Lexicalization and
e cognição. Lisboa: Fundação Calouste grammaticalization: oppositive or
Gulbenkian, 2000. orthogonal? In: BISANG, W. et al. (eds.).
BOOIJ, G. Construction morphology. Oxford: What makes grammaticalization? Berlin:
Oxford University Press, 2010. Mouton de Gruyter, 2004. p. 21-42.
______. Morphology in construction HILPERT, M. Construction grammar and
grammar. In: HOFFMANN, T.; G. TROUSDALE its application to English. Edinburgh:
(eds.). The Oxford handbook of Edinburgh University Press, 2014.
construction grammar. Oxford: Oxford
HOPPER, P. On some principles of
University Press, 2013. p. 255-273.
grammaticization. In: TRAUGOTT, E.; HEINE,
BYBEE, J. Language change. Cambridge: B. (eds). Approaches to grammaticalization.
Cambridge University Press, 2015. Vol I. Focus on theoretical and
BYBEE, J. Language, usage and cognition. methodological issues, Amsterdam: John
New York: Cambridge University Press, 2010. Benjamins, 1991, p. 17-35.
CROFT, W. Radical construction grammar: MARCUSCHI, L. A. Produção textual: análise
syntactic theory in typological perspective. de gênero e compreensão. São Paulo:
Oxford: Oxford University Press, 2001. Parábola, 2008.
CROFT, W.; CRUSE, A. Cognitive linguistics. MARTELOTTA, M. Funcionalismo e
Cambridge: Cambridge University Press, 2004. metodologia quantitativa. In: OLIVEIRA, M.
R; ROSÁRIO, I. (org.). Pesquisa em linguística
DIEWALD, G.; SMIRNOVA, E. Paradigmatic funcional: convergências e divergências.
integration: the fourth stage in an
Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial,
expanded grammaticalization scenario. In:
2009. p. 1-20.
DAVIDSE, K. et al (eds). Grammaticalization
and language change. New reflections,. OLIVEIRA, M. R. Padrões construcionais for-
Amsterdam: John Benjamins, 111-133, 2012. mados por pronomes locativos no português
contemporâneo do Brasil. Linguística (Rio de
FURTADO DA CUNHA, M. A.; BISPO, E.
Janeiro), v. 8, p. 49-61, 2012.
B.; SILVA, J. R. Variação e mudança em
perspectiva construcional. Natal: Editora da OLIVEIRA, M. R.; CEZARIO, M. M. (orgs.).
UFRN, 2018. Funcionalismo linguístico: vertentes e
diálogos. Niterói: EdUFF, 2017.
HEINE, B. On the role of context in
grammaticalization. In: WISCHER, I; DIEWALD, G. OLIVEIRA, M. R; TEIXEIRA, A. C. Construções
(eds.). New reflections on grammaticalization. locativas de base verbal. In: FURTADO DA
Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, CUNHA, M. A. (org.). A gramática da oração:
2002. p. 83-101. diferentes olhares. Rio Grande do Norte:
Editora da UFRN, 2015. p. 167-192.
HEINE, B.; CLAUDI, U.; HÜNNEMEYER,
F. Grammaticalization: a conceptual RISSO, M. S; SILVA, G. M; URBANO, H.
framework. Chicago: The University of Marcadores discursivos: traços definidores.
Chicago Press, 1991. In: KOCH, I. V. (org.). Gramática do português
HEINE, B.; KALTENBÖCK, G.; KUTEVA, T. On falado. 2 ed. São Paulo: Unicamp, 2002. v.
the rise of discourse markers. Researchgate VI, p. 21-57.
June, 2019. Disponível em: https://www. ROCHA, R. A. O esquema LocVconect: mudanças
researchgate.net/publication/333783353_ construcionais e construcionalização. 2016.
Cristian Matias do Nascimento Corrêa / Mariangela Rios de Oliveira   —  65

Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) Instituto de Letras, Universidade Federal


– Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.
Fluminense, Niterói, 2016. TRAUGOTT, E. Grammaticalization, construc-
ROSA, F. S. L. A mesoconstrução marcadora tions and the incremental development
discursiva refreador-argumentativa: uma of language: Suggestions from the deve-
análise cognitivo-funcional. 2019. 216 fls. lopment of degree modifiers in English. In
Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) Regine Eckardt, Gerhard Jäger, and Tonjes
–Instituto de Letras, Universidade Federal Veenstra, eds., Variation, Selection, Develo-
pment--Probing the Evolutionary Model of
Fluminense, Niterói, 2019.
Language Change. Berlin/New York: Mouton
ROSÁRIO, I. C.; OLIVEIRA, M. R. Funcionalismo de Gruyter, 2008. p. 219-250.
e abordagem construcional da gramática. TRAUGOTT, E; DASHER, R. Regularity in
Alfa, n. 60, v. 2, p. 233-259, 2016. semantic change. Cambridge: Cambridge
TEIXEIRA, A. C. M. A construção verbal University Press, 2005.
marcadora discursiva VLocMD: uma análise TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construc-
funcional centrada no uso. 297fls. Tese tionalization and constructional changes.
(Doutorado em Estudos de Linguagem) – Oxford: Oxford University Press, 2013.
4
“Olha Aqui” no
Português Brasileiro:
uma Abordagem Funcionalista
Luciana Andrade de Souza (UERJ/FFP FAPERJ, Mestranda)

– INTRODUÇÃO –
As cenas comunicativas do cotidiano geram constantes modificações na
língua, fazendo com que seja vista como em mudança contínua. Segun-
do Hopper (1991) “a gramática de uma língua é sempre emergente, ou
seja, estão sempre surgindo novas funções/valores/usos para formas já
existentes [...]”.

Nosso trabalho dedica-se a estudar uma dessas inovações, o resulta-


do da construcionalização de que resulta o esquema microconstrucional
“olha aqui” no português brasileiro contemporâneo. Verificamos nesse
esquema que olha, afastando-se da sua função verbal de orientador do
olhar, e aqui, distanciando-se da função de advérbio de indicador de
lugar, estão altamente vinculados e formam, segundo Teixeira (2015),
uma microconstrução que integra a classe dos marcadores discursivos
do português.

As subpartes da microconstrução se afastam de suas funções iniciais


motivadas por pressões do uso. Ao interagirem oralmente, os falantes

— 67 —
68   —  Coleção Pesquisadores

formam novos pareamentos das construções conforme suas necessida-


des comunicativas. Tal microconstrução pertence à classe de marcado-
res discursivos (MD), categoria diretamente relacionada a questões con-
textuais, motivo pelo qual tomamos como base a tipologia contextual,
nos termos de Diewald (2002; 2006).

Para o nosso estudo sincrônico, levantamos amostras de textos


do corpus NURC/ RJ – Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de
Janeiro,1 que apresenta em seu banco de dados três tipos de texto –
elocução formal, diálogos entre informante e documentador, e diálogos
entre dois informantes.

Este artigo está dividido em quatro seções. Na primeira seção, deno-


minada Funcionalismo e abordagem construcional da gramática, apre-
sentamos os princípios básicos desse aparato teórico e trazemos a defi-
nição de construção, salientando seus conceitos e partes constituintes.
Mudanças construcionais é a segunda seção deste trabalho, em que
discutimos os processos de construcionalização e mudança linguísti-
ca. Relacionamos tais processos de mudança aos mecanismos clássicos
de gramaticalização e lexicalização, associação que aparece por meio
da construcionalização lexical e construcionalização gramatical. Ainda
nessa seção, apresentamos os passos da mudança linguística segun-
do Traugott e Trousdale (2013). A terceira seção, Estudo da construção
“olha aqui”, dedica-se à análise e descrição interpretativa dos usos que
os falantes fazem ao instanciarem a construção “olha aqui”, segundo os
postulados da tipologia contextual de Diewald (2002; 2006) e o conceito
de gradiência apresentado por Rosário e Lopes (2019).

Este artigo analisa a construção “olha aqui”, sendo um exemplar


do esquema MD[olhaLoc]MD, um nível parcial do esquema geral [VLoc]MD.
Na quarta seção, trazemos um estudo a respeito dos marcadores
discursivos, descrevendo seus traços e detectando quais deles estão
presentes em nossos dados. Ao fim dessa etapa, apresentamos nossas
considerações finais.

1
Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj.
Luciana Andrade de Souza   —  69

1. FUNCIONALISMO E ABORDAGEM
CONSTRUCIONAL DA GRAMÁTICA
De acordo com Bybee (2010), em visão funcional da gramática, as lín-
guas naturais são aprendidas, isto é, elas se formam baseadas em con-
tato, pressões gerais cognitivas, pragmáticas e de processamento. Há
forte relação entre a estrutura da língua e o uso que os falantes fazem
dela na cena comunicativa real; assim, a organização gramatical é for-
jada pelo uso da língua. A partir disso, gramática define-se como o
conhecimento do sistema linguístico, como representação cognitiva da
experiência com a língua. De acordo com a linguística funcional centrada
no uso (LFCU), a gramática da língua é o resultado da cristalização ou
regularização de estratégias discursivas rotineiras, que surgem de pres-
sões cognitivas e de uso.

A gramática de construções, segundo Goldberg (2006) e Langacker


(2008), parte da premissa de que a língua é constituída de pareamentos
forma-significado, as chamadas construções, e tais pareamentos estão
organizados em rede. Goldberg (2006) afirma que as construções são pa-
reamentos adquiridos/aprendidos/armazenados em concordância com
sua função semântica, pragmática ou discursiva. Integram esse grupo
de construções os morfemas, palavras, expressões idiomáticas, padrões
parcialmente preenchidos e padrões não especificados ou esquemáti-
cos. Na visão abrangente de Croft (2001), toda estrutura componente da
gramática é uma construção. Para esse autor, construções são unidades
simbólicas geradas pelo elo de correspondência entre forma e sentido
(convencional). A forma compreende propriedades sintáticas, morfoló-
gicas e fonológicas; já o sentido une as propriedades semânticas, prag-
máticas e discursivo-funcionais.

A seguir, apresentamos, mais detalhadamente, o conceito de construção,


tendo em vista a ênfase das partes constitutivas e de suas especificidades.

1.1 Conceito de construção


A construção é definida como o pareamento convencional de forma e
função entre os elementos da língua, além de ser a unidade básica da
70   —  Coleção Pesquisadores

gramática. Tais conceitos são partilhados por linguistas como Goldberg


(1995; 2006), Traugott e Trousdale (2013), entre outros.

Em caracterização da construção, Goldberg (1995) e Traugott e Trou-


sdale (2013) apresentam três especificidades: esquematicidade, compo-
sicionalidade e produtividade. Essas especificidades se definem por sua
gradiência – por exemplo, construções menos ou mais esquemáticas,
menos ou mais composicionais, menos ou mais produtivas.

Traugott e Trousdale (2013) apontam que a esquematicidade remete


à questão de a construção servir como modelo abstrato que capta a
totalidade dos padrões de uso. As construções podem ser não espe-
cificadas, parcialmente especificadas ou totalmente especificadas. De
acordo com os autores, esquemas normalmente são discutidos em ter-
mos de espaços (slots) e como estruturas simbólicas são agrupadas
dentro deles. Além disso, apontam que as construções podem ser for-
madas somente por slots esquemáticos abstratos – por exemplo, VLoc –
ou parcialmente esquemática – por exemplo, [olha Loc]MD, instanciada
por “olha aqui”.

Ainda oferecendo detalhes da esquematicidade, os referidos autores


explicam que quanto mais esquemática for uma construção, mais alto é
o seu posto na hierarquia de inter-relação com as demais construções
de nível inferior, e mais abstrata ela será. Nessa linha, Cunha, Silva e Bis-
po (2016) afirmam que as construções associadas à outra de alto nível
esquemático constituem instanciações (type), por sua vez instanciadas
por outras de nível mais inferior ainda. Estas últimas são realizadas por
construtos (tokens), ou seja, manifestações efetivas do uso da língua.

Ainda segundo Traugott e Trousdale (2013), a produtividade está liga-


da ao grau com que uma construção mais esquemática sanciona outras
menos esquemáticas – por exemplo, subesquemas ou microconstruções
–, e assim se relaciona com a extensibilidade de uma construção. A
partir disso, Cunha, Silva e Bispo (2016) atestam que frequência type
tem a ver com o conceito de produtividade, já que se refere ao grada-
tivo aumento de categorias que se agregam à rede de dada construção
Luciana Andrade de Souza   —  71

matriz, sendo configuradas novas relações semânticas e sintáticas não


previstas na relação prototípica forma-função dessa construção.

A composicionalidade é caracterizada pela transparência de ligação


entre forma e sentido. Segundo Traugott e Trousdale (2013), na abor-
dagem construcional, a composicionalidade é analisada em termos de
compatibilidade e incompatibilidade entre os aspectos da forma e da
função. Cunha, Silva e Bispo (2016) acrescentam que o grau de compo-
sicionalidade de uma construção se define de acordo com o significado
de suas partes, representado na codificação formal, e fornece sugestões
para o significado do todo.

Na sequência, caracterizamos os processos de mudança linguística


por que passam as construções ao serem usadas pelos falantes em di-
ferentes situações comunicativas.

2. MUDANÇAS CONSTRUCIONAIS
Segundo Oliveira e Rosário (2016), a abordagem construcional da gra-
mática é uma teoria do uso. Desse modo, os processos de mudança lin-
guística geralmente surgem a partir da interação dos falantes, que ne-
gociam novos significados. De acordo com Traugott e Trousdale (2013),
nessa abordagem, a língua pode ser considerada uma rede de pares de
forma e significado. É característico dessa rede apresentar diferentes
graus de instabilidade que levam ao processo de mudança linguística.
Considerando esse processo, destacam-se a construcionalização e a
mudança construcional.

A construcionalização necessariamente gera um novo pareamento


de forma-conteúdo, ou seja, uma nova construção – trata-se da criação
de um pareamento de forma nova com significado novo. Esse processo
resulta de uma sucessão de micropassos, apontando o caráter gradual
que caracteriza o processo de mudança (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013).
Desse modo, a mudança está relacionada às neoanálises no âmbito
pragmático, passando pelo âmbito semântico e pelo formal.
72   —  Coleção Pesquisadores

Segundo Oliveira e Rosário (2016) a construcionalização inicia-se por


meio da negociação de inferências sugeridas que, com o passar do tem-
po, se convencionalizam no nível do esquema. Esse processo de mu-
dança no nível pragmático possibilita que a gramática varie em outros
níveis, por exemplo, o fonológico e o morfossintático.

A construcionalização atua no nível da gramática e do léxico. A cons-


trucionalização gramatical consiste no desenvolvimento de uma série
de mudanças em micropassos no par forma e significado, de caráter
mais procedural, como no caso da microconstrução em estudo. Já a
construcionalização lexical associa-se ao desenvolvimento de novos sig-
nos de forma e significado – o significado liga-se a um sentido mais
concreto, a forma está relacionada às classes de nome verbo e adjetivo.

A mudança construcional se refere a alterações que afetam os traços


ou características de construções já existentes, podendo ocorrer no nível
da forma ou do significado (OLIVEIRA; ROSÁRIO, 2016). Essas mudanças
acontecem a partir do uso linguístico e podem levar ao surgimento de
novas construções ou não.

Mudanças construcionais podem ocorrer antes ou depois do proces-


so de construcionalização. Mudanças construcionais pré-construcionali-
zação normalmente relacionam-se a expansões semântico-pragmáticas
e a pequenas mudanças distribucionais. Por sua vez, mudanças cons-
trucionais pós-construcionalização envolvem expansão colocacional e
eventualmente reduções fonológicas e morfológicas.

Traugott e Trousdale (2013, p. 91-92) asseveram que a mudança lin-


guística costuma seguir os seguintes passos:
I – Inovação
• O ouvinte interpreta o construto e o analisa de uma maneira
diferente daquela que o falante expressou.
• O ouvinte reutiliza o construto com o novo sentido.

II – Convencionalização
• Outro ouvinte passa a utilizar o construto com o novo sentido
em nichos específicos.
Luciana Andrade de Souza   —  73

III – Construcionalização
• Quando a neoanálise morfossintática e semântica conven-
cionaliza-se na população de falantes, cria-se uma nova
microconstrução.

IV – Pós-construcionalização
• A nova microconstrução pode ser expandida.

2.1 Os micropassos da mudança linguística


Os micropassos da mudança linguística são marcados por tipos de
contexto. A análise desses contextos possibilita a identificação dos mi-
cropassos da mudança, bem como das motivações e mecanismos en-
volvidos nele. Assim, apoiados na proposta de Diewald (2002; 2006),
descrevemos, no quadro 1, cada um dos quatro contextos.
Quadro 1 – Contextos envolvidos no processo de mudança linguística
Uso literal, conforme está descrito nos dicionários e gramáticas
CONTEXTO-FONTE tradicionais.

CONTEXTO ATÍPICO Uso favorecido por polissemia e implicatura pragmática.

O contexto-fonte se perde, nova distribuição morfossintática, opacidade


CONTEXTO CRÍTICO estrutural, opacidade semântico-pragmática.

Favorece uma leitura em detrimento de outra, significado de origem


não está mais implicado/associado, o significado-alvo está aberto a
CONTEXTO ISOLADO uma maior manipulação: livre de restrições contextuais que lhe deram
origem. Tem-se um novo uso reconfigurado em um novo pareamento.

A seção seguinte apresenta as etapas da mudança linguística que


culminaram na construção MD [olhaLoc]MD.

3. ESTUDO DA CONSTRUÇÃO “OLHA AQUI”


Nesta sessão, tratamos dos estudos e métodos utilizados para analisar
a construção “olha aqui”. Nosso trabalho é prioritariamente qualitativo,
já que nos dedicamos ao levantamento dos dados, análise e interpreta-
ção, mas também apresentamos o quantitativo como forma de atestar a
frequência com que “olha aqui” exerce a função de marcador discursivo.
74   —  Coleção Pesquisadores

Com o objetivo de analisar interpretativamente nossos dados, con-


tamos com os postulados contextuais de Diewald (2002; 2006) e o fenô-
meno de gradiência tratado por Rosário e Lopes (2019). Para o estudo
da construção, realizamos uma coleta exaustiva no banco de dados
eletrônico: Projeto NURC/RJ (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio
de Janeiro). No corpus, levantamos vinte tokens de diferentes contextos
– fonte, atípico, crítico e isolado.

A presente seção está dividida em duas subseções. Fizemos essa


divisão para que nossa análise trate detalhadamente de cada um dos
estudos já mencionados.

3.1 Tipologia contextual


Nesta seção, com base na tipologia contextual assumida por Diewald
(2002; 2006), apresentamos uma análise de “olha aqui”, segundo o tipo
de contexto no qual está inserido e suas especificidades.
(1) (...) O rato, a gente procurava o pinto, o rato tinha levado. Aí eu chorava,
chorava, meu pai, na outra semana, trazia mais pintinho. Ele trazia assim dois,
três, mas morre com muita facilidade. Botava numa caixinha com uma lâmpa-
da dentro pra dar aquele calor, mas não tinha sorte não. Já tivemos papagaio,
papagaio falava, cantava um pouquinho e um dos pintos foi, foi morto, foi
assassinado pelo papagaio. (risos) A minha irmã chegou perto do, do papagaio
e disse assim: “olha aqui” louro, o pintinho. Quando ela disse isso, o papagaio
pum e no pescoço. Menina, pendurou a cabeça do pinto. (risos) Chorávamos
eu e a minha irmã (DID – inquérito 120, sexo feminino, 29 anos de idade).

No exemplo (1), o construto ilustra o contexto-fonte. Olha possui ob-


jeto direto, o pintinho, e aqui aponta que esse objeto está próximo do
falante. Desse modo, “olha aqui” configura um arranjo verbal seguido
de pronome locativo, e cada uma de suas subpartes preserva sua inte-
gridade semântico-sintática, indicando alta composicionalidade e baixa
esquematicidade do arranjo.
(2) (...) Porque existia a, o, a certidão, a, a inscrição provisória na Ordem,
em que você com a certidão de colação de grau você... É válida. Então você
apresenta. Então arranja uma provisória por um ano. Justamente o tempo em
que o diploma é registrado no ministério ou na reitoria... Então você apresenta
o diploma na Ordem, porque a Ordem então faz a transformação da inscrição.
Luciana Andrade de Souza   —  75

Ou então você pode fazer a inscrição de imediato, já de posse do diploma. E


isso aconteceu mil vezes já na Ordem. O sindicato então eles botavam, chega-
vam, botavam banca conosco: poxa, mas vocês, são do sindicato, “olha aqui”.
Não somos do sindicato. Por esta razão eu não quis me filiar no sindicato.
Talvez porque, talvez mesmo porque eu já tinha o, o Estado, talvez fosse por
isso (DID – inquérito 284, sexo feminino, 46 anos).

Considerando o significado fonte das subpartes, olha – fitar os olhos


em algo ou alguém – e aqui – local próximo de quem fala –, verifica-se
que o objeto direto e o locativo devem pertencer ao âmbito físico. No
exemplo (2), observamos que “olha aqui” possui objeto direto de base
abstrata, relativo à falsa sindicalização da falante. Assim, podemos afir-
mar que “olha aqui” se insere no contexto atípico e efetiva a etapa ini-
cial da mudança que vai derivar na construcionalização MD [olhaLoc]MD.
(3) D: “Olha aqui” outra coisa: o senhor falou do circo Sarraceni. O senhor por
acaso viu o, o circo de Moscou na época que ele esteve aqui?
L: O quê?
D: Circo de Moscou. Foi um circo russo que veio.
L: Ah, eu não me lembro de ter visto não (sup.)
D: (sup.) Não viu não, né?
L: Não vi não.
D: Tinha uns ursos e tinha um jogo de, de futebol entre animais. (DID – inqué-
rito 124, sexo masculino, 69 anos).

No exemplo (3), “olha aqui” avança em sua trajetória de mudança lin-


guística. Olha já não tem mais objeto direto, mas um elemento abstrato
que o completa, em sequência interrogativa. Já aqui tem localização
textual, reforçando a atenção que deve ser dada ao que será dito pos-
teriormente. Assim, detectamos que o construto exemplifica o contexto
crítico, apresentando baixa composicionalidade e alta esquematicidade,
visto que a noção de complemento e localização só é compreendida ao
considerarmos o agrupamento duas subpartes da construção.
(4) D: (sup.) Porque inclusive dá pra botar no braço, né? (sup.
L: (sup.) Hum, hum. Não tomei conhecimento ainda disso (sup.)
D: (sup.) Tem uns de cabeceira (inint.) já viu?
L: Não. “Olha aqui”, eu não reparei não. Eu, eu infe... infelizmente eu vivo
pra trabalho, sabe, do trabalho para o trabalho. E eu saio do consultório, lá
do INPS, venho pra aqui, saio, a única relojoaria que eu vejo é essa aqui da
entrada (DID – inquérito 234, sexo masculino).
76   —  Coleção Pesquisadores

No exemplo (4), o construto configura-se como contexto isolado. Des-


se modo, temos a consolidação do processo de mudança. De acordo
com Diewald (2002; 2006), nessa fase, o novo significado gramatical é
isolado como um significado diferente do significado anterior, mais le-
xical, isto é, são contextos linguísticos específicos que favorecem uma
leitura com a exclusão da outra. “Olha aqui” está inserido no trecho que
marca o encerramento da participação de (L) no diálogo. O construto
funciona como chamamento de atenção do ouvinte (D) para o fato de
(L) não saber muito a respeito de relógios digitais. Essa solicitação se
evidencia tanto por meio da fala de (L) e do caráter imperativo que per-
siste na forma verbal olha como pelo traço de pontualidade articulado
por aqui, usado como repreensão e negatividade.

A tabela 1 apresenta a distribuição dos tokens de acordo com o con-


texto a que pertencem, a partir dos vinte dados analisados.
Tabela 1 – Quantitativo de tokens por contexto
CONTEXTOS “OLHA AQUI”
Fonte 2
Atípico 1
Crítico 9
Isolado 8
Total 20

Considerando os resultados expostos pela tabela 1, observamos


maior produtividade dos contextos crítico e isolado. Esses são usos alta-
mente vinculados. Neles os traços das categorias-fonte de suas subpar-
tes se apagam, favorecendo a formação de um todo sintático-semântico
que atua na articulação e na conexão de porções textuais.

3.2 Gradiência
Segundo Rosário e Lopes (2019), a gradiência sincrônica é atestada por
meio da negociação de sentidos operada entre falantes e ouvintes, na
interface entre formas e significados numa dada sincronia. Os autores
afirmam também que a gradiência está interconectada com a mudança
linguística gradual.
Luciana Andrade de Souza   —  77

Por meio do exemplário já apresentado, verificamos o fenômeno da


gradiência, posto que a expressão “olha aqui” transita pelos contextos
com diferentes sentidos e níveis de integração semântico-sintática. Es-
ses sentidos são usados contextualmente pelos falantes e aceitos por
seus ouvintes, que relacionam os distintos usos da expressão com as
circunstâncias comunicativas para compreender o que está sendo dito.

Observamos também a interconexão entre gradiência e mudança lin-


guística gradual, visto que os contextos de Diewald (2002; 2006), na
sequência em que foram apresentados anteriormente, mostram uma
trajetória de mudança linguística. A partir das propriedades de cada um
dos contextos, observamos as etapas da mudança de “olha aqui” em
termos de sua gradiência, até atingir a etapa isolada.

Na próxima sessão tratamos da classe paradigmática em que se in-


clui “olha aqui” em contexto isolado, os marcadores discursivos.

4. OS MARCADORES DISCURSIVOS
O marcador discursivo é elemento linguístico que atua no plano pro-
cedural da gramática, isto é, constituinte não referencial que articula
relações entre componentes, partes ou itens do discurso. Segundo Tei-
xeira (2015), os marcadores evidenciam a presença do falante-autor,
sinalizando ao interlocutor de que maneira ele deve compreender a in-
formação transmitida na sequência. Assim, funcionam como coadjuvan-
tes, na medida em que enfatizam o rumo da interlocução, acentuando
a intersubjetividade.

Os marcadores constituem um vasto grupo diversificado, com ele-


mentos que fazem parte do plano verbal: sons não lexicalizados, pala-
vras, locuções e sintagmas mais desenvolvidos. Pertencem a uma ca-
tegoria pragmática bastante presente no funcionamento da linguagem.
Por meio dos marcadores, a instância da enunciação está presente no
enunciado; simultaneamente, revelam-se aspectos que determinam sua
relação com a estrutura textual-interativa.
78   —  Coleção Pesquisadores

As construções que fazem parte da categoria de marcadores discur-


sivos são resultado de uma trajetória de mudança linguística. De acordo
com a tipologia contextual de Diewald (2002; 2006), o contexto isolado
é a etapa na qual a mudança se consolida. Assim, atestamos que os
marcadores pertencem a esse contexto. Teixeira (2015) elabora parâme-
tros para caracterização contextual, destacando em relação ao contexto
isolado os seguintes aspectos:
• Estruturas do predicado e do marcador são isoladas. A estrutura do
marcador é constituída da combinação verbo e locativo, as pausas
são marcadas por sinal de pontuação, o marcador discursivo pode
atuar em qualquer posição ou ser removido da sentença;
• Convoca a atenção do interlocutor, com fins de advertir, consentir,
constatar, exortar, indagar, interromper, intimidar, prevenir, provo-
car, recomendar, temporizar uma situação/opinião;
• Em interações injuntivas, o falante pode estar em posição superior,
igual ou inferior ao interlocutor. O deslocamento está relacionado à
mudança de ponto de observação, de exame, de mudança/afasta-
mento de posição/intenção anterior; a localização está relacionada
à identificação/ao destaque de argumentos ou subordinada à tem-
porização/interrupção. Sequência injuntiva/argumentativa.
(5) L1: Não, não. Não podemos impedir na, na opção. Mas ele passa a ser um
profissional medíocre se não for... se ele não for... a aptidão dele aquela que
ele está seguindo.
L2: Mas “olha aqui”, mas não esqueça do seguinte...
L1: (inint.)
L2: ... nós vivemos numa democracia e eu espero que ainda vivamos por mui-
tos e muitos anos. Nós não podemos impor a carreira a ninguém. O que nós
podíamos fazer era estudar como se faz, aliás, hoje há analistas especializados
nisso, que analisam as tendências do indivíduo: bom, você tem tendências pra
ser engenheiro, medico...
L1: Exato, exato. Mas... dentro de um campo aberto... Mas dentro daquele
campo que vai escolher. (D2 – inquérito 64, 74, sexo masculino, 63 anos, L1; e
inquérito 75, sexo masculino, 54 anos, L2).

No exemplo (5), o marcador está seguido de pausa e solicita a aten-


ção do interlocutor com objetivo de fazer uma recomendação. Assim, L2
Luciana Andrade de Souza   —  79

orienta sobre respeitarmos as escolhas do próximo e auxiliá-lo quando


necessário. Considerando a interação, L2 e L1 ocupam posições equi-
valentes. Já a localização expressa pelo marcador está relacionada ao
destaque que L2 dá ao seu ponto de vista.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Ao longo deste trabalho, constatamos que os locativos do português
brasileiro contemporâneo apresentam, nos contextos de mudança, sen-
tidos polissêmicos, os quais se tornam dependentes e periféricos em
relação à forma verbal olha.

Os contextos de mudança nos quais há maior ocorrência de “olha


aqui” são o crítico e o isolado; no primeiro, a construção está na emi-
nência da mudança; já no último, a mudança linguística é consolidada.
O contexto isolado apresenta maior pareamento entre locativo e olha,
formando uma unidade de forma e sentido, cristalizada em esquemas
convencionais. Sendo assim, tal unidade passa a integrar outra classe
de palavras no português: a dos marcadores discursivos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BYBEE J. L. A usage-based perspective CUNHA, M. A. F. da.; SILVA, J. R.; BISPO, E. B. O
on language. In: Language, usage, and pareamento forma-função nas construções:
cognition. Cambridge, UK: CUP, 2010. questões teóricas e operacionais. Revista do
CROFT, W. Radical construction grammar: Programa de Pós-Graduação em Linguística
syntactic theory in typological perspective. da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
New York: Oxford University Press, 2001. Rio de Janeiro, volume especial, p. 55-67,
dez. 2016.
DIEWALD, G. A model of relevant types of
contexts in grammaticalization. In: WISCHER, GOLDBERG, A. E. Constructions: a
I.; DIEWALD, G. (ed.). New reflections on construction grammar approach to
grammaticalization. Amsterdam: John argument Structure. Chicago: Chicago
Benjamins, 2002. p. 103-120. University Press, 1995.

______________. Context types _________________. Constructions at work:


in grammaticalization as constructions. the nature of generalization in language. 1.
In: Special Volume 1: Constructions all ed. Oxford: Oxford University Press, 2006.
over – case studies and theoretical HOPPER, P. On some principles of gramma-
implications. 2006. Disponível em: ticalization. In: TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B.
<http:www.constructions-online.de/articles/ (orgs.). Approaches to grammaticalization.
specvol1/>. Amsterdam: John Benjamins, 1991. p. 17-36.
80   —  Coleção Pesquisadores

LANGACKER, R. Cognitive grammar: a basic TEIXEIRA, A. C. M. A construção verbal


introduction. New York: Oxford University marcadora discursiva VLocmd: uma análise
Press, 2008. funcional centrada no uso. 2015. Tese
OLIVEIRA, M. R.; ROSÁRIO, I. C. Funcionalismo (Doutorado em Estudos de Linguagem) –
e abordagem construcional da gramática. Instituto de Letras, Universidade Federal
Alfa, São Paulo, p. 233-259, 2016. Fluminense, Niterói, 2015.
ROSÁRIO, C. I.; LOPES, G. M. TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G.
Construcionalidade: uma proposta de Constructionalization and constructional
aplicação sincrônica. SOLETRAS, n. 37, changes. Oxford: Oxford University
p. 83-102, jan./jun. 2019. Press, 2013.
5
Serializações com
Verbos de Movimento em
Wa’ikhana (Tukano Oriental):
uma Análise Construcionista
Bruna Cezario (Doutoranda do Programa
de Pós-graduação em Linguística da UFRJ)

– INTRODUÇÃO –
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise inicial de cons-
truções de verbos seriais com verbos de movimento na língua Wa’ikha-
na (também conhecida como Piratapuya), da família Tukano Oriental.
A análise se alinha aos princípios teóricos da gramática de constru-
ções baseada no uso (GOLDBERG, 1995; 2006; CROFT, 2001; BYBEE, 2010;
TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013) e procura descrever dois tipos de constru-
ções de verbos seriais que existem na língua Wa’ikhana.

Verbos seriais podem ser definidos como uma sequência de vários


verbos que atuam como um predicado simples (AINKHEVALD, 2018, p. 1).
Os verbos seriais são muito produtivos e bem reconhecidos nas línguas
Tukano Oriental (STENZEL, 2007, p. 275). Nessas línguas, duas (ou mais)
raízes podem formar uma única palavra morfológica e fonológica.

— 81 —
82   —  Coleção Pesquisadores

Abaixo, temos, no exemplo (1), um caso na língua Kotiria, também


Tukano Oriental, e no exemplo (2) um caso na língua Wa’ikhana. Em (1),
em Kotiria, podemos ver que existe uma sequência de raízes, chowe
“vomitar” e ruka “começar”, que recebe um morfema verbal ao final, -a.
Em (2), apresenta-se uma serialização em Wa’ikhana com o verbo
tʉ’o “escutar” e sua “entrar.no.mato”, com o morfema -gʉ, um tipo
de nominalizador.

(1) chówe-ruka+a
vomit-begin-assertive.perfect
“(The big snake) began to vomit (him) up” (STENZEL 2014, p. 231).

(2) sheedo dihia, tʉ’osuʉgʉ1


seedo dihi-ʉ-a tʉ’o-sua-gʉ
devagar descer-vis.pfv.1-emph escutar-entrar.no.mato-
nmlz.1/2sgm
“Desci devagar, escutando e entrando no mato (seguindo o som
do macaco).”

Verbos seriais com verbos de movimento na posição mais à direita são


bastante comuns em Wa’ikhana. Stenzel (2007), em sua descrição de ver-
bos seriais em Wa’ikhana e em Kotiria – língua geneticamente muito pró-
xima –, apresenta dois tipos de construções com verbos de movimento:
i) a construção com verbos de ação + verbos de movimento wa’a “ir” e
a’ta “vir”; e ii) a construção com verbos estativos + wa’a “ir”.

Na análise apresentada neste artigo, trazemos uma descrição mais


detalhada das duas construções analisadas anteriormente por Stenzel
(2007), utilizando pela primeira vez o arcabouço teórico da gramática
das construções. A perspectiva construcionista nos permite chegar a
novas conclusões, que aprimoram a descrição dessa autora.

1
Os dados são apresentados em formato interlinear com linhas representando: i) forma ortográfica;
ii) forma morfológica subjacente com segmentação e algumas informações fonológicas (os morfemas
inerentemente nasais são precedidos por ~); iii) linha de glosas correspondentes a cada morfema da
linha 2; e iv) traduções livres em português. As abreviações das glosas se encontram no final do capítulo.
Bruna Cezario   —  83

1. A GRAMÁTICA DE CONSTRUÇÕES BASEADA NO USO


A abordagem teórica utilizada nesta análise será a da gramática de cons-
truções baseada no uso (GOLDBERG, 1995; 2006; CROFT, 2001; BYBEE,
2010; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013), uma vertente da gramática de cons-
truções que se alinha aos princípios das teorias cognitivo-funcionais.
Para essa visão, a gramática é um fenômeno emergente moldado por
mecanismos psicológicos gerais, como categorização, analogia e entrin-
cheiramento (DIESSEL, 2015, p. 296).

O conhecimento linguístico do falante, de acordo com essa aborda-


gem, consiste em um complexo inventário de construções, que, por sua
vez, são pareamentos de forma e significado. Esse inventário conteria
“milhares de unidades simbólicas (isto é, construções gramaticais) de
todos os tipos: de palavras a padrões entoacionais, passando por es-
quemas morfológicos, estruturas sintáticas semipreenchidas e padrões
sintáticos inteiramente abertos” (PINHEIRO, 2016). Esse inventário bas-
tante heterogêneo foi chamado de constructicon (HOFFMANN; TROUS-
DALE 2013, p. 3), uma fusão entre as palavras inglesas construction
(“construção”) e lexicon (“léxico”). Essa abordagem refuta uma divisão
rígida entre o léxico e a sintaxe.
As construções lexicais e as construções sintáticas se diferem na sua comple-
xidade interna, assim como no grau até o qual sua forma fonológica é espe-
cificada, mas tanto as construções sintáticas quanto as lexicais constituem,
essencialmente, o mesmo tipo de estrutura dos dados representados decla-
rativamente: ambas pareiam a forma e o significado. (GOLDBERG, 1995, p. 7).2

A gramática de construções também propõe que não há uma distin-


ção entre a semântica e a pragmática. Desse modo, tanto os aspectos
semânticos como os pragmáticos fazem parte do polo do significado.
Croft (2001) propõe que as propriedades das construções sejam dividi-
das em seis – três para o polo da forma e três para o polo do significado,
como representado na figura 1.

2
No texto original, “Lexical constructions and syntactic constructions differ in internal complexity, and
also in the extent to which phonological form is specified, but both lexical and syntactic constructions
are essentially the same type of declaratively represented data structure: both pair form with meaning”.
84   —  Coleção Pesquisadores

Figura 1
Esquema de uma construção

Fonte: Adaptado de Croft (2001, p. 18).

A gramática de construções baseada no uso argumenta que cons-


truções emergem como generalizações do uso concreto de expressões
lexicais com formas e significados parecidos (DIESSEL, 2015, p. 304). As
construções, portanto, podem ser desde estruturas fonológicas segmen-
tais, como palavras, até padrões sintáticos, como a estrutura Sujeito
– Verbo – Objeto (SVO) em português. Desse modo, as construções exi-
bem diferentes graus de preenchimento fonológico. Elas podem ser: a)
completamente preenchidas, como palavras (ex.: “casa”) ou expressões
fixas (ex.: “maria vai com as outras” ou “boa tarde”); b) parcialmente
preenchidas, como esquemas morfológicos (ex.: o prefixo des- + radical
verbal) ou padrões sintáticos semifixos (ex.: “dar uma de X”); ou c) po-
dem não ter nenhum preenchimento fonológico, como o próprio padrão
SVO ou padrões entoacionais. Além disso, algumas construções apresen-
tam informações semânticas (como “boa tarde”, o prefixo des- + radical
verbal, SVO) e outras têm especificações pragmáticas (como os padrões
entoacionais) no polo do significado. Apesar dessas diferenças, todas as
construções são unidades simbólicas.

Os modelos da gramática das construções reconhecem que o inven-


tário de construções (constructicon) pode ser representado como uma
rede taxonômica hierárquica formada por nós. Tais modelos consistem
nas construções que compõem o conhecimento linguístico do falante.
Bruna Cezario   —  85

Nesse inventário, as construções estariam conectadas por diferentes


tipos de links. Diessel (2015, p. 303-314) apresenta quatro tipos de
links existentes entre os elementos linguísticos (construções), que ve-
remos a seguir.

(a) Taxonômicos: links entre construções de diferentes níveis de


abstração. Por exemplo, em português temos a construção abs-
trata [V [NPnão-sujeito]]VP, cujo significado seria “ato de fala diretivo/
ordem”. Ligada a essa construção temos outras mais concretas,
como “abra a porta”.
(b) Horizontais: links entre construções com o mesmo nível de abs-
tração. Essa ligação pode ser por similaridade semântica ou fono-
lógica. Por exemplo, a construção bitransitiva do inglês com verbo
de doação [Suj Vdoação O1 O2], como “She gave him a book”, estaria
conectada à outra construção bitransitiva [Suj Vcriação O1 O2], como
“She baked him a cake”.
(c) Sintáticos: links entre construções e categorias sintáticas. Por exem-
plo, a relação entre classes de palavras e relações gramaticais.
(d) Lexicais: links entre construções mais esquemáticas e expressões le-
xicais. Diessel (2015, p. 312) argumenta que construções mais esque-
máticas, muitas vezes, estão relacionadas com palavras específicas.

2. METODOLOGIA
O tipo de análise adotado neste trabalho é a análise qualitativa de um
corpus. Os dados provêm: i) do Acervo Linguístico-Cultural do Povo
Wa’ikhana, disponível no ELAR3; e ii) dados coletados por mim durante
duas viagens de campo feitas à cidade de São Gabriel da Cachoeira,
Amazonas, em 2018.4

3
Endangerous Language Archive
4
As viagens foram receberam apoio financeiro do projeto do Museu do Índio Salvaguarda do pat-
rimônio linguístico e cultural dos povos indígenas transfronteiriços e de recente contato na região
Amazônica, financiado pela FUNAI em parceria com a UNESCO, e da National Science Foundation,
Grant No. BCS-1664348.
86   —  Coleção Pesquisadores

Foram analisadas quatro narrativas orais, retiradas do acervo citado;


alguns dados escritos da gramática pedagógica Wa’ikhana;5 e dados de
elicitação, feitos durante as viagens mencionadas anteriormente. Clas-
sificamos a raiz à esquerda como slot 1 da construção e a raiz à direita
como slot 2. Baseando-nos na análise de Stenzel (2007), que postula
dois tipos de construções de verbos seriais com verbos de movimento
no slot 2, buscamos todas as possíveis combinações de verbos seriais
de duas raízes com verbos de movimento nos dados analisados.

(3) o’õ Aracapá saawa’ali ti

~o’ó Aracapá saá-wá’á-dí tí


deic.prox Aracapá fazer-ir-vis.pfv.2/3 anph
“ Isso aconteceu aqui em Aracapá.”

(4) yʉ’ʉ do’atiawa’adʉ


yʉ́’ʉ́ do’átía-wa’á-dʉ
1SG estar.doente-ir-affec
“Eu fiquei doente.”

No exemplo (3), temos a serialização saawa’ali, na qual há a raiz


verbal saa “fazer” no slot 1, e wa’a “ir” no slot 2. O significado dessa
combinação de raízes é algo similar a “acontecer”. Já no exemplo (4),
temos uma serialização com um verbo estativo do’átí “estar.doente”
(slot 1) e o verbo wa’a “ir” (slot 2), que indica que há uma mudança de
estado – a pessoa ficou doente.

Nos quadros 1 e 2 a seguir apresentamos todas as combinações com


verbos de movimento no slot 2 encontradas nos dados. No quadro 1,
estão todos os casos com verbos de ação no slot 1, como tʉ’o “escu-
tar” e saa “fazer”. No quadro 2 estão os casos com verbos estativos e
de processo, como do’átí “estar.doente” e yalia “estar.cheio”.

5
A Gramática Pedagógica Wa’ikhana ainda está em desenvolvimento.
Bruna Cezario   —  87

Quadro 1 – Verbos de ação (slot 1) + verbos de movimento (slot 2)


SLOT 1 SLOT 2
saa “fazer” wa’a “ir”
pihi “convidar” wa’a “ir”
a’ta “vir” a’ta “vir”
mini “alagar” dihi “descer”
dihi “descer” wa’a “ir”
koã “abandonar” ku’ña “deixar.o.lugar”
wa’a “ir” wa’a “ir”
pi’a “sair.do.mato” wie “chegar”
toho “chegar” ehsa “chegar”
tʉ’o “ouvir” sua “entrar.no.mato”
sini “comprimentar” tʉ’ʉ “voltar”
Fonte: Elaborada pela autora.

Quadro 2 – Verbos estativos e de processo (slot 1) + verbo wa’a “ir”


SLOT 1 SLOT 2
ñaia “estar.seco” wa’a “ir”
pʉ’a “estar.magro” wa’a “ir”
yalia “morrer” wa’a “ir”
a’ba “apodrecer” wa’a “ir”
yʉ’dʉa “ser.enorme” wa’a “ir”
Fonte: Elaborada pela autora.

É importante ressaltar que os verbos de movimento também podem


ser usados fora da construção de verbos seriais, assim como fazer parte
de outras construções. No exemplo (5), podemos ver um caso do verbo
wa’a sendo usado isoladamente, com o significado básico de “ir”, e no
exemplo (6) há uma construção com o verbo wa’a como verbo auxiliar
junto de um verbo nominalizado, cujo significado é indicar que o sujeito
foi realizar a ação do verbo nominalizado.

(5) ne yʉ’ʉ ne tikoro wa’asi misapʉre


ne6 yʉ’ʉ́ ne tí-kó-dó wa’á-sí misa-pʉ-de
nem 1SG nem anph-fem-sg ir-neg.irr missa-loc-obj
“Nem eu nem ela vamos à missa.”

6
Acredita-se que a partícula ne seja um empréstimo do “nem” do português. Desse modo, não coloca-
mos a nasalidade morfêmica na forma subjacente (ver seção 5.1.4). O mesmo ocorre com misa “missa’.
88   —  Coleção Pesquisadores

(6) ko’tei wa’ʉ


ko’te-gʉ wa’a-ʉ
esperar-1/2sgm(nmlz) ir-vis.pfv.1
“Fui esperar (caçar) [a cutia].”

A partir dessa seleção feita nos quadros apresentados, buscamos


verificar os diferentes significados que cada combinação de verbos teria
e quais as possíveis generalizações. Como mencionado anteriormente,
partimos do trabalho de Stenzel (2007), que afirma que há dois tipos de
construções com verbos de movimento: i) uma construção que envolve-
ria verbos ativos no slot 1, cujo significado seria uma ação feita junta-
mente com um movimento, como no exemplo (1); e ii) uma construção
que envolveria verbos estativos com o verbo wa’a, como no exemplo
(4), que indicaria mudança de estado.

3. ANÁLISE
3.1 A construção de verbos seriais com verbo ativo + verbo de movimento
Stenzel (2007), em sua análise de verbos seriais em Wa’ikhana e em
Kotiria, afirma que no slot 2 podem ocorrer os verbos wa’a “ir” e a’ta
“vir”, acompanhados de um verbo de ação no slot 1. Nesses casos, a
serialização indica que a ação foi feita por meio de um movimento físico
para longe ou em direção do falante (ou outro ponto de referência). Por
exemplo, em (7), a construção com a raiz núcleo ~baha, que significa
“ir para cima da colina”, seguida do verbo a’ta “vir” pode ser lida como
“venha até em cima (para minha casa)”. Ou seja, a ação é feita com um
movimento acoplado, em direção ao falante.

(7)
~baha-a’ta-ya ~bʉ’ʉ-~gʉ’ʉ
subir.morro-vir-imper 2sg-adic
“Venha até em cima (para minha casa) também.”
(STENZEL, 2007, p. 279)

Observamos em nossa análise que outros verbos além de wa’a “ir” e


a’ta “vir”, como Stenzel (2007) havia descrito, podem ocorrer no slot 2
Bruna Cezario   —  89

na construção de movimento acoplado. O tipo de movimento que ocorre


no slot 2 vai determinar a semântica do movimento simultâneo.

Por exemplo, em (8) o verbo de movimento que está no slot 2 é o


verbo sua “entrar.no.mato”, que indica que a ação do verbo do slot
1, tʉ’ó “escutar”, foi feita ao mesmo tempo que o sujeito entrava no
mato. Nesse exemplo, o falante estava contando sobre um dia de caça
– portanto, ele entrou no mato escutando o som do macaco que estava
caçando. No exemplo (9), temos no slot 2 outro verbo de movimento
esa “chegar”.

(8) seedo dihia, tʉ’osuʉgʉ


saá-yéé-dó dihí-í-á tʉ’ó-súá-gʉ́
devagar descer-vis.pfv.1-enph escutar-entrar.no.mato-1/2sgm
“Desci devagar, escutando e entrando no mato (seguindo o som
do macaco).”

(9) yʉ’ʉ “buu pi’awiedagʉle, saata tohoasakãboa ihiedale”


yʉ’ʉ buú pi’á-wí’í-éda-~gʉ-de saá-tá
1SG cotia sair-chegar-neg-swrf-obj então-emph
tohó-esá~ka-bo-aga ihí-éda-de
voltar-chegar-dub-pres cop-neg-obj
“Eu (pensamento): ‘Se a cutia não aparecer, eu posso voltar sem nada’.”
7

Desse modo, podemos postular a existência de uma construção mais


abstrata [Vação-Vmov-morf.verbal], na qual diferentes tipos de verbos de mo-
vimento podem ocorrer no segundo slot. Seu significado seria indicar que
a ação do verbo do slot 1 é feita com o movimento do verbo do slot 2.

Percebemos na análise que o verbo mais frequente no slot 2 é o


verbo wa’a “ir”. De acordo com a gramática de construções baseada
no uso, isso poderia indicar que no constructicon do falante já existi-
ria uma construção menos abstrata [Vação-wa’a-morf.verbal]. Encontramos
também casos como (10) e (11), nos quais o mesmo verbo ocorre no
slot 1 e slot 2, que enfatizam o movimento existente no evento. Esses

7
É comum, em narrativas, o uso do pronome antes do discurso direto para introduzir um pensamento.
90   —  Coleção Pesquisadores

casos só foram encontrados com wa’a “ir” e a’ta “vir”, que também é
um verbo de movimento bastante frequente.

(10) wa’awa’adi ihidinaha


wa’á-wá’á-dí ihí-di-~daha
ir-ir-nmlz COP-vis.pfv.2/3-emph
“(Parece que) ele foi embora (ver o igarapé).” (Lit. “Parece que há/
houve a ida longe”.)

(11) tide si’ni ti pitigʉ̃, i’ña, a’tataʉnaha


ti-de ~si’di ti-piti-~gʉ ~i’ya a’ta-a’ta-ʉ-~daha
anph-obj beber-anph acabar-swrf ver/olhar vir-vir-vis.pfv.1-emph
“Quando vi que a bebida acabou, voltei.”

3.2 A construção com verbos estativos + wa’a “ir”


A outra construção com verbo de movimento apresentada por Stenzel
(2007) é a construção cujo significado é mudança de estado. Nesses
casos, de acordo com a autora, a raiz à esquerda é um verbo estativo e
a raiz à direita é o verbo wa’a “ir”. Ao contrário da construção de movi-
mento, essa construção tem apenas um slot em aberto que é o da raiz
à esquerda. O verbo wa’a “ir” é parte da forma da construção. Portanto,
teríamos a construção [Vestativo-wa’a- morf.verbal] cujo significado seria
mudança de estado, como podemos ver nos exemplos (12) e (13).

(12) ñaiawa’ari narañagʉ


~yaia-wa’á-di ~daráya-gʉ
estar.seco-ir-vis.pfv.2/3 laranja-clf:árv.npl
“O pé de laranja secou.”

(13) tikido pʉ̃’awa’ari ihidi


tí-kí-dó ~pʉ’á-wa’á-di ihi-di
anph-m-3sg estar.magro-ir-nmlz cop-vis.pfv.2/3
“Ele emagreceu.”
Bruna Cezario   —  91

Em nossa análise, também encontramos casos em que no lugar dos


verbos estativos ocorreram verbos ativos que inerentemente significam
algum tipo de mudança de estado, como yali “morrer” e a’ba “apodre-
cer”. Observemos os exemplos (14) e (15):

(14) wʉ’ʉ a’bawa’alitha yʉ’ʉle


wʉ’ʉ a’ba-wa’a-di-ta yʉ’ʉ-de
casa apodrecer-ir-vis.pfv.2/3-emph 1sg-obj
“Apodreceu o caranã8 da minha casa.” [Lit. “(O caranã da) casa apo-
dreceu pra mim”.]

(15) diedo yaliaware


die-do yalia-wa’a-de
cachorro-sg morrer-ir-vis.ipfv.2/3
“O cachorro morreu.”

É possível postular, então, que na construção de verbos seriais de


mudança de estado em Wa’ikhana podem ocorrer não apenas verbos
estativos, mas também verbos que indiquem algum tipo de processo ou
mudança de estado. É importante destacar que os casos com esse tipo
de verbo na construção de mudança de estado são mais restritos do que
os com verbos estativos. Encontramos diversos tipos de verbos estativos
nessa construção, porém apenas dois verbos que indicam processos –
yalia “morrer” e a’ba “apodrecer”.

Desse modo, concluímos que há uma redundância nesses casos,


pois verbos como yali “morrer” e a’ba “apodrecer” já remetem a uma
mudança de estado. Porém, ainda assim, ocorrem em uma construção
com um significado muito similar. Nossa hipótese é de que esses verbos
foram selecionados para essa construção por meio dos processos de
analogia e categorização (BYBEE, 2010). Uma vez que a semântica des-
ses verbos é similar à da construção em si, eles são selecionados para
ocorrer dentro da construção e reforçar seu significado.

8
Tipo de planta utilizada nos telhados de certas construções.
92   —  Coleção Pesquisadores

3.3 Links entre duas construções com verbo wa’a “ir”


A gramática de construções baseada no uso, como visto anteriormente,
propõe a existência de um inventário de construções, no qual os itens
estariam interligados por diferentes links. Na análise, vimos que o ver-
bo wa’a “ir” pode ocorrer tanto na construção de movimento acoplado
como na construção de mudança de estado. No entanto, na construção
de movimento acoplado wa’a “ir”, concorre com outros verbos de movi-
mento, como a’ta “vir”, esa “voltar” etc. Já na construção de mudança
de estado, ele faz parte da forma da construção.

Ainda assim, foi observado que, mesmo na construção de movimen-


to acoplado, o verbo wa’a “ir” é o mais frequente. Desse modo, seguin-
do os princípios dos modelos baseados no uso, podemos afirmar que no
constructicon do falante existe uma construção de movimento acoplado,
na qual wa’a é parte da construção [Vação-wa’a-morf.verb]. O significado
seria de que algum tipo de locomoção por parte do sujeito foi feito, ao
mesmo tempo que se desenvolvia a ação do verbo no slot 1, como po-
demos ver no exemplo (16):

(16) tidole phihiwa’aʉtha


ti-do-de pihi-wa’a-ʉ-ta
anph-sg-obj convidar-ir-1/2sgm-irr
“Irei convidá-lo.”

Assim, podemos postular que as duas construções com o verbo wa’a


“ir” [Vação-wa’a-morf.verbal] e [Vestativo-wa’a-morf.verbal] estariam ligadas
no constructicon por um link horizontal, uma vez que elas têm o mes-
mo grau de abstração. A ligação ocorreria por similaridade da forma – as
duas construções têm um slot em aberto no qual pode ocorrer algum
tipo de verbo e o verbo wa’a “ir” –, apesar de não haver similaridade
semântica aparente.

É possível também postular que essas duas construções estejam


conectadas ao verbo wa’a “ir”, que, como visto, pode ocorrer isolada-
mente ou dentro de uma construção serial. O verbo wa’a “ir”, portanto,
estaria ligado a cada uma das construções seriais supracitadas por meio
Bruna Cezario   —  93

de um link lexical, pois existe uma relação entre cada construção esque-
mática e o item lexical. A figura 2 representa esses links.
Figura 2
Links lexicais entre duas construções esquemáticas
com o verbo wa’a e o próprio item verbal wa’a

Fonte: Elaborada pela autora.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Neste trabalho, foram analisadas duas construções de verbos seriais da
língua Wa’ikhana com verbos de movimento. Uma das construções é
composta por um verbo de ação e um verbo de movimento na segunda
posição, e seu significado é o de indicar que a ação do primeiro verbo
é feita com o movimento do segundo. A outra construção contém o
verbo wa’a “ir” em sua forma, e apenas um slot em aberto, no qual
podem ocorrer tanto verbos estativos como verbos que indiquem ine-
rentemente processos.

Utilizando os princípios da gramática de construções baseada no


uso, pudemos não apenas aprimorar conclusões feitas em trabalhos
anteriores sobre verbos seriais, mas encontrar novas explicações para
os fenômenos encontrados. Como Wa’ikhana é uma língua ainda pouco
descrita e analisada, este trabalho, portanto, tem como objetivo contri-
buir para os estudos desse idioma, bem como para os estudos teóricos
sobre gramática de construções.
94   —  Coleção Pesquisadores

LISTA DE GLOSAS
anph anafórico loc locativo
affec afetado neg negação
clf classificador nmlz nominalizador
cop cópula pfv perfectivo
deic dêitico pl plural
emph ênfase pres (evidencial) presumido
fem feminino prox próximo
indf indefinido sg singular
ins instrumental sgf singular feminino
ipfv imperfectivo swrf switch reference
irr irrealis vis (evidencial) visual

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AIKHENVALD, Y. A. Serial verbs. Oxford: PINHEIRO, D. Um modelo gramatical para a
Oxford University Press, 2018 linguística funcional-cognitiva: da gramática
BYBEE, J. Language, usage and cognition. de construções para a gramática de
Cambridge: Cambridge University Press, 2010. construções baseada no uso. Amsterdam;
Philadelphia: John Benjamins Publishing
CROFT, W. Radical construction grammar: syn- Company, 2016.
tactic theory in typological perspective.
Oxford: Oxford University Press, 2001. STENZEL, K. The semantics of serial verb
constructions in two Eastern Tukanoan
DIESSEL, H. Usage-based construction
languages: Kotiria (Wanano) and Waikhana
grammar. In: DABROWSKA, E.; DIVJAK, D.
(Piratapuyo). In: DEAL, A. R. (ed.).
(eds.). Handbook of cognitive linguistics.
Proceedings of SULA 4: Semantics of Under-
Berlin: Mouton de Gruyter, 2015. p. 295-321.
Represented Languages in the Americas.
GOLDBERG, A. E. Constructions: a University of Massachusetts Occasional
construction grammar approach to Papers in Linguistics, Amherst, v. 35, p.
argument Structure. Chicago: Chicago 275-290, 2007.
University Press, 1995.
TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. G.
GOLDBERG, A. E. Constructions at work: Constructionalization and constructional
the nature of generalization in language. change. Oxford: Oxford University Press,
Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 2013.As subpartes da microconstrução
HOFFMANN, T.; TROUSDALE, G. The Oxford se afastam de suas funções iniciais
handbook of construction grammar. Oxford: motivadas por pressões do uso. Ao
Oxford University Press, 2013. interagirem oralmente, os falantes
6
A presença de complemento
verbal na construção com adjetivo
adverbial: um estudo sobre
variação na rede construcional
Rodrigo Pinto Tiradentes (UFRJ – Mestrando)
Priscilla Mouta Marques (UFRJ)

– INTRODUÇÃO –
O estudo sobre os adjetivos adverbiais é fortemente marcado por deba-
tes e divergências, a começar pela nomenclatura utilizada para designar
esse elemento. Tradicionalmente é intitulado como adjetivo adverbia-
lizado, considerando-se que se trata de um adjetivo que passa a as-
sumir a função tipicamente adverbial de modificar um verbo (CUNHA;
CINTRA, 1985; ROCHA LIMA, 1994); na atualidade, porém, tem sido cha-
mado maiormente ora de adjetivo adverbial, concedendo-lhe maior va-
lor de advérbio, ora de suposto adjetivo adverbializado (LOBATO, 2008),
reconhecendo apenas seu caráter adjetival. E há quem ainda não se
contente com nenhum dos termos (cf. FOLTRAN, 2010).

Evidentemente, esse debate terminológico indica divergências mais


profundas sobre a descrição do fenômeno que concerne a esses adjeti-

— 95 —
96   —  Coleção Pesquisadores

vos, tais como seu escopo de predicação, sua flutuação categorial entre
adjetivo e advérbio e a realização sintática dos argumentos dos verbos
que os acompanham. No entanto, no que diz respeito ao uso e a uma
sintaxe de superfície, as pesquisas caminham para um consenso de
que tais adjetivos tendem – majoritariamente – a ocorrer em sentenças
desprovidas de argumento verbal e a se posicionarem próximos e à
direita do verbo. Autores de diferentes abordagens teóricas (BARBOSA,
2006; LEUNG, 2007; FOLTRAN, 2010; TIRADENTES, 2018; CAMPOS, 2019), a
partir tanto de introspecção como de coleta de dados, têm observado
igualmente que é muito mais comum e natural uma sequência como
“pagar (mais) caro”, exposta em (1), do que outra como “pagar caro
esses cursos”, em (2).
(1) “[...] os taxistas pedem a unificação da bandeira 1 na Região Metropolitana
do Recife. ‘Os municípios são muito próximos um do outro e não tem sentido
o passageiro pagar mais caro’, informou Ferreira.” (19N:Br:Recf)

(2) “[...] quando a gente tem vontade de dar um prolongamento há falta de


doutores – apesar de saber que você vai pagar caro esses cursos isso não é
problema – vamos lá se é para conhecimento – tem que tocar para frente.”
(19Or:Br:LF:SP)

Não sem razão, o interesse dos pesquisadores anteriormente citados


tem recaído sobre a restrição de ausência do complemento verbal, já
que esse fato caracterizaria as sentenças com esse grupo de adjetivos e
corresponderia a um desvio do padrão das cláusulas transitivas da lín-
gua portuguesa, que tendem a ter complemento explícito. Contudo, não
podemos ignorar as ocorrências com presença do complemento, exem-
plificadas em (2), e para bem as descrever precisamos explicar por que
a restrição não se lhes é aplicada. Neste artigo, assumimos a tarefa de
olhar ao revés a realização sintática da construção com adjetivo adverbial,
analisando a presença (inesperada) de complementos verbais junto a
sequências de verbo + adjetivo adverbial.

Baseamo-nos na fundamentação teórica da Linguística Funcional


Centrada no Uso (LFCU), corrente que converge pressupostos do Funcio-
nalismo Norte-americano e da Linguística Cognitiva (KEMMER; BARLOW,
2000; BYBEE, 2010), e utilizamos o aporte da gramática de construções
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  97

(GOLDBERG, 1995; 2006). Nesse âmbito, além de compreender a rea-


lização do complemento verbal, é necessário averiguar as diferenças
semânticas e discursivo-pragmáticas de cada padrão formal, buscando
depreender se as ocorrências com presença de complemento consti-
tuem instanciações de verdadeiras construções da língua ou apenas
exceções contextuais.

Ademais, não desconsideramos a hipótese de haver variação entre


os diferentes padrões formais identificados para a construção com adje-
tivo adverbial. Assim, avaliamos se os resultados obtidos poderiam ser
mais bem descritos a partir da proposta de aloconstruções (CAPPELLE,
2006; PEREK, 2015), no lugar de uma representação mais convencional,
em que o domínio funcional de uma construção não se interpõe sobre
o domínio de outra.

Portanto, visamos com este artigo analisar, à luz da LFCU, os dados


em que adjetivos adverbiais coocorrem com complementos verbais, re-
lacionando-os a fatores contextuais ou reconhecendo-os como constru-
tos de padrões construcionais. Também observamos o grau de distinção/
semelhança entre os padrões e questionamos se um tratamento por
variação seria adequado ou não para o fenômeno em questão.

Após esta introdução, seguimos com uma seção de exposição do


embasamento teórico usado na pesquisa, em que destacamos alguns
pressupostos centrais da LFCU e o conceito de aloconstruções. Depois,
abrimos uma segunda seção, em que apresentamos com maior clareza
a questão do padrão sintático da construção com adjetivo adverbial. Fi-
nalmente, expomos a metodologia na terceira seção e os resultados na
quarta; e encerramos com as considerações finais.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Decorrente do Funcionalismo Norte-americano e das contribuições da
Linguística Cognitiva, a Linguística Funcional Centrada no Uso é uma
teoria preocupada com a íntima relação entre as instâncias de uso e
a estrutura linguística (KEMMER; BARLOW, 2000). Intitula-se baseada/
98   —  Coleção Pesquisadores

centrada no uso na medida em que reconhece no discurso a motivação


e o material responsáveis pelo surgimento de um conhecimento linguís-
tico estruturado na mente, que é constantemente remodelado pelo uso.

De fato, como Hopper (1987) propõe, a gramática emerge do uso,


surge das experiências comunicativas que cada falante vivencia, assim
como está a serviço dessa comunicação. Igualmente, o uso é depen-
dente da gramática, sendo por ela instanciado. Desse modo, a partir de
uma relação simbiótica entre as duas dimensões (uso e estrutura), é
possível afirmar que a gramática é imbuída de características próprias
do discurso, como a flexibilidade, a adaptação constante e a mutabilida-
de. Em outras palavras, ela é concebida como um objeto de cunho não
só cognitivo como também social, comportando informações cotextuais,
contextuais, pragmáticas, extralinguísticas, entre outras.

Essa compreensão de língua corrobora o Princípio da Iconicidade


(GIVÓN, 1990), um dos pressupostos mais importantes do Funcionalismo
Norte-americano. Em suma, propunha-se desde então que a estrutura
da língua reflete a estrutura da experiência e que há uma correlação
natural entre forma e função. Entende-se, pois, que os elementos lin-
guísticos são motivados discursivamente e que a descrição completa de
um fenômeno deve abranger também sua motivação.

A relevância da ligação entre forma e função (ou forma e sentido)


manifesta-se mais vivamente no estado atual da teoria na definição
de unidade linguística, que recebe o nome de construção. Segundo o
aporte da gramática de construções (GOLDBERG, 1995; 2006), tal unidade
é justamente um pareamento entre uma dada forma linguística e uma
dada função (ou um dado sentido). As construções são armazenadas
em um grande inventário (denominado constructicon), que assume a
figura de uma complexa e estruturada rede de associações verticais
(taxonômicas) e horizontais (relacionais) entre as diversas construções.
Essa rede construcional representa a um só tempo léxico e gramática,
abarcando a totalidade do conhecimento linguístico. Logo, o desafio de
uma análise fundamentada na LFCU passa a ser o mapeamento da rede
de construções que abrangem um certo fenômeno, o que implica a
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  99

identificação das características formais e funcionais que particularizam


cada construção. Naturalmente, uma vez que essa rede é baseada no
uso, as instanciações do fenômeno em eventos de uso (os construtos)
são primordiais para a análise, que privilegia a observação de dados
coletados de corpora.

Segundo Croft (2001), o pareamento forma-sentido da construção


pode ser mais detalhado: no polo da forma, segundo o autor, constam
propriedades fonológicas, morfológicas e sintáticas, enquanto no polo
do sentido, propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcio-
nais. Além disso, construções são unidades convencionais, no sentido
de que são compartilhadas por um grupo de falantes (GOLDBERG, 1995;
2006; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013). Isso implica considerar que inova-
ções de um único falante ou usos linguísticos notadamente criativos não
correspondem a construtos de uma nova construção, mas sim a cons-
trutos marginais (menos prototípicos) de uma construção já existente
(e provavelmente muito produtiva).

Diante desse quadro teórico, uma possibilidade, que de fato tem sido
maiormente defendida, é considerar que idealmente todas as estruturas
linguísticas se distinguem umas das outras, cada qual motivada por um
fator específico, cada qual composta por propriedades formais e discur-
sivo-pragmáticas diferentes (GOLDBERG, 1995). Tal visão pode, assim,
justificar a existência de construções muito semelhantes, uma vez que
se há entre duas construções diferença na forma deve haver diferença
também no sentido e/ou na pragmática (Princípio da não-sinonímia); o
contrário também se aplica, havendo por força cognitiva diferença for-
mal entre construções diferentes no sentido e/ou na pragmática (decor-
rência do princípio de poder expressivo maximizado). Goldberg (1995)
postula esses princípios com base na proposta de Haiman (1985) de
uma representação mental isomórfica e motivada.

Em uma rede construcional em que de modo algum há unidades


sinônimas, parece não haver espaço, por consequência, para a variação;
se cada estrutura corresponde a uma determinada motivação, então
não há verdadeira (apenas aparente) variação entre duas construções
100   —  Coleção Pesquisadores

semelhantes, porque cada uma atende a propriedades particulares, ain-


da que minimamente diferentes. Ou melhor, não se assume, de fato, a
variação livre, mas sim algo como uma variação condicionada. Tal afir-
mação é mais bem aclarada por Kemmer e Barlow (2000, p. XVIII, tradu-
ção nossa), no tópico intitulado “The intimate relation between usage,
synchronic variation, and diachronic change”:1
Padrões em dados de uso são, em geral, padrões de variação ao longo de
diferentes dimensões de vários tipos, de formais a sociais. Em um modelo cog-
nitivo baseado no uso, formas linguísticas variantes podem ser compreendidas
como possibilidades alternantes licenciadas pela rede linguística. A seleção
de uma dada variante entrincheirada para ativação é regida por um complexo
conjunto de fatores de motivação.2

Os autores sugerem que a rede construcional já comporta variação


em si mesma na medida em que prevê a possibilidade de escolha entre
duas (ou mais) construções aparentadas, embora motivadas por fatores
diferentes e não sinônimas. Desse modo, é possível conceber que o iso-
morfismo do constructicon é, sob outro ângulo, um estado de variação
condicionada/sistemática; e que os dois postulados (isomorfismo e va-
riação), que a princípio podem parecer contrastantes, são conciliáveis.
Ademais, uma vez que é centrada no uso, a LFCU não poderia negar o
fenômeno da variação. Sendo dinâmica e estando em constante proces-
so de mudança, a língua forçosamente comporta variação.

Bybee (2010), porém, salienta que a sistematicidade da variação não


é imutável, mas flexível. Logo, em um possível processo de mudança,
as abrangências formal e/ou funcional de duas construções podem se
sobrepor. Esse, contudo, seria apenas um momento de instabilidade
enquanto o sistema linguístico completa a mudança e recobra sua esta-
bilidade isomórfica. Nesse sentido, Traugott e Trousdale (2013) preferem
tratar a variação como “competição” de construções, destacando o pro-
cesso diacrônico de mudança.
1
A íntima relação entre uso, variação sincrônica e mudança diacrônica.
2
“Patterns in usage data are in general patterns of variation along different dimensions of various
kinds, from formal to social. In a cognitive usage-based model, variant linguistic forms can be thought
of as alternate possibilities licensed by the linguistic network. The selection of a given entrenched
variant for activation is governed by a complex set of motivating factors.”
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  101

Ainda assim, a questão da variação persiste, porque nem todo fenô-


meno variável caminha para a mudança. Porém, assumir a possibilidade
de que duas construções apresentem a longo prazo as mesmas proprie-
dades semânticas e pragmáticas parece ser uma postura que contradiz
os pilares da LFCU.

Apesar disso, cabe à teoria observar argumentos que validem essa


possibilidade. Bert Cappelle (2006), ao estudar construções verb-parti-
cle na língua inglesa, observa que os dois padrões sintáticos possíveis
(como exemplo, She turned off the TV e She turned the TV off) apre-
sentam o mesmo sentido, mas efeito pragmático distinto; com isso,
certamente os dois correspondem a duas construções diferentes, mas
também podem ser compreendidos como padrões alternantes, porque
para muitos contextos não há divisão rígida de uso (utiliza-se tanto
um quanto outro). Logo, o autor considera que a semelhança semân-
tica deve ser representada na rede construcional, capturando o nível
simbólico em que as duas construções são alternantes. Florent Perek
(2015) também advoga a favor desse nível representacional e apre-
senta evidências experimentais de que os falantes reconhecem os pa-
drões similares como alternantes; portanto, em alguma medida, essa
impressão deve ser reconhecida como parte da realidade psicológica
do falante comum.

Para os dois autores, a conclusão é de que a alternância existe de


fato, mas não invalida a não-sinonímia. Em um determinado nível de
representação, duas construções podem ser plenamente distinguíveis,
mas em outro, mais geral, podem ser compreendidas como uma mesma
categoria; isto é, em determinados contextos e/ou para determinadas
combinações lexicais, apenas uma construção será licenciada, mas, em
outros contextos e/ou para outras combinações lexicais, as diferenças en-
tre duas ou mais construções são anuladas e ambas podem ser ativadas.

As construções alternantes são chamadas de aloconstruções


(allostructions), em clara referência ao conceito de alofone e alomorfe.
Assim como alofones são variantes de um arquifonema, que não é to-
talmente especificado, aloconstruções, segundo Cappelle (2006, p. 18),
102   —  Coleção Pesquisadores

são estruturas variantes de uma construção que é parcialmente espe-


cificada. Cada aloconstrução é uma construção particular, com padrão
formal próprio e propriedades semânticas/funcionais próprias; porém,
compartilha uma abrangência semântica/funcional com as demais alo-
construções alternantes.

Essa abrangência é representada por uma generalização nomeada


como metaconstrução (ou constructeme). Capelle (2006) e Perek (2015)
concebem a metaconstrução como uma “supercategoria”, o que parece
sugerir que tal construto teórico seja um nível esquemático mais abstra-
to que as aloconstruções. Corroboramos, porém, com Vieira e Wiedemer
(2019, p. 97-98), que a natureza da metaconstrução seja menos formal,
correspondendo a algo como uma “arquifunção”, um campo de simila-
ridade funcional entre aloconstruções.

Na figura 1, a metaconstrução é exposta como um retângulo cin-


za, evidenciando uma zona de similaridade entre o polo funcional
das aloconstruções (VIEIRA; WIEDEMER, 2019). As aloconstruções com-
portam pareamentos forma-sentido (ou forma-função) diferentes,
mas são unidades alternantes dentro do espaço da metaconstrução.
Além disso, são todas construções herdeiras de uma construção mais
esquemática – consequentemente menos especificada – que não se
confunde com a metaconstrução. Entre as aloconstruções, uma delas
pode ser a variante prototípica. Esta tem seu link representado como
uma linha contínua, enquanto o link das demais é desenhado como
uma linha tracejada.

O que se observa ao final é que a proposta de aloconstruções per-


mite codificar no arcabouço teórico da LFCU um estado de “variação
livre” sem abandonar o Princípio de não-sinonímia. A um só tempo,
certas construções (as aloconstruções) são distintas (não sinônimas)
e similares (alternantes). A variação permanece condicionada, siste-
mática, mas a sobreposição de propriedades semânticas/funcionais
permite o surgimento de uma variação em que a escolha de ativação
de uma construção não é bem delimitada, mas sim aberta a duas ou
mais possibilidades.
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  103

Figura 1
Representação da metaconstrução e respectivas aloconstruções

Fonte: Vieira e Wiedemer (2019).

No mais, observamos que a variação sistemática é plenamente cap-


turada pela rede construcional; não está em desacordo com a teoria – é,
ao contrário, um de seus postulados centrais. A aparente negação da
variação pela LFCU deve-se somente ao posicionamento teórico que pri-
vilegia a motivação das unidades linguísticas e a isomorfia entre forma
e conteúdo/função.

2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
O debate sobre o papel da variação na rede construcional interessa-nos
para compreender a estrutura argumental da construção com adjeti-
vo adverbial. Muito embora estudos de diferentes correntes teóricas
(que serão mencionados a seguir) observem que os adjetivos adverbiais
tendem a não coocorrer com complementos verbais em uma mesma
sentença, existe a possibilidade de coocorrência, que corresponde a um
número expressivo de dados na coleta de nossa pesquisa. Uma vez que
o complemento apresenta mobilidade de posição em relação ao verbo,
são possíveis, pelo menos, quatro padrões sintáticos para a construção
104   —  Coleção Pesquisadores

com adjetivo adverbial:3 [V + AA], [V + AA + C], [V + C + AA] e [C + V + AA].4


Portanto, precisamos analisar se cada padrão corresponde a uma cons-
trução ou se alguns padrões podem ser considerados exceções contex-
tuais; caso atestemos mais de uma construção, também necessitaremos
avaliar se há sobreposição semântica ou funcional entre elas, ou seja,
se são aloconstruções.

Cabe-nos observar se há variação em dois âmbitos. Em primeiro lu-


gar, é necessário observar se há alternância regular e convencional entre
mais de um padrão formal para realização da construção com adjetivo
adverbial. Em seguida, confirmando-se a alternância, cumpre-nos exa-
minar de que modo ela ocorre. Em outras palavras, investigamos primei-
ro a possibilidade de variação sistemática e depois a de variação livre
(variação por aloconstruções).

Diante da literatura sobre os adjetivos adverbais no português brasi-


leiro (PB), somos levados a não deter muita atenção sobre as ocorrên-
cias com complemento verbal, porque essas seriam casos excepcionais
frente à maioria de ocorrências sem o complemento (BARBOSA, 2006;
LEUNG, 2007; FOLTRAN, 2010; VIRGINIO, 2016; CAMPOS, 2019). Assim, nos-
sa primeira hipótese seria de que os padrões com presença do comple-
mento não correspondam deveras a uma construção, mas sim a exce-
ções previstas na língua, uma vez que muitos verbos são transitivos.

Entre os estudos de orientação funcionalista e cognitivista, desta-


camos os trabalhos acadêmicos de Barbosa (2006), Virginio (2016) e
Campos (2019). Na coleta de dados realizada por Barbosa, as ocorrências
transitivas corresponderam a 20% (33 dados), enquanto as intransitivas
(ausência de complemento), a 80% (134 dados); a autora ainda destaca
que em sete ocorrências transitivas o complemento não era prototípi-
3
Além dos padrões demonstrados, outros padrões sintáticos são possíveis se a cláusula apresentar mais
de um complemento verbal, como, por exemplo, [V + C + AA + C]. Somam-se a isso a possibilidade
de anteposição do adjetivo adverbial em relação ao verbo, formando padrões como [AA + V] e [AA +
V + C]; e a possível ocorrência de elementos intervenientes aos elementos principais da construção.
Contudo, tais padrões comprovam-se minoritários em nossa pesquisa – uma análise prévia foi realizada
por Tiradentes (2018). Destacamos, portanto, os quatro padrões considerados principais.
4
Os elementos da construção são apresentados de forma abreviada para garantir melhor leitura. A seguir,
esclarecemos as abreviaturas utilizadas: V = Verbo; AA = Adjetivo Adverbial; e C = Complemento Verbal.
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  105

co, porque licenciado por um verbo leve. Campos, por sua vez, coletou
maior quantidade de dados e observou igualmente número pouco ex-
pressivo de ocorrências transitivas (aproximadamente 15%, 58 dados),
frente à maioria de ocorrências intransitivas (aproximadamente 84%,
329 dados); outros três dados (aproximadamente 1%) corresponderam
a ocorrências impessoais, em que o verbo não seleciona argumento ex-
terno. Diante dos resultados, as autoras afirmam que há uma tendência
à intransitividade, motivada pela relação icônica entre verbo e adjetivo
que os mantém próximos no enunciado. Campos, adotando perspectiva
teórica da LFCU, não trata da possibilidade de diferenciar a construção
com adjetivo adverbial em duas (uma para o padrão intransitivo e outra
para o transitivo), mas observa que a intransitividade é uma caracte-
rística que diferencia as sentenças com adjetivo adverbial de sentenças
com advérbios qualitativos terminados em –mente.

Ademais, Virginio (2016) realizou testes psicolinguísticos para avaliar


a aceitabilidade de construtos transitivos e intransitivos para a cons-
trução com adjetivo adverbial. Como resultado, o autor observou que
construtos intransitivos foram significativamente mais bem avaliados do
que os transitivos. Sua conclusão é de que, embora seja possível realizar
um complemento verbal junto a um adjetivo adverbial, a construção
apresenta uma restrição pragmática de foco exclusivo, que implica uma
restrição sintática de tendência à intransitividade; com isso, um cons-
truto transitivo é possível desde que o complemento não seja pragmati-
camente proeminente no discurso. Logo, ocorrências com complemento
não corresponderiam a uma segunda construção.

Assim, constatamos que uma restrição pragmática é proposta para


explicar o fenômeno dos adjetivos adverbiais. Porém, a atenção des-
pendida para descrever o padrão mais frequente (o intransitivo) acaba
por dificultar a explicação dos padrões menos frequentes (transitivos).
Podemos justificar as ocorrências com complemento a partir da restrição
pragmática, mas não podemos explicar dados em que o complemento
interfere na estrutura informacional do construto, como analisaremos
mais adiante.
106   —  Coleção Pesquisadores

Frente a esses questionamentos, consideramos que talvez não seja


possível descrever todos os dados minoritários como exceções, e assu-
mimos, por hipótese, que alguns padrões transitivos (ao menos o mais
frequente) sejam correlacionados a propriedades semânticas e/ou prag-
máticas específicas, constituindo construções. A abrangência do polo fun-
cional de cada uma dessas construções pode ser rigidamente delimitada,
como prevê a tradição da LFCU; ou pode apresentar zonas de sobrepo-
sição como o contexto de metaconstrução exposto por Cappelle (2006).

Na próxima seção, explicitamos a metodologia que utilizamos para


observar a possibilidade de realização sintática do complemento verbal
na construção (ou construções) com adjetivo adverbial.

3. METODOLOGIA
Como apresentado na primeira seção deste texto, sob a perspectiva
da LFCU, analisar a língua em uso é de extrema importância para com-
preender a representação cognitiva da linguagem. Dessa forma, nossa
pesquisa se pauta na coleta de ocorrências de adjetivos adverbiais em
textos de uso real do PB.

Realizamos a busca no Corpus do Português5, versão gênero/histórico:


um corpus disponível online, que abrange textos brasileiros e portugue-
ses de diferentes séculos e gêneros textuais. Restringimos a coleta aos
textos brasileiros do século XX, que correspondem a aproximadamente
10 milhões de palavras, e observamos todas as ocorrências dos mil ad-
jetivos mais frequentes no corpus. Ao total, foram identificados 1.221
construtos, tendo sido licenciados 47 adjetivos e 312 verbos diferentes.

Neste trabalho, deixamos de lado um pequeno conjunto de dados:


as 31 ocorrências que apresentavam o adjetivo adverbial anteposto ao
verbo – como em um padrão [AA + V], por exemplo –, as 15 ocorrências
com verbos na voz passiva e outros 2 dados que foram retirados do total
após nossa revisão, por não serem considerados elegíveis para o nosso

5
Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org.
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  107

estudo. Logo, temos um total de 1.173 dados que serviram de base para
a análise aqui exposta.

Entre os padrões sintáticos com presença de complemento encontra-


dos, verificamos que os três mais frequentes foram, respectivamente:
[V + AA + C], [V + C + AA] e [C + V + AA]. Dado o estágio inicial de nossa
pesquisa, analisamos qualiquantitativamente apenas os dados referen-
tes a esses três padrões, para os quais observamos os seguintes fatores:
estrutura informacional do construto (foco exclusivo ou compartilhado),
tipo de complemento (clítico, desenvolvido ou oracional) e status in-
formacional do complemento desenvolvido (novo, disponível, inferível,
parcialmente novo e evocado). Para o caso de complementos desenvol-
vidos, observamos também se compunham com o verbo uma expressão
fixa da língua ou se acompanhavam um verbo suporte.

Estamos considerando que uma sentença recebe foco informacional


exclusivo sobre a sequência verbo + adjetivo adverbial quando não há
presença de complemento ou quando o complemento não é discursi-
vamente proeminente na cláusula. Em outras situações, consideramos
que o foco é compartilhado, isto é, recai tanto sobre a sequência verbo
+ adjetivo adverbial quanto sobre o complemento.

Por último, assinalamos que a análise começa por uma observação


geral das ocorrências e depois se detém sobre cada um dos três padrões
transitivos selecionados. Nesta etapa da pesquisa, analisamos o padrão
intransitivo apenas segundo os resultados descritos por Tiradentes (2018).

4. ANÁLISE
4.1 Resultados gerais e considerações sobre o padrão [V + AA]

Em oposição aos resultados encontrados por Barbosa (2006), Leung


(2007), Foltran (2010) e Campos (2019), a coleta por nós realizada apre-
senta uma quantidade expressiva de ocorrências com presença de com-
plemento verbal. Como se observa na tabela 1, o padrão sem a sua
presença é o mais frequente, comportando aproximadamente 64% dos
108   —  Coleção Pesquisadores

dados, mas as ocorrências com o complemento totalizam 424 dados, o


que corresponde a cerca de 36% do total. Assim, comprovamos também
a tendência à ausência de complemento, mas reforçamos a necessidade
de investigação dos outros padrões identificados.

Tabela 1 – Frequência de ocorrência por tipo de padrão


PADRÃO FORMAL VERIFICADO

[V + AA] [V + AA + C] [V + C + AA] [C + V + AA] Outros Total


749 294 46 46 38 1.173
63,8% 25,1% 3,9% 3,9% 3,3% 100%

Entre os padrões em que o verbo se comportou de modo transiti-


vo, verificamos que o mais frequente é aquele com o complemento ao
final, o qual segue a estrutura transitiva canônica do português, SVO.
Já o padrão que se inicia pelo complemento é bem menos frequente,
demonstrando que a colocação do argumento interno segue a norma
da língua. Além disso, também é bem menos frequente o padrão em
que o complemento aparece intercalado entre verbo e adjetivo adver-
bial, o que parece reforçar a compreensão de que esses dois elementos
são fortemente integrados entre si. Observamos ainda outros padrões
pouquíssimo frequentes, como [V + C + AA + C] ou [V + AA + C + C], que
somam somente 38 ocorrências.

A forte integração repercute também sobre a frequência de outros


elementos que podem intervir na sequência verbo + adjetivo adverbial.
Como atestado por Tiradentes (2018), a maioria dos construtos não apre-
senta elemento interveniente e quando o apresenta este é um adjunto
graduador do adjetivo – como se observa no exemplo (1) na introdução
deste texto. Pela infrequente presença de elemento interveniente e por
não tratarmos dessa questão neste estudo, ocorrências com e sem tais
elementos são abarcados indistintamente.

Por último, salientamos que o padrão [V + AA] demonstra proprie-


dades que nos levam a considerá-lo um padrão construcional. Em pri-
meiro lugar, observamos duas idiossincrasias estruturais: de um lado,
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  109

o fato de o adjetivo modificar um verbo; de outro, o fato de a estrutura


argumental prototípica não conter a presença do complemento verbal,
mesmo que o verbo seja transitivo – como se nota, mais uma vez, no
exemplo (1), em que o verbo “pagar” poderia estar acompanhado de um
objeto. Também identificamos que o padrão apresenta uma característi-
ca pragmática marcante: o recaimento de foco informacional exclusiva-
mente sobre a sequência verbo + adjetivo adverbial, centrando a aten-
ção mais sobre a ação verbal, o evento, do que sobre as entidades que
participam do evento. Não menos importante, verificamos que a forte
integração entre os elementos verbal e adjetival promove a formação de
um todo significativo (muito mais expressivo do que uma combinação
eventual entre elementos). Além disso, é claramente razoável postular
que a construção está convencionalizada no PB, dado que os adjetivos
adverbiais já existiam desde o latim. Diante de tais razões, postulamos
a existência da construção [V AA].

4.2. Análise do padrão [C + V + AA]

Dos três padrões transitivos selecionados para análise, talvez seja o


padrão [C + V + AA] o menos expressivo. Exatamente metade (50%) das
ocorrências listadas corresponde a sentenças que encerram um diálogo
de um texto narrativo ou concluem uma citação em um texto jornalís-
tico – como exposto no exemplo (3). Nesse contexto, o complemento é
um argumento oracional que é muito desgarrado do verbo. Nas demais
ocorrências, o complemento corresponde a um clítico (45,6%, 21 dados)
ou a um sintagma desenvolvido (4,4%, 2 dados).

Enquanto clítico, consideramos que o complemento comporta sem-


pre status evocado (velho), já que faz referência a expressões já for-
temente ativadas na mente tanto do enunciador quanto do ouvinte ou
a elementos altamente pressupostos no discurso. Por consequência,
esses complementos não contribuem para a estrutura informacional e
não recebem foco. É o que podemos observar no exemplo (4), em que
o pronome se refere a uma das pessoas do discurso. Por último, ana-
lisamos uma ocorrência com complemento desenvolvido, apresentada
110   —  Coleção Pesquisadores

em (5), em que o status informacional do sintagma é evocado, porque


o referente já fora mencionado anteriormente no texto.
(3) “Foi quando enxergou um lenço prêso entre os canapus.
– Ela não veio – disse alto, de propósito.” (19:Fic:Br:Carvalho:Somos)

(4) “– Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.


– Mas eu não quero.
– Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra.” (19:Fic:Br:Rio:Alma)

(5) “E antes que respondessem, concluiu: – Não creio. Parto difícil e típico de
primípara, embora a eclâmpsia mascare tudo. – Falava olhando para Canecão
e Pavuna, sem saber a qual dos dois se dirigir certo; isto é, qual deles, seria o
esposo, o viúvo.” (19:Fic:Br:Vieira:Mais)

Concluímos, então, que o padrão [C + V + AA] não corresponde a um


padrão construcional. Os casos de complemento oracional não equiva-
lem a verdadeiros complementos; à semelhança, os clíticos também não
são argumentos prototípicos, não contribuem substancialmente para a
interpretação da sentença e não interferem absolutamente sobre a es-
trutura informacional. O exemplo (5), embora comporte um sintagma
desenvolvido, também não recebe foco. Logo, parece-nos plausível que
os dados para esse padrão sejam totalmente previsíveis a partir da
restrição pragmática da construção e de outras construções da língua.

4.3. Análise do padrão [V + C + AA]

Passamos a analisar o padrão [V + C + AA], em que o complemento


ocorre entre o verbo e o adjetivo adverbial. Ao todo, verificamos 46 ocor-
rências desse padrão, mas os dados não são tão homogêneos quanto os
apresentados para o padrão [C + V + AA]. Haja vista que o complemento
é um elemento interveniente, era esperado que esse elemento interfe-
risse ao mínimo na forte integração entre V e AA. Concretamente, isso
resultaria em complementos de natureza clítica e status informacional
evocado. Contudo, essa hipótese não é atestada na maioria dos dados.

Apenas em 12 dados (26,1%) o complemento é do tipo clítico; na


maioria dos construtos (os 34 restantes, 73,9%), o complemento é de-
senvolvido. Como expresso acima, clíticos interferem minimamente na
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  111

estrutura semântica, discursiva e informacional de uma sentença, e sua


ocorrência é previsível – ofertamos um exemplo em (6). Ademais, entre
os complementos desenvolvidos, 10 deles compõem com o verbo uma
expressão comum da língua – como em (7) – ou acompanham um verbo
suporte – como em (8). A presença desse tipo específico de complemen-
to antes do adjetivo adverbial pode ser justificada pela integração ainda
mais forte entre verbo e complemento, de modo que os dois formam
uma “expressão verbal”; novamente, consideramos que seja um caso
previsível a partir da rede construcional do PB.

(6) “Ele continuava ali, bem perto, também ferido. E, de repente, como
se percebesse que o perdia para toda a vida, deixou tombar o chapéu,
enlaçou-o forte, procurando os braços que a apertassem [...]” (19:Fic:Br:
Peixoto:Chamada)

(7) “Um acidente. Do topo do mastro desprendeu-se uma das vigas que atin-
giu Filippo na base do pescoço numa pancada seca. O monsenhor perdeu os
sentidos, mais profundo do que o sobrinho possuído pelo diabo.” (19:Fic:Br:-
Comparato:Guerra)

(8) “JC – Você, pelo jeito, deve ter uma coleção de amigos...
Leda – Eu faço amizades muito fácil. O meu primeiro trabalho, também como
contato, foi na Editora Abril.” (19Or:Br:Intrv:Cid)

Ainda assim, deparamo-nos com 24 dados com complementos pro-


totípicos, os quais submetemos à análise do status informacional vei-
culado (tabela 2). Metade dos complementos apresenta status evocado,
mas ainda assim encontramos dados de status novo e inferível, os quais
ocorreram com os adjetivos “alto”, “baixo”, “barato”, “independente”,
“urgente” (1 dado para cada adjetivo) e “rápido” (7 dados).

Tabela 2 – Análise do status informacional para um


conjunto de dados do padrão [V + C + AA]
STATUS INFORMACIONAL

Novo Disponível Inferível Parcialmente novo Evocado Total

6 0 6 0 12 24

25% 0% 25% 0% 50% 100%


112   —  Coleção Pesquisadores

Por conclusão, observamos que a maioria das ocorrências do padrão


[V + C + AA] pode ser justificada pela restrição de foco exclusivo e pela
relação icônica entre verbo e adjetivo. Essa compreensão poderia nos
levar a postular que, assim como o anterior, esse padrão é apenas uma
exceção contextual. Porém, não identificamos justificativa para os casos
em que o complemento é desenvolvido e não apresenta status evocado.
Ainda que tenham ocorrido predominantemente com o adjetivo “rápido”,
puderam ocorrer também com outros cinco adjetivos, sendo as combi-
nações com “urgente” e “independente” pouco frequentes. Então, op-
tamos considerar que o padrão corresponda a uma construção [V C AA],
que, apesar disso, é preterida pelos falantes, porque o complemento
em posição interveniente faz com que o adjetivo possa ser lido como
um modificador nominal e, assim, promove maior gasto cognitivo para
processar o enunciado como devidamente um construto com adjetivo
adverbial. Curiosamente, esse preterimento é manifestado na ocorrência
(9), em que o falante reformula a cláusula e retira o complemento verbal.
(9) “se ele devolver a fita que tomou emprestado ele não vai ter fita pra tocar
no toca-fita do carrinho do papai dele – não é? – se tomar a fita emprestada
ele vai roubar vai roubar mesmo – então ele vai roubar – ou vai comprar de um
ladrão barato – vai comprar barato - e de qualquer forma – é – () – de qualquer
forma ele está praticando um crime.” (19Or:Br:LF:Recf)

4.4. Análise do padrão [V + AA + C]


Por último, analisamos o padrão mais frequente: [V + AA + C]. Por apre-
sentar-se distante do verbo, em nenhuma ocorrência o complemento
demonstra-se como um clítico. Por outro lado, à semelhança do padrão
[C + V + AA], o complemento realizou-se não só como sintagma desen-
volvido, mas também como sintagma oracional. Em verdade, grande
parte (58 dados, 19,7%) corresponde a orações introduzidas por verbos
dicendi, que são diálogos de textos narrativos ou citações de textos jor-
nalísticos. Como dito anteriormente, tais casos não podem ser incluídos
de fato na análise.

Outra parte ainda maior (109, 37,1%) corresponde a ocorrências com


o adjetivo “direto”. Comprovadamente, a combinação “verbo + direto”
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  113

ocorre em quantidade maior com a presença do complemento – prefe-


rindo o padrão [V + AA + C] – do que com sua ausência; ao todo, encon-
tramos 157 dados com esse adjetivo, dos quais 134 (85,3%) apresentam
complemento e 109 (69,4%) são ocorrências do padrão [V + AA + C].
Consideramos, portanto, que uma microconstrução [V Direto C] deva ser
postulada para abarcar o fenômeno de que apenas com esse adjetivo o
padrão [V + AA + C] é preferido frente ao padrão [V + AA].

Ademais, verificamos que em outras 7 ocorrências o complemen-


to compõe uma “expressão verbal” com o verbo ou acompanha um
verbo suporte; à semelhança dos trechos expostos em (7) e (8), en-
contramos construtos como “chega fácil à conclusão” e “prometem
entrar firme na briga”.

Restam-nos, portanto, 120 ocorrências (compostas por 23 adjetivos


e 62 verbos diferentes) passíveis de análise quanto ao status informa-
cional veiculado. O resultado é expresso na tabela 3. Como se observa,
há uma grande quantidade de complemento com status novo, uma vez
que a posição de final de sentença costuma veicular a informação nova.
Por outro lado, a quantidade relativa a status evocado é também muito
alta. Apresentamos em (10) e (11) exemplos respectivos para status
evocado e novo.

Tabela 3 – Análise do status informacional


para um conjunto de dados do padrão [V + AA + C]

STATUS INFORMACIONAL

Novo Disponível Inferível Parcialmente novo Evocado Total


49 5 15 7 44 120
40,8% 4,2% 12,5% 5,8% 36,7% 100%

Além disso, apenas em 39 dos 120 dados o foco do construto recai


exclusivamente sobre a sequência “verbo + adjetivo adverbial”. Em (10),
temos um caso de foco exclusivo, enquanto em (11), foco compartilhado
entre a sequência e o complemento.
114   —  Coleção Pesquisadores

(10) “É indiscutível a produtividade de muitos latifúndios que acabam ge-


rando divisas. Mas, com a tecnologia avançada, estão mais dispensando do
que contratando trabalhadores. As lavouras de cana estão investindo alto em
tecnologia.” (19Or:Br:Intrv:ISP)

(11) “Policiamos os choques sociais mas não policiamos a nossa conduta mo-
ral. Não apagando antagonismos, ela faz por separar bem claro, os nutridos e
os desnutridos.” (19N:Br:Cur)

Desse modo, identificamos um número muito expressivo de constru-


tos que não podem ser explicados com base na restrição pragmática de
foco exclusivo. Resta-nos considerar que o padrão [V + AA + C] corres-
ponde a uma construção de notável frequência e produtividade. A iden-
tificação de [V Direto C] também nos soa como um indício da existência
de [V AA C]. Contudo, permanece a dificuldade de justificar a presença
do complemento junto ao adjetivo adverbial.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Ao final desta breve e inicial análise, identificamos que o padrão
[C + V + AA] é uma exceção contextual e que os padrões [V + AA], [V + C
+ AA] e [V + AA + C] correspondem a três construções diferentes: [V AA],
[V C AA] e [V AA C]. Mais além, conseguimos identificar a microconstru-
ção [V Direto C].

Ponderamos que as construções [V C AA] e [V AA C] sejam mais bem


compreendidas como aloconstruções de uma mesma metaconstrução
porque identificamos, a princípio, similaridade quanto à expressão se-
mântica. Em outras palavras, o falante parece poder escolher entre as
duas qual ele queira instanciar no discurso. Por outro lado, [V AA C] deve
ser a aloconstrução de maior destaque, já que é mais frequente e produti-
va, enquanto [V C AA] tende a ser rejeitada pelo esforço cognitivo que de-
manda ao interlocutor. Consideramos ainda que deva haver diferença de
tamanho (massa fônica) licenciado por cada construção, bem como pro-
priedades pragmáticas que não investigamos neste estágio da pesquisa.

Além disso, é possível postular uma segunda metaconstrução para


representar a zona de sobreposição pragmática entre [V AA], [V AA C] e
Rodrigo Pinto Tiradentes / Priscilla Mouta Marques   —  115

[V C AA], já que as três construções servem à função de expressar es-


trutura informacional de foco exclusivo. Considerando que em muitas
ocorrências de [V AA] o referente do que poderia ser o complemento
verbal já está expresso anteriormente no texto, podemos interpretar que
em determinadas instanciações [V AA] é como [V + AA + Ø], em que Ø
representa um complemento implícito. Assim, não há sequer diferença
semântica substancial entre os três padrões.

Nossas considerações ainda são especulações, mas, de todo modo,


parece-nos pertinente que em certa medida haja variação entre os três pa-
drões mencionados. Para melhores conclusões, propomo-nos a incluir mais
fatores de análise, que possam diferenciar as propriedades semânticas e
pragmáticas de cada construção e justificar a ocorrência do complemento
verbal que apresenta status novo e/ou compartilha foco informacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, M. Gramaticalização de advérbios do português contemporâneo. Rio de
a partir de adjetivos: um estudo sobre Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
os adjetivos adverbializados. 2006. FOLTRAN, M. J. G. D. A alternância entre
Dissertação (Mestrado em Linguística) – adjetivos e advérbios como modificadores
Programa de Pós-Graduação em Linguística,
de indivíduos e de eventos. Revista Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
Curitiba, n. 81, p. 157-176, maio/ago. 2010.
de Janeiro, 2006.
GIVÓN, T. Syntax. A functional-typological
BYBEE, J. Language, usage and cognition.
introduction. Amsterdam; Philadelphia:
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
John Benjamins Publishing Company, 1984.
CAMPOS, J. L. de. Competição entre [Verbo
GOLDBERG, A. Constructions: a construction
Adjetivo Adverbial] e [V Xmente] na rede
grammar approach to argument structure.
construcional qualitativa do português
Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
brasileiro: uma análise centrada no uso.
2019. Tese (Doutorado em Linguística) – GOLDBERG, A. Constructions at work: the
Programa de Pós-Graduação em Linguística, nature of generalization in language.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio Oxford: Oxford University Press, 2006.
de Janeiro, 2019. HAIMAN, J. Natural syntax: iconicity and
CAPPELLE, B. Particle placement and the erosion. Cambridge: Cambridge University
case for “allostructions”. Constructions, Press, 1985.
Special Volume 1, p. 1-28, 2006. HOPPER, P. J. Emergent grammar. Berkeley:
CROFT, W. Radical construction grammar: Linguistic Society, 1987.
syntactic theory in typological perspective. KEMMER, S.; BARLOW, M. Introduction: a
Oxford: Oxford University Press, 2001. usage-based conception of language. In:
CUNHA, C. F. da; CINTRA, L. Nova gramática BARLOW, M.; KEMMER, S. (eds.). Usage based
116   —  Coleção Pesquisadores

models of language. Stanford, California: TIRADENTES, R. P. A construção com adjetivo


CSLI Publications, 2000. p. vii-xxvi. adverbial: investigando sua configuração
LEUNG, R. T. F. Um estudo sobre os objetos no português brasileiro do século XX.
cognatos e os adjetivos adverbiais no 2018. Monografia (Graduação em Letras) –
português do Brasil. 2007. Dissertação Faculdade de Letras, Universidade Federal
(Mestrado em Linguística) – Programa de do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
Pós-Graduação em Linguística, Universidade TRAUGOTT, E.; TROUSDALE, G. Constructiona-
de São Paulo, São Paulo, 2007.
lization and constructional changes. Oxford:
LOBATO, L. M. P. Sobre o suposto uso Oxford University Press, 2013.
adverbial de adjetivo: a questão categorial
e as questões da variação e da mudança VIEIRA, M. M. dos S.; WIEDEMER, M. L.
linguística, In: VOTRE, S.; RONCARATI, C. Sociolinguística variacionista e gramática de
(orgs.). Anthony Julius Naro e a linguística construções: os desafios e as perspectivas de
no Brasil: uma homenagem acadêmica. Rio compatibilização. In: ___. (orgs.). Dimensões
de Janeiro: 7 Letras, 2008. e experiências em sociolinguística. São
Paulo: Blucher, 2019. p. 85-120.
PEREK, F. Argument structure in usage-based
construction grammar: experimental and VIRGINIO, V. Investigando a semiprodutivi-
corpus-based perspectives. Amsterdam; dade construcional: o caso da construção
Philadelphia: John Benjamins Publishing circunstancial de adjetivo adverbializado
Company, 2015. do português brasileiro. 2016. Monografia
ROCHA LIMA, C. H. da. Gramática normativa (Graduação em Letras) – Faculdade de Le-
da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José tras, Universidade Federal Fluminense, Rio
Olympio, 1994. de Janeiro, 2016.
7
Gênero, Sociedade, Língua e Cognição:
uma Análise Construcionista
dos Usos de “Puta” e “Puto”
no Português Brasileiro
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro
(UFRJ – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística)

“There are many means by which we color topics with gender –


by which we invokegender and discourses of gender even
when we are ostensibly talking about something else.”
(ECKERT; McCONNELL-GINET, 2003, p. 60)

– INTRODUÇÃO –
Noções de gênero, em relação aos seus valores sociais, são assimétricas.
Por exemplo, ao se chamar um homem de “cachorro”, pode-se avaliá-lo
quanto aos seus roteiros de relacionamentos, indicando, em geral, um
perfil promíscuo, ou seja, uma pessoa que mantém múltiplas parcerias
sexuais. Esse homem, porém, tende a ser analisado positivamente pelos
seus pares, pois se enquadra como um homem de sucesso (sobretudo
se heterossexual), um bom exemplar da categoria, segundo a qual se
prevê uma sexualidade masculina ativa. No entanto, ao se chamar uma
mulher de “cachorra”, ainda se mantém uma avaliação de promiscui-
dade, mas, dessa vez, trata-se de uma avaliação pejorativa, visto que a

— 117 —
118   —  Coleção Pesquisadores

mulher, diferentemente do homem, não deveria ser reconhecida como


sexualmente voraz, dentro de uma concepção tradicional de gêneros.

A assimetria, na verdade, vai além. Imagine-se a seguinte sentença:


“Você está parecendo puta”. Mesmo fora de contexto, a caracterização
como “puta”, com marcação morfológica –a, associada à base nominal
put–, nos permite imaginar, por um lado, uma referente mulher que ou
estaria extremamente irritada, ou se assemelharia a uma prostituta.
Esses significados já foram atestados por Chain (2018), que, porém,
atentou-se principalmente às diferentes classificações gramaticais da
palavra “puta”. A sentença “Você está parecendo puto”, por outro lado,
nos leva a assumir um referente homem, graças à palavra “puto” (mar-
cada morfologicamente por –o), e continua licenciando a interpretação
de que tal indivíduo estaria irritado. No entanto, a priori, nos afasta de
uma comparação com um prostituto – apesar de ser uma possibilidade
na língua, sobretudo por analogia a “puta”.

Aqui, cabe evidenciar duas acepções distintas para gênero, apesar de


comumente conectadas: de um lado, gênero enquanto identidade social
de gênero; de outro, a marcação morfológica de gênero gramatical, de
que algumas línguas, como o português, dispõem. Por vezes, como de-
monstrado nos exemplos anteriores, o gênero gramatical, tipicamente
explicitado pelas desinências –a e –o, leva a conclusões sobre a iden-
tidade de gênero dos referentes. Desse modo, visto que língua e so-
ciedade interagem, marcas linguísticas propiciam, também, valorações
sociais. Segundo Gonçalves (2011, p. 203), por exemplo, “formas como
‘vagabunda’ e ‘cachorra’ são bem mais pejorativas que as masculinas
correspondentes”.

É dessas premissas que parto para estabelecer o objetivo deste tra-


balho: quero identificar de que maneira determinados usos linguísticos
podem ajudar a manter uma hierarquia social de gênero que, de acordo
com Eckert e McConnell-Ginet (2003), situa identidades masculinas em
posições de maior poder, quando comparadas a identidades femininas.
Dessa forma, olho para as diferenças entre as ocorrências de “puta”
e “puto” e busco analisar como contribuem para a manutenção da
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  119

hierarquia de gênero. Portanto, faz-se necessário depreender os contex-


tos e os significados associados a essas ocorrências mais prototipica-
mente, visando responder se são diferentes e por quê.

Entendo, pois, que o conhecimento – seja em referência à língua,


seja em referência aos padrões sociais – emerge da experiência inter-
subjetiva, isto é, da interação entre diferentes participantes da socie-
dade. Assumo, desse modo, uma perspectiva não essencialista para
as identidades sociais, compreendendo-as construídas na interação
(ECKERT; McCONNELL-GINET, 2003; MOITA-LOPES, 2006). Assumo, também,
uma perspectiva baseada no uso para o conhecimento linguístico e par-
to do princípio de que a língua se organiza na mente dos seus usuários
como uma complexa rede de construções (ou pareamentos de forma
e sentido) gerada e atualizada nas situações de uso linguístico
(BYBEE, 2010; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013; PINHEIRO, 2016). Sobre essas
questões, discorrerei a seguir.

1. DA LINGUÍSTICA BASEADA NO USO


À NOÇÃO DE IDENTIDADE DE GÊNERO
Seja quanto ao nosso conhecimento linguístico, seja em relação às nos-
sas identidades sociais, destaco a relevância das experiências em so-
ciedade. Dessa forma, unem-se o linguístico e o social, já que não há
língua fora da interação, e é desta – da interação – que o conhecimento
linguístico emerge. Eis a proposta das vertentes de pesquisa associadas
à linguística baseada no uso.

Segundo a proposta de Bybee (2010), deve-se pensar a gramática


como uma organização cognitiva das experiências que um sujeito tem
com a língua. É por essas experiências, isto é, pelas interações inter-
pessoais, que o sujeito molda o seu conhecimento gramatical, de modo
análogo à maneira como também organiza seus saberes socioculturais.
Pode-se, então, justificar tanto o linguístico como o social a partir de
processos cognitivos de domínio geral, sem que seja necessário dissociar
por completo a língua de outras habilidades e saberes. Nesse sentido,
120   —  Coleção Pesquisadores

indica-se a categorização como uma habilidade fundamental, que, de


acordo com Bybee (2010), corresponde ao processo de se associar uma
nova ocorrência linguística a outra(s) já conhecida(s), a partir das seme-
lhanças encontradas entre elas. Assim, da categorização, resulta a base
do sistema linguístico. A mesma autora, entretanto, indica a categoriza-
ção como um processo de domínio geral, pois entende que “categorias
perceptuais de tipos variados são criadas a partir da experiência, de ma-
neira independente da língua” (BYBEE, 2010, p. 7).1,2 Aqui destaco o termo
“tipos variados”, a fim de explicitar o vínculo da categorização com ques-
tões para além do sistema linguístico – ao que retornarei mais adiante.

Atendo-me, por ora, às questões relacionadas mais especificamente


à língua enquanto sistema, levanto a seguinte questão: se os itens lin-
guísticos são agrupados por categorias na mente dos usuários da língua,
que tipo de representação mental está em jogo? Entra em cena, nesse
momento, o conceito de construção.

Ainda segundo Bybee (2010, p. 9), uma construção é “um parea-


mento direto de forma e significado que tem estrutura sequencial e
pode incluir posições fixas, além de posições abertas”.3 Além disso, de
acordo com Traugott e Trousdale (2013), construções são unidades sim-
bólicas convencionais – convencionais porque são compartilhadas entre
um grupo de sujeitos; simbólicas porque são associações tipicamente
arbitrárias de forma e significado; e são unidades, visto que cada cons-
trução, como já dito, representa na mente dos sujeitos um pareamento
de forma e significado – ainda que relacionada a outras construções, ou
seja, a outros pares de forma e sentido. Ao conjunto das ligações entre
diferentes construções, dá-se o nome de rede. Daí estabelecer que as
construções – e, assim, o conhecimento linguístico dos sujeitos – se
organizam na forma de rede. Na perspectiva da gramática de cons-
truções, tal rede se constrói, nos termos de Pinheiro (2016), por uma
1
Foram traduzidos por mim todos os trechos que, originalmente, se encontram em língua inglesa.
2
“Categorization is domain-general in the sense that perceptual categories of various sorts are created
from experience independently of language.”
3
“The crucial idea behind the construction is that it is a direct form-meaning pairing that has sequential
structure and may include positions that are fixed as well as positions that are open.”
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  121

“montagem” ascendente, “de baixo para cima”, do uso linguístico para


a esquematização cognitiva. Retomo, pois, a habilidade de categoriza-
ção: o sujeito entra em contato com determinadas combinações de itens
linguísticos (agora já denominadas construções) e, então, as armazena
cognitivamente, categorizando-as e estabelecendo links entre elas. É a
partir desses links – formados pelo uso da língua – que novas sentenças
serão criadas.

Segue, assim, um exemplo associado à morfologia do português.


Nas nossas interlocuções, encontramos palavras como “menino”,
“roqueiro”, “leão” e “gato”. As materializações dessas palavras em
sentenças denominam-se construtos; o termo construções correspon-
de, aqui, às representações mentais dos construtos.4 Por vezes, en-
contramos, no entanto, “menina”, “roqueira”, “leoa” e “gata”, que
se diferenciam das palavras anteriores apenas pela alternância entre
masculino e feminino. Desse modo, conectamos “menino”–“menina”,
“roqueiro”–“roqueira”, “leão”–“leoa” e “gato”–“gata”. Percebemos
ainda que, dos quatro pares, três são formados pela presença de –a,
indicativo de feminino, no exato lugar onde também poderia haver –o,
indicativo de masculino, desinências combinadas a bases nominais,
que podemos representar por [N], um esquema abstrato. Trata-se da
observação de um tipo estrutural de maior frequência. Portanto, cate-
gorizadas as ocorrências de gênero morfológico no português brasilei-
ro, reconhecemos o esquema abstrato [N-a] para feminino e [N-o] para
masculino. Carvalho (2019, p. 43) chama tais esquemas de construções
desinenciais de gênero, e ainda atesta uma terceira construção, asso-
ciada à não especificação de gênero: [N-e], encontrada, por exemplo,
em “menine”, que se oporia a “menina” e “menino” por não conter
marcas de gênero masculino ou feminino. Dessa forma, pela proposta
desse autor, estabelece-se a seguinte rede:5

4
Ver Traugott e Trousdale (2013, p. 16) para um tratamento mais adequado dos níveis de represen-
tação construcional.
5
Carvalho (2019) emprega chaves para referir-se ao componente semântico-funcional das construções.
122   —  Coleção Pesquisadores

Figura 1
Rede construcional das construções desinenciais de gênero

Fonte: Adaptado de Carvalho (2019, p. 75-76).

Não obstante trate de aspectos de estrutura linguística, Carvalho


demonstra-se atento à correlação que se faz entre língua e questões
sociais. Isso se evidencia, por exemplo, pela constatação, já indicada,
de que atualmente usuários do português brasileiro se valem da cons-
trução [N-e] quando não desejam se comprometer com uma identidade
de gênero feminina ou masculina. Trata-se, portanto, de uma estratégia
linguística de resistência ao fato de que, nas palavras de Carvalho (2019,
p. 66), “o Brasil atual está mergulhado em uma cultura que se pode con-
siderar binarista no que se refere aos sexos; as pessoas são divididas,
em grande parte, entre as categorias mulher e homem”. Desse modo, o
pesquisador conclui que “a semântica de sexo biológico é relacionada
ao gênero gramatical do substantivo” e que “falantes do português são
influenciados a notar características de um ou outro sexo [i.e., mascu-
lino ou feminino] em seres inanimados [i.e., aqueles que, a priori, não
são marcados sexualmente]” (CARVALHO, 2019, p. 67).

O autor, no entanto, trata por sexo biológico aquilo que, na verdade,


se define por identidade social de gênero. Algumas vezes, na verdade,
ele usa os termos “sexo” e “gênero” como se fossem intercambiáveis,
referindo-se à semântica da construção [N-e] como “{SEM ESPECIFICAÇÃO
DE GÊNERO/SEXO}”. Ostermann e Moita-Lopes (2014), ao apresentarem
um panorama das pesquisas sobre língua e gênero no Brasil, apon-
tam justamente que, na sociolinguística variacionista, estudos tendem
a usar os termos “gênero” e “sexo” como sinônimos, ou apenas trocam
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  123

um pelo outro, sem mudar a forma como teorizam e analisam os dados.


É o que parece fazer Carvalho, mesmo não se enquadrando em uma
perspectiva variacionista. Encontra-se aí um exemplo, entre vários, que
nos convida a tratar de questões de gênero.

Segundo Eckert e McConell-Ginet (2003), o gênero está tão enraizado


nas nossas vidas e na nossa sociedade que nos parece completamente
natural. Desse modo, as nossas ideias sobre gênero tornam-se tão ba-
nais que imediatamente assumimos ser verdadeiras, como se fossem
fatos científicos.

Aqui, cabe esclarecer que, de acordo com as autoras mencionadas,


a categorização de sexo pauta-se principalmente por um potencial re-
produtor, ao que se atrela sobretudo o aparato sexual biologicamen-
te especificado; gênero, contudo, é uma “elaboração social”, que, por
vezes, se associa ao sexo biológico, exagerando diferenças biológicas.
Podemos, então, reconhecer quatro princípios fundamentais de gênero:
1) é aprendido, ensinado e reforçado; 2) é colaborativo, ou seja, o nosso
gênero não depende apenas de nós; 3) não é algo que temos, mas algo
que fazemos, é uma performance; e 4) é assimétrico (cf. ECKERT; McCON-
NELL-GINET, 2003, p. 31-32).

Acredito que, de certa maneira, os três primeiros princípios eviden-


ciem a ligação entre essa concepção de gênero e a ideia apresentada no
início desta seção: os nossos conhecimentos – linguísticos ou sociocul-
turais (ou, ainda, sociolinguísticos) – emergem das experiências, das in-
terações. É vivendo em sociedade que nós nos submetemos ao jogo de
poder, às regras e à divisão binária de gênero, pelas quais determinadas
atividades e atributos se associam ao gênero masculino, ao passo que
outras se associam ao gênero feminino – sem que haja necessariamente
imposições genéticas para isso. É em sociedade que nós aprendemos
a categorizar as identidades sociais, os grupos aos quais pertencemos,
por semelhança, e dos quais nos excluímos, por ressaltarmos diferenças
específicas. Eis um ponto em que a categorização extrapola o linguístico.

Quanto à assimetria de gêneros, esta fica evidente pelos exemplos


com os quais este trabalho se inicia: enquanto “cachorra” tende a
124   —  Coleção Pesquisadores

indicar avaliações negativas para pessoas identificadas com o gênero


feminino, “cachorro” pode ser uma caracterização positiva para o gêne-
ro masculino; enquanto “puta” licencia uma interpretação vinculada a
práticas sexuais (ou seja, “puta” como “prostituta”), a sua contraparte
masculina, “puto”, costuma afastar tal interpretação. Desse modo, re-
forçam-se estereótipos de gênero, crenças e diferenças de poder pelos
usos linguísticos.

De acordo com Moita-Lopes (2006, p. 290), as identidades sociais


que, em geral, ocupam posições hegemônicas – o centro de poder –
são aquelas correspondentes aos homens brancos heterossexuais. Essas
identidades, naturalizadas, definem também as margens do poder: as
identidades desviantes. Nessas, incluem-se as femininas, que, segundo
Eckert e McConnell-Ginet (2003, p. 21), emergem como marcadas, como
se as suas atividades e os seus comportamentos fossem especifica-
dos para um subgrupo especial da sociedade. Nesse sentido, pode-se
argumentar que essa relação entre marcado e não marcado, centro
e margem também se observa na tradição dos estudos morfológicos.
Quanto à alternância entre masculino e feminino na morfologia, Câmara
Jr. (1970, p. 88-89), por exemplo, afirma que, em termos semânticos, “o
masculino é uma forma geral, não marcada, e o feminino indica uma
especialização qualquer”.

Encontramos, ainda, outras evidências da definição do feminino


como depentente do masculino heterossexual. Ostermann e Keller-
-Cohen (1998) analisaram quizzes (i.e., testes de personalidade) de
revistas para garotas adolescentes. Concluíram, então, que os testes
orientam as leitoras a nivelar o seu comportamento de tal forma que se-
jam desejáveis para os homens; portanto, as “boas garotas” são aque-
las que se adequam aos gostos masculinos. Van Damme (2010), por
sua vez, voltou-se à investigação de performances de gênero e roteiros
de sexualidade em séries televisivas para adolescentes. Nessa análise,
observou que as personagens femininas tendem a ver a sua própria se-
xualidade como objetificada ou como prêmio a ser conquistado por um
garoto. Daí se explica a assimetria entre os pares “cachorro”–“cachorra”
e “puto”–“puta”, por exemplo.
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  125

Novamente, ressalto a correlação entre língua e sociedade e aqui


explicito noções da sociolinguística, que vêm permeando as ideias des-
te texto. De acordo com Blommaert (2010, p. 28), “a Sociolinguística é
o estudo da língua como um complexo de recursos, dos seus valores,
distribuição, direitos de propriedade e efeitos”.6 Trata-se do estudo de
usos concretos, pelos quais as pessoas fazem diferentes investimentos
sociais. A discussão que proponho aqui se atenta justamente a essa cor-
relação entre usos reais da língua, promovidos na interação, e os valores
sociais que orientam as práticas linguísticas. Por isso, entendo que, ao
nos atentar para eventos específicos de comunicação – situados em um
local e tempo –, podemos conectá-los com padrões socioculturais mais
gerais, coletivos, que atravessam espaços e não se associam a um único
tempo (cf. BLOMMAERT, 2010).

Ora, se este trabalho se pauta tanto por preceitos da gramática de


construções (baseada no uso) quanto por princípios da sociolinguísti-
ca, acredito que se enquadre em uma abordagem socioconstrucionista.
Machado Vieira e Wiedemer (2019) buscam construir uma proposta de
trabalho que coadune a gramática de construções e a sociolinguística
variacionista – segundo o modelo postulado, por exemplo, em Labov
(2008). Os autores, que também concebem o conhecimento linguístico
como um inventário de construções, afirmam ainda que a realidade é
vivida “com base numa rede complexa de relações [...] no jogo complexo
de forças de estabilidade e instabilidade, um jogo discursivo-pragmáti-
co, social e histórico, culturalmente situado” (MACHADO VIEIRA; WIEDE-
MER, 2010, p. 92). É verdade, porém, que esses pesquisadores se voltam
sobretudo a aspectos relativos à variação linguística e, portanto, a como
representá-la dentro de um paradigma construcionista. Não é essa a mi-
nha proposta aqui. Volto-me a valores, identidades e hierarquias sociais,
tão caras à sociolinguística, mas não assumo como objetivo principal a
investigação de formas ditas alternantes.

Na próxima seção, retomo os propósitos deste trabalho e teço co-


mentários sobre o corpus investigado e a seleção de dados.
6
“Sociolinguistics is the study of language as a complex of resources, of their value, distribution, rights
of ownership and effects.”
126   —  Coleção Pesquisadores

2. “PUTA” E “PUTO” EM NOTÍCIAS E REPORTAGENS


BRASILEIRAS: CORPUS E SELEÇÃO DE DADOS
Como já dito, esta análise se centra nos usos de “puta” e “puto” no
português brasileiro – ou, conforme agora já posso denominar, centra-se
nas materializações (ou construtos) de construções armazenadas como
[puta] e [puto]. Viso, então, identificar como tais ocorrências podem co-
laborar para a manutenção da hierarquia de gênero em que identidades
masculinas são vistas como hegemônicas, normais e não marcadas,
ao passo que identidades femininas são percebidas a partir do gênero
masculino e a seu serviço. Na verdade, entendo ser necessário investi-
gar quais construções são efetivamente evocadas pelos usos de “puta”
e “puto”, partindo do princípio de que pode haver duas distintas: uma
associada à referência sexual e outra à extrema irritabilidade. Quero, en-
fim, constatar quais outras construções mais prototipicamente se com-
binam com [puta] e [puto] na sua realização em eventos comunicativos.
Conforme se demonstre possível, traçarei comparações entre os usos de
“puta” e “puto” observados e outros padrões construcionais que, quan-
to à forma e à estrutura, se aproximem das analisadas aqui.

Com essas finalidades, busquei por ocorrências de “puta” e “puto”


no Corpus do Português: NOW (News on the Web). De acordo com a
própria descrição do corpus, trata-se de um banco de dados composto
por 1,4 bilhão de palavras encontradas em jornais e revistas disponíveis
na internet.7,8

Dos dados encontrados, selecionei apenas as ocorrências situadas no


corpo de textos jornalísticos brasileiros publicados apenas no primeiro
semestre de 2019. Esse recorte justifica-se devida ao tempo para a reali-
zação do trabalho. Além disso, optei por analisar as menções a “puta” e
“puto” apenas no corpo dos textos jornalísticos disponíveis, pois, de cer-
ta forma, são usos “legitimados”, produzidos por pessoas que os jornais
e as revistas julgam suficientemente aptas a promover a circulação de
7
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org/now. Acesso em: 23 dez. 2019.
8
Também procurei dados de “pute”, com a construção [N-e], sem especificação de gênero, mas
nenhum foi encontrado.
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  127

informações. Dessa maneira, deixadas de lado as ocorrências nos comen-


tários em resposta às notícias e reportagens, os construtos compostos
por “puta” e “puto” evidenciariam avaliações sociais também “legitima-
das”: aquelas disponíveis e endossadas pelos veículos de comunicação.

Por fim, esclareço que foram descartadas todas as ocorrências de


“puto” como “dinheiro” (e.g., “Sem nenhum puto no bolso”) e de “puta”
como intensificador ou como interjeição (e.g., “Puta! Nunca imaginei
isso!”, “Eu tinha cada puta quebra-pau com os caras”, “Está virando um
puta de um mundo chato”).9 Por mais relevantes que esses dados se-
jam para a construção de redes construcionais, eles não se relacionam
imediatamente com o objetivo deste trabalho, visto que não apresen-
tam contrapartes femininas ou masculinas – ou seja, como “dinheiro”,
encontram-se apenas usos de “puto”, nunca da construção com a de-
sinência de feminino; como intensificador ou interjeição, encontra-se
apenas “puta”. Não há, portanto – pelo menos a priori –, diferenças
relacionadas a identidades de gênero. Indico, ainda, que alguns constru-
tos considerados “ambíguos” também foram excluídos da análise. Esses
casos são compostos por ocorrências cujos contextos não permitiam
garantir qual significado realmente estava em jogo. É bem verdade que,
enquanto usuário do português brasileiro, a minha intuição favorece
determinada interpretação em alguns casos e uma diferente em outros.
No entanto, optei por ater-me às informações realmente oferecidas nos
textos, evitando uma análise tendenciosa.

3. ENTRE SEXUALIZAÇÃO E IRRITABILIDADE:


RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram analisadas 56 ocorrências de “puta” e 26 de “puto”. Visto que a
coleta de dados se limitou ao primeiro semestre de 2019, não seria es-
perado que se encontrasse um número muito alto de ocorrências. Afinal,
trata-se de palavras de baixo-calão, não previstas, portanto, em textos
jornalísticos. Desse modo, cabe dizer que muitos desses textos, entre os

9
Para uma análise construcionista sobre “puta” como intensificador, remeto a Feltes e Borchert (2018).
128   —  Coleção Pesquisadores

dados encontrados, correspondem à fala de entrevistados ou entrevis-


tadas – especialmente daqueles identificados com o gênero masculino.
Como apontam Eckert e McConnell-Ginet (2003, p. 181), xingamentos e
palavras de baixo-calão não são vistos como apropriados para mulheres.

Esses dados foram divididos em duas categorias, de acordo com a


sua semântica: 1) referência sexual (e.g., “prostituta”, “prostituto”, ou
outra associação a práticas sexuais); e 2) estado ou condição de extrema
irritabilidade. Na tabela 1, apresento os percentuais de usos de “puta”
e “puto”, divididos por essas categorias semânticas.

Tabela 1 – Ocorrências dos usos de “puta” e “puto” a partir dos


significados associados a eles (em valores brutos e percentuais)
“PUTA” “PUTO”
Nº DE Nº DE
% %
OCORRÊNCIAS OCORRÊNCIAS
Referência sexual 53 95% 1 4%
Irritabilidade 3 5% 25 96%
Total 56 100% 26 100%
Fonte: Elaborado pelo autor.

De modo geral, os resultados evidenciam o que venho indicando:


enquanto “puta” associa-se muito fortemente à sexualização das refe-
rentes femininas (95%), os usos de “puto” conectam-se ao significado
de extrema irritabilidade (96%). Além dessas ocorrências, há três dados
de “puta” enquanto “mulher extremamente irritada” (5%) – um valor,
vale dizer, abaixo do esperado por mim, consideradas as minhas ex-
periências enquanto usuário da língua. Nota-se, enfim, um único dado
de “puto”, com a desinência de gênero masculino, associado a uma
referência sexual, o que apresentei como um significado pouco provável
para essa estrutura. Seguem alguns exemplos.
Instanciações de “puta”
(1) “Sempre vai ter um macho filho da puta para falar merda e sexualizar a
mulher, até quando a mulher tá fazendo uma piada, né?” (Folha de S. Paulo)
(2) “Tu é burro e um filho da puta de marca maior.” (GloboEsporte.com)
(3) “[...] eu não vou dizer que escrota é você, não vou chamar sua mãe de puta
como você xingou todas as mães [...]” (Diário do Centro do Mundo)
(4) “[...] porque foi muito humana em mostrar que estava triste, frustrada,
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  129

talvez muito puta da vida.” (Folha de S. Paulo)


Instanciações de “puto”
(5) “Depois de ter ficado puto, de ter chorado, agora eu vejo a questão com
outros olhos.” (O Globo)
(6) “O cara ficou puto e deu um soco no nariz dele.” (Correio Braziliense)
(7) “[...] e estava puto por estar ali [...]” (Extra)
(8) “Nem um ‘vadio’? Nem um ‘puto’? Nada. As pessoas que tratam o ho-
mem como ‘o garanhão’ são as mesmas que chamam a mulher de vadia, de
puta.” (UOL)

Começo a análise pelo exemplo (8), a única ocorrência de “puto”


com referência sexual, um valor que, segundo afirmei, tenderia a se dis-
tanciar da marcação morfológica de masculino. Esse dado representa o
depoimento de uma atleta, mulher, que, no período de uma competição,
engajou-se em práticas sexuais com outro atleta – um homem. Ela foi
bastante criticada por supostamente ter perdido o foco na competição; o
homem, por sua vez, não o foi. É nesse contexto que se insere o exem-
plo (8). Nele, nota-se que o construto “puto” emerge para constatar
uma falta: chama-se uma mulher de “puta”, torna-se a sua sexualidade
imprópria, ao passo que o homem, se sexualmente ativo, é avaliado
positivamente, e não há “puto” para descrevê-lo. A atleta, então, evoca
uma construção pouco comum – [puto] com valor sexual – para aludir
justamente à sua ausência de uso.

Além disso, ainda em referência aos construtos com “puto”, pude


notar que 68% de todas as ocorrências com valor de “homem extre-
mamente irritado” – 17 entre 25 dados – compunham-se pelo padrão
construcional [ficar (Adv.) puto], no qual [Adv.], opcional, tende a ser
materializado pelo advérbio “muito”. Destaca-se, pois, uma caracteri-
zação transitória, reforçada em algumas outras combinações também
observadas, ainda que bem menos frequentes: [estar puto], com quatro
ocorrências, [deixar puto], [ir puto] e [sair puto], cada uma atestada
uma única vez. Nesse sentido, podemos, por ora, estipular o esquema
[Vtransitório puto] como indicador de extrema irritabilidade, iniciado por um
verbo com semântica de “transitoriedade”, e afirmar que se observou,
de modo mais prototípico, uma única construção [puto], equivalente a
“homem extremamente irritado”.
130   —  Coleção Pesquisadores

Já quanto aos construtos com “puta”, observamos um cenário dis-


tinto. O significado mais recorrente refere-se à sexualização negativa de
uma mulher, apesar de também haver menções a uma mulher extrema-
mente irritada. No que tange à sexualização, 55% dos dados – ou seja,
31 entre 53 – instanciavam a construção [filh- da puta], cujo primeiro
elemento poderia ser materializado tanto no masculino como no femi-
nino – “filho” ou “filha”, a depender do referente. Ressalto, aqui, que
a construção [filh- da puta] tende a ser evocada, como um todo, a fim
de ofender o interlocutor. Retomo, porém, o exemplo (3), para indicar
que, apesar de esse xingamento funcionar como um bloco, ainda é
possível, no português brasileiro, uma leitura mais composicional – ou
seja, que mantenha vivos os significados de cada termo da construção
(cf. TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 19). Portanto, mesmo que, em geral,
se vise xingar o interlocutor, este pode interpretar como uma ofensa
(também) à sua mãe, que seria, então, pejorativamente associada a
uma prostituta.

Algumas outras construções também evocadas com referência sexual


a partir de “puta” incluem [ser (uma) puta], em quatro dados; [puta
que (te) pariu], em três dados; e [chamar (N) de puta], com cinco ocor-
rências, nas quais [N] pode se materializar como um pronome ou um
substantivo (que, por sua vez, pode também ser modificado por outros
nomes). Entretanto, nesses casos recomendo análise mais minuciosa,
especialmente porque houve outras ocorrências nas quais não pude
depreender claros padrões construcionais.

Volto-me agora aos usos de “puta” com significado de “mulher extre-


mamente irritada”. Apenas três construtos foram encontrados com essa
semântica. Desses três, duas instanciações aludiam à construção [puta
da vida] e, em uma delas, pressupunha-se o verbo “estar”, mencionado
no contexto imediatamente anterior, conforme indica o exemplo (4),
retomado abaixo como (9):
(9) “[...] Ou seja, porque foi muito humana em mostrar que estava triste, frus-
trada, talvez muito puta da vida.” (Folha de S. Paulo)
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  131

O terceiro dado de “puta” em menção à irritabilidade compunha-se,


sem dúvida, pela combinação [estar puta], reproduzida no exemplo (10):
(10) “Minha mãe [...], que costumava cantar e dançar ouvindo Vinicius, quando
estava puta mandava a gente pra ‘tonga da mironga do kabuletê’.” (O Globo)

Podemos, então, chegar a algumas conclusões. Primeiramente, os


construtos de “puta” demonstram associação a, de fato, duas cons-
truções, que tento diferenciar a seguir: [putasex.] enquanto “prostituta”
(ou outras referências sexuais feitas negativamente) e [putairrit.] como
“mulher extremamente irritada”, combinando-se, cada uma, com outras
diferentes construções. De todo modo, ao contrário do que se notou
para as ocorrências de “puto”, mais comuns como [putoirrit.], “homem
extremamente irritado”, a construção mais frequente é a de [putasex.],
com referência à sexualização pejorativa da mulher.

Além disso, o padrão construcional no qual a construção [putasex.]


mais prototipicamente se insere é [filh- da putasex.]. Em português brasi-
leiro, considerando-se diferentes variedades da língua, há algumas ou-
tras combinações que, de algum modo, assemelham-se à discutida aqui.
A figura 2 – um esboço de rede construcional – visa ilustrar essa ligação,
que, contudo, requer investigação mais detalhada. A esse esquema,
chamo de construção ofensiva de descendência, composta sempre por
[filh-] e por um [N] feminino, pois visa ofender o interlocutor por alusão
à sua mãe.
Figura 2
Esboço de rede para a construção ofensiva de descendência

Fonte: Elaborada pelo autor.

Outra conclusão que julgo interessante é esta: ambas as constru-


ções [putairrit.] e [putoirrit.] – talvez unificadamente esquematizadas como
132   —  Coleção Pesquisadores

[put-irrit.], associadas ao estado ou condição de extrema irritabilidade


– combinam-se a verbos cujo significado indica um caráter transitório.
Isso ganha particular relevância ao se notar que [putasex.], com refe-
rência sexual pejorativa à mulher, combina-se ao verbo “ser”, que, no
português brasileiro, associa-se a uma identificação mais permanente,
diferente, por exemplo, de “estar”. Dessa maneira, pode-se interpretar
a irritabilidade como uma característica temporária, tal qual em [estar
put-irrit.], ao contrário da sexualização negativa da mulher, que, conforme
se indica pelos usos linguísticos, seria mais estática, mais permanente,
mais identitária, por se evocar esquemas como [ser putasex.].10

Proponho, enfim, um segundo esboço de rede (figura 3) que também


demanda análises mais esmiuçadas e comprovações mais sistemáticas.
A esse esquema, indico que se denomine construção de extrema irritabi-
lidade, iniciada por um verbo de semântica atrelada à transitoriedade, ao
qual se segue a construção [put-irrit.], com a desinência de gênero mascu-
lino ou feminino, a depender do referente. A linha preenchida, ao con-
trário das pontilhadas, indica um vínculo mais forte com a construção.
Figura 3
Esboço de rede para a construção de extrema irritabilidade

Fonte: Elaborada pelo autor.

Ligam-se a esse esquema algumas outras combinações nas quais


se observam outras caracterizações dos referentes, em geral mais
brandas, por meio de adjetivos, como [irritad-], [chatead-] ou [bolad-],
sempre denotando algum nível de irritabilidade ou emoção comparável.

10
Poderíamos postular uma construção [put-sex.], válida para os gêneros feminino e masculino, analog-
amente a [put-irrit.]. No entanto, visto que apenas um dado de “puto” com valor sexual foi encontrado
e especialmente porque essa ocorrência nasce a partir de uma menção à “puta”, acredito que se deva
destacar a relevância do feminino na representação mental dessa construção.
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  133

No entanto, não é minha intenção, por ora, identificar os limites entre


tais combinações e, por isso, deixo aqui apenas esta indicação.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Na última seção, busquei evidenciar que, de fato, os usos de “puta” ten-
dem a instanciar uma referência pejorativa à sexualização feminina, en-
quanto as ocorrências de “puto”, de modo geral, bloqueiam referência
semelhante ao gênero masculino. Apontei, ainda, que os usos de “puto”
estão amplamente associados à semântica de “homem extremamente
irritado” e que o significado de “mulher extremamente irritada” também
se encontra entre as instanciações de “puta”, apesar de os dados ana-
lisados demonstrarem baixa frequência nesse último caso. Notam-se,
então, dois padrões construcionais distintos armazenados na mente dos
sujeitos: [putasex.], cuja semântica associa-se à sexualização feminina
negativa, e [put-irrit.], que, combinado às construções desinenciais de
gênero [N-a] ou [N-o], veicula um significado de alta irritabilidade.11

Falta, contudo, responder a duas perguntas, às quais optei por me de-


bruçar apenas ao final deste texto, por serem as questões que mais me
interessam e que decorrem de toda a discussão empreendida até aqui.
1) Se o significado de irritabilidade está disponível tanto para “puta” quanto
para “puto”, por que há pouquíssimos dados de “puta”, enquanto “mulher
extremamente irritada”, e muitas ocorrências de “puto”, como “homem extre-
mamente irritado”?

2) De que modo os usos de “puta” e “puta” ajudam a favorecer a hierarquia


de gênero encontrada na sociedade brasileira?

Eckert & McConnell-Ginet (2003, p. 182) afirmam que a raiva é a emo-


ção que os homens mais estão autorizados a demonstrar; uma emoção
tipicamente masculina, esperada, tolerada e, por vezes, estimulada.
Dessa forma, constrói-se em sociedade o gênero masculino como mais
raivoso e, assim, mais agressivo. É dessa agressividade, conforme acre-
11
Aparentemente, nada impede que a construção [put-irrit.] se combine com a construção desinencial
de gênero [N-e], dissociada da especificação de gênero masculino ou feminino. Não a incluí no texto
apenas porque não houve ocorrências de “pute” entre os dados analisados.
134   —  Coleção Pesquisadores

dito, que muitos homens se valem para se demonstrar fortes e, portan-


to, ocupantes de posições mais altas na hierarquia social de gênero.
Então, se a raiva e a agressividade são reconhecidas como característi-
cas tipicamente masculinas, a nossa sociedade, orientada por ideias e
padrões sexistas e misóginos, tende a desvincular as mulheres dessas
emoções. Afinal, de acordo com a nossa tradição social (que, afirmo,
deve ser questionada), entendem-se os corpos e as identidades femini-
nas a partir do gênero masculino e para sua satisfação.

Certamente, muitas mulheres – e alguns homens, mas é delas este


cenário – lutam contra essa subserviência às quais muitos tentam
submetê-las. No entanto, recordo que a maioria dos dados discutidos
aqui representa depoimentos de homens. Daí se conclui que os usos
de “puta” e “puto” e os valores que assumem partem, sobretudo, de
um ponto de vista masculino. Portanto, visto que os homens ocupam
posições mais altas na hierarquia de gênero, é explicável que as ocor-
rências de “puta” tenham desfavorecido identidades femininas – menos
irritadas e mais marcadamente sexualizadas – e beneficiado identidades
masculinas – mais irritados, agressivos e, assim, poderosos. Reitero que
usos semelhantes aos de “puto” para reforçar a irritabilidade e a agres-
sividade masculina também poderiam ser feitos em referência a mulhe-
res, por meio de “puta”, estrutura linguística análoga. Isso, porém, não
se faz tão comumente. Defendo que tenhamos ciência disso e de outras
práticas sexistas e misóginas, a fim de que possamos combatê-las.

Encerro este trabalho com a indicação de que novas investigações


podem ser feitas, com vistas a detalhar melhor algumas questões já
mencionadas aqui – entre as quais destaco as diferenças entre [filh- da
puta], [filh- da mãe] e construções correlatas.
Andrei Ferreira de Carvalhaes Pinheiro   —  135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOMMAERT, J. A messy new marketplace. e as perspectivas de compatibilização. In:
In: ___. The sociolinguistics of globalization. ___. (orgs.). Dimensões e experiências em
Cambridge: Cambridge University Press, sociolinguística. Rio de Janeiro: Blücher,
2010. p. 28-62. 2012. p. 85-120.
BYBEE, J. A usage-based perspective on MOITA-LOPES, L. P. On being white,
language. In: ___. Language, usage and heterosexual and male in a Brazilian school:
cognition. Cambridge: Cambridge University multiple positionings in oral narratives. In:
Press, 2010, p. 1-13. DE FINNA, A.; SCHIFFRIN, D.; BAMBERG, M.
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua (orgs.). Discourse and identity. Cambridge:
portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970. Cambridge University Press, 2006. p. 288-313.

CARVALHO, W. B. de. Sobre pipocos e OSTERMANN, A. C.; KELLER-COHEN, D. “Good


dicionárias: uma abordagem construcionista girls go to heaven; bad girls…” learn to be
e relativista de flexão de gênero. 2019. good: quizzes in American and Brazilian
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de teenage girls’ magazines. Discourse &
Letras, Universidade Federal do Rio de Society, v. 9, n. 4, p. 531-558, 1998.
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. OSTERMANN, A. C.; MOITA-LOPES, L. P.
CHAIN, S. P. Classificações gramaticais da Language and gender research in Brazil:
palavra puta. Revista Odisseia, v. 3, p. 145- an overview. In: EHRLICH, S.; MEYERHOFF,
162, 2018. M.; HOLMES, J. (orgs.). The handbook of
language, gender and sexuality. 2 ed.
ECKERT, P.; McCONNELL-GINET, S. Language Oxford: Wiley Blackwell, 2014. p. 412-430.
and gender. Cambridge: Cambridge
University Press, 2003. PINHEIRO, D. Um modelo gramatical para a
linguística funcional-cognitiva: da gramática
FELTES, H. P. de M.; BORCHERT, M. de construções para a gramática de
Construções superlativas do português construções baseada no uso. In: ALVARO, P.
brasileiro: tri [X], baita [X] e puta [X]. Fórum T.; FERRARI, L. (orgs.) Linguística cognitiva:
Linguístico, v. 15, p. 3066-3086, 2018. dos bastidores da cognição à linguagem.
GONÇALVES, C. A. Iniciação aos estudos Campos: Brasil Multicultural, 2016. p. 20-41.
morfológicos: flexão e derivação em TRAUGOTT, E.; TROUSDALE, G. The
português. São Paulo: Contexto, 2011. framework. In: ___. Constructionalization
LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. and constructional changes. Oxford: Oxford
Tradução: Marcos Bagno, Marta University Press, 2013, p. 1-44.
Scherre e Carolina Cardoso. São Paulo: VAN DAMME, E. Gender and sexual scripts
Parábola Editorial, 2008. [Título original: in popular US teen series: A study on
Sociolinguistic Patterns, 1972.] the gendered discourses in One Tree
MACHADO VIEIRA, M. dos S.; WIEDEMER, Hill and Gossip Girl. Catalan Journal of
M. L. Sociolinguística variacionista e Communication & Cultural Studies, v. 2,
gramática de construções: os desafios n. 1, p. 77-92, 2010.
8
“O Coração Dispara Sempre
Que o Vê” – A Competição entre
“Sempre Que” e “Toda Vez Que” em
Orações Hipotáticas no Português
Brasileiro Contemporâneo
Maria Maura Cezario (UFRJ/UFRN/CNPq-Capes)
Beatriz Lones (CNPq/PIBIC)

– INTRODUÇÃO –
Este capítulo trata dos usos de construções adverbiais temporais ini-
ciadas pelas formas “sempre que” e “toda vez que” no português do
Brasil. A linha teórica adotada é a da linguística funcional centrada no
uso, a partir da qual procuraremos verificar a motivação para o uso
das formas consideradas sinônimas pela visão tradicional. Cada forma,
“sempre que” e “toda vez que” é uma microconstrução de uma cons-
trução maior formadora de construções conectivas com várias funções,
a construção [X que]CONECT (cf. SILVA; CEZARIO, 2019). As formas aqui es-
tudadas têm papel dentro de uma construção maior, que é a cláusula
adverbial temporal [CONECT V]CL HIP TEMP.

Nos compêndios das gramáticas tradicionais, classificam-se as ora-


ções de um período composto em coordenadas e em subordinadas.

— 137 —
138   —  Coleção Pesquisadores

Normalmente, se diz que uma oração é coordenada quando não há


dependência sintática, e subordinada quando depende sintaticamente
de outra oração para estabelecer seu sentido completo. Essas orações
consideradas subordinadas são classificadas como adverbiais, adjetivas
ou substantivas, a depender da função sintática que exercem na frase.

Dessa maneira, as orações subordinadas adverbiais, por exemplo,


exercem a função de advérbio e funcionam como um adjunto adverbial,
podendo ser classificadas como causais, comparativas, concessivas,
condicionais, conformativas, consecutivas, finais, temporais e propor-
cionais. Nessa perspectiva, nosso objeto de estudo constitui o que a
gramática tradicional classifica como uma oração adverbial temporal,
já que as orações por nós analisadas manifestam uma circunstância de
tempo, exercendo, então, a função de advérbio, e são introduzidas por
conjunções adverbiais – neste caso, “sempre que” e “toda vez que”.

No que tange ao uso das orações adverbiais temporais, autores como


Bechara (2000), Neves (2000) e Cunha e Cintra (2008) postulam que, em
linhas gerais, essas orações apresentam uma circunstância de tempo,
tal como apresentado, especificamente, na gramática de Cunha e Cintra.
Bechara aponta que uma oração é considerada adverbial temporal quan-
do “denota o empo da realização do fato expresso principal” (p. 502)
dividindo-as de acordo com o tempo expresso na oração adverbial a
depender das conjunções e locuções temporais que apresentam (tempo
anterior: antes que; tempo posterior: depois que; frequentativo: sempre
que; concomitante: enquanto etc.). Neves, por fim, classifica as orações
adverbiais temporais levando em consideração o que as conjunções
apresentam (um advérbio, uma preposição, um sintagma nominal etc.).

Outro ponto de convergência entre esses autores diz respeito ao fato


de que, ao explicitar as locuções conjuntivas1 das orações adverbiais
temporais, todos eles apresentam a forma “sempre que” em seus exem-
plos. Todavia, em nenhuma gramática encontramos “toda vez que”, ape-
nas a forma “todas as vezes que”, citada pelos três autores em questão.
1
Este é um termo utilizado por Neves (2000) para fazer referência às conjunções temporais que apre-
sentam o elemento que ao final, tais como “sempre que”, “desde que”, “todas as vezes que” etc.
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  139

No entanto, segundo a teoria funcionalista, sob a qual nos baseamos


para desenvolver esta pesquisa, além desses dois procedimentos sin-
táticos (coordenação e subordinação), haveria, pelo menos, mais uma
possibilidade de as cláusulas se relacionarem umas às outras: por hipo-
taxe. Para compreender o processo de hipotaxe, os trabalhos de Halliday
(1985), Matthiessen e Thompson (1988) e Hopper e Traugott (1993) são
fundamentais, visto que, para esses autores, há uma diferença signi-
ficativa entre o que se chama de encaixamento e o que se chama de
combinação de cláusulas. Para eles, a noção de encaixamento está re-
lacionada à subordinação em seu sentido estrito, enquanto a noção de
combinação está associada à coordenação, chamada de parataxe, e à
hipotaxe, cujo processo se difere dos anteriores. Em linhas gerais, na
visão desses autores, há cláusulas que se combinam por coordenação
(parataxe) e há cláusulas que se combinam, ainda, por hipotaxe, de
modo que essa relação poderia ser descrita de forma tripartite: subordi-
nação (encaixamento), hipotaxe e parataxe (coordenação).

De acordo com a proposta desses autores, as orações denominadas


subordinadas ou encaixadas são aquelas que são partes constituintes
de outras, tais como as substantivas e as adjetivas restritivas; já as
denominadas hipotáticas são aquelas que envolvem algum tipo de re-
lação circunstancial, como condição, razão, propósito, tempo, espaço,
meio, como as adverbiais e as adjetivas explicativas; as paratáticas ou
coordenadas não se encaixam em nenhuma outra. Dessa forma, o que
tradicionalmente é chamado de “subordinação adverbial”, na verdade,
constitui, para esses autores, um caso de hipotaxe circunstancial ou de
realce, visto que, nesse caso, não há encaixamento de uma cláusula em
outra, como na subordinação substantiva e adjetiva, mas uma combi-
nação hipotática de realce, isto é, quando uma cláusula amplia outra
circunstancialmente (RODRIGUES, 2017).

Em função dessa divisão estabelecida entre esses procedimentos


sintáticos, pode-se propor um continuum que parte da subordinação,
onde estariam as subordinadas substantivas e as adjetivas restritivas;
segue em direção às combinadas por hipotaxe, abarcando, também, as
adjetivas explicativas; e, ainda no âmbito da combinação, viriam, por
140   —  Coleção Pesquisadores

fim, os casos de coordenação ou parataxe. Dessa forma, nosso objeto


de estudo estaria localizado no centro desse continuum, uma vez que as
orações por nós analisadas se combinam à oração principal apresentan-
do uma circunstância de tempo que se amplia de uma cláusula à outra,
constituindo, assim, o que chamamos de oração hipotática.

Ao longo deste trabalho, nos propomos a analisar o uso dessas


orações hipotáticas, mais precisamente as que são introduzidas por
“sempre que” e “toda vez que” no português brasileiro contemporâ-
neo. Temos como objetivo mapear diferenças e semelhanças no que diz
respeito ao uso dessas microconstruções na oração e, além disso, bus-
camos encontrar um padrão mais geral que instancie essas duas micro-
construções na mente do falante. Com isso, tentaremos compreender,
então, o que levaria o falante a escolher uma ou outra em determinados
contextos, de acordo com suas possíveis especificidades de uso. Os
exemplos (1) e (2), a seguir, ilustram o fenômeno:
(1) “...Sente vontade de abraçá-la e beijá-la. As pernas bambeiam. O coração
dispara, sempre que o vê. Você dá alguns sinais para que a pessoa te perce-
ba...” (Corpus do Português)

(2) “...Estamos correndo contra o tempo. Sohana precisa de tratamento agora,


não daqui a dez anos. Toda vez que ela perde um pedaço de pele ela grita
de dor. Eu não posso fazer nada para protegê-la, e isso corta meu coração.”
(Corpus do Português)

No exemplo (1), a oração hipotática, em negrito, foi introduzida pela


microconstrução “sempre que”, e, no que diz respeito à ordenação li-
near da sentença, se encontra após a oração principal, também chama-
da de oração matriz ou nuclear.2 Já no exemplo (2), a oração hipotática
foi introduzida pela microconstrução “toda vez que” e se encontra na
posição anteposta. Esses dois usos são, portanto, o nosso objeto de
análise, que tem como base os pressupostos teóricos da linguística fun-
cional centrada no uso (LFCU) e é caracterizada por se valer de um olhar
tanto qualitativo como quantitativo.
2
Ao longo deste texto, adotaremos a nomenclatura “oração principal” para fazer referência a essa
oração na sentença.
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  141

A hipótese que norteia o desenvolvimento desta pesquisa diz res-


peito à variação entre essas duas microconstruções. Acreditamos que,
embora se apresentem em contextos semelhantes, sendo, inclusive, in-
tercambiáveis em alguns deles, elas não seriam sinônimas. Para isso, to-
mamos por base o princípio funcionalista da não sinonímia (GOLDBERG,
1995), o qual prevê que, se existem formas diferentes na língua, haverá,
também, funções comunicativas diferentes. Nesse sentido, acreditamos
que essas microconstruções apresentariam especificidades estruturais,
semânticas e/ou pragmáticas, as quais estariam motivando a escolha do
falante no ato comunicativo.

Para verificar, então, quais seriam essas especificidades, estabele-


cemos, a princípio, um banco de dados com um total de 200 registros,
sendo 100 dados para cada microconstrução. Essa coleta foi realizada
no Corpus do Português, especificamente na aba Web,3 a qual agrega
textos de diferentes domínios discursivos, oriundos de quatro varieda-
des do português: português do Brasil (PB), português de Portugal (PT),
português de Moçambique (MZ) e o português da Angola (AG). Em uma
análise inicial dos dados, observamos que pode haver diferenças em re-
lação à posição da oração hipotática; à integração entre esta e a oração
principal; aos tipos verbais que preenchem o slot V da oração hipotática;
e à animacidade e agentividade do sujeito dessas orações.

Sendo assim, este trabalho tem como objetivo traçar um panorama


geral acerca das orações hipotáticas introduzidas por “sempre que” e
“toda vez que”. Para isso, utilizaremos como referencial teórico a LFCU
para verificar as possíveis tendências de uso dessas microconstruções,
em que medida elas se diferem ou se assemelham, e quais são os fato-
res, de ordem estrutural, semântica e/ou pragmática, que influenciam
no uso de uma ou outra no momento da enunciação.

1. LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO


Esta pesquisa tem como base teórica a LFCU (BYBEE, 2010; TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2013; FURTADO DA CUNHA, BISPO E SILVA, 2013), que traz
3
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org/web-dial/. Acesso em: 12 dez. 2019.
142   —  Coleção Pesquisadores

pressupostos do funcionalismo norte-americano, da gramática de cons-


truções e da linguística de corpus. Caracteriza-se por conceber a lin-
guagem como um instrumento de interação social e por buscar no uso
real da língua, isto é, no contexto discursivo, a motivação para os fatos
que nela ocorrem. Na perspectiva da LFCU, o sistema linguístico “tem
um caráter eminentemente dinâmico ou emergente, já que nasce da
adaptação das habilidades cognitivas humanas a eventos de comuni-
cação específicos e se desenvolve a partir da repetição ou ritualização
desses eventos” (MARTELOTTA, 2011). Isso significa dizer que há uma
interdependência entre a gramática da língua e seu uso real, de modo
que o uso se constitui a partir da gramática e a gramática é concebida
por meio do uso. Em outras palavras, há uma relação simbiótica – um
favorecimento mútuo – entre a gramática e o discurso, já que a estru-
tura linguística se renova constantemente devido ao fato de os falantes
estarem a todo momento criando novos padrões gramaticais para os
diferentes propósitos comunicativos.

Os funcionalistas advogam que a gramática de uma língua é enten-


dida como uma rede de construções, isto é, um pareamento de forma
e função que se interliga a partir de links e que se organiza de forma
hierárquica na mente do falante. Dessa forma, em uma análise de cunho
funcionalista, o pesquisador parte do uso real da língua para observar
sua estrutura gramatical (forma) e o contexto comunicativo em que foi
utilizada (função), caracterizando, assim, o que constitui uma constru-
ção linguística: a relação direta e indissociável entre a forma e a função.

Nessa perspectiva construcional, autores como Traugott e Trousdale


(2013) postulam que a análise de uma dada construção deve ser reali-
zada com base nos seguintes níveis construcionais: I) esquema, nível
que está no campo de análise mais abstrato; II) subesquema, que se
caracteriza por ser um nível menos abstrato que o anterior; e III) micro-
construção, o nível menos abstrato da rede, onde se tem, normalmente,
todos os slots da construção preenchidos. Para que isso seja exempli-
ficado, a figura 1 apresenta uma proposta de rede construcional das
microconstruções aqui analisadas.
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  143

Figura 1
Rede construcional das orações hipotáticas temporais

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Nessa proposta de rede, tem-se, no nível mais abstrato, alguns slots


que ainda não foram preenchidos pelos itens da construção, o que confi-
gura um padrão mais genérico na mente do falante. No segundo nível, o
subesquema, há uma pequena especificação de um desses slots, sendo,
portanto, um nível menos abstrato que o anterior e que já apresenta uma
restrição quanto aos itens que podem figurar nesse slot. Já o terceiro
nível, o da microconstrução, se caracteriza por ser acessado diretamente
pelo falante, uma vez que os slots da construção já estão devidamente
preenchidos. Vale ressaltar que o uso das reticências sinaliza a continui-
dade da oração hipotática introduzida por essas microconstruções.

Como citado anteriormente, a LFCU possui uma gama de pressupos-


tos clássicos que norteiam as análises linguísticas de orientação funcio-
nalista, muitos dos quais ainda se fazem presentes juntamente com os
pressupostos oriundos da linguística cognitiva. Aqui, no entanto, serão
apresentados os pressupostos teóricos de maior relevância para o de-
senvolvimento deste estudo, que são: o papel da frequência (BYBEE,
2010); a informatividade (GIVÓN, 1990. FURTADO DA CUNHA, RIOS DE OLI-
VEIRA, MARTELOTTA, 2003; CHAFE, 1980. ANTONIO, 2004); e o princípio da
não sinonímia (GOLDBERG, 1995; 2006).

Na perspectiva da LFCU, a frequência de uso é extremamente im-


portante na estruturação, manutenção e funcionamento do sistema
144   —  Coleção Pesquisadores

linguístico. Segundo Bybee (2003, 2010, 2015), o nosso sistema é evi-


dentemente guiado pela experiência real, efetiva, de modo que a alta
frequência de determinadas construções na língua faz com que sejam
mais acessíveis na mente do falante, enquanto a baixa a frequência, por
outro lado, favorece a redução gradual dessas construções, tornando-as
cada vez mais obsoletas na língua.

Um conceito muito importante para os estudiosos da linha funciona-


lista é a informatividade, que se refere ao modo como os falantes codifi-
cam as informações no momento da interação com os interlocutores. De
acordo com essa ideia, entende-se que o falante tende a organizar o seu
discurso levando em consideração o conhecimento do seu interlocutor,
pressupondo o que ele já conhece do que será falado, o que ele pode
facilmente acessar a partir de uma inferência e o que é uma informação
totalmente nova para ele. A essas três categorias dá-se o nome, res-
pectivamente, de informação velha, isto é, o que já foi mencionado no
discurso, informação inferível, o que não foi mencionado mas é possível
acessar a partir do contexto, e informação nova, que caracteriza o que é
novo no discurso, ou seja, introduzido pela primeira vez.

Tal como apontam Furtado da Cunha, Rios de Oliveira e Martelotta


(2003), a informatividade pode ser observada na organização das in-
formações na cláusula por meio da oposição dicotômica entre tema e
rema. Isso ocorre porque em uma análise funcionalista, a posição que
os termos ocupam na sentença diz muito sobre o tipo de informação
que eles veiculam. Dessa maneira, estabeleceu-se que as informações
velhas são tidas como tema, as quais tendem a ocupar as posições
iniciais da cláusula, e as informações novas são tidas como rema, e ten-
dem a ocupar as posições finais da cláusula. Antonio (2004) aponta que
as orações hipotáticas, sobre as quais se detém esta pesquisa, quando
apresentam uma informação nova, tendem a ocorrer após a oração prin-
cipal, e, quando se referem a uma informação já fornecida ou conhecida
pelo interlocutor, normalmente são anteriores à oração principal.

O princípio da não sinonímia prevê que, se duas construções são


sintaticamente distintas, semântica ou pragmaticamente elas também
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  145

se diferem (GOLDBERG, 1995). Em linhas gerais, segundo esse princí-


pio, se há uma mudança na forma da construção, haverá, então, uma
função comunicativa diferente vinculada a ela, de modo que não há
construções distintas que evidenciem significados iguais. É este o ponto
crucial que norteia esta pesquisa: acreditamos que, por serem formal-
mente distintas, as microconstruções “sempre que” e “toda vez que”
são, também, semântica ou pragmaticamente distintas e, por esse mo-
tivo, apresentariam propriedades específicas ao introduzirem orações
hipotáticas no PB.

Após essa apresentação dos pressupostos fundamentais para o de-


senvolvimento deste estudo será apresentado, na seção seguinte, os
procedimentos metodológicos com utilizados.

2. METODOLOGIA
No que diz respeito à metodologia, utilizamos o Corpus do Português,
aba Web, para a coleta de dados. É um corpus on-line que reúne uma
série de textos de diferentes gêneros discursivos (jornalístico, acadêmi-
co, ficcional, digital), desde o século XIII até o século XXI, oriundos de
quatro variedades do português (Brasil, Portugal, Moçambique e Ango-
la), totalizando em sua composição aproximadamente 45 milhões de
palavras. Em 2016, adicionou-se a esse banco de dados uma nova aba
de coleta, a aba Web, que possui cerca de 1,4 bilhão de palavras em sua
totalidade, provenientes, também, das quatro variedades do português.
Essa nova ferramenta contém registros extraídos do domínio da inter-
net, nos anos de 2013 e 2014, retirados majoritariamente de sites e blogs
com diferentes temáticas. É dessa nova adição ao Corpus do Português
que foram coletados os dados dessa pesquisa.

No que se refere ao processo de busca, o corpus disponibiliza um es-


paço que permite pesquisar palavras únicas, frases, combinações entre
palavras e por classe gramatical. Sendo assim, buscamos pelas micro-
construções “sempre que” e “toda vez que” e obtivemos um total de
81.720 e 11.625 ocorrências, respectivamente, em todo o corpus, conta-
146   —  Coleção Pesquisadores

bilizando as quatro variedades do português. Em termos de frequência,


é possível perceber que a microconstrução “sempre que” é bem mais
frequente que “toda vez que” no português, independentemente da
variedade. Devido a esses números consideravelmente altos, optamos
por estabelecer, a priori, a coleta das 100 primeiras ocorrências que
apareceram no corpus, de cada microconstrução, totalizando, então, 200
dados. É importante ressaltar que, para controlar o tipo de variedade
do português, uma vez que somente o PB foi considerado, partimos da
própria distinção feita pelo corpus ao listar essas ocorrências diferen-
ciando-as com as siglas referentes às determinadas variedades.

Vale destacar, ainda, que, entre as 100 primeiras ocorrências da mi-


croconstrução “sempre que” no corpus, encontramos alguns casos que
apresentavam um adjetivo após a microconstrução, tais como “sempre
que possível” e “sempre que necessário”. Essas ocorrências foram co-
letadas, mas, por ora, não foram analisadas, pois não apresentavam
propriamente uma oração hipotática sendo introduzida pela micro-
construção em questão. Todavia, a análise futura desses registros será
importante para compreender as possíveis especificidades de uso de
“sempre que” e “toda vez que”, uma vez que só foram encontrados ad-
jetivos após a microconstrução “sempre que”, ao passo que com “toda
vez que” isso não ocorreu. Esse levantamento pode apontar que a mi-
croconstrução “sempre que”, nesse caso, estaria figurando em um slot
de outra construção, descrita como [sempre que + adjetivo], indicando
que essa microconstrução possui uma maior tendência à formação de
chunking na língua.

A propósito das especificidades de uso de ambas as microconstru-


ções, uma vez feita a coleta de dados, partimos, então, para a análise.
Nossa pesquisa tem por base os seguintes fatores de análise: I) posição
da oração hipotática face à principal, isto é, observamos se a oração
hipotática está anteposta, intercalada ou posposta à oração principal;
II) modo e tempo verbal da oração hipotática; III) simultaneidade tem-
poral, ou seja, observamos se o tempo verbal das duas orações é igual
ou diferente; IV) correferencialidade do sujeito, ou seja, observamos se
os sujeitos das duas orações são iguais ou diferentes; e V) item verbal.
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  147

3. USOS DE ORAÇÕES COM “SEMPRE QUE”


E “TODA VEZ QUE”: ANÁLISE DE DADOS
Esta seção tem como objetivo apresentar um panorama geral dos re-
sultados obtidos, até o presente momento, a partir da análise do banco
de dados estabelecido para esta pesquisa. Retomamos nossa hipótese
de que, apesar de se apresentarem em contextos semelhantes, sendo
aparentemente intercambiáveis, as microconstruções “sempre que” e
“toda vez que” apresentam tendências de uso distintas, o que as faria
atuar em contextos específicos, a depender das necessidades comunica-
tivas do falante. Em outras palavras, defendemos a ideia de que essas
microconstruções não são sinônimas, o que nos propomos a atestar por
meio do grupo de fatores com os quais trabalhamos. Os resultados apre-
sentados serão referentes a 100 dados de orações hipotáticas introduzi-
das por “sempre que” e 100 dados de orações hipotáticas introduzidas
por “toda vez que”.

3.1 Posição da oração hipotática face à principal


Para verificarmos se há diferença de uso entre as microconstruções,
analisamos o padrão sintático “posição da oração adverbial” face à ora-
ção principal. Os resultados (gráficos 1 e 2) nos mostram que as duas
microconstruções tendem a introduzir orações hipotáticas mais ante-
postas à oração principal, sendo 57% dos dados com a microconstrução
“sempre que” e 73% dos dados com “toda vez que”. Isso corrobora di-
versos trabalhos na literatura que já apontavam que as orações tempo-
rais tendem a estar predominantemente antepostas à oração principal.
Os gráficos abaixo ilustram o percentual de uso de cada microconstrução
em relação à posição das orações.
148   —  Coleção Pesquisadores

Gráfico 1
Posição da oração hipotática face à principal: “sempre que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Gráfico 2
Posição da oração hipotática face à principal: “toda vez que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Ao analisarmos os gráficos, observamos que, embora as duas micro-


construções tendam a introduzir orações mais antepostas, esse percen-
tual é consideravelmente maior com “toda vez que”, a qual apresenta
um total de 73% dos casos contra 57% de “sempre que”. Da mesma
forma ocorre com as orações pospostas, as quais possuem um menor
percentual de ocorrência como um todo, mas apresentam um maior
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  149

número de casos com a microconstrução “sempre que” se comparada


a “toda vez que”, sendo 42% contra 21%, respectivamente. Isso aponta
que essas duas microconstruções se diferem, de certa forma, no que diz
respeito à posição: ainda que ambas tendam a introduzir orações mais
antepostas, a microconstrução “toda vez que” parece ser a mais recru-
tada para essa função, enquanto o lugar da posposição parece estar
mais relacionado ao uso de “sempre que”.

A partir desse pressuposto, pode-se conjecturar que as orações in-


troduzidas por “sempre que” possuem uma maior tendência a apre-
sentar uma informação nova (GIVÓN, 1990; PRINCE, 1981; CHAFE, 1980;
ANTONIO, 2004), já que é a mais recrutada para a posposição, ao passo
que as orações introduzidas por “toda vez que” tenderiam a codificar
uma informação velha (ou “dada”), já que tendem a introduzir orações
hipotáticas mais antepostas à principal se comparada aos usos de “sem-
pre que”. Nos exemplos a seguir é possível verificar essa distribuição.
(3) “...A casa ficou com a família por muitos mais anos [...]. Hoje a visito sem-
pre que o meu inconsciente busca um cenário familiar para os meus sonhos...”
(Corpus do Português)

(4) “Tomo remédio anticoncepcional há três meses, e no último mês passei


muito mal. Toda vez que comia, tinha enjoos e chegava a vomitar.” (Corpus
do Português)

(5) “Mas se você se queixar: Por que, toda vez que eu tenho algum amor novo
em meu coração, esse amor é desafiado? então você ainda não compreendeu
a finalidade de sua vida aqui.” (Corpus do Português)

O exemplo (3) se caracteriza pelo uso de “sempre que” introduzin-


do uma oração hipotática posposta à principal, sinalizadas em negrito
e em itálico, respectivamente. Já no exemplo (4), há um uso de “toda
vez que” introduzindo uma oração hipotática anteposta à principal.
O exemplo (5), por fim, foi escolhido para ilustrar um caso de oração
hipotática intercalada,4 isto é, uma oração hipotática que ocorre no meio
da oração principal.

4
Vale destacar que embora tenha havido casos de orações intercaladas com as duas microconstruções,
o exemplo em questão é um registro de “toda vez que” devido ao maior número de ocorrências com
essa microconstrução: 6 ocorrências com “toda vez que” contra apenas 1 com “sempre que”.
150   —  Coleção Pesquisadores

3.2 Modo e tempo verbais da oração hipotática


Analisamos o modo e o tempo verbais das orações hipotáticas para
observarmos se há diferenças quanto a esses usos e verificarmos se há
alguma relação com a questão da subjetividade ligada ao modo subjun-
tivo e aos tempos irrealis (cf. GIVÓN, 1990). Sendo assim, constatamos
que, com ambas as microconstruções, há uma predominância do pre-
sente do indicativo, constituindo 61% dos dados com “sempre que” e
87% dos dados com “toda vez que”. Além do presente, essas orações
apresentam outros tempos verbais, como o pretérito imperfeito, o pre-
térito perfeito e o futuro; além do modo indicativo, também se verifica o
uso do modo subjuntivo. Os gráficos 3 e 4 evidenciam o quantitativo de
ocorrências para cada tempo e modo verbal de cada microconstrução.
Gráfico 3
Modo e tempo verbal da oração hipotática “sempre que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.


Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  151

Gráfico 4
Modo e tempo verbal da oração hipotática “toda vez que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.

No que diz respeito à microconstrução “sempre que”, das 61 ocor-


rências que se encontram no modo indicativo, 53 delas se caracterizam
pelo uso do presente; 7 pelo uso do pretérito imperfeito; e apenas 1
ocorrência com o pretérito perfeito. Quanto ao uso do subjuntivo, das 39
ocorrências, 30 aparecem no futuro, apenas 8 no presente e somente 1
no pretérito imperfeito.

Em contrapartida, sobre a microconstrução “toda vez que”, das 87


ocorrências no modo indicativo, 67 delas aparecem no presente, 17 no
pretérito imperfeito e apenas 3 no pretérito perfeito. Quanto ao uso do
subjuntivo, das 13 ocorrências, 12 se caracterizam pelo uso do futuro
e apenas 1 pelo uso do pretérito imperfeito. Tendo havido apenas uma
ocorrência no pretérito perfeito do indicativo com a microconstrução
“sempre que” e apenas uma ocorrência no pretérito imperfeito do sub-
juntivo com “toda vez que”, esses casos seguem nos exemplos a seguir.
(6) “Aqui queria agradecer de público, pois, sempre que precisei a PM estava lá,
pronta para servir, e acredito que aqueles que falam mal da PM é porque tem al-
guma mágoa, tenho as minhas, mas não vou generalizar.” (Corpus do Português)
152   —  Coleção Pesquisadores

(7) “Pelo contrário, melhor seria se tivéssemos um presidente do COB for-


te, destemido, que as pessoas respeitassem e não temessem. Que elogiasse
quando devesse. Mas que fosse suficientemente corajoso, desprendido, para
criticar toda vez que o Ministro do Esporte errasse.” (Corpus do Português)

Uma diferença significativa quanto ao uso de “sempre que” e “toda


vez que” em relação ao tempo e ao modo verbal é que, embora as duas
tendam a introduzir orações hipotáticas majoritariamente no presente
do indicativo, o número de ocorrências que aparecem no subjuntivo
com a microconstrução “sempre que” é relativamente grande se compa-
rado ao número de ocorrências com “toda vez que”, sendo 39% contra
13%, respectivamente. Isso ocorre principalmente nos casos de futuro
do subjuntivo, os quais representam um total de 30 ocorrências com
“sempre que” e apenas 12 com “toda vez que”. Isso demonstra que a
microconstrução “sempre que” é a mais acessada para introduzir ora-
ções mais subjetivas, com caráter mais hipotético em comparação ao
uso de orações com “toda vez que”.

3.3 Simultaneidade temporal


Segundo o subprincípio da integração do princípio da iconicidade (cf. GI-
VÓN, 1990; 1995), o que está mais próximo cognitivamente é codificado
linguisticamente de modo mais integrado. Assim, para verificar o grau
de integração de orações, autores como Givón propuseram verificar se
o tempo do evento da oração principal e o tempo do evento da oração
hipotática ou subordinada eram iguais ou diferentes. A hipótese é a de
que se os tempos forem os mesmos, as orações são mais integradas;
se forem diferentes, as orações são menos integradas. Dessa forma,
fizemos o controle dos tempos verbais das orações introduzidas por
“sempre que” e por “toda vez que” para observarmos o grau de inte-
gração dessas orações.

Constatamos que as duas microconstruções tendem a introduzir ora-


ções que apresentam simultaneidade, ou seja, orações em que o tempo
verbal da oração hipotática tende a ser igual ao tempo da oração prin-
cipal. Nas orações introduzidas por “sempre que”, esse percentual é de
68%, enquanto as que são introduzidas por “toda vez que” constituem
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  153

um total de 91%. Os gráficos 5 e 6 ilustram esse quantitativo. O advérbio


“sim” diz respeito às orações que apresentam simultaneidade temporal,
e o advérbio “não”, por sua vez, as que não apresentam.
Gráfico 5
Simultaneidade temporal: “sempre que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Gráfico 6
Simultaneidade temporal: “toda vez que”

Fonte: Elaborado pelas autoras.


154   —  Coleção Pesquisadores

Analisando esse fator, vale observar que, embora ambas as micro-


construções tendam a introduzir orações com o mesmo tempo verbal
da oração principal, isso ocorre com maior frequência com a microcons-
trução “toda vez que”, já que apresenta um percentual bastante alto
se comparado ao percentual de “sempre que”: 91% contra 68%, respec-
tivamente. Sendo assim, considerando que a microconstrução “sempre
que” apresentou um maior número de casos (32%) em que não havia
simultaneidade temporal entre as orações, pode-se conjecturar que as
orações introduzidas por essa microconstrução tendem a estar menos
integradas entre si, enquanto as que são introduzidas por “toda vez
que” tendem a estar mais integradas, já que o tempo verbal dessas
orações tende a ser igual (GIVÓN, 1990; FURTADO DA CUNHA, RIOS DE
OLIVEIRA, MARTELOTTA, 2003).

O exemplo (6), citado anteriormente, pode ilustrar esse fator. A ora-


ção hipotática introduzida por “sempre que” possui o slot V preenchido
por um verbo no pretérito perfeito (“sempre que precisei”), ao pas-
so que a oração principal apresenta um verbo no pretérito imperfeito
(“a PM estava lá”). Assim também ocorre com o exemplo (8):
(8) “... A fantasia também explica, toda vez que ele entra numa nova região,
praticamente ninguém ouviu falar dele, apesar de suas conquistas.” (Corpus
do Português)

Nesse dado, caracterizado pelo uso da microconstrução “toda vez


que”, há um contraste do presente do indicativo na oração hipotática,
com o verbo “entrar”, e o pretérito perfeito na oração principal, com o
verbo “estar”.

3.4 Correferencialidade do sujeito


Outro fator muito trabalhado por funcionalistas (cf. GIVÓN, 1990; 1995;
PAREDES SILVA, 1988) para medir a integração cognitiva e sintática é a
verificação da correferencialidade ou não dos sujeitos da oração princi-
pal e da oração dependente. Quando os referentes são iguais, a integra-
ção entre as orações é mais forte; quando são diferentes, essa integra-
ção é mais fraca. Utilizamos esse fator para observar se há diferenças
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  155

de tendências de usos das orações iniciadas por “sempre que” e “toda


vez que”. Os resultados encontram-se na tabela 1.
Tabela 1 – Correferencialidade do sujeito
[SEMPRE QUE...] [TODA VEZ QUE...]

NÃO 53% 58%

SIM 36% 39%

NÃO SE APLICA5 10% 3%

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Tal resultado apresenta um ponto de semelhança em relação ao uso


de “sempre que” e “toda vez que”, já que o percentual de correferen-
cialidade entre essas orações não foi significativamente relevante para
se estabelecer qualquer diferença entre elas. Contudo, em linhas gerais,
constatamos que o referente-sujeito da oração hipotática tende a ser di-
ferente do referente-sujeito da principal, ou seja, essas orações tendem
a não apresentar correferencialidade.

3.5 Item verbal


Controlamos os itens verbais dos dados para verificar se há algum pa-
drão relativo ao uso de certos itens verbais nas orações hipotáticas com
cada uma das microconstruções em análise. Fizemos esse estudo para
também verificar que tipos de verbos são mais frequentes em cada
construção adverbial a fim de observar, a partir disso, o slot V da cons-
trução [CONECT V]CL HIP TEMP. A verificação da frequência de tipos de verbos
(tanto de itens verbais como de agrupamentos semânticos de verbos) é
muito importante para a verificação da produtividade das construções
e para a compreensão dos elementos cognitivamente atrelados a uma
ou à outra construção em casos de competição de usos, como é o caso
aqui estudado.

5
Foram casos de oração sem sujeito, como as orações existenciais e as que expressam fenômenos
da natureza.
156   —  Coleção Pesquisadores

Constatamos que há 63 itens verbais diferentes preenchendo o slot V


das orações hipotáticas introduzidas por “sempre que”, e 73 itens ver-
bais preenchendo o slot V das orações introduzidas por “toda vez que”.
Vale destacar que são números consideravelmente altos, já que essa
análise foi realizada em apenas 100 dados de cada microconstrução, o
que demonstra que essas orações licenciam uma variedade grande de
verbos, ou seja, são bastante produtivas. Juntas, essas orações apresen-
tam um total de 115 itens verbais diferentes, sendo apenas 21 itens em
comum. Os itens mais frequentes nas orações hipotáticas introduzidas
por “sempre que” foram “sentir”, “poder” e “precisar”, com 7, 6 e 5
ocorrências, respectivamente. Já os mais frequentes com “toda vez que”
foram “fazer” e “ir”, com 7 e 4 ocorrências, respectivamente.

É importante ressaltar que até o momento não fizemos uma análise


qualitativa de item a item, mas uma análise mais quantitativa, realizada
com o auxílio do programa Excel. A partir desses itens mais frequentes
com cada microconstrução, ainda que esse número seja relativamente
baixo, observamos algumas possíveis tendências de uso entre elas, tais
como: as orações introduzidas por “sempre que” tendem a ser mais
subjetivas, com os itens verbais menos factuais e mais abstratos; já as
orações introduzidas por “toda vez que” tendem a ser mais objetivas,
com itens verbais mais factuais, pois estão mais associados a ações.
Seguem dois exemplos ilustrativos.
(9) “E não vale a pena, mesmo. Sempre que você sentir essa necessidade “ur-
gente” de começar uma briga sobre quem está certo e quem está errado, per-
gunte a si mesmo: “Eu prefiro estar certo ou ser gentil?” (Corpus do Português)
(10) “Toda vez que fizer esta oração os corações de (colocar as iniciais de os
nomes de o casal) se encherão de alegria e muito amor de um pelo outro (...)
e serão tocados, amansados, restaurados, renovados e iluminados fortemente
pelas luzes que emanam de Miguel, Gabriel e Rafael...” (Corpus do Português)

3.6 Tendências gerais de uso das duas microconstruções


Com o objetivo de sintetizar a análise dos sete fatores utilizados neste
estudo sobre as orações hipotáticas introduzidas por “sempre que” e
“toda vez que”, segue o quadro 1, trazendo uma espécie de panorama
sobre os resultados obtidos até o presente momento.
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  157

Quadro 1 – Tendências gerais de uso das duas microconstruções


PROPRIEDADES [SEMPRE QUE...] [TODA VEZ QUE...]

Posição + Anteposta + Anteposta

Modo e tempo verbal + Presente do indicativo + Presente do indicativo

Simult. temporal + Tempos simultâneos + Tempos simultâneos

Correferenc. do suj. + Sujeitos correferenciais + Sujeitos correferenciais


+ Subjetivos - Subjetivos
Item verbal
- Factuais + Factuais
Fonte: Elaborada pelas autoras.

Analisando esse quadro, seria possível dizer que essas duas micro-
construções apresentam as mesmas propriedades: ambas tendem a in-
troduzir orações mais antepostas, com verbos no presente do indicativo,
tempos simultâneos etc. No entanto, se comparados os resultados de
cada fator, pode-se depreender que, embora ambas tendam a introduzir
orações mais antepostas, por exemplo, isso ocorre com maior frequên-
cia com a microconstrução “toda vez que”, já que seu percentual de
ocorrência é maior que o percentual de “sempre que”: 73% contra 57%,
respectivamente. Consequentemente, a posposição parece estar mais
atrelada ao uso de “sempre que”, já que esses casos são mais frequen-
tes com essa microconstrução em comparação a “toda vez que”: 42%
contra 21% respectivamente.

O mesmo se pode dizer sobre o modo e o tempo verbal: embora


as duas tendam a introduzir orações hipotáticas majoritariamente no
presente do indicativo, a microconstrução “sempre que” é a que mais
aparece introduzindo orações com verbos no modo subjuntivo, princi-
palmente com o futuro do subjuntivo, o que pode demonstrar que essas
orações possivelmente seriam mais subjetivas, abstratas, com caráter
mais hipotético.

Assim também ocorre com o fator simultaneidade temporal: ainda


que ambas tendam a apresentar tempos simultâneos, ou seja, tempos
verbais iguais ao da oração principal, isso é bem mais frequente com
a microconstrução “toda vez que”, a qual apresenta um total de 91%
158   —  Coleção Pesquisadores

dos dados contra 68% com a microconstrução “sempre que”. Isso posto,
pode-se conjecturar que as orações introduzidas por “toda vez que”
tendem a estar mais integradas entre si, enquanto as que são intro-
duzidas por “sempre que” tendem a estar menos integradas, já que o
percentual de dados que não apresentam simultaneidade temporal com
essa microconstrução é relativamente grande se comparado a “toda vez
que”: 32% contra 9%, respectivamente.

Por fim, como representado na tabela, os itens verbais que figuram


no slot V das orações hipotáticas tendem a se apresentar de maneira
distinta: com a microconstrução “sempre que” esses verbos parecem
ser mais subjetivos e menos factuais; já com “toda vez que”, os verbos
parecem ser mais factuais e menos subjetivos. Vale lembrar que esse
levantamento foi feito a partir dos itens mais frequentes com cada mi-
croconstrução, sendo “sentir”, “poder” e “precisar” com “sempre que”
e “fazer” e “ir” com “toda vez que”.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Este trabalho se propôs a apresentar uma análise acerca das orações
hipotáticas introduzidas por “sempre que” e “toda vez que” no PB
contemporâneo. Essa análise teve como objetivo mapear diferenças e
semelhanças no que diz respeito ao uso dessas microconstruções na
oração, a fim de compreender o que leva o falante a escolher uma ou
outra em diferentes contextos. Tendo como base o arcabouço teórico da
LFCU, a hipótese que norteou este estudo é a de que essas microcons-
truções, embora se apresentem em contextos semelhantes, não seriam
sinônimas, pois apresentariam especificidades estruturais, semânticas
e/ou pragmáticas.

Por ora, essa hipótese ainda não foi totalmente comprovada. En-
tretanto, a partir dos resultados obtidos com a verificação dos sete
fatores de análise, constatamos que essas duas microconstruções
apresentam algumas especificidades de uso, tais como a predileção
de “toda vez que” por orações antepostas, a alta frequência do modo
Maria Maura Cezario / Beatriz Lones dos Santos   —  159

subjuntivo com “sempre que”, a presença de orações mais integra-


das com “toda vez que”, o emprego de itens verbais mais subjetivos
e menos factuais com “sempre que”, entre outras. Esses resultados
corroboram o que ressalta Goldberg (1995) ao dizer que, se duas cons-
truções são distintas em aspectos de forma, elas devem ser semântica
ou pragmaticamente distintas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTONIO, J. D. Orações hipotáticas adverbiais GIVÓN, T. Functionalism and grammar.
e mudança de tópico em narrativas orais Amsterdam: John Benjamins, 1995.
e em narrativas escritas do português. GIVÓN, T. Syntax: a functional-typological
Revista Veredas, Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. introduction. Amsterdam: John Benjamins,
41-52, 2004. Disponível em: http://www.ufjf. 1990. v. II.
br/revistaveredas/files/2009/12/cap03.pdf.
GOLDBERG, A. E. Constructions: a
BECHARA, E. C. Moderna gramática portu- construction grammar approach to
guesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000. argument structure. Chicago: The University
BYBEE, J. Language change. Cambridge: of Chicago Press, 1995.
Cambridge University Press, 2015. GOLDBERG, A. E. Constructions at work:
BYBEE, J. Language, usage and cognition. the nature of generalization in language.
Oxford: Oxford University Press, 2006.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
HALLIDAY, M. A. K. An introduction to func-
BYBEE, J. Mechanisms of change in
tional grammar. Baltimore: E. Arnold, 1985.
grammaticization: the role of frequency.
In: JOSEPH, B.; JANDA, R. (org.). A handbook HOPPER, P. J.; TRAUGOTT, E. C.
of historical linguistics. Malden, MA: Grammaticalization. Cambridge, England:
Blackweel Publishing, 2003. Cambridge University Press. 1993.

CHAFE, W. The pear stories. Norwood: MARTELOTTA. M. E. Mudança linguística:


Ablex, 1980. uma abordagem baseada no uso. São
Paulo: Cortez, 2011.
CUNHA, C. F. da; CINTRA, L. F. L. Nova
MATTHIESSEN, C.; THOMPSON, S. The struc-
gramática do português contemporâneo. 5.
ture of discourse and “subordination”. In:
ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
HAIMAN, J.; THOMPSON, S. Clause combin-
FURTADO DA CUNHA, M. A.; BISPO, E. B.; ing in grammar and discourse. Amsterdam;
SILVA, J. R. Linguística funcional centrada Philadelphia: John Benjamins, 1988.
no uso: conceitos básicos e categorias NEVES, M. H. M. Gramática de usos do
analíticas. In: CEZARIO, M. M.; FURTADO DA português. São Paulo: Editora da UNESP,
CUNHA, M. A. (org.). Linguística centrada no 2000.
uso: uma homenagem a Mário Martelotta.
PAREDES SILVA, V. L. Cartas cariocas: a
Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2013.
variação do sujeito na escrita infor-
FURTADO DA CUNHA, M. A.; RIOS DE OLIVEIRA, mal. 1988. Tese (Doutorado em Linguística)
M.; MARTELOTTA, M. E. (orgs.). Linguística – Faculdade de Letras, Rio de Janeiro, Uni-
funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: versidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
DP&A, 2003. Janeiro, 1988.
160   —  Coleção Pesquisadores

PRINCE, E. F. Toward a taxonomy of given-new SILVA, T. S.; CEZARIO, M. M. Construciona-


information. In: COLE, P. (ed.). Radical prag- lização e competição de conectores con-
matics. New York: Academic Press, 1981. cessivos e concessivo-condicionais instan-
RODRIGUES, V. V. Subordinação adverbial ou ciados pelo esquema [Xque] em português.
hipotaxe circunstancial? In: RODRIGUES, V. Odisséia, v. 4, p. 132-153, 2019.
V. (org.). Articulação de orações: pesquisa TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construc-
e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. tionalization and constructional changes.
v. 1, p. 59-82. Oxford: Oxford University Press, 2013.
9
As Orações Hipotáticas
Introduzidas por “Visto Que”,
“Dado Que” e “Posto Que”
Juliana Barboza do Nascimento (UFRJ/FAPERJ-IC)
Dennis Castanheira (UFRJ/UERJ)

– INTRODUÇÃO –
Este capítulo se propõe a investigar as orações hipotáticas introduzidas
pelos conectivos [visto que], [dado que] e [posto que], tendo como objeti-
vo analisar os contextos em que cada uma dessas construções é utilizada,
mapeando suas semelhanças e diferenças. Para isso, nos baseamos nos
pressupostos teóricos da linguística funcional centrada no uso (LFCU).
Essa abordagem considera a existência de uma estreita relação entre a
estrutura das línguas e o seu uso nos contextos reais de comunicação.

A hipótese que guia nossa pesquisa é que as três construções, ape-


sar de se inserirem em contextos linguísticos semelhantes, apresenta-
riam especificidades estruturais, semânticas e pragmáticas. Tal hipótese
é embasada no princípio da não sinonímia (GOLDBERG, 1995), que pos-
tula que não há formas diferentes que evidenciem significados iguais;
portanto, se existem diferenças na forma, haverá também, em algum
grau, uma função comunicativa diferente. Estaríamos, portanto, diante
de três construções que competem na sincronia atual.

— 161 —
162   —  Coleção Pesquisadores

Todos os dados utilizados foram retirados do Corpus do Português1.


Coletamos apenas dados pertencentes à modalidade escrita e oriundos
da variante brasileira, produzidos entre 2013 e 2014. Assim sendo, quan-
tificamos 100 dados para cada construção, totalizando uma amostra de
300 dados.

Acreditamos que essas construções estejam inseridas em um subes-


quema, codificado como [[Vpp] Y V W]. Nesse caso, Vpp significa um verbo
na forma de particípio passado, como visto, dado e posto, que juntos
ao conectivo “que” dão origem justamente às expressões linguísticas
[posto que], [visto que] e [dado que]. Enquanto isso, o slot Y é referente
ao possível sujeito, V ao verbo e W ao possível argumento ou completo.

Esse subesquema estaria inserido num esquema ainda mais abs-


trato, codificado como [[(X) que] Y V W], em que o slot X pode ser
preenchido por unidades linguísticas como visto, toda vez, se bem etc.,
realizando construções como visto que, toda vez que, se bem que, entre
outras (figura 1).

Figura 1 – Esquematização das orações X que

Obs.: X – visto, posto, dado, ainda, se bem, toda vez... / Vpp – visto, dado ou posto / Y – sujeito
/ V – verbo / W – argumento ou complemento
Fonte: Elaborada pelos autores.

Alguns exemplos dessas construções são:


(1) “Envolvidos pelo delírio não percebem que a sordidez golpista já faz parte
do conhecimento do mundo e nada vai mudar, posto que o golpe é real.”

1
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org.
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  163

(2) “Visto que as mulheres são apaixonadas por bijuterias nada mais justo do
que propor a elas uma compra mais simples através da internet.”

(3) “Os jogos simbólicos são possíveis dado que, nesta fase, a criança já é
capaz de produzir imagens mentais.”

Como revisão da literatura, observamos a abordagem de algumas


gramáticas sobre o tema. Bechara (1999), Rocha Lima (1985) e Cunha e
Cintra (2008) apresentam visões semelhantes, postulando que os três
conectivos são introdutores de orações adverbiais. De acordo com os
autores, [visto que] é uma conjunção subordinativa causal, [posto que]
uma conjunção subordinativa concessiva e [dado que] uma conjunção
subordinativa condicional.

Já Neves (1999), além de apresentar a mesma classificação das gra-


máticas tradicionais consultadas em relação ao conectivo [visto que],
igualmente qualificando-o como uma conjunção adverbial causal e [pos-
to que], inserindo-o no grupo das conjunções adverbiais concessivas,
diverge em relação ao conector [dado que], classificando-o como uma
conjunção adverbial causal, diferindo-se, portanto, das gramáticas tra-
dicionais.

Vale ressaltar, ainda, que, ao analisar as relações expressas pelas


orações adverbiais no português, Neves (1999) propõe: a) que a rela-
ção causal diz respeito à conexão causa-consequência, ou causa-efeito,
entre dois eventos, implicando, geralmente, subsequência temporal do
efeito em relação à causa; b) que a relação condicional é tradicional-
mente observada pelas relações lógico-semânticas, havendo o conteúdo
verdadeiro na oração matriz quando houver na condicional; e c) que
a noção de concessividade está atrelada às conexões contrastivas, o
que envolve não apenas o dito, mas também as diferentes nuances
do processo comunicativo e da interação, relacionando-as diretamen-
te com construções adversativas (SANTOS, 2003; BRITO; CASTANHEIRA;
CEZARIO, no prelo).

A partir dos postulados de Neves (1999), podemos dizer que, seman-


ticamente, as relações concessivas, causais e condicionais se situam
da seguinte forma: em um polo, caracterizado pela causalidade, há a
164   —  Coleção Pesquisadores

relação de causa entre a hipotática e a matriz sendo afirmada; em um


espaço intermediário, tido como das condicionais, há a relação de causa
entre as duas orações sem ser afirmada ou negada; no outro polo, das
concessivas, há o vínculo causal entre as orações.

Dessa forma, nas próximas seções, apresentaremos as nossas


análises e os resultados sobre o estudo dessas orações hipotáticas, com
a seguinte estruturação: a seção 1 indica os pressupostos teóricos rele-
vantes para este estudo; a seção 2 acaba por apresentar a metodologia
adotada; a seção 3 trata do detalhamento da análise realizada por nós;
e, por fim, a seção 4 apresenta nossas considerações sobre os resulta-
dos encontrados.

1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Baseamos nossos estudos no arcabouço teórico da LFCU, uma aborda-
gem que considera que há uma estreita relação entre a estrutura das
línguas e o seu uso nos contextos reais de comunicação (cf. BYBEE,
2010; CEZARIO; FURTADO DA CUNHA, 2013; DIESSEL, 2015). Essa perspec-
tiva não se restringe apenas a aspectos formais, levando em conta, em
suas análises, também, questões pragmáticas, semânticas e cognitivas.
A LFCU propõe, para isso, uma união entre pressupostos da linguística
funcional norte-americana e da linguística cognitiva.

Segundo a abordagem funcionalista norte-americana, há uma ligação


entre a gramática e o discurso, com interação e influência mútuas. Des-
sa forma, a gramática é entendida como uma estrutura que está cons-
tantemente se alterando e se adaptando em virtude das transformações
que ocorrem no discurso (cf. GIVÓN, 1995).

Já a linguística cognitiva considera o conhecimento linguístico como


um reflexo das capacidades cognitivas de cada indivíduo, tais como a
habilidade de categorizar, a compreensão e o uso de figuras de lingua-
gem, os aspectos ligados ao processamento linguístico e a experiência
humana. Esses aspectos estão atrelados às atividades individuais e so-
cioculturais. Ademais, integra-se o conceito de gramática de construções
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  165

(GOLDBERG, 1995; 2006), que se trata da idealização de um arquimodelo


genérico caracterizado pela hipótese de que o conhecimento linguístico
tem o formato de uma rede de unidades simbólicas (PINHEIRO, 2016).

Segundo a abordagem funcional-cognitiva, a cognição é materiali-


zada na interação e, por isso, reflete o funcionamento de nossa mente
como indivíduos, caracterizando formas únicas e individuais de expres-
são e refletindo, também, o fato de estarmos inseridos em um ambiente
sociocultural. Portanto, a partir de nossas experiências e interações,
moldamos e somos moldados, o que faz com que soframos alterações
desse ambiente sociocultural ao mesmo tempo que o alteramos. Dessa
forma, os eventos de uso dirigem a formação e o funcionamento do
sistema linguístico do falante, ao mesmo tempo que esse falante con-
tribui para a manutenção e possíveis variações e mudanças do sistema
linguístico pertencente a uma comunidade.

Na perspectiva da LFCU, as expressões linguísticas, desde as mais


simples até as mais complexas, constituem unidades simbólicas basea-
das em pareamentos entre forma e significado, ou seja, construções.
Além disso, como já mencionado anteriormente, nessa perspectiva, a
gramática é entendida como uma rede de construções que se organiza
na mente do falante de maneira hierárquica. Essa rede é vista como um
conjunto de nós (pareamentos de forma-função) que estão conectados,
constituindo, dessa forma, links de herança.

Dessa maneira, o falante produz impacto (ao realizar reanálises, ana-


logias e/ou quaisquer outros processos que implicam alterações e/ou
extensões no emprego de expressões linguísticas) não apenas em seu
próprio sistema linguístico, mas também nos sistemas de outros falan-
tes. Sendo assim, “o sistema tem um caráter eminentemente dinâmico
ou emergente, já que nasce da adaptação das habilidades cognitivas
humanas a eventos de comunicação específicos e se desenvolve a partir
da repetição ou ritualização desses eventos” (MARTELOTTA, 2011).

Nossa pesquisa foi guiada em torno do princípio da não sinonímia


(GOLDBERG, 1995), o qual instancia que não existem formas diferen-
166   —  Coleção Pesquisadores

tes que tenham significados iguais; portanto, se existem mudanças na


forma, a intenção comunicativa é diferente. Sendo assim, mesmo que
essas construções sejam semelhantes, tanto em sua forma como prag-
maticamente, como é o caso das estudadas neste capítulo, elas devem
apresentar especificidades que as tornam únicas.

Um dos pilares da abordagem funcionalista é o estudo da articulação


de orações. Nessa visão, as orações não podem ser divididas de forma es-
tanque e dicotômica a partir dos processos de coordenação e subordinação
e, por isso, são analisadas por meio de um continuum. Para isso, Hopper
e Traugott (1993), ao estabelecerem graus de integração entre as orações
na perspectiva da gramaticalização, concebem que há três processos de
combinação de orações: a parataxe, a hipotaxe e subordinação.

Nessa nova perspectiva, a parataxe implica independência relativa,


ou seja, o vínculo entre as orações depende apenas do sentido e da
relevância da relação entre elas, e a hipotaxe compreende dependência
entre um núcleo e margens, mas não encaixamento da margem em um
constituinte do núcleo. Já a subordinação envolve dependência com-
pleta entre núcleo e margem(ns) e, portanto, encaixamento de toda a
margem em um constituinte do núcleo (RODRIGUES, 2017).

Ao contrário do que ocorre no encaixamento, em que uma oração


está integrada estruturalmente/sintaticamente em outra, na articulação
ou combinação as orações não estão sujeitas à integração sintática e se
relacionam com o aspecto organizacional do discurso. Portanto, orações
combinadas podem modificar ou expandir, de alguma forma, a informa-
ção contida em outra oração, estabelecendo, dessa forma, uma relação
circunstancial. Este último é o caso das orações exploradas neste capí-
tulo: as orações hipotáticas adverbiais.

Outro pressuposto teórico também considerado foi a informatividade


(ANTONIO, 2004; GIVÓN, 1990; HALLIDAY, 1985; CHAFE, 1984; PRINCE, 1981),
o qual depreende que orações hipotáticas tendem a ocorrer após a
oração matriz quando apresentam informações novas (orações focais);
já quando são anteriores à oração matriz, normalmente, se referem a
uma informação já fornecida ou conhecida pelo interlocutor.
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  167

Por fim, buscando ainda mais especificidades que divergissem essas


construções, também foi considerado o princípio da integração, que pos-
tula que a integração sintática entre orações é associada a uma integra-
ção semântica ou pragmática dos eventos codificados pelas orações em
questão. A dependência e o encaixamento das orações seriam medidos
a partir da correferencialidade de sujeitos das orações; da codificação
formal do sujeito da oração hipotática; da simultaneidade de tempos
dos eventos das orações; e da expressão do mesmo modo verbal.

2. METODOLOGIA
Nossa metodologia compreende uma análise tanto qualitativa quanto
quantitativa, com fatores de ordem estrutural, semântica e pragmática.
Para nossa análise, utilizamos como auxílio o programa Excel para a codi-
ficação e contabilização de nossos dados, como também para o cruzamen-
to de alguns de nossos fatores. Isso permitiu, além de um detalhamento
dos resultados de cada construção, uma comparação precisa entre elas.

Retiramos nossos dados do Corpus do Português, mais especifica-


mente da aba Web-Dialects, um site on-line com cerca de um bilhão de
palavras de páginas da web de quatro países de língua portuguesa: Bra-
sil, Portugal, Angola e Moçambique. Coletamos apenas os 100 primeiros
dados de sites brasileiros, coletados entre 2013 e 2014.

Os textos eram divididos pelo site de acordo com a nacionalidade a


que pertenciam, não havendo divisões ou informações sobre o gênero
textual. Portanto, até o momento, não levamos em consideração esse
fator e sua possível influência.

Assim sendo, contamos com um total de 300 dados, havendo 100


dados para cada construção.

Dessa forma, os fatores analisados foram: a) os valores semântico-


-pragmáticos da oração hipotática; b) a posição das orações hipotáticas
em relação às matrizes; c) a correferencialidade e a codificação formal
dos sujeitos das orações hipotáticas; d) os modos e tempos verbais dos
168   —  Coleção Pesquisadores

verbos pertencentes às orações hipotáticas; e e) a frequência type e


token dos itens verbais das orações (hipotáticas/matrizes).

3. ANÁLISE DE DADOS:
TRÊS FORMAS EM COMPETIÇÃO?
3.1. Os valores semânticos-pragmáticos das orações hipotáticas: o
continuum causal-condicional-concessivo
Partindo do pressuposto de que algumas conjunções poderiam apre-
sentar valores semânticos não previstos pela tradição, fomentado pelo
trabalho de Rodrigues (2018), foi realizada uma revisão da abordagem
das gramáticas tradicionais, buscando observar como elas apresentam
as orações subordinadas adverbiais e as conjunções que as introduzem
e que foram destacadas nesta pesquisa.

Foram utilizados os trabalhos de Bechara (1999), Rocha Lima (1985)


e de Cunha e Cintra (2008) para esta revisão. O que foi percebido é que
as visões dos autores são semelhantes. Eles apontam que os três co-
nectivos são introdutores de orações adverbiais, sendo [visto que] uma
conjunção subordinativa causal, [posto que] uma conjunção subordina-
tiva concessiva e [dado que] uma conjunção subordinativa condicional.

Além disso, também foi consultada a gramática descritiva de Neves


(1999), na qual a autora apresenta a mesma classificação das gramá-
ticas tradicionais consultadas em relação à [visto que] e [posto que].
Contudo, o conector [dado que] é classificado como uma conjunção ad-
verbial causal, diferindo-se, portanto, das gramáticas tradicionais.

Ao analisar as relações expressas pelas orações causais no portu-


guês, Neves (1999) propõe que a relação causal diz respeito à conexão
causa-consequência, ou causa-efeito, entre dois eventos. Assim, nor-
malmente, a relação causal implica subsequência temporal do efeito em
relação à causa, como em:
(4) “O autor diz que esses novos gêneros não são criações inéditas, visto que
se construíram a partir de outros gêneros já existentes.” (Corpus do Português)
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  169

Já as condicionais são tradicionalmente observadas pelas relações


lógico-semânticas por ela marcadas. Assim, se o conteúdo expresso pela
oração condicional for verdadeiro, o conteúdo da matriz também será.
Dentro de uma construção condicional, a oração que exprime condição
(oração hipotática) é chamada prótase, enquanto a que exprime o que é
condicionado (matriz) é chamada apódose, o que se apoia, basicamen-
te, numa hipótese. Pode-se observar pelo seguinte exemplo:
(5) Você alcançará todos os seus objetivos e será bem feliz, dado que siga a
risco os conselhos de seus pais. (Dicionário Informal)2

Contudo, a relação de concessividade está relacionada às conexões


contrastivas, ligada não apenas ao dito, mas também às diferentes nuan-
ces do processo comunicativo e da interação, o que a relaciona direta-
mente com construções adversativas (SANTOS, 2003; BRITO; CASTANHEIRA;
CEZARIO, no prelo). Essa relação pode ser ilustrada no seguinte exemplo:
(6) “Posto que a vida afetiva e a vida intelectual sejam demasiado heterogê-
neas para que uma se reduza à outra, procedemos sempre sem levar em conta
a diferença que separa os sentimentos da inteligência.” (Corpus do Português).

Neves (1999) aponta que é preciso ressaltar a relação das conces-


sivas com as causais e condicionais. Tanto as construções concessivas
quanto as causais e condicionais expressam, de alguma forma, uma
conexão “causal” em sentido mais amplo; assim como apresentam uma
conexão condicional, já que são explicáveis em dependência de satis-
fação de necessidade (ou de suficiência) de determinadas condições.

Podemos dizer que, semanticamente, as relações concessivas, cau-


sais e condicionais se situam da seguinte forma: em um polo, carac-
terizado pela causalidade, há a relação de causa entre a hipotática e
a matriz sendo afirmada; em um espaço intermediário, tido como das
condicionais, há a relação de causa entre as duas orações sem ser afir-
mada ou negada; no outro polo, das concessivas, há o vínculo causal
entre as orações.

2
Só foram encontrados dentro da amostra utilizada valores híbridos de condicionalidade, isto é,
valores causais-condicionais. Sendo assim, buscamos este único exemplo externo a amostra do site
“Dicionário Informal”. (https://www.dicionarioinformal.com.br/dado+que/)
170   —  Coleção Pesquisadores

Essas relações podem ser observadas no quadro 1.

Quadro 1 – O continuum concessivas-condicionais-causais

Fonte: Neves (1999).

Sendo assim, esperávamos encontrar diferentes valores semânticos


para essas orações, tratando-as, previamente, como polissêmicas. Ob-
servando nossos resultados, organizamos a tabela 1.

Tabela 1 – Valor semântico-pragmático das orações hipotáticas


CAUSAL CAUSAL-CONDICIONAL CONCESSIVA
[dado que] 91 9 0

[visto que] 100 0 0

[posto que] 90 4 6

Total 281 13 6

Fonte: Elaboração dos autores.

O maior número de ocorrências encontrado foi com o valor causal,


com 281 ocorrências, o que corresponde a 93,7% dos 300 dados. Outro
resultado que merece destaque são as orações com [posto que], que
apresentam um caso de multifuncionalidade, já que foram observadas
ocorrências com os três valores semânticos preestabelecidos. Por fim,
ao que diz respeito àquelas introduzidas por [visto que], foi verificado
que não apresentam nenhuma variação semântica, sendo 100% causais.
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  171

3.2. Posição da oração hipotática em relação à oração matriz


Para este fator, nos apropriamos da noção de informatividade, utilizando
os trabalhos de Givón (1990), Halliday (1985), Chafe (1984), Prince (1981)
e Antonio (2004). Retomando o que foi dito, as orações hipotáticas que
são posteriores às suas matrizes – normalmente apresentam informa-
ções novas, enquanto as anteriores contêm referência daquilo que já foi
dito ou que já era de conhecimento do interlocutor. A literatura demons-
tra que a posição à esquerda da sentença é a posição de informações
velhas e a posição à direita, de informações novas (tabela 2).

Tabela 2 – Posição das orações hipotáticas em relação à oração matriz


ANTEPOSTA INTERCALADA POSPOSTA
[dado que] 34 4 62

[visto que] 7 0 93

[posto que] 12 0 88

Total 53 4 243

Fonte: Elaboração dos autores.

Em relação aos resultados da posição da oração hipotática, as três


construções apresentaram mais ocorrências na posição pospostas, to-
talizando 243 ocorrências, o que corresponde a 81% dos dados. É im-
portante destacar também o número de antepostas com a construção
iniciada por [dado que], 34 ocorrências, contra 7 em [visto que] e 12 em
[posto que]. Sendo assim, acreditamos que, mais do que as outras cons-
truções, elas retomem informações já disponíveis no discurso. Ademais,
as orações introduzidas por [dado que] foram as únicas que apresenta-
ram uma terceira categoria: intercaladas.

Também revisamos o trabalho de Neves (1999) sobre a ordem das


orações adverbiais, dessa vez entrelaçando os valores semânticos à po-
sição das orações hipotáticas. No caso das orações causais, a autora
defende que haja uma tendência à posposição, em que, normalmente,
se enuncia o efeito, expressado pela oração matriz, e, depois, a causa,
expressada pela oração hipotática.
172   —  Coleção Pesquisadores

Já no caso das condicionais, primeiro se enuncia a ocorrência de


uma condição, a hipotática, que pode ou não ser satisfeita, e depois a
oração, que depende da concretização dessa condição, expressada pela
matriz. Sendo assim, existe uma tendência à anteposição.

Em relação às concessivas, depende do propósito comunicativo.


Podem aparecer intercaladas, pospostas quando funcionam como um
adendo e antepostas quando possuem a função de tópico, isto é, reto-
mando informações que já foram dadas.

A seguir, temos alguns exemplos das orações hipotáticas (sublinha-


das) em diferentes posições em relação às orações matrizes (em itálico)
e com diferentes valores semânticos:
(7) “Posto que a vida afetiva e a vida intelectual sejam demasiado heterogê-
neas para que uma se reduza à outra, procedemos sempre sem levar em conta
a diferença que separa os sentimentos da inteligência.” (Corpus do Português)

(8) “Mas o P.S. não funciona como um tipo de qualificação, dado que se for
acrescentado em qualquer lado, deve ser acrescentado em todo o lado.” (Cor-
pus do Português)

(9) “Os blocos que praticamente não sofreram alterações foram os de inovação
e de pesquisa, visto que são áreas nas quais existem indicadores objetivos à
profusão e que já foram bastante discutidas na literatura internacional.” (Cor-
pus do Português)

Assim sendo, cruzamos os fatores posição e valor semântico, confor-


me se pode observar no gráfico 1.

As três construções apresentaram mais ocorrências na posição pos-


posta e com valor causal, totalizando 235 ocorrências, o que correspon-
de a 78,3% dos dados.

De acordo com os estudos que previamente havíamos revisado, tí-


nhamos a expectativa que orações causais teriam tendências pospostas,
em que enuncia primeiro o efeito, representado pela oração matriz, e
depois a causa, a oração hipotática. Isso foi corroborado, já que, das
281 orações causais encontradas, 235 ocorreram na posição posposta à
oração matriz.
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  173

Gráfico 1*
Posição e valor semântico-pragmático das orações hipotáticas

Fonte: Elaboração dos autores.

Já nas relações de condicionalidade, primeiro se enuncia a ocorrência


de uma condição (oração hipotática) e depois a oração que depende
da concretização dessa condição (oração matriz). Sendo assim, essas
orações tinham tendências à anteposição. Entretanto, apenas valores
híbridos foram encontrados em nossos dados. Das 13 orações com valor
causal-condicional, 7 apareciam antepostas à matriz, um número relati-
vamente maior quando comparado àquelas pospostas, 5, uma diferença
mínima, mas, ainda assim, corroboraria com as expectativas de haver
mais ocorrências em posição anteposta.

Por último, em relação à concessividade, não havia uma tendência


entre qual seria a posição predileta, podendo ocorrer tanto antes como
após sua oração matriz, dependendo apenas de sua intenção comunica-
tiva. Os resultados acabam por não colaborar por um aprofundamento
ou tendência contrário a isto – já houve o mesmo número de orações
antepostas e pospostas.

*Esse gráfico apresenta o número de ocorrências dos dados. Não apresenta percentuais.
174   —  Coleção Pesquisadores

3.3. Elementos de integração


Procurando ainda mais características que diferenciassem essas cons-
truções, consideramos o princípio da integração. A integração entre ora-
ções pode ser medida pela (cf. GIVÓN, 1990):

a) realização do sujeito da hipotática por meio da anáfora pronomi-


nal ou por zero – isso nada mais é do que a codificação formal,
ou seja, a forma como o sujeito se apresenta;
b) pela correferencialidade do sujeito, isto é, se o sujeito é o mesmo
nas duas orações;
c) determinação do tempo e do modo da hipotática pelo tempo e
pelo modo da matriz, isto é, se há simultaneidade modal e tem-
poral entre as orações.

Sendo assim, nas subseções a seguir, apresentaremos os gráficos


pertinentes aos resultados obtidos e, ao fim da seção, faremos um gran-
de apanhado a respeito.

3.3.1. Correferencialidade entre sujeitos

Antes de apresentar nossos resultados, representados graficamente,


exemplificaremos, em cada subseção, os fenômenos estudados. A seguir
têm-se alguns exemplos de sujeitos correferentes:
(10) “Informam-me que as cores são uma frequência que inclui vibração. Eu
compreendo a vibração dado que de fato as experimentei isso com respeito as
máquinas.” (Corpus do Português)

(11) “Por demorar para ser detectada (geralmente é vista no início da vida
escolar), muitas crianças disléxicas são rotuladas de desmotivadas e preguiço-
sas, visto que têm dificuldades de aprender.” (Corpus do Português)

(12) “Nesta perspectiva, confirmasse mais uma vez nosso entendimento já


que até os não sindicalizados cooperam com a ideologia sindical, posto que
anualmente realizam contribuição sindical, na forma de desconto de um dia de
trabalho do servidor.” (Corpus do Português)
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  175

Gráfico 2
Correferencialidade entre os sujeitos

Fonte: Elaboração dos autores.

Com relação à correferencialidade de sujeitos, todas as construções


tendem a ter seus sujeitos não correferentes, como no exemplo a seguir
(no qual o sujeito da oração matriz é o substantivo “mercado”, e o da
oração subordinada é o substantivo “preços”):
(13) “No geral, o mercado acompanha a mesma linha, visto que os preços reais
de mercado são parecidos.” (Corpus do Português)

Ainda cabe destacar que as orações hipotáticas iniciadas por [posto


que], as quais, comparadas às demais, apresentam mais sujeitos corre-
ferentes, totalizando 40% das ocorrências entre seus 100 dados.

3.3.2. Codificação formal do sujeito da oração hipotática

Alguns exemplos de diferentes formas de codificação do sujeito:


(14) SINTAGMA NOMINAL – “Dado que Deus está no campo da filosofia, não no
da ciência, ninguém declara a inexistência de Deus sem, antes, querer, incons-
cientemente, que Ele não exista.” (Corpus do Português).

(15) PRONOME – “O autor diz que esses novos gêneros não são criações inéditas,
visto que se construíram a partir de outros gêneros já existentes.” (Corpus do
Português).

(16) ZERO – “Neste ponto de sua argumentação Modesto Brocos coloca-nos a


invenção como ideia. Entretanto, seu pensamento não é muito claro, posto
que introduz noções de assunto, projeto, esboço e rascunho, todas entrelaça-
das dentro do escopo da invenção.” (Corpus do Português).
176   —  Coleção Pesquisadores

Gráfico 3
Codificação formal do sujeito da oração hipotática

Fonte: Elaboração dos autores.

Quanto à forma do sujeito da oração hipotática, as três construções


apresentam predileção por se apresentarem na forma de sintagmas no-
minais, com cerca de 50% de seus dados se apresentando dessa maneira.
São passíveis de destaque ainda dois resultados: orações introduzidas
por [posto que] possuem mais sujeitos zeros que as demais, 35%; orações
com [visto que] apresentam mais sujeitos pronominais que as demais.

3.3.3. Simultaneidade do modo verbal

A seguir, alguns exemplos de dados com simultaneidade modal:


(17) IND. e IND.: “Baseado na expectativa de encontrarmos algo interessante
entre a variedade de escolhas disponíveis, o aborrecimento depressa surge,
dado que nunca estamos satisfeitos com o que temos.” (Corpus do Português)

(18) IND. e IND.: “Está claro que esta é uma maneira de fazer com que nos
próximos bimestre as notas dos alunos sejam “maquiadas”, visto que esse
método é uma forma de nos inibir, de nos forçar a não “dar” tantas notas
vermelhas.” (Corpus do Português)

(19) IND. e IND.: Gostaria de ter uma resposta firme à minha indagação, posto
que a legenda é dúbia. (Corpus do Português)
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  177

Gráfico 4
Simultaneidade entre os modos verbais das orações

Fonte: Elaboração dos autores.

Quanto à simultaneidade modal, todas as construções apresentam


maiores ocorrências de simultaneidade afirmativa. Há apenas uma di-
ferença sutil com relação às construções introduzidas por [posto que]
(82%, contra 93% e 99%), que são menos simultâneas, nessa categoria,
que as demais, como pode-se observar no exemplo a seguir:
(20) SUBJ. e IND.: “Infelizmente, o voto é secreto, lembremos na próxima elei-
ção de não reeleger nenhum, posto que não sabemos quem votou contra a
cassação.” (Corpus do Português)

É importante destacar que só foram achadas correspondências em


que ambos os verbos (tanto da hipotática quanto da matriz) estavam
no modo indicativo.

3.3.4. Simultaneidade temporal

Alguns exemplos de simultaneidade temporal:


(21) PRES. e PRES.: “Uma vez já escrevi que não sei o que é avaliar arte, dado
que é muito pessoal e subjetivo.” (Corpus do Português)

(22) PRES. e PRES.: “A autora refere ainda que os termos transtorno e dificul-
dade não podem ser confundidos, visto que na dificuldade, a criança apre-
senta insucesso escolar, porém tem uma capacidade motora adequada, boa
inteligência, visão, audição, dentre outras, enquanto que o transtorno envolve
problemas em diversas habilidades.” (Corpus do Português)
178   —  Coleção Pesquisadores

(23) PRES. e PRES.: “Infelizmente, o voto é secreto, lembremos na próxima


eleição de não reeleger nenhum, posto que não sabemos quem votou contra a
cassação.” (Corpus do Português)

Gráfico 5
Simultaneidade temporal entre as orações

Fonte: Elaboração dos autores.

Em relação à simultaneidade temporal, de forma geral, todas as


construções apresentam cerca de 70% de dados simultâneos, como nos
exemplos (21), (22) e (23).

O dado a seguir (24) exemplifica um caso de não simultaneidade


temporal entre a oração matriz (com o verbo no futuro do pretérito) e a
oração hipotática (verbo no presente):
(24) “Por um lado, uma justificação dedutiva da dedução seria circular, dado
que a validade da dedução é pressuposta na tentativa de mostrar que as de-
duções preservam a verdade.” (Corpus do Português)

Fazendo um apanhado dos últimos resultados, tem-se um impas-


se sobre qual das construções apresentariam mais ocorrências com
o maior nível de integração, retomando os fatores: codificação formal
(apresentariam um maior grau de integração aqueles que tivessem su-
jeito pronominal ou sujeito zero), correferencialidade entre os sujeitos
das orações e simultaneidade tanto temporal quanto de modo.

Em relação ao sujeito pronominal, [visto que] ocupou o primeiro lu-


gar no número de ocorrências, com 20% de seus 100 dados. Já sobre
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  179

o sujeito zero das orações hipotáticas, [posto que] apresenta o maior


número de ocorrências, 35%. Além disso, apresenta mais sujeitos corre-
ferentes, 40%, isto é, 40 de seus 100 dados possuem o mesmo sujeito
na oração matriz e na hipotática.

Em contrapartida, orações introduzidas por [dado que] são as que


apresentam maior simultaneidade tanto temporalmente, 75%, como no
modo verbal, 99%. Sendo assim, [posto que] e [dado que] teriam um
comportamento semelhante segundo os fatores analisados aqui.

3.4. Frequência type e token


Analisamos, também, as frequências type e token, baseando-se na pers-
pectiva de Bybee (2010), dos itens verbais pertencentes às orações hipo-
táticas, introduzidas por [visto que], [posto que] e [dado que]. A autora
demonstra, por meio de vários exemplos do inglês, o efeito conservador
e redutor da frequência de uso. Os exemplares são fortalecidos cada
vez que uma nova ocorrência de uso é mapeada. Logo, exemplares de
alta frequência são mais fortes do que exemplares de baixa frequência.
Assim, formas frequentes resistem às regularizações.

A frequência type diz respeito à quantidade de itens lexicais que


um padrão pode ter ou, no caso de construções esquemáticas, quantos
diferentes itens ocorrem em seus possíveis slots. Considerando a oração
hipotática como o esquema [(X) que (W) V (Y)] OR.HIP., analisa-se, portan-
to, o slot V e seus possíveis preenchimentos. Sendo assim, em outras
palavras, analisam-se quantos diferentes itens verbais aparecem dentro
desse tipo de oração. Enquanto isso, a frequência token corresponde ao
número de vezes que um type ocorre.

Nesse caso, analisamos todos os itens verbais presentes em nosso


corpus, tendo em conta uma comparação entre as três construções.
Entretanto, na tabela 2, foram considerados apenas os itens verbais que
apresentaram pelo menos 4 ocorrências no corpus, sendo considerados
quantitativamente mais relevantes.
180   —  Coleção Pesquisadores

Tabela 3 – Frequência type-token dos itens verbais da oração hipotática


TYPES VERBAIS TOTAL DE TOKENS
Orações com Orações com Orações com
[dado que] [visto que] [posto que]
1. Ser 24 32 23 79
2. Estar 10 7 3 20
3. Ter (POSSE) 4 3 2 10
4. Encontrar 3 2 1 6
5. Considerar 0 1 4 5
6. Fazer 0 1 4 5
7. Dizer 0 2 2 4
8. Haver 2 0 2 4
9. Passar 1 2 1 4
Total de itens verbais Total de ocorrências
da tabela da tabela
6 8 9
9 137
Outros itens verbais Outras ocorrências
129 47 46 52 163
Total de itens verbais Total de ocorrências
138 53 54 61 300
Fonte: Elaboração dos autores.

No que tange à frequência de ocorrência verbal, o item verbal mais


recorrente nas três construções foi o verbo ser, apresentando 79 ocor-
rências em 300 dados, o que corresponde a 29,7% dos dados. Os demais,
em sequência, foram os verbos estar e ter (com valor de posse) que,
juntos ao verbo ser, representam 36,3% dos dados.

Ademais, em relação ao número de ocorrências, a construção com


[visto que] foi a que apresentou o maior índice quantitativo, com 50
ocorrências, sendo seguido pela construção com [dado que], com 44
ocorrências, e, por fim, por [posto que], com 41 ocorrências.

Também foram consideradas as ocorrências dos itens verbais não


presentes na tabela 3 (Outros). Portanto, como foram coletados 100
dados para cada construção, evidentemente, isso caracteriza o número
total de ocorrências. Sendo assim, [visto que] tem outras 50 ocorrências;
[dado que], outras 56 ocorrências; e [posto que], outras 59 ocorrências
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  181

(valores obtidos ao somar verticalmente da linha 1 a 9). Além disso, a


alta frequência dos mesmos itens nas três construções permitiria supor
que haveria uma aproximação entre elas na rede linguística.

Já em relação à frequência de tipos, foram apresentados 9 diferentes


tipos verbais tabela 3. Entretanto, com a construção introduzida por
[posto que], foram encontrados 9 diferentes itens verbais, 6 itens com
a construção com [dado que], e, por fim, a construção [visto que] apre-
sentou 8 diferentes tipos verbais. Ademais, há uma repetição entre tais
itens; sendo assim, há, claramente, alguns itens verbais que se repetem
entre as construções.

Para ilustrar essas relações, utilizamos o diagrama de Venn-Euler e a


teoria matemática dos conjuntos (figura 2) para evidenciar quais seriam
aqueles que apareciam apenas com uma construção e aqueles que fa-
riam parte de interseções entre elas.
Figura 2
Frequência type dos itens verbais das orações hipotáticas

Fonte: Elaboração dos autores.

No total, foram encontrados 61 diferentes itens verbais que apare-


cem com [posto que], seguidos de 54 itens verbais para [visto que] e,
por fim, 53 itens para [dado que]. Alguns desses verbos, como pode
também ser observado pela tabela 3, são compartilhados entre as três
construções. Por exemplo, existem 5 itens verbais que são comuns às
três; 6 que são comuns a [posto que] e [visto que]; 4 a [visto que] e
182   —  Coleção Pesquisadores

[dado que]; e 10 a [dado que] e [posto que]. Ainda assim, ignorando as


interseções existentes entre elas, orações introduzidas por [posto que]
ocupam o primeiro lugar com o maior número de diferentes itens ver-
bais em comparação às restantes.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
De forma geral, as três construções possuem as seguintes tendências:
expressam causa; ocorrem em posição posposta às orações matrizes; o
evento da hipotática e da principal são simultâneos temporalmente e
codificados com o mesmo modo; os sujeitos das hipotáticas têm a forma
de sintagmas nominais; e, por fim, os sujeitos de ambas orações não
são correferentes.

As construções hipotáticas introduzidas por [dado que] e [posto


que] parecem ser as mais integradas à oração matriz, pois as primeiras
possuem mais ocorrências com simultaneidade temporal e apresentam
o mesmo modo verbal, enquanto as segundas são as que apresen-
tam o maior número de sujeitos zero, 35%, e correferencialidade entre
sujeitos, 40%.

Além disso, as construções hipotáticas introduzidas por [dado que]


introduzem mais orações que codificam informações velhas, se colo-
cando mais na posição à direita da oração matriz do que as demais
construções.

Enquanto isso, as construções hipotáticas introduzidas por [visto


que] parecem ser as mais cristalizadas na língua, quase não possuindo
variação estrutural (100% indicativo, 93% posposta) e não havendo va-
riação semântica (100% causal).

Sendo assim, embora as orações hipotáticas introduzidas por esses


três conectivos tenham papéis semelhantes, seus usos não são com-
pletamente iguais. Pesquisas futuras, com um número maior de dados,
poderão confirmar as tendências aqui apontadas e afirmar com proprie-
dade que conectivo é mais usado em dado contexto.
Juliana Barboza do Nascimento / Dennis Castanheira   —  183

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTONIO, J. D. Orações hipotáticas adverbiais ______. Constructions at work: the nature
e mudança de tópico em narrativas orais of generalization in language. Oxford:
e em narrativas escritas do português. Oxford University Press, 2006.
Revista Veredas, Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p.
HALLIDAY, M. A. K. An introduction
41-52, 2004. Disponível em: http://www.ufjf.
to functional grammar. Baltimore: E.
br/revistaveredas/files/2009/12/cap03.pdf.
Arnold, 1985.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. HOPPER, P.; TRAUGOTT, E. C. Grammatical-
ization. Cambridge: Cambridge University
BRITO, R.; CASTANHEIRA, D.; CEZARIO, M. M. Press, 1993.
Análise dos usos do conector [só que] no
português brasileiro. Rio de Janeiro: [s.n.], MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística:
[2020]. No prelo. uma abordagem baseada no uso. São
Paulo: Cortez, 2011.
BYBEE, J. Language, usage and cognition.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010. NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do
português. São Paulo: Ed. da UNESP, 1999.
CEZARIO, M. M.; FURTADO DA CUNHA, M. A.
(org.). Linguística centrada no uso: uma PINHEIRO, D. Um modelo gramatical
homenagem a Mário Martelotta. Rio de para a linguística funcional-cognitiva: da
Janeiro: Mauad; FAPERJ, 2013. Gramática de construções para a gramática
de construções baseada no uso. In: ALVARO,
CHAFE, W. How people use adverbial
P. T.; FERRARI, L. (org.). Linguística cognitiva:
clauses. In: Annual Meeting of the Berkeley
Lingüistic Society, v. 10, 1984, Berkeley. da linguagem aos bastidores da mente.
Proceedings. Berkeley: Berkeley Linguistics Campos de Goytacazes: Brasil Multicultural,
Society, 1984, p. 437-449. 2016. p. 20-41.

CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática PRINCE, H. Toward a taxonomy of give-


do português contemporâneo. Rio de new information. In: COLE, P. (ed.). Radical
Janeiro: Lexikon, 2008. pragmatics. New York: Academic Press,
1981. p. 223-255.
DIESSEL, H. Usage-based construction
grammar. In: DABROWSKA, E.; DIVJAK, D. ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa
(eds.). Handbook of cognitive linguistics. da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José
Berlin: Mouton de Gruyter, 2015. p. 295-321. Olympio, 1985.
GIVÓN, T. Functionalism and grammar. RODRIGUES, V. V. (org.) Articulação de
Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins orações: pesquisa e ensino. 2. ed. Rio de
Publishing, 1995. Janeiro: UFRJ, 2017.
______. Syntax: a functional-typological ______. Uso(s) de conectores: uma abordagem
introduction. Amsterdam; Philadelphia: funcional-discursiva. Diadorim, Rio de Janeiro,
John Benjamins Publishing, 1990. v. 2. v. 20 (Especial), p. 535-560, 2018.
GOLDBERG, A. E. A construction grammar SANTOS, L. W. Articulação textual na
approach to argument structure. Chicago; literatura infantil e juvenil (e, mas, aí,
London: The University of Chicago Press, 1995. então). Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
184   —  Coleção Pesquisadores
10
Formação dos Conectores
Contrastivos "Ainda Que"
e "Mesmo Que":
uma Análise Construcional
Thiago dos Santos Silva (UFRJ/CNPq – Doutorando)

– INTRODUÇÃO –
Este estudo tem como objetivo principal apresentar uma análise so-
bre a formação dos conectores contrastivos instanciados pelo esquema
[Xque] em português: ainda que e mesmo que. Utilizamos os pressupos-
tos teóricos da abordagem cognitivo-funcional, bem como o modelo de
mudança linguística apresentado por Traugott e Trousdale (2013) para
explicar como se deu a formação das construções e como os processos
cognitivos de domínio geral (BYBEE, 2010) contribuíram para o surgimen-
to desses conectores na língua.

Estudos como o de König (1984) mostram que há uma tendência de


que a formação de conectores se dê a partir de itens já disponíveis na
língua. Para ele, haveria um processo de mudança semântica universal
que favoreceria o desenvolvimento de conectivos nas línguas. No caso
dos conectores contrastivos, o autor argumenta que tais conectores são
formados a partir de quantificadores, itens temporais e enfáticos.

— 185 —
186   —  Coleção Pesquisadores

König (1984) apresenta dois tipos de concessivas: as concessivas


condicionais e as concessivas propriamente ditas. Os exemplos a seguir,
apresentados pelo autor, mostram a diferença entre os dois tipos:
(1) Even if nobody helps me, I’ll manage.
Mesmo se ninguém me ajudar, eu controlarei a situação.

(2) Even though Fred is English, he speaks fluent French.


Embora o Fred seja inglês, ele fala francês fluentemente.

De acordo com o autor, o exemplo (1) mostra uma relação concessivo


condicional, pois evidencia ou sugere uma aparente incompatibilidade
entre duas situações (característica semântica das concessivas) e apre-
senta uma condição parcial entre o primeiro e o segundo membro da
sentença (cf. FELÍCIO, 2008).

König (1984) argumenta ainda que nas concessivas o conteúdo ex-


presso pela oração principal e pela subordinada são verdadeiros, como
é possível notar em (2). Já na condicional o conteúdo expresso por essa
oração é hipotetizado pelo falante. É nesse contexto que aparecem as
condicionais concessivas: o falante, ao mesmo tempo que hipotetiza,
levanta uma objeção. Para ele, o estágio concessivo-condicional serviu
de origem para a formação dos conectores concessivos, visto que há
algumas similaridades envolvendo esses dois domínios semânticos.

A respeito das orações concessivas em português e das relações ins-


tauradas por elas, Neves (2000) propõe a seguinte classificação: a) as de
caráter factual, entendidas como as concessivas propriamente ditas; e b)
as de caráter eventual, chamadas de condicionais-concessivas. A autora
argumenta que nas orações concessivas propriamente ditas tanto o con-
teúdo proposicional expresso pela oração principal quanto aquele expresso
pela subordinada são verdadeiros. Essa relação é retratada no exemplo (3).
(3) contei também o número de estudantes... quarenta e um... e: eu tenho
quase certeza, embora não tenhamos a lista. (NEVES, 2000).

Já nas condicionais-concessivas, apenas o conteúdo da oração prin-


cipal é verdadeiro, enquanto o da subordinada é hipotetizado pelo fa-
lante, podendo ser verdadeiro ou falso. O exemplo (4) retrata essa ideia:
Thiago dos Santos Silva   —  187

(4) nós temos as reuniões (...) muito mais participação, porque, mesmo que
alguns professores faltem porque tenham outros ... outros afazeres no ambu-
latório, mas sempre tem um bom número de reuniões. (NEVES, 2000).

No exemplo (4), a autora argumenta que o conteúdo da oração su-


bordinada é hipotético, dando margem à interpretação de que pode ou
não ser concretizado.

Para levantamento dos dados utilizados nesta pesquisa, serviu-nos


de base o Corpus do Português,1 trata-se de um corpus baseado no uso
e disponível on-line. Tal corpus reúne dados do século XIII ao século
XXI de quatro países que falam português (Brasil, Angola, Portugal e
Moçambique). Para esta pesquisa, analisamos as ocorrências das cons-
truções contrastivas do século XIII ao século XIX.

Nossos objetivos específicos para este trabalho são:

a) mostrar como os processos cognitivos de domínio geral influen-


ciaram na formação dos itens;
b) propor a arquitetura da rede construcional dos conectores con-
trastivos instanciados pelo esquema [Xque] do século XIII ao sé-
culo XIX; e
c) identificar se o sentido condicional-concessivo foi um estágio para
a formação dos itens com sentido concessivo propriamente dito.

A partir desses objetivos específicos, propomos as seguintes hipóteses:

(a)’ a analogia e o chunking teriam sido processos fundamentais para


a formação de ainda que e mesmo que contrastivos;
(b)’ haveria a reestruturação da rede linguística dos conectores con-
trastivos, com a entrada de novos itens no decorrer dos séculos;
(c)’ como propõe König (1984) para o inglês, pensamos que as cons-
truções primeiramente passaram pelo sentido condicional-con-
cessivo até chegar ao sentido concessivo propriamente dito.

1
Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org.
188   —  Coleção Pesquisadores

Este capítulo está organizado da seguinte maneira: primeiro, apre-


sentamos os pressupostos teóricos que norteiam nosso trabalho. Na se-
gunda seção, apresentamos os procedimentos metodológicos adotados.
Seguem, então, os resultados encontrados após a análise e a discussão,
além das referências bibliográficas.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A abordagem baseada no uso, ao contrário das abordagens formalistas,
adota o pressuposto de que a estrutura da língua emerge à medida em
que esta é usada. (BARLOW; KEMMER. 2000). Nesse sentido, correntes
baseadas no uso estabelecem uma relação entre estrutura e motivações
discursivas, além disso não excluem da análise fatores de ordem se-
mântico-pragmática.

A linguística funcional centrada no uso, também denominada linguísti-


ca cognitivo-funcional (cf. TOMASELLO 2003), configura uma tendência fun-
cionalista de estudo das línguas. Tal abordagem traz contribuições da lin-
guística funcional de vertente norte-americana – (TRAUGOTT, 2008 ; BYBEE,
2010; GIVÓN, 1979; 1995), entre outros – e da linguística cognitiva, como
propõem Fillmore (1988), Goldberg (1995; 2006), Croft (2001) e outros.

Em relação à mudança linguística, Traugott e Trousdale (2013) apre-


sentam dois tipos:

1) Mudanças construcionais (constructional changes) – mudanças


que afetam uma construção existente. As mudanças são no plano
da forma ou do conteúdo. A mudança construcional é a mudança
que afeta a dimensão interna da construção, não envolvendo a
criação de um novo nó.
2) Construcionalização (constructionalization) – é a criação de um pa-
reamento simbólico de forma e função, ou seja, a criação de um
novo signo (o que representa um novo nó na rede linguística). É
quando ocorrem mudanças na forma e no conteúdo. Em outras pa-
lavras, o processo de construcionalização tem a ver com a criação
de um pareamento de uma nova forma com um novo significado.
Thiago dos Santos Silva   —  189

1.1 Processos cognitivos de domínio geral


A abordagem formalista postula a existência de princípios inatos especí-
ficos da linguagem, baseados na concepção da modularidade da mente e
de uma gramática universal. Entretanto, para a Gramática de Construções
Baseada no Uso (GCBU) a mente não é modular, pois parte do princípio
de que as capacidades cognitivas não são exclusivas da linguagem. A
GCBU não nega a base biológica da linguagem humana, mas propõe que
há uma relação entre o sistema linguístico e outros sistemas cognitivos.
Bybee (2010) apresenta cinco mecanismos cognitivos básicos do do-
mínio geral que moldam a estrutura e o conhecimento da linguagem. Em
oposição à visão da linguística formal, a autora postula que a linguagem
é fruto de processos cognitivos do domínio geral, descritos a seguir:
a) Categorização: é, basicamente, a capacidade de reconhecer pa-
drões. É um domínio geral no sentido de que categorias percep-
tuais de vários tipos são criadas pela experiência independente
da linguagem.
b) Chunking: é o processo pelo qual uma sequência de itens fre-
quentemente usados juntos forma uma unidade mais complexa
(um único bloco cognitivo). Logo, sequências repetidas de pala-
vras ou morfemas que são postas juntas na cognição são acessa-
das como uma única unidade.
c) Memória rica: este processo está relacionado com a capacidade
de estocagem mental dos detalhes da experiência com o uso
linguístico, incluindo detalhes fonéticos para palavras e sintag-
mas, contextos de uso, significados e inferências associados aos
enunciados. Cada experiência com a língua tem um impacto nas
representações cognitivas.
d) Analogia: capacidade do falante de produzir novas enunciações
com base em outros enunciados já produzidos em experiências
discursivas anteriores.
e) Associação transmodal: tem a ver com o fato de que as expe-
riências coocorrentes tendem a ser cognitivamente associadas,
fornecendo um link entre forma e significado.
190   —  Coleção Pesquisadores

Tomasello (2003) apresenta dois grandes grupos de capacidades cog-


nitivas do domínio geral: a capacidade de ver o outro como ser intencio-
nal e mental e a capacidade de busca de padrão. Neste último, estão in-
cluídas basicamente a capacidade de categorizar e a de fazer analogias.

De acordo com o autor, no processo de aquisição de linguagem sem-


pre é preciso levar em consideração os eventos e os estados de coisas
nele envolvidos. O modo como as crianças aprendem a falar e apreen-
dem determinado padrão linguístico/construção leva em conta cenas
complexas de experiência com um ou mais participantes em seus con-
textos espaçotemporais.

2. METODOLOGIA
Nesta pesquisa, fazemos uso dos dados coletados do Corpus do Portu-
guês, uma plataforma on-line que reúne diversos textos em vários dialetos
da língua portuguesa. No site, encontramos 4 subtipos de corpus, e nesta
pesquisa fazemos uso do denominado gênero/histórico, que reúne dados
do século XIII ao século XXI e possui mais de 45 milhões de palavras, di-
vidido em várias subseções, incluindo fala e escrita. Entretanto, em nossa
análise, verificamos apenas as ocorrências na modalidade escrita.

Coletamos os dados que continham a ocorrência das construções ain-


da que e mesmo que do século XIII ao século XIX. Coletamos 150 dados
por século, porém, nos séculos iniciais da pesquisa, não foi possível
atingir o número estipulado devido a baixas ocorrências das construções.

Para este capítulo, trazemos os resultados da análise da semântica


da oração contrastiva em relação à principal, observando sua influência
na formação das construções conectivas. Tomamos como referência os
estudos de Neves (2000) e König (1984), que mostram que as relações
estabelecidas pelas orações concessivas podem ser tanto factuais (cha-
madas de concessivas) como eventuais (condicionais-concessivas). Esse
fator tem, ainda, relação com a hipótese de König (1984), que comprova
com dados do inglês que as condicionais-concessivas teriam sido a ori-
gem para os usos concessivos.
Thiago dos Santos Silva   —  191

3. FORMAÇÃO DOS CONECTORES CONTRASTIVOS


No séc. XIII, primeiro século de análise da pesquisa, encontramos ocor-
rências de ainda (partícula focal aditiva) seguido de que (complementi-
zador), como mostra o exemplo (5).
(5) vierõ dizëdo ainda / que virom visom de anjos que dizem que viue. (COR-
PUS DO PORTUGUÊS, século XIII)

Entretanto, no mesmo século, também encontramos algumas ocor-


rências de ainda e que juntos, ou seja, já como um conector de sentido
contrastivo, como no exemplo (6).
(6) E do ceeo aa terra tam asínha como o cudo do homë. E seram atam so-
tíís que entrarã nas casas, ainda que as portas estem çarradas. (CORPUS DO
PORTUGUÊS, século XIII)

Não houve ocorrência de mesmo que conector contrastivo até o sécu-


lo XVII no corpus analisado. A forma encontrada nos séculos anteriores
era composta por mesmo (partícula focal enfática) seguida de que (com-
plementizador), como mostra o exemplo (7).
(7) nas mais cousas sentião o mesmo / que os Samaritanos, excepto que
vivendo em Hierusalem sacrificavam como os mesmos Judeus. (CORPUS DO
PORTUGUÊS, século XIV).

Nossa hipótese, baseada na formação de outros conectores (cf. SAN-


TOS; CEZARIO, 2017), é a de que, pela repetição do adverbial nesse con-
texto de uso, houve uma reinterpretação das formas, e os elementos
passaram pelo processo cognitivo denominado chunking.

Diferentemente das ocorrências de ainda que contrastivo, que já


aparecem no século XIII, encontramos mesmo que apenas no século
XVIII. Pensamos que, por esse motivo, houve um processo de analogia
entre as formas mesmo e ainda. Em outras palavras, mesmo foi recru-
tado para o slot X por possuir semelhanças com ainda (os dois são
partículas focais e é isso que permite que mesmo seja usado no slot do
esquema Xque).

Vejamos exemplos das construções já formadas com ideia contrastiva:


192   —  Coleção Pesquisadores

(8) E ainda que contradisessem que as nõ fezesse deue lhas dar dos bëës do
morto ante que paguë në hûã das cousas que mandou en seu testamëto në
das diuidas que deuia en qual quer maneyra que as deue E ante que partã në
hûã cousa seus filhos de sseus aueres ou outros que os ouuerë derdar tanto
que estas despesas seiã feitas Outrossy teue por bë a sancta eygreia que mor-
rendo algûû que nõ ouuesse quë sse trabalhasse pera fazer estas despesas
pera seia soterramëto que o julgador as fezesse ou mandasse as fazer a outrë.
(CORPUS DO PORTUGUÊS, século XIII)

(9) Não vou me arrepender, mesmo que o Rio não seja escolhido. É uma causa
em que eu acredito. (CORPUS DO PORTUGUÊS, século XX)

(10) Mesmo que o termo seja utilizado meio vagamente, existem duas condi-
ções gerais nas quais pode ser produzido o efeito-expulsão. Em primeiro lugar,
o gasto público pode expulsar o investimento devido às limitações de recursos.
(CORPUS DO PORTUGUÊS, século XVIII)

Martelotta (1994), apresenta alguns usos de ainda no português,


como a forma inclusiva. De acordo com o autor, a forma inclusiva do
item tem como função incluir novos argumentos ao discurso, ou seja,
acrescentar algum tipo de informação no contexto conversacional para
dar sequência ao que está sendo dito no discurso. O autor argumenta
que nesse tipo de uso é possível notar um processo de gramaticalização
por informatividade, isto é, o valor de ainda como inclusivo é inferido
em contextos em que o ainda marcador de contraexpectativa pode ser
interpretado como inclusivo. Em outras palavras, o uso inclusivo teria se
originado do uso do marcador como contraexpectativa.

Sobre a trajetória de ainda, Martelotta (1994) defende a hipótese de


que o termo apresenta uma origem como elemento indicador de noção
espacial em latim e passa a expressar a noção temporal por gramaticaliza-
ção via metáfora espaço > (tempo) > texto, e de elemento temporal, passa
a marcador de contra expectativa, por gramaticalização via pressão de
informatividade. O item, em seu uso com valor temporal, tende a expres-
sar um posicionamento em relação às expectativas dos interlocutores a
respeito dos assuntos que estão sendo falados na situação comunicativa.

A seguir, apresentamos os esquemas que representam esse processo


de formação muito comum na história de conectivos de línguas neolati-
nas (cf. ALI, 1931, p. 258-259):
Thiago dos Santos Silva   —  193

Este processo creador de novas conjunções ou locuções conjuncio-


naes revela-se sobremodo fecundo nas combinações de advérbios e
dizeres de caracter adverbial com a particula que: a fim que (port. hod.
afim de que), sem embargo que, com tanto que, ante(s) que, depois
que, etc. Nestas, como em outras locuções conjuncionaes, oelemento
adverbio nada mais é que um vocabulo deslocado de uma oração para
outra. Devia modificar a um verbo, mas afasta-se delle, emigra da res-
pectiva oração,attrabido por uma particula, a qual se une, resultando
desta liga uma conjunção de nova espé cie. Basta ver o historico do
adventicio ainda em ainda quando e ainda que.

Figura 1
Processo de formação de ainda que

Fonte: Santos Silva (2019).

Figura 2
Processo de formação de mesmo que

Fonte: Santos Silva (2019).


194   —  Coleção Pesquisadores

Assim como Martelotta (1994) e Fontes (2016), pensamos que a me-


táfora espaço > (tempo) > texto tenha feito parte da formação de ainda
que contrastivo. Isso porque, de acordo com esses autores, nesses ca-
sos, existe uma transferência gradativa entre o significado pragmático
escalar (cf. FERRARI et al., 2011) expressado por ainda e os significados
condicional e concessivo.

3.2 Arquitetura da rede linguística


Nesta seção, apresentamos a arquitetura da rede linguística após coleta
dos dados. Identificamos os usos – concessivos [CC] e condicional-con-
cessivos [CD] – das construções ao longo dos séculos com dois objetivos:
(a) identificar a semântica inicial da construção; e
(b) propor a rede linguística dos conectores estudados.

Após análise dos dados, chegamos aos seguintes resultados:


Tabela 1 – Ocorrências de ainda que relacionadas ao tipo semântico
CONECTOR SÉCULO XIII SÉCULO XIV SÉCULO XV TOTAL
E FUNÇÃO
CONTRASTIVA CD CC CD CC CD CC CD CC
5/8 3/8 20/48 28/48 58/150 92/150 83/206 123/206
AINDA QUE
63% 37% 42% 58% 38% 62% 40% 60%
Fonte: Santos Silva (2019).

Na tabela 1, notamos que, no século XIII, os usos de ainda que foram


majoritariamente condicionais-concessivos. Contudo, seu uso como con-
cessivo propriamente dito começa a crescer nos séculos XIV e XV, e nos
séculos seguintes (quando já começam as ocorrências de mesmo que
contrastivo), como mostra a tabela 2.

Tabela 2 – Ocorrências de ainda que e mesmo que relacionadas ao tipo semântico


CONECTOR SÉCULO XVIII SÉCULO XIX TOTAL
E FUNÇÃO
CONTRASTIVA CD CC CD CC CD CC
63/150 87/150 54/150 96/150
AINDA QUE 117/300 183/300
42% 58% 36% 64%
1/1 0/1 19/23 4/23
MESMO QUE 20/24 4/24
100% 0% 82% 18%
Fonte: Santos Silva (2019).
Thiago dos Santos Silva   —  195

Observamos, na tabela 2, que o conector ainda que, a partir do sur-


gimento de mesmo que, começa a atuar com o sentido mais concessivo
propriamente dito, enquanto que mesmo que começa com o sentido
condicional-concessivo. Segundo estudos de Santos Silva (2019), a maio-
ria dos usos com esse valor permanece até o século XX.

A abordagem construcional baseada no uso propõe que o nosso co-


nhecimento linguístico está organizado em rede, numa relação de he-
rança. Propomos, então, a seguinte rede taxonômica para os conectivos
contrastivos advindos do esquema [Xque]:

Figura 3
Rede construcional dos conectores instanciados pelo esquema [Xque]

Fonte: Santos Silva (2019).

A figura 3 retrata a rede construcional dos conectores instanciados


pelo esquema [Xque] no século XIX. Percebemos, em nossa pesquisa,
que, nos séculos anteriores, o conector mesmo que ainda não estava
presente na rede, ou seja, a partir da entrada dessa construção, houve
reestruturação da rede linguística e uma nova configuração do nó X que
contrastivo.
196   —  Coleção Pesquisadores

4. DISCUSSÃO
Após a fundamentação teórica e os resultados expostos neste capítulo,
defendemos que, a partir do modelo de mudança linguística apresen-
tado, os conectores estudados passaram por um processo de constru-
cionalização, visto que houve mudança na forma e na função. Qual é a
nossa justificativa?

Entendemos que, pela repetição dessa forma no contexto inserido


(geralmente contextos que exigiam alguma refutação e continham nega-
ção – domínios presentes nos contextos de contraste), a forma ganhou
uma nova interpretação induzida pelo contexto, através do processo
cognitivo chunking e, por analogia a um esquema já existente na língua,
outros conectores surgiram (como o conector mesmo que).

Além disso, propomos outros processos como metáfora e metonímia


atuando no processo de formação das construções. A metáfora, respon-
sável pela transferência do significado escalar existente em ainda para
os significados condicional e concessivo, e a metonímia teriam sido
responsáveis pela reinterpretação induzida pelo contexto.

Sendo assim, representamos as construções da seguinte maneira a


partir do esquema proposto na figura 4.

A figura 5 representa a construção mesmo que, com aspectos da


forma e da função da construção contrastiva.

Nas figuras 4 e 5 representamos as construções ainda que e mes-


mo que, respectivamente. Observamos que há diferenças entre os dois
itens: ainda que, segundo estudos de Santos Silva (2019), tende a apa-
recer em oração anteposta, enquanto mesmo que tende a aparecer em
oração posposta.

Com relação ao plano do significado, as duas construções veiculam


ideias concessivas e condicional-concessivas, conectam partes do dis-
curso e do texto. Entretanto, ainda que tende a apresentar informação
velha, e mesmo que tende a apresentar informação nova, focal.
Thiago dos Santos Silva   —  197

Figura 4
Representação da construção ainda que

Fonte: Santos Silva (2019).

Figura 5
Representação da construção mesmo que

Fonte: Santos Silva (2019).


198   —  Coleção Pesquisadores

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Tivemos como objetivo descrever a formação dos conectores contrastivos
instanciados pelo esquema [Xque] a partir da abordagem construcional
da gramática. De acordo com os dados coletados, no século XIII já encon-
tramos ainda que com função contrastiva e com a semântica concessivo-
-condicional em maior ocorrência coocorrendo com as de caráter conces-
sivo. Nos séculos seguintes e até o português atual, o conector tende a
aparecer denotando, na maioria dos usos encontrados, ideia concessiva.

Ao analisarmos mesmo que, percebemos que a construção só ocorre


em dados a partir do século XVII, e que seus primeiros usos apresentam
caráter condicional-concessivo. Tal uso se estende até o português atual,
sendo encontrado em maior ocorrência que os usos do mesmo conector
com ideia concessiva propriamente dita.

No que diz respeito à formação dos conectores, entendemos que


houve alguns processos e etapas importantes que contribuíram para o
surgimento deles na língua. Inicialmente, encontramos dados nos quais
a forma ainda aparecia várias vezes seguida de que. Nesses casos, ain-
da era usado como partícula focal aditiva, podendo ser substituído por
“também” ou “além disso”.

Fatores de ordem discursivo-funcional e pragmático-discursivos


também teriam contribuído para o processo de mudança. Os contextos,
geralmente, possuíam ideias hipotáticas ou contrastivas, às vezes refor-
çadas pelo verbo no modo subjuntivo, bem como uma relação de causa
ou condição. A literatura mostra que esses domínios semânticos tendem
a apresentar grande proximidade em várias línguas.

Assim, seguindo os micropassos de mudança, em algum momento


o falante reinterpretou o significado da construção, e ainda que passa
a ser compreendido como um único bloco cognitivo, pelo processo de-
nominado chunk. Além da metáfora, responsável pela transferência do
significado escalar existente em ainda para os significados condicional
e concessivo, a metonímia teria sido responsável pela reinterpretação
induzida pelo contexto, como mostram estudos de Fontes (2016).
Thiago dos Santos Silva   —  199

Logo, o conector passa pelo processo de construcionalização, visto


que houve mudança na forma e na função. Passa a ser uma nova cons-
trução na língua, ou seja, um novo nó, o que configura uma reestrutu-
ração da rede linguística dos conectivos em português. Pensamos que
mesmo que tem uma trajetória semelhante.

Como observado por König (1984) no inglês, em português também


temos conectivos contrastivos formados a partir de partículas focais/
enfáticas, sendo as construções estudadas nesta pesquisa exemplos
reais de seus usos na língua. Como sugerido por König (1984), as con-
dicionais-concessivas teriam sido a origem para os usos concessivos
de ainda que e mesmo que também em português. O autor propõe que
construções contrastivas formadas a partir de partículas focais ou enfá-
ticas seriam base para formação de construções concessivas, visto que
os dois grupos possuem similaridade histórica.

A esse respeito, Kortmann (1997) enfatiza que a relação entre con-


cessivo-condicionais e concessivas é fluida, ou seja, em algumas línguas,
construções concessivas formadas a partir de partículas focais ou enfá-
ticas podem ser usadas como concessivas propriamente ditas. Os dados
nos mostram que o mesmo ocorre em português. Assim, vimos que:

a) processos cognitivos atuaram no processo de formação dos co-


nectores contrastivos;
b) a rede linguística da qual os conectores fazem parte sofreu rees-
truturação ao longo da história da língua, isso porque só a partir
do século XVIII o conector mesmo que passa a fazer parte do nó
dos conectores contrastivos instanciados pelo esquema [Xque];
c) os itens passaram por um processo de construcionalização, pois
passaram por processos de mudanças na forma e na função.

Apresentamos aqui brevemente um pouco do panorama teórico ado-


tado e uma maneira de aplicação. Há muito o que explorar do modelo
e da GCBU, bem como explicações mais aprofundadas (conferir referên-
cias bibliográficas). Além disso, o campo dos conectores também requer
atenção, e o que mostramos neste trabalho foi apenas uma tentativa de
200   —  Coleção Pesquisadores

explicar a história dos itens, alertando que há vários aspectos que não
abordamos, mas que podem servir para investigações futuras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALI, S. Gramática histórica da língua FONTES, M. G. Construções concessivas e
portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1931. concessivo-condicionais com ainda que.
BARLOW, M.; KEMMER, S. (org.). Usage based Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 45, n. 1,
models of language. Stanford, California: p. 126-141, 2016.
CSLI Publications, 2000. GIVÓN, T. Functionalism and grammar.
Amsterdam; Philadelphia: John
BYBEE, J. Language, usage and cognition.
Benjamings, 1995.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
GIVÓN, T. On understanding grammar. New
CROFT, W. Radical construction grammar:
York: Academic Press, 1979.
syntactic theory in typological perspective.
Oxford: Oxford University Press, 2001. GOLDBERG, A. E. A construction grammar
approach to argument structure. Chicago;
DAVIES, M.; FERREIRA, M. Corpus do
London: The University of Chicago Press, 1995.
português: 45 million words, 1300s-1900s.
2006. Available online at: <http://www. ______. Constructions at work: the nature
corpusdoportugues.org>. of generalization in language. Oxford:
Oxford University Press, 2006.
FELÍCIO, C. P. A gramaticalização da conjunção
concessiva embora. 2008. 180f. Dissertação KORTMANN, B. Adverbial Subordination:
(Mestrado em Estudos Linguísticos) – a Typology and History of Adverbial
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Subordinators Based on European Languages.
Exatas, Universidade Estadual Paulista, São Berlin: Mouton de Gruyter, 1997. 425 p.
José do Rio Preto, 2008. KÖNIG, E. On the history of concessive con-
FERRARI, L.; GIAMMATTEO, M.; ALBANO, H. nectives in English: diachronic and synchro-
Operadores de foco: el caso de incluso, nic evidence. Língua, v. 66, p. 1-19, 1984.
hasta, solo y aun. Cuadernos de la ALFAL, MARTELOTTA, M. E. Os circunstanciadores
n.3, p. 30-41, 2011. temporais e sua ordenação: uma visão
FILLMORE, C. J. Syntactic intrusions and funcional. 1994. Tese (Doutorado) –
the notion of grammatical construction. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
In: ANNUAL MEETING OF THE BERKELEY de Janeiro, 1994.
LINGUISTICS SOCIETY, 11., Berkeley, 1985. NEVES, M. H. M. Gramática de usos do
Proceedings [...] Berkeley: Berkeley português. São Paulo: EdUnesp, 2000.
Linguistics Society, 1985. p. 73-86, 1985.
PINHEIRO, D.; ALONSO, K. 30 anos (ou mais)
______. The mechanisms of “construction de gramática de construções: primeiros
grammar”. In: ANNUAL MEETING OF THE apontamentos para uma história do
BERKELEY LINGUISTICS SOCIETY, 14., Berkeley, movimento construcionista (ou: 1988: o ano
1988. Proceedings [...] Berkeley: Berkeley que não terminou). Revista Linguística, Rio
Linguistics Society, 1988. p. 35-55. de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 6-26, jan./abr. 2018.
FILLMORE, C. J.; KAY, P.; O’CONNOR, M. C. SANTOS SILVA, T. A formação de conectores
Regularity and idiomaticity in grammatical concessivos e concessivo-condicionais
constructions: the case of let alone. instanciados pelo esquema [Xque] em
Language, v. 64, n. 3, p. 501-538, 1988. português: uma análise construcional de
Thiago dos Santos Silva   —  201

mudança. 2019. Dissertação (Mestrado) – Subjectivity and subjectivization: linguis-


Programa de Pós-graduação em Linguística, tic perspectives. Cambridge: Cambridge
Faculdade de Letras, Universidade Federal University Press, 1995. p. 31-54.
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
TRAUGOTT. Grammaticalization, construc-
SANTOS, M.; CEZARIO, M. M. Estudo cogni- tions and the incremental development
tivo-funcional da formação da construção of language: Suggestions from the develo-
[XQUE]CONECT no Português. 1. ed. Santiago pment of degree modifiers in English. In:
de Compostela: SPIC, 2017. v. 1, p. 959-974. RegineEckardt, Gerhard Jäger, and Tonjes-
(Gallæcia. Estudos de linguística portugue- Veenstra (Ed.). Variation, Selection, Develo-
sa e galega). pment: Probing the Evolutionary Model of
TOMASELLO, M. Constructing a language: a Language Change. Berlin/New York: Mouton
usage-based theory of language acquisition. de Gruyter, 2008. p. 219-250.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003. TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. G. Construc-
TRAUGOTT, E. C. Subjectification in gramma- tionalization and constructional change.
ticalisation. In: DIETER, S.; WRIGHT, S. (ed.). Oxford: Oxford University Press, 2013.
11
Análise dos Usos de
“Com Certeza” na Diacronia
Ester Moraes Gonçalves (UFRJ – Mestranda)
Deise C. de Moraes Pinto (POSLING - UFRJ)

– INTRODUÇÃO –
Por meio deste estudo, tem-se como objetivo geral discutir o comporta-
mento de “com certeza” a partir de dados diacrônicos. Para isso, con-
sideram-se duas construções adverbiais em que figura “com certeza”:
uma qualitativa, que pode ser representada pelo esquema [V com cer-
teza]qualitativa; e uma modalizadora, representada como [com certeza
(Or)]modal. Abaixo, tem-se um exemplo da construção qualitativa na
sincronia atual:
(1) “A doença do alcoolismo se caracteriza por uma obsessão pela bebida que
se instala lentamente na vítima, até, nos últimos estágios, dominá-la inteira-
mente. Apesar da imensa gravidade da doença, pouco ou nada se sabe com
certeza sobre suas causas.” (aabr.com.br)

No exemplo (1), “com certeza” modifica e qualifica o verbo “saber”,


indicando a falta de certeza, já que “nada se sabe com certeza”, ou seja,
com precisão, sobre as causas do alcoolismo. Em contrapartida, tem-se
a seguir um comportamento diferente do apresentado anteriormente:

— 203 —
204   —  Coleção Pesquisadores

(2) “Quando uma só cabeça dirige e elabora um só pensamento, uma só


idéia, com certeza, não é a melhor solução, porque muita coisa vem acrescen-
tada do conselho de outras cabeças.” (19Or:Br:Intrv:Cid)

Nesse exemplo, do século XX, temos “com certeza” como um mo-


dalizador, à margem esquerda da oração, modificando-a e expressando
certo grau de certeza do falante a respeito do pensamento elaborado
por uma só cabeça. Nesse caso, o adverbial em questão não está conec-
tado somente ao verbo (“ser”), mas sim à oração como um todo (“não
é a melhor solução”).

Na tentativa de buscar pesquisas que tratem especificamente desse


tipo de adverbial no português, percebe-se que os trabalhos referentes
às construções adverbiais qualitativas e modalizadoras com preposição
são escassos. Sendo assim, decidimos recorrer a estudos sobre advérbios
em –mente, a fim de obter um parâmetro de comparação sobre o com-
portamento de adverbiais com esses valores (qualitativo e modalizador).

Em Moraes Pinto (2002; 2008), ao lidar com a diacronia, a autora


reporta um comportamento interessante a respeito dos advérbios “cer-
tamente” e “seguramente”. Tais adverbiais, que no português contem-
porâneo só se encontram como modalizadores, no português arcaico
também podiam ser usados como qualitativos. Portanto, ao que parece,
passaram por um processo de mudança, partindo do valor qualitativo
(modificador de verbo) ao modalizador (modificador de oração). Seus
respectivos valores modalizadores permaneceram enquanto os qualita-
tivos não são mais usados ou, ao menos, não são mais comuns.

Tendo isso em vista, formulamos a hipótese de que “com certeza” tam-


bém pode ter sofrido mudança semelhante, passando de qualitativo a mo-
dalizador, mas sem perder seu uso qualitativo, pelo menos até o momento.

Como ponto de partida, serão analisadas quantitativa e qualitati-


vamente as ocorrências de “com certeza” que modificam verbo e que
modificam oração no Corpus do Português,1 nos séculos XVI, XVII e

1
Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org.
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  205

XVIII,2 e paralelamente, cotejando com alguns dados de “com certeza”


dos séculos XX e XXI. Os fatores considerados para este trabalho são:
o i) tipo de construção (qualitativa/modalizadora); e ii) os tipos e itens
verbais ocorrentes nas construções. Ademais, pretende-se apresentar
uma comparação preliminar com “sem dúvida”, a fim de discutir uma
possível influência dessa construção nos usos de “com certeza”.

Para tal estudo, lança-se mão da Linguística Funcional Centrada no


Uso (LFCU) e seus pressupostos teóricos, em especial a Gramática de
Construções (GOLDBERG, 1995; 2006; CROFT, 2001), e a conceitos teóricos
como mudança construcional e construcionalização (TRAUGOTT; TROUS-
DALE, 2013), atentando-se também a processos cognitivos de domínio
geral (BYBEE, 2016), como categorização, chunking e analogia.

1. LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO


Em termos teóricos, parte-se da LFCU, que se baseia em pressupostos
da Linguística Funcional norte-americana e da Gramática de Constru-
ções. De acordo com a LFCU, a língua é moldada conforme as neces-
sidades comunicativas do falante em contexto real de uso (BARLOW;
KEMMER, 2000; BYBEE, 2016). Alguns dos fatores que podem motivar os
usos linguísticos são: estruturais, que se referem à configuração grama-
tical de cada língua; histórico-sociais, que têm a ver com os elementos
extralinguísticos do contexto presentes na interação; cognitivos, que
estão relacionados ao modo como a experiência tem efeito sobre a
configuração gramatical.

A partir da Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995; 2006; CROFT,


2001), postula-se que o conhecimento total que se tem da língua é cap-
tado por uma rede de construções entendidas como pareamentos de
forma (fonologia, morfologia, sintaxe) e sentido (semântica, pragmática,
discurso). Então, “com certeza” integra construções, cujas formas, nos
casos aqui estudados, são verbo + preposição + sintagma nominal ou

2
Para este trabalho, analisou-se “com certeza” dado a dado apenas nessas sincronias. Das
sincronias posteriores, traz-se apenas um recorte a título de comparação.
206   —  Coleção Pesquisadores

preposição + sintagma nominal + oração, e cujos sentidos vão depen-


der de seus respectivos escopos (verbo ou oração), que determinarão
se trata-se de um adverbial qualitativo ou de um modalizador. Diante
disso, propõe-se aqui que são duas construções diferentes, e que am-
pliam o esquema PREP+SN: [V PREP SN]qualitativa e [PREP SN (Or)]modal;
podendo ambas ter seus slots PREP+SN preenchidos por “com certeza”.

Sendo assim, como se está lidando com mudança, lança-se mão


das noções de mudança construcional e construcionalização (TRAUGOTT;
TROUSDALE, 2013). O primeiro tipo se refere à mudança em apenas um
plano da construção (na forma ou no sentido), enquanto o segundo
tipo se refere à mudança em ambos os planos (tanto na forma como no
sentido), resultando em um novo pareamento, uma nova construção.
Portanto, será analisado o comportamento das ocorrências com “com
certeza”, pressupondo o surgimento de um novo pareamento adverbial,
um novo nó na rede construcional, com sentido modalizador, a partir do
pareamento com sentido qualitativo.

1.1 Construções adverbiais qualitativas e modalizadoras

A princípio, as construções adverbiais qualitativas podem exprimir mais


de um valor semântico: instrumento, meio e modo. Segundo Said Ali
(1971, p. 208), a ideia de maneira, que entendemos e chamamos de
modo, advém de instrumento e “ao têrmo ‘instrumento’ costuma-se
preferir o têrmo ‘meio’ quando aquilo com que se põe em efeito algum
ato, é cousa abstrata”. Entre esses valores, o valor qualitativo que asso-
ciamos a “com certeza” é de modo, como no exemplo a seguir:
(3) “Comtudo, eu me não arrependo, nem me desdigo do que prometti. Pro-
metti de vos dizer com certeza quando ha-de ser o dia do Juiso. E quando
cuidaes que ha-de ser? Não vos quero ter suspensos.” (16:Vieira:Sermons)

Nesse exemplo do século XVII, a locução adverbial se dispõe logo


após o verbo, qualificando o modo como o padre prometeu dizer, que é
com exatidão, precisão, certeza. Esse mesmo valor qualitativo se encon-
tra no exemplo (4), do século XVIII:
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  207

(4) “Não duvido que estes Ministros, vendo a Portland com mais exterior de
prudência que talento, lhe fizessem alguma insinuação de mediação e arbítrio,
para com isto tentar a El-Rei de Inglaterra e atraí-lo ao seu partido. Porém,
nada se sabe com certeza, ainda que, nesta matéria, eu tenho por evidente
tudo o que é verosímil.” (17:Brochado:Cartas2)

Nesse exemplo, “com certeza” também se dispõe logo após o verbo


e o modifica. Nesse caso, o autor da carta, após expor suas suposições
a respeito de manobras políticas, finaliza o assunto dizendo que, apesar
do que ele pensa, “nada se sabe com certeza”, exprimindo que não há
um “saber pleno” de que isso seja verdade.

Quanto às construções modalizadoras, apoiando-se em Ilari et al.


(1990) e Moraes Pinto (2008), consideram-se três tipos, que têm como
escopo a oração: epistêmico, de atitude proposicional e ato de fala. Mo-
raes Pinto (op. cit.) encontrou ocorrências de adverbiais em –mente com
os três valores modalizadores. No entanto, até o momento dos estudos
com as construções preposicionais, apenas se encontrou a construção
de valor epistêmico, que é o valor modalizador de “com certeza”. Moda-
lizadores epistêmicos avaliam o conteúdo da oração, expressando certo
grau de certeza racional por parte do falante. Castilho (2016), ao tratar
dos modalizadores epistêmicos, divide-os em asseverativos afirmativos,
asseverativos negativos e quase asseverativos. O autor define os moda-
lizadores epistêmicos asseverativos – em que “com certeza” também se
enquadra – como aqueles que
expressam uma avaliação sobre o valor da verdade da sentença, cujo conteúdo
o falante apresenta como uma afirmação ou uma negação que não dão mar-
gem a dúvidas, tratando-se, portanto, de uma necessidade epistêmica. Desse
tipo de predicação decorre um efeito colateral, que é manifestar o falante um
alto grau de adesão ao conteúdo sentencial. (CASTILHO, 2016, p. 555).

Tendo isso em vista, o valor modalizador de “com certeza” é sempre


epistêmico, como no exemplo do século XX a seguir:
(5) “Ali estavam, como de primeiro, os antigos conhecidos e, como antiga-
mente, amortecendo as vozes dos que conversavam na varanda depois
do jantar, o rumor dos bondes e automóveis, deslizando nas ruas próximas.
Lá estavam Seu Cobas, Juvêncio, Seu Chicão, todos. Entretanto, parecera às
208   —  Coleção Pesquisadores

duas que tanta coisa se havia passado durante aquela ausência... Jandira re-
lutara quando Dona Flor propusera visitar a pensão: – Bobagem, titia! E capaz
da gente nem encontrar lá uma cara conhecida. Me disseram até que o dono
é outro. Com certeza os hóspedes velhos também se mudaram... – Bobagem é
a sua, retrucou Dona Flor.” (19:Fic:Br:Peixoto:Chamada)

Nesse exemplo, “com certeza” se dispõe no início da oração em


que se encontra e a modifica, expressando a opinião da personagem
a respeito do que está dizendo, isto é, ela tem certa convicção de que
“os hóspedes velhos também se mudaram”. Refere-se a uma conclusão
racional a que ela chega a partir das suposições anteriores (“E capaz
da gente nem encontrar lá uma cara conhecida. Me disseram até que o
dono é outro.”).

2. PROCESSOS COGNITIVOS DE DOMÍNIO GERAL


Os processos cognitivos de domínio geral, como o próprio nome sugere,
são aqueles que perpassam todas as áreas da experiência do ser hu-
mano com o mundo. Sendo assim, não se limitam à língua, fazendo-se
presentes nas ações cognitivas de memorização e compreensão do uni-
verso biossocial. Neste trabalho, atenta-se a três desses processos, es-
senciais para este estudo: i) categorização; ii) chunking; e iii) analogia.
Tais processos serão discutidos nas próximas subseções.

2.1 Categorização
Segundo Bybee (2016), a categorização se dá por meio da experiência;
desse modo, os membros de uma categoria não possuem um mesmo
estado, isto é, há elementos que são exemplares mais centrais (pro-
totípicos), enquanto outros são mais periféricos, mais marginais (não
prototípicos). Portanto, as fronteiras entre as categorias também não
são nítidas e delimitadas. Ainda, de acordo com essa perspectiva, a fre-
quência se faz primordial, pois é esse fator que vai tornar um exemplar
mais “fraco/forte” em sua representação cognitiva.

Quanto aos adverbiais, especificamente, Martelotta (2000) diz que


esses elementos se dispõem em um continuum; assim, alguns tendem a
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  209

apresentar comportamento mais prototípico e outros não. Encontrando-


-se “com certeza” ao lado do verbo e, preferencialmente, à sua direita,
há tendência de que seu sentido seja qualitativo, denotando o modo
como se dá a ação expressa pelo verbo, isto é, será modificador do
verbo. No entanto, encontrando-se um pouco mais distante do verbo e/
ou à margem esquerda da oração, é mais provável que possua valor mo-
dalizador, visto que “com certeza” modificará a oração completa, e não
especificamente o verbo. Também a prosódia pode ter papel distintivo
entre um valor e o outro. Porém, como aqui também se lida com dados
da escrita não há, a princípio, como lançar mão de análise prosódica.

Sendo assim, ora “com certeza” se encontra com valor qualitativo,


ora se encontra com valor modalizador, sempre modificando ou um ver-
bo ou uma oração (mesmo que elíptica). Por conseguinte, postulam-se,
neste estudo, duas construções diferentes: uma que pode ser repre-
sentada pelo subesquema [V com certeza]qualitativa, e outra pelo su-
besquema [com certeza (Or)]modal. Pode-se dizer que são construções
diferentes, pois possuem formas diferentes – em uma “com certeza”
modifica verbo e na outra, oração – e sentidos diferentes – uma com va-
lor qualitativo de modo e a outra com valor modalizador epistêmico. No
subesquema da modalizadora, a oração (Or) se encontra entre parênte-
ses, de modo que se abarquem dados em que “com certeza” se conecte
a uma oração que já foi dita, como no exemplo a seguir:
(6) “Augusto Boal prepara sua atobiografia Estado – Com toda essa aceitação
na Inglaterra, vai haver continuidade nesse trabalho com a Royal Shakespeare
Company? Augusto Boal – Com certeza. É só uma questão de agenda, tanto a
minha como a deles são complicadas. Um dos diretores perguntou se os ato-
res gostariam de ensaiar com essas técnicas e todos disseram que sim. John
Kane disse: “Esse trabalho nos fez lembrar por que queríamos ser atores.”
(19Or:Br:Intrv:ISP)

Nesse dado de fala do século XX, “com certeza” parece retomar toda
a oração que está contida na pergunta do entrevistador: “Com toda essa
aceitação na Inglaterra, vai haver continuidade nesse trabalho com a
Royal Shakespeare Company?” “Com certeza (vai haver continuidade
nesse trabalho com a Royal Shakespeare).” Esse uso de “com certeza”
210   —  Coleção Pesquisadores

parece ser mais típico da oralidade, portanto, não aparece nos séculos
XVI, XVII e XVIII, já que só se tem dados da escrita desse período.

2.2 Chunking

Chunking é o processo cognitivo formador de chunks. Um chunk é uma


sequência (por exemplo, de morfemas, palavras etc) processada como
uma unidade. O chunking, assim como os demais processos cognitivos,
facilita a armazenagem de informação na memória.

Bybee (2016, p. 65) diz que é esse processo que está “por trás da
formação e do uso de sequências de palavras formulaicas ou pré-fabri-
cadas [...] e também é o mecanismo primário que leva à formação de
construções e de estrutura de constituinte”.

Desse modo, o chunk pode ser entendido como uma unidade in-
formacional constituída por duas palavras ou mais, ou por unidades
menores, como morfemas, que ocorrem juntas repetidamente. Em “com
certeza”, temos um chunk, visto que “com” e “certeza”, ao ocorrerem
frequentemente juntas, formam um único bloco de informação, e esse
chunk junto a verbo ou à oração forma chunks maiores. Isto é, as cons-
truções adverbiais qualitativa e modalizadora, por exemplo, também se
constituem chunks.

2.3 Analogia (analogização)

Na LFCU, a analogia, que alguns autores, como Traugott e Trousdale


(2013), preferem chamar de analogização, é definida como o “proces-
so pelo qual o usuário passa a usar um novo item numa construção”
(BYBEE, 2016, p. 99). O uso desse novo item se dá conforme a similari-
dade com os itens já utilizados nessa construção.

Com base nisso, formula-se a hipótese de que o uso modalizador


de “com certeza” poderia ter surgido por analogia à construção moda-
lizadora “sem dúvida”, já que possuem similaridades entre si: contêm
preposições (sem/com) e contêm sintagmas nominais com sentidos
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  211

antagônicos (dúvida/certeza), mas que, colocados dentro das suas res-


pectivas microconstruções, acabam por compor, nelas, sentidos que as
tornam semanticamente semelhantes (“sem dúvida” e “com certeza”).

No dicionário Aulete on-line,3 a primeira definição para a palavra “dú-


vida” é a “ausência de certeza quanto a um fato, informação, ideia etc.”;
para “certeza”, a definição é “qualidade do que é certo; correção; segu-
rança interior, verdadeira ou enganosa, de que algo (ideia, fato ou equi-
valente) está certo; convicção”. Desse modo, os sentidos desses nomes
se antepõem. Porém, quando figuram nas locuções adverbiais com suas
preposições favoritas já consolidadas (sem/com), formam unidades com
teor semântico-pragmático muito semelhante. Isto é, faz-se necessário
investigar se “falar sem dúvida” pode ser equivalente a “falar com cer-
teza” em alguma circunstância, e, se não for o caso, seria interessante
analisar por que o falante prefere um uso em detrimento do outro.4

Tendo isso em vista, observa-se, a princípio, qualitativamente, “sem


dúvida” nas mesmas sincronias que se observa “com certeza”. Conside-
rando os séculos XVI, XVII e XVIII, encontraram-se apenas a construção
qualitativa com “com certeza” e alguns dados ambíguos que podem
servir para análise de contextos em que possa ter surgido a construção
com valor modalizador, que se verifica em maior quantidade no portu-
guês do século XIX. Em contrapartida, “sem dúvida” figura já no século
XVI como parte da construção modalizadora. Esse uso parece ser bem
mais antigo, proveniente de “sine dubio” do latim. A partir dessas con-
siderações, na seção 4, faz-se uma discussão preliminar comparando
“com certeza” e “sem dúvida”.

3. TIPO E ITEM VERBAIS


Considera-se que o verbo é fundamental para ambas as construções,
mas sobretudo para a construção qualitativa, já que nessa o verbo é
modificado por “com certeza”. Assim sendo, o verbo é, então, elemento
3
Disponível em: http://www.aulete.com.br/d%C3%BAvida.
4
As diferenças entre “com certeza” e “sem dúvida” serão aprofundadas em passos futuros da pesquisa.
212   —  Coleção Pesquisadores

constituinte da construção adverbial qualitativa. Levando isso em con-


ta, utiliza-se uma adaptação da classificação semântica de Scheibmann
(2001), dividindo-se os verbos em treze tipos. São eles:
i) corpóreo, que se caracteriza por denotar ações ou processos
internos ou externos ao corpo (comer, chorar, gripar, suar etc.);
ii) de atividade verbal, que implica o uso de palavras escritas ou
faladas, encaixando-se também aí os performativos (falar, escre-
ver, prometer, ordenar etc.);
iii) de sentimento, que expressa emoções ou desejo, podendo ter
o sujeito ou o alvo como experienciadores (gostar, querer, ame-
drontar, preocupar etc.);
iv) de percepção, que indica as percepções pelos sentidos corporais
(olhar, ouvir, perceber, sentir etc.);
v) de percepção/relacional, que expressa a percepção que se tem
de um sujeito paciente (cheirar a flor, soar, parecer etc.);
vi) materiais, que apontam processos e ações que podem ser con-
cretos ou abstratos, fazendo parte da vida sociocultural do ser
humano (fazer, ir, cozinhar, influenciar etc.);
vii) de cognição, que manifesta atividade cognitiva (pensar, lembrar,
saber etc.);
viii) de crença, que indica a crença do indivíduo a respeito de algo
que se constitui no mundo real (acreditar, confiar, crer etc.);
ix) existenciais, que indicam processos naturais (existir, cho-
ver, acontecer, nascer etc.);
x) relacionais, que consistem nos verbos de ligação;
xi) possessivos, que denotam posse material ou abstrata (possuir,
ter etc.);
xii) modais, que indicam modalidade (poder, dever etc.); e
xiii) leves, que expressam pouco ou nenhum conteúdo semântico,
assumindo um valor específico somente se ligado a um objeto
(como “fazer” em “fazer uma visita” = visitar).
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  213

A partir disso, atenta-se às frequências type (de tipo) e token (de


ocorrência) dos verbos para buscar mapear quais ocorreram com as
construções estudadas.

Na tabela 1, apresentam-se os resultados preliminares com relação


aos tipos e itens verbais que ocorreram nas construções estudadas. É
válido destacar que foi obtido um total de 55 dados de “com certeza”
nessas sincronias. No entanto, em vários deles, “com certeza” estava
modificando apenas nomes, então, essas ocorrências não foram consi-
deradas para esta análise. Houve também alguns dados que se conside-
raram como ambíguos, portanto, foram levados em conta apenas para
análise qualitativa e não entraram na tabela 1. Dos dados considerados
nesta tabela, todos se configuram como construção qualitativa.

Tabela 1 – Tipos e itens verbais da construção [V com certeza]qualitativa


TIPO VERBAL ITENS VERBAIS XVI XVII XVIII TOTAL
Atividade verbal dizer, falar, responder 1 8 5 14
Cognição saber, conhecer - 5 8 13
Percepção notar, suspeitar, profetizar - 2 1 3
compor, averiguar,
Material - 4 - 4
prevenir, colher
TOTAL - 1 19 14 34

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Dos treze tipos verbais que se tinha em vista, apenas quatro ocorre-
ram na construção qualitativa, sobressaindo-se os de atividade verbal e
de cognição, que se configuram em mais da metade dos dados (27 de
34 dados). Sendo assim, parece que há certa restrição quanto ao slot
verbal dessa construção qualitativa com “com certeza”.

4. COMPARANDO “COM CERTEZA” E “SEM DÚVIDA”


Tendo em vista as similaridades entre “com certeza” e “sem dúvida”
mencionadas na seção 2.3, parte-se também para uma busca de “sem
dúvida” no Corpus do Português.
214   —  Coleção Pesquisadores

Em termos quantitativos, percebe-se, a partir desse corpus, que


“sem dúvida” é muito mais frequente que “com certeza”, como mostra
a tabela 2.

Tabela 2 – Frequência de “sem dúvida” e “com certeza”


no Corpus do Português
SÉC. XVI SÉC. XII SÉC. XVIII SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
SEM DÚVIDA5 155 164 78 722 730 1.849
COM
8 28 18 427 678 1.159
CERTEZA

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Dos dados coletados do século XVI até o século XVIII, “com certeza”
é majoritariamente qualitativo e frequentemente usado como nos exem-
plos (3) e (4), discutidos na seção 1.1: “dizer com certeza” e “saber
com certeza”. Nesses casos, “com certeza” ocorre logo após o verbo,
respectivamente, de atividade verbal e de cognição. No entanto, nessas
mesmas sincronias, “sem dúvida” já é usado majoritariamente como
modalizador, como no exemplo (7), do século XVIII:
(7) “O Sertão (a quem parece não pode ainda penetrar todo, ou o valor, ou a
cobiça) é sem dúvida imenso em terras, e Nações.” (17:Barros:Vieira)

Vemos, a partir desse exemplo, que, apesar da locução estar próxima


e após o verbo, tal verbo é esvaziado semanticamente, o que possibilita
que “sem dúvida” seja interpretado como um modalizador. Porém, é vá-
lido ressaltar que, mesmo sendo majoritariamente modalizador nessas
sincronias, também há ocorrência em que a leitura pode ser ambígua,
como no exemplo (8), do século XVI:
(8) “Se foi devoção dos que estavam presentes, ela (como dizíamos e quería-
mos) nos basta para o que vamos tratando; mas eles, sem dúvida afirmaram,
não o que imaginaram, mas o que viram, como nos deu por escrito um doutor
teólogo, sacerdote de muita autoridade, que por vezes o ouviu contar andando
na Índia.” (15:Lucena:SFXavier)

5
Foram considerados todos os usos e grafias de “sem dúvida” e “com certeza”, apesar de as
representarmos aqui pela grafia padrão.
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  215

No dado (8), não é simples classificar o “sem dúvida” como qua-


litativo ou modalizador, pois a locução se encontra em uma posição
(próxima ao verbo, porém, à sua esquerda) que pode gerar ambas
as interpretações. A leitura como qualitativo pode se dar se se pen-
sar que “eles” – mencionado pelo escritor – assumiram/sustentaram
como verdadeiro, a partir do que viram; nesse sentido, não tiveram
dúvida (afirmaram sem dúvida/“sem dúvida afirmaram”). No entanto,
ao analisar-se no contexto maior do excerto, vê-se que o usuário da
língua, inicia seu discurso com uma suposição, por meio de uma oração
condicional (“se foi devoção [...] nos basta”), e logo insere uma adver-
sativa iniciada por “mas”, concluindo com sua opinião: “mas eles, sem
dúvida afirmaram, não o que imaginaram, mas o que viram”. Nessa
leitura, o “sem dúvida” parece se ligar mais à oração como um todo,
referindo-se à opinião/certeza/conclusão lógica da pessoa que escreve,
do que apenas ao verbo “afirmar”.

O que se pode depreender até o momento é que, apesar das se-


melhanças entre “com certeza” e “sem dúvida”, esta última parece
ser menos provável6 de ocorrer como construção qualitativa do que
“com certeza”.

Ainda sobre a tabela 2, também é válido ressaltar que, a partir do


século XIX, a frequência de “com certeza” aumenta bastante, e entre os
séculos XIX e XX também. Já “sem dúvida” parece se estabilizar entre
essas duas sincronias. Sendo assim, é possível supor que “com certe-
za” passou a ser muito mais frequente a partir do momento em que
começou a figurar como construção adverbial modalizadora. Além dis-
so, a aparente estabilização na frequência de “sem dúvida” pode estar
se dando pela possível competição com outra construção, isto é, com
a construção [com certeza (Or)]modal. Contudo, por enquanto, não se
pode afirmar isso com certeza, pois ainda é preciso analisar qualitativa-
mente cada ocorrência dessas construções nessas sincronias também, o
que poderá ser feito em passos futuros.
6
Nos dados coletados com “sem dúvida” para esta comparação, encontramos o valor mo-
dalizador e ocorrências em que o sentido era ambíguo. É necessário ampliar a amostra para
buscar/verificar outros usos dessa construção, como, por exemplo, o qualitativo.
216   —  Coleção Pesquisadores

5. AMBIGUIDADE
Assim como se apresentou um dado ambíguo de “sem dúvida”
anteriormente, a ambiguidade também se faz presente na construção
“com certeza”, como neste exemplo do século XVII:
(9) “Eu bem sei que as boas obras só pódem merecer de congruo a perseve-
rança e graça final. Mas essa mesma congruencia, a qual tem o effeito depen-
dente da aceitação e vontade divina, depois de São Pedro declarar que o dito
effeito é certo, fica fóra de toda a duvida e contingencia. Sendo, pois, assim
(como parece que não póde deixar de ser) toda a consequencia das tres pro-
posições do Apostolo corre formalmente; porque a terceira segue-se com cer-
teza da segunda, e a segunda da primeira. A primeira assenta o fundamento
das boas obras: Ut per bona opera certam vestram vocationem, et electionem
faciatis.” (16:Vieira:Sermons)

Esse dado causa dúvida sobre como categorizá-lo, porque é possí-


vel depreender diferentes leituras. Uma possibilidade de interpretação
seria: a terceira proposição sucede a partir/quando da/com certeza da
segunda proposição. Outra possibilidade é a leitura como modalizador:
nesse caso, “com certeza” enfatiza a opinião do escritor – Padre António
Vieira – de que “a terceira [proposição] segue-se [...] da segunda [propo-
sição]”. Nessa interpretação, “com certeza” é mais subjetivo e modifica
a oração como um todo e não apenas o verbo. Além disso, aqui, também
parece estabelecer uma relação de consequência lógica ou conclusão
racional, como visto em exemplos anteriores. A interpretação seria: a
3ª proposição resulta, com certeza, da 2ª proposição; e a segunda da
primeira. Outras partes do texto como “eu bem sei” e “fica fora de toda
a dúvida e contingência” podem reforçar essa leitura mais subjetiva.

É válido destacar que a posição em que se encontra esse “com cer-


teza” pode estar influenciando em sua leitura ambígua, pois tende-se
– pelo princípio da iconicidade, mais especificamente o subprincípio
da proximidade – a associar, no plano sintático, os itens que estão
próximos cognitivamente (GIVÓN, 1990). Por isso, é possível relacionar
“com certeza” ao verbo, pois se dispõe bem ao seu lado na sentença.
Portanto, ao tentar entender determinados usos, também lançamos
mão das pistas linguísticas.
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  217

Outro exemplo que parece apresentar ambiguidade é o seguinte:


(10) “como Deos, que obrigando os homens a huma ley de dez preceitos, em
nenhum delles apontou a razão, porque os punha, deixando-a ao discurso da ley
natural, que nenhum homem deve ignorar, ainda que ha alguns taõ grosseiros,
que naõ atinaõ com ella. E por isso nunca ninguem disse, que a doutrina do
Decalogo, pelo que pertence á observancia pratica, era ciencia, ainda que o seja
no especulativo, pelo que descobre no bem para o abraçarmos, e no mal para
o fugirmos. De todo este discurso se colhe com certeza, que a arte de furtar he
ciencia verdadeira, porque tem principios certos, e demonstrações verdadeiras,
para conseguir seus effeitos, posto que por rudeza dos discipulos, ou por outros
impedimentos extrínsecos naõ chegue ao que pertende.” (16:Costa:Furtar)

Nesse exemplo, “com certeza” parece estar modificando o verbo


“colher”, estando a ordenação da locução em relação ao verbo colabo-
rando para essa leitura; isto é, de todo o discurso do decálogo se colhe
(aprende, depreende) com precisão, exatidão ou convicção que “a arte
de furtar é verdadeira”. No entanto, esse “com certeza”, apesar da po-
sição não usual para uma construção modalizadora, pode estar apenas
enfatizando a opinião certeira do escrevente.

Se se tratasse de dados de fala, uma análise da prosódia talvez pu-


desse possibilitar uma desambiguização, mas, como se trata de dados
da escrita e de sincronias passadas, temos, do ponto de vista formal,
somente as pistas sintáticas.

Esses exemplos, além de possibilitarem pistas sobre contextos que


podem ter propiciado o uso de “com certeza” em construções modaliza-
doras, reforçam a visão de categorização como um parâmetro gradiente:
“alguns exemplares são membros centrais da categoria, enquanto ou-
tros são mais marginais” (BYBEE, 2016, p. 131). Desse modo, tais usos
exibidos nesses dados ambíguos podem ser considerados “marginais”,
visto que se interpõem entre os valores qualitativo e modalizador. Um
membro mais central da categoria adverbial qualitativo poderia ser um
que estivesse após o verbo e modificando-o; enquanto um membro
mais central da categoria adverbial modalizador poderia ser um que
se posicionasse à margem esquerda da oração em que se encontra, ou
seja, mais distante do verbo, e não o tendo como escopo, e sim a oração
como um todo, reforçando o seu caráter discursivo-pragmático.
218   —  Coleção Pesquisadores

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
A partir deste trabalho, foi possível alcançar algumas considerações
que podem ser expandidas em passos futuros do estudo sobre “com
certeza”. A primeira consideração é que os processos cognitivos de
domínio geral são muito importantes para a análise desse objeto de es-
tudo, visto que são imprescindíveis para explicar os usos dessas cons-
truções e os percursos que podem ter possibilitado as mudanças. A
respeito da categorização, por exemplo, viu-se que, ao analisar alguns
dados, não se conseguiu delimitá-los a uma determinada categoria,
pois se encontram entre fronteiras que permitem mais de uma leitura,
o que reforça a categorização como um fenômeno gradiente. Ademais,
é válido ressaltar que os processos cognitivos se entrelaçam o tempo
todo, sendo, portanto, interdependentes.

Com relação à construção [V com certeza]qualitativa, que foi a cons-


trução com “com certeza” sobressaliente nas sincronias analisadas
(XVI, XVII e XVIII), parece haver certa restrição quanto ao slot verbal,
visto que os itens mais recrutados nessa posição foram os de atividade
verbal (dizer, falar, responder) e de cognição (saber, conhecer). Com
relação à construção modalizadora, não foi possível, na amostra aqui
analisada, computar em números esse fator, já que as ocorrências des-
sa construção tenderam à ambiguidade, o que nos levou a uma análise
qualitativa (dado a dado).

Por último, levantou-se a hipótese de que a construção [com certe-


za (Or)]modal provavelmente teria surgido por analogia à construção
[sem dúvida (Or)]modal, visto que esta última já apresentava valor
modalizador muito antes daquela, e, por isso, podem estar em com-
petição na rede construcional. Sendo assim, é válido pensar e explorar
mais adiante em quais contextos tais construções podem ser usadas
como sinônimas, visto que os próprios dicionários, como o Aulete,
apresentam-nas como equivalentes, e em quais contextos elas são
pragmaticamente diferentes. Por conseguinte, pretendemos investi-
gar também o que estaria favorecendo o uso de uma construção em
detrimento da outra.
Ester Moraes Gonçalves / Deise C. de Moraes Pinto   —  219

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALI, S. Gramática histórica da língua T. de. Gramática do português falado: a
portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria ordem. São Paulo: Editora da UNICAMP;
Acadêmica, 1971. FAPESP, 1990. v. I.
BARLOW, M.; KEMMER, S. (eds.). Usage MARTELOTTA, M. E. Reflexões sobre o
based models of language. Stanford, conceito de advérbio. Rio de Janeiro: UFRJ,
California: CSLI Publications, 2000. 2000. (mimeo).
BYBEE, J. Língua, uso e cognição. Tradução MORAES PINTO, D. C. Os advérbios
Maria Angélica Furtado da Cunha. Revisão qualitativos e modalizadores em -mente
técnica Sebastião Carlos Leite Gonçalves. e sua ordenação: uma abordagem
São Paulo: Cortez, 2016. histórica. 2002. Dissertação (Mestrado em
CASTILHO, A. T. de. Nova gramática do Linguística) – Programa de Pós-Graduação
português brasileiro. 1. ed. São Paulo: em Linguística, Universidade Federal do Rio
Contexto, 2016. de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
CROFT, W. Radical construction grammar: MORAES PINTO, D. C. Gramaticalização e or-
syntactic theory in typological perspective. denação nos advérbios qualitativos e moda-
Oxford: Oxford University Press, 2001. lizadores em -mente. 2008. Tese (Doutorado
em Linguística) – Programa de Pós-Gradua-
GIVÓN, T. Syntax: a functional-typological in- ção em Linguística, Universidade Federal do
troduction. Amsterdam: John Benjamins, 1990. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
GOLDBERG, A. E. Constructions: a SCHEIBMAN, J. Local patterns of subjectivity
construction grammar approach to in person and verb type in American English
argument structure. Chicago: The University conversation. In: BYBEE, J.; HOPPER, P.
of Chicago Press, 1995. Frequency and the emergence of linguistic
GOLDBERG, A. Constructions at work: the structure. Amsterdam; Philadelphia: John
nature of generalization in language. Benjamins Publishing Company, 2001.
Oxford: Oxford University Press, 2006. TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. G. Construc-
ILARI, R. et al. Considerações sobre a tionalization and constructional change.
posição dos advérbios. In: CASTILHO, A. Oxford: Oxford University Press, 2013.
12
A Construção Idiomática
“[VerimpSe] S” no Português
Brasileiro: uma Abordagem
Construcionista para a
Mudança Linguística
Dennis de Oliveira Alves (UFRJ – Mestrando)

– INTRODUÇÃO –
O desenvolvimento da gramática de construções (GC), na década de
1980, é motivado, em grande medida, pela avaliação de que a porção
irregular (isto é, que apresenta algum tipo de irregularidade sintática
e/ou semântica) do conhecimento linguístico do falante é muito mais
vasta do que parece sugerir a tradição hegemônica dos estudos da lin-
guagem ao longo do século XX – a saber, a linguística gerativa, da qual o
trabalho de Chomsky (1957) é pioneiro. Essa percepção levou os primei-
ros construcionistas – em particular, Charles Fillmore, Paul Kay e George
Lakoff, todos pesquisadores do campus de Berkeley, da Universidade
da Califórnia – a se debruçarem, preferencialmente, sobre os chamados
idioms: padrões linguísticos que apresentam irregularidade em face das
regras gerais da gramática de uma dada língua.

— 221 —
222   —  Coleção Pesquisadores

Como resultado dessa preferência, bem como do fato circunstancial


de que a GC se desenvolveu originalmente nos Estados Unidos, muito
se avançou em relação ao conhecimento e à descrição da porção idio-
mática da gramática da língua inglesa. Assim, da década de 1980 para
cá, dezenas de idioms do inglês tiveram seu funcionamento dissecado.

Se, no caso do inglês, uma vasta quantidade de construções idiomá-


ticas já foi identificada e descrita com razoável detalhe, o mesmo não
pode ser dito em relação ao português brasileiro (PB). Com efeito, a aná-
lise da crescente produção construcionista sobre o PB revela a existência
de diversos estudos sobre temas como estrutura argumental, padrões
de modificação verbal e construções aspectuais. Essa ênfase, por outro
lado, acaba por deixar de fora um vasto número de padrões convencio-
nais semifixos com forma e/ou interpretação irregulares.

A fim de contribuir para reduzir essa lacuna, este estudo recorre ao


paradigma da gramática de construções baseada no uso (GCBU) – a ver-
tente funcional-cognitiva da GC – a fim de se debruçar sobre uma fórmula
idiomática (isto é, um padrão cuja interpretação semântico-pragmática
não é composicional) do PB, à qual iremos nos referir como construção
[VERIMP SE] S. Trata-se de um padrão semipreenchido que seleciona, no slot
S, uma sentença, como pode ser verificado nos exemplos a seguir.
(1) Vê se não chega tarde.
(2) Vê se isso é hora de acordar?

Como se observa, o enunciado (1) realiza um ato pragmático de co-


brança – trata-se de um pedido destinado a influenciar o comportamen-
to futuro do interlocutor. Já o enunciado (2) se caracteriza como uma
crítica – neste caso, não necessariamente endereçada ao interlocutor – a
um evento passado. Nos dois casos, porém, faz-se um uso não compo-
sicional da construção, que se diferencia nitidamente dos usos a seguir.
(3) Vai lá na sala e vê se a janela ficou aberta.
(4) Dá uma lida no texto e vê se você concorda.

Apesar da semelhança superficial com (1) e (2), as sentenças (3)


e (4) diferem desses dois exemplos por apresentarem interpretação
Dennis de Oliveira Alves   —  223

semântico-pragmática composicional: elas se caracterizam como pedi-


dos (o que é esperado, dada a presença dos verbos no modo impera-
tivo) para que o interlocutor verifique o estado da janela – em (3) – e
avalie o texto referido – em (4). Não há aqui, portanto, a interpretação
presente em (1) e (2).

Este estudo focalizará a construção idiomática [VERIMP SE] S com inter-


pretação não composicional. Especificamente, propomo-nos a responder,
em relação a essa construção, as seguintes perguntas de pesquisa:
i) Quando e como os usos da sequência [VERIMP SE] S com sentido
idiomático surgiram no PB?
ii) Uma vez estabelecida na rede construcional do PB, por que mu-
danças a nova construção passou ao longo do tempo?

Para responder a essas perguntas, recorremos, do ponto de vista me-


todológico, a uma análise tanto qualitativo-interpretativa quanto quan-
titativa de dados extraídos do Corpus do Português.1 Os detalhes dos
procedimentos metodológicos estão explicitados na seção 2.

Na próxima seção, dedicada aos pressupostos teóricos, apresentare-


mos os princípios básicos da GC e, em particular, da GCBU, bem como a
proposta aqui adotada para a aplicação da abordagem construcionista
ao fenômeno da mudança linguística. Na seção 2, será elucidada a me-
todologia aplicada. Em seguida, na seção 3, são explicitados os procedi-
mentos de análise, a partir da qual é feita uma discussão. Finalmente,
as considerações finais trazem uma síntese do projeto, destacando-se
as contribuições teórico-descritivas que buscamos oferecer.

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Nesta seção, são apresentados, inicialmente, os princípios teóricos da
GCBU, quadro teórico que norteia esta pesquisa, e, na sequência, a
proposta de Traugott e Trousdale (2013) para aplicação da abordagem
construcionista ao fenômeno da mudança linguística.
1
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org.
224   —  Coleção Pesquisadores

1.1. Gramática de construções baseada no uso: contextualização e


princípios básicos

Surgida na década de 1980 a partir do trabalho de autores como


Charles Fillmore, George Lakoff e Paul Kay (FILLMORE, 1985; LAKOFF,
1987; FILLMORE; KAY; O’CONNOR, 1988), a GC se apresenta como um mo-
delo não derivacional de representação do conhecimento linguístico. De-
vido à sua popularização nas décadas seguintes, ela se segmentou em
diversas variantes, entre elas a GCBU, sua vertente funcional-cognitiva.

Não obstante o fato de haver muitos modelos filiados à GC, todos


compartilham alguns princípios fundamentais. O primeiro é o de que as
construções gramaticais, definidas como pareamentos convencionais de
informações de forma (propriedades fonológicas, morfossintáticas e pro-
sódicas) e de significado (aspectos semânticos, pragmáticos, discursivos
e funcionais), podem descrever o conhecimento linguístico do falante em
sua totalidade. Desse modo, a gramática do falante passa a ser entendi-
da como um inventário de construções gramaticais, e não mais como um
sistema de regras derivacionais, como assume a tradição gerativa.

Dada a definição de construção gramatical, fica evidente que as en-


tidades gramaticais que se qualificam como signos saussurianos – pala-
vras e morfemas – se qualificam também como construções. Assim, uma
palavra como casa, por exemplo, é uma construção porque apresenta
informações de forma – neste caso, a sequência fonológica /’kaza/ –
e de significado – o conhecimento enciclopédico relativo a ela
(cf. LANGACKER, 1987; 1991). Semelhantemente, um prefixo verbal como
des– também se caracteriza como construção, já que carrega informa-
ções que dizem respeito à sua forma (a sequência /deS/) e a seu signi-
ficado (como sentido mais prototípico, o de ação reversa).

No entanto, e esta é uma diferença fundamental em relação à abor-


dagem saussuriana, é importante salientar que não são apenas palavras
e morfemas que se qualificam como construções. Na verdade, as cons-
truções gramaticais podem ser de naturezas diversas, o que compreen-
de, ainda, estruturas sintáticas inteiramente abstratas (por exemplo,
Dennis de Oliveira Alves   —  225

S V OD OI, como em “João deu flores para Maria”); estruturas sintáti-


cas semipreenchidas (VERIMP SE S, QUE MANÉ X, como, respectivamente,
em “Vê se pode uma coisa dessas” e “Que mané acordar cedo”); pa-
drões morfológicos (X-eiro, X-dor, como em “fofoqueiro” e “falador”);
e expressões idiomáticas fixas (“engolir sapo”, “segurar vela”).

Como se observa, os diferentes tipos de construções se distinguem


quanto ao grau de preenchimento fonológico e ao grau e complexi-
dade estrutural interna. Assim, casa é uma construção inteiramente
preenchida e estruturalmente simples, ao passo que S V OD OI é uma
construção, ao mesmo tempo, fonologicamente aberta e estrutural-
mente complexa. Apesar disso, todas elas são, no fim das contas, pa-
reamentos entre forma e significado, e, portanto, construções grama-
ticais. Isso significa dizer que elas são qualitativamente semelhantes
e, por isso, costuma-se falar, em GC, na existência de um continuum
léxico-sintaxe (como o que se vê na tabela 1, a seguir), que, sob essa
perspectiva, compõe integralmente o conhecimento do falante sobre
sua língua, sendo os dois extremos desse continuum os domínios tra-
dicionais do léxico e da sintaxe.

Tabela 1 – Continuum léxico-sintaxe


TIPO DE CONSTRUÇÃO EXEMPLOS
Palavra Casa
Expressão idiomática fixa Engolir sapo; Segurar vela
Padrão morfológico X-eiro (fofoqueiro); X-dor (falador)
Vê se X (Vê se pode uma coisa dessas);
Estrutura sintática semipreenchida
Que mané X (Que mané acordar cedo)
Estrutura sintática aberta S V OD OI (João deu flores para Maria)
Fonte: Elaborada pelo autor.

Um segundo princípio comum às diferentes vertentes da GC diz res-


peito à organização dessas construções. Gramáticos construcionistas
apontam que o conhecimento linguístico se estrutura como uma grande
rede de construções gramaticais interconectadas, correntemente referi-
da como constructicon (da soma de lexicon com construction, ou seja,
um léxico de construções). E, mais especificamente, todas as variantes
226   —  Coleção Pesquisadores

da GC concordam que as construções gramaticais se organizam em


termos de relações taxonômicas, o que implica a existência de constru-
ções mais gerais/abstratas e de outras mais específicas/concretas.

A título de exemplificação, é possível assumir que um falante


do PB dispõe, em seu inventário construcional, tanto de construções
concretas, como falar bonito, sonhar alto e andar rápido, quanto de
construções mais abstratas, como VERBO + ADJETIVO ADVERBIAL. Pode-
mos afirmar que a relação entre as três primeiras e esta última é de na-
tureza taxonômica, justamente porque as construções mais concretas,
específicas, são subtipos da construção mais abstrata, geral. A figura 1
ilustra tal representação.
Figura 1
Exemplo de rede de construções de adjetivo adverbial

Fonte: Elaborada pelo autor.

Em síntese, a GC concebe a totalidade do conhecimento linguístico


do falante como um inventário de construções gramaticais (o construc-
ticon), as quais são interconectadas por meio de relações taxonômicas.

É necessário acrescentar, no entanto, que a GCBU, vertente da GC


à qual se filia a presente pesquisa, distingue-se das variantes forma-
listas do modelo por pelo menos dois princípios adicionais. O primeiro
deles, legado da tradição funcionalista norte-americana, diz respeito à
premissa de que a experiência linguística do falante – ou seja, o uso
– afeta o conhecimento linguístico subjacente. Essa ideia fundamen-
tal pode ser dividida em duas premissas: i) não existe conhecimento
linguístico inato; e ii) a representação gramatical é constantemente
moldada pela experiência.
Dennis de Oliveira Alves   —  227

A primeira premissa se opõe à perspectiva inatista da linguística


gerativa, segundo a qual o indivíduo já nasce com uma capacidade bio-
lógica para adquirir e usar uma língua. Sob essa perspectiva, a aquisição
de uma língua é resultado direto do amadurecimento desse dispositivo
inato para a linguagem. Já sob a concepção da GCBU, a totalidade do
conhecimento linguístico do falante é construída a partir do input (ainda
que por meio de habilidades cognitivas inatas associadas à cognição
geral, isto é, à cognição não linguística).

A segunda premissa, segundo a qual a experiência com o input lin-


guístico afeta continuamente o conhecimento internalizado do falante,
além de contrariar a ideia, cara à tradição gerativa, de que existiria um
“período crítico” para a aquisição de linguagem, implica a possibilidade
de representações redundantes na rede construcional, uma proposta
que opõe a GCBU às vertentes formalistas da GC. Desse modo, sequên-
cias inteiramente previsíveis podem vir a ser representadas como cons-
truções independentes na rede construcional do falante, desde que se-
jam suficientemente frequentes.

Tomando por exemplo a figura 1, seria possível supor, de acordo com


esse princípio, que as sequências “falar bonito”, “sonhar alto” e “andar
rápido” fossem representadas de forma independente na rede constru-
cional do falante, embora sejam totalmente previsíveis, dada a constru-
ção mais abstrata VERBO + ADJETIVO ADVERBIAL. Para que isso ocorresse,
bastaria que o falante fosse exposto a essas sequências repetidamente.
Em outras palavras, seria necessário que elas tivessem alta frequência
token (ou frequência de ocorrência). É por isto que se afirma que a GCBU
assume a possibilidade de redundância representacional: porque ela
admite a possibilidade de o falante armazenar mais do que é, de fato,
necessário. Nesse sentido, o modelo reflete o legado da linguística cog-
nitiva, na medida em que se compromete com a realidade psicológica,
não com a parcimônia descritiva.

O segundo princípio específico da GCBU, este fortemente associado


à tradição da linguística cognitiva, corresponde à ideia de que proces-
sos cognitivos de domínio geral – e não especificamente linguísticos –
228   —  Coleção Pesquisadores

devem ser evocados para explicar fenômenos linguísticos e, inclusive,


a estrutura gramatical. Assim, mecanismos psicológicos como analogia,
chunking e categorização são fundamentais, sob a ótica da GCBU, para ex-
plicar a estrutura da rede construcional armazenada na mente do falante.

1.2. Mudança linguística em GCBU

Sob a perspectiva da GCBU, a mudança linguística se dá na interação


entre os falantes, ou seja, no uso da língua, e é vista como um processo
que atinge a rede construcional criando novos pareamentos de forma e
significado – isto é, novas construções – ou alterando componentes de
uma construção (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013).

De acordo com Traugott e Trousdale (2013), uma construção está su-


jeita a dois tipos de mudança linguística: a mudança construcional e a
construcionalização. Na mudança construcional, apenas uma dimensão
interna da construção – o polo da forma ou o polo do sentido – é afeta-
da. Nesse caso, não há a criação de uma nova construção. Entretanto,
por meio de uma sequência de mudanças graduais, ela pode resultar
no segundo tipo de mudança, a construcionalização, em que há o surgi-
mento de uma nova construção na rede.

Em especial, a construcionalização ocorre por meio de dois mecanis-


mos cognitivos: neoanálise e analogização. Na neoanálise, há uma traje-
tória diacrônica. Inicialmente, uma forma já existente na língua é empre-
gada em um contexto atípico, de modo a suscitar uma reinterpretação por
parte do interlocutor. O interlocutor, então, entende que a construção usa-
da deve ser vista sob uma nova forma e/ou nova função. Num segundo
momento, esse novo uso pode começar a se convencionalizar e, por isso,
aparece em contextos críticos, em que duas leituras são possíveis. Num
último momento, o novo uso, já convencionalizado, passa a ser utilizado
em contextos isolados, em que apenas o novo sentido é possível.

A neoanálise ocorre por meio de um processo indutivo, de modo


que as ocorrências (ou construtos) vão se convencionalizando, poden-
do formar um padrão mais abstrato. Esse padrão pode se tornar mais
Dennis de Oliveira Alves   —  229

produtivo e levar a novas construcionalizações por meio da analogiza-


ção, mecanismo que produz alinhamentos de forma e sentido que não
existiam antes por analogia a um padrão já existente.

O conceito de construcionalização parece bastante apropriado para


dar conta do surgimento da construção idiomática [VERIMP SE] S no PB.
Partimos da hipótese de que um dos construtos da construção teria,
inicialmente, deixado de poder ser alinhado ao padrão mais esquemá-
tico de imperativo para, então, emergir, ele próprio, como um novo nó
na rede construcional. Com isso, ele se construcionalizaria, podendo,
ainda, levar à emergência de novas construções na rede.

2. METODOLOGIA
Como apontado anteriormente, propomo-nos a investigar: i) como e
quando se deu o surgimento da construção [VERIMP SE] S na rede cons-
trucional do PB; e ii) por que mudanças ela passou ao longo do tempo.
Para isso, nosso método de investigação consiste em análise de corpus.
Os dados foram extraídos do Corpus do Português, que contém uma
base de dados com 45 milhões de palavras de quase 57 mil textos em
português dos séculos XIII ao XX, à qual recentemente (agosto de 2018)
foi feita uma adição de mais 1,4 bilhão de palavras de jornais e revistas
on-line de 2012 até a atualidade (junho de 2019).

Para a coleta dos dados, foram utilizados os comandos de busca


“vê se” e “veja se”, sendo consideradas apenas as sequências com
interpretação idiomática, como ocorre nos exemplos (1) e (2) da in-
trodução deste artigo, e descartadas as sequências com interpretação
composicional, como ocorre em (3) e (4). Os filtros utilizados foram:
séculos XIII ao XX (corpus histórico)2 e século XXI (corpus NOW),3 textos
em português brasileiro e todas as categorias de gêneros textuais dispo-
nilizadas pelo corpus (acadêmicos, notícias, ficção, oral e web). Ao total,
foram coletados 303 dados.

2
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org/hist-gen.
3
Disponível em: https://www.corpusdoportugues.org/now.
230   —  Coleção Pesquisadores

Fizemos, primeiramente, uma análise qualitativo-interpretativa de


todos os dados coletados. Nessa análise, observamos o valor semântico
subjacente aos seus diferentes usos pragmáticos.

Quanto à hipótese de que o surgimento da construção teria sido


propiciado por um mecanismo de neoanálise, resultando em um padrão
menos composicional, verificamos a possibilidade de existência de con-
textos críticos, que poderiam, então, ter permitido o surgimento da nova
construção. Para isso, procedemos a uma análise qualitativo-interpreta-
tiva dos enunciados. Com isso, buscamos verificar se é possível oferecer
uma explicação para o surgimento da construção baseada no concei-
to de neoanálise, e se a construção resultante exibe, de fato, menor
grau de composicionalidade, isto é, se certas ocorrências da sequência
[VERIMP SE] S teriam deixado de ser interpretáveis como semanticamente
composicionais, resultando em um desalinhamento entre o significado
novo e o padrão formal mais antigo.

Por fim, numa tentativa de mapear numericamente os usos da cons-


trução e explicar as mudanças pelas quais ela passa, fizemos uma aná-
lise quantitativa dos dados coletados.

3. ANÁLISE E DISCUSSÃO
No que diz respeito às informações semântico-pragmáticas subjacentes à
construção, postulamos que o padrão [VERIMP SE] S veicula semântica geral
de avaliação negativa, podendo levar à emergência de diferentes interpre-
tações pragmáticas, a depender do contexto interacional. Mais especifica-
mente, postulamos que a semântica da construção é a de avaliação nega-
tiva de situação. Para fins dessa descrição, estamos entendendo situação,
seguindo a proposta de Vendler (1967), como qualquer estado (físico ou
mental), processo (limitado ou ilimitado) ou evento que aconteça.

A partir da análise dos dados, pudemos perceber que as situações


avaliadas no uso da construção em foco podem ser tanto comportamen-
tos potenciais como crenças efetivas. Comparemos, por exemplo, os
dados em (5) e (6):
Dennis de Oliveira Alves   —  231

(5) Vê se muda de assunto, isso me dá canseira. (Corpus do Português, séc. XX)


(6) Sofia não se apertara nem na dor de Marta Bento. Vê se precisava agora,
na tristeza do velório, brigar por futilidades. (Corpus do Português, séc. XX)

No exemplo (5), trata-se de uma cobrança destinada a influenciar o


comportamento futuro do interlocutor. Para além dessa interpretação
mais superficial, porém, parece haver uma avaliação negativa de um
comportamento potencial: ao dizer “Vê se muda de assunto”, o locutor
parece antecipar o fato de que seu interlocutor provavelmente não o
fará, o que se torna alvo de uma avaliação negativa. Muito possivelmen-
te, esse tipo de antecipação se baseia em alguma experiência passada
– afinal, se o locutor cobra que seu interlocutor faça determinada coisa,
é porque este, sabendo o que deveria fazer, não o fez até então. Nesse
sentido, uma cobrança se distingue de uma ordem, que não pressupõe
nenhum tipo de conhecimento prévio (por parte daquele que a recebe)
acerca do que deveria ser feito. A construção, então, se caracteriza,
quanto à função pragmática, como uma cobrança, e apresenta um ato
de fala diretivo, uma vez que há uma tentativa de levar o interlocutor a
executar determinada ação.

No exemplo (6), porém, a avaliação negativa é de uma crença


efetiva. Podemos presumir que há uma discordância por parte do
locutor em relação à crença atribuída a um sujeito de consciência
(neste caso, Sofia). Na medida em que o locutor sugere que brigar
por futilidades na tristeza do velório é desnecessário, o que é dis-
crepante em relação à crença de Sofia, ele a avalia negativamente.
A construção, portanto, realiza, nesse caso, a função pragmática de
crítica, e apresenta um ato de fala representativo, já que o falante
se compromete com a verdade da sua proposição (expressa pela
negação do conteúdo da sentença que ocupa o slot S – nesse caso,
o falante assume que “NÃO S”, ou seja, “não precisava agora, na
tristeza do velório, brigar por futilidades”).

A tabela 2 reúne as principais informações acerca dos dados em (5)


e (6), que se caracterizam como instâncias da construção em análise.
232   —  Coleção Pesquisadores

Tabela 2 – Análise de instanciações da construção [VERIMP SE] S


EXEMPLOS TIPO DE SITUAÇÃO AVALIADA FUNÇÃO PRAGMÁTICA ATO DE FALA
5 Comportamento potencial Cobrança Diretivo
6 Crença efetiva Crítica Representativo

Fonte: Elaborada pelo autor.

Em resumo, a condição de licenciamento do uso da construção em (5)


é o falante pressupor que o ouvinte não terá o comportamento desejado
X. Como dissemos acima, essa pressuposição provavelmente se dá com
base em algum tipo de experiência passada avaliada negativamente, seja
ela diretamente relacionada ao conteúdo da cobrança ou não. A partir dis-
so, o que a construção expressa, de fato, é uma cobrança, embora vazia
de expectativas, para que o ouvinte tenha o comportamento desejado X.
Já em (6), a condição de licenciamento é o falante pressupor que um su-
jeito de consciência detém a crença X (crença que, muito provavelmente,
é subjacente a um comportamento de tal sujeito). Quanto ao que o uso
da construção, de fato, traduz, pode-se dizer que o falante afirma que a
crença X é falsa, ou seja, discorda de tal crença e, portanto, a critica.

No que diz respeito ao surgimento da construção no PB, percebe-


mos que não houve, entre os dados dos séculos XIII ao XVIII do corpus
investigado, ocorrências da sequência [VERIMP SE] S com interpretação
idiomática nem de contextos críticos que pudessem ter favorecido a
neoanálise. Assim, propomos que a emergência da construção teria se
dado no século XIX, em que começam a aparecer no corpus enunciados
em que a interpretação da sequência é não composicional. Nesse mes-
mo século, identificamos enunciados em que há ambiguidade no uso da
sequência, de modo que tanto uma interpretação mais composicional
quanto uma mais idiomática são possíveis:
(7) E foi nas pontas dos pés acordar um criado.
– Arranja-me um banho morno quanto antes! – gritou – e vê se descobres por
aí alguma roupa, aquilo lá por cima está ainda tudo fechado! (Corpus do Por-
tuguês, séc. XIX)

Nesse uso, a sequência [VERIMP SE] S (em itálico) pode ser interpreta-
da com um sentido mais composicional, ou seja, como um pedido para
Dennis de Oliveira Alves   —  233

que o criado veja, verifique, descubra alguma roupa, mas também com
um sentido mais idiomatizado, em que o locutor cobra que o seu criado
descubra alguma roupa – em outras palavras, em que há uma avaliação
negativa de comportamento potencial, tal como em (5).

Todos os dados ambíguos apresentam em comum, quanto à forma,


sentenças com verbo no tempo presente e, quanto ao significado/fun-
ção, atos diretivos (o que é esperado, dada a presença do imperativo)
em que são feitos pedidos para que o interlocutor avalie a viabilidade
de executar determinada ação. Verbos como “descobrir”, “conseguir” e
“persuadir”, que aparecem na sentença do slot S nos dados em que há
a possibilidade de dupla interpretação, apresentam semântica de ten-
tativa, o que caracteriza o contexto crítico que possivelmente favoreceu
a neoanálise.

A partir dessa análise, propomos que alguns construtos da constru-


ção de imperativo teriam, inicialmente, deixado de poder ser alinhados
ao padrão mais esquemático para, então, emergir como novos nós na
rede construcional. À medida que foram se convencionalizando, pude-
ram formar um padrão mais abstrato, ao qual nos referiremos como
[VERIMP SE] SVPRS. Postulamos a neoanálise como mecanismo que teria
levado à emergência desse novo nó na rede. Nesse processo, a cons-
trução de imperativo teria sido reanalisada: i) quanto à forma, de modo
que o verbo no imperativo e o complementizador “se” foram reagrupa-
dos como um chunk (representado entre colchetes), o que aponta para
uma perda de composicionalidade; e ii) quanto à função, de modo que o
que antes era um pedido passa a ser reinterpretado como uma cobran-
ça, sendo a construção usada em situações em que há uma avaliação
negativa de comportamento potencial.
234   —  Coleção Pesquisadores

Figura 2
Neoanálise e a construcionalização da sequência [VERIMP SE] SVPRS

Fonte: Elaborada pelo autor.

A análise dos dados revela, também, que o surgimento da constru-


ção com sentido de crítica, como em (4), teria se dado posteriormente,
apenas no século XX (tabela 3).
Tabela 3 – Distribuição das ocorrências de
[VERIMP SE] S idiomático por função pragmática
FUNÇÃO
SÉC. XIX SÉC. XX SÉC. XXI
PRAGMÁTICA
Cobrança 48/48 (100%) 29/35 (83%) 154/220 (70%)
Crítica 0/48 (0%) 6/35 (17%) 66/220 (30%)

Fonte: Elaborada pelo autor.

Como se pode observar, no século em que surge o uso idiomático


da construção, em 100% das ocorrências (48 dados) a função pragmá-
tica é de cobrança. Já no século XX, embora com menor frequência
(17%) em relação à de cobrança (83%), a função de crítica começa a
aparecer no corpus.

Ao analisar as ocorrências da sequência [VERIMP SE] S com sentido de


crítica, notamos que há a perda de uma especificação formal em relação
ao sentido de cobrança, de modo que o verbo da sentença que ocupa
o slot S deixa de estar necessariamente no tempo presente, como no
exemplo (6), em que o verbo ocorre no pretérito imperfeito do indicati-
vo. Portanto, uma vez que há mudanças em ambos os polos da constru-
ção, postulamos, em consonância com a teoria de Traugott e Trousdale
(2013), uma nova construcionalização no século XX.
Dennis de Oliveira Alves   —  235

Acreditamos que o surgimento da nova construção teria sido pro-


piciado por um mecanismo de analogização, de modo que o novo ali-
nhamento de forma e função – nesse caso, a sequência [VERIMP SE] S,
a pragmática de crítica e a semântica de avaliação negativa de crença
efetiva – é criado por analogia a um padrão já existente – a sequência
[VERIMP SE] SVPRS, a pragmática de cobrança e a semântica de avaliação
negativa de comportamento potencial (figura 3).
Figura 3
Analogização e a construcionalização de [VERIMP SE] S

Fonte: Elaborada pelo autor.

Nesse momento, haveria o surgimento de um terceiro nó na rede


construcional. Por indução, podemos postular um nível mais abstrato
na rede, tendo em vista as similaridades formais e funcionais que há
entre as construções no nível mais concreto (representado mais abaixo
na rede). Essa nova configuração da rede construcional do PB está re-
presentada na figura 4.

Como se pode ver, a construção mais abstrata se relaciona com


as demais via link taxonômico, uma vez que se configura como uma
categoria da qual elas são membros. No polo da forma, a construção
mais geral preserva o chunk [VERIMP SE] e o slot S não marcado quanto ao
tempo verbal da sentença. Quanto à função, ela veicula semântica geral
de avaliação negativa de situação, e não é especificada nem quanto ao
ato de fala nem quanto à função pragmática. Vale lembrar que estamos
entendendo como situação qualquer estado (físico ou mental), processo
(limitado ou ilimitado) ou evento que aconteça. No caso da construção
em análise, a situação avaliada negativamente pode ser tanto um com-
portamento potencial como uma crença efetiva.
236   —  Coleção Pesquisadores

Figura 4
Indução e reorganização da rede construcional

Fonte: Elaborada pelo autor.

Em nossa análise, notamos, ainda, um aumento da frequência de


ocorrência das construções no século XX. A construção de crítica, por
exemplo, torna-se, no corpus analisado, 13% mais frequente do que no
século de seu surgimento, passando a corresponder a 30% dos dados
coletados. Esses números evidenciam que, uma vez estabelecidas na
rede, as construções foram se tornando progressivamente mais conven-
cionais e, consequentemente, mais recorrentes.

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Este estudo buscou explicar, sob uma perspectiva construcionista, o
processo de mudança linguística que teria dado origem ao surgimento
e posterior desenvolvimento de uma construção idiomática, à qual nos
referimos como [VERIMP SE] S, no PB. Como já dissemos, e vale ressaltar,
a crescente produção construcionista sobre o PB, embora se debruce so-
bre questões como estrutura argumental, padrões de modificação verbal
e construções aspectuais, acaba por deixar de lado a descrição de um
Dennis de Oliveira Alves   —  237

considerável grupo de padrões convencionais semifixos com forma e/ou


interpretação irregulares, entre os quais a construção aqui focalizada.

Nesse sentido, esta pesquisa tem o potencial de contribuir com


a descrição, sob uma ótica construcionista, da porção idiomática da
gramática do PB, ainda pouco descrita e, por vezes, negligenciada na
literatura em GCBU sobre construções do português. Adicionalmente,
este estudo buscou contribuir teoricamente para o desenvolvimento do
modelo construcionista de mudança linguística proposto por Traugott e
Trousdale (2013), na medida em que o colocamos à prova por meio do
exame de uma construção particular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BYBEE, J. Language, usage and cognition. LAKOFF, G. Women, fire and dangerous
Cambridge: Cambridge University Press, things: what categories reveal about the
2010. mind. Chicago: University Press, 1987.
CHOMSKY, N. Syntactic structures. The LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive
Hague: Mouton, 1957. gramar: descriptive application. Stanford:
FILLMORE, C. J. Syntactic intrusions and University Press, 1991.
the notion of grammatical construction. _______. Foundations of cognitive gramar:
In: ANNUAL MEETING OF THE BERKELEY theoretical prerequisites. Stanford:
LINGUISTICS SOCIETY, 11., Berkeley, 1985. University Press, 1987.
Proceedings [...] Berkeley: Berkeley TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructio-
Linguistics Society, 1985. p. 73-86. nalization and constructional changes. Ox-
FILLMORE, C. J.; KAY, P.; O’CONNOR, M. C. ford: Oxford University Press, 2013.
Regularity and idiomaticity in grammatical VENDLER, Z. Linguistics in philosophy.
constructions: the case of let alone. Ithaca, NY: Cornell University Press,
Language, v. 64, n. 3, p. 501-538, 1988. 1967.com precisão, sobre as causas do
GOLDBERG, A. E. Constructions at work: the alcoolismo. Em contrapartida, tem-se a
nature of generalization in language. 1. ed. seguir um comportamento diferente do
Oxford: Oxford University Press, 2006. apresentado anteriormente:
13
A Construção Marcadora
Discursiva Perceptivo-Visual em
Rota de Convencionalização
Vania Rosana Mattos Sambrana (UFF – Doutoranda)

– INTRODUÇÃO –
Este capítulo se dedica à análise da trajetória de convencionalização dos
marcadores discursivos formados de uma base de sentido visual (olhar e
ver) e, em alguns casos, amalgamados por elemento afixoide, nos termos
de Booij (2007; 2013), de valor locativo ou focalizador (lá, aqui, aí, só, bem).
Dentre os marcadores discursivos levantados temos: olha, olhe, olhem,
olha aqui, olhe aqui, olha lá, olhe lá, olha aí, olha só, olha bem, vê, veja,
vejam, vejamos, viu, vê lá, veja lá, vê só, veja só, vejam só, vê bem, veja
bem e vejam bem. Nossa coleta de dados estende-se do século XV até o
século XX. Em nossas análises sobre a formação e o uso desses marcadores
discursivos, averiguamos diferenças na trajetória de convencionalização
desse grupo de marcadores discursivos. Com base na linguística funcional
centrada no uso, apontamos que mecanismos de neoanálise e analogiza-
ção, nos moldes de Traugott e Trousdale (2013) e Fischer (2011), atuam
na construcionalização desses novos pareamentos. Assumimos ainda que,
no século XX, um esquema mais geral surge, o qual codificamos como
[Vvisual(x)afixoide]Marcador Discursivo, que passamos a tratar como [Vv(x)af]MD.

— 239 —
240   —  Coleção Pesquisadores

Ao nomearmos a construção mais geral, [Vv(x)af]MD, como construção


marcadora discursiva perceptivo-visual (SAMBRANA, 2017), assumimos
que se trata de um nó mais geral na rede linguística, nos termos de
Goldberg (2006), com função marcadora discursiva, formado a partir de
usos conceptualizados por meio do sentido da percepção-visual. Embora
esse único esquema se estabeleça ao final desse processo de constru-
cionalização, detectamos etapas em que pressões de usos motivam o
surgimento de três padrões construcionais específicos.

O primeiro padrão é constituído por apenas uma parte, que diz res-
peito à origem verbal de sentido visual – no nosso caso, olhar ou ver,
por exemplo, olha e vejam. Ilustramos esse padrão construcional com
os fragmentos a seguir:
(1) Olha, eu confio em todos eles, eu... eu costumo assim analisar bem a pes-
soa quando (conheço) observo, estou atento a tudo, nos mínimos detalhes, se
a pessoa tive assim com um dedinho de fora, eu vou olha aquele dedinho, tá
entendendo? (PEUL/RJ, XX, falante 9, 1999)

(2) Sabe-se agora: o Inter tentou vetar o árbitro desta noite, mas a FGF não
teve força suficiente. Vejam: a direção colorada não queria Sidrak Marinho, era
o único juiz que não gostaria de ver apitando, e a Conaf escala o sujeito. Aqui
entre nós: é provocação. (Corpus do Português, XX, noticiário, H. Mombach,
De primeira, 1997)

O segundo padrão é constituído por duas partes, a base olhar ou ver


acrescida de elemento com valor locativo (lá, aqui, aí), por exemplo,
olha aqui e veja lá:
(3) E: Poxa! E que você acha assim de mulher jogando futebol, heim?
F: Está, olha aqui, eu não sou favorável não. Eu acho que existe o esporte é
feminino e o futebol, esporte masculino, não é? Eu acho, que eu acho que é
um porque já pensou? Se a mulher vai jogar futebol, amanhã ela está querendo
lutar boxe, não é isso? (PEUL/RJ, 1980, entrevista, falante 14)

(4) [...] não resisti à tentação de comparar Mirante dos Aflitos, de sol abrasan-
te e esquecida das curvas do vento, a uma nova Fênix ressurgindo das cinzas.
– Veja lá – advertiu Botelho. – Veja se não vai igualar nosso avô a Napoleão.
– Isso não, jamais! – repliquei de imediato. (Corpus do Português, XX, Guido
Guerra, Vila nova da rainha doida)
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  241

O terceiro padrão, que surge como reconfiguração do segundo pa-


drão, traz, como segunda subparte, elemento de valor focalizador (só,
bem), por exemplo, olha só e veja bem. A seguir, passamos a ilustrar
esses marcadores:
(5) [...] uma história... alegre... olha só... foi... foi... quando eu viajei... viajei...
passei uma semana... um fim de semana... e... gostei... um dia/ sempre ia pra
praia... assim quando não chovia... aí um dia desses eu tirei/ foi o último dia
que a gente já estava indo... indo pra viagem... vindo pra casa... (D&G/RJ, oral,
NEP, Inf. 46, 1993)

(6) Aluno: mas aí... mas... aí... você vai... você vai de encontro... ter que ir toda
uma filosofia de administração... veja bem... você tem a multinacional... até
que ele comece a implantar uma... uma empresa... mesmo com os maiores
recursos que ele tem e a tecnologia e tudo... (NURC-RJ, Inquérito 364, EF, 1977)

Dessa maneira, olha, vejam, olha aqui, veja lá, olha só e veja bem
representam usos distantes da centralidade na sintaxe, como seriam se
estivessem instanciados pela construção transitiva. Uma vez centrados
no monitoramento da interação, manipulando a atenção do ouvinte para
cumprir propósitos sociocomunicativos, são recrutados como marcadores
discursivos e, por sua vez, pertencentes ao nível pragmático da língua.

Neste capítulo, demonstramos como essas formas surgem e se fixam


no repertório do falante, comprovando que as três etapas apontadas
refletem diferentes rotas na trajetória. Nesse sentido, codificamos três
padrões que consideramos construcionais, uma vez que suas formações
se dão ao longo da diacronia. Esses padrões também podem ser ras-
treados como instâncias de subesquemas, em uma visão sincrônica, nos
termos de Traugott e Trousdale (2013). Sendo assim, elaboramos como
padrões construcionais formadores do esquema mais geral [Vv(x)af]MD,
respectivamente, [Vv]MD, [Vv(Loc)af]MD e [Vv(Foc)af]MD. Nota-se que o primei-
ro subesquema apresentado não possui afixoide, ou melhor, é composto
apenas de uma subparte.

Na formação da construção mais geral, [Vv(x)af]MD, ou construção mar-


cadora discursiva perceptivo-visual, assumimos sua origem a partir de
usos conceptualizados a partir do sentido da percepção-visual. Esses usos
originais são, ao longo do tempo, metaforizados para sentidos mais abs-
242   —  Coleção Pesquisadores

tratos e vinculados ao nível pragmático da língua. Dessa forma, o recruta-


mento se estabelece no cumprimento de funções textual-interativas e/ou
discursivo-pragmáticas, como demonstradas nos fragmentos anteriores.
Com base em Traugott (1995, p. 5) e diante de um modelo holístico de
análise, esses elementos “marcam relações entre unidades do discurso
sequencialmente dependentes”. Assim, a classe gramatical dos marcado-
res discursivos é considerada uma categoria pragmática e polifuncional.

1. A LINGUÍSTICA FUNCIONAL CENTRADA NO USO


Afastando-se dos modelos formalistas, a linguística funcional centrada
no uso, segundo Martelotta (2011), Furtado da Cunha e Cesario (2013)
e Oliveira e Rosário (2015), leva em consideração o uso linguístico como
manifestação real da língua e da gramática. A linguística funcional cen-
trada no uso surge da linguística funcional clássica com apropriações da
abordagem construcional da gramática, especificamente a gramática de
construções, como praticada em Croft (2001) e Traugott e Trousdale (2013).
Tomando a unidade básica da língua como construções, de acordo com
Goldberg (1995; 2006; 2013), Croft (2001), Traugott e Trousdale (2013) e
Hilpert (2014), a língua configura-se como uma rede de construções inter-
conectadas, armazenadas na memória do falante. Na instanciação do uso,
a língua consiste de integrações de construções configuradas cognitivo,
estrutural e socioculturalmente ajustadas. Nesse posicionamento, língua
e gramática emergem do uso como “um sistema adaptativo complexo”
(HOPPER, 1987). Assim, para a linguística funcional centrada no uso, o uso
linguístico reflete uma integração em que co-texto e contexto se concre-
tizam nas interações. Nessa abordagem, seguindo a linha funcionalista,
a “estrutura linguística está intimamente relacionada às funções a que
ela se presta na interação discursiva” (BISPO; SILVA, 2017, p. 91). Tomado
como um modelo esquemático de convencionalização do conhecimento
do falante, esse nível mais alto de abstração coaduna com a defesa de
que construções são “aprendidas em níveis variados de complexidade e
abstração” (GOLDBERG, 2013, p. 2). Sendo assim, conforme o modelo de
representação de pareamento de Traugott e Trousdale (2013), em que [F]
está para a forma e [M] está para sentido, temos:
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  243

Figura 1
Pareamento da construção marcadora discursiva perceptivo-visual

Fonte: Elaboração da autora.

Na figura 1, o pareamento da construção mais geral dá conta estrutural


e funcionalmente de toda a categoria. Levando em conta nosso objeto de
pesquisa, esquemas menos virtuais podem ser acessados como forma de
generalizações, que são os subesquemas anteriormente apresentados,
tomados como padrões construcionais devido à abordagem diacrônica. Na
figura 2, representamos a noção de hierarquia sugerida pela metodologia:
Figura 2
Esquema e subesquemas de [Vv(x)af]M

Fonte: Elaboração da autora.

Seguindo essa representação, no nível mais baixo de virtualidade,


temos as microconstruções individuais – por exemplo, olha, olha lá e
olha só. Esse nível é instanciado pelo uso linguístico. Como ponto de
partida, essas três microconstruções serão utilizadas para demonstrar a
trajetória de mudança assumida pelo esquema.

2. A TEORIA DA MUDANÇA LINGUÍSTICA


Como apontado por Traugott e Trousdale (2013), a teoria da mudan-
ça linguística, que tem por base o modelo construcionista, propõe
dois tipos de mudança que atuam sobre o sistema linguístico gerando
modificação total ou parcial da construção: a construcionalização e a
244   —  Coleção Pesquisadores

mudança construcional. Esta é uma “mudança que afeta uma dimensão


da construção”; aquela é a “mudança que resulta em pareamento de
nova forma e novo sentido depois de uma série de micropassos de mu-
danças” (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 26, 44).

Como nosso propósito visa captar diferenças na trajetória de for-


mação dos marcadores discursivos de sentido visual, interessa-nos as
mudanças tanto em apenas um dos polos da construção como aquelas
que envolvem reconfiguração e levam à formação de novas constru-
ções. Interessa-nos também captar os mecanismos de mudança como
neoanálise e analogização. Tais mecanismos são apontados como res-
ponsáveis pela mudança da construção transitiva para construção mar-
cadora discursiva (cf. TEIXEIRA, 2015). Para alcançarmos esses objetivos,
com base em Traugott e Trousdale (2013), Fisher (2011) e Bybee (2010),
consideramos como neoanálise os novos usos linguísticos que levam
à construcionalização após sucessivos micropassos de mudanças. Por
conseguinte, analogização é tomada em termos de um tipo específico
de neoanálise que envolve a produtividade do esquema porquanto atua
decorrente de um modelo existente.

Consideramos que, além da captação dos mecanismos envolvidos


na mudança linguística, os pressupostos apontados por Diewald (2002;
2006) e Diewald e Smirnova (2012), como mudanças contextuais, auxi-
liam na descrição e captação de estágios que apontam a escalaridade
dessa mudança. As autoras propõem que os contextos emanam carac-
terísticas das pressões de usos para cada fase da mudança linguística
rumo à construcionalização. Sendo assim, essa taxionomia contextual
pode ser captada em cinco estágios: contexto fonte; contexto atípico;
contexto crítico; contexto isolado; e paradigmatização.

O contexto fonte se realiza em sentidos mais lexicais, próximos à


concretude da experienciação. Já o contexto atípico é marcado pela gera-
ção de sentidos polissêmicos e indexado por implicaturas pragmáticas.
No contexto crítico, que é um afastamento maior do sentido original, as
ambiguidades ocorrem no campo estrutural, semântico e pragmático.
Por pressões de usos cada vez mais específicos das nuances contex-
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  245

tuais, ocorre o novo uso e, assim, é instaurado o contexto isolado.


O último contexto tratado, ou melhor, a paradigmatização (DIEWALD;
SMIRNOVA, 2012), não é propriamente um contexto de uso, porquanto a
construção já formada se encaixa no rol de um novo paradigma e ganha
especificidades à margem dos usos prototípicos de sua nova categoria.

3. ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS
Neste trabalho, damos ênfase às análises qualitativas, sem desmerecer,
é claro, o impacto da frequência (BYBEE, 2010). Como corpus, seleciona-
mos dados do século XV ao XX representativos do português brasileiro
e europeu em diferentes fontes.1 Na perspectiva diacrônica, coletamos
dados por sincronias e os agrupamos por representatividade de contex-
tos com base na escalaridade proposta. Dessa forma, de cada século
levantado, temos análises baseadas nas especificidades de usos, que
formam um continuum dos usos mais concretos para usos mais abs-
tratos. Para demonstrar nossos resultados, utilizamos como exemplares
um elemento de cada padrão apontado.

Procuramos, com base na linguística funcional centrada no uso, dar


um tratamento holístico aos dados. Entretanto, neste trabalho, limita-
mos nossas análises aos resultados que comprovam nossas alegações
aqui levantadas.

4. A TRAJETÓRIA DE
CONVENCIONALIZAÇÃO DE [VV(X)AF]MD
Nesta seção, demostramos a convencionalização de [Vv(x)af]MD a partir das
trajetórias de construcionalização dos marcadores discursivos olha, olha lá
e olha só. Detectamos diferenças nas atuações dos mecanismos de neoa-
nálise e analogização o que defendemos ser um dos motivos tanto para a

1
Fontes disponíveis em: Corpus D&G http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/corpus.html;
Corpus NURC-RJ: http://www.letras.ufrj.br/nurc.rj/corpora/mapa.html;
Corpus do Português: http://www.corpusdoportugues.org/x.asp;
PEUL/RJ: http://www.letras.ufrj.br/peul/amostras%201html.
246   —  Coleção Pesquisadores

produtividade de formas no nível microconstrucional como na capacidade


de virtualidade alta em decorrência da generalização de uma construção
altamente esquemática. Como nossa abordagem pressupõe que as mu-
danças ocorrem no uso e os padrões gramaticais são convencionalizações
emergentes da interação, nossas análises centram-se no uso linguístico.

4.1. A construcionalização do marcador discursivo olha


Na ordem apresentada a seguir, em (7), (8), (9) e (10), observamos a
direcionalidade da mudança assumida pelo padrão construcional [Vv]MD:
(7) Senhor, hi ha asaz d’estrelas que fazem os marinheiros hir fora de boõ ca-
minho, ca elas nom som estavees e huûs tempos parecem e outros nom. Mais
eu oolho sempre as sete estrelas que se chama Carro, que sempre se vee se
escoridade grande a nom torva. (Corpus do Português, XV)

(8) Quando escolheres o açor, olha que tenha a pinta grande e o mais alvo e
que aja bõa titella, bõa coixa e cano grosso e curto e os dedos grossos e gra-
çosos e o collo delgado e a cabeça pequena e cham ëcima e o rosto comprido
e bõa ventã. (Corpus do Português, XV)

(9) Milagres são que as fermosas fazem a que se não pode dar razão. Em pago
de me pesar do teu mal, queres ser lausa do meu. Mais pesa a seu aio, e mais
pesara a seu pai quando o souber: Olha que ainda se pode remediar tudo.
Não abolsa, que trouvemos que arqueja, e tira quanto pode polo folego.
(Corpus do português, XVI)

(10) Coloquei uma colher ... uma colher de cloreto de sódio ... foi um fogaréu
tão grande ... foi uma explosão ... quebrou todo o material que estava exposto
em cima da mesa ... eu branca ... eu fiquei ... olha ... eu pensei que eu fosse
morrer sabe ... quando ... o colégio inteiro correu pro laboratório pra ver o que
tinha sido ... (D&G, Natal, XX)

Nessa ordem contextual, podemos aplicar a escalaridade sugerida


por Diewald (2002; 2006), respectivamente. Como contexto fonte, no
fragmento (7), oolho é recrutado para significar a experienciação do sen-
tido da visão sobre determinado objeto. Assim, temos um uso de oolho
como verbo pleno. Em (8), captamos um contexto atípico, em que olha
assume um sentido polissêmico com significado de “repare”, “confira”.
Afastando-se mais do sentido fonte, o fragmento (9) representa o con-
texto crítico. Nessa fase, há uma ruptura na estruturação da construção
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  247

transitiva perceptivo-visual. O objeto direto prototípico não pode mais


ser resgatado como tal. Dessa forma, que ainda se pode remediar tudo
surge como uma sequência avaliativa do ponto de vista do falante. Esse
uso do sentido visual para expressar avaliação do falante, monitorando
atos e interpretações do ouvinte, torna-se cada vez mais isolado con-
textualmente até que se desgarra do paradigma dos verbos transitivos,
o que podemos observar em (10). Nesse exemplo, considerado contexto
isolado, temos o uso de olha como marcador discursivo. Olha marca
um chamamento de atenção e direciona a interpretação da informação
posterior. Como proposto por Traugott e Trousdale (2013), a construcio-
nalização de olha surge após micropassos de mudança que levam à
reconfiguração da forma e do sentido. Após o levantamento de dados,
não constatamos usos de outros modelos com base na conceptualização
do sentido perceptivo-visual para motivar a formação de marcadores
discursivos. Sendo assim, consideramos que houve neoanálise na cons-
trucionalização do marcador discursivo olha.

4.2. A construcionalização do marcador discursivo olha lá


Como os contextos originais expressam sempre a percepção-visual, nes-
se segundo caso, partimos do contexto atípico, que é considerado o
início da mudança. Seguindo nossa metodologia, apresentamos os frag-
mentos na ordem proposta por Diewald (2002; 2006):
(11) A indiferença com que estes selvagens encaram tudo isto! Repara, vê
aquele labrego passar lá em baixo na ponte; olha lá se ele desvia a cabeça
para algum dos lados, ou se pára um momento para gozar do belo, espectá-
culo que dali observa. (Corpus do Português, XIX)

(12) Excomungado seja o mafarrico, que assim me quer atentar logo que entro
em casa! Olha lá que não morresses de fome! Estás mal acostumado. Louvado
seja Deus! Já não há quem queira sofrer neste mundo mortificações! (Corpus
do Português, XIX)

(13) À aproximação dos camaradas, Crapiúna recuou, e levou imediatamente


a mão ao sabre, mas, o sargento lho arrebatou com um movimento rápido,
com um movimento enérgico. – Olha lá... Não se engrace comigo, seu Crapiú-
na... – observou ele. – Vamos e muito direitinho... Comigo não se brinca, vocês
sabem... (Corpus do Português, XIX)
248   —  Coleção Pesquisadores

No fragmento (11), o uso polissêmico de olha lá significa reparar em


lugar específico. No contexto há uma inferência que sugere aumento de
atenção do interlocutor para especificidades requeridas do comportamen-
to do objeto observado. Já em (12), configura-se o contexto crítico em que
observamos ambiguidade semântica, estrutural e pragmática. Devido à
pressão de uso, o sentido da percepção-visual ganha uma transferência
para o domínio da percepção-mental. Inicia-se então a convencionalização
da metaforização desses sentidos. O complemento que não morresses
de fome! constitui uma expressão do desejo/repreensão do falante. No
fragmento (13), olha e lá perdem composicionalidade em relação as suas
formas originais como verbo e advérbio. Em (13), olha lá é interpretado
como um único pareamento de função marcadora discursiva. Nesse uso,
representando o contexto isolado, olha lá marca chamada de atenção do
ouvinte e, pragmaticamente, veicula sentido de repreensão. Esse direcio-
namento da interação é corroborado pela sequência injuntiva de modo
imperativo e pelo vocativo: Não se engrace comigo, seu Crapiúna.

Consideramos, apoiados em Oliveira (2015) e Teixeira (2015), que a


construcionalização de olha lá é resultado do mecanismo de analogiza-
ção. Uma vez que, no século XIX, o falante já dispunha de um padrão
de formação de marcadores discursivos, que era constituído por verbo e
afixoide, [VLoc]MD, como modelo para reproduzir esses usos. Esse padrão
anterior licencia o uso do marcador discursivo vem cá. Sendo assim,
consideramos uma neoanálise via analogização em que o modelo repro-
duzido configura-se em [Vv(Loc)af]MD.

4.3. A construcionalização do marcador discursivo olha só

Como posto anteriormente, consideramos a construcionalização de mar-


cadores discursivos formados pela segunda subparte por afixoides res-
tritos ao sentido de focalização, em análise preliminar, como reconfigu-
ração por analogização do padrão existente. Vejamos:
(14) – Que gosto! Antes andar a pé. E acrescentou ainda apontando para o
alazão: – Olha só para aquilo! É um animal nobre! Parece que tem consciência
do seu valor! (Corpus do Português, XIX)
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  249

(15) Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu! E sacudiu todo
o corpo num movimento de desdém que lhe era peculiar. – Olha só que peste!
considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua honestidade preguiçosa. (Cor-
pus do Português, XIX)

(16) Lamarca dividiu os guerrilheiros em dois grupos. Oito, do primeiro grupo,


viajariam para São Paulo. Depois, iriam mais quatro. Ficariam quatro para, olha
só, defender o patrimônio; isso mesmo. As bases, a dois dias de caminhada pela
mata. Uma estrutura cara, armas, munições. (Corpus do Português, XX)

No fragmento (14), temos usos de olha instanciados pela construção


transitiva. Nesse contexto atípico, Olha e só funcionam para direcionar a
visão do ouvinte para um objeto, mas o aumento da atenção também é
requisitado. Observamos que o recrutamento de só traz uma implicação
ao contexto que, além da natureza locativa dos sentidos, reforça um
sentido de percepção-mental. O sentido polissêmico de reparar ainda
é reforçado pela sequência descritiva de entonação exclamativa: É um
animal nobre! Em seguida, esses usos são recrutados para levar a aten-
ção do ouvinte para sequências de teor avaliativo, inferidas pelo falante.
Configura-se, assim, o contexto crítico, como no fragmento (15).

Em (15), o recrutamento de olha só que peste! reúne o direcionamen-


to de atenção do ouvinte e a sequência com valor avaliativo sugerida
pelo falante. Constatamos que, conforme a frequência desse tipo de
uso aumenta, a formação do contexto que reúne a chamada de atenção
juntamente com estratégias para manipular a interação se isola em uma
nova construção. Daí surge o contexto isolado, como em (16). Sendo
assim, o uso de olha só marca a chamada de atenção e manipula a
interpretação do ouvinte.

Diferentemente da construcionalização de olha e olha lá, a trajetó-


ria de olha só é tomada como um tipo de neoanálise distinta em que
ocorre analogização com reconfiguração de uma parte da construção. A
segunda subparte, como demonstrado em (13), antes preenchida pelo
afixoide de natureza locativa, agora se restringe ao sentido focalizador,
como demonstrado em (16). Tais usos se convencionalizam e são esque-
matizados pelo padrão, ou subesquema, [Vv(Foc)af]MD.
250   —  Coleção Pesquisadores

– CONSIDERAÇÕES FINAIS –
Neste trabalho, objetivamos demonstrar como diferentes rotas assu-
midas pelos marcadores de base visual contribuem para formar uma
construção mais geral, captada no século XX. Tais rotas implicam três
padrões construcionais.

Como já demostrado, o primeiro padrão surge a partir do mecanismo


de neoanálise, quer dizer, de reconfigurações nos dois polos da cons-
trução, tanto na forma como no sentido. Formado apenas pela primei-
ra subparte de base verbal, representamos esse padrão construcional
como [Vv]MD. Em nossos dados, captamos os primeiros constructos ins-
tanciados por esse subesquema a partir do século XVI, como é o caso
do marcador discursivo olha.

O segundo padrão construcional, doravante [Vv(Loc)af]MD, é formado


por duas subpartes, sendo que a segunda subparte se restringe ao afi-
xoide de valor locativo, como é o caso de olha lá. Esses tipos de mar-
cadores, que recrutam elementos de origem locativa (aqui, aí, lá), ma-
nipulam o espaço discursivo utilizando-se da perspectivização espacial,
nos termos de Oliveira (2018), para veicular sentidos e cumprir objetivos
sociocomunicativos. Tais marcadores surgem motivados por mecanismo
de analogização.

O terceiro padrão, surgido a partir do século XX, é representado como


o subesquema [Vv(Foc)af]MD. Composto por duas subpartes, consideramos
esses marcadores discursivos, como olha só e veja bem, entre outros,
formados por pressões de uso restritas ao sentido de focalizar pontos no
espaço discursivo. Essa é a razão porque esse esquema recruta elemen-
tos de origem adverbial com valor focalizador. Dessa forma, justifica-se
uma neoanálise distinta em que há analogização com reconfiguração da
segunda subparte, o afixoide focalizador.

Sumarizando nossas alegações, afirmamos que a formação da cons-


trução marcadora discursiva perceptivo-visual é motivada por diferentes
atuações do mecanismo de neoanálise. Devido às especificidades da ge-
neralização de cada formação, faz-se necessário apontar tais diferenças
Vania Rosana Mattos Sambrana   —  251

como rotas na trajetória de construcionalização. Daí um dos propósitos


de nossa abordagem se cumpre, o de investigar motivações para as mu-
danças linguísticas com foco na gradiência e variabilidade (BYBEE, 2010).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BISPO, E. B.; SILVA, J. R. Análise linguística FISCHER, O. Grammaticalization as
em perspectiva funcional: o caso de analogically driven change? In: NARROG,
modificadores nominais. In: OLIVEIRA, M. R. H.; HEINE, B. (eds.). The Oxford handbook
de; CEZARIO, M. M. (orgs.). Funcionalismo of grammaticalization. Oxford: Oxford
linguístico: diálogos e vertentes. Niterói: University Press: 2011, p. 31-42.
Eduff, 2017. p. 91-111.
FURTADO DA CUNHA, M. A.; CEZARIO, M. M.
BOOIJ, G. The grammar of words: an (orgs). Linguística centrada no uso: uma
introduction to morphology. Oxford: Oxford homenagem a Mário Martelotta. Rio de
University Press, 2007. Janeiro: Mauad; FAPERJ, 2013.
BOOIJ, G. Morphology in construction GOLDBERG, A. Constructions: a construction
grammar. In: HOFFMANN, T.; TROUSDALE, G. grammar approach to argument structure.
(eds.). The Oxford handbook of construction Chicago: University of Chicago Press, 1995.
grammar. Oxford: Oxford University Press,
2013. p. 255-273. GOLDBERG, A. Constructions at work: the
nature of generalization in language.
BYBEE, J. Language, usage and cognition.
Oxford: Oxford University Press, 2006.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
GOLDBERG, A. Constructionist approches.
CROFT, W. Radical construction grammar:
In: HOFFMANN, T.; TROUSDALE, G. The Oxford
syntatic theory in typological perspective.
Oxford: Oxford University Press, 2001. handbook of construction grammar. New
York: OUP, 2013. p. 15-31.
DIEWALD, G. A model for relevant types of
contexts in grammaticalization. In: WISHER, HILPERT, M. Construction grammar and
I.; DIEWALD, G. (eds.). New reflections on its application to English. Edinburgh:
grammaticalization. Amsterdan; Philadelphia: Edinburgh University Press, 2014.
John Benjamins, 2002. p. 103-120. HOPPER, P. J. Emergent grammar. In: ASKE,
DIEWALD, G. Contexts types in J. et al. (eds.). Berkeley Linguistics Society
grammaticalization as constructions. In: 13: general session and parasession on
DIEWALD, G. Constructions all over: case grammar and cognition. Berkeley, CA: BLS,
studies and theoretical implications. 1987. p. 139-157.
Dusseldorf: [s.n.], 2006. [Special Volume 1]. MARTELOTTA, M. E. Mudança linguística:
Disponível em: https://www.researchgate. uma abordagem baseada no uso. São
net/publication/43647577_Context_types_ Paulo: Cortez, 2011.
in_grammaticalization_as_constructions.
Acesso em: 10 de maio de 2020. OLIVEIRA, M. R. de. Contexto: definição e
fatores de análise. In: OLIVEIRA, M. R. de;
DIEWALD, G; SMIRNOVA, E. “Paradigmatic
ROSÁRIO, I. da C. do (orgs.). Linguística
integration”: the fourth stage in an
centrada no uso: teoria e método. Rio de
expanded grammaticalization scenario. In:
Janeiro: FAPERJ, 2015. p. 22-35.
DAVIDSE, K. et al. (eds.). Grammaticalization
and language change: new reflections. OLIVEIRA, M. R. de; ROSÁRIO, I. da C. (orgs.).
Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, Linguística centrada no uso: teoria e
2012. p. 111-131. método. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2015.
252   —  Coleção Pesquisadores

OLIVEIRA, M. R. de. O afixoide lá em TEIXEIRA, A. C. A construção verbal


construções do português: perspectivização marcadora discursiva VLocMD: uma análise
espacial e (inter)subjetificação. In: funcional centrada no uso. 2015. 297fls.
PINHEIRO, D.; ALONSO, K. (orgs.). Revista Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem)
Linguística, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. – Instituto de Letras, Universidade Federal
109-129, jan./abr. 2018. Fluminense, Niterói, 2015.
SAMBRANA, V. R. M. Marcadores discursivos TRAUGOTT, E. C. The role of the
formados pelos verbos perceptivo-visuais development of discourse markers in
olhar e ver: uma abordagem construcional. a theory of grammaticalization. In: I
Orientadora: Profª. Drª. Mariangela Rios CHL, 12., Manchester, 1995. Proceedings
de Oliveira. Niterói, Universidade Federal
[…] Manchester: Stanford University, 1995.
Fluminense, 2017. 155f. Dissertação
p. 1-23.
(Mestrado em Estudos de Linguagem. Área
de Concentração: Linguística) – Instituto de TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Construc-
Letras, Universidade Federal Fluminense, tionalization and constructional changes.
Niterói, 2017. Oxford: Oxford University Press, 2013.

Você também pode gostar