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"O CRUZEIRO 6 3"
As intimidades entre uma jovem do interior e figurões da política —
todos vivos, mas nem todos espertos — saíram em letra de forma e são,
agora, sucesso em São Paulo: "Eu e o Governador", livro com que Adelaide
Carraro, até aqui desconhecida, torna pública sua vida privada, é "best-seller"
de edição esgotada para comprovar que, depois de "Eu Sou Pele" e "Quarto
de Despejo", há mesmo leitor para tudo.
O tema- é tão velho quanto o homem (e a mulher), o cenário tem a idade
da alcova, mas há uma novidade: Adelaide Carraro é real, mora no centro
de São Paulo e pode ser vista — ao contrário da maioria dos nomes femi-
ninos de autores masculinos de livros do estilo. Há outra novidade: "Eu e
o Governador", por definição da autora, apareceu para fazer denúncia can-
dente — e, pelo menos quanto ao adjetivo, atingiu a finalidade.
Adelaide Carraro tem mais de trinta anos (não diz quantos), considera-se
uma mulher vivida e confessa-se, agora, diante da experiência nova de es-
critora que tem seu público — do qual recebe representantes chorosas quase
toda noite, que lhe vão levar dramas paralelos: "Eu e o Prefeito", "Eu e
o Vereador", "Eu e o Vendeiro", "Eu e o Bombeiro", "Eu e E l e s . . . "
Os leitores têm, ainda, a diversão extra de procurar identificar os fi-
gurantes da história, no que, de um modo geral, as opiniões se dividem,
pela dificuldade em fixar por gestos íntimos homens que só se conhecem
por atos públicos.
Adelaide Carraro sente-se, agora, uma mulher realizada. Ocupa seu tem-
po de autora de sucesso em produzir quadros — um de seus talentos é tam-
bém a pintura — em afagar sua cadelinha peluda, fiel companheira de to-
das as horas, e, sobretudo, em reler todas as noites as histórias de sua vida.

"FATOS E FOTOS 63"


"Depois de Eu e o Governador, vou escrever outro livro. Desta vez, so-
bre o café-society de São Paulo. Será outro sucesso literário: A Falência
das Elites." A declaração é de Adelaide Carraro, escritora best seller, e é
também uma resposta sua à Assembléia Legislativa de São Paulo, que a
está ameaçando com uma comissão parlamentar de inquérito, cuja finalidade
seria investigar fatos relacionados com a vida de conhecidos políticos pau-
listas, personagens de seu livro-denúncia, já em quarta edição. Do resultado
da comissão depende o futuro da escritora, que, segundo os deputados pau-
listas, enxovalhou o Legislativo e comprometeu um ex-governador.
Adelaide conta sua própria história e a odisséia das "cartinhas de apre
sentação", que obteve, quando procurava emprego público, na qualidade de
ex-tuberculosa. Em troca das cartas, os políticos (descritos fisicamente no
livro) exigiam muito, e até tudo, à moça estonteada com os mistérios da
cidade grande. Ela consegue, finalmente, ser funcionária num sanatório, en-
feixando, num relatório-bomba, o drama dos tuberculosos, que fazem força
para ficar internados, pois lá fora a fome os espera. Essa parte não preocupa
os personagens de Adelaide nem o Legislativo paulista.
O que causou escândalo foi a participação de políticos — muitos dos
quais ainda em evidência — em ocorrências delicadas, para resolver o pro-
blema de uma jovem candidata a funcionária. A escritora narra o capítulo
"das providências", nos gabinetes e nas ante-salas. "Todos queriam conver-
sar comigo."
Adelaide Carraro, que lançou na Guanabara a quarta edição do seu
livro, é uma paulista viva e desembaraçada, bonita, de 27 anos. Os críticos
a têm elogiado, conferindo ao seu livro grande importância como documen"
tário de uma época e símbolo de coragem da mulher moderna. As tiragens
somam 50 mil exemplares e já renderam mais de Cr$ 1 milhão, em um mês.
à autora.
ADELAIDE CARRARO

O CASTRADO
O HOMEM QUE ALUGAVA SEU CORPO

"É ESTRITAMENTE VEDADO A DIS-


TRIBUIÇÃO OU VENDA DA OBRA A
MENORES DE 18 ANOS". SUJEITO AS PENAS PREVISTAS EM LEI.

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Impresso no Brasil
N.° DO CATALOGO 1.014
JUSTIFICATIVA

Recebi, após a publicação por esta editora, do meu livro "A VER-
DADEIRA ESTÓRIA DE UM ASSASSINO", inúmeras cartas eensuran-
do-me pelo seu desfecho.
Ao meu ver, qualquer espécie de Vingança não se justifica.
Existiu na minha vida, um Antonio Carraro (meu pai), que foi
assassinado.
Existe um Mário Carraro (meu irmão), que cresceu almejando a
vingança. Não se vingou. Graças a Deus.
Creio ter explicado porque não estendi a mão.

ADELAIDE CARRARO

Janeiro, 1975
A D E L A I D E - 1975

PREFÁCIO

AO LEITOR
Com palavras simples

Oi, mais uma vez você e eu sozinhos. Do que


vamos falar? Logicamente deste livro que você vai
começar a ler agora. Sei que você vai gostar muito
mesmo. Olha, quando me sentei à escrivaninha
para começar a escrever "O Castrado", não sonha-
va onde começar, porque os personagens dele são
vivos e andam pelas ruas da grande e majestosa
São Paulo, juntinhos com a gente e me fizeram
uma advertência:
— Tem uma coisa, hein Adelaide, se você bo-
tar aí no papel tudo, tudo limpinho como lhe con-
tamos, juro que você se arrependerá.
E eu contei. Agora não sei o que vai me acon-
tecer, mas seja lá o que for, eu não vou me impor-
tar, pois não quero usar de falsidade com você,
que compra e lê meus livros. Do que me adianta-
ria cobrir os meus personagens de uma falsa cros-
ta. Dizer que eles são uns santos, quando na rea-
lidade eles são uns... Bem, você vai conhecê-los.
Vai ser simples para você conhecê-los: é só come-

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çar a ler, mas para mim foi aquele trabalhão e
aquele dinheirão, sim, porque cada vez que con-
versava, ou melhor, arrancava a estória de alguns
de meus personagens, como o Sérgio e o Luís, ti-
nha que pagar a hora e, ainda por cima, lhes ofe-
recer as melhores comidas e as melhores bebidas,
pois eles estavam acostumados só a rótulos estran-
geiros. Lúcio, então! Foi um Deus nos acuda de
perder tempo. — Andei atrás desse homem como
você andaria se desejasse passar por baixo do arco-
iris. O delegado então foi outro, por um triz não
mandou me dar aquela surra que fez dar em um
dos personagens deste livro. Passei cada uma, des-
sas que não desejaria ao meu maior inimigo. Tudo
isso para você poder conhecer um pouco da vida
embutida desta maravilhosa e querida São Paulo,
que é mãe para uns, e madastra para outros. Mais
uma vez vão falar que é um livro sensacionalista,
ou de alguma encomenda literária, mas posso ga-
rantir que escrevi e o apresento, para você tirar
algum exemplo.
Essas cenas da vida de um grande número de
pessoas da alta sociedade são fatos que acontece-
ram verdadeiramente.
Quando escrevo algum livro, procuro um
assunto que ninguém abordou ou tem medo de
abordar. Entro dentro da estória, sem mesmo re-
fletir se posso sair viva da mesma. Neste livro,
tem uma ocasião que achei dever me fazer de per-
sonagem, aí vesti umas roupas bem modernas de
homem, colei uma barba e um bigode (deixei os
meus cabelos mesmo), pendurei uma bolsa a tira-
colo e fui fingir que era um "Call Boy". Fiquei
plantada na esquina e o primeiro carrão que pas-
sou com um linda moça sorrindo, foi o meu des-
tino. Entrei no carro e não pude disfarçar muito

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bem a voz, ela notou, eu disse que tinha nascido
com voz fina o que muito me aborrecia, e ela então
para me agradar disse: Mas você é um belo rapaz.
Aposto que a outra coisa é bem grossa. Chiii, pen-
sei, se ela descobrir. Aí ela ficou me contando que
era bem rica, mas que já não era virgem e que o
sexo era muito importante para ela. Como não
queria ter problemas com namorados, noivos ou
amantes, preferia alugar homens. Eu fui boba,
poderia ter dado uma desculpa qualquer e termi-
nado a entrevista, mas não, fui inventar de saber
como eram os tão comentados apartamentos das
madames e enquanto eu admirava um legítimo
Portinari, a moça levou a mão na braguilha da
minha calça e então eu tive que falar que era es-
critora e que estava ali só para fazer o Castrado,
etc. etc. Pena que não dá pra você ver as marcas
da surra que levei. O "dedão" da mão esquerda
não pode dobrar até hoje. Mas são ossos do ofício.
Também quando escrevi o "Submundo da Socie-
dade", me fingi de prostituta e fiquei na esquina.
Sabia que por ali passava o carrão preto todo fe-
chado para prender as que se vendem. Logo que
me encostei no muro, chegou uma bruta mulata
e me disse: — Pegando a minha esquina, hem sua
aguada, se não correr já daqui passo a gillete na
sua cara! Morri de medo e procurei ficar bem lon-
ge dela, sorrindo para todos os carros que passa-
vam. Lembro-me que estava vestida com um ca-
saco de veludo preto bem justinho e curto, com
uma larga gola de vison branca que uma amiga
havia me emprestado para uma tarde de autógra-
fos. Isso talvez fosse o que chamava a atenção dos
homens que paravam aos montes. Houve um en-
tão que queria me puxar a força para dentro do
carro, e como eu relutasse, até o arranhando ele
gritou. — Era a gola que estava me interessando,

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viu sua puta... Bem, logo mais eu estava dentro
do "tintureiro", nome que se dava a esses carros de
prender prostitutas. Acho que ainda se dá.
O carro estava lotado, mas os policiais nem li-
gavam e iam pondo mais e mais. Juro, se a gente
não tivesse chegado logo eu ia morrer sufocada.
Assim que descemos do carro, fomos parar em uma
salona que tinha escada que levava às celas lá no
porão. As moças não queriam descer, aí uns guar-
das deram-se as mãos e caíram de frente sobre o
"bolo" de mulheres que afundou escadas abaixo e
eu junto, morrendo de arrependimento. Sorte que
tinha conseguido tirar o casaco, pois aí me lem-
brava do quanto valia aquela pele emprestada, pois
com os empurrões e tudo, a gente estava quase nua.
— Minha saia estava sem botões e com o zíper arre-
bentado. Meu sapato tinha se evaporado e aquelas
que ainda os conservaram resolveram pisar nos
meus pés a todo minuto. Já nem os conseguia mo-
ver, e, por azar, tinha ficado bem no fim da cela,
sem conseguir ver nada. Foi com grande sacrifício
que cheguei até à grade e com mais sacrifícios
ainda consegui que o carcereiro resolvesse dar uma
olhadinha na carteirinha da União dos Escritores,
que eu tinha conseguido conservar, dentro de meu
soutien.
O delegado ficou louco de raiva quando, fren-
te a frente, eu lhe explicava que só queria saber
como as prostitutas eram tratadas. Você é uma
doida varrida, Adelaide! Já pensou se o carcereiro
em vez de se limitar a olhar a sua carteirinha e
lhe tirar da cela, calado, revelasse quem você era?
Já pensou? Olhe... chamou um investigador com
o rosto todo deformado. Este jovem aqui quis pas-
sar por prostituta só para ver quantos fregueses
viriam falar com ele em uma esquina. Foi preso

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como você junto com as prostitutas e elas desco-
briram. Levou inúmeras giletadas.
Está aí, meu amigo leitor, passo por todas essas
coisas desagradáveis para levar até você o real, o
natural. Sei que às vezes você compra um livro
com grande sacrifício, pois eles não estão lá muito
baratos, mas pode estar certo, que eu o escrevi o
melhor possível. Bem, acho que falo demais e você
está curioso para viver esta chocante estória que a
vida fez e eu a fui buscar para você.
Antes deixe dar-lhe um beijo. Gostou? Então
chau! Até o próximo.

Adelaide Carraro
São Paulo, janeiro/1975

A D E L A I D E - 1963

ADELAIDE CARRARO FALA À IMPRENSA

As notícias segundo as quais a Assembléia Le-


gislativa de São Paulo estaria disposta a constituir
uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apu-
rar as denúncias contidas no livro "Eu e o Gover-
nador" deram margem a toda uma série de espe-
culações. A autora recebeu a informação com tris-
teza. Instada pela reportagem a falar sobre o
assunto, a princípio, escusou-se. Não quis mesmo
dar entrevista. Esta reportagem é, pois, mais o
fruto de um "bate-papo" informal mantido pela
escritora com o jornalista, mas através do qual fica
patenteado que, embora tristonha, não esconde

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Adelaide Carraro a sua revolta ante o que certos
grupos da Assembléia Legislativa pretendem fazer.
Uma coisa é certa: Adelaide Carraro não se fur-
tará a comparecer ante qualquer CPI, muito ao
contrário. Quando lhe perguntamos sobre se aten-
deria ou não ao chamado no caso de ser convocada,
disse, peremptória:
— "Irei, sim. Não tenho qualquer receio. Mas
os senhores deputados que se acautelem, porque se
comparecer perante uma Comissão Parlamentar
de Inquérito será para valer. Darei mesmo o "no-
me aos bois", aconteça o que acontecer. No final,
eles é que serão desmoralizados publicamente."

TUBERCULOSE & ASSEMBLÉIA


O assunto ia saindo aos poucos na palestra
com a jovem autora de "Eu e o Governador":
— "Prometi a mim mesma — disse a certa al-
tura — nunca mais tocar em política ou em polí-
ticos. Mas tudo parece correr ao contrário. Tudo
concorre para que essa chaga, que guardo tão viva
dentro de mim, a todo o instante se reabra. Hoje,
por exemplo, ao ler o DIÁRIO DA NOITE e me ver
lá em cima, cobrindo todas as cabeças de deputa-
dos, acima dos 51 degraus da Assembléia, que tan-
tas vezes desci revoltada, desiludida, chorei. Cho-
rei não de alegria; não por estar lá em cima, mas
sim, porque o problema do ex-tuberculoso pobre
não se achava no lugar de "Eu e o Governador".
Muitas e muitas vezes pergunto a mim mesma
porque os senhores deputados, ao invés de se preo-
cuparem tanto com o "enxovalhamento" do Palá-
cio Nove de Julho, não procuram mostrar que o
Poder Legislativo pode subir um pouquinho, pelo
menos, no conceito do povo. deste povo do qual sou

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uma minúscula partícula, mas que nem por isso
deixo de ter direito de criticá-lo. 'Falo a respeito
do problema do ex-tuberculoso pobre, problema que
trato em meu livro com tintas tão vivas como nun-
ca ninguém até hoje o tratou. Nem um parlamen-
tar se levantou, desde que o livro está à venda —
quase um mês — para abordar esse assunto. Pelo
visto nada disso os comoveu. Não lhes interessou
porque certamente não lhes dá qualquer retribui-
ção política. Uma CPI deveria existir não para
tratar do assunto de meu livro; não para que eu
lá fosse depor, mas sim, para devassar os hospitais-
sanatórios e apontar à execração pública os irres-
ponsáveis que administram esses nosocômios, os
diretores de Departamentos que são os eternos au-
sentes. Nem a recente revolta havida no sanatório
de Santa Rita do Passa Quatro serviu de exemplo,
de motivo para que um só desses deputados da
nossa Assembléia se levantasse, e gritasse em alto
e bom som que chegara a hora de "um basta" de-
finitivo em tanta irresponsabilidade".

LIVRO & BALEEIRO


Adelaide Carraro prosseguiu num ímpeto que
bem demonstrava a sua revolta:
— "Elevem-se, senhores deputados, no con-
ceito popular destinando uma verba do orçamento
do Estado para a construção da Casa do Ex-Tuber-
culoso Pobre. No meu livro "Eu e o Governador"
os senhores encontrarão uma justificativa das
mais amplas para a aplicação dessa verba. Esque-
çam um pouco o padre Baleeiro. O padre Baleei-
ro, na pior das hipóteses, é um; os ex-tuberculosos
pobres, que morrem à míngua pelas sargetas da
cidade grande, são milhares. E são esses milhares
de criaturas sem amanhã, senhores deputados, que

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gritam nos 22 Estados do Brasil contra a inércia
da nossa Assembléia Legislativa, das nossas auto-
ridades responsáveis".

FUGA DO BRASIL
Adelaide Carraro falava ao repórter visivel-
mente tristonha, decepcionada com os resultados
de seu livro. Finalmente desabafou:
— "Comparecerei na Assembléia em qualquer
época que os senhores deputados determinarem e
falarei nesta ou em qualquer outra parte do mun-
do, para confirmar o depoimento contido em meu
livro. Falarei, em homenagem aos ex-tuberculo-
sos pobres do Brasil, meus eternos colegas de in-
fortúnio. Mas, se dentro de um país democrático,
onde os políticos fazem o que querem do povo, eu
como povo não puder levar ao conhecimento desse
mesmo povo, de nossos irmãos brasileiros, por meio
de um livro, o que tem sido, até hoje, pelo menos,
a politicalha em nossa terra; dizer que há, não
poucos deputados que olham as moças ingênuas
que os procuram colocando-as mentalmente numa
alcova; dizer que os problemas sérios são sempre
relegados a plano secundário, desistirei de tudo,
até de ser brasileira e acredito que deixarei meu
país e procurarei findar minha vida em outra ter-
ra, onde não veja o povo tão criminosamente es-
pezinhado", finalizou a autora de "Eu e o Gover-
nador".

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1.° CAPÍTULO

Sérgio entrou em seu Mercedes, deu três buzinadas chamando a empregada, q


o portão de vidro verde da grande garagem da casa
térrea, que ficava no luxuoso bairro da Cantareira,
na capital de São Paulo. Afastou-se de marcha-ré,
encostou no meio fio, chamou a empregada e falou.
— Vou a Campos do Jordão. Volto domingo à
noite. Caso alguém telefone, peça para ligar se-
gunda-feira.
Acelerou o carro em direção à via Presidente
Dutra. Depois de uma hora chegou a São José dos
Campos, procurando ler nas placas o caminho para
a maravilhosa cidade que era chamada por todos
a Suiça Brasileira: Campos do Jordão.
Sérgio nunca tivera oportunidade de conhecer
aquela cidade, pois diziam que tudo em Campos
era muito caro e ele era muito pobre. Imagine, ir
à uma cidade que só tinha turistas milionários,
com aquelas roupas super finas, com aqueles belos
carros, e rapazes ricos montados naquelas motos e
vestindo aqueles conjuntos de couro purinho, vin-
dos do estrangeiro, enquanto ele não tinha nem
uma blusinha de lã. Diziam que lá o frio entrava
por uns quatro ou cinco casacos e umas quatro ou
cinco calças de lã. Penetrava e queimava até os
ossos. Talvez fosse exagero. Queimar até os ossos!
Mas agora, como havia encontrado uma seta in-
dicando a rota São José dos Campos à Campos do

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Jordão, ia confirmar tudo. Atravessou São José dos
Campos, seguindo a seta e entrou na estrada que
conduziria à bela cidade. Estrada bem tratada,
com o asfalto cinzento limpinho, tendo bem no
meio, duas faixas amarelas brilhando na imensi-
dão do verde. Quanto verde! Verde à direita, ver-
de à esquerda. Verde na frente que logo se afas-
tava e já era verde de lado, porque aí era uma
curva em ferradura. Olhava para cima vendo mon-
tes e montes de verde. Que perfume gostoso de ar
puro! Sérgio sorvia, respirando fundo o ar virgem
que corria ao encontro de seu rosto. E ele corria
nas retas indo devagar nas curvas. Curvas. Pôxa,
quantas curvas! Graças a Deus tinha um estô-
mago bem forte. E depois com aquele dia de céu
bem azul, sol bem amarelo, verde rebrilhando em
mil cores, asfalto cinzento serpenteando numa su-
bida que parecia se perder no infinito.
Com tudo aquilo quem poderia passar mal nas
curvas? Sérgio riu. Riu porque era feliz. Tinha
conseguido ganhar dinheiro como queria, sem tra-
balhar no pesado. Trabalhar, assim de horário e
tudo. Imagine se ele iria desvalorizar sua beleza,
enfiado em um infecto escritório, em uma mofada
loja, em uma barulhenta fábrica. Também não
iria gastar seu belo físico, andando de lá pra cá
em vendas, ou se cansando no balcão de algum
banco. O negócio dele era ser artista, para isso veio
lá de Porto Alegre. Artista de T.V., de cinema e
preferivelmente de novelas.
Sérgio ia pensando tranqüilamente, pois a es-
trada era tão macia, como se ele estivesse guiando
num mundo de veludo sem nem um rasguinho.
Mas só largava os pensamentos lá longe, no ar,
quando vinha o sinal de curva. Sim, bastante
atenção nas curvas que eram tão fechadas que fa-

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ziam os pneus cantarem. Poxa, nem a via Presi-
dente Dutra onde fora obrigado a pagar pedágio
era tão bem tratada como aquela maravilhosa es-
trada. Sérgio sorria, quando lá na sua frente apa-
recia um par de barrancos bem altos, tendo nas
beiradas chumaços de capim verdinhos, que faziam
lembrar um capuz circundado de peles. Alargava
o sorriso quando o carro ia varando árvores cober-
tas de flores cor-de-rosas, ou melhor rosa-choque.
Depois, vinha um trecho todo aureolado de nar-
cisos, currais cheios de vacas que patinavam no
estrume. Logo mais, as árvores se encontravam jo-
gando no luzidio asfalto, sombras de folhas que se
entrelaçavam nos ramos, formando uma maravi-
lhosa renda, que só mesmo poderia ter sido feita
por Deus todo poderoso. Dava até pena passar o
carro.
O carro subia, subia. Já no topo de um morro,
Sérgio não agüentou e deu um baita grito, Deus!
Como tudo era lindo! Montanhas se sucediam, co-
bertas de ipês rosas, roxas e lilás. Do alto, a vista
se abria para um imenso espaço descortinando a
quilômetros de distância a Pedra do Baú.
Sérgio era do tipo de homem, que dá frenesi
nas mulheres, logo que nelas se põem os olhos: um
metro e noventa, feições vigorosas e meio grossei-
ras, sobressaíam incontestavelmente belas, emol-
duradas de longos cabelos negros que batiam até
os ombros e deixavam mais azuis os olhos que bri-
lhavam como gotas de orvalho cheias de mocidade.
Lábios avermelhados, delicadamente desenhados
pela mão do Senhor, deixavam à mostra dentes
limpos e perfeitos que às vezes cintilavam confor-
me o reflexo da luz. Ombros largos, quadris estrei-
tos, pernas retas e musculosas, davam-lhe um ar
de atleta eternamente vitorioso. Quando andava,

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causava admiração pelo jeito altivo que dava aos
passos largos e ritmados, num andar de Adonis.
Tudo nele respirava franqueza, saúde e mocidade.
Sérgio era um verdadeiro triunfo. E foi por ser
assim tão lindo que vencera na profissão que fora
obrigado a aceitar, pois não conseguira ser artista
apesar de andar dois anos adulando o pessoal da
televisão e cinema. Chegou à São Paulo, e foi logo
procurar um diretor de novelas, mas esse diretor o
iludiu um tempão. E vendo que não o conseguia
como amante o "esfriou".
Sérgio então resolveu procurar uma famosa
atriz que também o fez perder mais um tempão
com promessas. Mas não saía novelas, nem filme
nem nada. Sérgio ficava dias e dias diante das
portas e dentro de restaurantes das T.V. Era gen-
til para todos os famosos artistas. Visitava as ca-
sas de muitos e às vezes servia até de babá para os
filhos deles ou fazia serviços domésticos só para ver
se a sua horinha de ser artista chegava. Mas nada.
Era enganado aqui e ali. Um dia, já achando que
não podia mais confiar em gente de T.V., sentou-
se no restaurante do Canal 4 e ficou pensando o
que faria com toda a sua beleza. Foi aí que alguém
ao passar para sentar-se em uma mesa ao lado,
esbarrou em sua bolsa tiracolo fazendo-a cair no
chão. Sérgio virou-se, chateado, mas ao encon-
trar um jovem alto, bonito e sorridente, disse logo:
1
— Não esquente . Está tudo bem.
— Ah! Esse restaurante me dá um azar! Es-
tou sempre quebrando, derrubando, pisando, dan-
do cotoveladas, puxões de cabelos e mil outras coi-
sas. Também todas as vezes que venho até aqui
encontro tanta gente que nem consigo comer, não

1 gíria — Não se preocupe.

17
sei se é muita gente comendo ou se a comida é ra-
cionada, o que é ainda pior. Olhe, nem uma mesa
desocupada.
— Sente-se aqui, assim me fará companhia,
pois estou super chateado.
Luís foi sentando e perguntando:
— Ela arranjou outro?
— Nada disso.
— Então?
— Não consigo ser artista, ninguém quer
abrir-me uma pontinha.
— É. Pode esperar sentado meu filho, pois
neste mar não dá peixe, não. Eu fiquei por aqui
e por lá e lá e cá, mais de anos. Promessas, pro-
messas. Só promessas.
— Mas você tem uma expressão feliz e está
bem vestido. No que trabalha? Não deve ser ser-
viço de entrar às oito e sair às seis. Sábado e do-
mingo não trabalha.
Com uma risada, Luís estalou os dedos cha-
mando o garção, fez dois pedidos e virando-se para
Sérgio:
— Sei que vai rir de mim, entretanto sou obri-
gado a lhe falar a verdade, já que foi tão gentil
oferecendo-me a mesa. Sabe o que faço? Sou "Call
Boy".
— Que é isso?
— Alugo meu corpo, para mulheres da alta
sociedade.
— Não brinca.
— Não estou brincando.
— E como é esse barato?
— Fácil. A gente fica parado numa esquina.
As madames, passam de carro. Um sorriso, um
adeuzinho e nhoque, estamos ao lado da dona.

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— Mas para todas que passam, dá-se um sor-
riso e um adeuzinho?
— Nãaaaaaao! Só aquelas que buscam aven-
turas românticas.
— E como se sabe?
— Bem, eu já tenho uma freguesia certa.
— E que espécie de mulheres são essas?
— Ricas, solteironas, infiéis, filhinhas de pa-
pai, etc, etc.
— E como você entrou nessa?
— Um colega que já tinha muitas mulheres
disse a uma dama que eu era "tão bonzinho"...
Olhe, quer saber de uma coisa, você é um cara
ideal para isso. Boa pinta, tipo galã. É disso que
as madames gostam. Às vezes também você não
precisa fazer nada. Só servir para acompanhante.
— E elas pagam,?
— Claro, você entra num meio que nunca viu.
Luxuosas casas, finos hotéis, ricos clubes, boas
boates. Enfim, uma vida que nunca se esperou.
Uma Dolce Vita.
— Você acha que dou para isso?
— Só se você não souber foder. — Riram até
as lágrimas.
— Luís, como farei para começar logo? Estou
1
duro , já devo parte na mensalidade do aparta-
mento, onde moro com outros dois, há mais de três
meses. E como deverei ser para agradar essas mu-
lheres?
— Bem — Luís esperou o garção servir. — Em
primeiro lugar: higiene e bom vestuário. Conhe-
cimento de vida noturna fina, amizade com pes-
soas bem situadas financeiramente, muita dedi-

1 gíria — Sem dinheiro.

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cação e esforço. Olha. uma coisa muito impor-
tante. Elogiar sempre quem o procura, nem que
seja um monstro. Outra coisa, é importante man-
ter a linha, pois a freguesa atrai freguesa.
— Mas eu não tenho nada disso.
Luís fixou bem Sérgio e disse:
— Levante a í . . . Somos da mesma altura.
Olhe, roupas posso lhe emprestar. Ah! Também
posso lhe dar uma das minhas freguesas para você
começar.
— Eu preferia agir sozinho. É só você me dar
o ponto.
— Existem diversos. Espere, deixe achar uma
caneta, que marco todos. Vá prestando atenção.
Proximidades do Jardim Trianon, Rua Barão de
Itapetininga no centro da cidade, Shoping Center
Iguatemi, que fica no bairro de Pinheiros e com
muita sorte Aeroporto de Congonhas.
— Então existem muitos "Call Boys" em São
Paulo, e outros estados?
— Penso que esse gênero de prostituição não
é só de São Paulo, quero dizer aqui no Brasil. Mas
sei que os "Call Boys" nasceram na Itália, preci-
samente em Roma, e proliferaram na França. Já
estive em Paris, com uma madame e logo que ela
me deu uma folguinha corri à procura dos "Call
Boys". E sabe onde eles estavam? Nos bairros mais
chiques como St. Germains du Prés e Champs Eli-
sées. "Call Boy", no mundo inteiro, é apontado
como atração noturna nos guias turísticos.
— Sinceramente, estou admirado, ou melhor,
estou surpreso. Nunca pensei que pudesse existir
essa profissão. E como os brasileiros analisam os
"Call Boys"?
— Como você acha?

20
— Sei lá.
— Como é a mentalidade?
— Noventa e nove por cento de ignorantes.
— Taí. Brasileira acha que ser "Call Boy"
e reascender na masculinidade, é uma pouca ver-
gonha, imoralidade etc, etc. Sabe de uma coisa,
Sérgio, a turma confunde "Call Boy", com "Taxi
Boy", que aceitam qualquer tipo de programa, não
se importando se quem os procuram é homem ou
mulher.
— Para ser franco, eu também não sei o que
é "Taxi Boy".
— Pô, de que tribo você saiu? Não vá me di-
zer que você é uma linda criatura que exerce gran-
de fascinação pela radiante beleza mas é sem cé-
rebro. Tipo assim que se bota sobre uma mesinha
no canto de uma luxuosa sala e fica-se olhando sem
nunca cansar.
— Não, Luís. Eu não sou um jardim sem flo-
res, como você está querendo insinuar.
— Mas os jardins só tem flores na primavera.
— Existem muitas flores, que não morrem
nunca.
— Estou brincando, Sérgio, eu sei que existem
muitos, mas muitos rapazes do interior ou de ou-
tros estados, que desconhecem a podridão que está
encoberta aqui na Grande São Paulo. Isso a gente
vai descobrindo aos poucos. Taí. Você disse que
está a dois anos aqui e ainda não conhece as degra-
dações porque apesar de estar num meio de gente
falsa, fofoqueira e egoísta, que é o meio artístico,
tem uma vantagem, essa gente não é de o levar
para o submundo de tóxicos e de outros vícios.
Esses só cometem um erro, o de ficar alimentando

21
a ilusão de que a gente poderá vir a ser um fa-
moso artista. Eles não são capazes de dizer:
Vá trabalhar, Sérgio — trabalhe firme, nem
se for como varredor de rua, mas quando você che-
gar lá em cima, poderá dizer: — Sabe gente, hoje
sou rico, famoso, realizado, mas já fui varredor
de rua.
— Bacana, Luís. Mas isso já era. Isso é lá
do tempo do Matarazzo que, ao chegar ao Brasil,
vindo da Itália, foi vender bananas. Deus me fez
bonito e é com essa beleza que eu quero vencer.
Não digo me enfiar debaixo dessa crosta podre, co-
mo você diz que existe e eu acredito.
— Olha, Sérgio, deixe primeiro lhe explicar o
que é "Taxi Boy", porque você sendo "Call Boy",
terá que ficar parado em algum ponto onde às ve-
zes tem muitos "Taxi Boys", e muitos pederastas.
Preste atenção. "Taxi Boy", geralmente, são meni-
nos de quatorze aos dezoito anos que ficam aguar-
dando homens, que chegam em grandes carrões.
Esses homens são pederastas. Chamam os garotos
e fazem o preço. Eu já fui "Taxi Boy", é uma no-
jeira. Eles chupam a gente em todos os lugares,
lambem a bunda da gente, mordem o corpo da
gente e depois querem que a gente ponha atrás
deles duas ou três vezes.
Você ganha bem, mas sai de lá esbagaçado.
Esses meninos são pobres, não se vestem bem e se
desvalorizam muito. Quantas vezes eu maldisse
ter nascido pobre e bonito.
— Porque você não procurava emprego?
— Porque tinha vergonha das meninas e me-
ninos de meu bairro, que eram ricos. Minha mãe
trabalhava como doméstica em uma linda e rica
casa. A garotada da vizinhança tinha tudo o que

22
queria. Roupas caras, e modernas motos, grava-
dores, vitrolas com fabulosos conjuntos de som,
carros, enfim tudo o que a gente sonha, quando é
adolescente, e eu também queria ter, mas a mãe
não podia comprar. Então fui me vender para ho-
mens ricos e hoje me vendo para mulheres ricas.
Mas tem uma coisa. Nunca aceito tóxicos ou mui-
ta bebida. Faça a mesma, tá, e boa sorte.

23
2.° CAPÍTULO

Sérgio vestiu a calça de veludo branca bem


agarrada no corpo e apertou o cinto lilás que com-
-binava com a camisa também lilás. Bolsa a tira-
colo branca e sapatos brancos. Escovou os abun-
dantes cabelos, deu uma virada diante do espelho
e sorriu contente. As roupas de Luís lhe caíam
como luva.
— Bem, se não ficar rico desta vez, penso que
nunca mais.
Sérgio pegou um táxi e mandou rodar para o
Trianon.
Procurou ficar perto da esquina, pois os carros
eram obrigados a parar por causa do semáforo.
Alisou os cabelos, foi chegando perto de um
jovem bem vestido que estava postado elegante-
mente a beira da calçada e foi logo falando:
— Oi, como está o movimento, muita madame?
O rapaz o fixou friamente, falando:
— Sai dessa, boneca, meu negócio é homem.
Se você quer mulher, os carros daquele lado passam
mais lentos.
Mas Sérgio nem precisou atravessar a Avenida
Paulista, pois de um luxuoso carro que ia em mar-
cha lenta um lindo rosto de mulher lhe sorriu, Os
lábios de Sérgio se abriram e se esticaram, mos-
trando cs belos dentes. A mulher estacionou no
meio fio e abriu a porta.

24
* * *

Sentado na macia poltrona, Sérgio fixava o


emblema do Mercedes que brilhava, lá no fim do
capô, sem saber por onde começar, mormente que
a mulher só tinha de bonito o rosto. O resto, pelo
amor de Deus! Gorda, mas daquelas gordas com
as banhas caindo por todos os lados. Como faria
para elogiar tal mulher?
— Quanto você cobrará para passar a tarde
comigo? — Sérgio engasgou.
— Bem, e u . . . e u . . . quero dizer... e u . . .
— Que há? É novo por aqui?
— Ah! Sou sim. Vim lá do Sul.
— Sabe guiar?
— Não. Ainda estou na escola. — Sérgio fi-
cava vermelho quando mentia.
A mulher desatou a rir. — Também não pre-
cisava ficar tão vermelho. Guiar é muito fácil. Es-
cute, vamos tomar alguma coisa, naquela lancho-
nete ali, enquanto você pensa sobre o pagamento.
Sentados nas cadeiras da calçada da lancho-
nete da Rua Peixoto Gomide, Sérgio suspirou fun-
do e apertou os lábios quando se sentiu frente a
frente com aquele monte de banha. Tinha até von-
tade de desistir. No fundo de seu cérebro vislum-
brou um clarãozinho bem pequenino que lhe sus-
surrou que talvez fosse preferível um trabalho de
verdade. Sérgio sacudiu rapidamente a cabeça, e
esticando as pernas falou sorrindo:
— Sabe que é muito bonita?
Ela sacudiu as banhas num riso simpático.
— Sou mesmo?
— É.
— Você tem certeza?

25
— Tenho.
— Também de corpo?
Sérgio avermelhou.
— Bem, de corpo... de corpo...
— Sou um bucho, não é?
— Nem tanto. Eu..,
— Não sabe o que falar, não é? Escute uma
coisa. Você disse que é a primeira vez que fica ali
na esquina. Então vou ser a sua madrinha e assim
sendo lhe darei mil cruzeiros.
O cérebro de Sérgio requebrou em frações e di-
vidiu os mil. Daria para pagar os três meses de
aluguel e ainda sobrariam quatrocentos cruzeiros.
É, a mulher não era tão gorda assim.
— A senhora é muito amável.
— Que palavra, a tempo que não a ouvia.
— Emprego as palavras conforme a pessoa e
eu a acho distinta.
Ela pareceu um pouco triste, quando respon-
deu:
— É. Até ontem eu também me achava dis-
tinta, mas... Quer saber de uma coisa? Até há
umas horas atrás podia jurar que preferia morrer
a permitir que outro homem tivesse relações se-
xuais comigo. Mas ontem marquei com as jóias
que ele me dá, os dias que não temos relações, no-
venta jóias e eu tenho vinte e três anos. — Sérgio
arregalou os olhos sem querer. — Parece mais, não
é mesmo? Mas... não é por isso que meu marido
não faz. É porque só gosta de outro jeito e eu não
deixo. Aí fica trazendo jóias. Mas agora eu pre-
ciso. Ando com os nervos abalados. Tem muitas noi-
tes que fico até com vontade de me masturbar, mas
não tenho coragem. Também não tenho coragem
de me deitar com qualquer um. Você sabe, a gente

26
não aceita qualquer sujeira para que fique dentro
da gente, se for de um vulgarzinho qualquer. Por
isso hoje saí disposta a convidar um "Call Boy",
pois uma amiga me disse, que já saiu com muitos
e são limpos, sadios, e educados.
— Quer dizer que somos dois principiantes?
— É.
— Então é melhor começar logo.
— Minha amiga emprestou-me o apartamento.
É aqui perto. Vou subir primeiro, assim escolherei
uma champanha, enquanto o espero.
Quando a jovem se levantou e começou a an-
dar, Sérgio jurou que não ia se enfiar naquele mon-
te de banhas. Ah! não iria não. Preferia ficar
"encostado", no pessoal da televisão até que saísse
alguma coisa. Mas, e se os dois companheiros de
apartamento o mandasse embora? E roupas? Co-
mo era bom andar com aquelas roupas bonitas e
finas. Levantou-se de um ímpeto. Não, não volta-
ria mais para aquelas roupas pobres e rasgadas.
Roupas de maloqueiros. E pensando assim ele sa-
cudiu os longos cabelos e com passos largos saiu
atrás do dinheiro. O dinheiro que ele pensava que
valia tudo neste mundo. Alguns minutos depois
estava boquiaberto com tanto luxo.
— Está admirado do que?
— Tanta riqueza!
— Não se admire não. Isso não vale nada A
minha amiga e eu preferimos isso. — E a mulher
da alta classe e podre de rico deu-lhe um beliscão
no pênis. Virou-se, apanhou a garrafa de bebida
e serviu dois copos.
Sérgio sorveu aos goles, mas a jovem, bebeu
de uma vez. Depois serviu-se novamente, duas três,
quatro vezes. Em cinco minutos desapareceu a ma-

27
dame e Sérgio nem reconheceu aquela gorducha
lasciva que vinha para ele e começava a lhe tirar
as roupas.
— Pode deixar. Isso eu faço. — Bem, já que
tinha que fazer, que o negócio fosse bem rápido.
Num segundo jogou suas roupas pelo chão de ve-
ludo e ajudou-a tirar as dela.
— Tenho de mijar, primeiro.
O modo de falar chocou o jovem que se sentiu
meio deslocado, ou melhor, um pouco humilhado.
Só um pouco, porque foi se acostumando com tudo.
— Sabe, a champanha me faz urinar muito
e fico de um jeito, que nem sei explicar.
— Sensual, talvez.
— Oh, nem sei, faz tanto tempo que não ex-
perimento que quase esqueci. — Ela desapareceu
em uma porta toda recoberta com o mesmo velu-
do do chão e de lá gritou: — Venha para o quarto.
— Ele foi varando a mesma porta, mas no longo
corredor ficou meio atrapalhado pois tinha mais
de seis portas que foi abrindo uma por uma e eram
todos quartos. — Este aqui, Sérgio. — A cabeça
dela em uma porta. Era também um quarto.
— Acho que vou buscar minhas roupas.
— Pr a que?
— Sei lá. A gente assim tão longe das roupas.
Ela aproximou-se e acariciou o braço do moço.
Ele correu as mãos pelas costas dela, pela barriga
e foi descendo, enquanto ela ficava de pé sem fa-
zer o menor movimento.
Ele também parou de alisá-la, pois a barriga
não tinha fim, cobria tudo.
Aí ela se atirou na cama, abriu as enormes
coxas e gritou:
— Vamos, vamos, estou morrendo por você.
Me apalpe. — Seu olhar era cheio de ansiedade. —

28
Que é? Está ficando bobo? Venha. — Ele não con-
seguia sair do lugar.
— Não me quer? Não quer os mil cruzeiros?
— Bem, é que não sei onde enfiar.
Ela puxou a barriga para cima. Sérgio fechou
os olhos e caiu sobre ela enfiando do melhor jeito
que podia e ela se agarrou nele e gritou: — Oh!
meu amor, já estou gozando. — Graças a Deus,
pensou Sérgio. Tudo acabado. A essas alturas ele
já estava correndo para a porta do banheiro, quan-
do a voz dela, bem alta:
— Que é, hem? Eu quero mais.
Ele parou de sopetão, como se tivesse levado
um tiro e estremeceu.
— Vem, vem fazer. Venha logo. — Seu corpo
balançava como uma grande bola inflada. — Venha
cá, venha, você nem gozou.
Sérgio apertou os lábios, alisou os cabelos e
voltou.
Ela sentou na cama e levou a mão ao seu pê-
nis, o alisou reclamando: — Olhe, meu bem, eu
não sinto a voluptuosidade suave que provém do
desejo. Neste instante eu estou sentindo uma dor
aguda que abrasa o meu útero; compreenda, não
seja igual ao meu marido. Enfie, vá, e se sacuda.
— Mas eu não estou falando nada. Se você
quer, vamos.
E Sérgio entrava e saía e ela ficava inflamada,
excitada, gozava e continuava a pedir que ele não
saísse de cima dela, e na fúria da ejaculação, ela
beijava, mordia, lambia e arranhava.
Assim ele ficou a tarde toda e quando se viu
livre, correu para o apartamento do Luís.
— Que foi, Sérgio, você está parecendo um
espantalho. Virgem, o que aconteceu com a mi-
nha roupa! Que manchas horríveis!

29
— Esperma, meu caro. Peguei uma louca. Ou
melhor, um vulc ão. Estou esbodegado. Olhe, veja
o meu pênis, todo vermelho e inchado. Vá pro diabo
essa história de ser "Cali Boy". — Aí, Sérgio con-
tou tudo.
Luís riu.
— Mas afinal ela te pagou?
— Olhe aí. Mil cruzeiros. Taí, pode ver.
— Então do que você está reclamando? Faz
anos que estou nesta vida e nunca mulher alguma
me deu mil cruzeiros.
— Mas pra mim chega. Nem acabei de entrar
e já quero sair. Pó, que mil cruzeiros sacrificados.
— Afinal, o que você quer? Disse-me que quer
ganhar dinheiro no mole. Que não quer nem ver
lojas, bancos, fábricas, escritórios, etc. Não quer
ser escravo de horários. Que não quer ficar tra-
balhando oito horas por dia. Sabe quanto ganha
em média o trabalhador de horário no Brasil? Seis-
centos cruzeiros, por mês. Sabe quanto é o salário
mínimo? Trezentos e setenta e cinco cruzeiros.
Salário do Estado de São Paulo. E você ganha, ape-
ritivos na lanchonete, champanha francesa, fode de
graça e ganha mil cruzeiros. Olha, corta essa, cara.
Sinceramente não te entendo. Você entrou na
"Dolce Vita", caríssimo "mio"
— "Dolce Vita"? Se pego mais uma dessa en-
tro é na sepultura, com uma infecção no pinto. Vá,
nessa não entro mais, juro. Amanhã vou falar com
um dos diretores do canal 7. Quem sabe...
— Saiu um teste para novela, um teste para
propaganda, um teste para merda. Não sei como
você tem coragem de voltar a procurar essa gente.
Se em dois anos não conseguiu nada. — Luís iro-
nisou.

30
— E eu não sei como você tem coragem de
ser "Call Boy".
— Mas nem sempre a gente precisa dormir
com elas. Às vezes é só pra companhia.
— Imagina se amanhã, eu precisar ter rela-
ções com alguma. Faço com o que?
— Até amanhã, essa inflamação já cedeu. Ele
está só um pouco irritado. Sei que não é lá muito
fácil ser "Call Boy". Tem lá seus espinhos. Mu-
lheres como a que você pegou hoje! A polícia, re-
pórteres, gente de T.V., tudo isso amola a gente.
Hoje mesmo tive que correr de alguns jornalistas
do jornal Notícias Populares, pois queriam parti-
cipar de nosso mundo e saber o que pensamos da
vida que levamos. Sei que um dos jornalistas con-
seguiu convencer o Renê. Não sei como o conse-
guiu, já que os "Call Boy", primam pelo sigilo, es-
condendo ao máximo sua, posição. Você sabe, viver
com belas mulheres, receber dinheiro por uma noite
de programa é fazer inveja a maioria dos homens.
Tudo é bom, fascinante, mas também tem esses
perigos de que lhe falei. Tem outro perigo, Sérgio,
quase sempre um de nós acaba sendo tentado ao
juntar a aventura "Call Boy", ao mundo alucinan-
te do tóxico. Existe tudo isso, Sérgio, mas também
existem muitas coisas boas, como já lhe expliquei.
Alguns acabam bem ricos. Renê é um deles. Tem
um grande restaurante, que comprou com o di-
nheiro que ganhou nessa "profissão". Se eu fosse
você experimentaria mais uma vez. Um conselho:
tome um banho, descanse aqui mesmo. A noite o
pego e vamos jantar com a madame que costumo
fazer companhia noturna, tá?
— É uma boa idéia.

31
3.° CAPÍTULO

Luís entrou no apartamento e acordou Sérgio.


— Jantaremos na casa de um médico milio-
nário e riquíssimo.
— Olha aqui, eu não vou. Não tenho roupas.
— Que é isso! — Luís abriu as quatro portas
de seu armário embutido. — A escolher.
* * *
A casa era mansão, com aquele enorme par-
que arborizado, toda cercada de grades douradas,
formadas com as iniciais L. M. S. (Lúcio Moraes
Santos). O porteiro escancarou o portão e o carro
foi parar naquelas escadarias que levam ao pata-
mar.
Os três subiram e Sérgio ficou de olhos prega-
dos na enorme porta com um escudo onde apare-
ciam as iniciais L. M. S. O mordomo de preto e de
luvas brancas abriu e logo que entraram avistaram
Lúcio que estava sentado de costas tocando piano.
O mordomo falou alto.
— Dr. Lúcio e sra. Cristina Ferreira Campos
Sr. Luís Alves Lima e sr. sr
— Sérgio Lopes Gama, — falou rápido Sérgio.
— E sr. Sérgio Lopes Gama.
O médico voltou-se na banqueta e de um salto
pôs-se de pé.

32
— Oh! que prazer em receber seus amigos,
querida Cristina. — Falou beijando-lhe as duas
faces.
— Meu caro, apresento-lhe Luís e Sérgio.
— De que família são mesmo? Queiram per-
doar-me, mas o mordomo falou tão rápido, que não
consegui ouvir direito, depois Schumann também
estava me absorvendo toda a atenção.
— Ah! que família? — Luís engasgou. — Al-
ves Lima.
Lúcio apertou a mão de Sérgio.
— E você?
Sérgio avermelhou, franziu o cenho.
— Eu sou... Bem, eu sou Lopes Gama.
— Lopes Gama, Lopes Gama. Deixa ver se me
recordo. Ah! você é descendente do grande escri-
tor brasileiro Miguel do Sacramento Lopes Gama,
nascido em Pernambuco. Bela e pura família. Mi-
guel era conhecido como o Padre Gama, pois rece-
beu as ordens sacras, se não me engano em 1822.
Lembro-me de um epígrafe desse grande escritor.
Que sempre lia nos livros de meus avós e pais
"Guardarei nesta folha as regras boas. Que é dos
vícios falar não das pessoas". Desculpe-me. Falo
muito, sentem, sentem. Ou melhor, vamos passar
para o salão anexo ao de jantar, assim mandarei
servir os aperitivos.
Lúcio deu o braço a Cristina, e seguiu em fren-
te. Sérgio seguiu com Luís, e disse baixinho:
— Que frescura é essa? Esse negócio de no-
mes de família já era. Nunca ouvi nem o L, desse
tal escritor. Que homem chato.
— Chato, mas cheio de grana, meu... meu...
Como mesmo a gente tem de falar em mansões?
Sérgio fez uma reverência.

33
— Meu caro. Perdoa-me. Desculpe-me. Por
gentileza, e barabarababa.
Espremeram o riso.
— Olhe Luís. Que é aquilo?
— Só empregados enfileirados para receberem
as ordens do mordomo.
— Que ordens?
— Para servirem, muito bem os lordes, Sérgio
e Luís.
Sérgio estufou o peito.
— Você já pensou. Viver assim como lorde.
Ah! maravilha das maravilhas.
— Foda muitas madamas que logo você terá
essa vida.
— Brrrrr. Não me fale em foder agora. Faz
lembrar-me que estou com o pênis todo jagunçado.
Sentaram dois em frente de dois e o garçom
arrastou a mesinha e perguntou:
— Que coquetéis preferem? Os convidados é
que mandam.
Cristina falou logo — Moutain.
— Para mim um Blanche — era a voz de Luís.
Os olhos de Lúcio pousaram em Sérgio.
Ele se remexeu na cadeira. Não sabia o nome
de nenhum coquetel. Diabo de vida que tive. E
agora? Que vergonha! Também aquela gente da
televisão só tinha fama. Nunca participou de ne-
nhum jantar fino. Os olhos de Lúcio continuavam
fixos nele.
— E você Sérgio? Já lembrou?
— Ah! eu? Bem, eu acho que... que... um,
bem, um Mart'.
Lúcio virou-se para o serviçal.
— Prepare então o Martine Coquetel Doce.

34
— Com xarope de granadme, senhor?
Os olhos do garçom em Sérgio.
— Granadine? Ah! Granadme! Ponha sim.
— Marasquino quantas gotas? — Era o gar-
çom novamente.
Sérgio mordeu os, lábios e se arrependeu de
não ter escolhido pinga. Só pinga.
— Como o senhor quiser.
1
O garçom parou com o "shaker" no ar e arre-
galou os olhos para Sérgio, que remexeu os om-
bros. O que teria dito de errado?
— Continue Carlos... Ele se admirou de você
usar "senhor". Mas afinal quantas gotas de Maras-
quino você prefere?
Sérgio já estava ficando irritado, pois o estô-
mago começava a roncar de fome.
— Quantas gotas forem necessárias.
— Então coloque 10, e 2/3 de vermute Cinza-
no, bem como 1/3 de Gin. Está bem assim, Sérgio?
— Lúcio não tirava os olhos dele, pensando: Como
era bonito. Maravilhosamente belo. Nunca vira
olhos que brilhassem tanto assim em frente às for-
tes luzes. Que cabelos! Seda pura! Lúcio os sen-
tiu nas mãos. Sim, seda macia e pura.
— Brindemos essa noite o que, Lúcio? — A
voz de Cristina. Os olhos de Lúcio se voltaram para
o cálice, levantou-o e sem perder Sérgio de vista,
disse:
— Brindemos à nossa amizade.
— De pé todos — falou Cristina — assim a
amizade será mais duradoura.

1 recipiente especial para o preparo de coquetéis.

35
Os quatro copos se batendo e quando volta-
ram a sentar-se, Sérgio deu uma cotovelada em
Luís e cochichou:
— Minha bebida está com gosto de veneno.
Luís riu.
— É assim mesmo. O amargo vem das sacu-
didelas do "shaker".
— Fale garrafa pelo amor de Deus. •
— Você precisa se acostumar com coisas finas.
Na alta é assim.
— Estão falando sobre bebidas?
— É. Sérgio quer a receita do "Martini Co-
quetel Doce".
— Eu não! Quero dizer...
— Você é por demais encantador, quando fin-
ge que não conhece bebidas, meu caro Sérgio — fa-
lou Lúcio enquanto apanhava a cigarreira de ouro
e abrindo-a estendeu-a à Sérgio, que lançava-lhe
um olhar fulminante.
— Não fumo e não estou fingindo, dr. Lúcio,
para ser sincero e u . . .
— O jantar está servido.
A mesa enorme, com a toalha de rendas arras-
tando no tapete estampado de mil cores. No cen-
tro, o arranjo de flores, os candelabros com velas
brancas, as porcelanas, os cristais e a prata entra-
ram de uma vez nos olhos de Sérgio, que até cam-
baleou. Foi aí que Lúcio percebeu que o jovem não
conhecia o mundo de classe.
Luís falou baixinho, enquanto Lúcio estava
afastando a cadeira de Cristina.
— Finja que conhece as coisas da alta, senão
o cara vai por a gente na rua com o estômago no
fundo, Cristina disse que ele odeia a plebe.
Sérgio perguntou rápido.

36
— Que é plebe?
— Pobre, mendigo. Sei lá, um monte de coi-
sas. Afinal, você deve ter lido alguma coisa da eli-
te, algum dia em sua vida, não?
— Não leio. Detesto ler. E nem sei o que é
Elite.
— Taí. Estou me vendo voando sobre aquele
portão dourado com um belo pontapé na bunda.
— Sente-se aqui Sérgio. Aqui na minha fren-
te. Você, Luís, à frente de Cristina.
Atrás de cada cadeira tinha um empregado
uniformizado de branco e de luvas também bran-
cas. Sérgio encarava aquele que estava atrás da
cadeira do médico, louco para saber o que ele fa-
zia lá parado, duro feito uma estátua. Sabia que
atrás de sua cadeira também tinha um. Por isso
estava com medo até de se mexer. Ficou pensando
se esse homem rico, ou melhor, milionário, aí em
sua frente não seria um débil mental. Estava até
arrependido de ter vindo. Bem que dissera ao Luís
que não tinha roupas. Já estava prevendo que ia
passar por algumas e das boas.
2
— Sirva-se do "hors-d'oeuvre" Sérgio.
Sérgio levantou depressa a cabeça e encarou
Lúcio, depois relanceou os olhos pela mesa pensan-
do. Onde diabo está esse troço? Foi quando sen-
tiu que o empregado que estava atrás dele o serviu
de melão com rolinhos de presunto e ameixas com
patê.
— Está bem assim, senhor?
— Está. Está sim.
— O que prefere para beber, Chablis ou Sau-
terne?

2 Petiscos que são servidos como entrada às refeições.

37
Sérgio pensou. Seja lá o que for vou escolher
qualquer um e respondeu sorrindo:
— Chablis.
Lúcio aprovou rindo.
— Uma boa escolha, meu caro Sérgio. Junto
ao ao "hors-d'oeuvre", eu sempre ordeno esses dois
vinhos.
— Agora você poderá escolher o que será ser-
vido com o "poulet aux concombres".
— Sérgio, escolha um vinho tinto, como Bour-
gogne, Bourdeaux, ou Chateau Dafite — disse Luís.
Sérgio altivamente virou-se para o garçom e
disse:
— Bordeacos.
O garçom parou olhando para o dr. Lúcio e
disse:
— Na adega não existe essa marca de vinho.
— Então sirva outro qualquer.

38
4.° CAPÍTULO

Naquela noite, conhecendo bons vinhos, boas


comidas e luxo, fortificou dentro do espírito de Sér-
gio o desejo de ganhar muito dinheiro. Sentiu que
bebidas com rótulos estrangeiros, finas iguarias,
boas roupas, casa luxuosa, seriam enquanto ele ti-
vesse seus companheiros.
E para isso ele começou a freqüentar as es-
quinas. Tinha muita sorte, pois a beleza física era
super apreciada pelas madames, solteironas e fi-
lhinhas de papai. Era só chegar na esquina e já
tinha até filas de carros esperando por ele.
Passava as tardes com as mulheres, as noites
freqüentava a mansão de Lúcio e às manhãs dor-
mia.
Certa ocasião, um luxuoso carro o esperava.
— Oi, Sérgio.
— Oi.
— Venha cá.
— Eu?
— É.
Sérgio relutou pois viu que era uma menina
que talvez tivesse tirado o carro do pai, ou do ir-
mão, sem ordem.
Não queria complicações com o Juizado de
Menores.
— Escute garota. Vá pra casa, vá.
Ela desceu do carro, e foi até ele.

39
— Preciso de você.
— Quantos anos você tem?
— Quatorze.
— Quem me indicou?
— Minha mãe.
— Para que? Levá-la até Santos, Rio de Ja-
neiro, Sul...
— Para você me desvirginar.
— Bem, neste caso você tem que procurar
outro.
— Porque, você é viado?
— Não sou, mas não quero me por em maus
lençóis.
— Minha mãe te pagará muito bem.
— Onde está sua mãe?
— Foi até o Banco de meu pai, apanhar o di-
nheiro.
— Banco de seu pai?
— É. Papai é banqueiro.
Sérgio sacudiu os cabelos, coçou o queixo.
— Foi buscar o dinheiro para que?
— Dar a você. Olha, ali está o táxi. com ela.
Hei, mamãe, aqui, aqui.
A mãe jovem, bonita e amável, convidou-o para
um passeio onde explicaram tudo.
Explicou que era receita médica, pois a menina
sofria de uns ataques epiléticos, e que ficaria cura-
da se tivesse relações sexuais. — Quero ver minha
filha curada. Depois mando fazer uma plástica.
Quem vai saber?
— Mas epilepsia é doença nervosa cerebral.
— Eu sei. Mas eu penso que os ataques de
minha filha são de problemas sexuais. Ela é muito
ardente e está sempre se esfregando em qualquer
coisa. Outro dia se machucou toda num cilindro

40
de madeira que forma os pés de sua cama. Assus-
tou quando a empregada chegou e aí caiu num
ataque.
É sempre assim. Quando sabe que suas amigas
casam ou estão noivas, quer saber tudo a respeito,
e quando ouve vai ficando pálida, pálida e cai se
unhando e se torcendo toda. Eu lhe darei cinco
milhões.
Sérgio perdeu a voz, depois foi gaguejando:
— Cin-co, cinco milhões?!!
— Cinco milhões. Metade agora e o resto
quando... Tome a chave de meu apartamento.
Você guia?
— Claro.
— Então leve o carro.
Sérgio não teve dificuldade com o zelador que
até lhe deu uma piscadinha.

* * *
O apartamento estava todo preparado, bebidas
no gelo, flores nos vasos, etc. A mulherzinha havia
preparado tudo como se fosse para um casalzinho
em lua-de-mel. Tudo muito bonito, como a me-
nina. Menina alta, talvez um metro e setenta, for-
te, com grandes seios, coxas grossas e pernas lon-
gas, lábios rosados, belos cabelos, de gente rica,
macios, brilhantes, e bem cuidados, caindo-lhes até
os ombros, olhos luminosos cheios de desejo. Sér-
gio fechou a porta, tirou a chave, colocando-a so-
bre a mesinha.
Foi até a janela e ficou pensando por onde de-
veria começar. Nunca tinha deflorado alguém.
Deveria ou não tirar a roupa? Não, a menina fi-
caria chocada. Ficou pensando que a coitadinha
era inexperiente, criada em colégios milionários e

41
só vivendo no meio da alta classe, como poderia
aprender as coisas que só se aprende no submundo?
Mas a voz infantil se elevou no ar:
— Pegue-me na buceta, seu bobo.
Sérgio virou-se de um sopetão e arregalou os
olhos. A menina estava nua e vinha em sua dire-
ção com o rosto transtornado. Nem deu tempo dele
abrir a boca, ela já estava ajoelhada aos seus pés
tirando-lhe as calças. Enquanto ele se desvenci-
lhava da camisa ela já o puxava para o chão e agar-
rando-lhe o pênis, gritava:
— Miserável, animal, filho da puta, enfie logo,
logo. — Ele procurava ser normal, ir por cima, mas
a menina o segurava pelos cabelos e o empurrava
para baixo. Abria as pernas.
— Chupe, seu puto. Fica mole? Que há? Não
tem excitação sexual?
Mas Sérgio não queria muita prosa. Os dois
mil e quinhentos cruzeiros os esperavam. Num tre-
mendo esforço conseguiu que a menina ficasse de
barriga para cima, atirou-se sobre ela e segurando
o pênis empurrou com toda a força.
— Ah, você é divino. Empurre, empurre, com
mais força. — Ela gritava aflita se torcendo. De-
pois gritou, se esticou, pendeu a cabeça para o lado
e ficou quieta.
Então Sérgio levantou-se e correu para o ba-
nheiro. Mas quando voltou, a menina chamou:
— Se você não fizer outra vez, eu conto pra
mamãe. Já que você destruiu o meu hímen, tem
obrigação de fazer quantas vezes eu quiser.
— Sua mãe recomendou só a defloração. E foi
o que fiz.
— Mas eu quero mais.
— Não, não. Sua mãe a espera. Acho melhor
nos vestirmos.

42
— Então prepare alguma coisa para eu beber.
Sérgio estendeu-lhe o copo, com a bebida, e a
menina foi se aproximando com um olhar estra-
nho e quando Sérgio viu que era um olhar sádico,
já era tarde. A menina pulou para cima dele lhe
dando murros no rosto. O copo foi parar no chão,
na hora que Sérgio dobrou os dois braços para de-
fender o rosto, aí sentiu que ela o agarrava pelo
pênis e o puxava doloridamente.
— Espere, espere. Eu estava brincando. Não
me machuque. Assim, como é que eu vou fazer?
Vamos, seja boazinha.
Ela largou, mas quando Sérgio respirou pro-
fundamente ela já tinha lhe agarrado os longos
cabelos e os sacudia de lá pra cá. Sérgio pensou
em usar a força, mas o diabo de garota era menor.
Conseguiu uma vez segurar-lhe os braços mas* a
menina o pôs longe com um golpe de karatê. Ele
no chão pensava em se matricular em uma escola
de karatê, no dia seguinte.
E ela pegando uma garrafa e gritando:
— Vou matá-lo.
Ele se levantou de um salto.
— Hei, menina. Espere aí. Não lhe dou uma
boa surra porque não quero complicações com o
Juiz de Menores, e nem com gente rica. Mas...
Um soco fez escorrer sangue do nariz de Sérgio.
Já que a menina sabia karatê, o melhor seria dar o
fora e foi isso que ele tratou de fazer. Tentou, mas
não\ conseguiu chegar perto das roupas, apenas
pôde pegar a chave e dar um ponta-pé na mesinha
derrubando tudo. Com o barulho do quebrar de
garrafas, a menina se acalmou um pouco dando
tempo a Sérgio de abrir a porta e a fechar nova-
mente com grande alívio.

43
Nem acabou de respirar fundo, quando sentiu
o frio do chão entrar-lhe pelos pés descalços. Olhou
para os pés e só aí deu conta de que estava nu. Ele
balançou a cabeça olhando para todos os lados.
O que faria? Ouviu um barulho de trinco e
fixou os olhos na direção de onde ele vinha e quase
caiu de susto quando viu que a garota vinha pela
porta dos fundos em sua direção.
Rapidamente abriu a porta mas não conseguiu
fechá-la. Assim teve que sair correndo. Saía pela
porta dos fundos, passava pelo corredor rente ao
elevador, entrava pela porta da frente e repetia
tudo com a garota atrás dele gritando como o dia-
bo, só se acalmando um pouco quando as portas
dos elevadores se abriram e o corredor se encheu
de homens fardados.
Os policiais encararam os dois nus, e um deles
com a cara fechada disse rispidamente para Sérgio:
— Que pouca vergonha é essa?
— Oh, nada demais, seus guardas. A moça é
um pouco barulhenta.
— Vá se vestir e nos acompanhe.
Sérgio tremeu. Lúcio, a alta sociedade, a es-
quina onde as madames passavam com os carros,
bem devagarinho, iam desaparecer se ele fosse
preso.
— Que é isso, seus guardas? A gente estava
fazendo um programinha inocente. O sr. sabe co-
mo são essas coisas, um pouco de bebida. — En-
quanto ele falava procurava fechar a porta deva-
gar, para a polícia não ver tudo derrubado, móveis,
bebidas, garrafas.
— Chega de conversa fiada. — O guarda o em-
purrou brutalmente para dentro, assim como a
menina que começou a gritar, que queria a mãe.

44
— Bendita seja a Santíssima mãe de Deus, —
balbuciou Sérgio, quando viu a mãe da menina ex-
plicando que a filha era doente, etc.
Quando os guardas partiram, Sérgio recebeu o
resto do dinheiro e já vestido tratou de correr dali
indo diretamente para o apartamento de Luís.

* * *
Luís atendeu ao toque da campainha e enca-
rando o rosto de Sérgio, que entrava gemendo, foi
falando:
— Que é isso, meu Deeeeeus! Disputou o tí-
tulo mundial dos penas com Eder Jofre?
— Não enche o saco, Luís. Estou moído, me dê
um pouco de água. Pô, nunca pensei que esse fi-
lhos da puta de cinco milhões fossem deixar-me
desse jeito.
— Então foram cinco milhões, que te nocau-
tearam. Você assaltou que Banco?
— Não, meu caro. Fiz o que a minha profis-
são manda. Fodi.
Aí Sérgio explicou tudo.
— Agora veja. Não agüento levantar. Ai, me
dói o corpo todo. Onde tem uma escola de karatê,
hein, Luís?
— Logo ali na esquina.
Sérgio passou a mão pela cabeça e quando viu
que a mesma se enchia de cabelos, ficou todo arre-
piado.
—- Luís, veja se não estou careca. Olha quan-
to cabelo!
— Que nada. Você tem tanto cabelo que dá
para mais umas dez fodas destas. Deixe ver: dez
vezes cinco, são cinqüenta. Taí uma boa pedida,
careca por cinqüenta mil cruzeiros.

45
— Não brinque. Devo ter algum osso que-
brado.
— Só se for o osso do ofício.
— Pare de encher, Luís. Em vez disso vê se
me leva para um Pronto Socorro.
— Pronto Socorro não. Aí vem um monte de
perguntas e você não vai poder responder que foi
agredido por uma menina de quatorze anos.
— Então vamos para algum médico, ou me-
lhor, chame-o aqui.
Luís estalou os dedos, e deu voltas pela gran-
de sala. — Olalá, já sei quem chamar sem gastar
um vintém. O Lúcio.
— Mas Lúcio é médico de mulheres.
— Mas Lúcio é dono de quatro hospitais.
— Mas Lúcio não pode saber a vida que leva-
mos. Se ele ficar sabendo não nos receberá mais
na mansão.
— Mas como vai saber?
— Quando ver o seu luxuoso apartamento, vai
perguntar no que trabalhamos, e vamos falar o que?
— Que a gente é artista, ora!
— Artista de que? Só se for um Tarcísio Mei-
ra, para ter tudo isso. Olha, meu caro, vamos mes-
mo ao Pronto Socorro.
— Espere aí. Eu telefono ao Lúcio, e ele dá
alguma idéia.
— Então ande logo. Estou morrendo de dor...
Primeiro olhe aqui. Aqui, no meu olho, estou sen-
tindo-o tão estranho.
— Está inchado. É karatê, não é brincadeira!

46
5.° CAPÍTULO

Lúcio indicou um hospital e disse para espe-


rarem que ele chegaria logo.
Sentaram num grande banco de madeira e já
estavam aguardando meia hora, quando Lúcio
chegou.
Deu uma pancadinha no ombro de Sérgio e
disse:
— Raio X.
O técnico se admirou da quantidade de chapas
pedidas e enquanto tirava uma do nariz, disse:
— Você é rico?
— Porque me pergunta?
— Porque as chapas vão ficar em três milhões
e oitocentos mil cruzeiros.
Sérgio levantou-se de um ímpeto.
— O que?! Então é melhor parar.
— Espere aí, o senhor está rasgando o traje
de papel.
— Que traje? Deixe isso pra lá. Não quero
mais tirar nem uma chapa. Onde está o meu ami-
go? Chame-o por favor.
Luís entrou correndo.
— Você quer me matar do coração? O que
aconteceu?
— Sabe em quanto ficarão as chapas?
— Sei.

47
— Sabe! E você não se admira?
— Não.
— Ah, lógico, não é você que vai pagar!
— E nem você.
— E quem então?
— Lúcio.
— Lúcio?!
— Sim. Afinal somos todos amigos, não somos?
Sérgio deu ordem para o técnico continuar, e
algum tempo depois reclamava:
— Estou cansado de tirar chapas. Preciso sair
pois aqui não tem ar, e eu me sinto sufocar.
— É, de fato aqui faz muito calor. Raul, por-
que não liga o ventilador?
Lúcio entrava alto e bonito no seu uniforme de
médico.
— Perdoe-me, meu caro. Sempre que vejo al-
guém machucado peço radiografias do corpo todo,
sem me lembrar que a pessoa é de carne e ossos.
Pegou as radiografias da mão do técnico e as
olhou de encontro a luz e disse: — Está vendo?
Nessa aqui do joelho, já mostra que é preciso en-
gessar.
— Engessar. Mas e o meu trabalho?!
— Ora Sérgio, o novelista dá um jeito do per-
sonagem aparecer engessado, — disse Luís.
— Novelista? — Lúcio franziu o sobrolho.
— É, fazemos novelas.
— Penso que Sérgio terá que ter um pequeno
descanso. Coisa assim de oito dias. Não é nada
grave, mas tem que ficar em repouso.
Sérgio mordeu os lábios:
— Seja franco, Lúcio. Você acredita mesmo
que há necessidade de repouso? Isso vai causar- P48
me grandes problemas. Você sabe, moro em um
apartamento com mais dois rapazes. Não temos
empregada.
— Não se preocupe, Sérgio. Você poderá ficar
em minha casa. Meus criados cuidarão de você.
— Claro que ele aceita, — disse rindo Luís, e
depois virando-se para Lúcio: — Você sabe que
Sérgio não se esquece dos vinhos do dia que jan-
tamos com você.
Sérgio riu.
— Não o lembre, — disse Sérgio. — Morro de
vergonha, só em pensar que não sabia nem o que
era "shaker".
Lúcio lançou sobre o jovem um olhar fixo e
langoroso, dizendo:
— Asseguro-lhe que não faltará nem uma
marca internacional na minha adega enquanto
você for meu hóspede. Luís, quer ter o incômodo
de acompanhar Sérgio até o carro? Meu chofer o
levará, enquanto ligo para o mordomo para reser-
var-lhe um quarto com portas para o jardim.
Quanto a mim ficarei mais algum tempo para es-
tudar melhor as suas radiografias. Logo que ter-
mine irei ter com vocês. Fique por lá até eu che-
gar, Luís.

* * *
O quarto era luxuoso, enorme, com cortinas de
veludo e seda que Sérgio mandou Luís abrir.
— Hoje o calor está me perseguindo. Aqui
também está um calor sufocante apesar de você
ter aberto as cortinas. Olhe, o melhor é você em-
purrar essa cadeira de rodas para o jardim.
— Eu? Que é isso, Sérgio, esquece que temos
vinte criados a nossa disposição? Espere só eu to-

49
car a campainha. — Um criado uniformizado de
branco, entrou.
— Às suas ordens, senhor.
— Empurre essa cadeira aí para o jardim. O
dr. Sérgio está com calor.
% ^

— Aqui está bem, senhor?


— Ótimo. Agora nos sirva alguma coisa gelada.
— Com muito prazer, senhores. Mandarei o
garçom e os senhores dir-lhe-ão o que desejam to-
mar. Com licença.
O criado já estava longe e Sérgio comentou:
— Esse criado fala um "português"!
— É, também reparei.
* * *
— Às suas ordens, senhores. — O garçom
entrou.
Os dois escolheram.
— Pois não, aguardem um momento. Com li-
cença.
— Escute aqui, cara.
Luís foi até perto do garçom que parou.
— Pois não.
— Aquele cara. O criado que pito toca?
O garçom sorriu.
— Quem? Gustavo?
— Sei lá o nome.
— O criado que me levou o recado?
— É.
— Ah! Bem, ele é estudante. Quero dizer, faz
madureza à noite, e é espírita.
— Então é um chato.

50
— Depende da amizade. Quando lida com ca-
valheiros, só fala quando é interrogado. Mas com
o resto da criadagem só vive pregando moral.
— Hei, Luís, estou com sede.
— Olhe aqui, garçom. O Gustavo pode vir
trazer as bebidas?
— Penso que não, senhor.
— Porque?
— Coisas de disciplina. Mas poderei falar à
governanta. Ela mandará Gustavo até aqui se
assim os senhores desejarem.
— Não, não. Não esquente. Traga os refres-
cos, sim?
ífc % %

A tarde caía tépida com o sol morrendo e ves-


tindo o mundo de um dourado pálido, quando Sér-
gio e Luís pararam de falar ao ouvirem passos
apressados que se dirigiam para o grande salão.
Logo o ar se envolveu dos acordes de piano numa
música ligeira e triste.
Luís olhou para Sérgio e disse:
— Dou meu pescoço à forca se não é Lúcio que
está tocando e se assim que entrar no meu quarto
e atravessar aquela porta e chegar até aqui, não
perguntar: — Vocês gostaram da sinfonia? — O
que ele está tocando? Ópera, abertura, sei lá que
raio é. Você por acaso sabe, Sérgio?
— Não entendo de música fina. Se fosse um
samba eu diria que era Jair Rodrigues, Martinho
da Vila...
— Gostaram da música?
— Ahhhh!
Os dois abriram a boca ao mesmo tempo.
— Música? Ah! sim adoramos.

51
— Conhece essa Sinfonia, Sérgio?
Sérgio tentou levantar a perna engessada, com
as duas mãos segurando em baixo e gemeu com-
prido.
— Ai, como dói!
— Vou ministrar-lhe algum sedativo. Logo
ficará bom.
— Não, não Lúcio. Não se preocupe tanto. Já
passou, foi só mal jeito ou cãibra...
— Então falemos de música. Você já ouviu
falar de Alexandre César, Leopoldo Bizet, não ou-
viu?
— Claro.
— Pois toquei a Caça de Ossian, do grande
mestre francês. O mundo considerou uma de suas
músicas, Carmem, obra-prima, mas eu prefiro a
Caça. Quando a toco eu me envolvo, não como se
estivesse em uma grande e sóbria floresta mon-
tado a cavalo e correndo atrás de algum animal.
Eu sempre deixo o pensamento correr levemente e
ele vai e se fixa como se tudo fosse caça humana.
Eu correndo atrás de um jovem alto, moreno, de
olhos...
Lúcio parou de chofre. E como se viesse do
outro mundo diz:
— Ah! desculpem-me meus caros. Não devo
deixar-me envolver pela música. Ela está sempre
na espreita para ouvir os segredos de meu espí-
rito . . .
Rindo, Sérgio perguntou:
— E quais são os segredos de seu espírito?
A fisionomia do médico demonstrou uma leve
perturbação.
— Ah! Aquilo que eu poderia dizer agora creio
que você não compreenderia e mesmo não iria
acreditar.

52
Lúcio inclinou-se, colheu num canteiro uma
flor e levando-a perto dos lábios, aspirou-a pro-
fundamente e depois colocou-a no braço da cadei-
ra de rodas, disse:
— Com licença, vou trocar de roupa para o
jantar.
Os olhos de Sérgio estavam fixos na flor e le-
vantou-os quando Luís perguntou:
— Você entendeu o que ele disse, sobre a Caça?
—Que em vez dele pensar em caça com ani-
mal pensa com ser humano.
— Mas você escutou direito de quem ele cor-
ria atrás?
— De uma jovem de cabelos...
— Aí que está. Eu ouvi dizer de um jovem.
Sérgio riu.
— Acho que você não lavou o ouvido hoje.
— Estou ouvindo o trinar de uma cigarra.
Você está?
— Claro.
— Então estou ouvindo direito, né Sérgio?
Um silêncio pesado caiu entre eles, sendo in-
terrompido por Gustavo que veio avisá-los de que
o dr. Lúcio os aguardavam na sala dos aperitivos.
Quando entraram, Luís estremeceu quando
percebeu o olhar penetrante de Lúcio fixo em Sér-
gio. Voltou-se um pouco e ficou olhando o empre-
gado empurrar a cadeira, para disfarçar o estra-
nho terror que havia se apoderado dele. A força de
seu espírito pôde abranger toda a realidade. Ele
estava diante de um ser de tão grande fascinação
que tinha o dom de subjugar qualquer outro ser hu-
mano. Ele queria explicar a Sérgio que não pode-
riam ficar aí. Que deveriam sair logo sem ao me-

53
nos jantar. Mas como poderia explicar aquilo que
sentia? Explicar o que? Que o homem lhe dava
arrepios? Explicar que atrás daquela bela aparên-
cia de jovem bonito e bem tratado existia um de-
mônio. Sérgio iria rir muito. Já parecia ouvi-lo
dizer: "Que é isso Luís? Está vendo fantasma",
então ele brincaria: "está com inveja que o homem
dá mais atenção a mim do que a você?" É, o ne-
gócio era deixar pra lá. Também poderia ser im-
pressão. Algum dia talvez...
— Meu caro Luís, que pensamentos profanos
invadem o fundo de sua consciência?
Luís levantou rapidamente a cabeça e seus
olhares se cruzaram.
— Estou pensando, que tenho um encontro
com... com...
— Cristina e não poderá jantar.
Ainda sob aquela mesma estranha sensação,
Luís balançou a cabeça afirmativamente.
— Acertou em cheio, Lúcio.
— Ora meu caro, Sérgio e eu ficaremos amo-
finados, mas o esperaremos amanhã.

* * *
Naquela noite Luís não dormiu, pois tinha ab-
soluta certeza que alguma coisa de muito grave
iria acontecer. Logo que clareou o dia, pegou o
carro e correu para a mansão.
— Dr. Lúcio ainda repousa, senhor, mas o se-
nhor Sérgio, acabou de pedir o desjejum. — Gus-
tavo falava sério.
— Gostaria de tomar café com ele, se for pos-
sível.
— Como o desejar, senhor.
Luís entrou no quarto de Sérgio e foi abrindo
cortinas e venezianas.

54
— Oi Sérgio.
— Que aconteceu, Luís? Pensei que quem
abria as janelas eram os criados. — Sérgio estava
recostado em grandes travesseiros cobertos com
fronhas brancas de seda, bordadas à mão.
A dobra do lençol que aparecia sobre uma co-
berta de peles também era branca, de seda e bor-
dada a mão.
— Levantei-me cedo, porque não dormi a
noite.
— Ganhou muito dinheiro ?
— Não é o que você está pensando. Ontem
não trabalhei.
— Então, porque?
— Fiquei pensando em você.
— Ah! então fui eu que lhe perturbou a noite.
E posso saber no que?
Neste momento Gustavo entrava com a ban-
deja e a colocou na mesinha perto da cama e ser-
viu Sérgio, enquanto Luís se servia de café e to-
mando aos pequenos goles foi postar-se no fluxo
do sol que entrava pela janela. Assim banhado pelo
morno sol, Luís ouviu Sérgio repetir:
— Você ainda não me falou no que o pertur-
bei a noite?
— Não sei explicar, Sérgio. Você sabe, sem-
pre tenho sido dono de mim mesmo. Mas desde
quando estive aqui senti que se apoderou de mim
uma coisa estranha. Uma sensação de como o fu-
turo viria ao meu encontro cheio de horrores.
— E onde entro eu?
— Sei lá. Quando eu pensava em você ficava
todo arrepiado. Sinceramente estou com medo.
— Medo?

55
Sérgio caiu na gargalhada. — Você ouviu, Gus-
tavo, um homão desse, com medo. Você acredita
Gustavo, que um homem possa ter medo?
— Sim, senhor Sérgio. Eu acredito que o ho-
mem por mais corajoso ou determinado, sempre
tem medo de si mesmo, pois todos os desejos que
um ser humano tenta esconder não o consegue por-
que ele está enraizado dentro de si mesmo. Quero
dizer, dentro de nosso espírito.
— Eu não acredito em espíritos e não tenho
medo de mim mesmo.
— Desculpe-me senhor, mas penso que o nosso
espírito está envolvido por desejos, que ele próprio
a si proibiu. Mas se não for forte e temente a Deus,
cairá na tentação dos piores pecados do mundo,
enegrecendo assim esse mesmo espírito. E é aí, se-
nhor, que o homem tem medo de si mesmo, medo
de ceder a pecados, que o arrastarão para o mundo
lúgubre e monstruoso. Mas cede. Cede às vezes
pelo prazer de coisas materiais, de coisas que só
servem para embelezar a matéria...
— Basta, Gustavo!
A voz de Lúcio vibrou no ar.
Confusamente, Gustavo se desculpou, e saiu
do quarto.
Lúcio dirigiu-se para Sérgio.
— Ora, aí está. Alegre e bem disposto. Como
o despertar de pássaros e o desabrochar da prima-
vera.
Os olhos de Sérgio e Luís se encontraram e de-
pois se desviaram e pousaram em Lúcio, que exa-
minava o gesso da perna e continuava:
— Gustavo é um jovem que tenta sempre fa-
zer com que as pessoas se revelem a si mesmas.
Diz sempre que o que dormita lá no fundo de nossa
alma deve ser clareado. Já procurou convencer-me

56
muitas vezes que existem espíritos, que nos prote-
gem. Não é um procedimento digno de louvor, pois
não se deixe influenciar as pessoas a aceitarem algo
provocado pelo espiritismo, mas dizem que já curou
muita gente de vícios horríveis encaminhando-as
à Federação Espírita. É, realmente Gustavo é um
rapaz muito sensível. Algumas vezes ficamos horas
conversando e eu deduzi que ele é cheio de pureza
e que se tem conservado sem... Como diremos;
sem pecado.
— Mas como pode existir alguém sem pecado.
Desde criança ouvi dizer que desobedecer é pecado,
responder aos pais é pecado, bater no colega é pe-
cado . . .
— Você me emociona com sua simplicidade,
Sérgio.
Sérgio franziu o cenho e o fixou. Lúcio estre-
meceu e sem desviar a vista falou novamente:
— Estou me referindo aos pecados da alma,
meu caro Sérgio. Discuti com o jovem Gustavo,
que um dos grandes segredos do ser humano é
curar os pecados por meio de sexo. Digamos, você
está propenso a cometer um assassinato para con-
seguir o amor da pessoa amada. Mas ela vem es-
pontaneamente e o satisfaz em todos os desejos de
seus sentidos. Sentido satisfeito. Alma curada.
Tenho ou não razão, Luís?
— Não sei, Lúcio. Você é uma criatura ex-
traordinária. Sabe muitas coisas que eu julgava
não existir. Gostaria de poder dialogar com você,
mas sinceramente não tenho argumentos.
— Ora, meu caro Luís, não se envolva de mo-
déstia. Mas devo declarar que não quero estragar
este lindo e morno dia com a minha filosofia. Não
quero roubar-lhes o prazer de um café tranqüilo.
Mas gostaria, Sérgio, que não desse muita atenção

57
a Gustavo. Agora vou dar mais uma olhadinha nas
suas radiografias.
Tocou a campainha, e logo um criado atendeu.
— Traga-me as radiografias que estão na mesa
da biblioteca.
* * *

Lúcio cantarolando pegou as radiografias da


mão do empregado e rindo alegre e bem disposto
levantou-as contra a luz do dia, deixando Luís mais
sossegado.
Enfim, pensou Luís, porque ter medo daquele
belo médico aí em sua frente iluminado pelo dou-
rado sol. Esticou os lábios num sorriso e dando
uma piscadinha para Sérgio suspirou fundo. Ah!
que bobeira. Os seus temores eram completamen-
te ridículos.
Lúcio virou-se e gesticulando docemente disse
dirigindo-se a Sérgio:
— Espero que daqui a oito dias estaremos pas-
seando por aquela área ali; onde as flores se ba-
lançam alegremente nas frágeis hastes e onde os
pássaros saltitam cantando contentes.
Agora vou deixá-los, meus caros. Os afazeres
obrigam. Mas prometo almoçar com vocês.
Assim que ouviram o barulho do carro de Lú-
cio se afastar ao longe, Luís ajudou Sérgio a tro-
car-se e já na cadeira empurrou-o para o parque.
— Que é isso, Luís? Chame o criado.
— Pra que, se eu posso fazer isso? E depois
eles devem estar ocupados. Não devemos incomo-
dá-los. Afinal tenho braços fortes.
— Que bicho o mordeu, cara. Não vá dizer
que as baboseiras que Gustavo disse então lhe fa-
zendo mudar as idéias.

58
— Claro que não. Só que acho desnecessário
a presença de mais alguém, quando podemos con-
versar tranqüilos.
Mas Luís mentia, pois não conseguia esquecer
as palavras de Gustavo.
"Ceder a pecados monstruosos só por prazer
de satisfazer a matéria."
A voz do criado, grave e dolente estava ali cra-
vada em seu cérebro e exercia sobre ele uma gran-
de fascinação.
Passou quase o dia todo em companhia de
Sérgio, mas não viu mais Gustavo. Talvez Lúcio
tivesse ordenado para que ele não os servissem
mais.
À tarde, antes de sair, empurrou a cadeira de
rodas novamente para baixo de uma árvore, mas
ao passar perto da mesa onde estavam as radio-
grafias esbarrou nas mesmas, fazendo com que
caíssem no chão e ao apanhá-las, viu um papel
escrito e vendo que era um receituário de médico
com o nome de Sérgio, o apanhou e leu.

"MEU CARO LÚCIO, ESTUDEI BEM AS RA-


DIOGRAFIAS E NÃO ENCONTREI NADA. AS
MESMAS ESTÃO PERFEITAS. SEM MÁCULA."
GABRIEL
MÉDICO ORTOPEDISTA

Luís ficou gelado, sentindo todo o sangue de-


saparecer de suas veias.
Mas afinal o que estaria acontecendo? Aper-
tou os olhos para afugentar aquela sombra que tei-
mava em crescer ali na sua frente.
— Hei, Luís. Empurre logo. Se demorar mais
um pouco o sol vai embora, — exclamou alegre-
mente Sérgio.

59
— Empurrar o que, Sérgio?
— A cadeira, ora! Você não vai querer que
ande até o parque com os ossos quebrados.
— Que ossos quebrados que nada, Sérgio. Le-
vante-se, você não tem nada. Olhe, leia isto.
— É um costume execrável ler o que não nos
pertence, não acha, meu caro Luís?
Luís olhou assustado para a bela figura do
médico que entrava. — Se você não quer conduzir
a cadeira de Sérgio eu mesmo o farei. Mas gosta-
ria que nos acompanhasse, assim poderei lhe ex-
plicar que esse bilhete que o sr. acabou de ler, não
foi aceito por mim, pois examinando melhor as
chapas radiográficas vim a notar grande fratura
na rótula da perna esquerda do nosso caro Sérgio.
Você pratica um grave erro, meu caro Luís, de jul-
gar os casos superficialmente.
— Mas afinal do que é que vocês estão fa-
lando?
Luís andava de cabeça baixa, e com as mãos
para trás. Não respondeu nem a Lúcio nem a Sér-
gio, preferiu ouvir Lúcio que dizia:
— Luís está compenetrado que entende de
medicina.
Sérgio riu alegremente.
— Luís entende de mulheres. Você precisa ver
o apartamento dele como fica cheio. São como abe-
lhas zumbindo, volteando em volta dele o dia todo.
Você precisa apresentar algumas delas para Lúcio,
Luís.
Lúcio parou de chofre e Luís fixando-o res-
pondeu :
— Penso que o Lúcio odiaria as abelhas, Sér-
gio, preferia que eu lhe apresentasse um enxame
de zangões.

60
— Zangões, que bicho é esse... — Sérgio vi-
rou-se para Luís, mas não terminou pois o amigo
já ia longe, quase correndo para a área, enroscan-
do os cabelos longos nos galhos de uma trepadeira
coberta de flores lilazes.
Das costas de Luís, os olhos de Sérgio se vol-
taram para Lúcio, interogativos. O médico curvan-
do-se sobre a cadeira e enfrentando o brilho da-
quele olhar azul não soube o que responder, pois
sentiu que dentro dele algo lhe transpassava o co-
ração, acordando o grande e terrível segredo que
não queria que ninguém soubesse.
Ele amava Sérgio.
— Estou esperando uma resposta, Lúcio.
Lúcio pensou em fazer um teste.
— Acho que ele está com ciúmes.
— Ciúmes?
— Sim, ciúmes.
— Do que?
— De nós dois.
— Não entendo.
— Talvez Luís... Bem, você entende, os ca-
prichos da natureza. A força do amor...
— Fale claro, Lúcio. Você sabe que só enten-
do linguagem popular. Papo furado não é pro meu
lado.
— Que modo terrível de falar, meu caro Sérgio.
— Vamos lá, Lúcio, desembuxe logo. O que
você quer dizer com esse ciúme?
Lúcio tinha que testar e falou.
— Talvez ele o ame.
O corpo de Sérgio balançou como que açoitado
por um furacão, levantou-se e encarando o médico
que sorria pálidamente disse friamente:

61
— Mande que um de seus criados me leve para
minha casa.

Enquanto o carro se perdia de vista, Lúcio


falou entre dentes:
— Sérgio é o meu objetivo, nem se for para
mortificar um a um os dias de minha existência.

62
6.° CAPÍTULO

Depois de dois meses de esquinas, Sérgio mu-


dou-se para um confortável apartamento com te-
lefone e tudo, já que tinha distribuído mais de cem
cartões para as madames, que já tinham tido qual-
quer coisa com ele. Aquele seria o primeiro dia de
apartamento. Deixou o Volks estacionado ao meio
fio da calçada em frente ao prédio e sorriu para o
porteiro.
— Olá, eu sou o inquilino do apartamento 710.
Há algum inconveniente de receber algumas alu-
nas? Sou professor de Inglês.
Um estremecimento passou pelo seu corpo,
quando lembrou-se que o porteiro poderia conhe-
cer o inglês e querer um papo com ele para testar.
— O senhor já falou na companhia?
— Não.
— É lá que eles resolvem.
— Mas hoje não dá mais para eu ir lá, pois
já avisei uma aluna que as aulas começariam às
quinze horas e faltam dez minutos.
— É, eu não vou poder deixar entrar.
— Como é seu nome?
— João.
— Pois é, João. Será que a gente poderia se
entender? — Sérgio estendia-lhe uma nota de cin-
qüenta. — Você trabalha, eu trabalho.
— Olha, seu Sérgio, hoje ela passa.

63
* * *
Ao abrir a porta da sala, Sérgio respirou feliz
sentindo o forte cheiro das rosas que estavam ele-
gantemente colocadas dentro de um vaso de cristal
branco, feito a mão, em cima da mesinha do cen-
tro. Estirou-se no sofá, apertou o pininho da ci-
garreira de ouro e fumando vagarosamente sorriu
triunfante, pois em dois meses já estava ali ro-
deado de conforto e não andaria mais a pé, e nem
precisaria pegar mulheres na esquina e tinha um
grande amigo que era o Luís.
Mas ele não queria parar aí. Queria ser o maior
Call Boy" do Brasil, por isso havia aumentado o
preço das horas de carinho que podia oferecer
quando era procurado.
Neste momento ele esperava uma condessa ra-
chando de rica. Mas era uma mulher excêntrica.
Gostava de coisas exóticas, diferentes.
Sérgio já se acostumara a fazer tudo o que
suas freguesas desejavam. Sérgio levantou-se ao
toque da campainha e numa reverência, indicou à
mulher o sofá branco de acrílico com os grandes
almofadões de veludo roxo onde se viam bordadas,
a ouro, suas iniciais.
Sérgio sabia que a condessa, jovem e bonita
mulher, era casada há dois anos, mas justificava
sua traição ao marido dizendo-se assim doente.
Ela gostava de fingir-se virgem e pagava um
dinheirão para ser violentada. Por isso logo que
ela sentou, Sérgio perguntou:
— Que está fazendo por aqui, garota? Sua
mãe sabe que saiu sozinha?
Ela o olhava fingindo-se envergonhada. Abai-
xava a cabeça, passava a ponta do pé no tapete e
dizia:

64
— Saí escondida.
— Ah! Mas uma menininha com onze anos
não deve fazer isso.
— Ah! — exclamou ela, vestindo-se de gran-
de surpresa.
Sérgio já estava sentado perto dela no sofá.
— Você nunca mais deve fazer isso. — Ele a
beijava e sua mão ia subindo pelas pernas e ten-
tava se infiltrar no meio das coxas. Ela cruzava
rapidamente as pernas apertando-as uma contra
a outra. Sérgio tentava, e ela fingia impedir.
— Vamos, meu bem. Ponho só o dedo. Deixe
vá...
— Não, não, não.
Sérgio escorregava a mão pelo sofá e aperta-
va-lhe as nádegas. Experimentava de tudo. Ela ria
a cada insucesso e dizia:
— Não acertou. Não acertou o buraco.
— Juro que vou acertar.
— Outros já tentaram e não conseguiram.
— Mas eu vou conseguir.
A Condessa voltava a ser a Condessa e falava:
— Não esqueça do celeiro e da chuva.
Sérgio ria.
— Não esqueço. Pode ficar sossegada.
— Escute, menininha, está chovendo muito,
você não quer se esconder no celeiro?
— Não.
— Vamos, vá.
— Não.
Sérgio a pegou pelo braço e a arrastou para o
quarto, jogando-a na cama. Ela levantou-se e cor-
reu em volta da cama gritando:
— Vou falar pra mamãe, vou falar pra mãe.

65
— Eu também vou falar pra ela, que você dei-
xa todos os homens porem a mão debaixo de sua
saia.
— É mentira!
— É verdade.
Ela começou a chorar.
— Não conta, não conta. Se você contar ela
me põe na rua.
— Então deixa eu te foder.
Sérgio tirou as roupas rapidamente e pulou
para bem perto dela. Enfiou a mão por debaixo da
saia mas ela se agachou pondo as duas mãos sobre
o sexo. Mas ele rapidamente empurrou-a de costa
no chão, forçou as mãos para os lados, mas ela o
agarrou e os dois rolaram, lutando e gritando. Mas
ela era ágil, num instante ficou de pé. Batia pal-
mas e gritava:
— Você não me enfiou. Você não me enfiou.
— Mas vou te pegar.
Sérgio já estava cansado. Por isso foi para va-
ler. Segurou-a e levou-a para a cama. Arrancou-
lhe a calcinha. Ela ia começar a lutar, mas Sér-
gio falou:
— Olhe aqui, Condessa, já está passando a
sua hora. Acho que nem vai dar para a gente ter
relações.
— Ah! não, isso não. Eu compro mais uma
hora.
— Você está louca!
— Por que?
— Não sou Eder Jofre.
— Então mais quinze minutos.
— Se você cair na cama e abrir as pernas ain-
da dá.
Ela deitada, ele por cima empurrando

66
— Goze logo, senão...
— Então empurre, com força, bastante força.
Oh! que delícia! Empurre mais, empurre mais.
Sérgio entrava e saía, entrava e saía.
— Gozou?
— Não.
— Então anda logo.
— Empurre mais.
Sérgio empurrava e recuava com mais vigor.
Ela se esticou, gritou e virou quieta para o lado.
Sérgio voltava do banheiro e ela estava já ves-
tida pondo os sapatos.
— Tem hora vaga para amanhã?
Sérgio pegava as duas notas de quinhentos
cruzeiros e beliscando-lhe o rosto, respondeu:
— Sem fingir que é virgem, tá?
— Tá.
Acompanhou-a até a porta e, ao abri-la, de-
parou com a outra freguesa que meio envergonha-
da, entrou apressada.
Sérgio não a conhecia.
— Foi Marina que me deu o endereço. Disse-
me que você é um jovem encantador, limpo, sau-
dável e discreto.
— Pode ter a certeza que realmente sou tudo
isso. Sorriso.
— Quanto cobra?
— Para que?
— Só relação. Ando muito nervosa. Meu ma-
rido é judeu, só pensa em trabalhar. Somos bas-
tante ricos, mas ele quer mais, sempre mais. Te-
mos diversas fábricas de roupas e lojas na Rua
José Paulino. Meu pai é milionário lá em Israel.
Manda-me quanto dinheiro eu quiser.
Tenho uma filha de dois anos, que no momen-
to não suporta nem me ver. O meu médico está a

67
par da minha vida sexual. Ele sabe que meu ma-
rido chega a noite, deita-se e quando eu chego para
deitar-me também, ele já está roncando. Foi ele
que me aconselhou arranjar um amante.
— Estou às suas ordens.
— Quanto ao preço?
— Se for rápida, quinhentos. Se der muito
trabalho mil cruzeiros.
— Acho que serei rápida pois faz tanto tem-
p o . . . Olha, estou com a vagina latejando sem
parar.
— Então venha.
Sentados na beira da cama, Sérgio lhe aca-
riciava por entre o zíper aberto da calça comprida.
— Deixa-me ver o seu pinto.
Ela mesma lhe desabotoou a braguilha e quan-
do aquela coisa dura e grande pulou para fora, ela
perguntou:
— Por que a cabeça está tão vermelha?
— Para melhor te foder, brrrrrrr. — Sérgio
esticou as mãos, com os dedos em garra e riram
alegres.
Ela tirou as roupas e apressadamente se esti-
cou na cama, abriu as coxas e disse:
— Você pode dar uma lambidinha antes?
— Não dá. Meus culhões estão queimando.
Num segundo ele pulou por cima dela e entrou
e saiu, entrou e saiu.
Ela gritou se agarrando a ele, depois ficou
quieta e quando Sérgio pretendeu puxar o pênis,
ela disse:
— Ah! não vale, foi muito apressado — e aper-
tou as coxas.
— Oi, você está me machucando. Vamos, dei-
xe eu sair. Prometo que é só me lavar e volto.

68
— Jura?
Sérgio beijou os dedos indicadores em cruz.
— Juro.
Ele foi ao banheiro e voltou vestido.
— Ah! seu mentiroso!
— É do ofício. Você já pensou se eu tivesse
de foder duas vezes em cada mulher?
— Mas eu te pago duas vezes. Venha cá.
Seus olhos soltavam faíscas. Ela esticou o bra-
ço e pegou um monte de notas.
— Nem sei quanto tem. Mas não agüento de
vontade.
Sérgio pegou o dinheiro e enfiou na gaveta,
mas não sem antes dar uma espiadinha e ver mais
de duas notas de quinhentos. E pensou: O apar-
tamento estava lhe dando sorte. Olhou para a
moça e disse:
— Vá se lavar.
— Não é preciso. Já lhe disse que meu ma-
rido não serve para nada, nunca fode, agora vem
você falar em lavar. Olha, estou sequinha, venha.
Sérgio parou com as mãos na braguilha meio
desabotoada quando o apartamento estremeceu ao
toque da campainha.
— Pô, que susto, — falou sorrindo. — Não es-
tou acostumado com campainha tão alta. Espere
aí, volto já, já. — Ele abriu a porta.
— Olá, se esqueceu da minha hora? — A moça
parecia uma matraca. — Lembre-se que lhe dei o
dinheiro adiantado para os móveis, e então tenho
direito a um ano de foda todos os dias, às dezesseis
horas.
Sérgio olhou rápido para o relógio.
Eram dezesseis horas.
— Entre Vera. Olha, tem um galho.

69
— O que é?
— Uma mulher lá na cama.
— Eu espero.
— Mas é que para as cinco, já tenho outra.
— Então mande-a embora.
— Mas ela está com um problema.
— Qual é?
— Falta de sexo.
— Eu também. Mas eu já lhe paguei adian-
tado.
— Então espere. — Sérgio foi andando e tiran-
do a roupa, ficando só de meias e partiu para a
mulher que sem se assustar com a violenta inves-
tida, foi abrindo as pernas e quando ele entrou,
rebolou num louco frenesi e dando gritinhos gozou.
Sérgio a fez sair pela porta dos fundos mar-
cando outra sessão para a semana seguinte, pois
suas horas estavam todas tomadas por mais cinco
dias.
Depois ele foi para a sala e disse para Vera:
— Vamos para a cama queridinha.
— Já se lavou?
— É preciso?
— Acabou de enfiar na outra e vai enfiar em
mim.
— Que diferença faz? Olhe, aproveite que ele
ainda consegue ficar duro. Daqui pra frente não
terei muita certeza.
— Está cansado?
— É, tive que lutar com uma dona que tem
certas manias.
— Então deixe eu ficar por cima.
Assim com Vera por cima, Sérgio pensou que
descansaria um pouco, mas ela começou a falar.

70
— Dê uns arrancos com a bunda, senão não
dá para eu te foder. Assim, assim! Agora, agora
aperte bem as minhas nádegas. Ah! Sérgio, meu
bem, meu amor. Você está sentindo a minha bar-
riga bem junto da sua?
A campainha tocou e Sérgio saiu debaixo dela
e foi até a porta, espiando pelo olho mágico, na
firme decisão de não atender se fosse já a freguesa
das cinco. Mas abriu quando viu a cabeça de um
homem. Era o zelador.
— Seu Sérgio, assim não dá. Já entraram
três e tem mais uma lá embaixo.
— Mas são aulas particulares.
— He, he, he, — riu o zelador. — O sr. dá au-
las só de meias.
Sérgio avermelhou.
— Você entende, João, na realidade eu sou um
"Call Boy".
— Que é isso?
— Homem que vende o corpo.
— E essas mulheres pagam?
— Claro.
— Porque?
— Ora, João. Pagam para muitas coisas. Para
serem fodidas, para a gente acompanhá-las a fes-
tas, para a gente levá-las a passeios, para a gente...
— Ah! já entendo. Mas essas que sairam es-
tavam tão serelepes.
— E tinham gozado, os maridos não são de
nada. Coitadas! Olha, te darei um bom dinheiro
todos os meses, se você fechar os olhos.
— Mas se o síndico descobrir, o que o sr. fala?
— Ora, falo que nunca deixei você ver mu-
lher alguma.

71
Sérgio voltou para o quarto e encontrou Vera
de cara feia.
— Que há?
— Essa campainha e você.
— Eu o que?
— Acho que já não agüenta mais.
— Agüentar o que?
— Me por o caralho.
— Então mostro a você. — Caída na cama de
pernas abertas ela recebeu o homem, se torcendo
de alegria.

* * *

Sérgio abriu a porta para a outra que logo foi


falando:
— O senhor não vai pensar que eu sou uma
puta, não é verdade, mas é que meu marido...
— Seu marido não fode? Todas as noites na
cama vira-se com a cara para o lado da parede e
a senhora fica chorando, até que fica com os ner-
vos abalados, e o médico aconselha um amante
Ela olhou amedrontada.
— Como o sr. sabe?
— É que um passarinho me contou.
— Pois foi assim mesmo, o meu psiquiatra
disse que o meu marido é do tipo que está atra-
sado sexualmente. Está fazendo terapia com um
grande especialista mas até que fique curado...
— Eu estou às suas ordens.
— O senhor já foi analista?
— Não,
— Nem fez terapia?
— Pra que?
— Para lidar com as mulheres.

72
— Não foi em busca disso que você veio? —
— Não, com as mulheres eu uso terapia pintal.
— Pintal!
Sérgio mostrou o pênis.
Sérgio não era gentil e educado com as mu-
lheres da alta sociedade, porque quase todas eram
casadas ou lidavam com homens de fino trato e
achavam que um tipo cafajeste era muito mais
atraente. Algumas até pediam para tratá-las co-
mo prostitutas de zonas.
— Olha, vá entrando para o quarto, tire a rou-
pa,, enquanto vou para o banheiro.
Mas quando Sérgio entrou no quarto ela es-
tava sentada na cama sem se mover.
— O que foi?
— Gostaria que você me despisse.
— Mas pra que?
— Quando alguém me tira a roupa fico toda
arrepiada.
— Acho que vai demorar muito. Você tem
mais prática. Olhe, vamos apostar quem tira pri-
meiro.
Os dois nus em cima da cama, e ela:
— Vou me deitar por cima, assim você ficará
chupando os meus seios, só assim meu organismo
sente vibrações elétricas. Eu sempre falo isso para
o meu marido, mas ele nem liga.
— Está certo, mas a conta vai subindo.
— Ah! a conta. Escute, será que você não po-
deria fazer um precinho camarada, pois o meu or-
çamento está um pouco apertado.
— Quanto você tem aí?
— Dois mil cruzeiros.
— Tá, faço tudo por dois mil.
— Tudo como?

73
Chupo, ponho atrás, faço carinho, uma porção
de coisas.
— Chupa como?
— Onde estão os dois mil?
— Pode pegar aí na minha bolsa.
Sérgio colocou o dinheiro na gaveta do criado-
mudo dizendo:
— Olhe, deite-se aí e abra as pernas... Não,
assim não, mas na beirada, assim, assim está legal.
Sérgio ajoelhou no tapete.
— Abra a vagina. Assim.
— Mas isso é repulsivo.
Ela fechava as pernas.
— Deixe só encostar no seu clitóris. Se você
não gostar, eu paro.

* * *
Quando Sérgio acompanhou-a até a porta, ela
disse:
— Todas as vezes que vier, você faz assim?
Sérgio riu.
— Assim, como?
— Com a língua, ora.
— Mas não conte para o meu marido
Os dois cairam na gargalhada.

* * *
Fechando a porta nas costas dela, Sérgio es-
ticou os braços preguiçosamente e suspirando fun-
do, foi até a cozinha e abrindo a geladeira estacou
feliz, pois podia escolher o que melhor lhe aprou-
vesse.
O refrigerador estufava de finas iguarias e boas
bebidas. Não com rótulos estrangeiros, mas as me-

74
lhores nacionais. Alimentou-se fartamente, e foi
para a sala-de-visitas, esticou-se no sofá, depois li-
gou a T.V. a cores. Sorriu feliz, pois não se sentia
cansado e quando a campainha tocou, saltou lé-
pido e foi abrir a porta. Era uma mulher jovem,
bonita, com os cabelos loiros escorridos, lhe baten-
do pelos ombros.
— Aqui não é um bordel, é?
Sérgio riu.
— Depende do que a senhora pretende. Mas
antes entre. Não gosto de conversar encostado à
porta.
Ela entrou e logo foi se sentando e falando:
— Sinceramente sou uma moça de família.
Não sei o que é bordel. Mas como esta palavra
sempre me causou mal-estar, ou melhor, sempre
que pronunciada eu logo a relaciono com prosti-
tuição, gostaria de saber se é esse mesmo o signi-
ficado.
— Mas o que a senhora procura afinal?
— Companhia.
— Para que?
— Eu explico. Mas antes a resposta sobre
bordel.
— Bem, eu também não sei ao certo o signifi-
cado de tal palavra, pois sou novo na praça, dois
meses.
— Já o sabia.
— Quem lhe disse?
— Depois eu explico.
— Pois é. Também já lhe expliquei sobre
bordel.
— Só isso.
— Só isso que sei. Ah, espere aí, me lembrei
de uma coisa. Bordel é um lugar onde se paga por
prazeres sexuais.

75
— Então aqui é um bordel?
— Não.
— Não? Mas a minha amiga me disse que você
é um "Call Boy", com apartamento para satisfazer
sexualmente mulheres, solteiras e filhinhas de pa-
pai, que o pagam regiamente.
Sérgio estava de bom humor, por isso foi dando
satisfações.
— Mas eu aluguei apartamento para muitas
coisas. Exemplo, para pessoas solitárias, ou me-
lhor para mulheres que vivem só, e não tem com
quem conservar ou trocar idéias. Para mulheres
que querem aprender como devem gozar com os
maridos e obviamente, para fazê-las gozar, pois é
preferível ter um homem discreto, para expor as
aberrações sexuais que escondem de suas famílias,
de seu marido e da sociedade. Você sabe, existem
muitas mulheres casadas que querem conhecer o
exótico e o diferente em relações sexuais, mas o
marido acha que só deve fazer isso com a amante,
ou com alguma prostituta, então elas apelam para
o "Call Boy", logicamente essas mulheres não vão
procurar um bordel, ou "casa de má reputação".
Não quero me gabar, mas os dois meses que estou
nesta vida já fiz amizade com uma porção de mu-
lheres da mais alta classe.
— Eu acredito, pois Carla, a amiga de que lhe
falei, é uma das moças mais chiques de São Paulo.
Riquíssima, nunca saiu da lista das dez mais ele-
gantes. Disse-me que esteve com você três vezes e
que você trabalha divinamente.
— Então vamos confirmar as palavras de
Carla.
— Você se lembra dela?
— Carla... Carla... Não, não me lembro dela.
São tantas.

76
— Uma morena de olhos verdes.
Sérgio apertou os lábios.
— É, não me lembro mesmo. Mas se você qui-
ser, é só esperar mais uma hora, pois faz exata-
mente uma hora que acabei de comer. Você sabe,
se a gente fizer agora, pode dar congestão.
— Não foi para isso que vim.
— Então?
— Sou noiva. Noiva virgem. Briguei com o
meu noivo que é um bem sucedido banqueiro.
Amanhã à noite a família dele dará uma grande
festa na mansão que eles possuem em Paris.
— Paris?! O Paris que fica lá na França?
— Sim, Paris, capital da França... Mas como
ia falando, minha futura sogra mandou-me con-
vite, certa de que não irei pois esta festa será em
homenagem a futura noiva de meu ex-noivo.
Eu irei é óbvio, com um rapaz que escolherei
a dedo. Maravilhosamente belo. Quero que aquela
gente se certifique que não estou nem um pouco
preocupada com tudo o que aconteceu. Foi falan-
do sobre isso a Carla, que ela me disse:
— Já sei quem ofuscará todos os jovens pre-
sentes na tal festa. Vá a esse endereço e veja o
homem mais lindo que Deus pôs sobre a terra. E
aqui estou.
Sérgio riu.
— Já estou acostumado a ser chamado de bo-
nito, mas na realidade eu me acho um tanto quan-
to sem graça. Tenho uma beleza muito agressiva.
O azul de meus olhos, não respira franqueza...
— Pelo contrário, Sérgio, você é uma beleza
que nunca deveria morrer, ou melhor, nunca de-
veria envelhecer. A gente olhando para você per-
cebe-se que é um homem de beleza ardente, radian-

77
te e colorida. Sinceramente, Carla tem razão.
Nunca vi, e olhe que já percorri o mundo em via-
gens demoradíssimas, freqüentei a mais alta clas-
se e classe média, e classe pobre e nunca encontrei
alguém assim, tão belo. Quando você me abriu a
porta cheguei a espantar-me de admiração. Só há
um homem que se tivesse os cabelos longos e lisos
como os seus, se pareceria um pouco com você, é o
Alain Delon. Estive com ele, em um cruzeiro nas
Antilhas e não me cansava de admirar a sua be-
leza. Ele achava até graça. Minha ex-sogra es-
creveu-me que o Alain Delon comparecerá à festa.
Quero vê-lo junto dele, Sérgio, o grande mundo
vai ficar boquiaberto de alguém superar Alain em
beleza, pois ele é considerado o homem mais bo-
nito do mundo.
— Mas como é que irei ficar junto dele?
— Você irá comigo a Paris. Será meu "Call
Boy", pois lá em Paris, sua profissão é natural.
Tudo pago. Não leve bagagem, pois amanhã bem
cedo, assim que chegarmos, iremos às compras.
— Mas não tenho passaporte.
— Não tem?!!
— Não.
— Não compreendo.
— É. Simplesmente não tenho. Você se es-
queceu que não sou do seu mundo.
Ela riu.
— Ah! É verdade. Para nós o passaporte faz
parte da documentação comum. Para mim será
muito desagradável ir sem você, mas peço-lhe en-
carecidamente que providencie seu passaporte, pois
pretendo passar uns tempinhos na Grécia, e você
irá comigo. Você aceita?
— Bem... Se compensar abandonar as mi-
nhas clientes.

78
— Você não se arrependerá. Agora, Sérgio, se
você não tiver nem um compromisso gostaria que
me acompanhasse a um jantar.
— De alta classe?
— De alta classe.
— Você sabe que cobro para fazer companhia.
— Sei. E quanto devo lhe pagar?
— Para você, vou fazer duzentos a hora, pois
vou... escute, tem comida e bebidas estrangeiras?
— Naturalmente.
— Pois então ficam duzentos mesmo.

79
7.° CAPÍTULO

Naquela noite, às oito horas, Sérgio entrou no


imenso salão da mansão dos Castro de Lima, ad-
miravelmente vestido, trazendo nas mãos um ramo
de rosas amarelas, que numa reverência apresen-
tou a dona da casa beijando-lhe a mão fina e bem
tratada, com tanta graça e naturalidade que nin-
guém diria que era a primeira vez que fazia isso.
— Parabéns, Sérgio, — a moça lhe cochicha-
va, — você está um perfeito cavalheiro.
— Cheee, nem sabia que existia isso. Cava-
lheiro, baaaa, isso já era!
— Não no nosso meio.
— Está bem. Então você não vai ter o que re-
clamar. De agora em diante serei um lorde inglês,
tá? — Sérgio falava relanceando um olhar em vol-
ta. — Puxa, que gente fina e bem vestida!
Seus olhos iam passeando: — Que chato a
gente estar no meio de tanta gente e não conhecer
ninguém. — Mas de repente seus olhos fixaram
os grandes e negros de Lúcio e sorriu, sem ver que
os nervos da fronte do médico se crisparam e sem
imaginar que era o causador da grande agitação
interna que se formou dentro do médico.
Com o coração aos pulos, Lúcio veio se apro-
ximando.
— Você está um perfeito "gentleman", meu
caro Sérgio. Vejo que não deixou de consagrar-se

80
aos prazeres da mesas dos ricos. A última vez que
nos vimos, disse-me que odiava ser servido por um
"maitre", ou que cuspia em cima de um "chaud-
froid".
Sérgio riu e pegou elegantemente a taça de
champanha que um dos "maitre d'hotel" lhe ofe-
recia em bandeja de prata.
— Nunca o ouvi falar palavras tão vulgares,
meu caro Lúcio — respondeu Sérgio fazendo que
seus lábios se cobrissem com uma leve camada de
desdém.
Lúcio se serviu também de uma taça de cham-
panha e continuou:
— Como gostaria que eu as dissesse, Sérgio?
— Sei lá.
— Então serei mais discreto se você prometer
deixar de lado a sua acompanhante e ser meu
acompanhante fixo.
— Sinto muito, mas a moça está... — Sérgio
parou de ímpeto, pois lembrou-se que para Lúcio,
ele era um artista de novelas de T.V.
Lúcio carregou o cenho, mordeu os lábios e
estremeceu.
— A moça é sua namorada?
— É . . . quase isso.
Os membros de Lúcio foram amolecendo e es-
magado pela inquietação ele foi perguntando de
um só fôlego:
— Desde quando se conhecem? Quanto tem-
po estão comprometidos? É namoro firme? Vão
casar? Mas você é muito jovem, meu caro Sérgio,
para se prender assim. Diz-me a verdade, por gen-
tileza, meu caro Sérgio.
— Que há, Lúcio? Porque está tão nervoso?!
Um riso nervoso escapou dos lábios do facul-
tativo, e fixando os olhos de Sérgio, sentiu mais

81
do que nunca o desejo de seduzi-lo para aliviar a
sufocação de sua alma.
— É que sempre queremos que as pessoas que
nos agradam infinitamente tenham tudo de me-
lhor na vida. Estou mais dentro da sociedade do
que você, por isso a minha preocupação de saber
tudo a respeito desta moça. — Envolvia Sérgio com
um olhar cheio de perturbação.
— Ora, não esquente, Lúcio. Quando namoro
com alguém gosto que seja sem intrigas. Por isso
não vou responder nem uma das suas perguntas.
Olhe, minha namorada vem voltando. Com licen-
ça. — Sérgio se afastou uns passos e pegando no
braço da moça, falou-lhe algo sorrindo, sem ima-
ginar que aquele sorriso penetrava como um pu-
nhal no coração de Lúcio. A moça também rindo
lhe falou:
— Sérgio, a dona da festa quer conhecê-lo,
pois diz que você é o favorito de todas as moças
presentes.
— Ora, ora...
— Venha, Sérgio, por aqui.
As duas cabeças: uma loira e a outra negra
se perdendo no meio dos convidados. Lúcio os se-
guiu e quando Sérgio espetou o palito de prata
guarnecido de uma pedra preciosa na azeitona, Lú-
cio já tinha espetado o seu.
Sérgio, rindo.
— Bem, de quem é a azeitona?
Lúcio, rindo.
— De quem espetou primeiro.
— Meu Deus! Que terrível, disputarem uma
azeitona. — Aí a sociedade brincando e rindo co-
meçou a disputar azeitonas.
— Está vendo, Sérgio. Você inventou um jeito
de alegrar a alta classe.

82
— Alegrou só um pouco, meu caro Lúcio —
disse a acompanhante de Sérgio — porque agora
ele vai alegrar só a mim. — E assim falando a
moça puxou Sérgio de entre os convidados e le-
vou-o para o jardim.
— Há quanto tempo você conhece Lúcio?
— Dois meses mais ou menos.
— Ele é um homem estranho. A sociedade
imagina coisas ridículas a respeito dele. Sabe que
tem muita gente que não gosta de ver seus filhos,
principalmente homens, ou melhor, mocinhos, em
companhia dele?
— Porque?
— Nunca tive o mínimo desejo de saber coisa
alguma a respeito deste médico, pois sinceramente
eu também não gosto dele.
— Já que ninguém gosta dele, porque todos
o ficam adulando? Logo que se mexeu para roubar
a minha azeitona, todas as mulheres presentes se
derreteram, com os dentes arreganhados, chaman-
do-o pelo nome e mil coisas.
— Ele é um famosíssimo médico de emagreci-
mento de mulheres. Nas mãos dele se emagrece
em poucos meses, sem ficar com as carnes flácidas.
E um médico que escolhe com cuidado suas clien-
tes. Foi chamado até, para cuidar da princesa de
Mônaco, a Gracy Kely, e Jacqueline Onassis.
— Mas essas artistas são magras.
— Sim, mas ele trata também da celulite, pele,
etc. etc. Você não conhece o Instituto dele, lá no
Jardim Europa?
— Não. Não conheço.
— Pois é. Lá são deixadas verdadeiras fortu-
nas. Todas as mulheres o bajulam porque gosta-
riam de fazer uma consulta com dr. Lúcio. Mas

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ele é metido a ter sangue azul lhe correndo pelas
veias. Então trata quase todo mundo com supe-
rioridade. Quer saber de uma coisa, Sérgio, eu acho
que o dr. Lúcio flerta escandalosamente com você.
Sérgio jogou a cabeça para trás, e riu longa-
mente, numa risada alta e estridente.
— Vou tomar nota disso no meu caderninho
e mostrar ao Luís. Ele vai morrer de felicidade.
— Porque?
— Porque ele faz tudo para desmanchar a mi-
nha amizade com Lúcio. Diz que Lúcio tem parte
com o demônio e que Lúcio só é gentil para mim,
porque tem algum interesse. Imagina o milioná-
rio Lúcio, precisar de mim. Não é pra rir?
— Não sei não. Talvez esse seu, seu...
— Amigo?
— Pois é, Luís tem razão. Se eu fosse você
me afastaria de Lúcio.
— Afastar-se de mim porque, minha cara se-
nhora?
— Senhorita, dr. Lúcio. Senhorita Marta de
Santarém Mendonça. Tenho dezoito anos e . . .
Lúcio a olhou com uma expressão curiosa e a
interrompeu:
— Porque tanta ironia, senhorita Marta? Se
não me engano a senhorita me conheceu de calças
curtas.
Marta avermelhou, arregalando os olhos e
disse:
— O senhor deve estar se referindo a minha
bisavó. Antigüidades é com o senhor e com ela.
— A insinuação nem me roçou.
— Porque você prefere galopar com a rédea
solta.
— Só quando a égua está no cio.

84
— Mas será que o cavalo que está na minha
frente prefere mesmo éguas?
— Só se for das éguas que não andam atrás
de garanhões, como a que está na minha frente.
— Lúcio fez um gesto largo com as mãos e virou-se
para Sérgio, que disse:
— Mas, a que propósito toda essa conversa
cheia de alfinetadas, minha gente?
— Vamos daqui, Sérgio, não suporto sangue
azul. — Marta falou zombeteira.
— Caro Sérgio, continuar na companhia de tão
medíocre senhorita, vai estragar a sua reputação
diante da sociedade. Por isso aconselho-o a dizer
não.
— Você é mestre em antipatia, hem, Dr. Vou
retirar-me porque não quero estragar a minha
noite.
Sérgio ia seguindo a moça, quando Lúcio, qua-
se gritou:
— Não é pedir muito, meu caro Sérgio, que
permaneça mais alguns minutos para podermos
conversar.
Sérgio voltou-se.
— Sobre o que conversaríamos?
— Sobre você.
— De que se trata — exclamou Sérgio, com
o seu sorriso vivaz, tão habitual, deixando-se cair
sentado num banco de pedra, rodeado de brancas
margaridas- — Espero que não seja para falar das
bobagens da última vez que estivemos juntos.
Lúcio afagou o queixo e sentando-se perto de
Sérgio, falou com voz suave:
— Gostaria de saber se lhe interessa saber o
que dizem de você por aí?
— Para ser sincero, não interessa.

85
— Mas você não pode gostar que falem que
você é . . . como diremos...
— Se for para você vir com lengas-lengas, não
o ouvirei. Desembuche logo, vá Lúcio.
— Gosto de seu modo brusco de falar, traz-lhe
muitas vantagens.
— Vantagem?
— Sim.
— Que vantagens?
— A de machão.
— Você tem cada uma! Vai falar logo?
— Bem, se você o quer.
— E o que dizem?
— Que você não é artista. Que vende o corpo
nas esquinas para mulheres ricas.
— E você acreditou nestas bisbilhotices? .
— E são bisbilhotices, Sérgio?
O rosto de Sérgio se tornou agressivo.
— O que interessa a você, e a quem quer que
seja, a minha vida particular?
— Para mim interessa.
— Não sei porque.
— Porque sou seu amigo.
Mordendo os lábios, Sérgio falou num tom
enfadonho:
— E se fosse verdade, você deixaria de ser meu
amigo?
— Não.
— Então, se a gente for mesmo ligar pra essas
coisas, aqui neste salão de gente fina não tem qua-
se mulher alguma que lhe interessa pelo seu bom
nome ou do marido.
— Mas você sabe, Sérgio, que está infringindo
leis, se alguém levar ao conhecimento da polícia,
você poderá ser preso como prostituto.

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A gargalhada de Sérgio ecoou pelos ares.
— Vai ser engraçado. Um prostituto preso.
Você vai me levar uns cigarrinhos, não vai, Lúcio?
— Não brinque
— Não estou brincando. Estou achando mes-
mo engraçado.
— No meu modo de pensar, você está agindo
mal, Sérgio. Não quero aduzir argumentos a seu
respeito. Você faz o que lhe aprouver, mas livre-se
de cair na mão da polícia.
— Mas o que estou fazendo de errado, Santo
Deus! Porque haveria de ser preso? Eu, um ho-
mem jovem, limpo, sadio. Sou feliz na profissão
de "Call Boy", pois pratico um serviço necessário,
pois há tanta mulher por aí que anda com falta
de homem. Onde está o errado?
— Sua profissão está fora da lei, como já lhe
expliquei. Mas se você quiser poderei ser seu ad-
vogado, ou melhor, o amigo que o poderá tirar de
qualquer encrenca. Também poderei pagar para
você freqüentar algumas festas comigo. Nós, os
médicos solteiros, ricos e famosos, temos pouco
tempo para arranjar companhia. Também preciso
de alguém para receber os meus convidados nas
festas que ofereço, tanto na minha casa, como no
meu iate, e nas minhas casas de repouso. Tenho-
as aqui, como no exterior. Amanhã mesmo haverá
uma grande festa na minha casa de Campos do
Jordão. Se você quiser ir, já está convidado.
— Não posso abandonar minhas freguesas. —
Sérgio tirou do bolso interno do paletó um cader-
ninho e abrindo-o estendeu-o à Lúcio. — Olhe, para
amanhã tenho oito mulheres.
Os olhos de Lúcio cresceram à luz das luzes
espalhadas pelo jardim.

87
— Oito?!!! Mas isso é de fazer qualquer ho-
mem adoecer Você não tem um organismo supe-
rior a outro homem, tem?
— Sei lá.
— Você não se cansa, não sente fraqueza, as
pernas moles, a...
— Que você está pensando? Que gozo com
todas?
— Não estou inclinado a julgar uma coisa
dessas, meu caro Sérgio. Mas se tal acontecesse,
como médico lhe digo, que é um estrago à sua mo-
cidade e beleza. Sexo também deve ser controlado.
Existe um modo de nos realizarmos sexualmente,
sem estragar a saúde e sem atormentar o compa-
nheiro ou companheira. Digo isso porque tenho
uma cliente muito rica, com um terrível esgota-
mento nervoso, porque o marido a usa quatro vezes
ao dia. Sua presença foi necessária no meu insti-
tuto, apesar de eu não me envolver na vida parti-
cular de meus clientes, só o fazendo desta vez, por-
que a cliente ofereceu-me verdadeira fortuna, para
que eu amenizasse o desejo sexual de seu marido.
E como estava construindo o meu novo hangar para
comportar meus seis aviões e precisasse urgente de
muito dinheiro, atendi o pedido da moça. Quando
o marido chegou, qual não foi a minha surpresa
em encontrar nele um velho amigo que estudou
comigo na Inglaterra, no colégio de Oxford. Aliás,
reconheci nele a sombra do amigo, que no colégio
trazia o título do mais belo. Até eu muitas vezes
não o perdia de vista, admirando sua aparência
sadia, seus lábios vermelhos, seus olhos negros, seus
cabelos de ouro, numa função cândida e ardente
mocidade. Mas o fogo da ganância do sexo, matou
tudo.

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— E você conseguiu fazê-lo foder menos?
— Não são bonitas essas palavras, meu caro
Sérgio, mas só lhe posso dizer que consegui.
— E como?
— Segredos da profissão.
— E como ele se sentiu depois de foder menos?
— Está forte, bonito e saudável.
— Não acredito.
— Não fico sensibilizado com as insinuações
de que sou mentiroso, meu caro Sérgio.
Sérgio levantou o braço, apanhou um galhi-
nho da árvore, que quase encostava em sua cabeça
e esmagando-o entre os dedos, permaneceu imó-
vel, lábios entreabertos, olhos rebrilhando e só sor-
riu e falou, quando ouviu Lúcio perguntar:
— Que problemas psicológicos envolvem o seu
cérebro para deixá-lo tão pensativo? Seria a vo-
lúpia do prazer sexual amenizado que o perturba
tanto?
Sérgio sacudiu no ar os resíduos das folhinhas
e levantando foi falando:
— Não posso estar perturbado por isso, pois
não foi o meu fogo sexual que você cortou. Se
fosse...
— Se fosse?
Sérgio esticou o indicador e passando-o pelo
pescoço, exclamou:
— Eu o mataria!
— Palavras pronunciadas ao acaso, são inten-
cionalmente paradoxais.
— É isso aí mesmo que você falou... Agora
acho melhor a gente entrar, pois o meu estômago
está roncando de fome.
— Não antes de me dar uma resposta, caro
Sérgio, dos meus préstimos como seu guardião.

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— Meu o que?
— O amigo que o defenderá de prováveis pro-
blemas c o m . . .
Sérgio não o deixou terminar e passando o
braço pelos ombros do médico, foi falando, enquan-
to se dirigiam para as amplas portas abertas de
onde se avistava a grande mesa guarnecida de ren-
das, flores, castiçais, prataria, cristal, rodeada de
gente coberta de seda, jóias e perfumes. Gente de
dentes perfeitos, cabelos cuidados, pele sedosa, e
sempre sorrindo. Sérgio falou:
— Sim, Lúcio. Você pode ficar contente, pois
quero ser seu amigo, e quero-o como meu protetor.
— Você não se arrependerá de haver-me en-
contrado, meu caro Sérgio. Nossa amizade não será
um capricho. Nossa amizade será de alma para
alma. E eu quero que a sua se perca na minha.
— Não entendi.
— Com o tempo você entenderá.

90
8.° CAPITULO

Na noite seguinte, Lúcio estava esperando o


jantar conversando animadamente com a dona da
casa.
— Sinceramente, Adélia, nunca vi pessoa mais
maravilhosa. Há séculos que não aparece na terra
algo semelhante. Toda sua beleza é envolvida pela
graça da infância, pela pureza dos anjos, e por
tudo aquilo de belo que os mármores guardam. É
cativante, alegre, brincalhão e luminoso.
Adélia riu.
— Tudo isso é simplesmente encantador, Lú-
cio. Mas você sabe. Meu marido é antiquado. Não
aceita sentar-se à mesa, junto de alguém que não
conheça profundamente. Raramente oferece jan-
tares e não tenho certeza se aprovaria a sua idéia
de convidar esse jovem. Em todo caso perguntare-
mos a ele, já que se dirige para cá.
— Querido, Lucio tem um protegido maravi-
lhoso e gostaria que o mesmo freqüentasse a alta
roda, por isso insiste que o convidemos para jantar.
— Hum, hum.
Lúcio apertou a mão do rico homem brasileiro,
e rindo disse:
— Esse hum, hum é aprovando ou não?
— Deixe de atormentar-me com esse pedidos,
Lúcio. Abrimos as portas a seus amigos e por fim
nos defrontamos com pessoas sem caráter. Vou

91
lhe falar era linguagem simples e clara. Você se
deixa levar muito pela beleza dos seres, sem pri-
meiro verificar se os mesmos têm qualidades mo-
rais para poderem tocar em seu braço. Já o tenho
visto de braços dados com uma porção de pessoas
que são verdadeiros delinqüentes.
Como seu amigo, aconselho: Escolha bem, mas
muito bem, antes de se apegar ou mesmo ajudar
as pessoas. Não traga para a nossa classe os lixos
das ruas de São Paulo, mesmo que esse lixo estiver
envolto em papel perfumado. E não se exponha
assim, como lhe disse, de braços dados com qual-
quer um.
Lúcio riu.
— Ora, Raul. Admiro-me de você, que fre-
qüenta a alta classe européia, falar em braços da-
dos. Lá todo mundo anda assim. Olhe, hoje você
está por demais rabujento, por isso não ficarei para
o jantar se você não convidar o meu amigo. Ami-
go encantador, como poderei lhe provar.
— Que horror! — exclamou Adélia — ficar
sem o meu médico para o jantar. Traga-o aqui,
traga-o urgente, Lúcio. — E virando-se para o ma-
rido: — Não seja mau para Lúcio, pois ainda devo
emagrecer cinco quilos.

* * *
E assim, Sérgio começou a aparecer com o
grande cirurgião, por todos os lados. Já estava qua-
se dono da mansão. Mandava em tudo que fosse
de Lúcio, e o médico vivia numa alegria real, feliz
por ter quase sempre perto de si, aquele belo jo-
vem de moral baixamente carnal que combinava
tão bem com ele, que era tão baixamente vulgar
em seus prazeres. Odiava quando Sérgio deixava

92
a mansão para ir para o apartamento, pois só uma
coisa que Sérgio não deixava eram suas clientes.
Naquela ocasião ele trabalhava desesperada-
mente para atender todas as moças que superlo-
tavam a sala.
A empregada de avental branco e touca da
mesma cor, servia bebidas e salgadinhos. Sérgio
descobrira que as mulheres meio embriagadas eram
mais fáceis de lidar. Já não aceitava aquelas que
apresentavam aberrações sexuais. Essas ele man-
dava para Luís, que tinha mais jeito e mais pa-
ciência. Sérgio não se dava mais ao trabalho nem
de sair da cama. Quando a mulher já satisfeita
pulava da cama e dizia:
— Olha boneca, faça o favor de se vestir na-
quele quarto ali. A empregada a ajudará encon-
trar o caminho da saída. — Depois gritava: — A
próxima.
Neste dia quando gritou:
— A próxima!
Entraram duas mulheres. Sérgio ficou olhan-
do fixamente, quando uma disse nervosa:
— Você enganou-me. Mandou eu ir procurar
um tal de Luís, e não encontrei ninguém com este
nome no endereço indicado.
— Deixe ver o endereço... É este mesmo.
Como não tinha ninguém?
— Eu toquei a campainha até que o zelador
apareceu dizendo que a pessoa que morava lá, ti-
nha saído para trabalhar.
— Pois é. Luís saiu para apanhar alguma
dona na esquina. Era só você esperar.
— O zelador disse que lá mora um tal de Ro-
gério.
— Esse zelador deve ser biruta. Vá boneca.
Volte e espere o Luís. Você não vai se arrepender.

93
Ele faz todo o diferente que você deseja. — Sérgio
levantou-se e abraçando a moça pelos ombros foi
acompanhando-a até a porta, enquanto dizia para
a outra:
— Vá tirando a roupa e deite-se. Se quiser
pode já ficar de pernas abertas, que é só eu fechar
a porta e já caio por cima de você.
Abriu a porta do quarto e dando um adeuzi-
nho para as moças que esperavam, cochichou no
ouvido daquela que abraçava. — Diga ao Luís, que
estou precisando de um sócio. Espero-o hoje à noi-
te na casa de Lúcio. Tá? Agora um beijinho e boa
sorte.
Algum tempo depois, quando gritou:
— A próxima. — Viu que a jovem entrava ou-
tra vez, dizendo:
— O zelador disse que Luís mudou-se antes de
ontem, sem deixar endereço.
Sérgio pulou da cama, como que impulsionado
por uma mola.
— Você tem certeza?
— Foi o que o zelador disse.
— Não pode ser. Luís mudando-se? Mas por-
que? — Chamou a empregada aos gritos:
— Dispense as mulheres, tenho algo impor-
tante a tratar.
* * *
O zelador confirmou. Luís tinha se mudado
só com a roupa do corpo.
— Para onde?
— Não disse.
— O que ele lhe disse?
— Que eu poderia pegar tudo o que ficaria no
apartamento e depois entregá-lo a companhia.

94
Sérgio torcia as mãos nervosamente.
— Mas o que houve, meu Deus! Ah! eu acho
que ele arranjou apartamento melhor.
— Penso que não, seu Sérgio, porque ele me
falou qualquer coisa assim c o m o . . . como traba-
lhar em uma loja de calçados.
— Você está maluco!
— Foi sim, seu Sérgio, juro.
— Ele saiu sozinho?
— Não senhor.
— Com quem estava?
— Com o seu Gustavo.
— Gustavo! — Sérgio franziu o sobrolho. —
Que Gustavo?
— Um que sempre vem aqui. Eu acho que ele
trabalha na casa do dr. Lúcio. É isso mesmo. Foi
o que o Luís falou.
— Eles sairam de carro?
— Não, o carro do sr. Luís está na garagem.
— Estranho. Bem, obrigado, tome lá.
O zelador pegou a nota de cem e arregalou os
olhos.
* * *
Sérgio buzinou na frente do grande portão de
ferro da mansão de Lúcio e o porteiro se apressou
em abri-lo, até pulando de lado quando o carro en-
trou veloz, guinchando, e só parando no pé da larga
escadaria de mármore Carrara, cujos degraus Sér-
gio subiu de dois em dois, e fazendo girar a maça-
neta da porta dourada entrou, pisando o veludo
cinza do tapete que cobria o largo e comprido cor-
redor que mostrava nas laterais imensas estátuas
e famosas pinturas. Varou sala por sala. agora so-
litárias e parou na biblioteca.

95
Queria ver se conseguia ver Gustavo sem os
outros empregados perceberem. Mas desistiu, pois
a casa era grande demais. Foi então que tocou a
campainha fazendo com que o mordomo atendesse
assustado.
— Desculpe-me sr. Pensei que fosse o patrão.
Sérgio perguntou ríspido:
— Onde está Gustavo?
— Creio que no quarto dele.
— E como se vai lá?
— Pela área que corta o parque. O quarto de
Gustavo fica no pavilhão a esquerda.
Sérgio atravessou o jardim, contornou a pis-
cina, desceu uma escadinha, passou pelo gramado
verdinho e entrou na álea ladeada de altas árvo-
res e de touceiras de azáleas que coloriam e per-
fumavam tudo com suas flores de pétalas diáfanas.
Nunca um caminho lhe pareceu tão longo. Logo
que chegou nervoso e suado, olhou para todos os
lados e vendo uma porção de portas e janelas sem
saber por onde começar, gritou alto no meio do
pátio:
— Gustavo, oh Gustavo?
Uma porta se abriu e a figura sorridente de
Gustavo foi um alívio para Sérgio que se precipi-
tou para ele, falando alto:
— O que aconteceu ao meu amigo? Onde está
Luís? Fale logo, homem, aconteceu alguma coisa
a ele?
— Calma, Sérgio, estou aqui.
À vista do amigo, Sérgio deu um salto em sua
direção e o estreitou num forte abraço.
— Que susto você me pregou! — Depois em-
purrou o amigo e o olhando de frente, continuou:
— Mas afinal, o que está acontecendo?

96
— Eu é que pergunto. O que você tem que
está tão nervoso?
— Pô, mandei uma mulher procurá-lo. Ia lhe
dar aquele notão e você tinha mudado. Que estó-
ria é essa?
— Só mudei.
— Mas mudou para onde e porque? Que atra-
palhada. Não entendo mais nada!
— Entre e sente-se, Sérgio, vou lhe explicar
tudo direitinho.
Sérgio caiu em uma cadeira e suspirou fundo
quando Luís começou a falar, sentado em sua fren-
te, tendo Gustavo se postado em frente à janela e
de braços cruzados ouvia, arriscando uma vez ou
outra um palpite.
— E foi assim, Sérgio, comecei a freqüentar a
Federação Espírita e lá encontrei-me. Lá senti que
a vida que estava levando era uma vida suja. Uma
vida que pouco a pouco fazia minha alma se atolar
num lodaçal.
— Você é besta. Deixar uma vida que lhe traz
luxo e bem-estar por causa de uns passezinhos. Eu
sei como é essa coisa. Quando estava mal de vida
me afundei nos espíritos e os filhos da puta não me
ajudaram em nada. Essa gente é vigarista, Luís.
Não sei como você, um rapaz que parecia tão in-
teligente pode cair numa dessa! Baaaa. Eu sei,
eu sei como é. Eles começam a tremer, agitam-se
em contorções das pernas e dos braços, dos mús-
culos do rosto, reviram os olhos, espumam pela
boca. Olha, até vou parar de falar, pois existe só
uma palavra para isso. Palhaçada.
Sérgio levantou-se e começou a andar pelo
quarto.
— Não é nada disso, Sérgio. Na Federação
Espírita, você aprende como salvar sua alma do

97
fogo eterno. Não existe esses espetáculos que você
descreveu. Eu também já procurei baixo espiritis-
mo e me saí mal. Mas agora encontrei um lugar
onde fui buscar paz para o meu espírito. Eu an-
dava com uma tremenda falta de confiança em
mim mesmo. Achava que tendo tudo o que pudesse
me engrandecer aos olhos do próximo, como di-
nheiro, apartamento, carro, roupas finas, etc. fosse
o ideal, mas depois que fiz amizade com Gustavo,
ele conseguiu me mostrar que eu estava super
errado. Que coisas terrenas não são importantes.
O que realmente importa, são as boas coisas que
podemos fazer na vida.
Sérgio caiu na gargalhada.
— E foder mulheres não é uma boa coisa, ou
você virou viado? Andar enfronhado no luxo, não
é uma boa coisa? Comer e beber bem, não é uma
boa coisa? Vestir-se com roupas finas, não é uma
boa coisa?
— Isso quando se ganha honestamente.
— Honestamente! — A boca de Sérgio se tor-
ceu em um rictus de ironia — E o que estou fa-
zendo de desonesto? Fale, vamos, Luís.
— Sérgio, não estou aqui para julgar o que
quer que seja. Eu estou lhe dizendo que freqüen-
tando a Federação Espírita, senti que a profissão
de "Call Boy", para mim é uma profissão desonesta
e suja. Vou mudar de vida. Já arranjei um em-
prego que considero limpo. Trabalharei para co-
meçar, em uma loja de calçados e nem precisarei
passar pela experiência de três meses para ser re-
gistrado. De "cara", já estarei contribuindo com o
INPS. Ganharei mil e duzentos cruzeiros e comis-
sões na venda de cada par de sapatos que conse-
guir vender.
Sérgio perguntou com ironia:

98
— Esse dinheiro aí é para o papel higiênico
mensal?
— Não, Sérgio, é para eu viver com a cabeça
erguida.
— Não vejo porque você vive com a cabeça
baixa.
— Porque estou contribuindo para o pecado.
Sérgio estacou no meio do quarto.
— Que pecados? O de satisfazer o desejo da
alta classe? Então é ela que está pecando, Luís, é
ela que está envolta na embriaguez da loucura, na
devassidão do erotismo sexual.
— Ela e nós, senhor Sérgio. — Gustavo falou
com calor.
— Ninguém o chamou na conversa. Vê se cala
essa boca. — A voz de Sérgio tremia. — Você? Oras
bolas! No que você poderia pecar com essa cara aí?
— Sérgio! — exclamou Luís, olhando-o seve-
ramente.
— Que há, Luís, digo que seu amigo é feio e
você acha ruim? Você então crê que ele é seu ami-
go? Sim sr., que amigo, tirando-o da vida confor-
tável para o jogar no INPS.
— Ele não tem nada com a minha resolução
de sair desta vida. Já lhe expliquei tudo. Gustavo
só fortificou a minha idéia. Deixemos porém de
discutir religião. Em política e religião, ninguém
se entende. Cada qual exprime suas idéias com
poucas probabilidades de confiarem nelas.
— O que?! Falando difícil. Sabe que você
está parecendo um puro intelectual. Aposto que
aprendeu com Gustavo.
— Há meses que estou estudando, Sérgio. De
fato Gustavo também me incentivou muito. Não
quero que você fique ressentido com ele, pois para

99
mim foi o melhor que poderia acontecer. Traba-
lhar e estudar.
Gustavo aproximou-se de Luís exclamando:
— Perdoe-me, Luís, mas não compreendo por-
que o senhor Sérgio iria ficar ressentido.
— Eu...
Sérgio interrompeu-o, gesticulando.
— Olhe aqui, Gustavo. Chega dessa frescura
de senhor Sérgio. Eu tenho mil razões para ficar
morrendo de raiva de você incutir na cabeça dessa
cavalgadura do Luís, que tem de deixar a vida de
"Call Boy", para enfiá-lo em um empreguinho
qualquer. Ele não vai se arrepender hoje, agora,
neste momento, porque está achando que esta mer-
da de Federação Espírita revelou-lhe os mistérios
da alma. Mas amanhã, quando estiver doente, mor-
rendo de fome, recebendo uma miséria de benefício
do INPS, ou quando estiver com os culhões arden-
do e não tiver nem uma puta de alta classe para
enfiar, ele vai te odiar. Te odiar, ouviu, Santo
Gustavo, ou melhor, Espírito de Luz Gustavinho,
vai lhe odiar.
— Não acredito, senhor Sérgio, porque...
Sérgio virou-se para Gustavo, e levantando os
braços, gritou:
— Pare de falar senhor, já lhe disse.
— Bem, Sérgio, se você continuar demonstran-
do toda essa agressividade não poderemos nos en-
tender. Você só quer falar. Eu acho que também
deve ouvir.
— Ouvir o que? Baboseiras.
— Ouça primeiro, depois você analisa.
— Ah! pois não. Já que eu vou ficar ouvindo
— falou Sérgio com ironia, caindo sentado na cama
e cruzando os braços. — Pode falar, sr. Gustavo,
ou melhor, extraordinária criatura. Sabe de uma

100
coisa, olhando melhor vejo que você está exercen-
do sobre mim uma verdadeira fascinação celestial.
Mas seja rápido nos seus envoltórios de almas, por-
que jamais fará que germine em mim qualquer
crença do além. O meu negócio é viver o presente
e viver com a vida dos sentidos. Viver a vida de
pecador moderno. Mas já que você é mestre em
êxtases espirituais, então vamos lá. Venha daí um
passezinho. Venha me convencer a largar as mi-
nhas mulheres, o meu apartamento, o meu carro.
— Sinto imensamente, senhor Sérgio, descul-
pe; mas na verdade estou sem argumentos para fa-
zê-lo entender a beleza da vida espiritual.
— Ah! então você nem começou e já desistiu?
Joguei-lhe uma arma e você não a aceitou? En-
tão vou lutar só para fazer Luís ver que tudo o
que ele aprendeu na Federação Espírita, e com
você, não existe. Vou mostrar a ele que vale só uma
teoria. A Teoria de Darwin. Materialismo.
— O senhor está falando igualzinho ao dr.
Lúcio.
— E aposto que Sérgio aprende tudo isso com
ele.
— Senhor Sérgio, meu patrão é um caçador
de sensações novas. Jamais aceitou formalidades
de um sistema ou de um acordo. Usa os sentimen-
tos humanos com caprichos e desdém. Mas é do-
tado de um espírito dominador, onde muitos ou-
tros espíritos fracos abandonam-se sob essa in-
fluência e sempre acaba perdendo a alma.
— Se você acha que ele é tudo isso aí, porque
está trabalhando sob as ordens dele? Se o seu es-
pírito é melhor do que o de Lúcio, porque você não
se faz de patrão e ele de seu empregado?
— Você entendeu mal, Sérgio. Gustavo está
criticando o comportamento na vida social de

101
Lúcio. Como um ser humano ele tem direito de
expressar suas opiniões a respeito de qualquer pes-
soa, seja essa um milionário ou um mendigo. Eu
estou ligado às idéias de Gustavo e acho que a sua
amizade com Lúcio só poderá prejudicá-lo.
— Prejudicar no que? Lúcio é um grande
amigo e só tem me ajudado. Se conheço a alta
classe, só devo a ele. Tenho vivido uma vida ma-
ravilhosa em companhia deste bondoso amigo.
Janto nas mais granfinas casas de São Paulo, fre-
qüento as melhores boates, os melhores restauran-
tes e tenho viajado pelos melhores lugares. Com
ele conheci a América do Norte e alguns países da
Europa. Em um ano com ele cresci como um gi-
gante. Não, meus caros, ninguém vai me fazer
largar essa maravilhosa criatura. Espero daqui a
um ou dois anos, ter tudo o que necessito para não
trabalhar mais.
— Mas o que você faz não é trabalho, Sérgio.
— Ah, não é trabalho. Então porque naquele
dia que nós nos encontramos lá no restaurante do
Canal 4, você me incentivou tanto para eu pegar
as mulheres ricas nas esquinas? Porque você não
me animou para um emprego em uma casa de
calçados o u . . .
— Não seja irônico Sérgio — Luís falava com
voz leve e pausada. — Eu não sabia que estava su-
focando a minha alma num lamaçal fétido. Eu
não sabia que existia um lugar como a Federação
Espírita, onde pudesse compreender que existe uma
outra vida além dessa e o que fazemos aqui reflete
nessa outra vida. Aprendi que devemos trilhar um
caminho reto e puro. Não digo sem diversões e sem
sexo. Mas tudo direito, tudo honesto. A gente deve
trabalhar e vencer num trabalho sadio. Juro que

102
gostaria de ficar rico, conhecer o mundo, mas com
o dinheiro que ganhar trabalhando.
— Na loja de sapatos?! — A gargalhada de
Sérgio se perdeu pelo parque.
— Talvez na loja de calçados.
— Brrrrr, você me dá até arrepios com essas
idéias. Nem se eu descobrisse o indescubrível se-
gredo de se ficar rico empregado em uma loja, não
deixaria a vida que estou levando. Imagine ter que
pagar mulher para se foder e viver no meio de gen-
te que espera ser aposentado pelo INPS. Deus me
livre. — Sérgio fez duas vezes o sinal da cruz.
— Só peço a Deus que você nunca se arre-
penda dessas palavras.
— E porque haveria de me arrepender se é o
que sinto e penso?
— Porque já lhe disse que andando com Lú-
cio, você vai acabar mal.
— Escuta aqui, Luís, porque diabo você tem
tanta raiva de Lúcio?
— Porque... Bem... porque... Sei lá...
— É melhor o senhor Sérgio saber de tudo,
Luís. — Gustavo falou sério.
Luís olhou para Sérgio com uma estranha ex-
pressão, suspirou fundo e disse com voz pausada:
— Lúcio é pederasta.
Sérgio voltou-se lentamente para ele e apon-
tou-lhe o indicador em riste, e depois soltando uma
comprida risada, foi falando:
— Ohoooo, que medo. Então era isso o grande
segredo? E eu lá tenho medo de viados.
Um vinco de desdém assinalou-lhe os belos lá-
bios e continuou: — Apresentem-me um motivo
mais forte. Esse é infantil, pois hoje em dia quase
todos os homens são viados, não se esqueça, Luís,

103
que trabalhei no meio artístico, lá existem tantos
que subiram enfiando ou sendo enfiado.
— Sérgio, não brinque com coisas sérias. Lú-
cio tem a alma de um demônio. Ele tem alguma
intenção macabra a seu respeito. Lembra-se a um
ano atrás, quando ele simulou que você estava com
o joelho quebrado? Pois é. Ele não ia mentir assim,
sem alguma intenção malévola.
Sérgio continuou rindo.
— Sabe qual era a intenção malévola? Ele
também pensava que você era bicha, e que eu era
seu amante.
Uma chama sombria perpassou pelo olhar de
Luís, que mordendo os lábios, retrucou:
— Aí está. Que alma tem esse homem!
— É. Então também acho que ele tem alma
— digo alma só pra entrar nessa de vocês — má, cor-
rupta, desprezível. Tem mais. Há poucos dias sou-
be que ele está sendo processado por um crime de
mutilação. Uma mulher muito rica pagou-lhe uma
fortuna para ele apagar o fogo do marido, pois o
marido era um doente sexual. Lúcio disse-lhe que
ele sofria da hérnia e precisava operar e quando o
ricaço potentudo estava cloroformizado, Lúcio sim-
plesmente cortou-lhe o pinto.
Lúcio quis guardar segredo profissional, mas a
língua humana, principalmente da alta roda, tem
escape elétrico.
Gustavo, visivelmente admirado, levou as mãos
ao rosto cobrindo-o, num suspiro dolorido, enquan-
to Luís soltou um grito de horror.
— Santo Deus! Se isso é verdade, então ele é
mais depravado do que se imagina. Está aí, Sér-
gio, a forte razão pedida.
— É tarde demais, Luís. Se eu ainda não ti-
vesse conhecido a nata da vida. Gosto de Lúcio, e

104
não vou deixá-lo. Não quero ficar sem amigos, já
que você me abandona.
— Não diga isso, Sérgio, serei seu amigo eter-
namente. Só que de agora em diante por cami-
nhos diferentes, esperando que algum dia você siga
o meu caminho.
— Desde já, digo que me será impossível, pois
prefiro dar minha alma ao diabo do que voltar a
ser pobre.
— Não blasfeme, meu amigo.
— Amigo? — Sérgio cuspiu e passou o pé por
cima.
— Algum dia eu poderei provar quem é o ver-
dadeiro amigo.
— Claro que é o Lúcio. — E retirando uma
flor que estava em um pequeno vaso, Sérgio es-
magou-a na mão e jogando os resíduos para o ar,
saiu do quarto e a passos largos sumiu na área
florida em direção à mansão, que já estava toda
iluminada.
Sérgio varou sala por sala, como dono e en-
trou no luxuoso salão, onde Lúcio esticado em um
sofá de veludo vermelho recostado em almofadas
também de veludo um pouco mais escuro com bor-
dados, mostrando pequenas grinaldas com a folha-
gem ouro e as flores em prata, encimadas por pe-
queninas pérolas. Lúcio tinha paixão por aquela
sala toda decorada com peças verdadeiras do sé-
culo XV, vindas da França, Itália e outros países.
Até os livros nas prateleiras de marfim eram en-
capados com seda azul, ornamentados com peque-
nos emblemas dourados que Lúcio dizia serem o
brazão da família. A magnificência na decoração
das cortinas dava a impressão de se estar em uma
saia de reis.

105
Lúcio sorriu com a entrada tempestiva do ami-
go e disse:
— Queira por gentileza descerrar as cortinas,
meu caro Sérgio, pois sinto que o por do sol está
jogando sobre a terra jatos de prata. Assim pode-
rei vê-los melhor.
Sérgio afastou as cortinas bruscamente.
— Não estou aqui para falar dessas coisas, es-
tou saturado de auroras carregadas de ouro e fir-
mamentos azuis, recobertos de dourados e outras
lorotas mais. Vim para lhe dizer que, ou melhor,
vim para me despedir. Estou decidido a não voltar
mais a vê-lo.
Lúcio saltou como que mordido por uma cas-
cavel e com os olhos dilatados fixou Sérgio, deixan-
do cair o cigarro que fumava.
— O que aconteceu? — Sua voz saiu seca e
rouca do fundo de sua garganta.
Sérgio observou-o por um longo tempo vendo
que o amigo empalidecia e tremia sob uma emoção
indecifrável. Por mais ignorante que Sérgio fosse
não podia duvidar que o que Lúcio sentia por ele
era muito mais importante do que uma simples
amizade.
— Não aconteceu nada. Eu só resolvi e é só.
O médico começou a torcer as mãos unidas e
a voz saiu um pouco mais clara.
— Sérgio, você não está falando sério? — Deu
uns passos e chegando perto do amigo o segurou
pelo braço, mas o moço se afastou rápido, empur-
rando-o com força.
— Não me toque!
— Você, você está maluco?
— Não, não estou. Só que odeio veados.
— Que palavras desagradáveis, meu caro
amigo.

106
— Que amigo que nada. Não sou amigo de um
meio-homem. Escolhi a profissão de "Call Boy"
para ficar só no meio de mulheres e assim mesmo
tenho que ouvir que ando com veado
— Não entendo...
— Acabei de ouvir agora mesmo que você é
um pederasta.
— Mas, é uma calúnia terrível! Talvez de al-
gum insatisfeito que não foi aceito por mim. para
participar de nossa vida de alta classe. Você sabe,
escolho os meus amigos pelo seu valor espiritual e
intelectual.
Sérgio saiu para o terraço e levantando a ca-
beça fez com que seus cabelos de fios de seda es-
voaçassem pela tarde tépida envolta com o acari-
ciante perfume das inúmeras flores que tremula-
vam em mil tonalidades, agitadas levementes, pela
brisa que teimava em não morrer com o sol.
Lúcio seguiu-o com o coração aos pulos, as
pernas bambas e o olhar parado naquele brilhante
emaranhado de cabelos e mais cresceu dentro dele
o desejo de não renunciar a tão bela criatura, nem
se fosse para se rastejar como um réptil diante
dele. Mas não deveria começar já. Agora deveria
usar da psicologia que aprendera nos bancos da
faculdade e repetiu:
— Você ouviu o que eu disse, meu caro Sérgio.
Sérgio virou-se e o encarou.
— É mentira, Lúcio. Você escolhe suas ami-
zades pelo físico. Pelo belo aspecto e pelo espírito
depravado.
— Oh, Sérgio, como podes fazer um tão mau
conceito a meu respeito. Logicamente estabeleço
uma diferença em meus amigos. Tenho-os bonitos
e feios, mas não tenho nem um ignorante. Não os
escolho por vaidade, juro.

107
Sérgio arrancou um cacho de glicínias que pen-
dia bem em sua frente e atirou-o ao chão, esma-
gando-o com o pé.
— Gostaria de esmagar os mentirosos assim.
Assim, você está ouvindo, Lúcio?
— Então não seria eu esmagado, porque es-
tou sendo sincero. É-nos difícil mostrar o que nos
vai na alma. Mas pode ter certeza de que não sou
o que julgam de mim.
Sérgio refletiu alguns instantes e retrucou:
— Talvez eu acredite em v o c ê . . . Algum dia.
Mas hoje resolvi desmanchar a nossa amizade.
Lúcio ia implorar mas o cérebro se envolveu
por uma camada tênue de idéias, que foram cres-
cendo até que ele sorrindo, falou:
— Você é um tolo, convencido. Não conhece
nem um segredo da vida. Eu poderia lhe explicar
todos. Principalmente aquele que satisfaz a alma.
Mas vou deixá-lo descobrir por si mesmo. Não pe-
direi que me devolva a sua amizade, meu caro Sér-
gio. Daqui alguns dias o verei devolvê-la por sua
livre e espontânea vontade. Só quero que me res-
ponda, se não for pedir muito. O que fará daqui
por diante sem a minha companhia? Que classe
vai freqüentar?
— Nenhuma. Vou simplesmente continuar
com o meu apartamento e as minhas mulheres.
— Vai continuar fora da lei, praticando o le-
nocínio? Você sabe que isso é um crime?
— É menos crime do que mutilar.
Lúcio esbugalhou os olhos e quando conseguiu
articular: — Sérgio, Sérgio, como você descobriu?
— Sérgio já estava pondo seu carro em funciona-
mento e quando Lúcio conseguiu ligar para a por-
taria impedindo a passagem do amigo, Sérgio já
ia longe.

108
9.° CAPÍTULO

Lúcio entrou na delegacia e procurou pelo in-


vestigador Edgar.
— Oi, dr. Lúcio, que bons ventos o trazem para
esse lado? Até parece que adivinhou que estou
duro como uma pedra. Imagine que o nosso au-
mento ainda não saiu, e quando sair vem aquela
miséria de vinte por cento.
— Tenha certeza que vai ficar satisfeito com
o dinheiro que lhe darei, meu caro Edgar. Tenho
um serviço para você. Não tema ser arbitrário. Se
você perder o emprego eu prometo lhe garantir o
futuro inteiro.
— Do que se trata?
— Prenda e torture esse rapaz.
Edgar pegou o papel da mão de Lúcio e leu.
— Sérgio Lopes Gama. — Perguntou: — Pren-
do-o por que crime?
— Invente um qualquer. Olhe, acho o mais
adequado lenocínio.
* * *
A sala do apartamento de Sérgio estava lotada
quando a empregada bateu levemente na porta
onde ele atendia uma freguesa.
Ele pulou de cima dela rápido, pois quando a
empregada o incomodava nesta hora, só poderia ser

109
algo desagradável. Ele enrolou uma toalha em vol-
ta da cintura, jogou a colcha em cima das pernas
da mulher e abriu a porta.
— O que foi?
— Uma moça insiste em falar com o sr. Diz
que é muito grave.
— Pede o recado, vá.
— Ela não quer dar. Já insisti um tempão.
Sérgio olhou para a mulher da cama e ela sor-
rindo, levantou-se.
— Se for para o seu bem e felicidade geral
dessa moça, diga ao povo que... irei embora.
Os dois cairam na risada, enquanto a empre-
gada tentou fazer a nova visitante entrar pela por-
ta do fundo, ela desvencilhou-se e passou pela sala,
encarando as mulheres e entrou no quarto onde
Sérgio a esperava nu.
— Não é uma recepção muito boa que você
oferece, recebendo a gente assim nu.
— Se não gosta, boto as calças.
— Prefiro sem calça.
— Gostaria de saber o que foi que disse à mi-
nha empregada para assustá-la tanto.
— Que precisava falar com você, sobre um
caso muito grave.
— E qual é?
— Prisão em flagrante.
Sérgio riu.
— Então, como é essa estória?
— Como já expliquei. Prisão em flagrante.
— Não entendo.
— É só eu deitar e você fazer. Quer?
— Ah! malandrinha. Então só quis furar a
fila.

110
— Não foi só isso. Estou a serviço.
Chiiii, pensou Sérgio, essa era uma cara do
tipo exótico. Pena o Luís não estar mais traba-
lhando. Também não sei como ela foi enganar
essa burra da empregada O melhor é despedi-la.
Arranjar uma que não se deixe levar por mentiri-
nhas. Mas já que ela estava ali...
— Já que está a serviço, tire a roupa e se en-
fie debaixo das cobertas. Eu já estou pronto, olhe.
O membro grande e reto era bem visível a meia
luz do luxuoso quarto. A jovem tirou só as calci-
nhas e deitou-se.
— Abra as pernas que lá vou eu.
— Ah! espere, quanto cobra?
— Deixe enfiar primeiro, depois eu falo.
Ela abriu as pernas e Sérgio deitou-se, segu-
rando o pênis com as mãos, forçou-o a entrar. Já
dentro, ele deu umas estocadinhas.
— Não, ainda não. Primeiro o preço.
— Para que tanta pressa?
— Talvez eu não tenha a quantia suficiente.
— Quinhentas pratas.
— Espere, vou pegá-las.
Sérgio escorou as mãos no colchão e levantou
o corpo, sem sair de dentro da moça. Ela virou-se
para o lado e enfiando a mão na bolsa que já es-
tava aberta deu-lhe o dinheiro e apanhando uma
pequena cédula colocou-a bem na frente dos olhos
de Sérgio e disse com voz autoritária e seca:
— Polícia.
Sérgio ia jogar a cabeça para trás e cair na
gargalhada, quando viu que pela porta do quarto
entrava dois policiais, que mostravam-lhe os dis-
tintivos reluzentes.
Sérgio pulou da cama e ficou em pé nu, olhan-
do para todos os lados, até que seus olhos se fixa-

111
ram na sala onde as mulheres gritavam histerica-
mente, levando socos e pontapés de mais alguns
homens uniformizados. Até a empregada, com as
duas mãos algemadas, era jogada em um canto
onde já estavam todas as suas clientes.
Os homens começaram a revistar tudo, jogan-
do, quebrando e rasgando. Um ordenou a Sérgio
que se vestisse para ir em companhia de todas aque-
las mulheres para a delegacia.

Sérgio, de cabeça baixa, passou pela área de mo-


radores do prédio e entrou na rádio-patrulha, que
saiu sacolejando
Assim que chegou, foi empurrado pelas esca-
das abaixo e introduzido numa cela imunda que
se fechou em suas costas. Ouviu quando o carce-
reiro subiu as escadas, e na escuridão ficou imagi-
nando o que deveria fazer.
O tempo passava lento e nada acontecia. Sér-
gio tremia de frio, pois naquela afobação esque-
cera de pegar um agasalho, sem se lembrar que a
noite estava de gelo. Quando começava a clarear
o dia Sérgio foi levado para uma cela comum cheia
de ladrões, vagabundos, bêbados, viciados e pede-
rastas, que logo começaram a xingá-lo:
— Ei, garotão.
Sérgio encarou o negro, alto e forte com o san-
gue a lhe gelar nas veias.
— É você. Você mesmo. Como é, vai dar o cu
pra gente?
Pelos belos lábios entreabertos de Sérgio, per-
passou um sorriso de desdém e respondeu:
— Não. Eu só costumo enfiar em cus.
O negro riu.

112
— Ei, gente. O cara é valente. Vai ver que
tem um protetor dos bacanas.
— E tenho mesmo. — Sérgio quis atemorizar
os presos.
— Então ele deve mandar muitas coisas boas
aqui pra gente.
— Manda sim. Olhe, vocês podem escolher:
comida, cigarros, etc.
— Oba... Então você vai ser um dos nossos.
— O negro passou a mão pelo ombro de Sérgio,
mas logo a retirou quando ouviu a voz de Edgar.
— Ele está mentindo, crioulo. Não tem pro-
tetor nenhum. Vive a custa de mulheres. É um
"caften" alcoviteiro. Não tem mesmo, nem uma
gata pra puxar pelo rabo.
— Ah! seu puto de uma merda. Brincando
com a gente, hem! Vamos dar uma surra daque-
las neste cara, gente!
Sérgio foi se afastando até encostar-se nas
grades da cela enquanto os presos vinham em sua
direção.
Um chegou perto e lhe arrancou a camisa de
um puxão.
— Tire suas mãos imundas de cima de mim.
— Foi só o que ele conseguiu dizer, pois logo foi
esmurrado por mil mãos que o jogavam de lá pra
cá, só não o matando, porque a cela foi aberta e
ele desfalecido e todo machucado, arrancado das
mãos dos presos enfurecidos.

No dia seguinte Sérgio acordou no chão frio


de cimento em uma cela, que ficava no sub-porão,
com o corpo todo marcado de manchas roxas e
tentou abrir os olhos quando ouviu a voz de Edgar.

113
— A atmosfera estava carregada pro teu lado
hem, meu chapa.
Sérgio abriu um olho com dificuldade.
— Quem é você? Desculpe-me, mas não dá
pra ver. Meus olhos ardem pra burro.
— Sou o investigador que comandou a sua
prisão. É, aqueles caras explodiram. Depois que
lhe deram a surra, gritaram e vociferaram a noite
toda. Acho que estavam "dopados".
— Escute aqui, seu Edgar, como é que faço
para sair daqui? Já que o senhor me jogou nas
mãos daqueles maloqueiros, deve ajudar-me.
— Arranje um advogado para quebrar o fla-
grante.
- Arranjar como?
— Você tem algum amigo?
— Amigo? Tenho sim. Meu amigo Luís. Ele
poderá me ajudar.
— Se você quiser, eu poderia procurá-lo.
— Ah! seria um grande favor.
— Dê-me o endereço.
— Rua Joaquim... Pô, me esqueci. Ele mu-
dou desta rua... Diabo, onde vou procurá-lo? Ah!
já sei... Serve o telefone?
— Serve.
— Então, por favor, marque aí...

Edgar subiu as escadas sombrias e sujas e saiu


para o corredor onde encontrou Lúcio, que lhe
perguntou:
— E então?
— Mandou telefonar para este número, cha-
mar Gustavo, e pedir que avise um tal de Luís.
— A h ! . . . Desça e diga-lhe que telefonou e
quem atendeu foi o Lúcio, pois esse telefone é de

114
minha casa e Gustavo era meu empregado. Diga-
lhe que se precisar de mim, estou às ordens.
* * *
Sérgio ficou em silêncio longo tempo.
— É, eu acho que você pode dizer ao Lúcio,
para vir me buscar.
* * *
Sentado no luxuoso carro ao lado de Lúcio,
mais uma vez Sérgio sentiu que não se pode viver
sem um amigo influente. Lúcio chegou, falou, gri-
tou, distribuiu dinheiro, e ele estava ali. Ali sen-
tado no estofamento de veludo de um caríssimo
carro, Sérgio apertou levemente os olhos inchados.
Não queria acreditar que estivera numa cela, jun-
to com tantos marginais. Só em pensar nisso co-
meçou a tremer. Como? Então era verdade que
estava infringindo as leis, como insinuara Lúcio,
ou simplesmente houvera uma reclamação dos mo-
radores?
Suspirou fundo num gemido dolorido, ouvindo
a voz de Lúcio.
— Como lhe disse, meu caro Sérgio. Nada fica
encoberto da polícia. Agora é não pensar mais
nisso. Vou levá-lo até .o instituto. Lá faremos um
bom curativo.
— Como não pensar mais nisso? Vejo a todo
instante aquelas caras horrorosas vindo em minha
direção. Acho que não vou mais esquecer, nunca
mais.
— Esquece sim. Agora sua mente está trau-
matizada pelas cenas assistidas.
— Acho que os fantasmas dessa horrível noite,
se arrastarão eternamente atrás de mim.
— Eu os farei parar, Sérgio, prometo-lhe.
115
— Obrigado, Lúcio. Agora aceite minha ami-
zade de volta. Aperte aqui a minha mão. — Um
sorriso velhaco envolveu os belos lábios do médico.

* *
Quando Sérgio sarou, voltou a alugar um ou-
tro apartamento.
— E minha opinião, meu caro Sérgio, nenhum
apartamento de "Call Boy" pode operar mais que
alguns meses aqui em São Paulo, sem ser devas-
sado pela polícia.
— Vou tentar, mais uma vez. Se não der certo
então aceito o seu oferecimento. Prometo que virei
morar aqui, como seu hóspede.

Sérgio voltou a ser preso.


Lúcio voltou a tirá-lo da cadeia.

— Então, Sérgio, posso mandar decorar o pa-


vilhão azul para você?
— Ainda não. Nesses meses aprendi um jeito
de me proteger da polícia. Descobri um modo de
atender os meus telefonemas. Tenho um código.
Minhas freguesas telefonam com palavras do có-
digo e eu peço a minha secretária para chamá-las,
se a mensagem for igual ao código. Digo-lhe isso
porque não sei como a polícia sabia de todas as cha-
madas para o meu apartamento. Até os endereços
de meu caderninho particular eles tinham. — Sér-
gio tirou o caderninho da bolsinha de pelica preta
com zíper também preto e levantando-a no ar disse:
— Olhe, está aqui, consegui escondê-lo preso neste
grampinho debaixo de meus cabelos, quando a po-116
Meia invadiu o apartamento. Se eu o perder, adeus
freguesas. Ai sim, morro de fome.
Lúcio fixou os olhos no caderninho e um arre-
pio de contentamento perpassou pelo seu corpo, fa-
zendo com que os poros se levantassem em minús-
culas bolinhas e a voz se levantou alegre
— Mas você não pode se proteger sempre es-
condendo-se atrás de um fio telefônico. Você sabe
que existe sempre os vizinhos moralistas. Os ri-
vais também podem denunciá-lo para amenizar a
competição ou uma madame ciumenta ou mesmo
um amigo invejoso, pois você, como sempre lhe fa-
lei, é possuidor de uma soberba beleza. Mas em
tudo existe a competição, meu caro Sérgio. Meu
conselho seria mais uma vez deixar essa vida, mas
já que você não quer, »tome precauções pois para
a terceira prisão os métodos, razões e penalidades
são diferentes. Bem mais rígidos, perigosos mes-
mos, pois será mais difícil quebrar o flagrante.
— Mas o que os advogados querem é dinheiro.
Não vejo porque o difícil numa terceira prisão.
— Porque essa acusação de hoje foi que você
é o "Call Boy" mais importante de São Paulo, e
tem um bordel.
— Bordel? Essa polícia tem cada uma! Te-
nho um simples apartamento.
— Foi por isso que o meu advogado conseguiu
que a acusação fosse reduzida a um leve delito. —
Sérgio levantou-se da luxuosa poltrona de veludo
verde com frisos de veludo de um verde mais es-
curo, e toda guarnecida em baixo de franjas de seda
e dando longos passos pela biblioteca, exclamou:
— Olhe, Lúcio! Não sei porque a gente não
pode ser "Call Boy", se tem tanta mulher preci-
sando de relações sexuais. A polícia, ou melhor, o
Secretário de Segurança, deveria permitir que hou-117
vesse apartamentos desse tipo espalhados pela ci
dade. Coitadas, se elas não procurarem a gente,
onde vão satisfazer-se sexualmente? Pô, tem cada
problema! Ontem mesmo apareceu uma lá que se
realiza com legumes. Esquenta a abobrinha, ce-
noura ou pepino e leva-os para a cama. Dá pena.
A coitada estava até machucada. Olhe, não vou
lhe contar das outras, porque são de arrepiar. En-
tão porque não deixam a gente em paz? Eu pro-
curo fazer tudo de um modo limpo e asseado. Sin-
ceramente, não vou deixar as minhas mulheres,
elas precisam de mim. Agora vou alugar uma casa,
lá pelos lados de Interlagos. Bem perto do lago,
pois pretendo fazer com que as minhas freguesas
atravessem de lancha. Já vi a casa e gostaria de
comprar uma lancha, mas e o dinheiro? Ainda
não tenho condições financeiras para isso por en-
quanto.
— Ora, meu caro Sérgio, que perversidade fa-
lar que está em péssima situação financeira em
minha presença. Então para que somos amigos?
Se não for para darmos aos amigos o que eles pre-
cisam, não sei como se poderia chamar essa ami-
zade. Você quer dinheiro e eu quero companhia.
Você vê como tudo é simples. Eu sou seu amigo e
lhe dou quantas lanchas você quiser. Você se diz
ser meu amigo mas não quer me fazer a mínima
companhia. Existem certas pessoas que não preen-
chem a beleza, o esplendor de uma amizade, por
isso vivem sempre se oferecendo como amigo mas
ninguém lhe retribue, então fica-se vivendo dessa
ilusão.
Sérgio pegou a garrafa para se servir de uma
bebida e sorrindo para o médico retrucou.
— Já o entendi, Lúcio. Eu também sou seu
amigo. Posso lhe fazer companhia todas as noites.

118
para festas, teatro ou reuniões, mas não queira me
tirar as tardes. — Sérgio pensou um pouco e de-
pois continuou: — Escute aqui, Lúcio, porque você
não vem me ajudar?
Lúcio acendeu um charuto e estendeu-se num
sofá, tirou algumas baforadas e foi assoprando de-
vagarinho a fumaça, deixando que se espalhasse
pelo ar um leve perfume de fumo havaiano e disse
numa voz nervosa:
— Ajudar como?
— A gente passava as tardes satisfazendo às
mulheres e as noites ia se divertir.
Como se um raio tivesse caído logo ali no ter-
raço, tão perto da biblioteca e o estrondo se infil-
trasse no cérebro de Lúcio, ele ficou por um longo
tempo sem poder coordenar as idéias. Depois foi
se recuperando aos poucos até que conseguiu si-
mular a voz e dizer num sorriso forçado:
— Que idéia absurda, meu caro Sérgio.
— Absurda no que?
— Mulheres.
— Porque você não conhece as que me pro-
curam. Tem cada uma. Que corpos! Dá pra gozar
umas vinte vezes. ''
Lúcio torceu os lábios.
— Ah! Sérgio, prefiro que me fales em répteis.
— Não vá tão longe na comparação. Assim
você me decepciona.
— Decepcioná-lo? Mas então você não sente,
não vê, não sabe que a companhia de mulheres me
cansa?
— Depois ou antes da relação sexual?
— Ora, Sérgio, não me enerve. Estávamos
mantendo uma conversa encantadora, e você vem
com mulheres.

119
As sobrancelhas negras de.Sérgio subiram e
desceram quando seu rosto se cobriu da gargalha-
da que envolveu toda a imensidão da sala.
O médico levantou-se num impulso de jogar
as pernas pelo ar e atirando o resto do charuto no
cinzeiro de cristal, disse:
— Não sei porque tanta alegria.
Sérgio mastigando o riso...
— Porque estou começando a descobrir, que
lá no fundo de minha alma não existe razão para
ser criticado o outro prazer dos sentidos.
Os olhos de Lúcio se alargaram e a voz tremia
enquanto ele falava.
— Que outro sentido? Será que é o que eu
estou pensando? Então você acha natural o ins-
tinto que inspira paixões de homens com homens.
Então sua filosofia é igual a minha, que confirma
que essa sensação é mais forte. Você acredita como
eu, que esse puritanismo piegas que combate a
união de dois seres pela alma, tende a ser extermi-
nado? Você acredita, meu caro Sérgio, que esses
pobres ignorantes, algum dia tenham que se cur-
var ante o maravilhoso despertar dessa sublime
união? Ah! meu amigo, se todos os homens com-
preendessem que se deve respeitar esse amor que
passando por toda uma vida, tem a duração de um
momento. Quanta arte, quanta beleza existe nes-
te amor. É como se você conseguisse reter entre
as mãos o perfume das flores universais. — Lúcio
se empolgava e chegando perto do amigo continuou
arrebatadamente: — Tenho certeza, meu amigo,
que se você pudesse ao menos tocar de leve neste
amor, o proclamaria como o mais maravilhoso que
existe na terra.
Sérgio voltou-se e segurando com força o bra-
ço do médico, gritou:

120
— Que é, Lúcio? Enlouqueceu? Que cara,
meu Deus do Céu! Até parece que você está to-
mado pelo e x u . Pô, até me arrependo de ter fa-
lado aquelas besteiras.
— Besteiras? Então...
— Aí está, Lúcio, besteiras. Eu não aprovo
um homem amar outro homem. Agora com sua
licença, vou lá no pavilhão dos criados bater um
papo com Gustavo... Ah! que diabo, ia-me esque-
cendo que ele não trabalha mais aqui. Poxa, que
chateação, preciso encontrar Luís... Escute aqui,
Lúcio, você não sabe onde Gustavo está?
Mas Lúcio parecia não ouvir, tinha os olhos
dilatados e fixos talvez no amor que crescia lá
dentro dele, fazendo-o estremecer.
— Oh! Lúcio, estou falando com você.
— Ah! Pois não. Desculpe-me da divagação.
O que você falou, repita por favor.
— Gostaria que me desse o endereço de Gus-
tavo.
Lúcio apertou os lábios e pensou alguns mi-
nutos.
— Sinceramente não sei. — Lúcio deu um sus-
piro de desabafo. — Pergunte ao mordomo. — Sér-
gio fez menção de tocar a campainha, mas Lúcio
ponderou. — Ainda não, antes gostaria que me dis-
sesse qual é a quantia desejada para a compra da
lancha, pois pretendo preencher o cheque.
Lúcio entregando o cheque a Sérgio disse:
— Agora gostaria de tê-lo por companhia no
jantar da Condessa Matabelo.
— Prefiro ir para o meu apartamento descan-
sar. Estou cansadíssimo, vou cair na cama e dor-
mir como no sono eterno. Amanhã me mandarei

121
para a casa do lago. Comprarei a lancha e irei tra
balhar longe dos vizinhos, dos rivais, da polícia e
dos inimigos. Assim que estiver instalado, compa-
recerei a quantos jantares você quiser, e olhe nes-
tes jantares vou arranjar um monte de freguesas
pois geralmente o sangue azul é meio fraco.
Sérgio riu, fez uma reverência como o ator no
teatro, fazendo que sua cabeleira negra e reluzente
batesse quase no chão. Quando levantou-se jogou
um chau pelo ar e saiu varando as salas e gritando
pelo mordomo. Ia em busca do endereço de Luís,
sem saber que seus gritos alegres eram um tônico
para aumentar mais e mais o amor que já estava
profundamente enraizado dentro do íntimo do mé-
dico.
Lúcio atirou-se numa poltrona e apertou o lo-
cal do coração e repetiu em longos suspiros o nome
de Sérgio.
Não teve coragem nem de sair para o jantar.
Ficou aí parado sem se mexer, tendo diante dos
olhos aquela linda imagem de homem, alimentan-
do o seu doentio espírito. Nem mesmo quando aque-
la escuridão carregada do mormaço da tarde in-
vadiu a biblioteca, ele se moveu. Firmava a mente
para que ela não conseguisse desfazer e elevar para
as trevas o rosto risonho e adorado de seu amor.
Ah! Sérgio! suspirou fundo, porque o amo assim?
Porque você entrou em mim, fazendo que tudo lá
dentro arda como fogo? Oh! Sérgio, Sérgio, quan-
do vou conseguir desmaiar em teus braços?
O belo físico do jovem médico se sacudiu em
altos soluços, que se perderam pela imensa man-
são de salas ricamente vestidas de veludo, sedas,
rendas, cristais, prata, porcelanas, napa, couro, pe-
lica, e mil coisas que só é dada a reis.

122
10.° CAPÍTULO

Célia torceu o longo cabelo loiro, prendeu-o no


alto da cabeça e com movimentos leves começou a
ensaboar o corpo bem feito, coberto de pele de seda
cor de café com leite, de seios grandes, duros e
pontudos, e coxas grossas e nádegas bem salientes.
Diminuiu o volume de água, para que a mesma fi-
casse mais quentinha. Saiu do banho, enrolou-se
em uma toalha macia e bem felpuda e foi can-
tarolando para o quarto. Carlos já estava deitado
e continuou a ler o Diário da Noite, só o abaixando
quando Célia disse com voz magoada:
. — Carlos, coloquei a minha mais linda cami-
sola e você nem se dá conta que estou aqui. Fran-
camente, nem parece que estamos em lua-de-mel.
Você está sempre sonolento. Já reparei uma coisa.
De dia você diz que o sol o deixa preguiçoso, de
noite você diz que ela o deixa com sono. Olha,
antes de casarmos toda a sua família dizia que você
era forte, saudável, ardente.
Carlos empurrou as cobertas com os pés e jo-
gando o jornal para o ar, abriu os braços.
— Caia aqui, meu amor, você vai ver o que é
capaz de fazer um jovem delegado de trinta anos.
Célia jogou os chinelos para os lados e ia se
atirando nos braços de Carlos, quando ele gritou:
— Sem camisola, sem camisola-
A camisola esvoaçando pelo ar e Célia apertan-
do-o corpo no corpo nu do marido.

123
Ele por cima dela. Ela se retorcendo toda e ele
estremecendo em longos suspiros.
— Aperte mais, Carlos, estou quase gozando.
— Ainda não gozou?
— Nao, e voce?
— Já gozei.
— Pô e agora?
— Você demora...
— Mas nem comecei.
— Tem mais, calma. Afinal tenho trinta anos.
— Não gosto da segunda. Gosto de acabar a
primeira juntos.
Célia empurrou o marido de cima e virando-se
para o lado, caiu no choro.
— Credo, Célia. O que foi? Eu sei me refrear
Espere um pouco, já vou para a segunda. Pô, to-
das as noites é a mesma coisa. Eu não tenho culpa
de você ser fria. Nunca vi ninguém não gozar com
vinte anos.
Célia nem virou a cabeça. Quando o marido a
procurou, ela se entregou com a esperança de que
a segunda seria um pouco mais demorada. Mas
Carlos entrou, deu duas estccadinhas e gozou, di-
zendo:
— Gozou?
— Gozei — respondeu com voz sumida, men-
tindo.

* * *
Quando voltaram da lua-de-mel, Célia vinha
triste é abatida. Logo que Carlos saiu para a dele-
gacia, telefonou para Juliana, a sua melhor amiga
chamando-a para uma visita.
— Então, como foi?

124
— O que?
— A lua-de-mel, ora.
— Com cenoura e abobrinha.
— Não entendi.
— Carlos encosta e goza. Não gozei uma vez.
Aí eu ficava morrendo de desejo, então pegava uma
abobrinha no tamanho desejado, mornava-a no
fogo e a levava para a cama.
Juliana tapou os olhos com as mãos.
— Ah! não! isso é horroroso, é simplesmente
horroroso. Mas você goza com isso?
— Claro.
— Com a mesma intensidade como se estivesse
com um homem?
— Eu nunca gozei com homem nenhum. Não
se esqueça que meu marido não sabe ou não quer
fazer a gente se realizar.
— Isso é só no começo.
— No começo, — disse Célia com desdém. —
No começo é que ele deveria ser o marido a quem
deverei respeitar por toda a vida.
— Mas isso passa. Daqui uns meses a encon-
trarei grávida e feliz.
— Pela gravidez poderá ser, mas tenho cer-
teza que Carlos fará mil filhos na carreira, como
se o demônio o tivesse perseguindo. — Célia er-
gueu-se bruscamente e começou a andar pelo quar-
to — Você sim é feliz, Juliana! Bem casada, com
um homem que a satisfaz plenamente. Você já
pensou: a gente sentada num sofá, tendo um ho-
mem de belo físico como Carlos, a lhe apertar as
mãos de onde emana um forte calor, ouvir a ter-
nura da voz, o olhar lânguido entrando pelo corpo
da gente, avivando aquele desejo ardente e aí a
gente se deixando envolver pela deliciosa lassidão 125
e abandonando-se nos braços fortes e sentindo o
membro duro e reto varando a nossa carne úmida,
fremente e aquela coisa lá dentro da gente em acli-
ves e declives e de repente como se fustigada por
uma chicotada a gente vê tudo desmoronar, pois
a lança do companheiro já descansa da luta que
só satisfaz a ele. Juro que é horrível! Uma vez,
duas, três, vá lá. Mas já estou casada há cinco me-
ses. — A voz de Célia se elevava nervosa. — Já cinco
meses. Cinco meses que as minhas carnes estão
gritando, chorando, esbravejando por outra carne
e não consegue ser atendida. Oh! Juliana, eu ando
tão nervosa!
Célia andou pelo quarto com as duas mãos
apertando a cabeça.
Juliana foi até a janela, e ficou alguns minu-
tos com a fronte de encontro ao vidro frio. De-
pois voltou-se para a amiga.
— Escute, Célia, eu sei como você poderá re-
solver o seu problema.
— Então diga logo.
— Em primeiro lugar, quero que saiba que não
sou tão feliz como você pensa.
Célia parou e arregalou os olhos.
— Você não é feliz?!
— Não, não sou.
— Nem no casamento?
— Pois é justamente no casamento que não
sou feliz.
— Não vá dizer que também tem problemas
sexuais!
— Exatamente.
— Não acredito.
— Juro.
— E como você resolve? P126
Juliana olhou para a porta.
— Alguém pode nos ouvir?
— Não, as empregadas só aparecem aqui
quando são chamadas e só pelo toque da cam-
painha ali, olhe, e Carlos só voltará à noite.
— Mas antes prevenir do que remediar — e
Juliana atravessou o quarto e fechou devagar a
porta e voltando se afundou na macia poltrona
falando:
— Existe um outro homem na minha vida.
Célia parou esfregando as mãos e olhando pe-
trificada para Juliana, sem conseguir articular
uma palavra.
— Que é? Porque se admira tanto? Isso hoje
em dia é tão natural.
— Natural? Mas é um horror! Você não pode
estar falando sério.
— Mas estou. Tenho um outro homem; mas
só para me satisfazer sexualmente.
Célia apertou o braço de Juliana.
— Você está doida.
Juliana riu.
— Ficarei doida se não alimentar o sexo.
— Mas porque? Victor me parece tão...
tão.. como devo dizer? Tão machão.
— Carlos também parece.
— Mas Carlos é. Quer toda hora. Mas só que
é egoísta. Só ele se satisfaz.
— Então não é machão. O tipo machão é
aquele que sabe reter o prazer, até que a mulher
goze!
— Olhe, Juliana, eu não estou entendendo
mais nada! Nunca pensei que a vida do sexo fosse
tão complicada. Pensei que seria tão simples. Mas
pelo amor de Deus! Até você, com quatro filhos P127
e parecendo tão feliz, tem o que reclamar? Você
que eu julgava tão pura, quase mesmo uma santa,
vem me dizer que trai o marido. Ah! Juliana, nem
sei o que pensar! E depois se Carlos souber de
uma coisa dessas, vai me aconselhar para me afas-
tar de você. Olha, pelo amor de Jesus! Não deixe
o Carlos saber. Que tristeza para mim ter que re-
nunciar a essa amizade!
— Não seja tola, Célia. Nem seu marido nem
o meu, nunca irão ficar sabendo de nada.
— Mas se alguém os vir juntos.
— Nunca ando com ele.
— Então?
— Olha, Célia, vou lhe explicar tudo direiti-
nho. Eu estava com um problema sexual. No meu
caso, Victor não é culpado. Eu mesma descobri um
dia que meu organismo estava morto. Os carinhos,
os afagos de Victor não conseguiam mais fazê-lo
reviver. Tudo lá dentro estava oco, vazio. Aí eu
fiquei pensando que aquilo não era normal. Com
trinta anos, não morre o desejo da carne.
Quase tive um colapso, só de pensar que o
mundo sexual tinha acabado para mim. Velha, ve-
lha nos trinta anos! Isso foi me deixando em uma
terrível depressão nervosa, até que um dia uma
amiga me deu um cartãozinho dizendo:
— Olhe, o que você precisa não é de analista
e sim disso aí. Era o endereço de um "Call Boy".
— "Call Boy"?!
— "Call Boy" é um homem de aluguel.
— Existe isso?!
— Claro.
— Não é possível!
— Graças a Deus existe. O "Call Boy" sempre
é jovem de alto trato. O que eu alugo é maravi- P128
lhoso, jovem, alto, moreno de profundos e lumino-
sos olhos azuis. Com dentes perfeitos, brancos,
limpos. Um físico que faria inveja ao próprio Adó-
nis. Homem limpo. Está sempre cheirando a lim-
peza.
— Pelo amor de Deus, Juliana, você chegou a
isso?! Fala de um outro homem com' tanto entu-
siasmo? Isso é pecado mortal. Lembre-se que você
jurou diante do altar que pertenceria só ao seu ma-
rido, até que a morte os separasse.
— Mas eu pertenço de alma ao Vitor. Enten-
da, Célia. Você não é ignorante. Entenda que se
alugo um homem, é por necessidade fisiológica.
— Mas ele é só seu?
— Não, ele tem uma casa para ter relações
com as mulheres que o procuram.
— Então é um rendez-vous?
— Não exagere, Célia. A casa de Sérgio é uma
beleza. Fica a beira do lago, lá em Interlagos. A
gente telefona e uma luxuosa lancha vem buscar-
nos no ponto marcado. Mas deixe lhe contar.
Quando a minha amiga me deu o cartão, explican-
do-me tudo, eu relutei muito. Mas os comprimidos
que eu tomava para os nervos, foram fazendo mal
para o fígado. Todos os dias levantava com um tre-
mendo enjôo do estômago, a língua grossa com uma
crosta amarela. Sentia arrepios de frio. Andava
sonolenta, quase trombando com as coisas. Mal-
tratava Vitor, e as crianças, enfim já não era eu
mesma. Um dia resolvi procurar esse "Call Boy",
sem acreditar que pudesse sentir qualquer prazer.
Fui somente movida pela curiosidade. Não a curio-
sidade romanesca de Shakespeare, de ter um aman-
te, nem a curiosidade de se defrontar com os amo-
res ilegítimos de operetas, nem a curiosidade do
sabor adocicado da maçã do paraíso, mas sim a

129
curiosidade de confirmar se poderia o sexo curar
doenças, como se fosse um remédio. Poderia o sexo
ir buscar a Juliana ardente de dez anos atrás?
Telefonei. Marquei hora. Marquei lugar. Fui.
A lancha me levou. E eu, em frente àquele
maravilhoso homem que andava pelo quarto de
cabeça alta e me olhando com os olhos cheios de
desejo. Eu chorando, ele pegando-me nas mãos,
apertando-as contra o corpo quente, cheirando a
homem e a voz cálida.
— Não chore. Daqui a pouquinho lhe prometo
matar esses nervinhos e fazer aflorar nestes belos
lábios um largo sorriso. Mas antes do sorriso um
beijo. — Seus lábios nos meus. Sua língua se en-
roscando na minha. Sua mão passando por todo
o meu corpo e oh! As minhas veias se inflamando,
minhas carnes latejando e se umedecendo. Seu
membro duro como uma lança de ferro me varan-
do, e eu tremendo como se sacudida por um ciclo-
ne e gritando e gemendo como uma possessa. De-
pois continuei chorando deitada na cama e ele
disse: — E o sorriso? Vamos, quero um sorriso, e
eu respondi: — Estou chorando de alegria. — Ale-
gria?! — Sim. Alegria porque minhas carnes não
estavam mortas. Atualmente eu vou a casa de
Sérgio, três vezes por semana. Parei de ir ao ana-
lista. Vivo calma. A paciência com as crianças
voltou. As empregadas são as mesmas do ano pas-
sado. Entrego-me ao Vitor sempre sorrindo. Não
gozo com ele, mas sempre finjo que tive o maior
prazer do mundo. Você nem imagina como ele está
feliz! Parece um namorado. Manda-me rosas ama-
relas todos os dias. Está aí a minha felicidade.
Toda ela devo a um "Call Boy". Se não fosse ele,
juro que todo o meu lar estaria desmoronado. Não

130
me leve a mal, Célia, mas se eu fosse você procu-
raria um "Call Boy".
O rosto de Célia se cobriu de uma expressão
de perplexidade e levou um longo tempo para con-
seguir articular as palavras com voz trêmula:
Juro, Juliana, se você não fosse minha ami-
ga, eu pediria aos empregados para enxotá-la. Mas
peço-lhe que saia. Não admito que ninguém tente
emporcalhar a moral de minha família.

' -

131
11.° CAPÍTULO

À noite, quando Carlos chegou da delegacia,


encontrou Célia sem o costumeiro sorriso.
— Que há? — Carlos prendeu-a nos braços,
beijando — lhe sofregamente a boca.
Célia o empurrou com as duas mãos.
— Não assim, não.
— O que há, diga. Já acabou a lua-de-mel?
— Não diga bobagens.
Carlos tentou abraçá-la novamente, mas Célia
voltou-se e saiu correndo para o quarto, deixando-o
como que hipnotizado com os olhos fixos no vulto
da mulher que desapareceu escadas acima. Depois
de algum tempo com o coração batendo fortemen-
te, ele seguiu os passos de Célia e entrou no quarto,
encontrando-a debulhada em lágrimas.
Carlos arrancou o paletó, e jogando-o sobre a
cama.
Mas, afinal de contas, que bicho a mordeu?
Célia limpou as lágrimas com as costas das
mãos.
— Não grite comigo. Vá tratar com estupidez
os seus presos. Seja delegado lá na rua, não aqui
dentro.
Carlos até parou.
— Célia, o que aconteceu? Você nunca me
tratou assim! P132
— É nervoso — assoou o nariz no fino lenço
de linho borda do à mão. — É nervoso. Perdoe-me.
— Claro, querida. Já a perdoei. — Tomou-lhe
as mãos e disse-lhe com ternura: — Eu a amo tan-
to. A adoro. Morro por sua causa. Hoje lá na de-
legacia não fiz outra coisa, senão pensar em você.
Oh! Célia, meu amor, minha vida. Você nem pode
imaginar como doeu aqui dentro (Carlos mostrou
o local do coração) quando você me tratou tão fria-
mente. Não faça mais isso, meu amor.
Célia se atirou nos braços do marido que a
apertou fortemente sentindo que o membro dele
endurecia feito uma pedra e se arrepiou toda sen-
tindo um fogo na vagina quando ele lhe sussurrou
no ouvido:
— Você quer agora? — A voz quente, bem den-
tro do seu ouvido.
Um raio de esperança surgiu no cérebro de
Célia e ela respondeu com voz lânguida:
— Quero.
Ele a levou nos braços para a cama com a res-
piração entrecortada e o bafo queimando, pene-
trou-a rápido pelo vão das pernas da calcinha e
empurrando tudo de uma só vez, e nem chegou a
voltar. Já tinha gozado. O delegado levantou-se e
fitou a mulher, inerte com as pernas abertas esti-
cadas, o vestido levantado e a calcinha toda cheia
de esperma, com um olhar amoroso e jogando-lhe
um beijo na ponta dos dedos dizendo: — Eu a ado-
ro, você é a mulher mais gostosa dos nove plane-
tas — e foi para o banho. O barulho do chuveiro,
a voz do delegado alegre e feliz, cantando e as lá-
grimas de Célia, pingando uma a uma na fronha
de cambraia de linho bordada de azul e rosa com
entremeios de renda francesa.

133
No dia seguinte, ele acordou com o pênis la-
tejante e Virando-se para o lado encostou o corpo
no corpo acetinado da jovem mulher que dormia
profundamente.
— Célia! Célial — Chamou baixinho. — Pos-
so fazer agora. Estou-ardendo.
Célia nem teve forcas de abrir os olhos, morria
de sono mas a voz saiu apesar de mole e arrastada.
— Deixe-me em paz. Quero dormir.
Mas o delegado já estava com o corpo em cima
dela em estocadas rápidas, tremeu, se esticou e caiu
inerte para o lado.

À noite foi a mesma coisa. No dia seguinte, na


semana seguinte, no mês seguinte, sempre a mes-
ma coisa.
Um dia, quando Carlos chegou e prendeu-a
nos braços, já com o membro duro, Célia despren-
deu-se empurrando-o com toda força, cravando-lhe
as unhas nos braços e gritando:
— Oh! meu Deus! Chega, chega! Isso é hor-
rível! Deixe-me. Deixe-me em paz.
O delegado com os olhos esbugalhados ficou
parado, fixando-a sem entender e quando preten-
deu abraçá-la novamente ela jogou-lhe a primeira
coisa que conseguiu alcançar, um vaso de cristal
todo encrustado de pedras preciosas, que reluziam
com as cores do arco-iris, que se espatifou em mil
pedaços de encontro a parede forrada de papel ace-
tinado, onde se viam grinaldinhas brancas num
fundo rosa-violeta.
— Saia de perto de mim! Que quer você? Me
enfiar essa coisa nojenta, para me grudar de seu

134
esperma fedorento? Saia! Vá pro inferno. Para
a puta que o pariu!
_ Você enlouqueceu?
— Enlouqueci sim. E daí?
Ele ia se aproximando devagar.
— Célia, por favor, se acalme. Seja sensata
e me conte o que há. Porque está zangada comigo?
0 que eu fiz de errado? Vamos, diga. Porque você
tá assim? Eu a amo. Adoro-a.
— Cale-se, não se aproxime.
Célia descontrolada gritava, xingava, batendo
os pés e atirando tudo o que encontrava no chão,
na parede, por onde alcançasse. Depois gritando
como louca correu para o quarto, e trancou a porta
abriu por mais que Carlos insistisse.
* * *
Carlos sentou-se no grande salão todo decorado
móveis transparentes e almofadados de ren-
dão, e de cabeça baixa, deixou-se ficar, absorvido
com o pensamento grudado na mulher.
Depois levantando-se de um pulo, correu para
o telefone e ligou para o médico amigo.
* * *
Lúcio entrou entregando ao mordomo o casaco
DE LÃ INGLESA cinza com a gola também cinza de vi-. Relanceou os belos olhos negros pela im
dão do largo corredor.

— O dr. Carlos está na sala pegada à biblio-


m, dr. Lúcio. Se o senhor permitir, eu o acom-
panharei
— Não, não. Sei perfeitamente onde é a sala.
é a sala de fumar.
Enquanto atravessava as salas da enorme
mansão, Lúcio ia matutando porque uma jovem
frágil, linda e milionária como Célia que conhecia
desde pequenina se unira a um brutamonte, como
Carlos e ainda por cima delegado de polícia. Não
que ele tivesse alguma coisa contra os delegados,
mas era por causa de Célia. Ela era diferente das
mulheres que conhecia. Delicada ao extremo. Al-
ma boa e sensível. Ingênua e pura. Como Carlos
conseguiria levar pela escada da vida uma criatu-
ra tão meiga, tão sonhadora, quando passava os
dias com marginais e tinha aprendido a não sorrir,
ser estúpido, grosseiro!
— Lúcio! Obrigado por ter vindo. Você é o
amigo de sempre. Mas venha por aqui. Aqui na
biblioteca, sente-se. Espere, vou servir uma bebida.
O que prefere? Já sei, uísque. Ótimo, temos um da
própria adega da rainha Maria Stuart. Olhe, veja
o rótulo.
Lúcio riu.
— Quer dizer que esse uísque tem 367 anos?
— Sei lá. Para falar a verdade, eu só sei que
Maria Stuart era uma rainha. Aliás, rainha da Es-
cócia. Sei disso porque adoro uísque escocês.
— É, meu caro Carlos. Maria Stuart está na
história porque sua vida foi deveras dramática.
Nasceu na Escócia, em 1512. Foi delfina da Fran-
ça, rainha da Escócia e prisioneira na Inglaterra.
Morreu decapitada por ordem de Isabel I, rainha
da Inglaterra. Dizem que...
— Está bem, Lucio, prefiro continuar sabendo
só a respeito do uísque da Escócia. Deixe as rai-
nhas no outro mundo. Agora só me interessa a mi-
nha rainha Célia. Por causa dela estou numa ter-
rível angústia. Imagine você, que há dias ela vem

136
me evitando sexualmente. Hoje tentei abraçá-la,
fez um tremendo escândalo. Quebrou tudo o que
pôde. Venha, venha por aqui ver o que restou de
peças caríssimas que ganhamos no dia de nosso
casamento. Não entendo o que aconteceu! Você
sabe, ela era uma esposa perfeita!
— Diga-me, meu caro Carlos, onde posso en-
contrá-la agora?
— Trancada no nosso quarto. Está chorando.
Já bati inúmeras vezes, mas ela não quer abrir.
Lúcio subiu a larga escadaria cercada de me-
tal dourada, e bateu na porta indicada por Carlos.
— Sou eu, Lúcio.
A chave girando e a porta abrindo.
Os olhos de Lúcio fixos nela.
— Que susto você nos pregou.
Mentalmente o médico ficou analisando-a. Pá-
lida, olhos fundos circundados por manchas roxas,
mãos trêmulas, choro fácil. Depressão nervosa.
Mas que depressão nervosa poderia ter uma jovem
rica, bonita, casada com um belo homem?
Embora não fosse lá muito delicado, era ao
menos o que parecia um autêntico machão.
— Minha cara Célia, onde está o abraço ami-
go, que eu recebia todas as vezes que nos encon-
trávamos?
Célia voltou-se e se atirou nos braços do mé-
dico, chorando. . -
— Oh! Lúcio, sou tão infeliz!
— Mas o que há?
— Tenho até vergonha de lhe contar. Nunca
pensei que algum dia pudesse passar por tantas
coisas ruins como as que estou passando.
Lúcio a afastou carinhosamente e fazendo-a
sentar-se no largo divã forrado de pelúcia branca, P137
tomou-lhe as mãos e apertando-as entre as suas

— Nada há nesse mundo que não se possa con-


fiar a um amigo sincero. Seria uma imensa lásti-
ma para a minha sensível alma se perdesse a con-
fiança de minha cara Célia. Vamos, conte-me tudo.
Não haverá empecilho nenhum no meu desejo de
ajudá-la. Por isso não se envergonhe de nada, que-
rida Célia. Eu, como médico, acho-a com as faces
afogueadas pela febre.
Entre lágrimas, Célia lhe contou tudo.
— Ele me excita, excita, depois só encosta e
acaba. Isso desde que casamos. Quase todas as
noites espero ele dormir e uso... bem, uso uma
abobrinha. Você pode ficar escandalizado, Lúcio,
mas isso me satisfaz. Juro que já nem suporto
olhar mais para a cara de Carlos. Pensei mesmo
em falar com papai e anular o nosso casamento.
— Não se preocupe, Célia. Eu falarei com
Carlos.
Célia arregalou os olhos.
— Não, não, por favor, eu não quero que ele
saiba.
— Mas então como é que ele fará para poder
proceder de outra maneira?
— Não sei. Por ora não quero que ele saiba.
Quero que você me diga o que devo fazer. Ando
com uma tremenda dor de cabeça, tremo o dia todo,
sinto arrepios de frio, não tenho vontade de ir a
parte alguma. Só quero ficar no escuro chorando.

Depois de uma hora, Lúcio se despede inti-


mando Célia a procura-lo no dia seguinte no con-
sultório. P138
* * *
Célia foi examinada pelo ginecologista do hos-
pital de Lúcio.
— Se a senhora continuar a usar qualquer es-
pécie de legumes para realizar-se sexualmente, po-
derá adquirir uma doença grave. Por ora será tra-
tada de uma ferida no útero.

Célia chegou em casa, arrumou as malas e


partiu para um descanso em uma clínica de re-
pouso.
Depois de um mês voltou e foi à procura de
Lúcio, que mandou examiná-la e constatou que a
ferida do útero havia cicatrizado.
Célia voltou para a mansão e nos braços quen-
tes do marido, tentou tudo outra vez. Mas Carlos
não mudara. Agora nem chegava a entrar. Goza-
va a meio pênis Aí quando ele queria, ela se ne-
gava e aí começaram as brigas. A vida do caspl
tornava-se um inferno. Os olhos de Carlos viviam
cravados febrilmente na mulher, cheios de desejo.
Célia emagrecia a olhos vistos cheia de um desejo
que nunca fora satisfeito.
Uma tarde, Célia sentou-se ao piano, abriu-o,
passou a mão pelo teclado com a intenção de tocar
alguma coisa.
Mas uma tristeza imensa, um sentimento pro-
fundo de solidão lhe tolhiam as mãos. Olhou tris-
temente para o jardim, onde o sol avivava todo o
colorido das plantas e ficou quieta com as duas
mãos cruzadas no colo, ouvindo o cantar alegre dos
pássaros, chamando-a para aqueles inesquecíveis
passeios, do tempo de solteira. O belo jardim era
o seu lugar predileto.

*
Corria com seu cachorrinho por entre as áreas
floridas de rosas, giestas, cravos, palmas de Santa
Rita, etc.
Quantas flores! Já nem fazia questão de se
lembrar do nome. Então era feliz. Ria por qualquer
coisinha. Até quando corria atrás de uma abelha
que volteava as flores num zumbido repetido e caía
com a barriga no chão, soltava aquela risada alta
que chamava até a atenção dos criados.
Célia descruzou as mãos e contemplou o céu.
Oh! Deus, que idéia mais fúnebre a de ter casado.
Andou pra cá, andou pra lá, até que num ímpeto
louco correu para o telefone e ligou para Juliana.
— Juliana, é a Célia. Juro que não agüento
mais. Eu sinto uma queimação terrível na vagina.
Você vai desculpar-me por eu estar falando assim
abertamente, mas é que nestas horas a gente não
quer saber de protocolos. Olha, você me perdoe so-
bre aquele dia. Eu estou muito nervosa... Está
bem. Espere-me. Daqui meia hora estarei aí...
É que eu mesma irei guiando. Você sabe, não guio
lá muito bem.
As duas se abraçaram. Juliana vendendo saúde
e alegria, Célia envelhecida e com as faces enco-
vadas.
— Santo Deus! Como você emagreceu!
— É de fome.
— Fome?! Está fazendo regime?
— Fome de sexo.
— Ah! nem me lembrava que você estava com
este grave problema.
— Não é só isso. Estive internada em uma
casa de repouso e tive uma infecção no útero.
— Então Carlos não aprendeu a se controlar?
— Não. Está cada vez mais rápido. Estou
pensando em desmanchar o meu casamento.

140
— Não faça isso, Célia.
— Não o fazer? Você quer me ver louca?
— Claro que não. Mas Carlos é tão bom. Um
homem culto e com um brilhante futuro. Ser rá-
pido sexualmente não é lá um grande defeito.
— Ah! não é para você, que está vendendo
felicidade.
— Já lhe expliquei porque sou feliz.
— E posso saber porque minha mulherzinha
é feliz? — Os olhos arregalados de Célia se fixa-
ram em Victor que entrava com jeito de "lord",
corpo ereto, cabeça alta, largo sorriso brilhando na
boca bem feita, de dentes perfeitos.
Juliana riu, levantando-se e oferecendo os lá-
bios ao marido, disse:
— Feliz porque Deus o fez e mo deu de pre-
sente.
Victor virou-se para Célia.
— E você como vai? Parece doente.
— É, — Juliana falou logo — era sobre isso
que conversávamos quando você chegou. Célia pre-
tende consultar um médico.
— Então continuem, pois já estou de saída.
Victor apertou as mãos de Juliana, com ter-
nura, e a beijou, dizendo-lhe:
— Já comprei as entradas para o teatro.
— Ótimo, querido. Mas lembre-se que você
está me devendo um jantar no Hilton Hotel.
Victor fez uma reverência, rindo.
— Pois não, madame. Quantos jantares a se-
nhora desejar.
Os dois rindo, com o rosto jogado para o fir-
mamento, num riso alegre e feliz que entrava e
alargava um pouco o coração de Célia, lhe dando
coragem para falar, assim que viu Victor, pelas
costas.
— Victor não desconfia daquele...
— Daquele "Call Boy"?
— É. '
— Claro que não.
Célia torceu as mãos e a voz saiu trêmula:
— Sabe, Juliana. Acho que preciso do ende-
reço desse rapaz.
Juliana lhe estendeu o cartãozinho, dizendo:
— Sinto muito. Mas acho que é o único jeito,
por enquanto. P142
13.° CAPÍTULO

Quando Célia chegou lá na Riviera Paulista,


curtiu o motor de uma lancha que se aproximava,
atracando no ancoradouro novinho, com uma ta-
buleta onde se lia: "Ancoradouro Particular". Da
lancha saltou um jovem alto, com camisa branca
de espuma, de seda pura, aberta no peito, deixando
entrever o tórax coberto de pelos pretos e bri-
lhantes, j
A calça de brim, apertava-lhe as pernas, dan-
do a impressão que ele nem poderia se mexer,
quando andou em direção à Célia, num andar ele-
gante, sorriso limpo e cabelos ao vento. O olhar
Jogando azul contra o sol amarelo e o céu azul. A
VOZ quente, grossa e macia.
— Oi, sou o Sérgio. Como lhe prometi, vim
eu mesmo buscá-la e como lhe prometi, estaremos
•cainhos pelo resto da tarde.
O coração de Célia pulava desenfreado. Seu olhos iam além do barco para aquele
nunca se consegue fixar, quando se está super-ner-
nervoso. Ela se mexeu desajeitada. Ele pegou-lhe no
braço. Ela sentiu-se bambolear.
Sérgio riu.
— Não vá cair na água.
Ele desceu para o ancoradouro, e pulou para
dentroda lancha estendendo a mão para ela subir.
O barulho do motor se perdendo no maravi-
lhoso lago.

143
— Sente-se aqui, perto de mim. Aí atrás de
você ficará ensopada com a quantidade de espuma
que entra na lancha. Já encomendei uma fechada.
Esta aqui não serve para o meu trabalho, pois qua-
se todas as minhas freguesas precisam se esconder.
Célia não tinha coragem de manter um diá-
logo, pois a enorme figura do marido a acompa-
nhava o tempo todo.
A lancha parou em uma pequena prainha de
beira de lago, toda cercada de alta vegetação. Des-
ceram e seguiram por uma pontinha de tábua,
atravessaram um gramado bem verdinho, onde se
viam plantadas, de espaços em espaços, pequenas
árvores e uma enorme variedade de flores. Um ter-
raço enorme de vidros, circundava a grande casa
térrea.
Entraram e Sérgio virou-se para fechar o ca-
deado da porta que dava para a sala da frente.
Já na sala luxuosamente mobiliada, Sérgio disse:
— Prontinho, estou às suas ordens.
Vendo que Célia não se mexia, ele puxou-a pela
mão e fazendo-a sentar-se disse:
— Você me disse que se chamava Marina,
não é?
— Bem, meu nome é Célia, mas é que eu fi-
quei com receio...
— Escute uma coisa, Célia. Sei pelo seu jei-
to, pelas suas jóias, pelo carrão que você deixou
estacionado lá do outro lado do lago, que você é
uma mulher de alta classe. Eu não sei falar muito
bem, falar ao espírito como diz meu amigo Luís,
mas espero que você me compreenda. Aqui você
não precisa recear nada. Disse pelo telefone que
tem um problema. Sei que é problema de sexo, e
eu estou aqui para resolver. Não se acanhe. Es-

144
pere. Vou lhe servir uma bebida. O que você gos-
taria de tomar?
— Não sei.
— Vou lhe servir um refrigerante, pois você
está suando por todos os poros.
— É que estou com medo.
— De que?
— Sou casada.
— Quase todas são. Mas fique sossegada. Ma-
rido nenhum viria procurar a mulher neste "con-
fundo dos judas". Você sabe o que é "confundo dos
judas"?
Um leve e tímido sorriso perpassou pelos pá-
lidos lábios de Célia.
— Sei sim. Fim de mundo.
— Pois é. Olhe, dê uma volta pela casa, assim
você terá uma idéia de onde está. Isso a deixará
mais confiante.
— Não é preciso, eu confio em você. Juliana
é minha amiga. Ela me explicou tudo.
— Juliana?! — Sérgio franziu a testa.
O coração de Célia balançou. Quer ver, pen-
sou que estaria no local errado.
— Você não conhece a Juliana?
— Olhe, meu bem. Tenho tantas freguesas, é
difícil lembrar.
Célia tirou rápido o cartãozinho do bolso. Ia
entregá-lo a Sérgio quando este disse:
— Não é preciso. Se Juliana lhe ensinou a
senha é porque é minha freguesa. Tenho muito
cuidado com essas coisas, pois já fui preso algu-
mas vezes.
Célia arregalou os olhos.
Sérgio riu.
— Também com isso não deve se preocupar,
pois tenho um amigo influente que sempre que-
bra os meus galhos.
— Esse amigo não aparecerá por aqui, pois
não?
— Não, não. É um médico muito ocupado.
Célia não entendeu porque sentiu um tremen-
do mal-estar. Enxergou tudo balançando.
— Médico?!
— Médico. Tome. Tome o refrigerante. Se a
gente for ficar no papo, você não aproveitará nada.
E por falar nisso. É a primeira vez que trai o ma-
rido?
Célia ficou escarlate.
— É.
— Qual é o problema?
— Bem... ele é muito rápido. Não consegue
me realizar nem uma vez. Isso está me deixando
doente. Nervos, você entende.
— Entendo, sim. Venha para o quarto. Va-
mos resolver esse insignificante probleminha...
Ah! Você trouxe o dinheiro?
— Sim, sim — Célia abriu a bolsa. — Está
aqui.
Sérgio pegou os dois milhões.
— Olhe, se você não gozar, juro que lhe de-
volvo.
Quando Célia viu o dinheiro na mão de Sérgio,
suspirou fundo, num suspiro de alívio, pois come-
çou a sentir que aquele belo jovem era simples-
mente um maravilhoso homem de aluguel.
Entrou no quarto mais animada.
— Quer que eu a ajude a despir-se?
— Não, não...
— Quer que eu saia?

146
— Também não, pois gostaria que você me
respondesse uma pergunta.
— Quantas você quiser.
— Juliana me disse que você não goza... não
goza... como diremos.
— Dentro?
— É isso mesmo. Você entende. Eu nunca
tive filhos. Aliás, só tenho um ano de casada...
Pô, estou me confundindo toda.
— Calma, calma. Não gozo nem dentro e nem
fora. Sei que minhas freguesas não gostam de fi-
carem sujas de espermas.
— Mas você nunca se realiza?
— Tenho a minha garota para essas coisas.
— Ah!
— Agora estou pronto, vamos?
Célia olhou para a cama meio embaraçada.
— O que há? Não gostou dos lençóis? — disse
Sérgio brincando. — São de pura cambraia. E
bordados a mão. Estão assim entreabertos, por-
que a empregada os trocou uma meia hora antes
de chegarmos. Cada freguesa, uma muda de rou-
pas. É por isso que cobro caro. Ah! Vocês mulhe-
res, me dão uma despezona. Bem. Bem! Entre
no meio dos lençóis e se cubra. Eu entendo como
são essas coisas da primeira vez. Eu viro o rosto.
Avise quando poderei olhar. Ou melhor, vou con-
tar até três. U m . . . dois... lá vai. — Sérgio virou-
se de um sopetão e Célia já deitada, puxou os len-
çóis até o queixo, rindo alto.
Sérgio subiu na cama deitou-se e se virando
para ela abraçou-a e a puxou para si. Beijou-lhe
o rosto, o pescoço, foi descendo até o seio e ficou
um tempinho sugando-lhe o bico. Correu a mão
pelo corpo de seda e parou acariciando-lhe o clitó-
ris e quando a sentiu úmida, empurrou o membro
grosso e forte entrando em estocadinhas curtas e
espaçosas. Célia sentiu um arrepio percorrer-lhe
toda e abrindo bem as pernas, abandonando-se
mole e caída até sentir que gritava, com a vista
turva e o coração aos pulos, se agarrando doida-
mente ao homem que a tinha feito entrar nas lou-
curas do sexo e quando sentiu que ele ia sair, de-
sesperada, cruzou as pernas em suas costas e pediu
mais, mais e mais.
Sérgio foi saindo devagarinho e parou quando
os olhos dela se abriram e fixaram-se nele brilhan-
tes e morteiros.
— Posso sair, ou quer uma quarta vez?
— Por hoje chega. Quando posso voltar?
— Quando quiser.
— Amanhã está bem?
* * *
Quando Célia partiu, Sérgio rumou para o cen-
tro da cidade, e foi visitar Luís na loja onde o mes-
mo trabalhava, na rua Augusta.
— Olá, INPS. — Era assim que agora tratava
o amigo. Luís nesta tarde estava alegre e res-
pondeu :
— Olá, lord Sérgio, foi bom você aparecer, por-
que vai comemorar em minha companhia um gran-
de efeito.
Os olhos de Sérgio eram interrogativos.
— Um ano de trabalho. Um ano d e . . .
— Gravata, sanduíches e de miséria.
Sérgio foi falando e inumerando nos dedos
uma porção de coisas.
Luís ria.
— Não esqueça de botar aí. Saúde, alegria, fe-
licidade, estudos e encontro com Deus. Ou melhor,
encontro com minha alma.

148
— Baaaaa... alma. Sai pra lá. Não entendo
como você, um rapaz tão inteligente, vai acreditar
em uma besteira destas. E por falar nisto tem visto
o "irmão" Gustavo?
— Claro. Não se esqueça que freqüentamos a
Federação Espírita juntos.
— Ainda você não largou desta palhaçada.
Luís deu uma piscadinha e gracejou:
— Na verdade, meu filho, você está com in-
veja, porque Deus me escolheu para serví-lo e o
deixou pra trás.
— Pra trás, mas cheio do dinheiro, meu caro.
Dinheiro que me faz muitíssimo feliz. Se você visse
a casa que acabei de comprar lá na Cantareira, lam-
beria os beiços de prazer. Ainda está na lage do
teto, pois vai ser com jardim no telhado e já gastei
um "bi". Tem até sauna. Se você quiser, posso le-
vá-lo lá agora, para você a conhecer.
— Só se for depois das dez horas.
— Depois das dez?!
— É, estou fazendo horas extras. Você sabe,
o Natal está chegando e quero ver se compro um
carrinho.
— Ora, Luís. Quantas vezes é preciso dizer
que é só você escolher o carro. Deixe o resto por
minha conta.
— E quantas vezes você quer que eu diga que
um verdadeiro Espírita não aceita presentes com-
prados com dinheiro... dinheiro...
_ Sujo.
— Nem quero falar neste assunto, Sérgio, per-
doe-me, sim. Se você soubesse quantas e quantas
vezes imploro a Deus que o tire desta vida. Não
sei porque ele não me atendeu até agora.
Sérgio caiu na gargalhada.

149
— É porque eu estou pedindo ao demônio que
o traga de volta a essa luxuosa e prazerosa vida.
— Nem brinque, Sérgio, prefiro que ele me
leve para o além. Eu sou tão feliz lá na Federação.
Que beleza! Que maravilha de mundo se encontra
dentro daquela casa. Foi lá que meu espírito re-
nasceu forte e brilhante para entrar no reino da
paz e tranqüilidade. Foi lá que aprendi que sou tão
rico, ou melhor, milionário por poder ser feliz com
pouco dinheiro ganho honestamente. Foi lá tam-
bém que meu espírito renasceu para compreender
que mais vale levantar um mendigo esfarrapado
da rua, do que levantar uma enorme quantidade
de dinheiro fácil. Oh! meu amigo, se você soubesse
como é limpo e puro o caminho que vejo na minha
frente, e que continuarei a percorrer daqui por
diante. Se você soubesse como as preces pronun-
ciadas por mim dentro da Federação lavam o co-
ração de toda a negrura que estava vestido. Juro,
Sérgio, que hoje em dia sinto um maior prazer em
pegar um cachorrinho sarnento na rua e tratá-lo
com carinho, do que entrar no mais luxuoso carro
do mundo. É isso que quero que aconteça a você.
Sérgio olhou rápido a sua volta e dando uns
passos, foi até perto de uma porta e batendo com
os nós dos dedos do indicador e médios na madeira,
disse alto:
— Isola. Sai pra lá, Luís, vá desejar isso aí
pra sua vovozinha. Você está biruta, homem. Eu
trabalhar e ser contribuinte do INPS, e ficar den-
tro de um lugar misturado com espíritos! Deus
me defenda e me mande mais mulheres, pois pre-
ciso terminar a minha casa. Isso é só o que quero.
Bem, que horas é a comemoração, já que você só
sai às dez?
— Na hora do meu jantar, que será das oito
às nove.
— Então vou telefonar ao Lúcio, que não po-
derei jantar com ele. O coitado vai ficar puto da
vida, pois faz dias que não apareço.
— Quer dizer que você continua com a ami-
zade com o Lúcio?
— É! Tenho curtido um barato com ele. É
um grande camarada. Gosto da companhia dele.
Be é realista e gosta de aproveitar a vida. Junto
dele não encontro pessoas falando de coisinhas de
alma e outros bichos. Na roda dele é só gente que
pensa em coisas boas. Boas bebidas. Boas comi-
das, boas mulheres, bons divertimentos. Enfim só
na boa vida. Isso é que é gente. No meio deles a
gente vibra, se anima, sente dentro da gente o pra-
zer de viver.
— Aqui na terra, eles se sentem felizes, mas eu
quero ver lá do outro lado. Quero ver essa gente
chegar lá e não apresentar nada ao Senhor, de bom,
de limpo, de concreto.
— Vamos parar com essa lenga-lenga, né Luís.
A gente fica de saco cheio, pô. Olha, já tive uma
ideia. Quando chegar a minha vez de apresentar
a bandeja ao Senhor, você, faço votos que já es-
teja lá, bota alguma coisa na minha bandeja es-
condido de Jesus, tá? E agora... Bem, a gente
pode usar o telefone da loja?
— Claro. Olhe, está ali.

Às oito horas Luís e Sérgio estavam sentados


cm banquinhos giratórios em frente ao balcão, for-
mato ferradura de uma lanchonete da rua Augus-
ta, quando Gustavo chegou, cumprimentou os dois
e foi dizendo:
— Vi agora mesmo o dr. Lúcio lá em frente
a loja perguntando por você, Luís.
— Por mim?
— É.
— E onde ele está?
— Se não me engano está falando com o ge-
rente.
— Vou até lá e volto já. Olhe gente, não es-
colham coisas muito caras porque o dinheiro está
curto. — Luís saiu rindo, piscando para os amigos.
Voltou depois de alguns minutos, sem alegria.
— O que foi? — Sérgio perguntou logo.
— Lúcio queria saber se você estava por aqui.
— Lúcio já está me enchendo o saco. O que
ele tem com a minha vida?
— Parece que ficou zangado por você preferir
jantar com a gente.

Sérgio levantou-se vermelho de raiva.


— Espere aí, vou lá quebrar a cara de Lúcio,
já estou cansado de dizer a ele, para não se envol-
ver comigo.
Luís e Gustavo o impediram.
— Deixe isso pra lá. Vamos, Sérgio. Não es-
trague o meu melhor dia, por favor.
Sérgio sentou-se.
— E o que foi que você disse a ele?
— Que você estava aqui.
— Aqui na lanchonete?
— Não, não mencionei o endereço
— Ah!
— Bem, bem. O que vocês pediram?
— Sanduíche de mortadela, está bem ou é
muito caro? — Sérgio falou, já rindo.

152
u
— Não exagere. Não estou tão duro" assim.
Vamos gastar até cinqüenta cruzeiros, tá?
— Deixe o sanduíche mesmo, Luís, faz um sé-
culo que não passo tão bem; hei garção, veja aí,
também um refrigerante.
Os três comendo e depois Sérgio falando:
— É, desculpe-me amigo, mas acho que nunca
mais poderei voltar a ser pobre. A mortadela está
brigando lá dentro do meu estômago, com o uísque
escocês que diariamente tomo em pequenas doses.
Pô, estou sentindo um tremendo enjôo de estômago.
Os três caíram na gargalhada.
* * *
Sérgio não tinha conseguido dormir, por isso
estava às cinco horas da manhã, sentado no terraço
cem os olhos fixos na escuridão, que ia pouco a
pouco se afastando para dar lugar aos primeiros e
tênues clarões que começavam a puxar as sombras
que envolviam o grande lago e fazer com que suas
águas, movendo-se lentamente, açoitadas pela leve
brisa matinal, se encrespassem com uma esverdea-
da renda, sobre o espelho de cristal e abrindo toda
a claridade de suas brilhantes águas, recebessem o
dourado pálido da aurora que nascia e abraçando a
espargindo para a imensidão das matas, que rodea-
vam em mil tonalidades de verdes que por sua vez,
sacudiam de leve, levemente seus galhos para acor-
dar os pássaros que, semelhantes a pequenas flores
coloridas, batendo suas frágeis asinhas, volteavam
cantando, por sobre aquele recanto que carregava
quase toda a beleza do universo.
Uns minutos mais e o lago bem azul se mis-
turava ao brilho amarelo do sol e levavam uma
impressionante cor a tudo que o cercavam. Sérgio
levantou-se e a passos lentos se encaminhou para
o jardim e respirou fundo o forte perfume que ema-
nava das flores e vegetação. Seguiu o caminho do
ancoradouro e entrando na lancha levou-a até o
meio do lago e desligando o motor deixou-a entre-
gue à brisa.
Interlagos! Sim, Interlagos era a glória de
São Paulo.
Nisto um barulho de motor corta a beleza bri-
lhante daquela imensa pérola, e Sérgio vê uma
lancha se aproximando.
— Sérgio, meu caro Sérgio, sou eu, Lúcio.
Sérgio mordeu os lábios e saindo do mundo da
magnificência ficou encarando o médico que nes-
ta hora, lhe parecia um verdadeiro fantasma.
As lanchas, lado a lado.
— O que você quer?
A voz de Sérgio era fria.
— Desculpe-me fazê-lo despertar do mundo
maravilhoso em que estava, mas não pude agüen-
tar mais o desejo de ver-lhe, de falar-lhe. Faz hoje
exatamente um mês, que não nos vemos. Afinal,
o que aconteceu?
— Não entendo a troco do que você quer sa-
ber se aconteceu alguma coisa.
— Em nome de nossa amizade. Penso, meu
caro Sérgio, se um amigo que é chegado desaparece,
sem revelar os motivos, a obrigação do outro ami-
go é saber se alguma coisa desagradável está pas-
sando.
— Não esquente, Lúcio. Só não gosto que você
fique andando atrás de mim como naquele dia lá
com o Luís e o Gustavo. Fica chato, né. O que
eles vão pensar de mim! Luís já está descontente
com a vida que levo. Agora fica você se preocupan-
do comigo de um jeito gozado. Até parece que...

154
O coração do médico bateu forte.
— Parece o que, Sérgio?
— Que você é meu pai.
— Pai?!
— Pai, e daí? Você não tem idade para ser
meu pai?! Tem? Não tem?
O médico olhou para Sérgio espantado e de-
pois começou a rir.
— Que imaginação!
— Que outra imaginação poderia ser, hem
Lúcio? Já lhe disse uma porção de vezes, se você
continuar com essas insinuações bestas para o
meu lado, acabo essa amizade de uma vez por
todas.
Os olhos do médico percorreram as águas e
pararam lá no fundo onde as matas se encontra-
vam com o céu. Depois foram voltando até fita-
rem em Sérgio... Precisava fingir.
— Não seja insignificante e vulgar, meu caro
Sérgio...
— Bem, se repetir outra vez isso, meu caro
Sérgio, deixo-o aqui sozinho.
— Como devo falar então?
— Sem frescura. Fale direito. Com gíria ou
sem gíria, mas pra cara da gente. Fale como gente.
Não como um boneco de salão de madame. Deixe
isso para o calor, a fumaça, o cheiro de bebida e a
falsidade da gente que você freqüenta. Agora es-
tamos no meio da natureza...
— Meu Deus, meu c a . . . quero dizer, Sérgio.
Que romantismo o envolveu? Seria o esplendor
dessa linda manhã, que o deixa assim, caído do do-
mínio daquelas mulheres de terceira categoria?...
Quando você está com suas mulheres fala dife-
rente?
Sérgio riu.
— Que terceira categoria, amigo! Então você
também é de terceira categoria, pois elas são da
sua classe. — Sérgio torceu os lábios com ironia. —
São da alta classe.
— Sérgio, Sérgio ,não vamos continuar com
alfinetadas. Vim hoje para lhe dizer que essa alta
classe que você desdenha está sentindo a sua falta
e o convida para um jantar, hoje, na mansão do
banqueiro Ivo de Castro Mendes.
— Hoje não. Hoje não dá pé. Marquei com
uma freguesa especial que paga muito bem. Faz
um mês que freqüenta a minha casa. Quando che-
gou estava um palito. Apareciam até as costelas.
Tinha olheiras fundas, cara amarga. Nunca ria.
Culpa de tudo o marido, espécie galo. Sabe, vai prá
frente e para trás e goza. Olhe, agora está uma
beleza! Gorda, bonita, risonha, alegre. Nem pa-
rece a mesma. Célia é um barato. Me dá sempre
dois mil cruzeiros de cada vez.
Lúcio precisou sentar-se para não cair.
— Que foi, Lúcio?! Como você está pálido!
O médico não conseguia puxar a voz lá do
fundo da garganta, por mais que quisesse.
— Deve ser o balanço das ondinhas — conti-
nuou o jovem. — Acho melhor a gente ir para casa.
Lá você toma alguma coisa quente. Vamos. Venha
para a minha lancha.
Apesar do coração de Lúcio quase estourar de
alegria pelo interesse de Sérgio, conseguiu falar:
— Não é nada. Um mal-estar passageiro. Não
estou acostumado com as águas. Agora vou para
a clínica, mas desejando levar a sua promessa que
aceitará a minha companhia para um jantar
amanhã.
— Amanhã? Está bem. Apareço por lá. Chau.

156
14.° CAPÍTULO

Célia diante do espelho puxava a ponta da


orelha para enfiar o brinco, chuveiro de brilhantes,
que ganhara de Carlos na noite anterior. Sabia
que eram jóias tiradas dos ladrões que assaltavam
luxuosas mansões, dos bairros, jardins de São
Paulo. (Tinha um cofre cheio delas.) Mas não se
importava e nem falava nada ao marido sobre isso,
pois eram tão felizes agora! Nada mais de brigas,
de incompreensões. Célia nem se incomodava que
o delegado continuasse a gozar tão rápido, pois ela
tinha onde ir matar a fome do sexo. E pensando
assim, foi que ergueu-se e desceu as longas esca-
darias para receber Lúcio.
Usava uma calça super justa que fez o mé-
dico logo dizer:
— Onde está a Célia de um mês atrás?
— Encoberta pelo nevoeiro sem contornos e
esquecida para sempre.
— É, aquela Célia não tinha contornos, por-
que a que tenho na minha frente...!
Célia se pendurou com os dois braços no pes-
coço do médico e jogando o rosto para o ar, falou:
— Oh! Lúcio, estou tão feliz!
Lúcio desprendeu-se delicadamente e voltan-
do-se, serviu-se de uma bebida e bebericando aos
golinhos, olhou-a bem nos olhos e disse:

157
— Pelo visto, Carlos está bem melhor, ou se-
rão os calmantes receitados por mim que a cura-
ram?
Célia foi até a janela, para o médico não ver
a vermelhidão que se espalhou pelo seu rosto e res-
pondeu com voz sumida:
— É. Carlos melhorou.
— Ótimo. Isso merece ser celebrado. Às oito
horas, virei buscá-los para um jantar. Que tal a
idéia?'
Célia virou-se rápida.
— Hoje?
— Hoje.
— Ah! Hoje não posso.
— Porque?
— Bem, bem... Carlos está de plantão.
— Ah! Então telefonaremos a ele e você lhe
diz que irá fazer-me companhia para um jantar,
na casa do banqueiro Ivo de Castro Mendes. Juro
que ficarei aborrecido se você não vier comigo.
— Estou desanimada para sair, Lúcio. Fico-
lhe imensamente grata. Para você não ficar ma-
goado comigo, oferecer-lhe-ei o melhor jantar do
mundo na próxima semana. Direi a Carlos que
você nos convidou. Mais uma vez está confirmado
que você é o nosso melhor amigo.
— Neste caso deixo-a neste instante, querida
Célia, pois o tempo não para. Já são dezoito horas,
prometi ao estimado Ivo, que estaria em sua casa
exatamente às vinte horas.

* * *
Mal Célia viu o carro de Lúcio atravessar o
grande portão de ferro dourado da mansão, entrou
no seu carro esporte de linhas baixas e saiu à toda

158
(pois não confiava no trânsito de São Paulo), em
direção à Riviera Paulista, pois Sérgio não gos-
tava de ficar com a lancha parada muito tempo
no ancoradouro. Temia a "Polícia de Costumes".
Com aquele horrível congestionamento de trânsito,
ela não percebeu que Lúcio a seguia no seu carrão
preto, de vidros também pretos.
E Lúcio viu quando Sérgio a recebeu e parti-
ram com o barulho do motor da lancha cortando
o silêncio que aquela hora cobria o lago.
15.° CAPÍTULO

Sérgio ficou pensando como resolver o proble-


ma de tantas mulheres, já não tinha mais tempo
para tantas freguesas, por isso resolveu ir à cidade
em busca de algum "Call Boy" que pudesse aju-
dá-lo. Ficou uma porção de tempo dentro de seu
carro perto da "sua ex-esquina", lá no Trianon.
Logo avistou dois jovens, altos, bonitos, ele-
gantes e bem vestidos. Quando chegou perto viu
que tinham belos dentes e cabelos compridos e bem
tratados.
— Oi.
Os jovens olharam Sérgio com desconfiança.
— Eu também já "pesquei" nesta esquina, não
precisam ficar com medo, não sou tira, não.
— Pô, que susto! A gente sempre deve andar
prevenido, pois a polícia agora anda catando todos
de nossa profissão.
— Escute, eu tenho uma proposta a lhes fazer.
Sou "Call Boy", cem uma luxuosa casa funcionan-
do lá em Interlagos. Tem mulher prá burro me
procurando; se vocês quiserem trabalhar comigo.
— É interessante. Elas pagam bem?
— O que a gente pedir. Aliás, depende do tra-
balho.
— Olhe, nem é preciso mais ensinar como lidar
cem essas milionárias, nós sabemos de tudo, tem
cada loucona que dá medo.
— Bem, eu já não tenho paciência com esse
tipo de mulher. Prefiro as que gozam rápido e sem
problemas. Mas se vocês não se importarem exis-
tem as sádicas e as masoquistas. Aquelas que pre-
cisam de algo diferente, misterioso. Essas pagam
uma fortuna. Vocês podem ficar com elas.
— E quando a gente começa?
— Agora.
— Vamos já.
— Vocês têm carro?
— Ainda não. Começamos a um mês. Já te-
ríamos se a polícia resolvesse ir prender ladrões,
assaltantes, enfim o verdadeiro criminoso. Em vez
disso fica levando tudo que é "Call Boy".
— Então é bem melhor para vocês trabalha-
rem em ambientes fechados.
* * *
Os três começaram a trabalhar a uma hora.
Um empregado ia buscar as freguesas que te-
lefonavam e tinham a hora marcada, do outro lado
do lago, e as levava para uma bela sala, onde uma
empregada as recebia e as encaminhava para os
quartos que ficavam completamente separados.
Algumas reclamavam e exigiam Sérgio, mas
depois de estarem com os novos "Call Boys", saíam
contentes. Só teve uma vez que Sérgio precisou
sair do quarto, pois uma senhora de sessenta anos,
fez questão de ir com Sérgio, e não aceitou os
novos", por mais que a empregada argumentasse,
mostrando as qualidades dos mesmos.
— Pago bem e só faço em raras ocasiões, por
isso quero estar com você que já conheço bem.
— Está bem, está bem. Eu estou aqui para
isso. Agora não sei porque você vem tão poucas
vezes. É uma mulher bela e charmosa.
— Porque a minha filha sai com o marido to-
das as noites, e acha que o meu tempo de prazer
já passou. Então o que faz? Obriga-me a ficar com
os netos, apesar de termos nove criados sem incluir
a pagem da noite. Você sabe, tenho cinco netos,
que amolam a noite inteira. Querem frutas, sucos,
doces, fazer xixi. A empregada da noite fica à dis-
posição deles, mas a minha filha hão confia muito,
por isso resolvi sair à tarde. Olhe, nem vou tirar
a roupa. Tiro só a calcinha.
— Não tenha pressa. Você sabe que a conheço
nuazinha, e a acho encantadora. Agora venha cá.
Deixe-me ajudá-lá a despir-se.
Mas Sérgio riu quando viu que a mulher já
estava em pelo. Sérgio gostava daquela mulher de
idade, pois era doce e carinhosa durante a relação.
Enfim, na casa dos "Call Boy", apareciam mu-
lheres dos quatorze aos sessenta anos e eram tra-
tadas com o mesmo carinho.

* *
À noite Sérgio combinou com os rapazes, que
eles poderiam dormir lá na casa do lago e poderiam
usar a lancha, caso quisessem sair. Poderiam varar
a noite trabalhando, se agüentassem, pois as fre-
guesas proliferavam.
— Agora, gente, já são oito horas e eu preciso
ir jantar com um amigo. Amigo da alta. Ele está
me esperando na casa, sabe de quem? De uma
verdadeira princesa.
— Ainda existe isso?
Na alta classe existe. O último jantar a que
compareci foi na mansão de uma duquesa, jantar
com "buffet volant".
— Se você conseguir arranjar um amigo bem
rico e da sociedade, aprenderá. Chau, estou super-
atrasado.

* * •
Sérgio entrou no salão e todos os olhares se
voltaram para a sua bela figura, admiravelmente
vestida em um terno de veludo verde musgo com
um cravo rosa na lapela, camisa rosa-clara e gra-
vata rosa mais escura. Os cabelos negros de seda
se estouravam de brilho, mas sem esmaecer a lu-
minosidade do azul de seus grandes olhos som-
breados de longos e recurvos cílios pretos. Curvou-
se com elegância e risonho, para beijar a mão da
dona da casa.
Em um canto encoberto pelas dobras de sedas
das grandes cortinas, Lúcio sentia os nervos da
fronte crispar-se e uma agitação do coração fazia-o
respirar profundamente. Vendo que o olhar de
Sérgio percorria a sala, ele correu para uma outra
sala, sentou-se em uma poltrona, acendeu o cigarro
e soltando baforadas azuladas, desejou do fundo
da alma que Sérgio o encontrasse logo. Estreme-
ceu quando ouviu a voz grossa do moço:
— Oi, Lúcio. Sozinho?
Lúcio fingiu surpresa.
— Oh! Céus! Caro Sérgio, já não o esperava
mais.
— Desculpe-me, Lúcio, mas na Verdade, a cul-
pa é de meu trabalho. Imagine você. Tenho tan-
tas freguesas, que precisei arranjar mais dois co-
legas.
— Você precisa acabar com isso, Sérgio —
disse o médico levantando-se e dando uns passos
largos pela sala. — Você não pode continuar nesta

163
vida. Disse-me da última vez que discutimos sobre
isso que logo largaria tudo, mas já lá vai mais um
ano.
— Largo e morro de fome. Você é um grande
amigo, hem. Agora que a polícia me deixou em
paz, não sei porque largar. Você viu a casa que
estou construindo? É, meu caro, vai aquele di-
nheirão. Lembre-se, meu amigo, que não tenho for-
tuna de família. Preciso trabalhar, trabalhar en-
quanto o pinto agüentar.
— Sérgio, pelo amor de Deus, não use essas
horríveis expressões dentro desta sociedade
Sérgio colocou a mão na barriga e curvándo-
se, disse rindo:
— Sinto imenso, meu caro Lúcio, mas esqueci
que os homens da alta sociedade não têm pinto,
pois quase todas as suas mulheres passam pelo
pinteiro lá da casa do lago.
— Sérgio, Sérgio, o que adianta...
— Eu estar vestido de veludo com flor na la-
pela, pisando em tapetes da Pérsia e pondo a mão
em móveis de Florença, quando lá dentro, germi-
nam as sementes...
— Não queira me confundir com suas odiosas
alfinetadas. Só estou criticando o seu modo de
viver. Já lhe ofereci uma sociedade no meu Insti-
tuto. Você ganharia rios de dinheiro só para en-
treter as minhas clientes enquanto aguardavam a
vez de serem atendidas.
— Não, não Lúcio. Já lhe disse que enquanto
não houver polícia, haverá muitas e muitas mu-
lheres satisfeitas sexualmente.
— Mas se a polícia cortar sua carreira?
— Bem, aí então a gente aceita qualquer coisa
para continuar a viver rodeado de luxo. Uma vez
eu disse ao Luís e ao Gustavo, que daria até minha
alma ao diabo para não precisar andar com a car-
teira de trabalho pesando no bolso.
O coração de Lúcio cresceu, cresceu e ficou do
tamanho da terra. Sim, ele iria fazer quanto antes
com que aquele maravilhoso ser se atirasse em seus
braços, para sentir todos os prazeres do mundo des-
filando em sua frente. Sim, os seus sentidos esta-
vam sem vida, mortos, parados, enevoados, caidos
DO fundo de um poço negro, envenenados pelos ga-
ses mortíferos de um amanhã sem crepúsculo.
* * *
E no dia seguinte, logo cedo, a primeira coisa
que o médico fez, foi procurar Carlos na delegacia.
— Mas eu não posso ir prendendo assim. Se
o jovem tem uma casa e recebe visitas femininas,
não é crime nenhum.
— Não é crime? Então espere até que eu lhe
conte quem freqüenta aquela casa.
Neste instante entra um policial afobado.
— Dr., dr. Carlos, o Secretário da Segurança
Pública vem vindo para cá, pois pretende fazer uma
visita rápida em todas as delegacias. O pessoal da
imprensa está perguntando se pode entrar.
Carlos levantou-se para receber os repórteres.
— Com licença, Lúcio, volte outro dia para
tratarmos deste caso.
* * *
Sérgio aproveitou a manhã para ir buscar Luís
que havia pedido ao chefe uma licençazinha para
ir visitar a casa em construção de Sérgio.
Quando chegou na loja, Luís abaixado, expe-
rimentava sapato em uma jovem de longos cabelos
loiros.

165
— Oi, Luís.
Luís levantou a cabeça.
— Espere um momentinho, Sérgio, termino
num instantinho.
Ao ouvir pronunciar o nome de Sérgio, a loira
virou logo o rosto para o lado de Sérgio.
Era Célia.
— Olá, Sérgio!
Sérgio correu até ela.
— Olá, Célia, você por aqui, já conhecia o meu
amigo Luís?
— Claro. Já somos velhos amigos.
— Oh! Sérgio, foi bom você chegar, assim dará
um palpite sobre esse calçado.
Sérgio cruzou os braços e deu umas andadi-
nhas em roda da jovem, que torcia os pés diante
do espelho e disse:
— Maravilhoso! Cai-lhe como uma luva.
— Então levo. Aliás, vou levar três pares. Em
modelos diferentes, é claro, mas todos de pelica.
— Oba, você está com sorte hoje, hem Luís?
— Célia sempre leva muitos sapatos. Usa-os
e depois doa para os meus pobres.
— Luís é um ótimo rapaz, não sabia que ele
era seu amigo, Sérgio.
— Pois é. Amigo há dois anos. Amigos de
verdade.
Luís riu.
— Desse jeito vocês vão deixar-me estourar de
alegria. Não mereço tantos elogios, gente.
— Epa, o gerente vem pra cá, Luís, acho me-
lhor a gente ir saindo.
— Ele já deu-me ordem para eu sair, Sérgio.
Vamos lá.

166
— Até outro dia, dona Célia.
— Chau... Célia.

O carro de Sérgio ia varando o trânsito atra-


palhado da Capital, e quando entraram na Av. Nova
Cantareira, Luís falou:
— Escute, Sérgio, de onde você conhece a
Gaia?
— Ah! é uma das minhas freguesas e paga
muito bem.
Luís virou-se rápido e apertou o braço do ami-
go. dizendo:
— Você está louco, Sérgio!
O carro balançou doidamente.
— Louco está você que quase me fez derrapar.
— Você sabe quem é o marido dela?
Sérgio riu divertido.
— Um galo.
— Galo?!
— É. galo. Depois que você está pro lado dos
espíritos esquece até que galo é o cara que goza
rápido? Tá ca memória fraca, hem?
— Sérgio, não brinque com coisas sérias. O
marido de Célia é delegado de polícia.
— Ocooooo, estou tremendo de medo.
— Não caçoe, Sérgio. Ele é delegado.
— Pô, existem tantos delegados dando chifra-
das por aí, que um a mais nem vai dar na vista.
— Mas este é delegado de costumes. E você
está infringindo essa lei.
— Eu! Você bebeu.
— Sérgio, falo sério.
— E daí?
— Você não quer ver as coisas cara a cara.
Se ele descobrir alguma coisa, vai, vai... Olhe,
nem sei o que poderá acontecer. Só em pensar
sinto o corpo todo arrepiado. Ouvi dizer que ele é
um do Esquadrão da Morte.
— Baaaa. Você está exagerando. Vai ver que
esse cara até vai me agradecer. Você tinha que ver
a mulher dele quando me procurou, magra, esque-
lética, com os olhos no fundo. Tocos de unhas. A
coitada roía a unha até sangrar. E tem mais. Sabe
o que ela usava para se satisfazer? Legumes. Não
é preciso arregalar os olhos. Eram legumes no duro.
Hoje você viu, né? Está rechonchudinha, alegre,
bem disposta. Dá todas as noites pro delegado, sa-
tisfeita. Não briga mais com ele. Nem com as em-
pregadas. Não briga mais com ninguém. Pois é.
Pra você ver que falta de sexo é um veneno.
— Com tudo isso, ela está agindo errado.
— Ela pode ser. Mas não eu. Não tenho culpa
que elas vão me procurar. Se eu não o der vão falar
até que sou veado. Já pensam isso porque uso rou-
pas exóticas e bolsa a tiracolo... Ah! já tive uma
idéia, se ele descobrir alguma coisa vou dizer que
sou veado... Não está legal, essa idéia?
— Sérgio, você brinca tanto. Nem parece que
você dá valor à sua vida.
— Não se preocupe com ela, meu amigo Luís.
Se algum dia estiver em apuros, juro por tudo que
é mais sagrado que mandarei chamá-lo, pra você
me salvar. Tá bem assim? — Sérgio deu uma pa-
rada brusca, e gritou: — Olhe, Luís, lá está a mi-
nha casa! Está vendo só! Não é como eu lhe disse?
Linda, linda. Venha, venha por aqui. Cuidado com
os buracos. Pô, não sei quando vão asfaltar essa
rua. Vê se você agüenta subir por esse morrinho
sem escadas. Olha, faça como eu, jogue o corpo

168
pra frente e suba rápido. Assim. Ótimo. Quem nos
ver, nem vai dizer que somos da cidade. Hoje em
dia quem sabe subir morro com sapato de sola no-
vinha, é um herói. Cuidado, Luís, não pise aí, que
semeei amores-perfeitos. Oi, aí também não, se-
meei azáleas
Luís parou duro de pernas abertas.
— Bem, então me ensine a voar.
— Nem tanto. Pode pisar na grama. Grama
já vem em pedaços.
— Pedaços?!
— É, sei lá como se chama, veja ali está um
monte dela. O jardineiro coloca um pedaço perto
do outro, bate em cima até ficarem todos no mes-
mo nível, depois joga terra preta por tudo, e está
aí, este rico e' verdinho gramado.
Luís ia andando na ponta dos pés pelo imenso
gramado que levava a uma grande construção, que
já mostrava que seria uma casa estilo normando.
— Que tal, hem, Luís?
— É, é bonita.
— Pô, que desânimo. Nem parece que fica
contente de seu amigo estar ficando rico.
— Se fosse de outra maneira.
— Chiiii, já vem você, com essa conversa. Pelo
menos admire o estilo. Que diabo, não é todo dia
que se vê um casarão desse. Daqui alguns dias essa
escadaria estará pronta. Será de mármore. Már-
more de verdade. Não desse granito que anda por
aí, e que dizem ser mármore. Eu adoro essa casa,
Luís. Adoro no duro. Ela representa muito para
mim. Todo mundo sonha ter alguma coisa de mui-
to grande, de muito caro, de muito luxuoso e o meu
sonho está aí. Está.

169
— Mas isso tudo é grandioso, Sérgio. Aí ainda
vai muito dinheiro. Para botar de pé, cora telhado
como está a sua, é fácil, mas acabamento é que é.
Você já pensou...
— Já pensei, sim. Por isso aumentei o meu
serviço, arranjando mais dois amigos para ajudar-
me. Ontem fizemos um dinheirão. Você sabe, as
freguesas são podres de ricas, e muito enjoadas.
Uma não quer ser vista pela outra. Então a gente
mostra a elas que tem que ter empregadas para
recebê-las, a antecâmera do quarto e depois, o
quarto deverá ter duas portas: Uma para se en-
trar e a outra para sair. Na saída o piloto da lan-
cha esperando-as e levando-as para o ancoradouro.
Aí terá que esperar algum tempo para receber a
outra. Tudo isso vai um dinheirão. Por isso elas
nunca reclamam quando aumentamos o preço.
Também tem muitas que estão me ajudando na
construção. Elas têm pena deste coitadinho que
não tem nem casa para morar.
— Tome cuidado, Sérgio. A polícia agora não
está para brincadeira.
— Polícia? Ah! já sei farejar um policial a
mil metros.
:
16.° CAPÍTULO

Lúcio voltou diversas vezes à delegacia, até que


conseguiu falar com Carlos.
— Então, Lúcio, me trouxe um motivo mais
forte para prender o jovem?
— Os maridos das mulheres muito bonitas
têm que temer os homens muito bonitos.
Carlos deu um pulo da cadeira.
— Você está insinuando...
— Não estou insinuando. Estou confirmando
que Célia está nesta hora lá na casa do lago.
Lúcio precisou segurar Carlos para ele não cair,
pois viu que o mesmo oscilava como uma árvore
açoitada por um vendaval.
— Mas antes que vá até lá, meu caro Carlos,
deixe-lhe explicar o que acontece com Célia, e como
você deverá fazer para ela ser uma esposa feliz.
O médico explicou tudo ao delegado, que pro-
meteu ser o homem mais controlado do mundo,
anualmente.
* * *
Sérgio acordou feliz, esticando-se entre os fi-
nos lençóis de seda (adorava a maciez da seda) e
olhando pela janela, já com as cortinas descerra-
das, ficou lembrando que não tivera nem um so-
nho. Dormira como um anjo, sentindo que crescia
dentro dele o amor pela vida, por aquele sol ama-

171
relo, pelo céu de um azul-anil, pelo canto dos pás-
saros, pelo verde das árvores e pelo aroma forte de
mil fragrâncias. Não pensou no lago porque assim
deitado não podia vê-lo. E obcecado pela embria-
guez maravilhosa de tudo o que o rodeava, nem
queria levantar e foi ficando, ficando. Sorriu men-
talmente . Nada no mundo poderia matar, de den-
tro dele, aquela leveza de espírito. Puxa, como era
bom ser feliz assim, assistindo a formação de um
novo e radioso dia, abandonando-se a ele de corpo
e alma!
Sim, de corpo e alma, porque neste dia era o
seu dia de folga. Nem mulheres, nem passeios, nem
jantares. Enfim, só ele, e o dia. Fechou os olhos
suspirando profundamente, pensando na constru-
ção de seu dia. Ia levantar-se, vestir um "short"
bem justinho, poderia ser o azul. O azul ornaria
com os seus olhos e com o céu. Pediria à empre-
gada para servir-lhe o café debaixo daquela árvore
frondosa, que deixa entrar por entre as suas ra-
magens um pouco de raios de luz. Depois iria ve-
lejar por todo o lago.
Pena é que os colegas tinham ido para a ci-
dade. Estava só com a empregada e os dois cães
policiais. Se os colegas estivessem lá, ele iria es-
quiar. Bem, poderia chamar o "piloto". Não, não
o chamaria, coitado trabalhara até às quatro horas
da manhã. Os últimos passageiros foram os co-
legas.
Os latidos dos cachorros e ele descerrando as
pálpebras levemente. Os latidos mais fortes e ele
saltando da cama e correndo para a janela.
— Onde pensa que vai, boneco?
O cano de um revólver, apontado para ele, bem
ali em frente e atrás do revólver vários policiais
uniformizados.

172
— Entendeu, né? Somos da polícia.
— E o que eu estou fazendo de errado?
— Prostituição.
Sérgio tentou um sorriso.
— Não se faz prostituição sozinho, faz?
— Não. No caso não. é preciso de conversa.
Temos ordem de prendê-lo por prostituição e vamos
prendê-lo por prostituição.
— Ok gente ! Procurem por todos os lados,
vamos ver se esse cara vai ganhar uns aninhos a
mais por usar tóxicos.
E os policiais viravam e reviravam, quebrando,
rasgando. Um entrou arrastando a empregada e
um outro apontava o revólver para os cães, que com
o rabo no meio das pernas, ganiam tristemente.
— Vocês podem quebrar e arrasar com tudo,
mas se maltratarem os meus cachorros, vão se
arrepender amargamente.
— Oh! ameaçando a polícia! — O policial alto,
encorpado em sua frente, balançou a cabeça para
baixo e para cima.
— Não estou ameaçando e nem ligando para
a sua arbitrariedade. Só não vou admitir que mal-
trate os meus cachorros. Se isso acontecer, juro
que vou até o Secretário de Segurança.
Mas os tiras rindo rodearam os cachorros e um
deles dando um tiro quase acerta um dos animais.
Sérgio nem ligou para o revólver apontado
para o seu peito e pulando a janela correu para o
meio da rodinha, distribuindo socos. Levou uma
coronhada na cabeça e só acordou na delegacia,
sentindo que alguém jogava um balde de água em
seu rosto.
Carlos, no corredor, ficou espiando pela porta
entreaberta, os investigadores mandarem Sérgio

173
tirar a roupa e como loucos pularem sobre ele, dan-
do-lhe socos por todos os lados.
Um investigador era baixinho mas com um
tórax de campeão, esse era o que mais batia usan-
do os punhos e a cabeça. Dava cada cabeçada no
estômago de Sérgio até que ele desmaiou nova-
mente. Aí Carlos entrou na sala.
— Leve-o para a carceragem. Não lhes dêem
água e nem comida. Quando acordar dêem-lhe ou-
tra surra. É segredo, hem gente. Não deixe os
outros funcionários saberem de nada.

No dia seguinte Lúcio foi buscar Sérgio e sen-


tiu uma pontinha de remorso lá no fundo quando
viu o estado lastimável do jovem, que para andar
precisava se encostar na parede.
Logo que avistou Lúcio, perguntou com voz
angustiada:
— E os cães?, O que eles fizeram com os ca-
chorros?
— Estão bem, não se preocupe, meu caro Sér-
gio. Vamos até a sala do delegado para assinar os
papéis burocráticos.
— Só se houver por aqui uma cadeira de ro-
das, pois não consigo dar nem um passo.
— Suponhamos, meu caro Sérgio, que se pu-
desse trazer para cá meu carro, então o seu pro-
blema estaria resolvido. Por obséquio aguarde-me
um minúsculo tempo.
— Pelo amor de Deus, Lúcio, não fique me
enchendo o saco com esse palavreado de veado. Es-
tou morrendo de dor. Esses filhos da puta quase
me mataram. Traga essa merda de carro logo. Não
vejo a hora de me ver livre dessa cadeia.

174
— Calma, calma. Não só trarei o carro, como
o delegado, para que possa lhe apresentar os do-
cumentos para você assinar.
Sérgio encheu a boca de ar e o foi soltando
aos poucos, enquanto o carro entrava de ré na de-
legacia e encostava bem rente a ele.
Nem acabou de entrar o carro, quando a fi-
gura alta do delegado assomou à portinhola di-
zendo-lhe com cara seca e voz gritante:
— Quero que saiba, moço, que a hora que o
pegar novamente tirando dinheiro das mulheres,
eu o tratarei como um cão sarnento. Isso quer di-
zer a pontapés. Vou ficar de olho em você. Quero
que saiba que ontem terminou a sua coleta de di-
nheiro fácil. Assine aí um termo de responsabili-
dade de que vai trabalhar em algum emprego ho-
nesto.
Sérgio assinou. Para sair de lá, assinaria até
a sua sentença de morte, se fosse necessária.
— Saiba também, mocinho, que não o mandei
mofar lá na detenção atendendo ao pedido de Lúcio.
Só por ele você está saindo daqui... preste aten-
ç ã o . . . INTEIRO.

175
17.° CAPÍTULO

O médico escolheu em sua mansão, para Sér-


gio, um quarto que abria suas portas envidraça-
das para um enorme terraço, de onde se via a pis-
cina no meio de um gramado verde, com suas me-
sinhas e cadeiras espalhadas pelo jardim. Sérgio
precisou ser carregado para o quarto e quando Lú-
cio pretendeu passar uma pomada para amenizar
a dor em todas as sr s partes inchadas, ele exigiu
uma banheira de água quente com bastante sal.
O médico entrava de minuto a minuto no
quarto de banho para se por a disposição de algum
eventual pedidinho.
Dentro da salmoura as dores foram passando
e Sérgio até brincou com o médico:
— Olha aqui, dr., quando precisar de uma re-
ceitinha procure o dr. Sérgio, ele entende de água
misturada com sal e outros bichos.
O médico estufava de felicidade. Nem queria
acreditar. Sérgio ali, bem na sua frente, ao alcan-
ce de suas mãos e peladinho.
De pé, perto da banheira, não perdia de vista
o pênis grosso que se encolhia, abandonado, flu-
tuando lá embaixo da água tépida e a cada balan-
cinho dele seu pênis latejava, em violentas contra-
ções e todo seu corpo se arrepiava, ouvindo aquela
voz grossa de machão, brincando com ele. Jurava
que até tinha vontade de chorar, pois Deus fora
tão bom mandando para ele aquele resplandescen-
te homem, onde ele poderia matar a sua fome de
amor. E quando Sérgio lhe falou sobre os cachor-
ros, que desejava tê-los lá com ele, Lúcio levan-
tou o rosto para o ar rindo contente.
— Do que está rindo? Desde que chegamos
você está parecendo um bobo. Só ri, ri, ri.
— Quer saber mesmo?
— Claro.
— Então olhe bem para a porta. Vou abrí-la.
Os belos olhos azuis se voltaram para o local
indicado. A porta se abriu e os dois enormes cães
saltam para cima de Sérgio, que levanta as duas
mãos defendendo o rosto e gritando:
— Ragão, Rolan, vocês me matam, ai meu es-
tômago. Ai, ai meu braços, minhas pernas, meu
tórax, calma, amigos, estou quebrado, se vocês sou-
bessem como apanhei. Mas se afastem um pouco,
quero vê-los. Puxa, quase morri pensando que
aqueles caras tivessem matado vocês.
Sérgio alisava a cabeça dos cães e deixava que
as lágrimas rolassem livres pelo seu lindo rosto.
Recordava das humilhações sofridas e disse:
— Só gostaria de ter entre as mãos o filho da
puta que me denunciou à polícia... Você já pen-
sou, Lúcio, a gente apanhar só porque tem um lu-
gar para foder? Juro que não me conformo...
Deite-se aí, Rolan, você também, Ragão. Ou me-
lhor, vão para o quarto. Passem, vamos. Escute
Lúcio, quero que os meus cachorros fiquem aqui
comigo, até que a minha casa fique pronta...
Sérgio franziu o cenho e depois se cobriu de um
ar triste e olhando para o médico, falou:
— Pô, que chateação, não poderei mais ter-
minar a minha casa. É, pobre não tem vez mes-
mo! Só em pensar que tenho que vender a minha
casa, sinto vontade de morrer. Não sei porque essa

177
polícia tem que se intrometer na vida da gente.
Sinceramente, sinto-me morto por dentro.
— Ora, Sérgio, pense primeiro em ficar bom.
Depois pensaremos na casa.
— Dê-me a toalha. Que há, hem, Lúcio, nun-
ca viu homem pelado?
O médico ficou escarlate.
— Você tem cada uma. Quer que eu o ajude?
— Não. A minha receita valeu. As dores es-
tão amenizadas. Veja, já posso andar sem preci-
sar de ajuda.
— Mas meu conselho é que fique de repouso,
meu caro.
— Está bem. De agora em diante vou aceitar
os seus conselhos. Vou ficar deitadinho e quieti-
nho, mas mande alguém buscar minhas roupas e
as casas dos cachorros.
— Sinto muito ter que lhe fazer uma terrível
revelação, meu amigo, mas infelizmente marginais
invadiram a sua casa e levaram tudo. Roubaram
tudo.
— Roubaram? Santo Deus! Você tem certe-
za? — Os olhos fixos em Lúcio eram de espanto.
— Não fique preocupado. Você não vai levan-
tar-se até a próxima. Quando estiver disposto da-
remos um pulinho até Paris, Roma ou New York,
aí você poderá comprar tudo o que desejar.
— Maravilhoso! E onde vou arranjar dinhei-
ro? Não esqueça que perdi a mina, meu caro Lú-
cio. — A voz de Sérgio era irônica.
— Não deixe que seu cérebro se infiltre dema-
siadamente nestes tristes acontecimentos, Sérgio.
— Lúcio passou a mão sobre a cabeça de Ragão
que sentado nas patas traseiras não saía de perto
da cama. — Você poderá gastar quanto dinheiro
precisar. Depois...
— Depois?
— Ora, meu caro Sérgio. Depois você pagará.
— Pagarei com o que? Não venha com con-
versa fiada para o meu lado. Se você quiser me
dar as roupas, a viagem e tudo o mais, dá logo,
mas não venha com lero-lero.
— Ora, Sérgio, pelo visto estou num daqueles
maus dias. Tudo o que falo só tende a lhe desa-
gradar. Vou pedir ao criado que lhe sirva alguma
coisa para comer.
— É uma boa idéia. Aqueles putos não me
deram nem um café.
* * *
Sérgio levou um tempão para comer as diver-
sas coisas que lhe foram servidas, porque os ca-
chorros subiam na cama e ele era obrigado a dar
um pedacinho de cada coisa que comia a eles. Se
parasse era puxado pelo braço pelas patinhas dos
mesmos.
Sérgio ria divertido, mas logo parava como se
picado por uma cobra e um sentimento de ódio
parava em seu espírito quando se lembrava dos
acontecimentos do dia anterior. Tremia ao lem-
brar-se que não tinha mais possibilidades de ga-
nhar dinheiro. Recostou-se e limpou devagar a
boca. E agora, o que iria fazer? Revirou o cére-
bro em mil idéias até cansar e quando o médico
entrou o encontrou dormindo profundamente.
O médico sentou-se em uma poltrona com o
encosto e os braços de marfim, esculpido em rosi-
nhas, e forrada com fino veludo de seda cor de
âmbar e com os olhos fixos no bonito moço, mais
bonito agora adormecido. Voltava a empolgá-lo
aquela sensação divinamente dolorosa das carnes
em latejos alucinantes, que o levaram a se curvar

179
e beijar os lábios entreabertos do jovem que se con-
traíram num ricto amargo. Voltou a recostar-se
e passou um longo tempo se satisfazendo nas ima-
gens que seu cérebro formava dos dois juntos, na-
queles momentos de infinita, delirante e insaciável
beleza e da paixão cheia de prazeres secretos que
emanavam de seu íntimo e se perdiam nos des-
maios do desejo insatisfeito. Sacudiu a cabeça mil
vezes, quando seu braço se alongava numa vontade
louca de descobrir e . . . Não, não. Agora teria de
contentar-se em observá-lo e matar aquele prazer
intenso que o devorava, mas faria tudo, tudo para
sentir dentro dele o jato de prata escaldante da-
quele belo corpo.
Levantou-se e foi até o largo terraço, mas como
o desejo não esmaecia, resolveu sair pelo dia bri-
lhante, onde a primavera gritava pelas bocas das
flores que surgiam em todos os recantos da cidade.
• % *

O médico voltou horas mais tarde e estranhou


um táxi parado no seu jardim, com chofer dentro.
Interrogou o mordomo.
— É o senhor Luís que veio visitar o sr. Sérgio.
O médico sentiu uma nuvem negra diante dos
olhos e precisou segurar o coração para esse não
pular de seu peito. Largou o mordomo falando so-
zinho e atravessou as inúmeras salas em uma cor-
rida desenfreada, subiu de dois em dois os degraus
da larga escadaria de mármore branco como leite,
manchada por espesso tapete, de uma sedosa pele
de carneiro, presa por longas varetas douradas, que
rebrilhavam de encontro a luz que jorrava de um
candelabro de cristal, que se prendia ao teto, por
grossas corrente de velho bronze, onde se viam nó-
doas esmeraldinas.

180
De um ímpeto abre a porta e para ofegante
com os olhos em brasa, fazendo com que Sérgio e
Luís o olhassem assustados. Sérgio pergunta:
— Que foi, Lúcio?
O médico enxugando o suor do rosto e fixando
-
Luís com o rosto carrancudo
— Pensei que meu caro Luís não voltasse a
respirar o mesmo ar de um homem, que considera
depravado.
Os olhos de Luís se voltaram para Sérgio.
— Pensei que pudesse confiar em você, Sérgio.
— Eu não comentei coisa alguma com Lúcio
a respeito de nossa antiga conversa, Luís.
— Saiba, meu caro Luís, que Sérgio não pode
sofrer emoções, está doente, por isso peço-lhe o
obséquio de cooperar para sua melhora.
— Deixe-o ficar, Lúcio, Luís até me anima.
Mandei chamá-lo para que ele providencie a venda
de minha lancha e de meu carro, para pagar o em-
préstimo que fiz no banco. Amanhã vence o prazo
e como sei que você é um homem super ocupado,
chamei Luís para ajudar-me.
— Não creio que Luís possa resolver coisa al-
guma, já que acabei de saber que o barco foi afun-
dado bem no meio do lago, por pessoas desconhe-
cidas.
Sérgio ficou branco como cera:
— Mentira.
— Porque eu haveria de mentir?
— Sei lá. Ora, desculpe-me. Aliás, que não
pronunciei a palavra mentira pensando em você.
Sinceramente, não estou entendendo mais nada.
Sou preso num dia que não estou fazendo nada.
Apanho como se fosse o pior assassino, arrasam
minha casa, roubam minhas coisas, afundam o meu
barco, e por falar nisso, onde está o meu carro?
— A polícia o levou, mas já providenciei para
que o meu advogado o libere.
— Tudo muito estranho, você não acha, Luís?
— Luís não tem que achar nada, pois...
— É melhor você ficar quieto, Lúcio, nas mi-
nhas palavras mando eu. Repito, o que você me
diz Luís.
— Eu já disse o que penso de tudo isso, Sér-
gio, e agora se você me permite, eu me retirarei.
— Está bem, Luís, sei que você não gosta de
Lúcio, por isso não o prenderei, quando puder an-
dar, irei até a loja.
Logo que Luís virou as costas, Sérgio falou
aborrecido:
— Não gostei do modo como você tratou o meu
amigo. Ele veio atendendo um pedido meu e você
o trata como um intruso. Nem acabei de chegar e
você só distribuiu desgostos, pô Lúcio, às vezes
penso que você nem é meu amigo.
— Por Deus, nem fale isso, meu caro Sérgio.
Você nem pode imaginar como me aflige o coração
tudo o que você tem sofrido. Vou mostrar-lhe como
sempre mostrei, que sou seu verdadeiro amigo. Eu
sou amigo e não aquele horror do Luís.
Sérgio achou até graça no "horror" designado
ao Luís, e riu sem querer.
Foi o bastante, aquele cristalino sorriso para
encher o coração do médico de uma alegria luzi-
dia, como gotas de água caindo, tendo como fundo
o sol brilhante, vestido em ouro lavado pelas chu-
vas finas como fios de filigrama de prata, que
caíam constantes do infinito firmamento cinzento
azulado.
E o médico também riu saltitante e esticou o
braço peludo com mãos finas e com unhas bem tra-
tadas, vestidas com uma leve camada de esmalte

182
leitoso, mas transparente, tocou a campainha e or-
denou ao criado: — Champanhe francês e o me-
lhor jantar do mundo e servido ali no terrado.
Lúcio mesmo arrumou a mesa redonda de
marfim esculpido com pequenas rosas, que puxou
do quarto para o terraço e a cobriu com uma toa-
lha de fina renda, onde os pratos de transluzido
cristal feitos sobre encomenda na Boêmia, pousa-
vam ao lado de talheres de prata, com cabo de ma-
drepérola, que- se misturavam aos copos, também
de cristal, de uma transparência do nada, que se
erguiam elegantes, querendo ficar no mesmo nível
do redondo vaso, onde rosas amarelai quase se per-
diam abraçadas por florzinhas brancas como leite.
Sérgio rindo gritou:
— Não esqueça os pratos dos cachorros.
— Claro, olhe, já estão aqui.
— Aqui onde?
— No chão, ora!
— No chão? Ah! essa não. Eu quero que você
os coloque na mesa.
— Na mesa?
— E que sejam também de cristal transparen-
te como as águas do oceano e barabibaraba.
— Se você o deseja, pronto. — Lúcio colocou
os pratos na mesa e limpando uma mão na outra,
disse alegre:
— Pronto. Não está uma beleza? Agora dei-
xe-me ir a um aromático banho, e depois... jantar.
Na minha ausência, leia alguma coisa, Sérgio.
— Prefiro ouvir música.
— Um momentinho, que tal este disco? Mú-
sicas inesquecíveis.
Sérgio ficou alguns minutos atento e depois
disse:
— Gostei.

183
— Então até já. Olhe, não faça nem um es-
forçozinho, heim?
— Cheeeee, que frescura. Vai, vai, já estou
com fome.

Sentados na mesa frente a frente, os olhares


se cruzaram sendo os de Sérgio cheios de piedade,
pois ele jurava que o médico tinha passado batom
nos lábios, riscado levemente os olhos com lápis
preto e prendido os cabelos numa enorme fivela.
18.° CAPÍTULO

Na semana seguinte, Sérgio desembarcou no


aeroporto de Congonhas, com as malas estufando
de roupas das mais finas, das mais variadas.
Lúcio o esperava e encarou-o com um olhar
aprovador, sentindo que Sérgio veio ao mundo para
ser o símbolo da beleza e tudo aquilo. Logo, logo,
seria só dele.
— Pelo visto a viagem foi das melhores, caro
Sérgio, pois o encontro com a fisionomia resplan-
decente de saúde.
— A melhor possível, e tenho uma novidade.
Fui convidado para ser modelo de uma agência de
publicidade.
Lúcio oscilou de lá pra cá, como se açoitado
pelo vento, pálido como um defunto.
— Preciso primeiro estudar francês, pois a
agência fica em Paris. Oh! Lúcio, isso não é ma-
ravilhoso? Enfim serei artista como sempre dese-
jei Você preciso me ajudar. Agora quero ver se
vccê realmente é meu amigo. Sabe o que quero?
A voz de Lúcio estava sumida.
— Não.
— Quero que você hospede por um mês uma
moça francesa para ela me ensinar mais rápido.
Você sabe, francês de escola é demorado.
— Hum! Sérgio, e quando virá a beldade?
— É só eu passar um telegrama.
— Quantos dias você me dá para pensar?
— Uma hora.
— Bem, falaremos nisso amanhã,
— Hoje.
— Está bem, Sérgio. Dê-me o endereço. Eu
passarei o telegrama. Vá com a bagagem para casa
e me espere. Pode levar o meu carro, irei de táxi.
Sérgio tirou da bolsa o endereço e arrancando
a folha do caderninho, passou-o à mão de Lúcio.
— Não o perca, hem, pois só tenho esse.
O sorriso do médico era sem sorrir, e assim que
Sérgio entrou no carro, rasgou o papelzinho e jo-
gou os pedacinhos para o ar torcendo os lábios num
grunhido de raiva.
* * *
E quando voltou para a mansão, sentiu uma
agonia apertar a sua alma, encontrando Sérgio
mais encantador, com um fulgor diferente nos
olhos quando veio correndo a seu encontro per-
guntando ansioso:
— E então?
— Já expedi. *
— E quanto tempo leva para chegar?
— Depende.
— Do que?
— Ora, do telégrafo.
— Oh! Lúcio, estou começando a acreditar
que você é meu amigo. Quer saber de uma coisa?
Vou ficar morando aqui com você até minha par-
tida para a França.
— Partida! — Um frêmito percorreu o corpo
do médico. Ele devia fazer alguma coisa rápida
para impedir a próxima partida do moço e foi o
que fez no dia seguinte.
* * *
186
— Escute, Sérgio. Devo levar o seu passapor-
te para a retirada do resto de sua bagagem.
— Deixe que eu mesmo irei. Posso levar o seu
carro?
— Leve o seu.
— O meu! Então?
— Sim, já o liberei.
Sérgio abraçou o médico.
— Você é um amigo. Não quer vir comigo?
— Desculpe-me, Sérgio, mas devo comparecer
a uma conferência sobre operação plástica. Depois
irei para o instituto. À noite nos encontraremos.
Lúcio ia saindo, quando Sérgio gritou:
— Hei Lúcio, espere. — Lúcio parou virándo-
se, fixou o jovem com o olhar interrogativo. — Es-
cute aqui. Vou mandar buscar a minha empre-
gada. Essa casa aqui é muito grande. Hoje pela
manhã esperei o meu café um século e depois os
cachorros precisam de uma pessoa para que fique
a disposição deles. Posso trazê-la?
— Ela é bonita?
— Oh! está interessado? Então fique saben-
do que é uma mulata linda de morrer.
— Você sabe o que eu penso de mulher. Elas
nunca deveriam ter saído do paraíso. Mas não há
inconveniente. Traga-a e peça para a Josefa reser-
var-lhe o bangalozinho que fica perto do viveiro.
Está desocupado e tem um quintalzinho delicioso
para os seus cães. Agora com licença. Até à noite.
Mas não havia passado nem duas horas quan-
do Sérgio surgiu no Instituto falando nervosa-
mente^
— Lúcio, perdi o meu passaporte.
— Perdeu?! Mas como?!
— Sei lá. Procurei, procurei e não há meio de
o encontrar. Tenho certeza de que o deixei na bi-
blioteca. *
• \ •

187
— Não se preocupe, liberarei as malas, sem
passaporte. Tenho vários amigos lá.
***
Lúcio apresentou o passaporte de Sérgio e ti-
rou as malas, depois aí mesmo na ala internacio-
nal, apertou o botãozinho do isqueiro de ouro, en-
castoado de pequeninos brilhantes (mimo que per-
tenceu, disseram na casa de antigüidade em Paris,
onde ele comprou, a Sua Alteza, Duque de Valen-
tinois) e encostando a chamazinha cor de ouro,
que tremeluzia, no passaporte do belo jovem, o fez
virar cinzas.
Sérgio recebeu as malas e sorrindo, disse:
— Agora me ajude a procurar o passaporte. —
Lúcio o ajudava com um meio sorriso, sentindo uma
satisfação imensa em saber que a essas horas a
cinza do passaporte já nem cinza era.
* *Í

Algum tempo depois viu Sérgio acender um


cigarro tirado da elegante cigarreira de ouro, pre-
sente seu, e virando-se para o médico, disse:
— E agora, o que faço?
— Tire outro.
— Pô, mas dá um trabalhão.
— Deixe por minha conta. Amanhã tratarei
disso.
***

No dia seguinte, Lúcio disse que Sérgio não


poderia renovar o passaporte porque tinha passado
diversas vezes pela polícia.
Sérgio ficou branquinho.
— Quer dizer, que nem poderei mais aceitar o
emprego de modelo fotográfico?
— Por enquanto. Mas conversei com o meu
advogado e ele prometeu interferir.

188
— E quanto tempo demorará?
— Uns dois anos.
Sérgio pulou.
— Você está louco. Vou lá na polícia. Eles
tem que me dar o passaporte de qualquer jeito.
— Vá. Sérgio, e se eles o de ti verem, não man-
de me chamar.
— Pode ter certeza que não mandarei.
E descendo as escadarias com a boca espuman-
do de raiva, Sérgio entrou no carro e acelerando
FEITO um louco, saiu esmagando as flores que em
fitara engalanavam toda a beirada da larga ala de
passagem de carros, mas não chegou nem ao por-
tão, fez uma ré e voltou para o local de saída, aí
ficando uma porção de tempo, desfolhando o pen-
samento que o cobrira na hora que ia saindo.
Ele fora preso. O delegado quase o matara.
Se fosse voltar lá. Bem, o negócio era aceitar os
conselhos de Lúcio. Quem era ele? Quem era ele
para ir tirar satisfação com a polícia? Um pobre
diabo, sem emprego, sem nada. Aliás, com uma
bela casa por terminar. Sérgio ficou pensando,
pensando, que só gente com bastante dinheiro, ti-
nha direito de viver aqui no Brasil e ele nem que-
ria saber se no resto do mundo.
Lúcio era bem rico e fazia o que queria. Ia
pra cá, pra lá, como se fosse o Imperador do mun-
do. Ele andava com os bancos estufando de di-
nheiro e tinha as pernas bem firmes fincadas neste
asfalto duro da cidade. Cidade que para ele era
uma filha da puta, pois não queria deixá-lo ser
feliz. Arranjava um jeito de ganhar dinheiro suado
como o pedreiro, o lixeiro, o lavrador e a uma por-
ção de trabalhadores braçais, pois foder aquele
bando de mulheres famintas não era brincadeira,
não. A cidade não deixou. Agora tinha arranjado
um belo emprego de modelo e a cidade não dei-
xava. Mas ela ia ver. Ele iria cagar bem no marco
que marcava o início da puta cidade. Onde seria
o início? Onde?... Onde?... Ah! Perguntaria ao
Lúcio. Ela ia ver. Já sabia como ficar rico. Iria
ser sócio de Lúcio. — Sérgiu riu cinicamente. —
Sim, não custava nada enfiar no cu do médico, por
muito dinheiro. Ele também havia enfiado no cu
de tantas mulheres, lá na casa de Interlagos.
Bateu a porta do carro com estrondo e subiu
as escadas de cabeça erguida e foi em busca do
médico. Lá estava ele envolvido pelo flox do sol
que vasava da janela da biblioteca, com os lângui-
dos e aveludados olhos negros pousados suavemen-
te em um livro que lia ou fingia ler. Fechou o li-
vro e encarou Sérgio:
— Desistiu? Foi o melhor que você poderia
ter resolvido.
— É, resolvi outra coisa. Não vou mais para
lugar algum.
Lúcio arregalou os olhos. A voz saiu aos pu-
linhos.
— E onde pretende ficar?
— Aqui.
— Aqui onde?
— Com você.
O coração de Lúcio ficou do tamanho da terra.
Virou-se, para Sérgio não ver que seus olhos
se enchiam de lágrimas, mas Sérgio viu e indo a
passos leves, chegou bem atrás do médico e disse
com voz morna:
— Na hora que a minha casa estiver pronta
eu serei seu. Só seu.
Sérgio saiu da biblioteca e voltou para o carro,
saindo da mansão. Foi para a sua casa em cons-

190
tração. Passou a tarde toda lá, até ajudou a fazer
alguma coisinha e ficou marcando o que precisava.
— É, seu Sérgio, o ladrilho do banheiro está
diferente. As flores são umas mais claras que as
outras. É, seu Sérgio, falta fios, comutadores, lus-
tres, etc... Olha, seu Sérgio, mande mais cimento
branco. Marque aí que a porta giratória da gara-
gem está com a fechadura emperrada. O marce-
neiro não aparece há dias.
— É, seu Sérgio, essa viagem do sr. e as chu-
vas atrasaram tudo.
— Mas em compensação a grama está uma
beleza.
— O sr. viu os canteiros?
— Não.
— As flores estão brotando.
— Não diga, vamos lá ver.
Sérgio ficou de cócoras, perto da terra, onde
saltavam minúsculas pontinhas verdes, e lá dentro
dele o amor pela grande casa aumentou.
Voltou para a mansão com a enorme lista e a
apresentou ao médico que bem vestido e perfuma-
do o esperava para o jantar.
* * *
Três meses e a casa quase pronta. Mais al-
guns retoques e só.
— Você foi à obra hoje, Sérgio? — Era noite
e os dois conversavam no salão azul onde se viam
almofadas jogadas por todos os lados.
— Está linda! Linda! — Sérgio estendeu a
mão e pegou a de Lúcio. — Muito obrigado. Você
é um amigão.
Lúcio conservou-lhe as mãos presas e as aper-
tava levemente. Sérgio as deixou ficar. A sensa-
ção dentro do médico crescia, corria por todos os

191
poros de seu corpo como uma corrente elétrica.
Sérgio desprendeu as mãos de leve.
— Que calor! Acho que vou dar uma volta
por aí.
Os dois levantaram-se e estavam agora frente
a frente.
O hálito de Lúcio queimava como brasa e seus
olhos percorriam Sérgio avidamente. Sérgio! Sér-
gio ali bem pertinho, com os lábios vermelhos meio
úmidos, a pele marron, os olhos azuis, os cabelos
negros, os dentes branquinhos, o corpo alto, ereto,
o largo tórax cabeludo, os quadris estreitos e o
grosso e comprido pênis pendurado, e o médico não
se conteve. Levantou as mãos trêmulas e agarran-
do a cabeça do moço encostou os seus lábios ar-
dentes e ressequidos nos dele, e com sofreguidão
chupou-lhe a língua, os lábios, e a mão procurou o
sexo, e quando o sentiu duro, um vulcão explodiu
dentro dele e ajoelhando-se nos pés de Sérgio, pe-
diu, implorou, suplicou de mãos postas e olhos bor-
bulhando água.
Sérgio ficou com pena e estendendo as duas
mãos ao médico, puxou-o para si, e passando-lhe o
braço em volta da cintura e empurrando-lhe a ca-
beça para trás colou-lhe a boca na boca e com o ma-
cho crescendo terrivelmente de uma necessidade
fisiológica, arrastou Lúcio para um almofadão.
Depois ficou olhando as nádegas redondas e
rosadas do médico que como uma grande flor se
abriam para ele e lascivo, bestial, se atirou à flor e
entreabrindo as pétalas fez com que seu pau de
ferro as esmagassem até que os gritos e gemidos
do médico se perderam na tarde tépida e cantante.

192
No dia seguinte, dois olhos azuis e dois negros
se abriram no mesmo travesseiro e a voz de Sérgio
foi ouvida:
— Lúcio, compre-me um carro zero. O meu
é de 74.
— Mas os de 75 ainda não sairam.
— Dê um jeito. Importe um.
O médico encostou as nádegas no amigo e as
mãos procuraram o sexo.
— Que marca?
— Mercedes.
A mão de Lúcio alisava, afagava.
— Que cor?
— Branco.
— Já é seu. Logo que me levantar falarei ao
meu advogado e ele providenciará — e Lúcio sus-
pirou revirando os olhos.
E o tempo foi passando.
E Sérgio usando o médico e pedindo:
— Lúcio, quero móveis importados, Lúcio, que-
ro outra lancha.
Lúcio, quero isso, quero aquilo, e Lúcio cada
vez mais apaixonado ia dando tudo o que ele que-
ria. Fazia-lhe todas as vontades e o chamava de
"O meu deus".
A grande casa ficou pronta e Sérgio tentou ir
morar lá, mas Lúcio chorou, bateu o pé, fez um
escândalo dos diabos, e Sérgio acabou ficando com
pena e continuou na mansão do amigo, se dando
a ele todas as noites e todas as vezes que Lúcio
exigia com manhas e barulhos.
Sérgio vivia como um príncipe.
* * *
Mas um dia ele acordou com nojo de Lúcio e
resolveu acabar com tudo.

193
Quando o médico veio até seu quarto como fa-
zia todas as manhãs que não compartilhavam da
mesma cama, para o desjejum, Sérgio lhe disse
secamente:
— Acabou, Lúcio.
Espantado, o médico contemplou o jovem.
— Acabou o que, Sérgio, você me surpreende.
— Acabou o nosso "caso".
— Nosso caso?!
Sérgio esticou as pernas nos lençóis de seda
azul, bordado de um azul mais escuro, e falou com
desdém:
— Não se faça de desentendido.
— Sinceramente, não estou compreendendo.
Mas Lúcio compreendia. Tinha se tornado de
uma palidez mortal, tremia da cabeça aos pés e es-
fregando as mãos ia de lá pra cá, sem saber o que
fazer.
— Compreende sim, Lúcio, você é bem inteli-
gente para ver que estou enjoado de viver com um
homem, que tem um pinto como o meu. Não sei
se é do tamanho do meu, porque graças a Deus você
nunca mostrou, mas faço uma idéia. Se você real-
mente não compreende, vou ser mais claro. Eu
vou-me embora. Vou morar na minha casa com a
empregada e os cachorros.
Lúcio parou de andar e fixou o jovem com o
rosto coberto da dor mais lucinante vista até hoje
e foi em direção a Sérgio, com os dois braços esten-
didos e tentou segurar o rapaz pelos ombros.
— Não se aproxime. Já disse que estou com
nojo, nojo, nojo.
Um grito longo e agudo saiu da boca do mé-
dico e ele se jogou no chão, esperneou, chorou, im-
plorou, mas Sérgio foi inflexível.
— Não seja ridículo, chega de encenações.
— Sérgio, não vá. Eu farei tudo que você qui-
ser. Estou tristíssimo por o ter aborrecido em qual-
quer deslise involuntário. Você sabe, quando a gen-
te ama, sempre erra em alguma coisa que a alma
da gente ignora. Pelo amor de Deus não me deixe.
Eu o amo, eu o amo. — Assim falando o médico
se agarrou às pernas de Sérgio e sacudido pelos
soluços continuava a implorar.
Com um violento pontapé, Sérgio fez com que
o médico se encolhesse no tapete de veludo de mil
flores coloridas e com raiva arrancou o pijama, ves-
tiu uma roupa leve e foi para o quarto da empre-
gada dando ordens para que ela arrumasse as suas
coisas e pegando os cachorros colocou-os no Mer-
cedes branco e insensível, por dentro, varou o por-
tão dourado da mansão luxuosa prometendo nunca
mais voltar.
Suspirou feliz. — É, foram três anos até que
legais, apesar da insaciável fome de sexo de Lúcio.
— Suspirou mais uma vez. Até que enfim estava
livre e rico. Agora a cidade lhe parecia, cinzenta
sim, mas de um cinza que se pintava as coisas frá-
geis, que a gente poderia esmagar só com uma mão.
Distante vários metros da sua casa, apertou
um botão no seu carro e a garagem foi se abrindo,
e ele entrou com tudo o que ele mais amava. Os
seus dois cães.
* * *
Mas Lúcio não desistia e o perseguia por todos
os lados, sempre implorando.
Um dia mandou-lhe um recado. Queria uns
minutos de conversa já que ele pretendia ir-se para
sempre do Brasil.
Sérgio ficou com uma pena e foi, e a pena au-
mentou quando ele viu que o médico parecia uma
sombra do que fora.

195
— Obrigado por ter vindo, amigo.
Sérgio sorriu.
— Espero que tenha esquecido.
— Já esqueci, Sérgio. Vou para a Europa.
— Ah! fico bem contente. O que você queria
me falar?
— Antes de ir para sempre gostaria que você
aceitasse um último presente.
— Ora, Lúcio, você já me deu tantos.
— Mais um, não fará diferença.
— E o que é?
— Uma casa de repouso em Campos do Jordão.
Sérgio arregalou os olhos.

Sérgio sacudiu diversas vezes a cabeça, na es-


trada que o estava conduzindo à mais bela cidade
do mundo, e leu em uma faixa suspensa e esten-
dida na via que corta a Abernéssia.
— Seja bem vindo à Montanha.
Estava na cidade mais linda do mundo. Cam-
pos do Jordão.
Seus olhos corriam de cá pra lá. Verde, verde,
perfume de mil verdes. Parou num posto e pergun-
tou o caminho para o Mirante...
No Mirante tonteou quando seus olhos se es-
tenderam pela magnitude do imenso espaço verde
que se perdia ao longe, vestido de ondulantes mon-
tanhas, cobertas de frondosas árvores e rendados
pinheiros, deixando entrever aqui e acolá fragmen-
tos de luxosos mansões.
Logo descobriu a do médico, lá em cima no
alto do morro, revestida de esmeraldino gramado.
E Sérgio deu a volta pelo Mirante, e entrou na poei-

196
ra dourada, que subia rodopiando, arrancada do
chão pelo vento forte que começava agitar as ár-
vores e cobrir o céu de nuvens negras. Mas para
ele as sombras eram luminosas, pois o seu cora-
ção se abria de alegria só em lembrar que aquela
rica casa que ele vira lá de cima seria sua.

197
19.° CAPÍTULO

Luís tocou a campainha da mansão de Lúcio e


disse para o porteiro:
— Por favor, queira entregar a Sérgio este
convite. É de minha formatura.
— Sérgio não mora mais aqui, senhor.
— E onde está?
— Hoje penso que subiu para Campos do Jor-
dão. Ele estava aqui hoje de manhã e me disse mes-
mo assim...
— Vicente, aperte a mão do proprietário de
uma mansão em Campos do Jordão, pois Lúcio
acaba de me dar uma de presente. Vou para lá
agora. Tenho que correr, quero chegar antes de
Lúcio. Nós apostamos sabe? Lúcio disse que o
Mercedes preto dele corre mais do que o meu bran-
co. São duas horas daqui até lá.
— Penso que duas horas e meia, seu Sérgio.
A estrada tem muitas curvas e depois se a Dutra
estiver com o trânsito ruim, é muito mais. E por
falar nisso, chegou uma carta aqui para o senhor
Sérgio, quer entregá-la a ele?
Aliás que a pessoa que entregou disse que se
não encontrasse o senhor Sérgio para dar ao senhor.
— A mim?
— É.
— Disse mesminho o seu nome e ainda falou
assim: O Luís que trabalha na casa de sapatos. P198
— Ah! Então dê-me a carta.
Luís abriu e enquanto lia ia se tornando bran-
co, branco, branco, e os lábios iam se arroxeando.

Sérgio ou Luís:
Sérgio. Tome cuidado. Lúcio pretende en-
ganá-lo, dizendo-lhe que vai lhe dar uma casa
em Campos do Jordão. Mas na realidade é um
ardil para levá-lo até lá e castrá-lo. Lúcio o
odeia. Ele o fará, pois já fez isso uma vez. Sei
de tudo, porque ouvi a conversa entre ele e
meu marido que o incentiva, pois Carlos o
odeia tanto quanto o dr. Lúcio, pois pensa que
-nosso filho que está com três anos é seu. Todo
o cuidado é pouco, pois você deve saber que o
ódio tem mais força do que o amor. O Lúcio
tem um laboratório para pesquisas no subsolo
de sua mansão em Campos.
Célia.

Luís olhou para um ponto vazio sentindo as


pernas fraquejarem e precisou se encostar na gra-
de do portão para não cair.
— Vicente, que horas eles partiram?
— Faz uma meia hora. O que foi, alguém
morreu?
Luís passou as mãos trêmulas e suadas pelos
cabelos, e olhava para todos os lados. Aí teve uma
idéia.
— Olhe, Vicente, o Lúcio está em apuros. Pede
para eu ou Sérgio irmos encontrá-lo. Eu preciso
de um carro. Você tem que ajudar o seu patrão.
— Claro meu Deus, mas o que foi?
— Acho que foi um acidente, preciso ir cor-
rendo, não diga nada para ninguém. Vá buscar o
carro. Nessa hora os empregados estão ocupados
e ninguém vem para esse lado. Digo-lhe isso para
eles não ficarem preocupados.
— É só um instantinho, senhor Luís.

Luís corria a cento e quarenta pela Dutra, e


o Dart preto e cinza varava a serra guinchando
como um animal ferido.
Já em Campos perguntou pela casa do dr.
Lúcio.
— O que há, hem? Todo mundo pergunta pelo
dr. Lúcio hoje. Alguma festa?
— Alguém mais perguntou por ele?
— Um jovem de olhos azuis guiando um bo-
nito Mercedes branco.
— Faz tempo?
— Uma hora mais ou menos.
— E o dr. Lúcio, você viu se ele passou por
aqui?
— Quase ao mesmo tempo que o rapaz.
Luís voltou correndo para o carro e seguiu a
direção indicada.
• • 4

Meia hora antes, Lúcio e Sérgio frearam ao


mesmo tempo no pátio do casarão, coberto por flo-
cos de neblina branca, que cobria tudo e rindo des-
ceram do carro e Sérgio grita:
— Eu ganhei!
Lúcio força um sorriso e diz com a voz seca:
— É, Sérgio, você é sempre o vencedor.
Mas Sérgio não o ouvia, com os braços abertos
e rodopiando, ia dizendo:

200
— Que ar, hem! Essa terra é mesmo aben-
çoada por Deus. — E a cabeleira ao vento e a voz
de Lúcio balançando no ar.
— Não fique tanto tempo exposto ao vento,
meu caro Sérgio, isso pode trazer algum aborreci-
mento para a sua preciosa saúde.
— Você é incorrigível, Lúcio! Sempre zeloso.
Mas não tem importância, ficar doente e morrer
no meio desta beleza toda, é um verdadeiro privi-
légio.
— Mas não o quero morto — riu Lúcio, abrin-
do a porta. — Que tal? Gosta dessa decoração?
— Deslumbrante!
— Agora vamos tomar algo para matar esse
frío-
— Deixe, eu preparo.
— Não, eu preparo. — Sérgio nem reparou na
expressão fria do médico. — Enquanto isso você
vai lendo sobre a escritura e sobre o meu pedido de
transferência da casa, que na hora que eu lhe en-
tregar os papéis, passará a ser sua.
Lúcio abriu uma pasta que tinha trazido com
ele, e estendendo ao jovem, disse:
— Pronto, a casa é sua.
— Oh! Lúcio, como você é bom. Poxa, fico até
chateado de magoá-lo algumas vezes.
— Algumas vezes! — Lúcio falou com voz
amarga e triste, mas também Sérgio nem ligou, pois
entretido nos papéis, só tinha um pensamento:
Vir no próximo verão. Que delícia! Como Ragão e
Rolan iam se divertir, correndo pelos campos estu-
fantes de beleza.
— Para comemorar, Sérgio.
E Sérgio sem mesmo olhar para Lúcio, pegou
o copo e o esvaziou garganta abaixo.
Depois largou os papéis e olhou para o médico
dizendo:
— O que foi que você me deu para beber? Meu
estômago está queimando como fogo e estou fican-
do tonto.
Os lábios de Lúcio se torceram com ódio quan-
do viu Sérgio estatelado a seus pés, e puxando-o
pelas axilas, num tremendo esforço conseguiu le-
vá-lo para o porão. No fim da escada o puxou para
cima de uma grande placa de aço, que estava no
chão e apertando um botão, a mesma foi se le-
vantando e quando estava a altura de uma mesa
desligou-se automaticamente. Aí Lúcio tirou um
líquido de uma seringa e aplicou na veia do jovem
adormecido. Nisto ouve a campainha, e sobe cor-
rendo as escadas tendo o cuidado de fechar bem a
porta do porão.

Era Luís.
— Onde está Sérgio?
— Que cara! O que há, meu caro Luís? Você
aqui em Campos? Aconteceu alguma coisa,.grave?
E como sabia que Sérgio aqui se encontrava?
Luís tinha que agir calmamente, pois percebia
que o médico estava completamente diferente, com
um brilho de louco, dançando dentro dos olhos.
Via também que a mão que segurava a porta im-
pedindo-o de entrar, tremia muito.
— Aconteceu sim . A mãe dele acaba de mor-
rer. Eu fui até sua casa e lá me disseram que ele
1
tinha subido com você.

1 Campos de Jordão tem 1.800 metros de altitude, tendo


base S. P.

202
— Ah! — Lúcio piscou os olhos, pois a chuva
que caía em Luís salpicava o seu rosto e também
pura resguardar-se dos fortes relâmpagos que arre-
bentavam aí tão perto, jogados pelos retumbar dos
fortes trovões que faziam com que tudo estreme-
cesse.
— Vai me deixar aqui na chuva? Posso falar
com Sérgio?
— Claro. Oh! desculpe-me, por favor, por aqui.
Sérgio foi até Capivari. Sim, Capivari, uma das vi-
las daqui da boa terra. Logo, logo estará aqui.
Quer tomar alguma coisa? Olha, tome o que Sér-
gio tomou antes.
Luís tomou.
Lúcio caiu na gargalhada.
Luís revirou os olhos, levando a mão ao estô-
mago.
O médico gargalhava mais forte.
Luís foi dobrando os joelhos e caiu com o rosto
no tapete.
Lúcio o arrastou para o porão e depois de
amarrá-lo cuidadosamente, sentou-o em uma pol-
trona bem em frente de Sérgio e subiu para tran-
car tudo e apagar as luzes, ficando lá em cima só
o rugido do vento açoitando a chuva grossa que
jorrava sem parar.
Desceu. Vestiu um avental branco, abriu um
armarinho de ferro esmaltado de branco, rodeado
de vidro transparente e escolheu os objetos cirúr-
gicos. Colocou-os na mesinha perto de Sérgio e
lentamente foi desabotoando a braguilha do jovem
e depois foi empurrando a calça até que esta che-
gou aos pés do jovem e aí então levantou um por
um os pés do moço, puxando a calça.
Um gemido cortou o quarto. Lúcio olhou de
qual dos jovens vinha, e viu que era de Luís.

203
— Ah! está acordado, meu caro Luís! Mara-
vilhoso! Assim vai ver como é que Sergio ficará
sem o seu rico pênis.
Luís abriu os olhos.
— Lúcio, Lúcio, o que você está fazendo?
— Vejo que você é um rapaz forte, meu caro
Luís, pois a dose de entorpecente que lhe dei só o
faria acordar quando tudo estivesse terminado. Ah!
Você perguntou o que eu estava fazendo? Por en-
quanto nada, meu caro Luís, mas daqui a pouco
você verá.
Lúcio, inflamado pelo ódio, pegou o bisturi e
cortou a cueca branca e justinha do jovem, e olhan-
do com um olhar desvairado o pênis do moço, disse:
— Olhe, está vendo? Ele está aí, encolhidinho
de medo. Tremendo de medo. Está murcho e tris-
te. Está sem vida. Morto. Morto. Eu já o tive den-
tro de mim vivo, palpitante e alegre. Oh! se você
soubesse como ele girava, girava, e pulava lá den-
tro de minhas entranhas. Mas agora ele vai morrer
para sempre. Vai ficar encolhido, franzido, cin-
zento para sempre. Vou castrar o nosso querido
Sérgio, meu caro Luís. Passei todos esses meses,
em que ele me abandonou, aqui treinando. Aqui
nesse laboratório, castrei diversos cães e sei que a
cirurgia será de grande êxito.
— Lúcio, ouça-me: Não faça uma coisa dessa.
Em nome de Deus eu lhe peço. O que quer que Sér-
gio lhe tenha feito de mal eu pedirei a ele que lhe
implore perdão. Lúcio, por favor, por favor! Você
sempre foi um homem bom! Um "gentleman". Um
homem que todos gostam, que todos admiram!
Neste momento Sérgio começou a arfar estra-
nhamente e um suor pegajoso principiou a correr
de seu rosto.

204
— Não, Luís. Nunca o perdoarei. Ele me en-
ganou, disse que seria meu para sempre. Meu, você
-está ouvindo, e depois me abandonou. Devo operar
logo, pois ele já está voltando a si.
Luís torcia as mãos freneticamente e já sentia
que a corda se afrouxava, por isso queria ganhar
tempo.
— Escute, Lúcio, Sérgio gosta muito de você.
Ele sempre me fala de você com muito carinho, ele
o deixou foi porque compreendeu que as relações
sexuais entre os dois homens nunca dão certas.
Olhe, existe um tratamento para isso, você pode-
ria tentar. Poderia até sarar, casar, ter filhos.
O grunhido que saiu da garganta do médico
era de um animal selvagem.
— Cale-se, você não sabe do que está falando.
Deixe-me. Deixe-me em paz. — E pegando o bis-
turi enfiou levemente na cintura de Sérgio e veio
cortando até a virilha. Luís horrorizado, com os
olhos esbugalhados, gritava, chamando por todos
os Santos e quando viu o médico pegar as pinças e
começar a esticar as carnes abertas do moço para
os lados, uma força de gigante entrou em Luís, e
ele conseguiu se livrar das amarras e deu um pulo,
e saltou sobre o médico desprevenido.
Mas este foi mais ágil e pegando um vidro de
ácido gritou:
— Se você não colocar essas algemas que vou
jogar bem pertinho de você, eu jogarei esse ácido
nos lindos olhos azuis do nosso caro Sérgio. E olhe
bem, Luís, se você não for rápido ele morrerá, pois
está tendo uma hemorragia. Ele precisa de meus
cuidados.
Luís olhou para as algemas jogadas por Lúcio,
perto de seus pés e dizendo:
— Está bem, Lúcio, você venceu.

205
Abaixou-se e pegou as algemas jogando-as ra-
pidamente em direção do médico, que se abaixou
o bastante para deixar cair o vidro de ácido, e se
jogando para trás, se desviou do pontapé que ia
levar bem no rosto. Mas Luís vendo o sangue jor-
rar vermelho como rubi da barriga de Sérgio, criou
mil demônios dentro dele e lutou valentemente, até
que conseguiu dominar Lúcio que caiu desacordado
num canto do laboratório, e quando Luís foi tentar
arrastá-lo para um outro compartimento para
trancá-lo, puxou pelas pernas, fazendo com que as
calças do médico se arreassem até os joelhos, e o
que Luís viu, fê-lo soltar um grito de horror.
No lugar do penis, o médico tinha um horrível
e negro buraco. Largou-o aí mesmo e tremendo
pensou em arrancar as pinças, mas não havia tem-
po. Bateu no rosto de Sérgio mil vezes, mas ele
dormia, tendo um barulho de pessoa se engasgan-
do em sangue, saindo de sua garganta.
— Sérgio está morrendo. O que devo fazer,
meu Deus! Meus bons espíritos, ajudai-me!
Envolveu-o no lençol dobrado que estava de-
baixo da cabeça de Sérgio, e num esforço sobre-
humano o carregou escadas acima. Com tremenda
dificuldade conseguiu levá-lo e colocá-lo no Merce-
des branco, com estofamento rosa-claro, que logo
se encharcou de sangue.
O limpa-brisa não conseguia limpar a água
que escorria do céu tapando a visão de Luís, que
ia vagarosamente guiando pelas estradas lamacen-
tas e desconhecidas. Guiou, guiou, seguindo as lu-
zes que desabrochavam da neblina, que agora dei-
xava o alto do Mirante.
Quando conseguiu chegar na Santa Casa, a
voz tinha-lhe morrido na garganta. E com lágri-
mas nos olhos apontava o amigo que parecia morto.

206
Depois sentiu a picada no braço e só acordou
no dia seguinte, quando soube que o amigo estava
salvo, mas não poderia descer no momento. Só
depois de alguns dias. O dr. Lúcio já voltara para
São Paulo.

A festa da formatura de Luís estava linda!


O grande salão de baile apinhado de gente jo-
vem e alegre. Conseguira que se adiasse a festa,
pois o corte de Sérgio tinha se infeccionado e ele
passara bem mal.
Já estava curado há meses e morando no ca-
sarão da Cantareira. Fazia um mês que não se
viam.
Luís andava muito ocupado e Sérgio nunca
estava em casa, mas tinha prometido que viria para
a festa de formatura.
Luís o esperava com impaciência.
— Oi, Luís!
— Sérgio!
— Sua festa está linda!
— Ela poderia ser nossa.
— É, Deus assim o quis.
— Deus! Você falando em Deus! Mas o que
houve?
Sérgio riu.
— Veja isso.
— O que, você vendeu todas as suas proprie-
dades?
— Vendi.
— E o dinheiro?
— Mandei por na conta de Lúcio. Olhe isso.
O cartãozinho da Federação Espírita. Estou em
tratamento espiritual, três vezes por semana.
A voz de Luís nem saía.
— Tem mais, olhe isso. Está vendo? É a car-
teira profissional. Já estou pagando o INPS. Con-
segui o seu lugar lá na loja, já que o dr. Luís irá
inaugurar o seu consultório dentário, e me matri-
culei no ?nadureza no mesmo colégio que você cur-
sou. Dá sorte.
"As lágrimas rolaram pelo rosto de Luís.
— Baaaaa. Pra que chorar, meu amigo, hoje
é dia de festa.
Os dois cairam na gargalhada e abraçados en-
traram no salão iluminado.

FIM

Impresso nas oficinas da EDITORA PARMA LTDA.


Rua da Várzea, 394 - Tel.: 51-3095 - São Paulo - Brasil

208
"MANCHETE 74
A história que Adelaide Carraro conta de sua vida precisaria — para
ser publicada — da mesma advertência impressa em seu último livro:
"É uma estória macabra, violenta e horripilante. Se você tiver menos de
21 anos ou, tendo mais, for muito sensível, não a leia, por favor".
Adelaide descreve sua existência com uma crueza capaz de suscitar
inveja ao escritor Jean Genet ou ao ex-presidiário do best-seller Papillon.
Se levassem a vida de Adelaide Carraro à cena, tal como ela a relata, não ha-
veria serragem suficiente para enxugar o sangue e as lágrimas que marcam
os vários episódios. Aliás, ela está à procura de um redator teatral.
No primeiro ato de sua história, vemos a pequena orfã Adelaide sendo
atirada a um orfanato: o pai, lavrador, foi morto por bêbados; a mãe
morreu no parto do oitavo filho. No internato, acontecem cenas dignas
de filmes de terror. As órfãs pisoteiam as meninas menores sobre a lama
do pátio interno. Para melhorar as condições sanitárias do asilo, as inter-
nas são obrigadas a matar ratazanas com agulhas de croché. Adelaide é
. salva dessa atrocidade pela tuberculose.
No segundo ato, a heroína vai para um sanatório em Campos do Jordão.
Ali descobre que sua vocação é a pintura. Mas logo se vê impedida de
ganhar a vida com os pincéis, porque é alérgica às tintas. Bonita e ino-
cente, começa a sofrer — sozinha, na grande cidade para onde se mudou
— o assédio de vilões. Defende a sua inocência, até que lhe acontece uma
amor avassalador*. Mas esse amor não pode lhe dar compensações por
causa da alta posição social do homem querido. Cansada, humilhada e na
miséria, Adelaide resolve contar suas desgraças ao mundo. O livro, escrito
na primeira pessoa do singular, lhe traz fama. Traz também a cólera dos
poderosos.
No terceiro ato. novos sofrimentos: acusações de pornografia, 18 passa-
gens de Adelaide pelas delegacias de polícia, uma tentativa de suicídio c o n
barbitúricos.
Como Adelaide Carraro existe, é mulher atraente e não traz marcas
físicas do seu drama, não foi difícil entrevistá-la. Perguntada sobre os
livros que vendeu, ela dá uma cifra que faria inveja a muito escritor lau-
reado:
"Uns 300 mil exemplares. Isso, envolvendo todos os títulos: £o e o
Governador, Falência das Elites, Eu Mataria o Presidente. Os Padres Tam-
bém Amam, O Comitê, Gente, Mansão Feita de Lama, Podridão. Escuridão.
Carniça, A Verdadeira Estória de um Assassino, Submundo da Sociedade.
Eu e o Governador, lançado em 1963, foi o que mais vendeu. E continua
vendendo.'"
Adelaide Carraro nega que seus romances sejam ficção.
"Nenhum deles tem nada a ver com imaginação. Eu não sei fizer ficção.
E 99% do que escrevo é pura realidade."
Ela se irrita muito quando ouve a insinuação de que nunca escreveu
seus livros.
"Uma calúnia. Os colunistas invejosos gostam de dizer que o autor de
meus livros é um homem. Esse boato começou com Eu e o Governador
e não parou mais. Então me diga: um homem poderia ter passado por
aquelas experiências que eu passei? Quem poderia descrever aquelas rela-
ções íntimas com tanto realismo? Aliás, posso provar a minha autoria:
tenho todos os manuscritos guardados."
Ela conta que não ganhou, na vendagem dos seus livros, tanto dinheiro
quanto dizem.
"Olha, não deu para enriquecer. Atualmente, estou ganhando uns 10
mil cruzeiros por mês — de direitos autorais. Mas só agora,
livros foram liberados, apesar de só serem vendidos envelopados
tico. Antes, os livreiros não queriam saber dos meus livros: tinham
medo da polícia."
ADELAIDE — MAIS DE UM MILHÃO DE EXEMPLARES VENDIDOS!

A VERDADEIRA ESTÓRIA DE SUBMUNDO DA SOCIEDADE


UM ASSASSINO É duro mexer nas feridas da humani-
Este livro contém uma estória maca- dade. Mas, às vezes, é preciso. Dizem
bra, violenta e horripilante. Se você que só o que arde cura. Porisso não
tiver menos de 21 anos, ou se tiver tenho nenhum remorso de ter escrito
mais de 21 e for sensível não o leia, este livro.
por favor. LM Adelaide Carraro

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