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C
oisas estranhas aconteciam nas quintas-feiras de Snetterton, meu
circuito favorito na Inglaterra. Os mais supersticiosos juravam que
a bruxa andava solta por lá, após a morte de três pilotos.
Com ou sem bruxas, eu me sentia em casa em Snetterton, não só pelo
fato de morar perto e treinar sempre, mas também porque ali eu havia ven-
cido minha primeira corrida na Europa.
Foi em uma linda manhã de primavera, ensolarada e quente, muito di-
ferente daquela misteriosa quinta-feira de nevoeiro. Era setembro de 1974.
O clima começava a esfriar no nordeste da Inglaterra, onde eu morava com
três amigos brasileiros, na pequena e pacata vila de Wymondham, perto de
Norwich, no condado de Norfolk. Nossa casinha tinha dois andares, com
dois quartos no segundo andar. No térreo, havia sala, banheiro, cozinha e
um pequeno escritório, que, aliás, era também meu quarto, pelo qual pa-
gava a quarta parte do aluguel. Os colegas eram o Marcos Moraes, também
piloto de Fórmula 3, e seus amigos Jorge Alexis e Cláudio César, que nós
chamávamos de Piauí.
Apesar de não nos conhecermos bem, formávamos uma família feliz.
Marcos cozinhava. Jorge Alexis e Cláudio revezavam-se na arrumação da
casa, e eu aparava a grama e cuidava da manutenção, consertando pias,
persianas, instalações elétricas etc. Morávamos ali, naquele fim de mundo,
pois queríamos estar próximos da fábrica da GRD, equipe pela qual com-
petíamos na Fórmula 3.
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Agora eu era um piloto de ponta na F3, e lutava com unhas e dentes para
conquistar o vice-campeonato. O líder, Brian Henton, veterano na categoria
e mecanicamente mais bem equipado que eu, somava uma vantagem bem
grande em pontos, depois de ter vencido a maior parte das corridas.
Sem deixar que ninguém soubesse, alimentava em meu íntimo a grande
esperança de vencer o campeonato, uma vez que isso era matematicamen-
te possível, embora muito difícil, pois certamente Henton seria campeão.
Vontade de vencer e autoconfiança não me faltavam. Apesar de ser o meu
primeiro ano na categoria, tudo acontecia a meu favor e eu me sentia im-
pulsionado para a frente, correndo no vácuo do Senhor.
Se Deus é por nós, quem será contra nós? Pensava eu...
Com três voltas de aquecimento no treino daquele dia, eu já estava
andando forte e, na quinta passagem, resolvi fazer a Russel de pé embaixo.
A curva era um “S” de alta velocidade, que fazíamos em quinta marcha, a
quase 200km/h. Cercada de barrancos muito altos, a Russel era uma curva
rápida e cega.
Minha técnica consistia em atirar o carro no escuro e, lá dentro da cur-
va, achar os dois pontos de tangência. Daí, eu traçava uma reta entre eles,
o que me levava, automaticamente, ao destino certo na saída. A diferença
entre fazê-la com o pé embaixo ou quase embaixo era muito grande, por-
que logo em seguida vinha uma subida e, assim, ganhava tempo não só na
curva, mas em toda a reta dos boxes.
Quando atirei o carro para dentro da Russel, dei uma rodada violenta.
De repente, me vi viajando de ré, a todo vapor, rumo ao barranco onde se
arrebentara, em acidente fatal, o piloto e meu amigo Marcos Moraes, em
batidas semelhantes à que eu estava prestes a sofrer.
O princípio de Snetterton
Tudo aconteceu em frações de segundos. Mas até hoje me lembro dos
detalhes como se tivessem ocorrido em câmara lenta.
Àquela altura do chão, naquela velocidade e em tais circunstâncias, só
mesmo Deus podia fazer alguma coisa por mim. Por melhor e mais compe-
tente que eu fosse como piloto, não havia absolutamente nada que pudes-
se fazer, a não ser esperar pela pancada.
Assim aprendi que “as impossibilidades do homem são as oportunida-
des de Deus trabalhar em nossa vida”, como diria Corrie ten Boom.
Embora muito mais poderoso e capaz do que nós, suas mãos estão
atadas pela nossa autossuficiência, o que não lhe dá a mínima chance de
agir. Deus existe, sim; mas ele lá no céu e eu, aqui. O carro da minha vida, dirijo eu.
De vez em quando ele nos vira de cabeça para baixo, a fim de enxergar-
mos as coisas de um ponto de vista diferente do nosso, ou seja, o ponto
de vista dele.
Exatamente aí, Deus entra na história que pretendo contar neste livro.
Pouso forçado
A aterrissagem não foi das mais suaves. Lembro-me de que primeiro o
carro caiu de frente, depois, de traseira. Uma série de pancadas na cabeça
fez-me perder a noção do que havia acontecido. Contaram-me depois que
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capotei seis vezes até parar de cabeça para cima. De maneira espetacular,
perdi as quatro rodas, a carroceria, as asas e os radiadores. Essas peças
voaram para todo lado, enquanto o carro subia e descia. Quando ele pa-
rou, restavam apenas o chassi, o motor e eu, coberto de óleo quente, que
no primeiro instante me pareceu sangue.
O capacete perdeu a viseira e a borracha da moldura da face, mas eu
fiquei ileso, sem um único arranhão! Soltei os cintos e pulei para fora dos
destroços imediatamente, antes mesmo que Kiyo e Piauí pudessem vencer
a inércia. Por alguns momentos, eles ficaram paralisados diante do que
haviam acabado de ver, bem ali à sua frente.
Quando conseguiram sair do lugar, atravessaram a pista correndo e,
sem saber o que fazer, abraçaram-me, os dois de uma só vez. Eles estavam
mais assustados do que eu. Quando conseguiram falar, não pararam mais,
repetindo várias vezes os mínimos detalhes do acidente.
Deixei os destroços nas mãos dos dois e fui fazer o check-up médico no
hospital de Norwich. Voltei para casa orando ao volante do Cortina:
“Senhor, muito obrigado pelo livramento e pela lição. E já que o Senhor
é tão bom, gostaria de pedir só mais uma coisinha: ajude-me a conseguir
outro carro para não perder a corrida deste fim de semana em Mallory Park.
Eu soube que o Frank Williams está indo lá só para me ver correr, e isso
pode significar uma futura chance na Fórmula 1.”
Serviço completo
Chegando a casa, caí na cama, de macacão e tudo. Dormi profundamente,
até ser acordado, horas mais tarde, pelo telefone. Era o Marcus Zampo-
ni, jornalista da Auto Esporte. Contei-lhe a história toda, em primeira mão,
troquei de roupa e fui correr atrás do prejuízo, tentando viabilizar minha
participação na corrida daquele fim de semana.
Quando a placa de 3 minutos para a largada foi levantada e todos os
mecânicos se retiraram de perto dos carros, fechei a viseira escura do ca-
pacete e fiquei novamente a sós com o Senhor. Naquele momento, agrade-
ci do fundo do meu coração e louvei a Deus por estar ali em Mallory Park,
sentado no carro-reserva de Marcos Moraes, cedido tão gentilmente para
que eu pudesse participar daquela corrida.
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O
s pilotos de competição sempre foram comparados a cavalei-
ros medievais. A analogia é enfatizada por muitos detalhes: o
capacete é o elmo, a balaclava do piloto foi criada com base na
de um cavaleiro medieval, o macacão é a armadura, e o carro, o cavalo.
O grande sonho dos cavaleiros era o resgate do Santo Graal, o cálice em
que Cristo bebeu vinho na última ceia. Para muitos, a semelhança acaba
aí. No entanto, existe um piloto que ainda tem um Santo Graal ou o Cam-
peonato Mundial de F1. Seu nome é Alex Dias Ribeiro, o novo “cavaleiro
de Cristo”.
Num dia insuportavelmente frio de outubro de 1974 — apesar do sol
britânico —, o diretor da March, Sandro Angeleri, pediu-me para ir a Lon-
dres apanhar um piloto brasileiro, que vinha conversar a respeito de umas
corridas de F3.
Nessa época, eu trabalhava na March, auxiliando no escritório e exe-
cutando vários tipos de serviços. O salário não era dos maiores, mas me
permitia viver 24 horas por dia em contato direto com os carros e pilotos
que povoavam meus sonhos, desde os tempos de menino.
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O carro
Voltemos para a March, onde o Alex, com um inglês que nem ele mesmo
entendia, tentava e conseguia alugar o carro de Leonel Friedriech (que já es-
tava de volta ao Brasil), para fazer dois treinos e duas corridas, patrocinado
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pela Rastro e pela Brazil Export 73, uma feira nacional que estava sendo
realizada em Bruxelas, em 1973.
Minha impressão de Alex já começou a mudar na conversa que ele teve
com Sandro Angeleri. Alex começou a falar em inglês que era um piloto po-
bre e apresentou uma revista feita por ele, cuja capa era de uma edição da
Auto Esporte, na qual apareciam José Carlos Pace e ele. Dentro havia uma
coletânea de matérias de diversas publicações sobre suas corridas. Aquilo já
me passou uma impressão de luta e de força de vontade.
Dois dias depois, Sandro pediu-me para acompanhar os mecânicos, já
que a comunicação entre Alex e o pessoal da March era praticamente im-
possível. Sandro interessava-se apenas pelo aluguel do carro, não se preo-
cupando nem um pouco com o que aquele piloto pudesse vir a fazer por sua
fábrica, no futuro. O que ele queria era a verba da Brazil Export, e nada mais.
Chegamos cedo à oficina, a fim de acertar o carro para o treino que
seria à tarde, em Silverstone. Quando viu o carro, Alex foi logo sentando
para ajustar os pedais para a sua pequena estatura. Então, veio o primeiro
festival de gargalhadas dos ingleses. Não havia jeito de o Baixinho alcançar
os pedais. Depois de mil e uma tentativas, o banco foi ajustado o máximo
para a frente, enquanto a direção era puxada para perto do piloto. O topo
do cockpit teve de ser cortado, simplesmente porque Alex não podia ver a
pista. Tudo pronto, apareceu um novo problema: com os pés encostados
nos pedais, ele não conseguia encostar-se no banco. Então tive de sair
para comprar muita espuma, a fim de que a figurinha de quarenta e poucos
quilos pudesse acomodar-se dentro do carro. Ao voltar, encontrei os me-
cânicos fora da oficina, tentando disfarçar, sem muito sucesso, o riso. Logo
senti que algo de insólito estava acontecendo lá dentro. Quando entrei,
havia outro carro. Alex havia substituído todos os adesivos dos patrocina-
dores de Leonel pelos da Brazil Export, Rastro e os famosos “Jesus Saves”,
já em inglês. Estes, por sinal, cobriam quase toda a extensão do carro.
Posteriormente, compreendi que, naquele momento, o Baixinho estava
mostrando que não se desligaria nunca de seu Patrocinador Maior, e que este
prosseguiria definitivamente em sua cruzada, onde quer que ele estivesse.
Naquela tarde, Alex deixou claro que não estava lá para brincar. Seu
treino não deixou nada a dever ao de nenhum piloto de ponta da categoria.
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As primeiras corridas na F3
Ainda naquele fim de temporada, as duas primeiras corridas de Alex
não disseram muito. Em Thruxton, outro acidente, ainda nos treinos,
não lhe permitiu correr. Em Brands Hatch, debaixo de muita chuva,
manteve uma disputa sem muita expressão, com Ted Wentz, pelo dé-
cimo lugar.
Foi em 1974 que Alex apareceu no cenário automobilístico europeu, mas
não com a imagem de respeito e confiança que agora tem, e sim com a de um
perfeito selvagem. Numa guerra aberta da imprensa inglesa contra ele, nem
mesmo sua crença foi respeitada. Apesar de aceitar tudo passivamente, Alex
transformou o menosprezo em estímulo à sua dedicação.
Três vitórias, o vice-campeonato inglês, duas capotagens, uma pole po-
sition na estreia em Nürburgring, duas quase pancadarias na Alemanha e
na Itália, e muita experiência em sua bagagem, foram o saldo de uma tem-
porada em que correr com um GRD era um grande handicap a favor dos
March, que tinham o domínio absoluto.
Seu grande ano na F3, porém, foi 1975, quando conquistou definitivamen-
te seu lugar no ranking mundial de pilotos aspirantes às categorias maiores.
A F3 passou a ser o grande celeiro de pilotos de F1. Algumas provas
serviam de preliminar às corridas do Campeonato Mundial, e os chefes de
equipe da F1 observavam atentamente essas corridas, na esperança de
encontrar um talento perdido em meio àquelas feras.
A via crucis
Os seis primeiros meses de 1975 foram um verdadeiro suplício para um pi-
loto que tinha as aspirações de Alex. Ele se viu obrigado a dividir a equipe
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oficial da March com o sueco Gunnar Nilsson, e logo teve uma lição precoce
dos problemas e desilusões de ser o segundo piloto. Além de acelerar uma
barbaridade, Gunnar tinha entre seus predicados naturais a capacidade de
ser extremamente simpático e conseguir bajular os jornalistas ingleses da
maneira certa. Com muito mérito, Nilsson conseguiu uma série de vitórias
espetaculares no início da temporada. Alex, porém, estava sempre por per-
to, e, de vez em quando, dava suas cravadas no companheiro de equipe.
Enquanto Gunnar virava manchete e começava a ser cotado para F1, o
pior sobrava para Alex: os mordazes comentários de uma crônica em que
o autor revelava já estar cansado de ver o sucesso dos brasileiros. Para um
jornalista com as limitações criativas de um Chris Witty, da revista inglesa
Autosport, era demais ver cotado para a F1 um brasileiro mirrado, que,
além de vencer com frequência seus ídolos e compatriotas, insistia em
afirmar para todos que Cristo salva.
O resultado não poderia ter sido pior. Duas voltas mais tarde, ao dis-
putar uma freada com seu companheiro de equipe, os dois se chocaram e
tiveram de abandonar a prova. É fácil imaginar a cena. Numa preliminar do
GP da Suécia, o retardatário Alex, sem chances de se colocar, tira da prova
o possível ganhador: um sueco que, se não fosse o primeiro, seria fatal-
mente o segundo, fechando a dupla da casa. Segundo várias testemunhas,
Nilsson não conseguia falar — babava de raiva.
Nos incidentes verificados no GP de Mônaco, entre Alex e Tony Bri-
se, algumas vozes levantaram-se em defesa do Baixinho; mas, na Suécia,
foi bem diferente. A imprensa simplesmente demoliu a imagem do piloto
brasileiro, e somente a fé lhe permitiu suportar a violência desse golpe e
reconhecer seu erro com humildade. Para qualquer outro, aquilo poderia
ter significado o início do fim; mas, para Alex, foi apenas mais uma etapa
de sua luta obstinada pelo sucesso.
Os treinos aconteciam com muita frequência e, a partir desse episódio,
Alex conseguiu equilibrar e até superar parcialmente as performances do
adversário Nilsson.
Com o tempo, a crônica relaxou sua vigília em torno de Alex, à procura
de uma brecha em sua guarda. Essa postura foi reforçada pela mudança
nítida em seu estilo de disputar uma corrida e o consequente aumento da
produtividade, o que provocou um convite de Frank Williams para a F1,
jamais confirmado ou desmentido pela imprensa.
Filme queimado
A caçada implacável que a imprensa inglesa moveu em torno de Alex teve
consequências muito piores: a perda da confiança de seus patrícios.
Indicado no início da temporada como piloto-reserva do Copersucar,
dos irmãos Fittipaldi, o espanto foi geral com a notícia de que ele fora
substituído por Ingo Hoffmann. Sem desmerecer Ingo, os conhecimentos
e a experiência de Alex eram infinitamente superiores aos predicados na-
turais, ainda em desenvolvimento, de Hoffmann, que começara a correr há
pouco mais de dois anos.
Para Alex, sobraram algumas justificativas pouco convincentes de Wil-
son Fittipaldi Jr. E um pequeno resquício da compreensão e compadeci-
mento de toda a especializada crônica europeia e brasileira.
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Bom vendedor
Depois de tantos golpes, as chances de um bom patrocínio que permitisse
ao Baixinho ascender à F2 eram remotas. Ele, porém, não desistiu. Com o
apoio de sua esposa, Bárbara, que já estava a seu lado desde a segunda
temporada de F3, conseguiu manter o patrocínio fiel da Perfumaria Rastro,
e ainda descolou um novo patrocínio — a Caixa Econômica Federal —, que
veio com uma só pergunta feita por Alex, depois de uma estafante reunião
com toda a diretoria da entidade federal. Eles estavam mais inclinados a
patrocinar o GP do Brasil do que a temporada de Alex. Então o Baixinho
fez a pergunta decisiva: “Quem patrocinou o GP do Brasil do ano passado
(1975)?” De fato, ninguém se lembrava e perceberam que patrociná-lo fir-
maria muito mais a imagem da empresa.
Ao sair da sede da CEF, em Brasília, Alex estava tão emocionado que,
ao dar uma marcha à ré, bateu com seu carro no carro de um diretor. Este
é apenas um detalhe curioso de sua carreira.
Com a verba, foi-lhe garantido um lugar na equipe oficial da March de
F2, a melhor que pode pretender um piloto não-francês. Aquela, porém,
era uma posição de muita responsabilidade. Por ela já haviam passado no-
mes como Ronnie Peterson, Niki Lauda e Patrick Depailler, entre outros. De
imediato, Alex se encontrava na desconfortável posição de segundo piloto,
além do fato de os chefes de equipe de F1 continuarem a procurar novos
valores na F3. Este era, na verdade, o maior de todos os problemas, pois
sua meta sempre foi um lugar na F1.
O primeiro piloto da equipe era o italiano Maurizio Flammini, que já
contava com algumas vitórias na F2 e também com a preferência de San-
dro Angeleri e da diretoria da March, cuja intenção era transformá-lo numa
edição revista, melhorada e moderada de Vittorio Brambilla (apelidado de
Gorila de Monza, por Chris Witty, que também não gostava de Brambilla).
Sobre a vontade e o coração, quero dizer que não é tudo. Existem outros que
também lutaram pra burro e nunca chegaram à F1. Você sabe muito bem que
lá em cima tem alguém que me empurra para a frente e, se ele é por nós, quem
há de ser contra?... É ele quem me dá a força e o coração para seguir lutando,
como tenho feito até agora, mas com uma diferença: A CERTEZA DA VITÓRIA.
Aquele abraço,
Alex
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V
elocidade é o resultado da divisão de certa distância pelo tempo
gasto para percorrê-la. Invertendo-se a fórmula, sabe-se que, quan-
to mais rápido se corre, mais rápido se chega. Nem sempre, porém,
as coisas acontecem assim, pois quanto mais se corre, maiores são os
riscos de uma falha mecânica ou de um acidente.
Houve tempo em que o bom piloto era o mais arrojado. Hoje em dia,
o bom piloto é o melhor técnico, o homem que usa mais a cabeça do que
o pé direito. Essa história de que devagar se vai ao longe não existe em
corridas de automóvel.
A Fórmula 1 é a principal categoria do automobilismo, e dela participam
somente trinta pilotos. Existem, no entanto, pelo menos 30.000 pilotos
por todo o mundo competindo em outras classes. Isto nos leva a concluir
que cada piloto que atingiu a Fórmula 1 passou por um vestibular, no qual
eliminou outros 29.970 concorrentes.
O que é Fórmula?
Para que uma corrida seja interessante, é necessário que haja competição;
e, para isso, os carros são divididos em várias classes. Assim como no
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Rápido no gatilho
Para domar um foguete desses, são necessárias reações muito rápidas e
precisas. Isso é adquirido nas categorias de base. Em outras palavras, um
piloto não se faz da noite para o dia. É preciso alguns anos de aprendizado.
O piloto sobe de categoria, como o aluno passa de uma série para outra,
na escola.
Se dividirmos o peso de um Volkswagen pelo número de cavalos de seu
motor, veremos que ele possui um cavalo para cada vinte quilos de peso.
Um carro de F1 tem mais de um cavalo para cada quilo. Por isso, ele é
capaz de acelerar uma vez e meia a força da gravidade. Ao meter o pé no
acelerador, as costas grudam no encosto do banco e o difícil é segurar a
cabeça. Parece uma nave espacial decolando!
Para que toda essa potência seja transmitida ao asfalto, os pneus tra-
seiros são mais largos e construídos com um tipo de borracha bem mole,
para aumentar o coeficiente de atrito. A aderência desses pneus na freada
é tão violenta, que o carro desacelera duas vezes a força da gravidade. Nas
curvas, a velocidade é tão superior à de um carro de rua que gera uma força
centrífuga equivalente a três vezes a da força da gravidade em aceleração
lateral.
Haja fôlego!
Com tudo isso, o corpo humano — amarrado ao carro pelo cinto de seis
pontos que lhe prende o tórax, a bacia e as pernas — sofre cargas incríveis
a cada curva, freada, aceleração ou troca de marcha.
A pista de Interlagos1 possui curvas muito longas, sendo a Curva do Sol
a mais longa da F1. Ela é feita a mais de 200km/h, e alguns pilotos chegam
a amarrar o capacete aos ombros para aguentar o peso da própria cabeça,
sob a ação da força centrífuga.
Como acontece nas corridas do Brasil durante um fim de semana muito
quente, perde-se cerca de quatro quilos de peso, tamanha a transpiração
dentro do macacão à prova de fogo e grosso como um cobertor.
1
Refere-se ao traçado daquela época. O circuito foi modificado para aumentar a segurança.
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Por tudo isso, o preparo físico do piloto inclui uma corrida diária de 5
km, levantamento de peso, exercícios de agilidade e reflexo, bem como
alimentação especial e muitas horas de sono. O mais bem preparado entre
nós era Emerson Fittipaldi, que corria diariamente 8 km. Sua forma física
era melhor do que a de muitos jogadores de futebol.
Fórmula 1 não é um jogo, onde um perde e outro ganha: os seis pri-
meiros colocados marcam pontos, em ordem decrescente de colocação.
Conseguir chegar até o fim ou mesmo classificar-se para a largada já é algo
muito importante.
O campeonato mundial é composto, normalmente, de dezessete cor-
ridas: dez na Europa, três na América do Norte, duas na América do Sul,
uma na África e uma no Japão. Os carros são transportados de avião, bem
como pilotos, mecânicos, chefes de equipe, engenheiros e cronometristas.
São necessárias, no mínimo, vinte pessoas para operar um carro desses
num Grand Prix, fora o pessoal que trabalha nas fábricas. Uma equipe de
ponta emprega trezentos funcionários, entre o pessoal de projeto, cons-
trução, inscrição e manutenção de dois pilotos no campeonato mundial.
Haja grana!
Construídos à mão, dentro da melhor e mais sofisticada tecnologia, os
carros são verdadeiras joias mecânicas, compostos de materiais exóticos
usados na aviação e até nas pesquisas espaciais, com o objetivo de se
obter o máximo rendimento, a maior potência e o menor peso. Eles têm
até asas para não voar. São os aerofólios — asas de cabeça para baixo
que enterram o caro no chão, aumentando a estabilidade e a tração, num
processo exatamente inverso ao dos aviões.
Por isso, custam uma fortuna; sua manutenção e operação durante uma
temporada custa mais ainda. Um motor F1 custa mais de U$ 200.000,00 e
dura apenas uma corrida.
Os patrocinadores sustentam as equipes em troca da publicidade na
carroceria dos carros, que são verdadeiros outdoors volantes. As fábricas de
automóveis, pneus, combustíveis e componentes mecânicos têm também
seu interesse publicitário e técnico nesse esporte, que funciona como la-
boratório de testes. Cintos de segurança, freios a disco, pneus sem câmara
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A imprensa
Nesta conjuntura, a imprensa desempenha um papel importantíssimo, pois
informa o que está acontecendo ao público que não tem acesso aos carros
e pilotos. Essa informação, entretanto, depende muito do que se passa na
cabeça de cada jornalista. Relatar o fato em si é a sua função, mas muitos
adicionam a isto suas opiniões, que variam de acordo com pontos de vista
e interesses próprios. Assim, as reportagens sobre uma corrida, feitas pe-
las imprensas italiana e inglesa, podem ter em comum apenas a data e o
resultado da prova.
Alguns chefes de equipe utilizam-se da imprensa para exercer pressão
sobre os pilotos. Os patrocinadores dependem da imprensa para um bom
retorno de seus investimentos no esporte. O piloto tem de ter muito cuida-
do com o que diz e para quem diz as coisas, pois isso pode comprometê-lo
ou até mesmo significar o fim de sua carreira.
Por esta razão, alguns preferem falar o mínimo, ou até fugir dos jornalis-
tas. Os mais políticos desenvolvem o hábito de falar muito, sem dizer nada.
Um jornalista alemão desabafou sua frustração comigo uma vez: “Os
pilotos são todos mentirosos, Alex. Este é um mundo de mentiras”.
Por outro lado, já li matérias contendo declarações ditas feitas por mim,
e que jamais fiz. Uma manchete sensacionalista e não verdadeira foi su-
ficiente para comprometer meu relacionamento com Ayrton Senna e sua
família, durante alguns anos.
A maioria dos pilotos dorme cedo e tem uma vida regrada, especial-
mente às vésperas da corrida. Um repórter inexperiente que telefona para
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O carro
O Fórmula 1 carrega um terço do próprio peso, em gasolina de avião, a
mais de 300km/h. Qualquer um pode imaginar os riscos envolvidos nessa
realidade. Por esta razão, várias medidas de segurança vêm sendo tomadas,
não só na construção dos carros, mas também nas pistas, no equipamento
dos pilotos, no preparo dos comissários de pista, bombeiros, equipes de
socorro e até na medicina ultra-especializada em primeiros socorros.
Os carros são equipados com tanques de borracha à prova de rompi-
mento, fogo e explosão. Carregam extintores de bordo com acionamento
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automático e uma garrafa de gás medicinal, para que o piloto possa respi-
rar dentro do fogo durante noventa segundos, tempo suficiente para cair
fora ou ser socorrido. A barra anticapotamento, conhecida como santoan-
tônio, não permite que a cabeça do piloto bata no chão, caso o carro vire
de cabeça par baixo. O chassi é protegido por uma estrutura deformável,
para absorção de impactos frontais e laterais.
O equipamento de segurança
O capacete tipo astronauta protege a cabeça e a face. O macacão, as luvas
e as sapatilhas, resistem às chamas por noventa segundos.
As comissões de segurança inspecionam os circuitos, com o objetivo de
torná-los mais seguros. O circuito ideal seria aquele onde o carro pudesse
sair da pista, em qualquer ponto e a qualquer velocidade, sem encontrar
nenhum obstáculo com que se chocar. Para isso, seria necessária uma área
plana muito grande, e os espectadores ficariam tão distantes que perde-
riam a sensação do espetáculo. Por isso, foram criadas as barreiras de pro-
teção chamadas guard rails, e depois as redes de absorção de velocidade e
as caixas de brita, que diminuem a consequência dos impactos.
Trapaças e tramoias
Desde o dia em que presenciei dois grandes chefes de equipe colocando,
disfarçadamente, suas placas de sinalização em frente à célula fotoelétrica
da cronometragem oficial, com o objetivo de melhorar ilegalmente o tem-
39
2
Romanos 14.8
41
E
le, Isaac, um baiano do interior, estudante de medicina. Ela, Clo-
tildes, enfermeira, também baiana. Os dois se conheceram num
hospital em Belo Horizonte. Apaixonaram-se e casaram-se. Plane-
jaram um “superfilho”, criado à base de vitaminas e de todos os recursos
médicos da época. Eu nasci pequeno e magro, mas muito esperto. Nessa
ocasião, meu pai ainda não havia se formado e meus primeiros anos de
vida foram passados dentro de um hospital.
Quando meu pai se formou, mudou-se para Anápolis, interior de Goiás.
De lá, resolveu ir para o meio do mato, onde o governo implantava uma
colônia agrícola chamada Ceres.
Durante meus primeiros cinco anos de vida, fui filho único. Nos três
anos seguintes, ganhei duas lindas irmãs e um irmão tão maluco quanto
eu. Seus nomes: Daisy, Marta e Fernando, todos Dias Ribeiro.
Aos 3 anos de idade, sabia de cor o nome de todos os ossos do corpo
humano e meus orgulhosos pais estavam convencidos de que eu seria um
talentoso cientista.
Desde o primeiro dia de aula, detestei a escola. Apesar disso, suportei-
a até os dois primeiros anos da universidade, onde estudei um pouco de
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A certeza de que isso realmente iria acontecer foi tão grande, que, a
partir daquele momento, só pensei em me preparar para o dia em que o
sonho se concretizasse. Esse treinamento incluiu o carrinho de rolimã, o
autorama, o skate, a bicicleta, e todo tipo de competição sobre rodas.
Aos 14 anos, ganhei a tão cobiçada motocicleta, e tornei-me um play-
boy, no mais alto estilo da época. Adquiri muitos maus costumes e me meti
em grandes encrencas. Era um hell´s angel1 das candangas.
Um semestre de internato compulsório, no Colégio Batista em Belo Ho-
rizonte, foi tempo suficiente para eu parar e meditar na vida que estava
levando, reavaliar meus valores, recolocar a cabeça no lugar e voltar a ser
um bom rapaz.
Anjos do Inferno.
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Auto Esporte uma matéria intitulada “Precisa-se de apenas uma lima para
envenenar o DKW”. A lima nós já tínhamos. E o DKW?2
A grande chance
Do alto da sabedoria dos nossos 18 anos, conversávamos na viagem de
volta, nos seguintes termos: “Estamos levando aqui nessa caminhonete a
chance da nossa vida, em termos de ferramentas, e não podemos desper-
diçá-la. Vamos montar uma oficina de verdade”.
E depois de muito pensar, escolhemos para o nome da oficina: Camber.
O problema seguinte foi: onde montar a oficina? Não tínhamos capital
nenhum; apenas a vontade e as ferramentas.
2
Carro popular desenvolvido pela Audi e fabricado no Brasil pela Vemag, nos anos 60.
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na pista com aquilo, o público quase morreu de rir. A coisa ganhou logo
vários apelidos. Um deles era: objeto não identificado.
Patinho feio
A largada seria por sorteio. Eram 33 carros, e nós fomos sorteados com o
número 33.
Os últimos serão os primeiros — pensei. Estava tão contente e grato a
Deus pela oportunidade de entrar numa corrida de automóvel, que colo-
quei no pequeno para-brisa um velho adesivo no qual se lia: Cristo, a única
esperança. Era pequeno, mas simbolizava uma grande gratidão ao Criador,
por me permitir realizar o maior sonho de minha vida.
João Luiz deu a largada, e já na primeira volta ultrapassou três con-
correntes, enquanto nós delirávamos de alegria nos boxes, pulando e gri-
tando, ante os olhares desconfiados e perplexos dos outros mecânicos e
chefes de equipe.
Acabamos chegando em segundo lugar, depois de quase seis horas de
corrida. É bem verdade que fomos beneficiados pela quebra e acidentes de
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