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Voando baixo

C
oisas estranhas aconteciam nas quintas-feiras de Snetterton, meu
circuito favorito na Inglaterra. Os mais supersticiosos juravam que
a bruxa andava solta por lá, após a morte de três pilotos.
Com ou sem bruxas, eu me sentia em casa em Snetterton, não só pelo
fato de morar perto e treinar sempre, mas também porque ali eu havia ven-
cido minha primeira corrida na Europa.
Foi em uma linda manhã de primavera, ensolarada e quente, muito di-
ferente daquela misteriosa quinta-feira de nevoeiro. Era setembro de 1974.
O clima começava a esfriar no nordeste da Inglaterra, onde eu morava com
três amigos brasileiros, na pequena e pacata vila de Wymondham, perto de
Norwich, no condado de Norfolk. Nossa casinha tinha dois andares, com
dois quartos no segundo andar. No térreo, havia sala, banheiro, cozinha e
um pequeno escritório, que, aliás, era também meu quarto, pelo qual pa-
gava a quarta parte do aluguel. Os colegas eram o Marcos Moraes, também
piloto de Fórmula 3, e seus amigos Jorge Alexis e Cláudio César, que nós
chamávamos de Piauí.
Apesar de não nos conhecermos bem, formávamos uma família feliz.
Marcos cozinhava. Jorge Alexis e Cláudio revezavam-se na arrumação da
casa, e eu aparava a grama e cuidava da manutenção, consertando pias,
persianas, instalações elétricas etc. Morávamos ali, naquele fim de mundo,
pois queríamos estar próximos da fábrica da GRD, equipe pela qual com-
petíamos na Fórmula 3.
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Éramos todos estreantes no que diz respeito à F3 e à Inglaterra. Lutá-


vamos com o problema de adaptação a um mundo completamente novo:
clima, língua, alimentação, costumes etc. Nosso assunto, e único interes-
se, eram os carros de corrida; por isso, não nos importava que a pequena
cidade não oferecesse grandes programas ou perspectivas emocionantes.
Nosso mundo era o das corridas.
De carro, a viagem de casa até a pista de Snetterton não durava mais
que 25 minutos. No caminho, Piauí e eu conversávamos sobre os assuntos
de sempre, acrescidos de um pouco de saudades do Brasil. Já estava che-
gando o fim da temporada de 1974, e começávamos a contar as semanas
que faltavam para o dia da volta. Cada um tinha um plano para esse dia tão
esperado, quando nos encontraríamos com nossa família, com os amigos,
as namoradas, o calor, a praia e até a feijoada.
Tudo irradiava uma paz muito grande, enquanto eu dirigia lentamente
meu Ford Cortina pelas estreitas estradas rurais, naquele dia cinzento do
outono inglês. Quando chegamos à pista, Kiyo, meu fiel mecânico japonês,
aquecia o motor do GRD 374. Uma nuvem de vapor saía dos canos de es-
cape quentes, em contato com o ar gelado da manhã.
Tínhamos muitas peças e inovações para experimentar, o que exigiria
de nós um dia inteiro de exaustivos testes. Por isso, chegamos bem cedo,
quando a pista ainda estava deserta. Coloquei o capacete, as luvas e es-
correguei lentamente para dentro do apertado cockpit. Tão logo Kiyo afive-
lou e apertou o cinto de segurança de seis pontos, saí devagar, aquecendo
os pneus, freios, amortecedores, tudo.

Pé embaixo na curva da morte


Sempre que havia corrida de F3 em Snetterton, eu era o favorito. Aquele
era um circuito muito perigoso, onde fiquei conhecido e respeitado por ser
um dos poucos que conseguiam fazer a curva Russel, em frente aos boxes,
de pé embaixo, mesmo depois de ter assistido de perto a um acidente fatal
de outro piloto, exatamente ali, e numa quinta-feira. O acidente ocorreu
na primavera e, apesar de ter sido chamado a depor na polícia, como tes-
temunha ocular (pois vinha logo atrás do carro acidentado), “muitas águas
rolaram” após o incidente e eu o deixei para trás.
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VOANDO BAIXO

Agora eu era um piloto de ponta na F3, e lutava com unhas e dentes para
conquistar o vice-campeonato. O líder, Brian Henton, veterano na categoria
e mecanicamente mais bem equipado que eu, somava uma vantagem bem
grande em pontos, depois de ter vencido a maior parte das corridas.
Sem deixar que ninguém soubesse, alimentava em meu íntimo a grande
esperança de vencer o campeonato, uma vez que isso era matematicamen-
te possível, embora muito difícil, pois certamente Henton seria campeão.
Vontade de vencer e autoconfiança não me faltavam. Apesar de ser o meu
primeiro ano na categoria, tudo acontecia a meu favor e eu me sentia im-
pulsionado para a frente, correndo no vácuo do Senhor.
Se Deus é por nós, quem será contra nós? Pensava eu...
Com três voltas de aquecimento no treino daquele dia, eu já estava
andando forte e, na quinta passagem, resolvi fazer a Russel de pé embaixo.
A curva era um “S” de alta velocidade, que fazíamos em quinta marcha, a
quase 200km/h. Cercada de barrancos muito altos, a Russel era uma curva
rápida e cega.
Minha técnica consistia em atirar o carro no escuro e, lá dentro da cur-
va, achar os dois pontos de tangência. Daí, eu traçava uma reta entre eles,
o que me levava, automaticamente, ao destino certo na saída. A diferença
entre fazê-la com o pé embaixo ou quase embaixo era muito grande, por-
que logo em seguida vinha uma subida e, assim, ganhava tempo não só na
curva, mas em toda a reta dos boxes.
Quando atirei o carro para dentro da Russel, dei uma rodada violenta.
De repente, me vi viajando de ré, a todo vapor, rumo ao barranco onde se
arrebentara, em acidente fatal, o piloto e meu amigo Marcos Moraes, em
batidas semelhantes à que eu estava prestes a sofrer.

De cabeça para baixo


Tentei evitar o pior, procurando dirigir o carro de marcha à ré para o meio
da pista, desviando-me do choque. Entretanto, quando as rodas chegaram
à grama molhada, deslizaram como um esqui sobre a neve, na direção do
barranco fatal.
Para diminuir o impacto e as mortes, a administração de Snetterton ha-
via mandado colocar sacos de argila expandida na saída da curva. A chuva,
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porém, encarregou-se de alterar o ângulo e a forma dos sacos, transfor-


mando-os numa espécie de rampa.
O choque de ré contra esse combinado de barranco e rampa lançou o
carro para o espaço, numa decolagem quase vertical. Quando decolei, o
motor morreu e, no silêncio que se seguiu, pude ouvir até o assobio pro-
vocado pelo carro em voo.
Fechei os olhos, tirei as mãos do volante e me encolhi todo, prendendo
os braços rapidamente entre as pernas para evitar quebrá-los, como havia
acontecido a Marcos. Numa fração de segundo, abri os olhos para ver o
que estava acontecendo e fechei-os imediatamente. Descobri que estava
de cabeça para baixo, a pelo menos 5 m de altura.
“Senhor, segura as pontas porque esta vai ser fogo!”

O princípio de Snetterton
Tudo aconteceu em frações de segundos. Mas até hoje me lembro dos
detalhes como se tivessem ocorrido em câmara lenta.
Àquela altura do chão, naquela velocidade e em tais circunstâncias, só
mesmo Deus podia fazer alguma coisa por mim. Por melhor e mais compe-
tente que eu fosse como piloto, não havia absolutamente nada que pudes-
se fazer, a não ser esperar pela pancada.
Assim aprendi que “as impossibilidades do homem são as oportunida-
des de Deus trabalhar em nossa vida”, como diria Corrie ten Boom.
Embora muito mais poderoso e capaz do que nós, suas mãos estão
atadas pela nossa autossuficiência, o que não lhe dá a mínima chance de
agir. Deus existe, sim; mas ele lá no céu e eu, aqui. O carro da minha vida, dirijo eu.
De vez em quando ele nos vira de cabeça para baixo, a fim de enxergar-
mos as coisas de um ponto de vista diferente do nosso, ou seja, o ponto
de vista dele.
Exatamente aí, Deus entra na história que pretendo contar neste livro.

Pouso forçado
A aterrissagem não foi das mais suaves. Lembro-me de que primeiro o
carro caiu de frente, depois, de traseira. Uma série de pancadas na cabeça
fez-me perder a noção do que havia acontecido. Contaram-me depois que
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capotei seis vezes até parar de cabeça para cima. De maneira espetacular,
perdi as quatro rodas, a carroceria, as asas e os radiadores. Essas peças
voaram para todo lado, enquanto o carro subia e descia. Quando ele pa-
rou, restavam apenas o chassi, o motor e eu, coberto de óleo quente, que
no primeiro instante me pareceu sangue.
O capacete perdeu a viseira e a borracha da moldura da face, mas eu
fiquei ileso, sem um único arranhão! Soltei os cintos e pulei para fora dos
destroços imediatamente, antes mesmo que Kiyo e Piauí pudessem vencer
a inércia. Por alguns momentos, eles ficaram paralisados diante do que
haviam acabado de ver, bem ali à sua frente.
Quando conseguiram sair do lugar, atravessaram a pista correndo e,
sem saber o que fazer, abraçaram-me, os dois de uma só vez. Eles estavam
mais assustados do que eu. Quando conseguiram falar, não pararam mais,
repetindo várias vezes os mínimos detalhes do acidente.
Deixei os destroços nas mãos dos dois e fui fazer o check-up médico no
hospital de Norwich. Voltei para casa orando ao volante do Cortina:
“Senhor, muito obrigado pelo livramento e pela lição. E já que o Senhor
é tão bom, gostaria de pedir só mais uma coisinha: ajude-me a conseguir
outro carro para não perder a corrida deste fim de semana em Mallory Park.
Eu soube que o Frank Williams está indo lá só para me ver correr, e isso
pode significar uma futura chance na Fórmula 1.”

Serviço completo
Chegando a casa, caí na cama, de macacão e tudo. Dormi profundamente,
até ser acordado, horas mais tarde, pelo telefone. Era o Marcus Zampo-
ni, jornalista da Auto Esporte. Contei-lhe a história toda, em primeira mão,
troquei de roupa e fui correr atrás do prejuízo, tentando viabilizar minha
participação na corrida daquele fim de semana.
Quando a placa de 3 minutos para a largada foi levantada e todos os
mecânicos se retiraram de perto dos carros, fechei a viseira escura do ca-
pacete e fiquei novamente a sós com o Senhor. Naquele momento, agrade-
ci do fundo do meu coração e louvei a Deus por estar ali em Mallory Park,
sentado no carro-reserva de Marcos Moraes, cedido tão gentilmente para
que eu pudesse participar daquela corrida.
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O novo cavaleiro de Cristo?
“Um triângulo da suspensão dianteira se rompeu
e Alex acabou batendo a mais de 180km/h. Saiu rindo
do que restou do carro. Naquele momento, senti que no
menino franzino havia alguma coisa a mais. Na cabeça
ou na alma. Eu não sabia o que, mas sentia mais do que
entendia: havia alguma coisa a mais.”
Marcus Zamponi

O
s pilotos de competição sempre foram comparados a cavalei-
ros medievais. A analogia é enfatizada por muitos detalhes: o
capacete é o elmo, a balaclava do piloto foi criada com base na
de um cavaleiro medieval, o macacão é a armadura, e o carro, o cavalo.
O grande sonho dos cavaleiros era o resgate do Santo Graal, o cálice em
que Cristo bebeu vinho na última ceia. Para muitos, a semelhança acaba
aí. No entanto, existe um piloto que ainda tem um Santo Graal ou o Cam-
peonato Mundial de F1. Seu nome é Alex Dias Ribeiro, o novo “cavaleiro
de Cristo”.
Num dia insuportavelmente frio de outubro de 1974 — apesar do sol
britânico —, o diretor da March, Sandro Angeleri, pediu-me para ir a Lon-
dres apanhar um piloto brasileiro, que vinha conversar a respeito de umas
corridas de F3.
Nessa época, eu trabalhava na March, auxiliando no escritório e exe-
cutando vários tipos de serviços. O salário não era dos maiores, mas me
permitia viver 24 horas por dia em contato direto com os carros e pilotos
que povoavam meus sonhos, desde os tempos de menino.
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“Alex Cristo Salva”


Quando ouvi o nome do piloto, pensei logo que a Inglaterra ia ter a chance
de conhecer um bocado das malandragens típicas do automobilismo brasi-
leiro. O único registro que encontrei em minha memória sobre aquele piloto
eram alguns boatos sobre sua incrível capacidade de driblar os regulamen-
tos, suas boas performances na Fórmula Ford, e a mania de colocar, por todo
lugar por onde passasse, a inscrição “Cristo salva”. Confesso que, à época,
isso me cheirava a paranoia ou encenação.
Segundo as mesmas fontes, cada vitória de Alex era saudada com cân-
ticos fervorosos de crentes em frente ao pódio, onde se encontrava seu
herói, no momento exato e emocionante da entrega de prêmios. Tanta
lenda em torno de uma pessoa era mais do que suficiente para aguçar
minha curiosidade. Parti logo para Londres, a fim de conhecer a estranha
figura.
O encontro havia sido marcado na casa de Leonel Friedrich, outro pilo-
to brasileiro, que corria pela March na F3. Quando cheguei, Alex já estava
lá. Não sei bem por que a impressão inicial foi das piores, mas acho que
tanta história em torno dele havia me deixado com uma ideia totalmente
diferente a respeito daquele menino franzino e baixinho que me olhava
com cara de caipira bobo.
Talvez esta tenha sido a mais errada avaliação à primeira vista que já fiz
de uma pessoa; mas realmente aquela figurinha não me transmitia nada
de positivo. E hoje me lembro do pensamento que me ocorreu naquele
instante: O que este cara pensa que é correr de F3?
O errado, porém, era eu. Ainda bem! Ele sabia até melhor do que os in-
gleses o que era correr de F3, e também de F2, em que os franceses têm de
agradecer à Renault e à Martini a superioridade de seus motores e chassis
sobre os BMW e March. E não falo da F1 para não me precipitar; mas, no
fundo, acredito que esta não vai ser muito diferente das outras categorias.

O carro
Voltemos para a March, onde o Alex, com um inglês que nem ele mesmo
entendia, tentava e conseguia alugar o carro de Leonel Friedriech (que já es-
tava de volta ao Brasil), para fazer dois treinos e duas corridas, patrocinado
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pela Rastro e pela Brazil Export 73, uma feira nacional que estava sendo
realizada em Bruxelas, em 1973.
Minha impressão de Alex já começou a mudar na conversa que ele teve
com Sandro Angeleri. Alex começou a falar em inglês que era um piloto po-
bre e apresentou uma revista feita por ele, cuja capa era de uma edição da
Auto Esporte, na qual apareciam José Carlos Pace e ele. Dentro havia uma
coletânea de matérias de diversas publicações sobre suas corridas. Aquilo já
me passou uma impressão de luta e de força de vontade.
Dois dias depois, Sandro pediu-me para acompanhar os mecânicos, já
que a comunicação entre Alex e o pessoal da March era praticamente im-
possível. Sandro interessava-se apenas pelo aluguel do carro, não se preo-
cupando nem um pouco com o que aquele piloto pudesse vir a fazer por sua
fábrica, no futuro. O que ele queria era a verba da Brazil Export, e nada mais.
Chegamos cedo à oficina, a fim de acertar o carro para o treino que
seria à tarde, em Silverstone. Quando viu o carro, Alex foi logo sentando
para ajustar os pedais para a sua pequena estatura. Então, veio o primeiro
festival de gargalhadas dos ingleses. Não havia jeito de o Baixinho alcançar
os pedais. Depois de mil e uma tentativas, o banco foi ajustado o máximo
para a frente, enquanto a direção era puxada para perto do piloto. O topo
do cockpit teve de ser cortado, simplesmente porque Alex não podia ver a
pista. Tudo pronto, apareceu um novo problema: com os pés encostados
nos pedais, ele não conseguia encostar-se no banco. Então tive de sair
para comprar muita espuma, a fim de que a figurinha de quarenta e poucos
quilos pudesse acomodar-se dentro do carro. Ao voltar, encontrei os me-
cânicos fora da oficina, tentando disfarçar, sem muito sucesso, o riso. Logo
senti que algo de insólito estava acontecendo lá dentro. Quando entrei,
havia outro carro. Alex havia substituído todos os adesivos dos patrocina-
dores de Leonel pelos da Brazil Export, Rastro e os famosos “Jesus Saves”,
já em inglês. Estes, por sinal, cobriam quase toda a extensão do carro.
Posteriormente, compreendi que, naquele momento, o Baixinho estava
mostrando que não se desligaria nunca de seu Patrocinador Maior, e que este
prosseguiria definitivamente em sua cruzada, onde quer que ele estivesse.
Naquela tarde, Alex deixou claro que não estava lá para brincar. Seu
treino não deixou nada a dever ao de nenhum piloto de ponta da categoria.
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Depois de dar apenas quatro voltas, já estava a menos de dois segundos


do recorde, e, com cinco voltas, nada sobrava do carro.
Um triângulo da suspensão dianteira rompeu-se e Alex acabou batendo
a mais de 180km/h. Saiu rindo do que restou do March 733. Naquele mo-
mento, senti que no menino franzino havia alguma coisa a mais. Na cabeça
ou na alma. Eu não sabia o que, mas sentia, mais do que entendia: havia
alguma coisa a mais.

As primeiras corridas na F3
Ainda naquele fim de temporada, as duas primeiras corridas de Alex
não disseram muito. Em Thruxton, outro acidente, ainda nos treinos,
não lhe permitiu correr. Em Brands Hatch, debaixo de muita chuva,
manteve uma disputa sem muita expressão, com Ted Wentz, pelo dé-
cimo lugar.
Foi em 1974 que Alex apareceu no cenário automobilístico europeu, mas
não com a imagem de respeito e confiança que agora tem, e sim com a de um
perfeito selvagem. Numa guerra aberta da imprensa inglesa contra ele, nem
mesmo sua crença foi respeitada. Apesar de aceitar tudo passivamente, Alex
transformou o menosprezo em estímulo à sua dedicação.
Três vitórias, o vice-campeonato inglês, duas capotagens, uma pole po-
sition na estreia em Nürburgring, duas quase pancadarias na Alemanha e
na Itália, e muita experiência em sua bagagem, foram o saldo de uma tem-
porada em que correr com um GRD era um grande handicap a favor dos
March, que tinham o domínio absoluto.
Seu grande ano na F3, porém, foi 1975, quando conquistou definitivamen-
te seu lugar no ranking mundial de pilotos aspirantes às categorias maiores.
A F3 passou a ser o grande celeiro de pilotos de F1. Algumas provas
serviam de preliminar às corridas do Campeonato Mundial, e os chefes de
equipe da F1 observavam atentamente essas corridas, na esperança de
encontrar um talento perdido em meio àquelas feras.

A via crucis
Os seis primeiros meses de 1975 foram um verdadeiro suplício para um pi-
loto que tinha as aspirações de Alex. Ele se viu obrigado a dividir a equipe
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oficial da March com o sueco Gunnar Nilsson, e logo teve uma lição precoce
dos problemas e desilusões de ser o segundo piloto. Além de acelerar uma
barbaridade, Gunnar tinha entre seus predicados naturais a capacidade de
ser extremamente simpático e conseguir bajular os jornalistas ingleses da
maneira certa. Com muito mérito, Nilsson conseguiu uma série de vitórias
espetaculares no início da temporada. Alex, porém, estava sempre por per-
to, e, de vez em quando, dava suas cravadas no companheiro de equipe.
Enquanto Gunnar virava manchete e começava a ser cotado para F1, o
pior sobrava para Alex: os mordazes comentários de uma crônica em que
o autor revelava já estar cansado de ver o sucesso dos brasileiros. Para um
jornalista com as limitações criativas de um Chris Witty, da revista inglesa
Autosport, era demais ver cotado para a F1 um brasileiro mirrado, que,
além de vencer com frequência seus ídolos e compatriotas, insistia em
afirmar para todos que Cristo salva.

Ninguém pediu para ser salvo de nada!


A guerra contra Alex cresceu tanto, que um dia, durante uma conversa com
jornalistas ingleses, quando me referi ao “Cristo Salva”, Witty comentou: “E
daí? Não perguntamos nada a ele!”, fazendo alusão clara ao fato de não ter
pedido a ninguém para ser salvo de coisa nenhuma. Por seu lado, Alex não
reagia às provocações e nada fazia nas pistas para modificar as ideias que
os ingleses tinham a seu respeito.
Um claro exemplo disso foi a preliminar de F3 do Grande Prêmio da
Suécia, de 1975. Enquanto os dois suecos, Kony Anderson e Gunnar
Nilsson, disputavam a liderança, roda a roda, Alex encostou o carro nos
boxes com um pneu furado. Ao voltar para a pista, já sem chances de
conseguir uma boa colocação, preocupou-se apenas com a obtenção da
volta mais rápida, que lhe daria mais um ponto no campeonato e um bom
prêmio em dinheiro. Entretanto, para sua infelicidade e a infelicidade de
Nilsson, Alex voltou à pista justamente no momento em que passavam
os dois suecos, que disputavam, a pau e pedra, a vitória. O apelo para
andar na frente dos dois líderes era de fato demais para a cabeça de Alex,
que estava com duas voltas de atraso, e ele acabou entrando no meio de
Gunnar e Kony.
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O resultado não poderia ter sido pior. Duas voltas mais tarde, ao dis-
putar uma freada com seu companheiro de equipe, os dois se chocaram e
tiveram de abandonar a prova. É fácil imaginar a cena. Numa preliminar do
GP da Suécia, o retardatário Alex, sem chances de se colocar, tira da prova
o possível ganhador: um sueco que, se não fosse o primeiro, seria fatal-
mente o segundo, fechando a dupla da casa. Segundo várias testemunhas,
Nilsson não conseguia falar — babava de raiva.
Nos incidentes verificados no GP de Mônaco, entre Alex e Tony Bri-
se, algumas vozes levantaram-se em defesa do Baixinho; mas, na Suécia,
foi bem diferente. A imprensa simplesmente demoliu a imagem do piloto
brasileiro, e somente a fé lhe permitiu suportar a violência desse golpe e
reconhecer seu erro com humildade. Para qualquer outro, aquilo poderia
ter significado o início do fim; mas, para Alex, foi apenas mais uma etapa
de sua luta obstinada pelo sucesso.
Os treinos aconteciam com muita frequência e, a partir desse episódio,
Alex conseguiu equilibrar e até superar parcialmente as performances do
adversário Nilsson.
Com o tempo, a crônica relaxou sua vigília em torno de Alex, à procura
de uma brecha em sua guarda. Essa postura foi reforçada pela mudança
nítida em seu estilo de disputar uma corrida e o consequente aumento da
produtividade, o que provocou um convite de Frank Williams para a F1,
jamais confirmado ou desmentido pela imprensa.

Filme queimado
A caçada implacável que a imprensa inglesa moveu em torno de Alex teve
consequências muito piores: a perda da confiança de seus patrícios.
Indicado no início da temporada como piloto-reserva do Copersucar,
dos irmãos Fittipaldi, o espanto foi geral com a notícia de que ele fora
substituído por Ingo Hoffmann. Sem desmerecer Ingo, os conhecimentos
e a experiência de Alex eram infinitamente superiores aos predicados na-
turais, ainda em desenvolvimento, de Hoffmann, que começara a correr há
pouco mais de dois anos.
Para Alex, sobraram algumas justificativas pouco convincentes de Wil-
son Fittipaldi Jr. E um pequeno resquício da compreensão e compadeci-
mento de toda a especializada crônica europeia e brasileira.
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O NOVO CAVALEIRO DE CRISTO?

Bom vendedor
Depois de tantos golpes, as chances de um bom patrocínio que permitisse
ao Baixinho ascender à F2 eram remotas. Ele, porém, não desistiu. Com o
apoio de sua esposa, Bárbara, que já estava a seu lado desde a segunda
temporada de F3, conseguiu manter o patrocínio fiel da Perfumaria Rastro,
e ainda descolou um novo patrocínio — a Caixa Econômica Federal —, que
veio com uma só pergunta feita por Alex, depois de uma estafante reunião
com toda a diretoria da entidade federal. Eles estavam mais inclinados a
patrocinar o GP do Brasil do que a temporada de Alex. Então o Baixinho
fez a pergunta decisiva: “Quem patrocinou o GP do Brasil do ano passado
(1975)?” De fato, ninguém se lembrava e perceberam que patrociná-lo fir-
maria muito mais a imagem da empresa.
Ao sair da sede da CEF, em Brasília, Alex estava tão emocionado que,
ao dar uma marcha à ré, bateu com seu carro no carro de um diretor. Este
é apenas um detalhe curioso de sua carreira.
Com a verba, foi-lhe garantido um lugar na equipe oficial da March de
F2, a melhor que pode pretender um piloto não-francês. Aquela, porém,
era uma posição de muita responsabilidade. Por ela já haviam passado no-
mes como Ronnie Peterson, Niki Lauda e Patrick Depailler, entre outros. De
imediato, Alex se encontrava na desconfortável posição de segundo piloto,
além do fato de os chefes de equipe de F1 continuarem a procurar novos
valores na F3. Este era, na verdade, o maior de todos os problemas, pois
sua meta sempre foi um lugar na F1.
O primeiro piloto da equipe era o italiano Maurizio Flammini, que já
contava com algumas vitórias na F2 e também com a preferência de San-
dro Angeleri e da diretoria da March, cuja intenção era transformá-lo numa
edição revista, melhorada e moderada de Vittorio Brambilla (apelidado de
Gorila de Monza, por Chris Witty, que também não gostava de Brambilla).

A volta por cima


Enquanto Alex pegava a mão dos F2 no início do ano, o italiano começou
a deslanchar; mas aos poucos Alex foi se tornando mais um obstáculo para
Flammini, além dos motores Renault, que equipam os carros franceses.
Aos poucos, o Baixinho se impôs como o melhor piloto de F2 daquela
temporada, posição só contestada por René Arnoux.
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Por isso, os convites para a F1 agora eram muitos. No GP da Áustria,


Alex foi sondado para correr com um Ensign, mas recusou, por achar que
ainda era cedo. Depois do GP de Portugal de F2, recebeu uma sondagem
de Bernie Ecclestone para ser o segundo piloto da Brabham, em 1977. O
mesmo convite recebeu de Robin Hood, para ficar na March, além de um
convite de Frank Williams e outro de John Surtees, pretendendo que Alex
testasse um TS-19.
No entanto, apesar de esperar sentar num F1 no ano seguinte, Alex
pensava mais na F2, onde já tinha seu lugar garantido na March, graças à
Caixa Econômica Federal e à Rastro, pois, nessa categoria, ele poderia bri-
lhar, já que na F1 seria apenas um aprendiz. Ele mesmo dizia que não tinha
pressa de entrar na F1, porque não havia mais dúvidas de que chegaria a
ela, e sua intenção não era somente chegar, mas basicamente permanecer,
fazendo sucesso, pois esta era a sua única e absoluta meta.
Em meados de agosto, antes de serem divulgados os comentários sobre
a sua possível contratação pela Brabham, Alex escreveu-me, contando as
novidades. O parágrafo final refletia toda a sua razão de ser. Perdoe-me,
Alex, por tornar pública sua frase, mas acho que é o momento de mais
gente conhecê-lo melhor:

Sobre a vontade e o coração, quero dizer que não é tudo. Existem outros que
também lutaram pra burro e nunca chegaram à F1. Você sabe muito bem que
lá em cima tem alguém que me empurra para a frente e, se ele é por nós, quem
há de ser contra?... É ele quem me dá a força e o coração para seguir lutando,
como tenho feito até agora, mas com uma diferença: A CERTEZA DA VITÓRIA.
Aquele abraço,
Alex

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A velocidade
“Correr de automóvel é uma profissão em que nós,
pilotos, somos muito bem pagos para fazer algo que
faríamos até de graça.”
J a c k i e S t e wa r t

V
elocidade é o resultado da divisão de certa distância pelo tempo
gasto para percorrê-la. Invertendo-se a fórmula, sabe-se que, quan-
to mais rápido se corre, mais rápido se chega. Nem sempre, porém,
as coisas acontecem assim, pois quanto mais se corre, maiores são os
riscos de uma falha mecânica ou de um acidente.
Houve tempo em que o bom piloto era o mais arrojado. Hoje em dia,
o bom piloto é o melhor técnico, o homem que usa mais a cabeça do que
o pé direito. Essa história de que devagar se vai ao longe não existe em
corridas de automóvel.
A Fórmula 1 é a principal categoria do automobilismo, e dela participam
somente trinta pilotos. Existem, no entanto, pelo menos 30.000 pilotos
por todo o mundo competindo em outras classes. Isto nos leva a concluir
que cada piloto que atingiu a Fórmula 1 passou por um vestibular, no qual
eliminou outros 29.970 concorrentes.

O que é Fórmula?
Para que uma corrida seja interessante, é necessário que haja competição;
e, para isso, os carros são divididos em várias classes. Assim como no
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boxe, Eder Jofre e Muhamed Ali lutaram em diferentes categorias, con-


forme o peso que eles tinham. No automobilismo existem complicadas
fórmulas que separam os carros de acordo com o seu peso, cilindrada e
forma. Daí as Fórmulas 1, 2, 3, Indy, e muitas outras.
Os carros de Fórmulas 1, 2, 3 e Indy são monopostos, ou seja, têm ape-
nas um assento para o piloto e as rodas descobertas. Além destas catego-
rias, existem as corridas de turismo — disputadas por carros de série que
vemos na rua — e várias outras que variam conforme o grau de preparação
do motor, suspensão, câmbio e modificações mecânicas, feitas com o ob-
jetivo de aumentar a velocidade e melhorar o desempenho.
Existem também o grand turismo, os carros-esporte construídos só para
corridas, os karts, os dragsters, os carros de rally, cross country, e muitas outras
modalidades.
Para simplificar, vamos falar apenas das Fórmulas 3, 2 e 1, que são os
três estágios mais altos na carreira de um piloto que pretenda chegar ao
topo do automobilismo internacional.
Esses carros são construídos sem limitação de precedência dos mate-
riais, nem das técnicas empregadas. As restrições do regulamento são: o
peso mínimo, as dimensões máximas, o tamanho do motor, os itens de
segurança, a capacidade máxima do tanque de gasolina etc.
A F3 diferencia-se quanto à precedência do motor, que deve usar obri-
gatoriamente o bloco de um carro produzido em série.
A Fórmula Indy é uma espécie de versão americana da Fórmula 1. Com
a realização de provas fora dos EUA, passou a ser chamada de Fórmula
Mundial. Nos circuitos ovais, esses carros alcançam quase 400km/h, impul-
sionados por um motor turbinado movido a metanol, em vez de gasolina.
Aparentemente, as maiores diferenças externas entre esses carros são a lar-
gura dos pneus e o barulho do motor. Debaixo do capô está a grande diferença.
O motor de um F3 do meu tempo tinha 160 cavalos, o da F2 tinha 320,
o da F1, 550, e o da Fórmula Indy, 750 cavalos.
Hoje, a F2 foi substituída pela Fórmula GP2, como último degrau antes
de um piloto chegar ao topo de sua carreira na F1. Com a mudança do re-
gulamento e o desenvolvimento tecnológico, um F1 moderno desenvolve
mais de 850 cavalos.
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A VELOCIDADE

Rápido no gatilho
Para domar um foguete desses, são necessárias reações muito rápidas e
precisas. Isso é adquirido nas categorias de base. Em outras palavras, um
piloto não se faz da noite para o dia. É preciso alguns anos de aprendizado.
O piloto sobe de categoria, como o aluno passa de uma série para outra,
na escola.
Se dividirmos o peso de um Volkswagen pelo número de cavalos de seu
motor, veremos que ele possui um cavalo para cada vinte quilos de peso.
Um carro de F1 tem mais de um cavalo para cada quilo. Por isso, ele é
capaz de acelerar uma vez e meia a força da gravidade. Ao meter o pé no
acelerador, as costas grudam no encosto do banco e o difícil é segurar a
cabeça. Parece uma nave espacial decolando!
Para que toda essa potência seja transmitida ao asfalto, os pneus tra-
seiros são mais largos e construídos com um tipo de borracha bem mole,
para aumentar o coeficiente de atrito. A aderência desses pneus na freada
é tão violenta, que o carro desacelera duas vezes a força da gravidade. Nas
curvas, a velocidade é tão superior à de um carro de rua que gera uma força
centrífuga equivalente a três vezes a da força da gravidade em aceleração
lateral.

Haja fôlego!
Com tudo isso, o corpo humano — amarrado ao carro pelo cinto de seis
pontos que lhe prende o tórax, a bacia e as pernas — sofre cargas incríveis
a cada curva, freada, aceleração ou troca de marcha.
A pista de Interlagos1 possui curvas muito longas, sendo a Curva do Sol
a mais longa da F1. Ela é feita a mais de 200km/h, e alguns pilotos chegam
a amarrar o capacete aos ombros para aguentar o peso da própria cabeça,
sob a ação da força centrífuga.
Como acontece nas corridas do Brasil durante um fim de semana muito
quente, perde-se cerca de quatro quilos de peso, tamanha a transpiração
dentro do macacão à prova de fogo e grosso como um cobertor.

1
Refere-se ao traçado daquela época. O circuito foi modificado para aumentar a segurança.

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Por tudo isso, o preparo físico do piloto inclui uma corrida diária de 5
km, levantamento de peso, exercícios de agilidade e reflexo, bem como
alimentação especial e muitas horas de sono. O mais bem preparado entre
nós era Emerson Fittipaldi, que corria diariamente 8 km. Sua forma física
era melhor do que a de muitos jogadores de futebol.
Fórmula 1 não é um jogo, onde um perde e outro ganha: os seis pri-
meiros colocados marcam pontos, em ordem decrescente de colocação.
Conseguir chegar até o fim ou mesmo classificar-se para a largada já é algo
muito importante.
O campeonato mundial é composto, normalmente, de dezessete cor-
ridas: dez na Europa, três na América do Norte, duas na América do Sul,
uma na África e uma no Japão. Os carros são transportados de avião, bem
como pilotos, mecânicos, chefes de equipe, engenheiros e cronometristas.
São necessárias, no mínimo, vinte pessoas para operar um carro desses
num Grand Prix, fora o pessoal que trabalha nas fábricas. Uma equipe de
ponta emprega trezentos funcionários, entre o pessoal de projeto, cons-
trução, inscrição e manutenção de dois pilotos no campeonato mundial.

Haja grana!
Construídos à mão, dentro da melhor e mais sofisticada tecnologia, os
carros são verdadeiras joias mecânicas, compostos de materiais exóticos
usados na aviação e até nas pesquisas espaciais, com o objetivo de se
obter o máximo rendimento, a maior potência e o menor peso. Eles têm
até asas para não voar. São os aerofólios — asas de cabeça para baixo
que enterram o caro no chão, aumentando a estabilidade e a tração, num
processo exatamente inverso ao dos aviões.
Por isso, custam uma fortuna; sua manutenção e operação durante uma
temporada custa mais ainda. Um motor F1 custa mais de U$ 200.000,00 e
dura apenas uma corrida.
Os patrocinadores sustentam as equipes em troca da publicidade na
carroceria dos carros, que são verdadeiros outdoors volantes. As fábricas de
automóveis, pneus, combustíveis e componentes mecânicos têm também
seu interesse publicitário e técnico nesse esporte, que funciona como la-
boratório de testes. Cintos de segurança, freios a disco, pneus sem câmara
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A VELOCIDADE

e milhares de soluções mecânicas criadas para as pistas equipam hoje os


carros de rua.
Não é difícil imaginar que existam inúmeros interesses políticos e finan-
ceiros por trás das corridas. Por melhor que seja um piloto, não irá muito
longe sem o suporte financeiro de um patrocinador ou de recursos pró-
prios. Por isso, há quem diga que o automobilismo é esporte de ricos ou
abusados. Eu fui um dos poucos abusados a chegar ao topo.

Um patrocinador muito forte


Neste particular, a maior diferença entre automobilismo e futebol é que, no
futebol, você só precisa de uma bola para começar. No automobilismo, é
necessário, no mínimo, um carro que custa muito mais.
Em minha carreira automobilística, contei com o patrocinador, ele-
mento indispensável na carreira de qualquer piloto. Fiz propaganda desde
lubrificantes, pneus, peças e combustíveis, até bancos, refrigerantes, cigar-
ros, revistas e perfumes.
No fim da temporada de 1975, estreei na Fórmula 2, investindo todas as
minhas economias no aluguel de um March BMW. Na decoração do carro,
mandei colocar apenas a pintura da expressão “Cristo Salva”, e fui para Roma,
feliz da vida. Foi a primeira vez que pude realizar o sonho de pilotar um carro,
anunciando com exclusividade a mais importante de todas as mensagens.
Chegando ao autódromo de Vallelunga, em Roma, um jornalista italiano
perguntou-me se era o Vaticano que estava pagando. Eu respondi, dizen-
do que quem estava pagando era Deus. Não satisfeito com a resposta, o
jornalista passou o fim de semana perguntando como isso era possível. De
uma forma ou de outra, Deus é o maior patrocinador que tive, e o único
que nunca me deixou na mão.

Poucos cavalos e muitos cavaleiros


No circo das corridas, o piloto é o astro principal do espetáculo. Um super-
herói dos tempos modernos. Atrás do capacete, entretanto, está um ser
humano sujeito às mesmas fraquezas como qualquer outro.
Como a imagem vendida ao público é a de uma vida maravilhosa e cheia
de prazeres, muitos sonham ou já sonharam em ser piloto, principalmente
os que dirigem bem ou pensam fazê-lo.
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Há, porém, poucos cavalos para muitos cavaleiros. Os apaixonados


pelo esporte realizam-se também em funções ligadas ao automobilismo,
como mecânicos, cronometristas, chefes de equipe, comissários de pista,
jornalistas ou até mesmo torcedores. Cada torcedor se identifica com um
piloto, de acordo com suas características e personalidade. Alguns com o
arrojo de Peterson e Scheckter, outros com a frieza de Lauda, com a perse-
verança e a sorte de Emerson, ou a coragem de Brambilla. Ao se identificar
e torcer por alguém, eles também estão participando e experimentando as
sensações das corridas.

A imprensa
Nesta conjuntura, a imprensa desempenha um papel importantíssimo, pois
informa o que está acontecendo ao público que não tem acesso aos carros
e pilotos. Essa informação, entretanto, depende muito do que se passa na
cabeça de cada jornalista. Relatar o fato em si é a sua função, mas muitos
adicionam a isto suas opiniões, que variam de acordo com pontos de vista
e interesses próprios. Assim, as reportagens sobre uma corrida, feitas pe-
las imprensas italiana e inglesa, podem ter em comum apenas a data e o
resultado da prova.
Alguns chefes de equipe utilizam-se da imprensa para exercer pressão
sobre os pilotos. Os patrocinadores dependem da imprensa para um bom
retorno de seus investimentos no esporte. O piloto tem de ter muito cuida-
do com o que diz e para quem diz as coisas, pois isso pode comprometê-lo
ou até mesmo significar o fim de sua carreira.
Por esta razão, alguns preferem falar o mínimo, ou até fugir dos jornalis-
tas. Os mais políticos desenvolvem o hábito de falar muito, sem dizer nada.
Um jornalista alemão desabafou sua frustração comigo uma vez: “Os
pilotos são todos mentirosos, Alex. Este é um mundo de mentiras”.
Por outro lado, já li matérias contendo declarações ditas feitas por mim,
e que jamais fiz. Uma manchete sensacionalista e não verdadeira foi su-
ficiente para comprometer meu relacionamento com Ayrton Senna e sua
família, durante alguns anos.
A maioria dos pilotos dorme cedo e tem uma vida regrada, especial-
mente às vésperas da corrida. Um repórter inexperiente que telefona para
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o piloto quando este já está dormindo, sem o menor constrangimento em


acordá-lo e atrapalhar seu descanso, pode acabar comprometendo sua
atuação na prova do dia seguinte.
O piloto acorda mal-humorado, diz uma porção de desaforos e perde a
noite de sono. No dia seguinte, certamente lerá no jornal que é antipático
e temperamental. O público, entretanto, fica sabendo só essa parte da his-
tória. Foi assim que Nelson Piquet conquistou vários troféus-limão, sendo
considerado o cara mais azedo do circo.
Como se pode ver, o relacionamento piloto-repórter é algo muito deli-
cado. A coexistência pacífica entre os dois é o ideal. Mas não é fácil!

Carreiras são carreiras


Desde que dois carros estiveram juntos pela primeira vez, o homem não
resistiu à tentação de comparar suas performances, surgindo aí as corridas
de automóveis. A velocidade deles, entretanto, era muito superior à das
carruagens, e, quando acontecia um acidente, as consequências eram mui-
tas vezes piores para seus destemidos pilotos. Logo, alguns pagaram com
a vida o preço de seu arrojo, e a velocidade ganhou uma imagem trágica.
Nas corridas, o objetivo é andar sempre o mais rápido possível, e, quan-
to mais rápido se anda, maior é o impacto contra o imprevisto. Os psicólo-
gos garantem que o esporte não teria o mesmo apelo para os espectadores
e o mesmo desafio para os pilotos, se não houvesse o fator perigo. A ex-
pectativa do acidente mantém o público ligado aos mínimos lances. Como
nas touradas, onde muita gente torce pelo touro.

O carro
O Fórmula 1 carrega um terço do próprio peso, em gasolina de avião, a
mais de 300km/h. Qualquer um pode imaginar os riscos envolvidos nessa
realidade. Por esta razão, várias medidas de segurança vêm sendo tomadas,
não só na construção dos carros, mas também nas pistas, no equipamento
dos pilotos, no preparo dos comissários de pista, bombeiros, equipes de
socorro e até na medicina ultra-especializada em primeiros socorros.
Os carros são equipados com tanques de borracha à prova de rompi-
mento, fogo e explosão. Carregam extintores de bordo com acionamento
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automático e uma garrafa de gás medicinal, para que o piloto possa respi-
rar dentro do fogo durante noventa segundos, tempo suficiente para cair
fora ou ser socorrido. A barra anticapotamento, conhecida como santoan-
tônio, não permite que a cabeça do piloto bata no chão, caso o carro vire
de cabeça par baixo. O chassi é protegido por uma estrutura deformável,
para absorção de impactos frontais e laterais.

O equipamento de segurança
O capacete tipo astronauta protege a cabeça e a face. O macacão, as luvas
e as sapatilhas, resistem às chamas por noventa segundos.
As comissões de segurança inspecionam os circuitos, com o objetivo de
torná-los mais seguros. O circuito ideal seria aquele onde o carro pudesse
sair da pista, em qualquer ponto e a qualquer velocidade, sem encontrar
nenhum obstáculo com que se chocar. Para isso, seria necessária uma área
plana muito grande, e os espectadores ficariam tão distantes que perde-
riam a sensação do espetáculo. Por isso, foram criadas as barreiras de pro-
teção chamadas guard rails, e depois as redes de absorção de velocidade e
as caixas de brita, que diminuem a consequência dos impactos.

Insegurança a toda prova


Não obstante, fatos desagradáveis ainda acontecem, como no GP do Ca-
nadá de 1977. Na véspera, dei uma volta a pé pelo circuito e à noite co-
mentei com Bárbara sobre a irresponsabilidade de quem havia aprovado
uma pista como a de Mosport, para corridas de Fórmula 1.
No dia seguinte, o carro de Ian Ashley decolou no fim da reta — provavel-
mente, devido a uma falha aerodinâmica. Voou por cima do guard rail a mais
de 250km/h, e caiu em cima de uma câmera de televisão. O choque foi tão
violento, que arrancou as quatro rodas, o motor e o câmbio. Ashley ficou pre-
so nas ferragens com as duas pernas e os dois braços quebrados. Os comis-
sários de pista não dispunham de ferramentas de corte — de uso obrigatório
—, e os mecânicos tiveram de ir até o local do acidente cortar o chassi para
retirar o piloto. Menos mal que ele já tinha sido adormecido, graças à pronta
intervenção dos médicos. Foi-lhe aplicado um sedativo para amenizar a dor
e a revolta de ver e sentir na carne tamanha ineficiência e irresponsabilidade.
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A VELOCIDADE

O drama durou 40 minutos e não havia um helicóptero no circuito para


levá-lo ao hospital em Toronto.
À tarde, Jochen Mass sofreu outro acidente sem consequências físicas,
mas o guard rail estava tão enferrujado, que se desmontou e o treino foi
interrompido por mais de uma hora, até que se fizessem os reparos ne-
cessários. Tão logo foi reiniciado, Gilles Villeneuve chocou-se contra uma
cerca de proteção e voltou sem rodas para a pista. Como os comissários
não conseguiram retirar sua Ferrari do meio da rua, esta permaneceu ali até
o final do treino, meia hora depois.
Inconformados, os pilotos juntaram-se para uma reunião com os or-
ganizadores, a fim de protestar e reivindicar melhores condições de se-
gurança. Todos estavam convencidos de que a pista e a organização não
ofereciam as mínimas condições. Brigamos, xingamos, protestamos, mas
não deu em nada.
Aos poucos, todos foram se retirando, sem que houvessem chegado
a uma solução para o problema. Fui o último a sair. Apesar de todos nós
estarmos absolutamente convencidos de que não tínhamos segurança, ne-
nhum tinha força suficiente para ir contra os interesses dos organizadores
e dos donos de equipe. Assim, na manhã seguinte, estaríamos na pista
arriscando nossa vida, como se nada tivesse acontecido.
Naquele domingo, Rupert Keegan e Gunnar Nilsson foram parar no hos-
pital. Oito carros foram destruídos no fim de semana e muitos protestos
foram feitos. As soluções, porém, levaram anos para chegar.
Em outras ocasiões, presenciei acidentes em que a barra anticapota-
mento desintegrou-se por ter sido construída com material menos resis-
tente que o especificado, e o piloto machucou o pescoço. Vi também um
engenheiro mandar retirar de dentro dos tanques de gasolina do meu carro
as esponjas de segurança contra fogo para aliviar o peso, numa demons-
tração de total desrespeito à vida do piloto.

Trapaças e tramoias
Desde o dia em que presenciei dois grandes chefes de equipe colocando,
disfarçadamente, suas placas de sinalização em frente à célula fotoelétrica
da cronometragem oficial, com o objetivo de melhorar ilegalmente o tem-
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po de seus carros numa prova de classificação, percebi que são capazes de


fazer qualquer coisa ilícita para conseguir uma vantagem.
Uma das equipes costumava encher todos os reservatórios de óleo até
a borda e mandar seus pilotos saírem encharcando a pista de óleo, para
que os outros concorrentes não melhorassem seus tempos, quando um de
seus carros havia conseguido ser o mais rápido, garantindo, assim, a pole
position.
Este é o mundo das corridas.

Não é necessário ser louco; mas isso ajuda!


“Então, por que você corre?” — é a pergunta que você me faria, depois de
saber desses e de muitos outros “podres” dos bastidores.
A resposta é simples: “Por que sou movido pelo fascínio da velocidade
dessas máquinas maravilhosas”.
“Esta é uma profissão na qual somos muito bem pagos para fazer o que
faríamos de graça”, comentou Jackie Stewart.
“É a coisa que eu mais gosto de fazer, e sou muito feliz porque pouca
gente no mundo tem o privilégio de ter como profissão aquilo que mais
gosta de fazer” foi a observação feita por François Cevert, piloto que mor-
reu num acidente em Watkins Glen. Estou certo de que, se ele pudesse
voltar a viver, voltaria a correr.
“Antigamente eu tinha prazer em correr. Hoje em dia — 1977 —, não
tenho mais esse prazer. Embora me sinta realizado, não sei bem por que
ainda corro”, revelou Jody Scheckter.
“Eu odeio esse esporte, mas não consigo deixá-lo. Acho que sou de-
pendente”, comentou Brian Henton.
Para todos, existe apenas um senão: o perigo. Neste ponto, somos to-
dos inconsequentes, a bordo de um carro de corrida.
No entanto, inconsequência não é sinônimo de irresponsabilidade. As
contingências do próprio esporte nos levam a não pensar no perigo quan-
do estamos no volante; caso contrário, o pé sai do acelerador na hora.
Jim Clark dizia que tinha medo, mas o grande segredo do negócio era
saber enfrentá-lo. Ele enfrentou corajosamente o medo, até pagar com a
própria vida o preço de sua coragem.
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A VELOCIDADE

A certeza da vida eterna e da salvação em Jesus Cristo são minha grande


vantagem. Se acontecer o que os homens consideram o pior, para mim,
será o início da vida eterna. Já me acusaram de ser anticristão, por arriscar
a vida dessa maneira. Entretanto, a Bíblia diz que, se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De modo que, quer vivamos, quer mor-
ramos, somos do Senhor.2
Gosto muito do esporte, tenho grande prazer em praticá-lo. A velocida-
de, no entanto, era apenas a melhor maneira de falar do meu Senhor. Creio
que ele me deu o talento e a vontade de correr. Por isso, para anunciar
ao mundo que Cristo salva, eu usava o que naquela época eu sabia fazer
melhor.

2
Romanos 14.8

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Alex
“Lembra quando você me convidou para ser seu
mecânico? Esse foi o maior incentivo que você
me deu. Eu sempre dei muito valor à sinceridade,
e você foi sempre muito sincero comigo, tanto na
parte boa como na ruim.”
Nelson Piquet

E
le, Isaac, um baiano do interior, estudante de medicina. Ela, Clo-
tildes, enfermeira, também baiana. Os dois se conheceram num
hospital em Belo Horizonte. Apaixonaram-se e casaram-se. Plane-
jaram um “superfilho”, criado à base de vitaminas e de todos os recursos
médicos da época. Eu nasci pequeno e magro, mas muito esperto. Nessa
ocasião, meu pai ainda não havia se formado e meus primeiros anos de
vida foram passados dentro de um hospital.
Quando meu pai se formou, mudou-se para Anápolis, interior de Goiás.
De lá, resolveu ir para o meio do mato, onde o governo implantava uma
colônia agrícola chamada Ceres.
Durante meus primeiros cinco anos de vida, fui filho único. Nos três
anos seguintes, ganhei duas lindas irmãs e um irmão tão maluco quanto
eu. Seus nomes: Daisy, Marta e Fernando, todos Dias Ribeiro.
Aos 3 anos de idade, sabia de cor o nome de todos os ossos do corpo
humano e meus orgulhosos pais estavam convencidos de que eu seria um
talentoso cientista.
Desde o primeiro dia de aula, detestei a escola. Apesar disso, suportei-
a até os dois primeiros anos da universidade, onde estudei um pouco de
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engenharia, administração de empresas e publicidade, mas nunca cheguei


a receber um diploma.
No interior de Goiás, fui criado solto. Gostava de aventura, amava a
liberdade e não tinha medo de nada — exceto de cobra e de índio, que lá
não havia.
Muito cedo, ganhei meu primeiro velocípede e tive, depois deste, ou-
tros quatro, mais três bicicletas e uma motocicleta, perfazendo um total de
vinte e três rodas, antes do primeiro automóvel.
Quando tinha 8 anos, meu pai, novamente movido pelo espírito de pio-
neirismo, decidiu mudar-se para Brasília, ou melhor, para o lugar onde seria
construída a nova capital do Brasil. Foi em janeiro de 1957. Foi o primeiro
médico particular a se estabelecer na nova capital, e fez questão de que
eu fosse o primeiro garoto a ser matriculado na primeira escola aberta na
Cidade Livre (o canteiro de obras da nova capital). Meu pai queria que eu
entrasse para a história, como o primeiro aluno de Brasília.
No entanto, eu queria mesmo era ser engraxate. Um dia faturei mais
do que ele, nos difíceis tempos da construção da cidade. Também vendi
garrafas, latas e jornais, mas só consegui minha independência financeira
muitos anos depois.
Dos 8 aos 14 anos de idade, fui estudante, escoteiro, artista, engraxate,
violinista, mecânico, ciclista, agricultor, aeromodelista, inventor, fotógrafo,
químico, rádiotécnico, criador de coelhos e colecionador de selos, fósfo-
ros, lápis, moedas e balas de revólveres.
Aos 10 anos, aprendi a dirigir e, numa das primeiras tentativas, quase
derrubei o barraco 28 do acampamento do Hospital do IAPI, onde minha
família morava, ao bater com o velho Oldsmobile do meu pai na porta da
garagem. Eu era tão pequeno, que não conseguia enxergar por cima do
painel!

Amor à primeira vista


Aos 11 anos, levado por meu pai, assisti pela primeira vez a uma corrida
de automóveis, e imediatamente decidi ser um corredor. Foi uma paixão
incontida e à primeira vista. De repente, assumi uma nova identidade: Alex
Dias Ribeiro, o grande campeão.
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ALEX

A certeza de que isso realmente iria acontecer foi tão grande, que, a
partir daquele momento, só pensei em me preparar para o dia em que o
sonho se concretizasse. Esse treinamento incluiu o carrinho de rolimã, o
autorama, o skate, a bicicleta, e todo tipo de competição sobre rodas.
Aos 14 anos, ganhei a tão cobiçada motocicleta, e tornei-me um play-
boy, no mais alto estilo da época. Adquiri muitos maus costumes e me meti
em grandes encrencas. Era um hell´s angel1 das candangas.
Um semestre de internato compulsório, no Colégio Batista em Belo Ho-
rizonte, foi tempo suficiente para eu parar e meditar na vida que estava
levando, reavaliar meus valores, recolocar a cabeça no lugar e voltar a ser
um bom rapaz.

Reprovado no exame de motorista


Os oito anos que se passaram, desde que dirigi um carro pela primeira vez
até o dia em que tirei a carteira de habilitação, pareceram oito séculos.
Fiquei tão ansioso no dia do exame, que fui reprovado na prova de esta-
cionamento, por derrubar a baliza.
Quando consegui a carteira, não tinha um carro. Meu pai, que era mé-
dico, estava no hospital, desta vez como paciente, entre a vida e a morte,
em consequência de um grave acidente de automóvel.
Sua recuperação durou mais de seis meses e abalou toda a família, prin-
cipalmente meu futuro como piloto, pois senti na pele o impacto da inse-
gurança que uma tragédia pode trazer para a vida de meus entes queridos.
Isso, porém, não me fez desistir da ideia de correr, e nem o carro de
minha mãe escapava dos rachas nas avenidas de Brasília.
Em janeiro de 1967, juntei-me a três amigos que, como eu, tinham ga-
solina nas veias: José Álvaro Vassalo (Zeca), filho de um ex-gerente de uma
revenda Ford e apaixonado por automóveis; Helládio Toledo Monteiro Fi-
lho, vizinho e companheiro de equipe nas corridas de autorama; e João
Luiz Fonseca, colega de escola e um tarado por corridas de automóvel.
Eu era o mais velho dos quatro — tinha 18 anos — e o único que,
àquela altura, já possuía carteira de habilitação. Encontramos na revista

Hell´s Angels — Grupo de motoqueiros “barra pesada” da Califórnia, conhecidos como


1

Anjos do   Inferno.

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Auto Esporte uma matéria intitulada “Precisa-se de apenas uma lima para
envenenar o DKW”. A lima nós já tínhamos. E o DKW?2

Preparadores de fundo de quintal


Dona Lourdes, mãe do Zeca, era uma senhora de ideias mais avançadas
do que as outras mães e consentiu que nós abríssemos o motor do seu
Pracinha (modelo popular da antiga Vemaguete DKW) para fazermos algumas
modificações e diminuir o consumo de gasolina.
Depois de duas semanas de trabalho e invenções, o motor ficou pronto e,
para comemorar o fato de que pelo menos funcionava, fomos condecorados
por dona Lourdes como grandes mecânicos, com faixas de papel higiênico.
Nos pegas de rua, em Brasília, o tal Pracinha era imbatível nas mãos de
Zeca, e todos nos orgulhávamos muito do serviço feito.
Motivados pelo sucesso, começamos a construir alguns cavaletes para
colocar o carro em cima e trabalhar melhor como mecânicos de fim de
semana, no quintal da casa do Zeca. A ideia era fazê-los em madeira e,
quando estávamos quebrando a cabeça para montá-los, chegou o Helládio
e disse: “Meu pai era sócio de uma oficina em São Paulo, que está fechada,
e eu me lembro que lá havia uns cavaletes de aço do tipo profissional. Eu
posso perguntar a ele que fim levaram”.
E lá fomos nós, os quatro, para São Paulo, retornando com todas as fer-
ramentas especializadas para Volkswagen, numa viagem que foi a aventura
de nossa vida.

A grande chance
Do alto da sabedoria dos nossos 18 anos, conversávamos na viagem de
volta, nos seguintes termos: “Estamos levando aqui nessa caminhonete a
chance da nossa vida, em termos de ferramentas, e não podemos desper-
diçá-la. Vamos montar uma oficina de verdade”.
E depois de muito pensar, escolhemos para o nome da oficina: Camber.
O problema seguinte foi: onde montar a oficina? Não tínhamos capital
nenhum; apenas a vontade e as ferramentas.

2
Carro popular desenvolvido pela Audi e fabricado no Brasil pela Vemag, nos anos 60.

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ALEX

Novamente foi dona Lourdes, a heroína que cedeu o quarto de empre-


gada de sua casa para alojarmos as ferramentas, enquanto construíamos
um pequeno barraco de madeira em seu quintal, onde seria a nossa oficina.
Para construí-lo, valemo-nos das nossas mesadas, mais um empréstimo de
um dos pais, em troca do primeiro trabalho a ser executado em seu carro.
Depois desse primeiro serviço, três meses se passaram, sem que nenhum
freguês tivesse a coragem de deixar seu automóvel em nossa oficina. Éra-
mos competentes, mas faltava-nos a reputação — era o que pensávamos.

Uma para a frente e quatro para trás...


Certo dia, apareceu a Kombi de um vizinho, para um complicado serviço de
reforma de caixa de câmbio. Quando terminamos a empreitada, que durou
cerca de uma semana, a Kombi tinha quatro marchas para trás e uma para
a frente.
Mexer no carro dos outros era melhor do que nada, mas o ideal era que
nós tivéssemos um carro que fosse só nosso. Aí, sim, poderíamos inventar
à vontade...
Assim surgiu a ideia de pedir a meu pai o que sobrou do Fusca aciden-
tado. A princípio, ele, que ainda se recuperava do acidente, ficou meio
apreensivo. Entretanto, quando soube que o sinistro do carro fora consi-
derado perda total pela companhia de seguro, concordou com a doação
dos destroços do Fusca, mas com uma condição: “Filho, as coisas não
vêm de maneira fácil na vida. Eu tive de trabalhar muito para comprar meu
primeiro carro e gostaria que você fizesse o mesmo. Só assim você vai
aprender a ter dignidade e vencer na vida pelos próprios esforços. Eu dou
o que sobrou do Fusca, mas você vai ter de se virar para reconstruí-lo. Não
espere nem um centavo de minha parte para isso”.
Dr. Isaac sempre tentou incutir bons princípios na cabeça de seus filhos. E
ele conseguiu muito mais do que esperava. Embora naquele momento a su-
cata do Fusca fosse mais importante que os bons conselhos, ele acabou, sem
querer, acionando o motor de partida de uma carreira que afetaria o destino,
não só daqueles quatro garotos, mas de muita gente no mundo inteiro!
De repente, a atenção de nós quatro voltou-se para aquele monte de
ferros retorcidos. Nós nos propusemos a fazer o carro andar novamente.
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Queríamos apenas colocá-lo em movimento, e então teríamos um carro


para ir à escola e nos divertir nos “rachas” noturnos.
Um dia, o chassi ficou pronto — somente a parte mecânica. Sem car-
roceria, fomos testá-lo numa pista abandonada, num loteamento à beira
do lago de Brasília, onde Ênio Garcia, nosso ídolo e herói local, costumava
testar um Fórmula-Vê de construção própria.
O tempo do nosso Fusca pelado (sem carroceria) foi muito bom, com-
parado com o de Fórmula-Vê de Ênio.

Uma boa ideia


A prova Quinhentos Quilômetros de Brasília seria disputada dali a um mês.
Isto foi suficiente para decidirmos entrar na corrida com aquele chassi e o
mínimo de lata necessária para passarmos na vistoria técnica, exigida pelo
regulamento da competição.
Vendi a motoca e Zeca investiu todas as suas economias para as pró-
ximas férias. João Luiz conseguiu ajuda de Moysés, motorista de seu pa-
drinho, que tinha um aparelho de solda a oxigênio. Compramos uma boa
quantidade de tubos conduítes de eletricidade, usados em construção ci-
vil, e começamos a construir o mais estranho e curioso carro que já se viu
por aquelas bandas.
Queríamos que ele fosse parecido com um Ford GT 40 ou com um Cha-
parral — os carrões campeões do mundo na categoria. No entanto, o últi-
mo carro de corrida que Moysés tinha visto tinha sido na Gávea, nos anos
1940. Para ele, carro de corrida tinha de ser daquele jeito. Depois de muitas
brigas e panos quentes, tivemos de concordar que a coisa seria feita como
Moysés queria.
A máquina ficou pronta. Era vermelha como uma Ferrari, e terrivelmen-
te feia. Os quatro faróis de milha parafusados do lado de fora dos para-
lamas dianteiros davam-lhe o ar de um gigantesco gafanhoto de quatro
olhos. A enorme tomada de ar frontal parecia a boca do bicho-papão. Os
para-lamas traseiros em forma de asas de abelha completavam o quadro.
Há quem diga que era o protótipo de um formigão mecânico, daqueles
de filme de ficção científica.
Para nós, porém, era o carro mais lindo do mundo. Eu e João Luiz sería-
mos os pilotos. Ficou pronto na manhã da corrida, e quando aparecemos
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na pista com aquilo, o público quase morreu de rir. A coisa ganhou logo
vários apelidos. Um deles era: objeto não identificado.

Um pacto de vida ou morte


No início da montagem do bólido de fundo de quintal, nós, seus audazes
construtores, fizemos um pacto entre nós: o carro seria construído em
segredo absoluto!
Eu, porém, exigi uma exceção: “Tenho de pedir a aprovação do meu pai.
Afinal, foi ele quem nos deu os restos do Fusca e, além do mais, eu nunca
escondi nada dele”.
Depois de ouvir com paciência a história inteira, meu pai me perguntou:
“Você veio pedir a minha autorização para morrer?”
Refeito do choque, ele aceitou minhas explicações; mas, por via das dú-
vidas, deixou toda a sua equipe de plantão no pronto-socorro do Hospital
Distrital de Brasília.
Minha mãe passou o dia da corrida trancada em seu quarto, em jejum e
oração. Sua prece se resumia a um pacto que ela propunha para Deus em
desespero: “Senhor, se meu filho tiver de morrer correndo de automóvel,
eu quero que o Senhor o leve logo na primeira corrida. Assim eu terei de
passar por esse martírio uma só vez”.

Patinho feio
A largada seria por sorteio. Eram 33 carros, e nós fomos sorteados com o
número 33.
Os últimos serão os primeiros — pensei. Estava tão contente e grato a
Deus pela oportunidade de entrar numa corrida de automóvel, que colo-
quei no pequeno para-brisa um velho adesivo no qual se lia: Cristo, a única
esperança. Era pequeno, mas simbolizava uma grande gratidão ao Criador,
por me permitir realizar o maior sonho de minha vida.
João Luiz deu a largada, e já na primeira volta ultrapassou três con-
correntes, enquanto nós delirávamos de alegria nos boxes, pulando e gri-
tando, ante os olhares desconfiados e perplexos dos outros mecânicos e
chefes de equipe.
Acabamos chegando em segundo lugar, depois de quase seis horas de
corrida. É bem verdade que fomos beneficiados pela quebra e acidentes de
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muitos, mas recebemos uma grande ovação do público, pois se tratava do


primeiro carro de Brasília a se classificar contra o pessoal do Rio, São Paulo
e Petrópolis, em seus carrões importados.
Era apenas um carro de fundo de quintal, que a partir de então ganhou
o carinhoso apelido de “Patinho feio”.

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