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muito, meu amor

Muito, meu amor


Pedro Paixão
www.pedropaixao.net

Edição de texto Filomena G. Nascimento


Projecto gráfico Mário Mandacaru
Paginação Gonçalo Athias

Impressão Rolo&FilhosII, SA

Nova Edição Novembro 2010

Todos os direitos reservados


©2010 Pedro Paixão | Impressão Digital

Depósito legal: ??????/??


ISBN: 978-989-655-088-2

Edição Prime Books


marta.abreu@primebooks.pt
www.primebooks.pt

Impressão Digital é uma chancela da Prime Books


PEDRO PAIXÃO
muito, meu amor
Para a Sara Romualdo.
Onde quer que esteja.
Gostava de saber porque te amo
nesta forma estranha de te não ter amado nunca.

Vergílio Ferreira
1.

A porta está aberta. Empurra-a. Entra devagar. Agora, se


prestares atenção, podes ver o que se passa dentro do quarto.
Tem cuidado, não faças barulho. Tenta não respirar. Ela
está deitada sobre a cama com o roupão de turco branco
entreaberto.
Ele está de joelhos a beijá-la entre as pernas. A luz é pouca,
mas suficiente. Ficaria bem numa cena daqueles filmes a
preto e branco. Agora podes aproximar-te. Não batas no
candeeiro de pé que, apesar de apagado, está à tua direita.
Agora sim, podes fixar a cara dela. O que vês? O prazer?
O prazer é coisa que se veja? Pode ser dor. Ouve agora o
que dizem os amantes quando se agarram. Gritam. Não se
entende. Ele beija-a todo o tempo.
Uma nuvem de sangue tinge lentamente o roupão. Tu olhas.
Nada mais. Agora já te podes retirar.

Podemos começar por qualquer lado que tanto faz. Havemos


de chegar lá. Não me perguntes onde. Quando chegarmos
saberás.
Agora é cedo para perguntar. Ouve só.

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2.

Quando é que ela chegou? Diz-me. Quando é que ele a viu


pela primeira vez? Diz-me. Quando se abraçaram?

Quando é que isto começou?

Isto, o quê?

Isto.

O amor?

Sim, o amor.

O amor?

Sim, pode ser isso. Quando é que o amor começou?

Começou antes de ter começado. Um pouco antes. Nenhum


deles soube quando começou. Só se sabe como é depois de já
ter começado. Nem se sabe o que é, sabe-se só que já começou.

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PEDRO PAIXÃO

E depois?

E depois não acaba quando devia acabar. Dura mais tempo.


O coração bate mais tempo. Não há maneira de parar o
coração.

E então?
E então é assim. Não há muito que se possa fazer. É mais do
que suficiente. Tem de se aguentar. Todo o tempo que durar.
Sem nunca saber, do princípio ou do fim, pode-se esperar.

Pode-se esperar?

Sim. Pode-se esperar. Sem saber o que se espera. É esse o


verdadeiro esperar. Ninguém pode adivinhar o que traz o
amor.

Pode trazer tudo. O amor é isso tudo que se deve esperar.

Isso é ainda pior.

É. Não saber dizer o que é. Não haver palavras.

O amor não tem nome, forma ou cor. Vem quando quer.


Vai quando não se espera que vá. Não se deixa adivinhar.
Ninguém tem mão no amor.

E então? O que é que tu queres saber?

Eu gostava de saber.

Eu também gostava de saber. Mas o que se sabe é muito


pouco. Quase nada.

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MUITO, MEU AMOR

O amor não começa quando se quer, nem acaba quando se


deseja. O amor é forte, destemido, indomável. Se não fosses
tu, eu seria outro, dizem-se os amantes: eu quero viver na tua
vida. Os amantes adivinham-se sem palavras, olham-se nos
olhos à procura, fecham-se em quartos pequeninos. Perdem-
se um no outro, agarram-se com toda a força dos dedos e
dos braços, beijam-se sobre fundos abismos. O amor sempre
mete muito medo. O medo de vir a faltar, depois de tudo ter
prometido. Vai, mas não apanhes nenhum frio, e depois volta.
Os amantes regressam quando a luz é pouca a um supremo
egoísmo. Eu e tu e mais ninguém. O mundo pode desabar, o
mar mudar de cor, a lua cair de repente. Só importa o brilho
dos teus olhos e o sangue a bater nas minhas veias. Sabe-se
lá o amor.

Fica quieto, não faças nada. Ama-me mais, de dia e de noite.


O mundo não precisa saber de nada disto.

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3.

E então ela levantou-se da cadeira e foi até à janela e ficou


a olhar para fora da janela, sem que eu soubesse o que ela
estava a ver, porque eu só a via a ela a olhar pela janela, mas
deviam ser as casas e o céu e o mar, se existisse o mar, que eu
não sei se existia porque não era eu a olhar pela janela, mas
sim ela.

E depois voltou a sentar-se, sempre calada, sem dizer uma


palavra que fosse, e eu precisava que ela dissesse qualquer
coisa, mesmo que fosse um disparate, uma asneira, uma
incompreensível palavra, sim, uma qualquer coisa qualquer,
e então começou a doer-me até ser quase insuportável e tive
vontade de gritar, mas não gritei, apesar de ouvir o grito tal
e qual como se o tivesse dado: um grito que vinha de muito
longe e que ia para muito longe, como eu, sem se saber de
onde nem para onde. O amor não pára quieto. Vai mais
rápido do que a luz.

Espero que possas vir no domingo à tarde.

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PEDRO PAIXÃO

E ela estava de pé, de costas voltadas para mim, e eu estava


encostado a ela, com o meu corpo todo encostado a ela, a
agarrá-la, a abraçá-la. Como se tivesse muito medo que
fugisses, sim, muito medo, como se pudesses desaparecer
a qualquer instante, como se nunca tivesses existido — tu
não existes, disse-lhe eu tantas vezes como se soubesse o
que dizia — e continuava a agarrá-la, e a minha mãe estava
à minha frente sem mostrar qualquer sentimento — talvez
só reprovação — enquanto eu lhe apertava as mãos, que
as tinha muito frias, e apertava mais ainda, como se lhas
quisesse aquecer, as mãos, a alma, o corpo todo ao mesmo
tempo e ouvi dizer: vamos depressa, vamos o mais depressa
que pudermos, o carro já está lá em baixo, leva-me, leva-me
daqui.

E ele agarrou-lhe a mão, e ela agarrou-lhe as mãos, e ficaram


de mãos agarradas, primeiro a olharem para as mãos, depois
levantando lentamente os olhos que por fim se encontraram,
perdendo-se uns nos outros, sem já saber quem via ou era
visto, os olhos ao mesmo tempo a verem e a serem vistos,
nus, sem qualquer pudor, como se tudo fosse possível uma
vez mais, uma última vez, sem esquecer que o que lhes estava
a acontecer era impossível, quanto mais de se esquecer.

E depois ela despiu-o, pedaço a pedaço, e ele sentiu


vergonha, e ela disse: não sintas vergonha, se bem que ele
não tivesse dito nada, tivesse ficado calado, e ela disse outra
vez: não tenhas medo, não é por isto que eu gosto de ti. Ele,
desprotegido e nu, o que não quer dizer a mesma coisa, ela
vestida com uma blusa verde tão verde que era preta, dentro
de um quarto pequeno e branco numa cidade que um rio
arrasta como um barco e deixa encalhado na margem, por
descuido abandonado e já não houvesse lugar para onde ir.

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MUITO, MEU AMOR

A aranha do amor, neste quarto pequeno, todo branco, onde


procuravam o amor por toda a parte, mesmo por baixo da
cama, se cama houvesse, mas talvez não houvesse, apenas
chão. No chão, sim, no chão, à procura da aranha do amor.

Vês lá fora? Há duas nuvens pequenas, uma por cima da


outra. Uma és tu, a outra sou eu. Qual delas és tu? Qual delas
serei eu? Repara como se movem, uma por cima da outra,
uma ao lado da outra, uma perseguindo a outra. Não se vê o
vento que as sopra. Tocam-se, misturam-se, cada uma quer
a outra para si. Só para si. Não se ouve o vento. O amor é
silencioso como as plantas. O amor não tem palavras.

No quarto pequeno de duas janelas quadradas, uma aberta e


a outra fechada, no quarto pequeno duas pessoas amavam-
se. No quarto pequeno, o vento entrava pela janela aberta e
ouvia-se o vento a soprar levemente e os suspiros molhados
dos beijos. No quarto pequeno, desarrumado, a cada instante
mais desarrumado, os corpos desencontrados, e depois
de novo encontrados com gestos de surpresa e gratidão
e sussurros que nenhum deles entendia. O que dizes? Diz
lá outra vez. Mais alto, por favor, que não consigo. Assim
não consigo. E o corpo a recusar-se, a afastar-se para muito
longe para depois poder voltar, como se fosse pela primeira
vez, muito assustado, sem saber o que era ali: o quarto,
o desarrumo, os sussurros, os leves gritos a entrarem pela
janela aberta por onde entrava o vento, para depois baterem
na janela fechada, fazendo eco, tal e qual como as palavras
sussurradas, batendo umas de encontro às outras, umas
sobre as outras, fazendo eco.

No quarto fechado sem janelas, no quarto todo aberto


agora por entre as nuvens, os corpos esticados, dobrados,

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PEDRO PAIXÃO

desarrumados, criando poças de água, pequenos charcos, no


chão de madeira clara, junto à cara colada ao chão, de onde
se ouvia o mar por baixo de tudo.

Se não fosses tu, querido, eras outro qualquer. Tanto me


faz, desde que depois fosses sempre tu. Tu, apenas tu, por
demais tu, e mais ninguém no universo inteiro: tu em todas
as estrelas a crescer e a mingar, por baixo de todos os mares.
Apenas tu. É este o mistério, não é? Seres tu e poderes ser um
qualquer, seres um qualquer para poderes ser o meu. Tu és
um qualquer, meu querido, muito, meu amor. Só tu me fazes
ser quem sou. Sem ti nem saberia de mim.

Tens mais pestanas do que estrelas o céu. Os teus lábios sabem


a morangos silvestres, a canela. Os teus olhos são de água, azul
e branca, cintilante. As tuas mãos são terra húmida, infindos
instrumentos. O teu sorriso é a melhor parte da minha vida.

E a certa altura ele pensou assim: o homem é o único animal


que se pode ver extasiado diante de uma flor. E depois disse:
claro que somos animais. Precisamente por o reconhecermos
é que somos humanos. Só por isso. E ela disse: isso é muito,
isso é tudo.

E eu ontem tive três vezes, três vezes prazer a pensar em ti,


três vezes prazer para te poder contar, com todos os detalhes,
minuciosamente, o que é ter prazer a pensar em ti. Não. Não
foi o domingo todo, mas foi quase o domingo todo. Ao fim
do dia fui passear. Proíbes-me de me tocar? Está bem, fico
proibida. Queres tudo para ti? Sê sensato, não se vai aguentar.

E ele lembrava-se de como ela, de um momento para o outro,


ela passava de fechada concha inviolável a flor aberta ao vento

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MUITO, MEU AMOR

que a boca dele soprava para a acariciar. E ele lembrava-se,


ele sentado aos pés dela a tocar ao de leve nas pétalas róseas
das camélias, primeiro com as mãos, depois com a ponta dos
lábios, como numa ferida, uma pequena ferida que é preciso
ainda lamber, chupar. E ele lembrava-se dos olhos dela, mais
do que de tudo, dos olhos que se perdem lentamente, e depois
cada vez mais, e depois, de repente, começam a chorar. E ele
lembrava-se de a agarrar com toda a força que tinha e de ela
dizer: agarra-me.

Começavam muito cedo. Acabavam muito tarde. Entretanto


o tempo tinha sido trocado por palavras, saliva, gritos,
gestos. Entretanto os corpos tinham deixado de pesar. E ao
lado havia o medo. Havia sempre o medo. Mas eles gostavam
desse medo, mais do que de tudo, diziam, se não fosse
mentira tudo o que se diziam. Sem querer dizer, diziam. Do
amor diziam a mentira que diz sempre a verdade. Sim, eles
precisavam desse medo, mais do que de tudo, o medo que
não deixa parar.

E abraçávamo-nos com toda a força que tínhamos, como se


os corpos estivessem a mais no meio do que queríamos juntar,
como se os corpos estivessem mortos e ainda quiséssemos
respirar, e não pudéssemos desfazer o nosso abraço — era a
última coisa que queríamos — mas não podíamos continuar:
o cansaço invadia-nos por culpa dos corpos que estavam a
mais. Os corpos é que nos cansam todas as horas de todos
os dias. Os corpos estão a mais, estamos fartos deles e não
podemos fazer de outra maneira a não ser

a não ser o quê?

a não ser continuar este abraço que nos tira a respiração até

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PEDRO PAIXÃO

que desmaiemos, desistamos, acabemos, deixemos de existir.


De verdade, de verdade nunca existimos senão neste instante
que acabou, para sempre acabou. Olhamos para a frente e
olhamos para trás — é isso a vida? Neste instante olhar para a
frente e olhar para trás e em nenhum instante acabar — será
isto a vida?

Não te quero sequer ver. Amo-te muito. Não há nada que


se possa fazer. Tudo é a mesma coisa que nada e nada me
apetece senão estar assim contigo, sem te ver para te amar
ainda mais.

E no domingo à tarde podes vir se quiseres.

No domingo talvez. No domingo, hoje não, nem amanhã


sequer. Está decidido. Não, não vou telefonar. Está decidido.
Não te quero ver. No domingo talvez. Ao fim da tarde, pode
ser. Não é para ser nada romântico. Tu não és romântico. Se
há coisa que tu não és é romântico. Tu és um bicho furioso,
uma alma perdida sem saber o que procura, uma ânsia
infinita. Também és um perverso, isso sim, talvez seja isso o
que tu és. Só gostas de atrasar, demorar, regressar um pouco
antes mas nunca, nunca terminar. E os teus pecados, não há
nada de que goste mais em ti do que dos teus pecados, meu
querido, abraça-me, cala-me, faz-me desaparecer.

Sinto-me tão a mais. Não sentes como me sinto? Quase a


enlouquecer. Cheio de medo de amar, tanto medo, mete tanto
medo o amor. E depois, imagina tu, o que pode acontecer?
Não acontecer nada. Nunca nada mais voltar a acontecer. É
demasiado perigoso, imprevisível, impossível de controlar,
deve ser sufocado logo que apareça, como uma criança antes
de o ser. A vida é sempre a mesma e diferente. A náusea,

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MUITO, MEU AMOR

sabes o que é? Se quiseres podes ir ao dicionário. Mas não


vais saber. Já disse, não vale a pena dizer outra vez. Amo-te
muito. Não te quero ver. Para quê? Não dês cabo de mim.
Assim é já o bastante. Acaba com isto, eu não aguento mais.
Abraça-me e cala-me com a tua boca sobre a minha. Já.
Eu não aguento mais. Acaba comigo de vez.

Não, não és tu, não penses. Podias ser outro, podia ser outra
pessoa, és tu só porque és tu, não penses, podias ser outro,
noutro lugar, noutra cidade onde o vento soprasse sem este
desgosto do mar. Que aqui é impossível, não vês? Agora é
impossível, não sabes? Devias saber. Não sabes nada? Essa é
a tua única desculpa, a tua mentira. Tu sabes.

E ela levantou-se e foi primeiro à janela e depois saiu do


quarto e voltou dali a nada com um copo cheio de água —
não queres, meu amor? Não, agora não, meu amor mais
querido. Depois sentou-se ao lado dele e pousou devagar o
copo em cima da mesa que estava à frente deles e não lhe
tocou mais. Ficaram por momentos a olhar a água dentro
do copo como se nisso houvesse um mistério que ninguém
pudesse desvendar, o mistério a alastrar em volta, a tomar
conta deles, da cabeça deles, do corpo deles, que estava a mais,
nem devia existir sequer, só a alma, que não cansa nunca de
amar, e depois foi ele que se levantou e foi à janela — fazia
muito escuro, não havia nada que se pudesse avistar, tudo
tão escuro — e apagou as luzes, e deitou-se no sofá ao lado
dela, muito agarrado a ela, e começaram a beijar-se por não
haver mais nada que soubessem fazer para demolir o tempo,
entretendo-se com as bocas, a saliva, os dentes, tocando com
as línguas uma na outra, por dentro da boca, buraco escuro,
com os olhos fechados e depois abertos, muito abertos, sem
poder acreditar, tudo isto durante muito tempo, o tempo

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PEDRO PAIXÃO

todo, até chegar a luz do dia, primeiro pelo lado esquerdo,


depois pelos dois lados, o dia a chegar sem pedir para chegar,
sem mesmo avisar, o dia a chegar.

Queres ir passear? Não, não quero ir passear. Hoje não é


dia de passear. Quais são os dias de passear, diz-me se fazes
favor? Os que quiseres. Os outros todos. Um qualquer. Hoje
não. Nesta altura do ano os homens olham-nos como se nos
quisessem comer. Os mais velhos nem escondem. Babam-se.
Tu és um homem velho. Eu sou um homem velho.

Vamos na rua e olham para nós como se nos quisessem


comer. Agora ainda é pior. Como se pudessem deitar-nos
sobre as pedras da estrada, por cima do asfalto, abrir-nos as
pernas e gozar. Tu achas que eles são capazes? De ter prazer
assim, sem querer saber sequer? Sem nada saber, sem saber
do prazer sequer, tu achas que é possível? Eu não quero nada,
mesmo nada, desse prazer dos homens. Habituámo-nos, é
certo, mas não nos devíamos ter habituado a esse desejo
assim. Não é animal, é humano, é muito pior podes crer.
Se calhar não. Se calhar não conseguem nada, se calhar não
se consegue.

Tu gostavas de ser diferente mas és como os outros e é


escusado teres vergonha, não vale a pena, és assim, nem
podes ser de outra maneira e eu gosto de ti assim, já disse.

E ela pediu que ele parasse e pediu que ele se deitasse sobre
ela com o peso todo dele, que não era demais, o peso todo,
e pediu que parasse e depois que não parasse, o peso todo
do corpo que está a mais, sempre a mais, por cima do corpo
dela, muito quieto, a escutar, parado sobre o dela antes de
voltar a mexer-se como todos os corpos fazem, e não fazem

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MUITO, MEU AMOR

outra coisa, nunca antes nem nunca depois, pois foi para isso
que foram feitos, se é que foram feitos para o que quer que
seja, ou simplesmente feitos e não ocorridos por acaso, para
se mexerem uns sobre os outros, uns ao lado de outros, perto
e longe de outros, para se mexerem e continuarem a mexer-
se enquanto são o que são, corpos a mais. Os vivos sobre os
mortos, os mortos sobre os vivos, até à ressurreição.

Ressurreição? Palavra estranha de se dizer a esta hora.


Ressurreição dos corpos que estão a mais? Que coisa
estranha de se ouvir nesta hora, meu amor. Repete que eu
quero mais, uma vez mais, uma vez mais ouvir essa coisa tão
estranha, agora que faz tanto frio de repente, e tão escuro.
Ressurreição? Por que me falas assim?

És tu que me fazes falar assim, mais ninguém. Juro. As


palavras que te digo são mais tuas do que minhas. Já nem
as mãos me pertencem, quanto mais a cabeça e o tronco e o
sexo.

És um mentiroso. Não acredito em nada do que dizes. Mas


não me importo que sejas um mentiroso. Podes continuar
que eu não me importo, eu quero que continues. As tuas
mentiras são mais verdadeiras do que todas as verdades.
Continua lá, meu amor. Eu preciso das tuas mãos e da tua
língua.

Penso em frágeis pétalas de magnólias sopradas pelo vento,


em súbitas cataratas caindo do céu. Penso em poemas
perfeitos como refúgio de almas como as nossas. Penso no
desenho dos teus lábios, na tua cicatriz a meio do corpo, na
tua graça de menina. Trago o teu nome no céu da minha boca.
Quero-te como a terra que anseia pela água que bebe. Só tu,

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PEDRO PAIXÃO

de novo tu, sempre tu, a ocupares-me a cabeça, o tronco e os


dedos. Eu sou também o chão que pisas, o ar que volta.

Penso em musas, em mulheres inexplicáveis. Penso no


movimento vagaroso das plantas. Penso em fatais venenos,
terríveis desenlaces. Penso que não pensar me chama para
mais perto de ti. Que devo partir. Onde quer que me esperes.
Onde quer que me encontres. Acabaremos sempre por nos
perdermos no lugar vazio que é o nosso. Uma pessoa é muita
gente. Muita gente é ninguém. Procuramos quem somos e
nada encontramos. Nunca nos veremos face a face, a não
ser reflectidos pelos olhos um do outro. O divino não tem
rosto. É ele que procuramos um no outro, ignorando se
encontrarmos, só assim vale a pena. Sim. Se soubéssemos o
desfecho não começaríamos.

Olha para mim. Não tenhas medo. Ninguém nos vê. Somos
só nós os dois. O mundo todo ficou fechado lá fora. Repara só.
Neste momento. Eu quero-te como a frágil flor azul precisa
da água que bebe. O nosso amor não passará. Pertence à
bondade e à beleza. A bondade não tem história. A beleza
recusa-se a um qualquer enredo. O amor vive fora do tempo,
que é por onde vamos. Não me sentes? Não mais me verás.
Para poder continuar a estar à tua frente. Como agora. No
silêncio. Para sempre. O tempo encobre a eternidade. Eu sou
também o chão que pisas, o ar que volta.

Domingo à tarde penso em ti todo o dia.

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4.

Queres saber quem sou? Eu sou o que te olha e espia para te


colher e depois guardar num lugar que é só meu. Para isso
serve o papel. O resto não precisas de saber. Nem convém. Só
te ia distrair, podes crer. Eu sou o que mergulha as mãos na
tua vida para sentir a minha a voltar.

Eu sou o que tu quiseres. Quando quiseres. Quando me


encontraste não sabias o que procuravas. Só de longe o
soubeste, e agora esqueceste. Não fomos feitos para o amor,
acrescentas. O que não quer dizer que não possamos amar-
nos sempre outra vez, e pode ser mesmo a única coisa digna.
Foi para isso que fomos feitos. Não fomos feitos para mais
nada. Nascemos, crescemos, envelhecemos, morremos e é
tudo. E é mais do que o suficiente. Quando o barco começa
a naufragar o que importa é a atitude dos passageiros. Saber
que o barco vai naufragar e mesmo assim continuar.

O que interessa é a atitude, insistes. Mais não podemos. Não


podemos fazer nada, mas podemos mudar tudo, é isso que
dizes? Começar por nós, terminar em nós. Mudar-me a mim

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PEDRO PAIXÃO

e mudar o mundo. Começar por mim e acabar em mim e


mudar tudo à minha volta. Se já reparei? Ao tornar-me melhor
o mundo fica melhor? E ainda me pedes que não tenha medo
e deixe de esperar o impossível? O barco pelo qual espero
para me levar daqui para fora não vai chegar nunca. O barco
pelo qual espero é o barco em que vou. Quando partiu esse
barco? Isso gostava eu de saber. Há muito. Antes de mim.
Mesmo sem mim. E vai naufragar, de qualquer modo vai
naufragar. Todos os que passaram por aqui o souberam, e
isso não os impediu de fazer o que tinham de fazer. Que eu
nunca sou apenas eu. Uma corrente nos leva. Uma corrente
de palavras. Uma corrente de amor. Passar o que por nós
passa, que o que passa nem é meu, nem teu, nem nosso, nem
as palavras, nem o amor. Passar isso o melhor que se possa e
mais nada senão isso. Queres que me cale? Sim.

Existimos tão pouco, tão pouco, quase nada, todos nós. Não
sei por que falo nisto. Talvez por ser o último dia. Talvez.

Olha para ti, reconheces-te? Sim, sou eu, mas de que maneira
estranha, isto tudo. E não fica menos estranho com o tempo
a correr. Como quem procura e o que vai encontrando logo
fica coberto por um véu de ignorância. Comigo é assim, pelo
menos comigo, com os outros não sei, nem preciso de saber.
Comigo é verdade.

O século iluminado, democrata e científico, com as melhores


das intenções cometeu mais crimes do que todos os outros
juntos. E não vai parar, sim, não te iludas. Há quem diga, sem
razão e com toda, que só um deus nos pode salvar.

Por mim não me importo, eu tive mais do que merecia.


Agora pelo meu amor, o meu amor que eu quero que viva,

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MUITO, MEU AMOR

como deixá-lo viver neste tempo assim? Por isso, mais do


que nunca, há que aprender a morrer. O que quer dizer, estar
preparado para o inesperado e a partir daí, com os olhos fixos
na morte, para que não se escape ou se esconda, sem medo,
recomeçar a viver. No meu princípio o meu fim, no meu fim
o meu princípio. A exemplo de Jesus que voluntariamente
sofreu a morte. Tanto quanto se sabe é o melhor exemplo.

Entrámos nisto sem querer e saímos disto sem querer e não


ficámos a saber por onde passámos, não é assim, meu querido,
a vida? Completa ignorância também não é. Isso seria outra
coisa. Não. É uma situação intermédia em que se sabe sem
se entender, em que se reconhece sem se conhecer. Cada vez
melhor e pior ao mesmo tempo, cada vez mais espantosa
e temível, não por razões transitórias, mas pelas mesmas e
definitivas. Sim, a vida é uma coisa muito estranha. Tão fácil
de reconhecer, impossível de saber. Se é assim, é porque é
bom que seja assim. O que nos traz até aqui, um lugar que
nós nem sabemos onde fica, e que depois nos leva daqui,
com saudade e alívio, tão simplesmente como leva o fruto e a
estrela, isso devemos louvar.

É tão bom sentir o que sinto. Que alguém, que és tu, me quer
com o maior cuidado para não se enganar, iludir, mentir a
si próprio. Que alguém, e és só tu, não me está a confundir,
sem querer, com o que mais desejava ver, sempre esperou
alcançar, sonhou num sonho de criança que ficou e quer
mostrar aos outros — ao pai em particular — a quem quer
que seja, pouco importa. Como se se tratasse de um presente,
de um boneco, de um pedaço de terra conquistada. Não.
Do que tu gostas mais em mim é dos meus pecados, dos
meus defeitos físicos, de tudo o que não consigo ser, onde
falhei, onde não pára nunca de doer, é isso o que tu queres,

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PEDRO PAIXÃO

o que queres ter perto de ti, o que queres aceitar e cuidar, só


isso, e o resto, só se vier com isso, porque é isso que tu amas
em mim. Será isso? Será assim? Pode ser, talvez seja disso
feito o nosso amor. Pelo menos grande parte, amor meu.

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5.

Ao meu lado o meu amado dorme. O seu corpo abandonado


é a minha paisagem favorita. Para onde fugiu, que desejos
o tomaram? Nem de dia, nem de noite, consigo adivinhar a
cor dos seus sonhos. O meu amado não está aqui, mas sim
noutros lugares invioláveis. Tem os olhos cerrados, estremece
ternamente o corpo. Fico inquieta. Qualquer barulho pode
quebrar este milagre. O bicho dorme. Mais cedo ou mais
tarde há-de acordar e regressar para dentro dos meus braços.

Está-se bem aqui. Gosto das casas onde vivem as pessoas de


quem gosto. Apetece-me logo ficar. Sem precisar de ninguém.
Ficar uns dias, talvez uma semana, sozinha, sem ti, e depois
ir-me embora deixando tudo tal e qual como está, que é a
maneira que tu tens de viver e a melhor maneira, quem sabe,
que eu teria para te conhecer. Há outras maneiras, eu sei.
Há muitas maneiras para se aprender a conhecer alguém e
nenhuma é a perfeita, eu sei. Não faz mal, eu gosto assim.
Conhecer de uma maneira e depois de outra e logo voltar à
primeira. E, se tu quiseres, pode ser mesmo assim: tu partes,
eu fico. Eu fujo, tu esperas. Sem destino marcado, tempo

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PEDRO PAIXÃO

contado. Vai e volta que eu estou sempre aqui, por mais longe
que seja.

Nem por completo presentes, nem inteiramente ausentes.


Não será sempre assim? Num intervalo. O intervalo que vai
daqui ali e volta, uma coisa sempre a querer desaparecer e a
aparecer ao mesmo tempo, qualquer coisa sem nome entre
a vida e a morte. Outra coisa não, de outra maneira não.
E gostava que soubesses que já gosto muito de ti, embora
ainda não tenha tido tempo de saber o que é isso de gostar
muito de ti. Não faz mal, logo se vê. Não, o que me assusta
mesmo, quase terror por vezes, é depois não poder voltar
atrás, qualquer coisa tão simples como quem põe uma fita
de cinema a rebobinar. Quero dizer: depois de começar a
gostar de ti como gosto, já não consigo desfazer isso que se
fez, sei lá o quê, o que tu quiseres, isso tudo, o que nos traz
juntos até aqui, se tu quiseres. Deixar de gostar é outra coisa.
É muito triste. Não tem nada a ver. Não, tu começas a gostar
sem saberes do que vais gostar: não podes adivinhar o que
vais encontrar. Só começas porque começas antes de saber,
e aos poucos vais sabendo um pouco mais, que não chega
a muito. Nunca tudo, tudo é impossível. Ninguém conhece
ninguém para sempre, definitivamente, sem suspeita
alguma. O amor não é uma forma de conhecimento: vive de
surpresas, grandes espantos, súbitas dúvidas. Só é possível
ir a aprender. Sabe melhor até. E pior até. Umas vezes vais
mais atraiçoado, outras menos, julgas tu ou julgo eu, tanto
faz, sem nunca podermos ao certo saber quanto engano de
mistura. O menos possível, concordo, mas a medida exacta
é improvável neste caso. Nem é conveniente. Depende
muito do que vamos encontrando, daquilo em que vamos
tropeçando, do que nos acontece sem querer, disso que não
depende de nós. Eu também amo o teu engano. Isso, por

32
MUITO, MEU AMOR

exemplo, que já antes era igualzinho ao que vai ficar depois


de nós. Igualzinho, o mundo todo por exemplo. Só o querer
da vontade depende de nós. Parar, neste caso não se pode,
porque aquilo, enfim, já não precisa de nós, e se há alguém
que precise, somos nós. Nós, sim, é que precisamos daquilo
nem que seja só para podermos prosseguir por entre os
limites do intervalo. Entre sim e não. Do amor, quero falar.
E cada vez mais, ao mesmo tempo e pelas mesmas razões,
tanto as boas como as más, que de nada parecem servir.
Exemplos? Tu pedes sempre exemplos, mas por vezes não os
há. O nosso caso, por exemplo, não tem exemplo. Se sabes de
algum, diz-mo. Agora. Mas repara, não é de ti, muito menos
de mim, que estou a falar. Estou a falar do que nos acontece,
acontece sem parar, e não estejas assim tão convencido de
que te vou fazer o que quer que seja. Nem um beijo sequer te
vou dar. Pelo menos por agora. Estou a falar de várias coisas
e de cada uma por sua vez, não pode ser de todas de uma só
vez, assim tudo junto numa só palavra. Como seria, tudo de
uma só vez? Como seria? Uma só palavra que teria todas as
palavras dentro de si?

Deixei de te ver. A noite cai. Não há luz sequer. Como se


fosse uma pessoa, a noite cai. Como se não fosses tu. Como
se tivesses de partir e já fosses atrasado e fosses a correr e
depois te esquecesses de voltar. E, mesmo querendo, já não
soubesses o caminho de volta, mesmo querendo, não pudesses
regressar por já não o haver, o caminho de volta. Sem qualquer
maldade, simples esquecimento, sim, posso acreditar que lá
fora facilmente encontres o que quiseres e que isso te traga
prazer. Aqui não, aqui, junto a mim, é mais difícil, eu sei.
Aqui não se deixa segurar um só instante. Derrete-se na boca
a vida que está a passar. Num instante. Tu sabes o que é, e é
bom que saibas como é, porque mesmo se mo pedisses, de

33
PEDRO PAIXÃO

todas as maneiras, não to podia dizer. O que podes, isso sim,


do que mais precisas, isso sim, é de adormecer e descansar.
Assim não podes continuar. Já reparaste como estás? Metes
dó. Eu sei, a culpa não é tua, ficaste assim sem querer, o
preciso contrário do que querias, eu sei, disseste-mo tantas
vezes. A vida que nos deram não é nossa? Passa por nós, o
que é diferente. Podias pelo menos tentar que passe por ti.
E por mim, se não for pedir demais. Não sei se pretendes ou
não compreender, mas não vou repetir. Nem uma palavra.
Não vale a pena, ficava logo tudo igualzinho à primeira vez.

O que tu podes é abrir os olhos e ver o que está desde sempre


à tua frente.

34
6.

Ela comia chocolates com a boca. O espesso sabor dos


chocolates: tabletes, potes, quadradinhos, bombons de
chocolate negro, branco e cor de chocolate. Ela gostava
muito de chocolates. Os chocolates não fazem borbulhas,
defendia-se, os chocolates fazem muitas coisas, mas não
fazem borbulhas. São o meu vício, o meu único vício. Isso e
ir ao cinema.

Ela gostava dele como quem gosta muito de chocolates.


O gosto fica na boca e o prazer encontrado anseia logo por
ser repetido. A rapariga mais alegre que havia, estremecia
só de pensar nos beijos dele enquanto descia pela avenida
a caminho do cinema. Do que ela gostava mesmo era de
chocolates e de ir ao cinema, onde ia quase todos os dias,
pelo menos três vezes por semana. Trabalhava num bar
ao fim da tarde e o pequeno ordenado que recebia servia
para isso e só para isso: comprar chocolates, ir ao cinema.
De resto, era livre para fazer o que lhe apetecesse. No cinema
a realidade das coisas cresce espectacularmente, afirmava.
Tanto que as coisas fora do cinema só têm a realidade que

35
PEDRO PAIXÃO

os filmes lhes emprestam, não achas?, perguntava sem pedir


qualquer resposta. São os meus vícios, os meus únicos vícios:
comer a realidade com os olhos e sentir o prazer a desfazer-
se-me na boca. E agora os teus beijos, malandro.

Por isso não se deve fazer nada, dizer nada, mexer em


nada, dizia ela, devemos ficar paradinhos, completamente
paradinhos e não fazer nada durante muito tempo, o mais
que se aguentar. Só a olhar um para o outro. Tu consegues?
Gostava mesmo que conseguisses. É tão bom. Devias
experimentar. Eu ensino-te, se tu quiseres. É o melhor de
tudo. Uma forma de oração, se tu quiseres.

Pode ser?

Agora não.

Então quando?

Não sei.

Porquê?

Porque não.

E eu?

Tu também não.

Não há maravilha igual. Sem saberes como, o paraíso.


Lembras-te do paraíso? Foi no começo de tudo.

Se alguém, à frente dela, se preparava para matar uma aranha,

36
MUITO, MEU AMOR

ela impedia-o bruscamente. Nenhum ser vivo lhe parecia tão


fascinante. Ficava a vê-las de perto, quietas ou em movimento
lateral, e as teias pareciam-lhe uma obra que ultrapassava o
poder da mais prodigiosa imaginação. São construídas com
dois tipos de filamento: um colante e o outro não. São deste
segundo tipo os que irradiam do centro, explicava ela como
se fizesse um desenho. Se assim não fosse, a aranha seria presa
de si própria. E sorria. Se o amor fosse um bicho era uma
aranha, gostava ela de repetir, como se fosse uma verdade
que se podia repentinamente esquecer. Eu sou a aranha e a
teia da aranha e a prisioneira estremecendo no centro da teia
da aranha, acrescentava fazendo caretas. Deixas-me passear
sobre a palma aberta da tua mão? E sobre o teu corpo nu?
Não me faças mal, sou o bicho do amor, dizia.

No dia em que fez anos ele ofereceu-lhe um livro ilustrado


com o título: A Fascinante Vida dos Aracnídeos. Quanto
ao amor, não existe em parte alguma uma única equação,
fórmula, teorema. Quanto mais uma teoria. Se bem que seja
belo falar do teorema dos amores.

Estás aqui há muito tempo?

Não, cheguei há bocadinho.

Sinto tantas coisas. Só te consigo dizer uma de cada vez e o que


digo nunca chega a ser o que queria. Tantas coisas. Nem sei
bem. Será preciso esquecer umas para poder lembrar outras?
Se começo por uma, será para ter a consciência de que devia
ter começado por outra? Para por fim achar que o melhor
seria não ter começado por nenhuma? Na verdade nada
começamos. As palavras que dizemos não são nossas, para não
falar da gramática que impede de alcançar o que mais importa.

37
PEDRO PAIXÃO

Tuaofimdetudoamormeuaquisempreagoraatéaofimdetudo.

Confundimo-nos, será isso, sem querer? Só o que vem faz o


que é? Não sabendo o que vem não se sabe o que é? O amor
é o que vem. Conjuga-se no futuro perfeito.

Nem penses. Pelo menos tenta não pensar em coisas


impensáveis. O amor é difícil. É só isso.

E em que é que pensas agora?

Em ti. As minhas unhas de mulher, a pele que cobre os meus


olhos, a saliva que nasce na minha boca, deixaram de ser minhas
para só a ti pertencerem por inteiro. Não, não tens maneira de
agradecer. Não há maneira. É bom assim. Ele mandou-lhe um
postal com uma fotografia a preto e branco de muitos meninos
a correrem na areia junto ao mar e escreveu nas costas em
letras garrafais: quando? Ela respondeu no mesmo dia com um
postal que reproduzia a cores uma pintura retratando um velho
samurai e escreveu nas costas em letras garrafais: sempre.

Esqueço-me dos nomes todos. Tu não?

Eu esqueço-me das pessoas.

Mas eu não era assim.

Eu também não era assim.

Eu lembrava-me de tudo.

Tudo é muito. Acaba por não caber. O importante é que te


lembres de mim.

38
MUITO, MEU AMOR

Isso não posso. Como é que tu queres se te trago comigo


debaixo da pele? Uma pessoa só se vê a si própria como se
fosse outra.

Não é assim, sempre assim?

Gostava de ter uma escova de dentes na tua casa, dizia. Em


minha casa não a vais ter, há uma intimidade que nos falta.
Em minha casa tens duas iguais, da mesma marca, uma azul
e outra amarela. Em minha casa nem tu sequer entraste. Sim,
está bem, uma vez, de fugida, como um ladrão.

Todas as feridas serão material de poemas. Portanto não


devem ser evitadas. De preferência mantê-las abertas, até
por fim sararem. De outro modo não deixarão outra cicatriz
que não seja umas linhas, uma página no máximo. Era um
recado, um aviso, uma premonição.

Inês Maria, deixa que te diga, Maria Inês, ouve-me por favor,
só mais um bocadinho, deixa que te diga, sim, já que todos,
de repente, vamos regressar a uma casa que não fica perto,
e apesar de eu não te merecer, quero que saibas que se não
houve um começo também não vai haver um fim para o nosso
amor. É a primeira e é a última coisa que te digo. Mais não
consigo, faz-se tarde e precisamos de dormir. Vem comigo.

39
7.

Sentados lado-a-lado no alto paredão, ouvem o barulho das


ondas a desfazerem-se na praia e não fazem mais nada. Não
têm vontade de falar. O mar é belo e forte e vai ficar, pensam
os dois ao mesmo tempo, sem que nenhum saiba o que o
outro está a pensar. Não é preciso. Uma onda, e logo depois
outra.

As coisas pioram, dizes tu, não param de piorar. É natural.


Naturalmente as coisas pioram, e é isso que acontece o
mais das vezes, e é por isso que é assim. Mas também não
pioram tanto como parece, nem tão rapidamente. As coisas
demoram o seu tempo a piorar. Cada uma, na verdade, tem
o seu tempo próprio de piorar. E quando pensamos que
uma coisa vai piorar muito depressa, até pode acontecer
que melhore durante algum tempo para depois, quando já
julgávamos que nos tínhamos enganado, que afinal não ia
piorar nada, antes pelo contrário que ia melhorar, depois
piora imprevistamente, sem melhoras possíveis nem salvação
alguma. Parece de propósito, mas não é. Isso seria supor,
muito generosamente, que haveria uma intenção no decorrer

41
PEDRO PAIXÃO

das coisas, umas vezes de nos enganar, outras de nos pôr de


sobreaviso. Isso seria pedir demais ao que acontece, já que o
que acontece, acontece sem qualquer sentido, repetindo-se
muitas vezes, desde o princípio, sem sentido algum, depois
mais uma vez e ainda agora, uma vez mais entre todas as
outras e, como todas as outras, sem que se compreenda o
que está a acontecer. Mas ouve-me: não desesperes. É assim,
simplesmente, porque o sentido das coisas não está nas coisas,
mas em ti. Só tu podes dar sentido ao que acontece, e podes
mesmo mudar o sentido que já lhe deste, se bem que nem
sempre o consigas facilmente. Qualquer história serve para
isso e todos nós somos contadores de histórias: melhores
ou piores mas que não acabam nunca. Sem essa magia tudo
seria absurdo. Por isso não desistas, mesmo na maior aflição,
e quando não consegues encontrar sentido algum, aguarda.
As coisas não param de piorar e melhorar ao mesmo tempo.

E as coisas, dizes tu, mudam muito mais rapidamente e


muito mais devagar do que parece. Tanto se sucedem a
uma velocidade vertiginosa, velozes como a luz, como não
mudam nada, absolutamente nada, iguais do princípio
ao fim, paradas e inamovíveis, aconteça o que acontecer.
Quando tiveres dúvidas lembra-te do número sete, ou de
outro qualquer que quase atinja o infinito, ou de um perfeito
triângulo que nunca chegas a ver, ou do binómio de Newton
escrito pelas estrelas.

E o que acontece, dizes tu, é sempre diferente do que


julgámos estar para acontecer. Pode nem ser muito
diferente, mas sempre o suficiente para jamais podermos
prever exactamente o que vai acontecer. Aliás, nunca é por
completo diferente. Senão nem seria possível saber o que
quer que fosse, e nós não somos inteiramente ignorantes.

42
MUITO, MEU AMOR

Só diferentes o suficiente. É o que tu achas, o que não quer


dizer que seja assim que aconteça. Ninguém sabe como é
que as coisas acontecem, nunca ninguém soube, nem creio
que haja qualquer possibilidade de alguém vir a saber. Toda
a gente sabe que é assim, e por isso também tu tens todo o
direito de julgar que assim é e não de outra maneira, que
tu nem sabes qual, nem ninguém, porque só há esta que
ninguém sabe qual é.

Isto é uma maneira de começar, dizes tu muito bem, e um


começo é só um começo, se bem que, verdade seja dita, os haja
melhores e piores. Se for um mau começo ainda é possível
que melhore um bocadinho antes de começar a piorar, que
é o mais natural que venha a acontecer. E lá por ser natural
não quer dizer que tenha de acontecer. Os homens felizes só
em milagres acreditam. E depois, como é só um começo, é
sempre possível voltar ao princípio e recomeçar por outro
começo, já que qualquer começo é diferente de outro começo
e se há coisa que não se consiga explicar, mesmo nada, é
como o que quer que seja começou. Embora tudo tivesse de
ter um começo. Como é que antes não havia nada e depois
começou a haver alguma coisa? Para não mencionar as aves,
os pirilampos, os peixes que vivem no mar.

Mesmo que seja um mau começo, já é um começo, uma


dádiva de deus, se assim se pode dizer, dizes tu, uma maneira
de dizer que não se consegue dizer, digo eu. Mas deve
agradecer-se, mesmo ignorando a quem agradeces ou qual é
a melhor maneira de agradecer, agradece de manhã e à noite,
ao mais simples dos milagres que é estar aqui e viver. Uma
coisa é algo poder acontecer, outra, muito diferente, é algo
acontecer. Pode acontecer que nada aconteça. Há quem diga,
e por isso to digo, que deus se preocupa em exclusivo com

43
PEDRO PAIXÃO

que o mundo aconteça, não com o que acontece no mundo.


Um deus sem compaixão para com as suas rebeldes criaturas,
e só assim livres. Acredita-se que o nosso único destino é
descobrir a parte divina que todos trazemos connosco. Que
alguém, o mais perfeito e justo, morreu por nós para nos
retirar da morte.

Pois é, um começo começa assim:

Eu estava deitada de costas sobre a relva e tinha os olhos


fechados e sentia debaixo de mim o peso húmido da terra e
depois abri os olhos lentamente e vi um céu enorme sobre mim
com algumas nuvens pequenas à deriva e pensei: eu estou aqui.

E foi então, de seguida, que os lábios dele se aproximaram de


mim, e a cara toda, e me obrigou a fechar os olhos outra vez
para colher aquele prazer tão estranho que vinha não sei de
onde e eu pensei: eu estou aqui com o meu amor e nada de
mal me vai acontecer enquanto estiver com ele e ele comigo
por cima desta terra, por baixo deste céu.

E depois voltei a abrir os olhos e a cara dele tinha envelhecido,


tanto que só era a cara dele porque eu sabia que era a dele.
Tinha de ser ele e mais ninguém, embora não a ficar mais
perto, mas sim a afastar-se, pouco a pouco, devagar, como
um desenho num papel a dissolver-se em água, ou então
eram as tuas lágrimas que cobriam os meus olhos, não sei,
é possível que nem volte a saber: tudo isto foi há muito e eu
tudo te perdoei e não quero voltar a esquecer. Quero-te longe
dos meus dedos.

Esta coisa de ser assim. O tempo preciso para fumar um


cigarro. A tua face instável. Ouço uma e outra vez a tua

44
MUITO, MEU AMOR

voz limpa. Não é a melhor altura. Eu sei. Nada posso fazer.


Penso em ti de noite e de dia. O amor insaciável. O desgaste
das horas. No meu coração não há lugar para mim. Os teus
olhos mentem. O teu sorriso fere-me cá dentro. Sei que de
nada és culpada. Pensando em ti as minhas unhas tingem de
vermelho a toalha. Escrevo palavras vãs. Ouço o som do teu
nome a ecoar por detrás das montanhas. O eco do teu nome
bate-me em cheio. O amor é um tecido em fios de seda,
muitos, rasgado de lado a lado. Ainda esta coisa de ser assim.
Linhas cruzadas. As lágrimas são o poço em que mergulho à
tua procura e só me encontro. Não saberemos quem fomos,
nem sequer no mais estreito abraço. Desconhecidos de nós
próprios, à luz velada da lua, bebo o veneno que entontece.
Ainda, já é tarde. Regressa ou parte, não me deixes suspenso
nesta morte. Esta coisa de ser assim. Linhas cruzadas. O amor
incansável. O desgaste das horas. No meu coração não há
lugar para mim. Suplico-te, de qualquer modo não apanhes
frio.

45
8.

És tão linda que nem dás vontade de foder, dizia. Eu não


consigo. Dizia outras coisas, grande parte perde-se no ar, mas
algumas, poucas, raras, ficam guardadas e regressam de vez
em quando, nas alturas mais despropositadas, atrapalhando
o que se está a fazer. És tão linda que nem te consigo foder.
Eu, pelo menos, não consigo. A beleza não seduz, assusta
quase, leva-nos para um lugar que não sabemos onde fica,
que sabemos só que não é aqui. Era assim que ele tentava
explicar, como quem precisa de uma desculpa, o que lhe
estava a acontecer, sabendo de antemão que não ia conseguir.
Se há coisa que não se sabe explicar é por que se gosta do
que quer que seja — um perfume, uma flor, um beijo — e
o que seja isso de gostar que traz duas coisas tão próximas
que as põe juntas numa só e as outras tão distantes que se
apagam facilmente. As duas coisas somos tu e eu, dizia. Para
se explicar, para se desculpar.

A cara dela transformava-se a tal ponto que quase ficava


irreconhecível. A face alongava-se, lembrando-lhe a figura
de uma pintura antiga; os lábios não mudavam de cor,

47
PEDRO PAIXÃO

ficavam só mais escuros, a brilhar; a pele era um sensível véu


a cobrir-lhe a vida; os cabelos quando tocados cediam, um a
um, espalhando-se sobre a almofada branca; e os olhos, dos
olhos não conseguia dizer o que lhes acontecia: tornavam-se
os mais belos que o mundo todo tinha. Era assim que ele a
via e talvez só ele a visse assim. Isso alegrava-o, tanto quanto
o envaidecia. Sim, ao vê-la assim de tão perto sentia-se tomar
por uma insistente vaidade, um afecto que, por lhe parecer
impróprio e descabido, tentava afastar, ignorando como lhe
servia de escudo inigualável contra a miséria do mundo.

Sabes, minha querida, afinal Galileu não tinha razão. Se há


um lugar em que estejamos é no meio. Por onde quer que
nos movamos, para onde seja que fujamos, por mais que
nos queiramos perder, esconder, desaparecer, continuamos
no centro deste mundo tão pequeno que cabe neste quarto
e abarca numa vertigem as estrelas mais longínquas que nos
espiam através das janelas. É no meio que tu estás, por onde
quer que vás. Tu és o meio de tudo, repetia sem cansar. E eu
quero estar muito perto de ti, no meio de tudo, um bocadinho
mais perto, pode ser? Podes, mas é escusado ofereceres-te
que eu agora não te quero. E daqui a um bocadinho? Talvez,
pode ser. Então vou aprender a esperar. Tu não sabes esperar,
meu menino lindo, é escusado tentares. Vais ter de aguentar.

Quero voltar ao tempo em que ninguém gostava de mim.


Nem sequer a minha mãe. Nem sequer. Quando no
domingo à tarde ia ao cinema sozinho, percorria mil vezes
a rua principal da cidade pequena e triste aguardando que
anoitecesse e chegado ao quarto alugado, da largura dos
meus braços estendidos, não conseguia adormecer. A pensar
numa e depois noutra rapariga que nunca ia ter. Sozinhos,
pelo menos, não fazemos mal a ninguém, não achas? Só a

48
MUITO, MEU AMOR

nós fazemos mal, sim, e muitas vezes merecemos. Se pudesse


levava-te comigo até esse tempo. Não para ficar por lá. Só
para tu veres quem eu era quando ninguém gostava de mim,
nem sequer a minha mãe, para saber se tu ias gostar de mim.
Para ver se me vias.

Tu gostas de mim por causa do corpo. Sim, é verdade, só


gosto de ti por causa do teu corpo. Mas toma atenção: o teu, e
os corpos em geral, são bem mais do que julgamos. É preciso
respeitar, fazer ginástica, não maltratar. São a nossa primeira
casa. E, já agora, a última. Não devemos fazer com eles o que
queremos só porque o queremos. Vivemos nele e nunca é
nosso por completo. É preciso respeitar. E nunca ponhas a
palavra “sexo” diante da palavra “só”. No nosso caso não se
aplica. Podes só acrescentar, se quiseres ser gentil, “absoluto”,
quer dizer, o que tudo compreende sem nada deixar de fora,
nem o corpo sequer, nem os corpos. Sim, sexo absoluto.
Quando me dás o teu corpo e eu te dou o meu, numa espécie
de troca em que cada um depois já não sabe qual deles é o
seu. Faz com ele o que quiseres, mas com todo o cuidado.
Não esqueças que o teu corpo pode ser mais meu do que teu.
Este ombro que te mordo por detrás é meu, pelo menos todo
o tempo em que a minha boca o agarrar. Todo o tempo meu,
só meu, de mais ninguém. Enquanto a minha boca deixa
de ser minha para te pertencer. Por isso, o beijo é a união
perfeita: quando a minha e a tua boca deixam de ser de cada
um e se transformam num irrequieto músculo do amor.

Se não tivéssemos corpo talvez fosse mais fácil, dizes tu.


Era mais fácil, não tenhas dúvidas. Mas então como seria?
Se não tivesse corpo, os outros também não teriam. Como
te poderia encontrar e onde? Como saberia que eras tu e
não outra? Como faria para não me enganar? Dizia-te ao

49
PEDRO PAIXÃO

ouvido: meu querido, sou eu, beija-me já, respondia ela sem
hesitar. Imagina tu que há mesmo um céu do céu para onde
se vai. É melhor marcarmos já o ponto de encontro para não
perdermos tempo a perguntar.

Sabes o que é uma catástrofe?, perguntava um e respondia o


outro. Gota a gota um copo vai-se enchendo e não acontece
nada a não ser o copo ir-se enchendo devagar, gota a gota.
Pode durar mais tempo ou menos tempo, pouco importa.
O que importa é o momento em que o copo fica cheio e uma
gota, igual a todas as outras, tanto à primeira como à última,
faz o copo transbordar. A isto chama-se uma catástrofe.
É isto que nos está a acontecer, uma coisa em tudo diferente
do que estava previsto acontecer. Mais imprevisto não pode
haver: a começar, a durar, a acabar. O inesperado amor vem
sem ser chamado, vive de suaves milagres, parte sem sequer
dizer adeus. Existe uma teoria matemática que equaciona
uma situação tão comum e natural como aquela que estamos
a viver, a gota a chover, o copo a transbordar, o amor a
rebentar entre catástrofes. A catástrofe do amor. Ouves-me
ou preferes que me cale? Muito bem, eu posso parar de falar.
Mas se quiseres desligar, és tu que tens de desligar. Não é
preciso dizeres até amanhã, basta desligares. Vá, eu já estou à
espera, desliga lá.

Não fales. Não quero que te canses. Deixa-me ser só eu a


falar, dizia um deles ao outro, cada um por sua vez. Isto ao
telefone, quando há muito tinha passado o tempo de desligar
e estavam cansados e tinham de dormir e acordar cedo na
manhã para irem trabalhar e não conseguiam desligar.
Desliga tu, vá lá. Eu não consigo, desliga tu, que és mais
corajosa. Está bem, então só mais um bocadinho. Só mais
um bocadinho? Quem saberá o que passa por esses cabos

50
MUITO, MEU AMOR

por baixo da terra e por cima, em ondas no ar, o que por


ali vai, ritmado por impulsos onde o silêncio tem o mesmo
precioso valor do que as palavras sussurradas.

Quem saberá? Pouco importa. O que importa é ficar cativo


a inúmeros quilómetros de distância, por uma voz humana,
e nada mais desejar do que prolongar essa prisão. Tão longe
e tão perto, não pode ser mais. Por uma voz que pode ser
mais ou menos bela, por palavras que ora são doces ora
agrestes, num total encantamento em que o mundo todo se
resume a palavras encantadas. Os olhos fechados para que
nada escape ao ouvido, palavras paradas suspensas no ar,
subtis ruídos dos corpos, silêncios eloquentes, palavras que
se perseguem e não se alcançam: só mesmo numa história
em que uma princesa vive de amores por um ladrão. Os
amantes roubam tudo o que podem um do outro. Não
deixam nada para ninguém. Uma vez aconteceu: era o
último recurso, já que nenhum tinha a coragem de desligar,
ela partir o telefone contra o chão. Uma solução insuspeita
e inesperada como convém às coisas do amor. Convém
igualmente acrescentar que o telefone não era caro e que ela
já tinha escolhido um todo preto numa montra. Isto para
não se julgar que eram ricos, porque não eram. Tinham
os dois de trabalhar na manhã que vinha a chegar. Que já
tinha chegado.

A partir de agora estás proibido, ficas proibido. Estás a ouvir-


me bem? Que fique bem assente, a partir de agora chega,
acabou, não voltas mais a telefonar. Estás proibido, proibido,
ouviste? Ordeno-te que me risques da tua memória, a mim
e ao meu número de telefone. Sim, com um lápis encarnado,
pode ser, mas o melhor, pensando bem, seria apagar tudo.
Tudo do princípio ao fim.

51
PEDRO PAIXÃO

Por vezes gosta-se de uma mulher por não haver outra por
perto de quem se possa gostar. Por vezes gosta-se de uma
mulher por lembrar outra mulher de quem se gostou e não
descobrimos quem possa ter sido. Por vezes gosta-se de um
homem por se ter gostado muito de uma mulher que deixou
de gostar de nós e precisamos de tudo tentar para a esquecer.
Por vezes gosta-se de uma mulher por se estar muito cansado
de se gostar demasiado de outra mulher. Por vezes gosta-se
de uma mulher só por gostar.

Às vezes ele escrevia uma colecção de disparates que juntava


para lhe oferecer. Às vezes ela ria, outras vezes não.

Por vezes gosta-se de um homem só porque faz falta para nos


levar a jantar. Por vezes gosta-se de um homem só porque
o corpo tem intermitentes exigências. Por vezes gosta-se de
um homem só porque não se gosta de outro homem. Por
vezes gosta-se de um homem por ainda se gostar demasiado
daquele homem. Por vezes gosta-se de um homem só porque
são precisos braços de homem para nos agarrar. Por vezes
gosta-se de um homem ainda que nunca se descubra uma
única razão. Por vezes gosta-se de um homem só.

Às vezes ela escrevia frases que depois lhe lia. Ela ria. Ele
ficava muito sério a ouvir, a tentar descobrir em que caso
cabia.

Olhar para a frente sem saber o que vai ser de nós. Olhar
para trás sem nada poder reviver, corrigir, emendar sequer.
Não conseguir fixar o presente, bom ou mau, tanto faz, o
presente que não será mais. Sentir-se transportado para a
frente e depois para trás, ficar tonto, prestes a cair, sem ter
mão no que pensar. Levantar, andar, voltar e depois parar

52
MUITO, MEU AMOR

num mesmo sítio, sempre diferente. Desistir, recomeçar,


deixar cair, agarrar por momentos e depois abandonar.
Sentir-se feliz, absolutamente feliz, e logo depois desesperar,
sem esperança alguma de voltar a acreditar, e depois voltar a
acreditar, sentir a felicidade, aos poucos, a voltar. Tudo isto à
volta de um amor, por causa de um amor, tudo isto e muito
mais, meu amor, que te tenho de esconder. Senão dizia-te.

Amo-te tanto como te odeio.

53
9.

As mulheres pensam numas coisas, os homens noutras.


Quem disse? Não importa. As mulheres pensam em
homens. Os homens pensam em mulheres. Nem todas,
nem todos, e de maneiras tão diferentes que não há
maneira de saber como é. Não há maneira de saber como
um homem pensa numa mulher, nem como uma mulher
pensa num homem. Se calhar não pensam. O desejo nada
tem de teoria. Entre um homem e uma mulher há um
abismo intransponível. O abismo para o qual se lançam.
Também podem ter muitas coisas em comum. Essas não
interessam mesmo nada. Só interessa o que nos separa,
distingue, afasta, vai dando lentamente cabo de nós. Terá
de ser sempre assim? Não interessa. O que importa é que é
sempre assim comigo e, se bem que nada saiba sobre mim,
sei tudo o que se pode saber sobre as mulheres. Resume-
se a isto: em todas, sem excepção alguma, encontram-se
duas constantes: uma expectativa, que não revelam, e uma
decepção da qual não se queixam. E não digo mais nada.
Não é preciso.

55
PEDRO PAIXÃO

Sim, um homem pode ser um animal, mas um muito


especial. A beleza, seja qual for a forma em que apareça, fá-lo
perder a cabeça, endoidecer, desvairar. Cometem-se crimes
violentos. Contra outros e contra si mesmo. Morrer de amor
é o excelente exemplo. Nada há de mais belo e terrível ao
mesmo tempo. Na verdade, nunca se sabe o que nos passa
pela cabeça, em certos tempos, quando a beleza, de repente,
começa a faltar.

O retrato de Giovanna de tranças vermelhas, mais viva do


que nós, turistas cercados num museu da cidade. A serena
leitora de cartas de amor e paixão que nós nunca vamos
poder ler. A mulher subtil de olhos de amêndoa antes de
se atirar pela janela com o filho no ventre. A maravilhosa
criança a que chamaram Marilyn fotografada a preto e
branco com um livro de Dostoievski nas mãos. A beleza das
raparigas esculpidas em pedra com um sorriso que diz muito
sem nada se poder adivinhar. E tu, só tu, obra perfeita de um
deus desconhecido. Exímia obra de arte viva, a tua beleza é o
escândalo do mundo. O lado terrível da beleza. O seu poder
de destruição.

Por que quero eu que tu gostes de mim até não podermos


mais? Para sentir o mistério de sermos só nós os dois a gostar
assim e nunca mais ninguém? Para me ver, de vez, livre de
mim? Para cancelar o mundo que me ata ao fundo? Para deter
a recompensa do prazer e o alívio que sempre traz? Para vencer,
vingar, dominar o que quer que seja que ficou por vencer,
vingar, dominar? A falta do amor? O ter querido e o não me
terem querido? Tudo isso ao mesmo tempo? Sim, talvez.

Quanto mais te amo menos te desejo. Quero amar-te mais,


sempre um bocadinho mais, posso? Que o prazer sejam

56
MUITO, MEU AMOR

outros a trazer-mo e a roubar-mo, que fique só a minha alma


para ti. Que o meu corpo, entre nós, está sempre a mais.
E não é do meu corpo que eu não gosto, não te enganes. Do
que eu não gosto é de ter um corpo. Já viste bem o trabalho
que dá? Sim, podemos abraçar-nos como irmãos. Até um
bocadinho mais do que irmãos. Mais não. Parece-te que gosto
muito? Já gostei mais. Agora gosto menos, cada vez menos.
Já reparaste? Ainda não? Então é porque andas distraído,
meu amor. Eu não.

Posso escrever-te? Toda. Posso foder-te? Toda. Amor, não?


Sim, amor meu.

E ele pousou o telefone em cima do piano, e começou a tocar


para que ela o pudesse ouvir do outro lado. E, passado um
bocadinho, ela pousou o telefone e foi a correr dizer à mãe que
se tinha apaixonado. E quando voltou a agarrar o telefone disse:
nunca te quero ver tocar piano, ouviste? Se te vir algum dia
tocar piano vou amar-te tanto que tudo corre o risco de, no
instante a seguir, se apagar, sucumbir, sei lá. Ele não disse nada.
Ficou a pensar no que seria que ela queria dizer e no perigo.

E foi assim, mesmo assim. Ela pôs ao de leve os dedos dela


sobre os dele que tocavam nas teclas de marfim, as duas
almas formaram uma só — a música enchia a sala — e fugiu
para o jardim. Foi assim, uma vez foi mesmo assim. E ela
disse: a partir de agora vais deixar de me tocar onde quer
que seja com os teus dedos, qualquer que seja a situação e o
lugar, mesmo na maior urgência, nunca mais me vais tocar.
E ele ajoelhou-se, beijou-lhe as mãos e ela disse: vais deixar
de me tocar, prometes? Hoje é a última vez, prometes? Tu
não existes. És uma miragem. As miragens existem. Tu é que
não.

57
PEDRO PAIXÃO

Diz-me qualquer coisa.

O que é que queres que te diga?

Diz-me: gosto muito de ti. É o bastante.

Isso não digo.

Diz lá, não sejas má.

Amo-te muito. Amo-te cada vez mais. Não sei o que fazer.

Amo-te muito.

Ela a sair do Volkswagen 1300 branco com um saco de


esteira e uma toalha enrolada debaixo do braço, a avançar
para o mar, atravessando a larga faixa de areia sem olhar
para ninguém, tão segura no avançar como se não fosse
a andar mas a flutuar sobre uma ténue névoa, com uns
jeans coçados colados à pele e uma camisa vermelha ou
amarela ou branca, sim, branca, arregaçada nas mangas,
dando um nó sobre o umbigo queimado pelo sol, em pleno
contraste com o algodão cru da camisa, e depois a estacar
subitamente na ligeira elevação de uma duna e a começar
a despir-se, e depois de instalada, a correr para o mar,
mergulhando nele como uma sereia, e do mar a sair com
o cabelo liso a brilhar como escamas, e um sorriso que se
alargava até tomar a extensão de toda a praia, a princesa,
a sereia, a menina mais bonita, a mulher mais bela que
habita sobre a terra ou nos fundos do mar és tu, disse-lhe
ele várias vezes. E ela sem acreditar, não querendo mesmo
acreditar, dizia: essa é outra de certeza ou então estás a
inventar.

58
MUITO, MEU AMOR

Já entrámos no século XXI e eu continuo a apanhar escaldões


todos os anos, todos os anos é a mesma coisa. Juro-me que é
a última vez, chamo-me todos os nomes e depois é o mesmo,
todos os anos, com o buraco de ozono a crescer, no século
XXI e não há nada a fazer, uma estupidez, o que é que tu
queres? Estou deitada sobre lençóis, não me posso mexer,
dói-me a pele toda, nem tu, nem sequer tu me podes tocar
sem que grite.

O que é que tu estás a fazer em mim?

Estou a escrever-me em ti.

Para mim?

Para os que sabem ler. Para os que estão tão perdidos como
nós.

Amanhã vou para dentro de ti.

Não gosto que invadas assim o meu espaço.

Não sabia que o meu amor era uma astronauta.

Não sejas parvo.

Vou para dentro de ti. Sabes onde fica?

Nem quero adivinhar.

No fim do jantar o pai disse bem alto: o meu filho não é


um impotente. A mãe foi para o quarto fechando todas as
portas atrás de si. O rapaz deixou cair um garfo debaixo da

59
PEDRO PAIXÃO

mesa, que foi logo apanhar. A irmã começou a falar no novo


namorado e não se calou mais. O gato saltou para o sofá.
Há famílias assim, em que o amor é tão grande que nunca
precisa de se mostrar.

A beleza a passear na rua, sufocada dentro de um elevador,


a sair do nevoeiro de um duche muito quente, a chorar com
as mãos a apoiarem a cabeça sobre uma mesa de madeira.
A barreira da beleza que não se deixa atravessar, onde os
olhos param, onde o desejo bate e volta para trás. A beleza
que a ninguém pertence, de que ninguém é dono, que não
existe para mais nada que não seja ser o que é, que nós nunca
saberemos o que será. Um reflexo, uma janela aberta para o
céu, a estrela mais longínqua, és tu, apenas tu, mesmo sem
quereres, sobretudo sem o quereres. A tua beleza a alastrar-
se pelo mundo, a percorrer o espaço entre as coisas, a ocupar
pacientemente os lugares vazios.

Pirilampo. Era assim que ele por vezes a chamava. Ela gostava
que ele a chamasse assim. Pirilampo, aquele que pela noite
escura se vai iluminando.

60
10.

Sabes como é que isto acabou, o que aconteceu?

Não sei nem como acabou, nem o que aconteceu. Há


inúmeras razões insuficientes, e nenhuma que seja a bastante.
Não é sempre assim o amor? Assim como chegou, parte.
Não há muito que se possa fazer. Só sabemos que partiu e
que quando parte não volta. Pelo menos na mesma forma,
pelo menos pela mesma pessoa. Para poder voltar a amar é
imperioso deixar morrer o amor. Até ao fim. Até o voltarmos
a merecer. O amor detesta repetir-se. Tem de ser sempre o
primeiro. E o último. Sabemos que partiu sem ter ficado a
saber o que era aquilo que nos mantinha assim juntos, tão de
perto, prometendo durar eternamente. Sentimos um vazio
tão grande que não conseguimos sair para fora dele, escapar-
lhe, voltar a ter um nome que seja nosso. O que sabemos, isso
sim, é que são tristes todas as canções de amor. E com toda
a razão. Só se canta o amor que partiu, a dor que deixou, a
falta. O amor é sempre igual a si próprio. A vida é sempre
outra coisa. Mas posso contar uma história, se tu quiseres.
Ou várias, e tu escolhes a que quiseres, meu amor.

61
PEDRO PAIXÃO

Pode ser assim.

E quando ele estava a pôr gasolina sem chumbo 95 e o


depósito ficou cheio e a bomba parou de jorrar gasolina, ele
retirou a mangueira que estava enfiada dentro da boca do
depósito e, sem saber porquê — só curiosidade — apertou
de novo o gatilho da mangueira que começou primeiro a
verter um pouco de gasolina sem chumbo 95 — o cheiro
agradou-lhe — e depois a verter mais, por apertar com mais
força o gatilho da mangueira, até ao fundo para ver como
era e começou a regar o carro por cima e depois por baixo e
então viu a boca dela mover-se através do vidro a perguntar:
o que é que tu estás a fazer? E ele não disse nada, deixou só a
mangueira caída no chão, olhou em volta, não viu ninguém,
entrou no carro e ligou a ignição dizendo: não foinada, não
aconteceu nada.

E pode ser assim.

Conta os comprimidos, um a um. Sessenta e quatro. Começa


por engoli-los, um a um, depois a mastigá-los. Fazem na
boca uma papa que dilui com goles de água. Sobe para o
quarto. Deita-se sobre a cama forrada de cetim e fecha a
luz do candeeiro. De olhos abertos no escuro quer rezar,
que deus tenha piedade da sua alma, mas não encontra as
palavras. Depois, adormece para sempre. O mundo é um
lugar malvado. Alguns aproveitam-se disso.

Não. Não pode ser assim. Há histórias que não vale a pena
contar, que nem se conseguem contar. São histórias más,
pesadelos dos quais não conseguimos acordar. São para
esquecer o mais depressa que puderes. Se existir alguma lei
da vida é que ela nunca é fácil. Todos o sabemos, não vale a

62
MUITO, MEU AMOR

pena insistir. E já vamos sempre tarde para escolher a hora


da nossa morte.

Conta-me outra história, se fazes o favor.

É para já.

63
11.

Ainda era uma miúda quando peguei em mim e fiz uma


viagem à procura de deus. Como se ele tivesse fugido daqui
entregando-nos ao mais intolerável tédio. Valeu a pena, a
viagem. Não me apressei a chegar. Desejei que fosse eterna,
cheia de aventura e descobertas. Tive de lá ir para chegar
aqui. Para isso, serviu-me o destino.

Quando cheguei perguntaram-me se queria ir para a Casa


dos Doentes ou para a Casa dos Moribundos. Perguntei qual
era a diferença. Que a Casa dos Doentes era uma grande
enfermaria que ficava na parte mais pobre da cidade, se fosse
possível delimitar qual era a parte mais pobre da cidade,
ou mesmo se ali onde estávamos pudesse ter um nome de
cidade. Que a Casa dos Moribundos era uma casa onde
eram recolhidos, por uma camioneta que ia por entre ruas
e caminhos de terra, alguns dos que estavam a morrer. Não
todos. Todos seria impossível. A maior parte morre entre o
lixo, ao lado de crianças a nascer, mas alguns, apanhados ao
acaso, podem morrer no interior de uma casa, um abrigo
humano. E então comecei a chorar e não conseguia parar, por

65
PEDRO PAIXÃO

mais que mordesse o lábio, e ela disse-me para eu chorar o


que tinha a chorar, que já voltava, e saiu do quarto onde havia
uma pequena janela no alto e uma cruz na parede caiada a
azul e eu continuei a chorar, não sei por quanto tempo, até
ela voltar e me perguntar se eu já tinha parado de chorar, e eu
ainda não tinha, mas parei naquele instante e disse: prefiro
trabalhar na Casa dos Moribundos. E ela pediu-me que
agarrasse nas minhas coisas, que me iam lá levar.

Na parede branca estava escrito um poema. Queres que to


diga? Era mais ou menos assim:

As pessoas são insensatas, inconstantes e egoístas. Ama-as,


apesar de tudo.

Se fizeres o bem serás acusado de agires por outros motivos.


Faz o bem, apesar de tudo.

Se tiveres êxito ganharás falsos amigos e verdadeiros inimigos.


Tenta alcançá-lo, apesar de tudo.

Todo o bem que fizeres amanhã será esquecido. Faz o bem,


apesar de tudo.

A honestidade e a franqueza tornam-te vulnerável. Sê honesto


e franco, apesar de tudo.

O que passaste anos a fazer será destruído numa só noite.


Constrói o que tens de construir, apesar de tudo.

As pessoas precisam de ajuda mas atacar-te-ão se as ajudares.


Ajuda-as, apesar de tudo.

66
MUITO, MEU AMOR

Dá o melhor de ti e serás atingido nos dentes. Dá ao mundo


o melhor de ti, apesar de tudo.

E depois?

Depois fui para o Nepal, onde me apaixonei por um rapaz


de dezassete anos que era massagista, de cor muito escura e
mãos muito brancas, e nunca antes, nem nunca depois, houve
alguém que soubesse dar-me prazer assim. Achas que soube
do prazer que me deu? Julgo que sim. Pelo menos gostava
que assim fosse, assim tivesse sido, o meu nepalês lindo de
quem não voltarei a sentir prazer.

É tão estranho conhecer uma pessoa. Tão difícil que parece


impossível. Não existir e passar a existir: uma pessoa inteira,
um mundo todo. Onde caberá uma pessoa inteira neste
mundo pequenino? Como é que se consegue? Como é
que se faz? Eu não gosto nada de conhecer pessoas novas.
A única maneira é fazer como se já as conhecesse. Fazer
de conta que já nos conhecíamos. Só se for assim. Contigo
também foi assim. Não deu resultado. Tu eras igualzinho e
por completo diferente de todos os outros. De ti adivinhava
tudo. De ti nada sabia. Quando te vi, foi a mim própria que
vi. Conhecia-te desde o princípio. Não foi preciso conhecer-
te, bastou reconhecer-te, meu menino lindo.

A vida não podia ser melhor e mais injusta.

67
12.

Fala-me mais dele, falas?

Dele? De quem?

Dele.

Está bem. Mas com duas condições: primeiro não me vais


interromper. E dele não volto a falar.

Sim, eu sei que tu gostaste muito dele, eu também gostei


muito dele. Sim, eu sei que não foi só gostar muito dele, que
gostas muito dele e que vais continuar a gostar por muito
tempo. Sim, eu sei que não é gostar, é amor e para sempre,
sim, eu sei. Eu também. Por ti, só por ti, eu volto a gostar
dele como gostei há muito tempo. Mas só por ti, por mais
ninguém, e só durante o tempo absolutamente indispensável.
Nem um momento mais sequer. Depois, deixo de amar.

Sim, eu sei que tu não gostas que eu diga mal dele, mas eu
não digo mal dele senão diante de ti. Diante de todos os

69
PEDRO PAIXÃO

outros não, não vale a pena, ninguém ia compreender. Se


começamos a dizer mal um do outro nunca mais acabamos.
E se te digo mal dele é para me defender do mal que ele me
fez, não sei se sem querer, talvez sem querer, mas o mal é
o mesmo. E a dor. Não é consciente do mal que faz? Então
deve morrer. Vamos matá-lo? Não, não vale a pena matar
ninguém. Só por se ter nascido ninguém merece morrer. Há
tantas maneiras de morrer. Não é preciso matar ninguém
para que se morra. A maneira mais cruel de matar alguém é
matar quem ela ama.

E eu queria que tu dissesses coisas lindas e tu não dizias nada,


ficavas calado. Porque tu dizias coisas lindas, e só tu eras tu,
e eu já não sabia o que fazer nem da minha vida, nem da
minha morte.

Essa pessoa que dizes amar, e que vais continuar a amar, eu


vivi com ela numa casa perto do mar e escrevíamos juntos
nas tardes de domingo bebendo chá. Sai daí que agora sou
eu, chega para lá que me veio uma coisa à cabeça, dizíamos
um ao outro. Só havia uma máquina de escrever no meio de
nós. Era lindo, aquilo, naquelas tardes de domingo em que
bebíamos chá numa casa vazia perto do mar.

Mas se as coisas não ficam onde estão por muito tempo,


ainda menos as almas. É o que é. As coisas pioraram. Ele
começou a assustar-me ou então fui eu que comecei a ter
medo. Por exemplo: o medo de já não saber quem ele era, de
tão grande, de tão monstruoso que era, assustava só com o
que por descuido mostrava. E, de vez em quando, zangava-
se. A minha vida é a minha vida, não a queiras melhorar, não
tem correcção possível, dizia. O que é que tu queres? Ser o
corrector da minha vida? Vai-te lixar, mas é. O que eu queria

70
MUITO, MEU AMOR

não o sabia, e ainda hoje não sei o que era. Eu não queria
nada e cada vez sabia menos o que querer.

Acordávamos de manhã cedo, cada um no seu quarto — um


terceiro era habitado por um fantasma que só vinha de mês
a mês pagar a renda — e depois saíamos para ir jogar squash
— tu depressa começaste a ganhar e uma vez desmaiaste,
lembras-te? — e depois íamos para o trabalho no mesmo
carro preto e velho e tudo pareciam miniaturas: a estrada, o
farol, as pessoas que passeavam nas praias junto ao mar, e ao
fim do dia voltávamos juntos do trabalho, depois de bebermos
duas cervejas com tremoços na tasca da esquina. Depois
saíamos à noite com algumas raparigas, porque nenhum de
nós tinha namorada ou se tinha pouco se lembrava de a ter.
Quando não ficávamos os dois frente a um vídeo, a ouvir
música e a falar.

E tu fazias coisas lindas. Escrevias poemas de amor enquanto


víamos filmes hardcore, ensinavas às cinco da manhã duas
raparigas a jogar bridge e acabávamos o primeiro jogo às seis
e meia da manhã. Ou então sentavas-te diante da máquina
de escrever e em três horas escrevias três histórias lindas,
mais lindas nem seria bom desejar.

E depois ele foi viver para a cidade — mais perto do emprego,


dizias — e eu fiquei sozinho na casa junto ao mar, primeiro
sem saber o que fazer de mim e depois inventando o que
fazer sem ti. E depois aconteceram muitas coisas e quase
nos zangávamos, e depois tu telefonavas e eu ficava de novo
encantado e voltávamos a estar juntos todos os dias. E depois
afastávamo-nos de novo e tu, passados uns meses, telefonavas
e eu dizia-te que estava cansado e que ia dormir e tu dizias
para eu não ser parvo, que precisamente naquela noite ias

71
PEDRO PAIXÃO

pôr música num bar qualquer, e eu lá ia encantado apesar do


cansaço e de ninguém, salvo eu, ter gostado das canções que
escolhias.

Acontecia uma vez por ano, talvez no Verão, não tenho a


certeza, só penso nisso agora, os Verões eram mais longos
naqueles anos. E um dia vieram cá a casa, ele, a mãe do meu
filho e o meu filho pequenino, sentaram-se os três no sofá
da sala e disseram-me que se iam casar. E perguntaram se
eu não queria ser o padrinho de casamento. Disse que não,
agradeci e, enquanto nos despedíamos, lembro-me de ter
pensado como seria bom o meu menino ter um outro pai
como ele.

Mas depois, quando a mãe do meu filho me disse ao telefone


que tinha de abandonar a tradição judaica para poder casar
segundo o rito católico, o que pode dizer pouco para outros,
mas para mim não, pensei: ele é um louco e está a pô-la
louca. E se ela enlouquece o que será do meu único filho?
E fiquei assustado e não fui ao casamento — montei durante
todo o dia três cavalos para me cansar — apesar de ele me ter
ameaçado: se tu não vieres ao casamento nunca mais te falo.
Mas depois falámos, é claro, e só depois deixámos de nos
falar, embora de cada vez que, por acaso, nos encontrávamos,
déssemos um abraço que durava um bocadinho. Eu ficava
triste, e depois passava. Agora, nunca mais vamos falar na
nossa vida sobre qualquer assunto que seja, qualquer que
seja a situação ou a urgência, nunca mais.

Numa noite em que nos encontrámos a altas horas, numa


discoteca intoxicada por gente, álcool e drogas, ele quis falar
comigo e eu disse-lhe: olha que não é boa hora. Respondeu-
me que podia fazer o que bem quisesse, que não acreditava

72
MUITO, MEU AMOR

em deus e que eu também não acreditava. E eu disse-lhe que


não era assim e ele gritou-me, muito zangado, que eu lhe
dissesse já ali se acreditava em deus, e eu disse muito alto,
quase aos berros, sim acredito em deus. E fui-me embora a
tremer.

Foi a última vez que falámos, mas continuámos a abraçar-nos


sempre que nos encontrávamos por acaso num restaurante,
à entrada de um cinema, mas sem dizer nada, nunca mais
trocámos uma só palavra.

E agora?

Agora já não nos abraçamos, já não nos reconhecemos, já nem


sabemos quem éramos. Ele já não sabe quem eu sou e eu já
não sei quem ele é. Exactamente o mesmo que era antes de
nos terem apresentado, há muitos anos. E se o visse na rua
lembrar-me-ia de alguém mas não saberia de quem. Com ele
passa-se o mesmo. Foi há muito e durou pouco tempo. Não
vale de nada falar nisso, no amor que morreu. Não há sopro de
vida que possa ressuscitar um amor morto. Como as palavras
são parecidas, amor morto, meu amor, estranho acaso.

Durante semanas não me lembro de mais nada, só me


lembro de ter medo de enlouquecer e tive de ser tratado com
umas cápsulas bicolores azuis e vermelhas que roubam todo
o desejo, fazem-te olhar para uns sapatos e não sabes para
que servem, queres subir para o nono andar e desces para o
terceiro, e, como que por magia, desaparecem duas letras na
assinatura do teu nome.

Se nos voltássemos a encontrar não nos poderíamos


reconhecer. Por estarmos tão parecidos, tão iguais, tanto que

73
PEDRO PAIXÃO

nem seria possível distinguirmo-nos. Mais iguais para pior,


é claro, mais iguais na doença, disseste-mo ainda, quando te
dizia que não. Que vamos ficando pior com o tempo, cada
vez pior, que até desejamos morrer para não ficarmos pior
do que já vamos, e não morremos, que faz parte do ficar pior
o não conseguir morrer e simplesmente continuar, como nós
fazemos, meu amigo mais querido, aqui postos sem saber
nem querer, postos para continuar, não para acabar, nem
sequer, nem sequer para começar, que era o que nós mais
gostaríamos: recomeçar para logo acabar.

Pronto, chega assim, não serve de nada, não vale a pena, as


coisas não vão melhorar, nem precisam melhorar, as coisas
nunca estiveram tão bem como agora e nunca foi tão grande
a vontade de gritar.

És tu que me fazes lembrar dele, que o trazes de novo a mim.


Sem ti a memória ir-se-ia dissipando, sem nos darmos conta,
não aos poucos lentamente, mas aos pedaços de repente,
como é sempre.

Agora posso continuar.

74
13.

Quando é que isto vai acabar?

Isto o quê?

Isto.

O amor?

Sim, pode ser, o nosso amor. Quando vai acabar o nosso amor?

Vai acabar quando não estivermos à espera que acabe, sem


mesmo se fazer notar. Só depois, mais tarde, quando se tenta
recordar e se começa a perguntar: como foi que aconteceu?
e não se consegue voltar lá, só então se sabe que acabou o
nosso amor. Vai acabar sem que saibamos. Só depois, quando
já é irreparável, é que ficamos a saber que há muito tempo,
demasiado tempo, acabou o tempo do nosso amor. Uma
coisa passada.

E como é que vai acabar, diz-me, se fazes o favor. E porquê?

75
PEDRO PAIXÃO

Vai acabar da única maneira que nós, tu e eu, não imaginámos


que acabasse. Sim, da única maneira, mesmo depois de
estudadas e consideradas detalhadamente todas as outras.
Vai acabar da única maneira que tinha de ser, como se pode
ver logo depois de acabar, mesmo logo depois de começar,
mas que nós não podíamos de qualquer modo antever.

Trazemos os olhos vendados para o que nos está mais


próximo, meu amor, e nos acompanha como um animal
ferido do qual desconhecemos o nome. Por isso, não vale a
pena pensares nisso. Nem no fim, nem no princípio. Não vale
a pena pensar no princípio nem no fim. Não existem sequer.
O amor não tem tempo, vive sem nós. Nós é que vivemos no
amor durante um tempo, num movimento do amor. Mas o
amor, esse, vai continuar, não tem maneira de acabar.

Sim, mas diz-me tudo, eu quero saber tudo, diz-me.

Se desesperas de um amor, procura outro. O amor tem mais


caras do que todas as cores juntas e há muitas coisas dignas
de amar. E se deixas de acreditar no amor entre os humanos,
nessa tristeza maior, procura o que é mais do que humano
para que possas, através dele, voltar a amar-nos, a nós os
abandonados. Mas tem cuidado em separar o que merece e o
que não merece o teu amor, ou pelo menos, tenta separar, se
bem que tudo, mesmo tudo, precise urgentemente de amor.
Para não te desperdiçares não dês o teu amor a quem to tira.

A mulher está no meio e nós, homens e mulheres, estamos à


volta da mulher.

A fazer o quê?

76
MUITO, MEU AMOR

A olhar a mulher, a falar sobre a mulher, a mandar-lhe


mensagens, a fazer pedidos, mesmo a implorar.

E ela?

Ela?

Sim, ela.

Ela está sentada numa cadeira e olha para o chão e de vez em


quando, muito de quando em vez, levanta uma mão, o que é
um sinal que cada qual entende à sua maneira. Depois volta
a poisar a mão sobre o joelho.

É uma mulher muito bela.

A mulher no meio. No meio do quê?

No meio de mim, por exemplo.

De ti?

Sim. A minha mãe, a tua mãe, do princípio ao fim a mulher


no meio. A tua irmã, a tua mulher, a tua amada no meio.

Sempre no meio?

Sempre.

Para sempre?

Sim.

77
PEDRO PAIXÃO

Porquê?

Assim.

Essa mulher, é bom que saibas, és tu, ou também és tu,


ou podes vir a ser tu, sobretudo se não a quiseres ser, se o
ignorares. Ou foste tu e perdeste a memória. Tu inconsciente
agora a falar por falar sem saber o que dizes.

A beleza, sabes o que a beleza faz? Põe-nos inquietos. Outras


vezes faz de nós crianças assustadas, prestes a chorar. É assim
a beleza, foi feita para nos chamar.

A nós?

Sim, a nós. Só a nós. A mais ninguém, a mais nada. Só a cada


um de nós, calados a escutar.

E tudo o que é bom na vida é vivido, não é dito, não é para


se dizer, não precisa de dizer-se. Podes tentar, podes sempre
tentar, mas vais reparar que te afastas quando te queres
aproximar. Abre a boca, deixa-a assim ficar, se quiseres, e
não digas nada. Devemos aceitar as deformações da nossa
cara e a maior parte das perguntas nem sequer merece a
nossa atenção, quanto mais o nosso esforço. Quanto menos
perguntas fizeres melhor, nem sequer devias perguntar, mas
podes sempre perguntar, se tu quiseres.

Falamos de quê? Do amor? Tens a certeza?

A certeza não, mas pode ser. Do que não sabemos, pode ser.
E não te deixes levar sem mais pelas palavras, as palavras
enganam muito sem querer. Tem o máximo cuidado. Todo é

78
MUITO, MEU AMOR

pouco. E, no entanto, só temos as palavras, nada é mais nosso


do que as palavras que passam por nós. E toda a atenção,
todo o respeito é insuficiente, do mais precioso devemos
cuidar. As palavras que nos fazem, nos agarram e nos guiam
a um lugar fora de nós. Por isso, não mintas nunca. Descobre
as múltiplas formas que a verdade tem de se mostrar – uma
cor, um número, um breve sentimento – e procura ser fiel
às palavras que te deram e que a outros vais passar. Não te
intrometas entre elas. Não mintas. As palavras são a tua
palavra, não esqueças.

Estamos tão pobres de amor, meu amor. Sente-se tanto, nota-


se tanto esta pobreza, esta falta. Nunca tanto foi assim tanto,
podes crer, meu amor. É nesta falta, tão pobres dele, que ele
cresce, tem de crescer ainda mais, acredita, meu amor.

E do que eu gosto mais em ti é dos teus defeitos, dos teus


pecados, da tua mentira que odeias. Para se gostar mesmo,
como eu gosto de ti, é preciso dar atenção àquilo de que não
se gosta nada das outras vezes, mesmo nada, isso é que é
gostar como eu gosto de ti, é isso, só isso, que me faz gostar
de ti, meu amor. As tuas qualidades dão-me tédio, já to disse
mas repito, os teus defeitos são mortais, mas os pecados,
esses são só teus. E meus, se tu quiseres. E não quero que
te corrijas, comigo, pelo menos, não quero. Mesmo que se
torne difícil, insuportável, impossível de viver, tudo menos
isso, até morrer.

De um momento para o outro podemos desaparecer, vamos


mesmo desaparecer, não esqueças.

Porque queres tu que os meus lábios sejam só teus?

79
PEDRO PAIXÃO

Porque só eles são iguais aos teus.

E para que serve o amor, diz-me já?

Serve para vencer o medo. O amor é sempre o mesmo, a vida


é que é sempre diferente.

80
Discurso sobre a tirania

Quando o que restava do tirano foi desfeito por um sopro


de coragem, o meu pai começou a beber e nunca mais parou
de beber, o meu irmão mais velho começou a injectar-se em
todas as veias com o que quer que houvesse, a minha mãe foi
lentamente endoidecendo, refugiando-se num mundo em
que só cabia ela e mais ninguém.

Lembras-te do que aconteceu quando terminou a tirania?


Conta-me. Lembras-te de quem eras, ou já mal te reconheces?
Diz-me. Não te queres lembrar? Custa-te, faz-te sofrer?
O que é que aconteceu? A desilusão a acompanhar, como
uma sombra, o mais que venerável amor pela liberdade?
É isso? Porquê assim? Diz-me, se fazes o favor? Conta-me
uma história. Não precisa de ser tua.

Nesse dia, de há muitos anos, tu fazias cinco anos e a


liberdade ainda não soubeste o que é? O que é que se passou,
perguntas? Posso tentar, mas mais do que uma tentativa
não será.

81
PEDRO PAIXÃO

Na véspera desse dia em que nasceste, a liberdade escondia-


se por detrás de altos muros que a grande maioria nem fazia
caso em olhar. No dia a seguir, de repente, as ruas encheram-
se de gente a gritar, a celebrar essa palavra: liberdade. Havia
uma alegria, sem dúvida, e o entusiasmo tornava-nos ébrios,
mas no fundo já podia sentir-se a náusea a avançar.

Que queres dizer? Explica-te, se fazes o favor.

Na tirania a liberdade não desaparece. Concentra-se no


tirano que a exerce a partir de si, e nos poucos que têm a
coragem de o combater. Depois da tirania a opressão não
desaparece, muda de cara, dilui-se em cada um de nós e a
liberdade torna-se mais difícil. O inimigo, menos visível,
habita-nos de muitas formas, algumas mesmo difíceis de
classificar. Ficamos mais sozinhos diante do medo.

O tirano de que falas, quem era, o que lhe aconteceu?

O tirano não tem lugar para onde fugir, leva consigo o lugar
da sua morte. É um grande fardo que o torna cada vez mais
pesado. É por isso natural que acabe por cair da cadeira
onde está sentado, sem ser preciso que alguém o empurre.
O tirano de que falo mostrou-se invencível, o povo queria
ser conduzido, o tirano tinha-se reproduzido como um
vírus dentro de cada um. A tirania protege os que nela se
protegem, e nunca se sabe quantos são, podem ser todos.
Dessa protecção só escapam seguramente os loucos e os
criminosos. E nem os que lutavam acreditavam, a não ser
como num dogma, que a tirania ia findar, porque se tinham
medo a lutar mais medo tinham de deixar de lutar e por
isso precisavam, mais do que os outros, que as coisas não
melhorassem, pelo contrário.

82
MUITO, MEU AMOR

Os que lutavam desejavam a besta forte e sadia e desprezavam


os que a pretendiam domesticar, mais ainda do que aqueles
que odiavam. Deixar de lutar é mais difícil do que começar a
lutar, e traz consequências inesperadas. Lutar é uma ocupação
em que estamos por completo ocupados e quando a luta
acaba, mesmo com a vitória, sente-se subir vertiginosamente
o nível do tédio. Muitos dos melhores desesperaram,
enlouqueceram, deram-se à morte.

Aliás, o tirano já tinha morrido, caindo de uma cadeira


onde estava sentado, sem ninguém o empurrar, quando
a tirania findou. O lugar do tirano ficou vazio, mas a
cadeira continuava a impor o medo e a assegurar a ordem,
tal objecto sagrado. Os melhores alunos do tirano, com a
juvenil pretensão de poderem corrigir o mestre, vieram
substituí-lo temporariamente, como o assistente substitui
o professor, e nas aulas a atenção decresce, assim como
a assiduidade, ao mesmo tempo que aumentam o ruído
e as perguntas parvas. Os assistentes assistiram a tudo
calmamente e depois retiraram-se, proclamando que a
culpa não era deles mas dos rivais, e entregaram o poder
que já não tinham à respeitável e antiga hierarquia militar,
que saudavelmente desconfia da política como actividade
lúdica em tempo de paz mas que, nada sabendo fazer
com ela, atrapalhando-se a ponto de pôr em causa a sua
própria sobrevivência, se viu obrigada a livrar-se desse
poder o mais depressa possível, como quem leva nas mãos
um fogo, entregando-o aos novos políticos profissionais
que o aceitaram com o entusiasmo com que uma criança
recebe um presente de que nunca esteve à espera e julga
agora mais do que merecido. Mas a rota do navio é traçada
de longe por quem tem o verdadeiro poder e, de terra
firme, vê através de potentes binóculos. Aliás, aos que estão

83
PEDRO PAIXÃO

dentro do barco pouco importa a rota quando o perigo é o


iminente naufrágio e tudo serve para o adiar.

Mais vale isto do que a tirania, ninguém quer a tirania,


ninguém consegue ser tirano se não for exigido, aclamado
pelas multidões apavoradas, fartas da liberdade, e então volta,
primeiro como príncipe e depois como besta. E tu, onde é
que estavas na véspera desse dia em que nasci? Eu estava a
caminho de uma prisão. Íamos num carro. Éramos quatro.
Fomos parados por uma barragem de polícia com cães e
metralhadoras. Tive muito medo. Sempre que tocavam à
porta de casa a horas invulgares sentia o medo. Mais tarde ou
mais cedo viriam buscar-me, e nós estávamos a par do que
eles faziam aos homens e às mulheres no escuro iluminado
por holofotes, os cobardes que obedeciam à ordem. Sim, o
que eles eram, acima de tudo, era cobardes. Mas a cobardia
continua de outras formas. A cobardia continua sempre a
vingar entre nós e tem sempre de ser de novo vencida.

Quando eu tinha dezassete anos, é preciso que saibas,


acreditávamos numa coisa muito estranha: que o mundo era
injusto desde sempre mas que, graças ao nosso sacrifício, ia
ficar justo para sempre. Que o mal do mundo tinha uma cura
e nós sabíamos qual era, uma verdade de tal modo ofuscante
e poderosa que se por ela fosse preciso matar eu era um
assassino. Não foi preciso matar. Uma coisa muito estranha,
não deve voltar a acontecer. Tínhamos uma causa pela qual
estávamos preparados para morrer e matar, o que não a torna
justa, e todas as causas, por fim, acabam por corromper.
O herói é irmão do criminoso, estranhamente.

E então por que falas assim? Podias estar numa prisão se não
tivesse havido esse dia.

84
MUITO, MEU AMOR

Por vezes tenho saudades dos dias antes de esse dia chegar,
confesso. Saudades de mim, de uma liberdade que perdi.
Tínhamos medo mas não nos deixávamos vencer pelo medo.
Encontrávamo-nos num quarto de chão de madeira podre
e um de nós lia, com voz firme e comovida, num canto, de
cima de uma cadeira, um poema de Maiakovski, clamando
pela coragem. Chegámos a ocupar comboios, um barco que
atravessa o rio, com palavras escritas a vermelho em largos
rolos de pano cru que deixávamos desenrolar do alto dos
balcões, interrompíamos o alegre convívio de multidões.
Eu tinha dezassete anos. E havia polícias de cara tapada por
escudos, e cães drogados de raiva, e homens muito velhos
sentados em enormes cadeirões com imenso medo de
morrerem. O inimigo não nos merecia, não estava à nossa
altura, e é sempre triste não ter um inimigo a respeitar.
A coragem estava do nosso lado. Isso basta para a luta ser
desigual. Tinha dezassete anos. Para quem tinha dezassete
anos como eu, foi o melhor que nos pôde acontecer. Para os
outros duvido.

O amor da liberdade? Sim, talvez, o amor da liberdade.

É preciso que saibas que entre a liberdade e a segurança,


a grande maioria nunca escolhe a liberdade. A liberdade
precisa da coragem de lutar com o medo, sem a certeza de
o vencer. E o medo existe sempre, ontem, hoje e amanhã, e
a coragem é tão rara como o espírito que ama a liberdade.
Agora, regularmente, somos convidados a usar o boletim
de voto para escolher a burocracia que vai gerir a nossa
miséria.

Diz outra vez, que eu não entendo o que tu queres dizer.

85
PEDRO PAIXÃO

Quando acordámos reparámos que não havia inimigos, mas


só fantasmas. Já não havia qualquer teoria ou fé que nos
valesse. Perdemos a terra, perdemos o mar. A liberdade é
dos desterrados, persiste só em indivíduos isolados. Mesmo
pequenos grupos tornam-se inviáveis já que qualquer aliança
é impraticável, pois que nada os liga, sem qualquer carta, mapa,
texto escrito pelo qual possam orientar-se. Obrigados a ser
livres nas situações mais inesperadas, inéditas, irrepetíveis,
que não podem servir de norma e compor uma constituição.
Os que persistem na liberdade vão-se afastando da pátria,
lutam num terreno que não é o deles, que nem sequer
gostavam de conhecer, que lhes é por completo adverso e que
tem ainda a hipocrisia e o cinismo de os aceitar, não fazendo
caso. O consumo de ansiolíticos, tranquilizantes, indutores
de sono e mais substâncias fora do circuito económico
legal cresce em proporções incontroláveis, às toneladas.
A intoxicação traz o grande poder do esquecimento para
quem já não suporta a memória de qualquer maneira,
sobretudo quando dói tanto quanto dói. Não é um problema
de saúde, é uma questão de sobrevivência.

E os telejornais? Não ajudam?

Sim, sem a presença tranquilizadora da televisão, em que


se vê ao vivo sem ser visto, sem a verdade daquele que vê
mostrar a sua face, o que acontece é sempre em diferido,
nunca é um verdadeiro acontecer, conduzido por um desejo e
prazer perversos, que só conhece prazer em ver o prazer, que
vê matar sem encarar a morte. Se não fosse a televisão, uma
parte da humanidade civilizada regressaria à sua condição
zoológica. A piedade, a generosidade, a autenticidade descem
para os limites mínimos e aí, perto de zero, se mantêm.
A culpa não é do instrumento, nem de quem o manipula,

86
MUITO, MEU AMOR

nem de quem dele é alvo, porque já não há culpa. A culpa é de


todos e de ninguém, varrida da memória que dói. E todas as
maneiras são boas e nenhuma é suficiente. Continua a doer
sempre, cada vez mais, a memória. A memória é uma deusa
zangada e irascível que na nossa pretensão julgámos poder
desrespeitar. Eu tornei-me num falsificador de memória.

Basta sair de casa para ver o que se passa. A crianças são


avisadas de que não devem aceitar de quem quer que seja
o que quer que seja. Os velhos estão proibidos de tocar nas
crianças sem comprovativo legal do mais estreito parentesco.
Não convém cumprimentar sequer as pessoas com quem
nos cruzamos todos os dias, porque nunca se sabe em que
podem transformar-se no dia seguinte, num chefe, num
concorrente, num estrangeiro. Prefere-se correr o risco da
desumanização a correr qualquer risco que ponha em causa
a nossa segurança, conforto, bem-estar. O fito das nossas
vidas regula-se por algo tão abstracto e instável e ilusório
como estar bem, ficar bem, continuar bem, e para tal todos
os meios são aceitáveis. Ambicionar outra coisa é loucura ou
estupidez. E, é claro, sentimo-nos cada vez piores, como não
podia deixar de ser. A dor, o sofrimento, a perda têm de ser
eliminados através do esquecimento. Só se for assim.

E não falemos de pobreza do amor, para não ter mesmo


aqui de começar a chorar. A pobreza de amor nas famílias,
entre os vizinhos e amigos, para com deus, o pior dos
empobrecimentos.

Mas alguns persistem. Espalhados pelos lugares mais diversos,


mais inesperados, mesmo dentro das igrejas, mesmo dentro
das empresas em que se tem de trabalhar, sem que o trabalho
que se faz nos diga o que quer que seja, mesmo nas ruas e

87
PEDRO PAIXÃO

nos jardins abandonados, e sobretudo nas florestas, seguros


à terra pelas raízes das árvores que continuam erguidas e não
mudam de lugar e por isso são a imagem predilecta dos que
não desistiram. Mas podem desistir a qualquer altura, de um
momento para o outro, sempre prestes a desistir, e ainda não
desesperam para sempre, perdendo a alma do amor. Esses
podem ser ou não ser os mesmos, antes e depois da tirania.
Os tempos condicionam-nos, mas não os atingem de modo
a que possam ser transformados, convictos de que viver só
pode querer dizer viver livre, mesmo quando forçados a
aceitar a máscara da escravatura, do escravo que é mais livre
do que o senhor que dele depende.

Acontece haver mais liberdade dentro de uma prisão do que


fora dela, tais são os tempos que correm, a absurda conclusão
a que se chega. Se se pudesse medir a liberdade, talvez fosse
para nos darmos conta de que ela, em toda a história, é
uma constante cujos únicos movimentos são de diluição e
concentração, espasmos.

O tirano pode voltar. Primeiro como príncipe, depois como


besta.

88
PEDRO PAIXÃO

Do livro “Perdido por Xangai”, pelo mesmo autor.

Tubarões, águias e outros animais

O homem poderoso não tem amigos e quanto mais poderoso menos é capaz
de amor. Tem aliados tácticos, cúmplices prestes a traí-lo, súbditos pouco
dignos de confiança e os indispensáveis inimigos face aos quais se afirma. Há
uma lógica interna ao poder que faz com que o poder para se manter tenha
de crescer, ser mais poder. Os limites não estão de antemão demarcados, a
sua ambição, conjugada com o constante perigo de lhe ser retirado o poder,
tende a crescer a um ponto perto, ou dentro, da loucura. Os que estão mais
próximos, mesmo por laços familiares, não estão imunes a essa espiral de
violência. A sobrinha de Hitler, Geli Raubal, com a qual este mantinha uma
esquiva relação erótica e talvez fosse a pessoa de quem mais tivesse gostado
à sua maneira, suicidou-se com um tiro do revólver do tio. A mulher de
Estaline, Nadezhda Alliluyeva, suicidou-se, depois de uma festa onde foi por
ele abusada. A quarta e última mulher de Mao, a célebre Giang Qing, que
começou uma carreira como actriz em Xangai e foi julgada como elemento
do Gang dos Quatro após a morte do marido, também acabou por se suicidar.
No entanto estes monstros da história exercem um particular fascínio, que
faz com que quando leio uma boa biografia sinta uma forma de prazer em
conhecer o mais sinistro e macabro, um prazer que procuro anular e não
consigo. Talvez porque uma parte de mim se identifica com o criminoso, tal
como acontece ao ver um filme de acção ou de terror. Freud escreve, citando
Platão, que o criminoso é o que faz o que o inocente só sonha fazer. O mal
pode fascinar, porque é um exercício de poder e o poder fascina, enquanto o
bem e a bondade podem atemorizar porque exigem coragem. Suponho que
seja, em grande parte, este fascínio causado pelo poder, que, por um lado,
permite a execução por muitos das ordens emanadas do monstro, e, por outro
lhe traz uma espécie de imunidade, colocando-o acima de qualquer lei humana
ou divina. Existiram milhões de pequenos hitleres em toda a Europa, milhões
de pequenos estalines na União Soviética, milhões de pequenos maos na China.
A partir de certa medida o monstro torna-se irresponsável. Nos seus últimos
dias Hitler terá afirmado que se os alemães perderam a guerra, isso era por
culpa deles que não mereciam a vitória, e não o mereciam a ele, que na verdade
os tinha conduzido à catástrofe. Tanto Lenine como Mao usaram o mesmo
raciocínio em diversas ocasiões, mostrando o maior desprezo pelas “massas”.

90
MUITO, MEU AMOR

O problema de saber até que ponto um indivíduo se submete, por imposição ou


livre vontade, a um regime criminoso aponta para outro problema de difícil, ou
mesmo impossível, resolução: o da atribuição de responsabilidades. Eichmann,
um dos arquitectos do Holocausto, quando julgado em Jerusalém, repetia em
sua defesa que obedecia simplesmente a ordens e não era portanto responsável
pelas atrocidades cometidas. O que não impediu que fosse judicialmente
condenado à pena capital e executado, até hoje o único caso em Israel. Se Mao
tivesse sido levado a julgamento, acusado pelos setenta milhões de mortos
causados directamente pelo seu governo de 27 anos, talvez respondesse que
não tinha morto nem um, e que era absolutamente impossível uma só pessoa
matar um milhão de pessoas quanto mais setenta. A História não se decide
entre, de um lado os bons, do outro lado os maus. Uma vasta zona cinzenta
existe entre esses dois pólos. A fronteira entre o bem e o mal passa por dentro
de cada um de nós. Há os que viram e calaram, há os que denunciaram,
há os que colaboraram, há os que participaram, há os que ordenaram.
A escada da responsabilidade e culpa alastra por entre quase todos e julgo ser
essa a razão pela qual quando o regime muda, a multidão muda com ele. Tal
como aconteceu depois do Golpe de Lisboa em 1974. O que importa é estar
com o regime, qualquer que ele seja, que lhes promete a segurança. O escravo
tem a bendita vantagem de ser irresponsável e, assim, não se lhe poder
imputar qualquer culpa. Mais. Tem um pérfido orgulho em poder dizer: eu
não sou ninguém, mas o meu senhor é dono de tudo. Talvez se encontre aqui
outra razão para a propagação de regimes comunistas em prévios regimes
autocratas. Porque o regime comunista é uma variação do regime autocrático
no qual os indivíduos milenarmente se submetem à vontade arbitrária e
divina de um só.

Por outro lado nunca deixa de me espantar como um determinado indivíduo


parece conduzir o movimento da história, surgindo como providencial e
único. Sem algumas decisões de Lenine, tomadas no momento exacto, seria
de supor que a Revolução Russa não teria triunfado, do mesmo modo que
sem a determinação e o carácter de Churchill os aliados talvez tivessem
perdido a guerra. Marx pretendeu resolver o enigma da História de uma
maneira tão fácil, e falsa, que qualquer jovem de dezasseis anos se pode
tornar marxista numa tarde, não sendo mesmo conveniente que leia algum
dos seus livros.

91
PEDRO PAIXÃO

Ligo a televisão para deixar de pensar nestes problemas que me acompanham


e não compreendo. É imediato. Os Shanghai Golden Eagles continuam a
jogar basebol, um jogo cujas regras esotéricas julguei serem um segredo de
estado americano bem guardado pela CIA. Depois de passar um quarto de
hora intrigado, avanço de canal em canal. Telenovelas, noticiários, chinesas
e chineses a cantar música pop e rock, filmes europeus e americanos com
os protagonistas a falar mandarim, mais um jogo de futebol em Nápoles,
programas de culinária, conversas em família. No quadragésimo canal já tenho
a cabeça confusa e decido, num acto de pura vontade, não continuar até ao
octogésimo, desligando o mágico aparelho que coloca à minha disposição, por
um simples premir de um botão, coisas que estão a acontecer onde nunca fui,
nem nunca irei, a não ser precisamente assim, através de um ecrã de televisor.
Isto é, vistas de muito longe e apresentadas como um espectáculo, guardando
a necessária distância para não ser por elas dolorosamente atingido. Esta
capacidade, como o simples acender de uma lâmpada eléctrica, confere-me
um poder que me traz, uma mais ou menos consciente, satisfação. Um poder
sobre o mundo que me pode levar a julgar que ele é em absoluto controlável,
dispensando qualquer religião que viva precisamente da sua imponderabilidade
assim como da essencial fragilidade humana. Mas a tecnologia, que produz
uma satisfação do tipo religioso, mágico — eu tenho o poder de acender uma
luz sem me importar de modo algum conhecer o processo que o permite — , é
essencialmente ambígua, o que inquieta e perturba.

O meu aparelho de ligação à internet, reparo hoje, também foi montado


neste país de capitalismo comunista, em que os trabalhadores, sem quaisquer
direitos de associação em sindicatos, muito menos de greve, ganhando em
média dez vezes menos do que um operário europeu e tendo, com sorte,
uma semana de férias por ano, são explorados sem entraves. O milagre
económico chinês não é nenhum milagre e funciona às mil maravilhas quando
não se intrometem quaisquer impedimentos que nada têm de rentável.
Que isto aconteça num regime de tão elevados ideais não é de espantar,
pelo contrário, porque eles servem precisamente para deformar a realidade.
O que nunca pode ser posto em causa é o Partido e o seu poder que se infiltra em
todas as esferas, privadas e públicas, contaminando a maior parte da população.
Quando os dirigentes comunistas falam em valores asiáticos, insistindo em
particular na prevalência do colectivo sobre o individual, o contrário do que

92
MUITO, MEU AMOR

seria o caso nas egoístas sociedades ocidentais, tornando-os assim moralmente


superiores, enganam e mentem. Não se trata de uma natural solidariedade e
bondade, mas de algo bem diverso que tem a sua origem no Ocidente, ainda
antes da reformulação de Marx, nos textos de Rousseau sobre a vontade,
colectiva ou geral, como origem do poder do Estado, a vontade individual
devendo estar inteiramente a ele subjugada. Sob esta teoria se cometeram os
mais variados massacres, desde logo durante a Revolução Francesa. O que
começa com Rousseau, no século XVIII, para desaguar no rio Yangtzé, é a
ideia de que um grupo de indivíduos tem não só a capacidade mas a obrigação
de interpretar essa vontade geral e pô-la em prática, conduzindo-a. Essa é a
tarefa dos intelectuais, a nova casta sacerdotal, que em termos marxistas é a
consciência política do proletariado e dos camponeses e como tal tem o direito
e o dever absolutos de dirigir as massas e de interpretar as mais enigmáticas
tendências da História até à terra prometida, uma miragem que tudo justifica,
por não poder ser alcançável.

Abandono o quarto e as teorias para descer até ao rés-do-chão, que está, como
toda a cidade, quatro metros acima do nível do mar. Já não há rua alguma que
me impeça de a atravessar. Quando chuvisca, os incontáveis ciclistas usam uma
gabardine de plástico colorido que os cobre por completo, a eles e à bicicleta
onde vão montados, e continuam a pedalar a uma velocidade constante. Ainda
não vi o Sol, nem a Lua, não sei se por causa da humidade quente que envolve
a cidade, se por causa da poluição que persiste em me irritar a garganta.
Provavelmente pelas duas razões acumuladas e mais alguma que desconheço.
Deixei de ter medo de me perder embora não dispense o nome e endereço,
escrito em chinês simplificado, pois continuo sem conseguir entoar de forma
correcta as palavras que erradamente me parecem ter só uma maneira de ser
pronunciadas. 



Apanho um táxi. Em linguagem gestual digo ao motorista que siga em frente


e, passados dois ou três quilómetros, digo-lhe, na mesma silenciosa língua,
que pare. Os habituais 11 yuans. Começo a andar. A certa altura viro para a
esquerda e entro no que depressa se revela um labirinto com as mais diversas
lojas, metade delas desocupadas ou simplesmente cheias de lixo. Móveis de
madeira e bambu, porcelanas azuis e rosa, quadros a óleo e acrílico, faixas de
papel de arroz cobertas de caligrafia, curiosos artigos de medicina chinesa, e

93
PEDRO PAIXÃO

mais coisas que não sei o que são porque não sei para que servem. Estaco diante
de uma delas que tem na montra cachimbos para fumar ópio, um poster com
as folhas de marijuana e outros misteriosos objectos. Fico espantado. O tráfico
e o consumo de drogas são nesta região do globo severamente penalizados.
Talvez seja uma ratoeira da polícia de costumes para apanhar moscas como eu
desprevenidas.

Entro. Dois jovens cumprimentam-me em inglês e perguntam-me em que


estou interessado. Na montra há uma caixinha redonda de plástico transparente
que me intriga. O rapaz, que se levantou do sofá onde estava sentado, tira-a
do expositor e passa-ma para as mãos. Já não precisa de me explicar o que
é. Serve para triturar, e depois passar por uma peneira, cocaína em cristais
brutos. Sento-me ao lado do jovem que permaneceu sentado e ofereço-lhe
um SG ventil, sabendo que qualquer estrangeiro lhes acha graça por serem tão
curtos. O rapaz sorri e diz que posso encomendar-lhe o que bem me apetecer.
Não me apetece nada, embora me possa vir a apetecer tudo. O rapaz, que
talvez tenha a pele ligeiramente amarelada, passa-me para a mão uma bela e
gorda flor de marijuana. Agradeço e ponho-a no bolso da camisa. Compro
um pequeno e metálico cachimbo e saio dizendo adeus em gestos largos. O
labirinto continua. Parece desenhado por uma aranha enlouquecida. Por fim
desagua numa rua movimentada por humanos apressados e carros ruidosos
onde abundam balcões iluminados em que se vendem petiscos — embora não
os prove ­— bares e néons em todos os andares, com o que suponho serem
nomes de restaurantes, discotecas e outras casas, piscando estridentemente em
azul, vermelho e amarelo. 



Entro resolutamente num dos bares, ou clube, ou discoteca, ou qualquer outro


lugar que desconheço, de nome Cotton Club. Simplesmente por se chamar
Cotton Club. Sigo por um corredor, subo um lance de escadas e entro numa
sala de quinhentos metros quadrados onde calculo estarem duzentas pessoas
iluminadas por holofotes móveis e raios laser a ouvir uma música suave na
escala dodecafónica. Dirijo-me a um dos balcões. Peço a única marca de cerveja
de que sei o nome: Tsingtao. O ambiente aproxima-se do filme Blade Runner,
O Caçador de Andróides, de Ridley Scott. É um dos meus dez filmes favoritos.
Não só pelos cenários fantásticos e exóticos que apresenta, mas sobretudo
pelo tema metafísico que o ocupa: o que faz de um humano um humano,

94
MUITO, MEU AMOR

como distinguir um humano de uma máquina que como ele se confunde,


um ser vivo de um sofisticado aparelho. No filme, um polícia muito especial,
Harrison Ford, tem por missão aniquilar uma série de seres quase humanos,
embora sejam máquinas tecnológicas, que pretendem sobreviver tornando-se
humanas. A fronteira é tão ténue que, a determinada altura, o humano e o
robot confundem-se e o detective acaba por se apaixonar por uma das belas
suspeitas com quem foge não se sabe para onde. É bom que não se saiba para
onde, caso contrário o filme teria de continuar até ao previsível divórcio. 



Não sei se o que bebo é de facto cerveja, pois cresce em mim um intenso desejo
por algumas raparigas, certamente em maior número do que os homens em
que mal reparo e são assim invisíveis. O rapaz que me serve tem o cabelo
puxado para cima, como uma crista, fixado por gel brilhante e uma camisa que
veio do Havai. Num inglês perfeito pergunta-me se quero beber outra cerveja
ou se quero provar um saboroso vinho chinês. Digo-lhe que sim, porque não?
Faz parte das experiências culturais. O vinho gelado sabe-me a saké, devendo
portanto ser saké. O barman sorri. Digo-lhe que me parece incorrecto chamar-
lhe vinho, nome que deveria ficar reservado às bebidas alcoólicas provenientes
de frutos, mas sim cerveja, feita à base de cereais, neste caso o arroz. O barman,
que já me estendeu a mão por duas vezes e pediu que o tratasse por Jim,
dá-me razão e vai enchendo o meu copo em miniatura com aquele líquido
esbranquiçado que não me sabe a nada em particular. Algumas das raparigas
olham para mim, o que me alegra, e continuo a fumar e a beber entretendo-
me com a ideia de poder estar num bar unicamente habitado por replicantes.
O meu entusiasmo vai crescendo, agradado por aquela inesperada aventura
que não só desconheço onde me leva, como não desejo sabê-lo. Uma rapariga
aproxima-se. Senta-se no banco vazio do meu lado esquerdo. Pergunta-me o
meu nome e o nome do meu país, que ela só entende, como se torna hábito,
quando refiro o nome de alguns dos nossos jogadores de futebol. Se eu também
jogo futebol? Não, muito obrigado. Peço um copo para a rapariga que me
pede para lhe chamar Jassie e bebemos juntos como se fôssemos há muito
conhecidos. 



O som está cada vez mais alto, as luzes mais baixas e a população cresce
exponencialmente, enquanto a cerveja de arroz vai desaparecendo dos seus
recipientes. Pergunto-lhe o que faz. Diz-me que estuda inglês e também é

95
PEDRO PAIXÃO

uma rapariga trabalhadora, a working girl. Pergunto-lhe em que consiste ser


uma rapariga trabalhadora e ela ri com vontade. Num momento de total
irresponsabilidade, ou afirmação de uma incontrolável liberdade, tiro o pequeno
cachimbo metálico comprado na loja dos produtos interditos e encho-o com
a flor esverdeada que tem o dom de alterar a consciência. Dou uma passa.
Passo-o à rapariga que também dá uma passa. O ambiente Blade Runner é
cada vez mais explícito por entre as nuvens de fumo. O meu amigo Jim diz-me
ao ouvido que a Jassie é uma das melhores trabalhadoras, para eu não perder
nada. Jassie pergunta-me ao ouvido se não quero ir continuar a fumar no hotel
onde estou hospedado. Agradeço, mas respondo que estou velho e cansado, que
pode sem querer executar um coração frágil. Estou de facto bastante excitado,
sobretudo quando começo a sentir ao de leve a sua mão a tocar-me muito
devagar o sexo por cima das calças, por entre as pernas, por dentro das calças.
Entretanto já tínhamos passado do vinho, ou cerveja chinesa, para champanhe
da marca Cristal. Um dos mais caros e, portanto, um dos melhores. O Czar
russo Alexandre II tinha tal receio de ser envenenado que encomendou a
uma casa francesa champanhe em garrafas de cristal transparente para poder
inspeccionar o que lá vinha dentro. Não tenho a certeza se a minha nova amiga
se interessou pela minha história porque, subitamente, sinto-me a esvaziar
numa prolongada e imparável delícia da tensão erótica que vinha a acumular
desde que entrei naquele filme. 



Logo a seguir, talvez por instinto, atinge-me uma aflição, uma sensação de
perigo. Peço ao barman, que deixou de ser meu amigo e não se chama Jim com
certeza, a conta. A conta, que consigo ler, apesar da minha miopia turvada por
cereais, frutos vários, e mágicas flores, parece-me excessiva e, com um dedo
aponto para o número que daria de comer a várias famílias chinesas durante
um ano. Jim diz-me que vem incluído o trabalho da rapariga trabalhadora que,
entretanto, desapareceu sem deixar rasto. Pago com as notas estampadas com a
cara do presidente Mao Zedong e saio, furando um mar de gente excessivamente
excitada. Ainda reconheço “We are the champions of the world” tocado pelos
Queen, se não for por uma banda autóctone de nome semelhante. 



Na rua paro o primeiro táxi que aparece, mostro o código secreto e passada
meia hora sou largado frente ao hotel que continua precisamente onde antes
estava. 



96
MUITO, MEU AMOR

Subo para o meu quarto e fecho a porta atrás de mim encostando-me a ela.
Respiro fundo pensando, embora confusamente, que por um triz podia não
ter escapado à pena capital, pena que nesta região é amplamente aplicada e
executada com um certeiro tiro na cabeça do condenado ajoelhado. Com o
sinistro pormenor de a bala ter de ser paga pela família da vítima. Prometo a
mim próprio portar-me melhor de ora em diante para não me acontecerem
estas aventuras que insistentemente acontecem sempre que vou de viagem
comigo. Deito-me sobre a cama, fecho os olhos, percorre-me um último arrepio
ao sentir mais uma vez umas mãos delicadas a tomarem conta do meu sexo, e
adormeço ignorando a hora.

Perdido por Xangai


Impressão Digital, Maio 2010
(Impressão Digital é uma chancela da Prime Books)

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PEDRO PAIXÃO

Do livro “Imagens Proibidas”, pelo mesmo autor.

A discoteca chamava-se Hell Paradise e o nome não podia ser mais adequado:
entre o inferno e o paraíso a distância é mínima e pode-se saltar de um para
o outro num abrir e fechar de olhos. Não é necessário esperar pela morte: a
perfeita felicidade tende a transformar-se naturalmente num duradouro
tormento. Só não podes fumar, tudo o resto é permitido, tinha-me segredado
a Sin ao ouvido mal passámos os seguranças halterofilistas. Ficava no
Meatpacking District, assim chamado por ter sido uma zona de armazéns e
comércio de carne junto ao rio Hudson. Agora a carne era outra, mais doce,
humana. O Hell Paradise era um enorme cubo com um balcão em todo o seu
redor, para o qual se podia subir por várias escadas. No piso inferior a pista
de dança era delimitada por longos bares todos eles com um tema diferente.
O balcão era ocupado por sofás, mesas iluminadas por baixo de toalhas brancas
que batiam no chão, deixando espaço bastante para se fazer o que se quisesse.
Por exemplo, observar o que ia acontecendo no piso inferior como quem se
debruça de uma varanda. Do tecto desciam gaiolas de metal dourado, balouços
e outros artefactos, que, não sabendo para o que serviam, não sabia o que eram.
No todo um bem conseguido conceito estético, no caso de existirem conceitos
estéticos. De qualquer modo, para poder apreciar o que quer que seja, uma
pessoa tem de estar em condições de a poder apreciar. Não era o meu caso.
Pensei fugir. Mas não tinha nem as chaves de casa, nem uma nota de dólares.
Nem qualquer documento, uma carta de condução ou uma licença de porte de
arma, muito menos o passaporte novinho em folha provido com os últimos
artifícios da alta tecnologia anti-terrorista, que pudesse certificar que eu era eu,
e não outra pessoa. Só quando não se é ninguém é que se pode ser qualquer
um, pensei prometendo-me voltar a pensar sobre este assunto. A Sin pediu, ou
ordenou, que eu fechasse os olhos e abrisse a boca e pôs-me sobre a língua três
gotas de um líquido adocicado,. Não devia ser adoçante para diabéticos.

A música, que abafava as palavras, era de um género que não soube identificar.
Usava os baixos e a precursão numa batida constante e repetitiva que fazia
dançar uma pequena multidão à minha frente como se fosse um monstro de
muitos braços e cabeças. No caso de se poder chamar dança ao que faziam.
Sobre altas colunas uma ou duas raparigas de mini-saia pulavam correndo

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MUITO, MEU AMOR

o perigo de caírem. De quando em quando as gaiolas e os balouços desciam


para mudarem os seus ocupantes, adornados como aves exóticas ou animais
selvagens, e voltavam a subir. Toda a sala era varrida por luzes de holofotes e
raios lazer, mudando a cor dos objectos em que iam incidindo. Há anos que
não entrava numa discoteca, e, senão fosse a situação, ter-me-ia certamente
divertido. As minhas jovens delinquentes puseram-me um copo na mão com
uma cor variável e que, pelo gosto, devia ser Campari com água tónica ou outra
detestável mistura do género. Deram-me, cada uma do seu lado, um beijinho
nas faces e desapareceram no meio da floresta.

A partir de certa altura, que foi quase logo, comecei a sentir ondas de calor
que, partindo do centro, irradiavam pelo meu corpo até atingirem a cabeça.
Uma sensação inegavelmente agradável. Contrapus, num diálogo de mim
para comigo mesmo que esta condição nada tinha de aprazível não devendo
portanto sentir qualquer prazer. Nada a fazer: não conseguia impedir de me
sentir excitado e, mais espantoso ainda, o meu corpo começava a mexer-se,
primeiro lentamente e depois por completo desinibido, ao ritmo do som que
o percorria e atravessava. O corpo é nosso sem nos pertencer. Era mais uma
prova a acrescentar às outras. Ao pensar nisto senti uma súbita angústia. Nada
do que eu chamo o meu corpo é na verdade meu, mas antes a prisão da qual
nunca posso escapar ou ser libertado. E aquilo a que chamo eu resume-se a
um nada num instante insustentável e fugidio que não há maneira de deter.
Ao dar um gole, como se tivesse muita sede, naquela bebida execrável, senti
alguém muito perto de mim. Era uma mulher um meio palmo mais alta do que
eu. Olhava em frente, com um copo na mão, e o seu corpo deixava-se mover
subtilmente pelas ondas de som, que se deslocam no ar à velocidade de cerca de
400 metros em cada segundo que já passou, deixando eternamente de existir.

Não me podia esquecer de agradecer às minhas companheiras de aventura


aquela excitante visita, onde seguramente não me deixariam entrar sem elas.
Voltei a considerar a possibilidade de que tudo o que estava a acontecer não
fazia senão parte de uma peça de teatro inglês e tudo terminaria numa galhofa.
De qualquer modo continuava a acumular uma quantidade de material para
um livro, com texto e fotografias, cujas vendas não me esqueceria de retirar
a percentagem dos direitos de autor legalmente devidos à Sin e à Susana. As
ondas de calor regressaram, agradavelmente e sem autorização, a percorrer o

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PEDRO PAIXÃO

corpo que, não sendo meu, não sabia de quem era. Ao acabar a minha espécie
de bebida de cor variável reparei que o copo da minha vizinha da direita, cujo
corpo que habitava me pareceu apetecível pois deu-me vontade de o agarrar e
abraçar com entusiasmo, o que não fiz unicamente por receio de represálias,
estava igualmente vazio. Três gotinhas de um líquido sobre a língua eram
o bastante para aquilo e muito mais. Aproximei-me do seu ouvido, que me
pareceu DE uma notável perfeição da natureza, e perguntei se lhe podia ir
buscar outra bebida. Ela virou a cara e fixou os meus olhos de uma posição
superior. Conforme o ambiente dominante eles também mudavam de cor,
como os de um réptil.

É tudo uma mentira que parece verdade, um jogo de aparências sem qualquer
realidade por trás, um véu enganador que tudo cobre e oculta. A realidade é
a mais estranha das fantasias e o amor o mais poderoso dos enganos. Podem
ter sido estas as frases que lhe disse, por esta ou outra ordem, não podendo no
entanto assegurar-me se concordou com elas, ou mesmo se as ouviu. O que
me disse foi: um Campari com água tónica, por favor. Dirigi-me ao balcão
mais próximo, onde um empregado preto estava vestido de pirata, e pedi dois
Camparis com água tónica e gelo. Foi o que me serviu e já só quando os copos
estavam juntinhos um ao lado do outro me lembrei que não tinha dinheiro
para pagar. Atingiu-me uma aflição desmedida, como se tivesse acabado de
cometer um grave crime. O calor do meu corpo transformou-se num suor
frio. O pirata continuava diante de mim e talvez tivesse uma faca, ou outra
arma letal, com que assassinava os maus clientes sem maneira de soldar as
dívidas. Com uma voz suave disse-me para levar as bebidas, que pagaria tudo
no fim. Esta prova de confiança no humano levou-me a um lugar perto da
alegria, como se recuperasse uma dignidade que tinha perdido desde o fatídico
jantar no Nobu, onde jurei nunca mais entrar durante todo o restante tempo da
minha efémera vida.

Quando ofereci um dos copos que levava nas mãos à minha desconhecida de
orelhas perfeitas que apeteciam mordiscar, o meu estado de espírito era outro.
Comecei a narrar-lhe, frase a frase, com um curto intervalo pelo meio, tal
telegrama, a minha aventura, omitindo algumas partes e transformando outras.
Uma história não é uma teoria: não é para ser verdadeira ou falsa. O que tem é
de ser bem contada e credível. São coisas das quais me tornei mais consciente

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MUITO, MEU AMOR

desde que começara a tentar ser quem não era: um ilusionista de palavras e
imagens. Nunca se pode contar tudo e o que se conta pode ser narrado de
diversas maneiras, não havendo uma que possa ser considerada inegavelmente
a melhor. Pode sempre haver outra. Falar, ou escrever, é sempre resumir e
simplificar. Se tentasse descrever por completo à minha vizinha o apartamento
da minha irmã ainda lá me encontraria. Constantemente tecemos histórias com
a vida que vamos tendo ou imaginando ter, pela simples razão que a vida, por
si, não tem qualquer sentido. Não a pus a par destas deslocadas considerações,
assim como não lhe falei nem do abandono da Kay no centro de enfermagem,
nem da lingerie para obesos mórbidos que me tinha provocado vómitos. Não
era preciso. O problema era outro: a cada frase que lhe transmitia, ela não
respondia com palavras mas com um sorriso cada vez mais aberto. Quando
lhe disse que as minhas carcereiras estavam a dançar na pista à nossa frente ela
deu uma gargalhada que furou o alto volume da música ambiente. Inclinou-se
ligeiramente para me falar ao ouvido onde deixou as seguintes palavras: nunca
ouvi maneira mais invulgar e interessante de sacar alguém numa discoteca; e
deu-me os parabéns. Assegurei-lhe que não havia razões para isso. De novo
a angústia não teve dificuldade em encontrar-me E lembrei-me que devia
dinheiro ao pirata de voz doce, dinheiro que não poderia pagar e é horrível ser-
se caloteiro. Quando me virei para a mulher de cor de olhos insondável, com
a intenção de me ajoelhar e pedir que me salvasse, ela retirou de uma pequena
bolsa forrada a lantejoulas o que me pareceu ser uma pistola-bisnaga semelhante
àquelas com que brincava nos carnavais da minha infância. Levou-a ao nariz e
puxou duas vezes o gatilho, uma de cada lado. Passou-a para as minhas mãos.
Fiz o mesmo. Ao carregar no pequeno gatilho de plástico translúcido uma
dose de cocaína era projectada para dentro do nariz. Devolvi aquele invento,
certamente patenteado, agradeci e mais uma vez o meu estado de espírito
alterou-se. Era como se quisesse rir e chorar ao mesmo tempo. O ridículo tanto
pode fazer chorar como rir, dependendo de quem é o ridicularizado e qual a
causa do ridículo. Eu era os dois em simultâneo. Tinha de aguentar, nada dura
eternamente, nem mesmo a morte. Muito menos a paixão pela minha quase-
namorada, que não tinha tempo para estar à minha espera, e devia estar a
divertir-se num lugar semelhante àquele com belos homens e mulheres ainda
mais belas a fazerem-lhe a corte. Foi então que a minha vizinha, cujo corpo se
movia de uma forma cada vez mais sensual, os seios levantados por trás de uma
blusa transparente, me perguntou, com gestos de mãos, se eu não queria ir com

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PEDRO PAIXÃO

ela para a pista. Há anos que não dançava, mas não podia ser rude com a pessoa
mais gentil que encontrava há setenta e duas horas.

Como já tinha notado, ninguém dançava com ninguém, uma nítida prova da
progressiva degenerescência das relações humanas. Cada um dançava com a
música, consigo próprio, sem deixar que ninguém o fosse perturbar no seu
supremo egoísmo. Dois passos dentro da pista e já tinha perdido para sempre
a minha boa companhia que gostava de brincar com bisnagas, quer fosse ou
não Carnaval. Fechei os olhos, por um acto consciente e voluntário, e deixei-
me invadir pela música. De novo o fogo acendera-se dentro de mim. Não
sabia que horas eram, onde estava, quem era. Naquela pista, onde deviam
estar mais de cem pessoas, éramos todos iguais: marionetas ou escravos de
um deus todo poderoso. Veio-me à cabeça um aforismo do filósofo Nietzsche
que li na juventude e me pareceu ali de uma justiça extrema: temos a música
para não morrer da verdade. A música não é verdadeira nem falsa, não mente
nem engana, não precisa de ser traduzida nem explicada. Se não fosse ela até
as folhas de um relvado acabariam por desfalecer, quanto mais os humanos
sempre de uma inexcedível fragilidade. Tal como eu, e, já agora, todos os outros
que ali estávamos numa comunhão sem interferências, um culto das forças
dionisíacas, que faz com que a vida valha a pena ser vivida, tornando-a mais
intensa e impetuosa.

Senti-me tão orgulhoso com esta sucessão de raciocínios que me pareceu


urgente compartilhá-la com alguém. As minhas quase-amigas continuavam
desaparecidas; a mulher alta de seios descobertos e pistola escondida tinha
regressado de onde viera: do nada. Não me apetecia fazer confidências
metafísicas ao pirata ocupado a assaltar outros clientes. Parei de dançar, abri os
olhos e girei à minha volta. Foi então que se sucederam uma série de minúsculos
episódios que me podiam ter custado a vida. Sem querer bati no braço de um
homem que estava à minha frente. Quando ele se virou pedi-lhe desculpa, se
bem que não possa saber ao certo o que leu no movimento dos meus lábios.
Sorriu. Julguei ter mais um amigo e, na brincadeira, executei, em movimento
lento, uma posição de ataque que o meu venerável mestre de Karate me tinha
outrora ensinado. Quando voltei a juntar os pés, como no final de uma kátá, e
me preparava para fazer a vénia requerida, já só me senti a voar no ar e a cair de
costas sobre a pista. Estando eu na posição mais frágil do corpo, os pés juntos,

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MUITO, MEU AMOR

ele tinha-me cobardemente varrido com a sua perna direita. Se não soubesse
cair, o que fiz instintivamente protegendo-me com os antebraços, a minha
cabeça teria sido fracturada com o choque no chão. Mais uma humilhação a
acrescentar às outras. Quando me levantei tentei chegar perto dele, não com a
intenção de lhe fazer qualquer mal, mas sim dar-lhe os parabéns pela execução
do seu golpe. Fui disso impedido por dois halterofilistas, os quais, cada um do
seu lado, me acompanharam em peso até à porta de saída do Hell Paradise.

Julguei, receoso, que me fossem fazer como nos filmes americanos e japoneses:
levar-me para um cais do rio e dar-me uma surra, partindo-me os dentes e
o nariz, antes de me deitarem, como um saco de cimento, para a água. Se tal
acontecesse, e sobrevivesse, ia acabar num hospital. O que talvez fosse a minha
safa. Como recitava a minha mãe: a seguir a duas coisas más vem sempre
uma coisa boa. Perdi o medo quando já não era preciso perdê-lo: ignorando
como foram avisadas, as minhas quase-amigas apareceram momentos depois
e, justificando o meu comportamento não sei como, salvaram-me daquela
situação precária conduzindo-me para a anterior não menos inquietante. Antes
de sairmos disse à Sin, ou à Kay, que de facto não eram exactamente a mesma
pessoa, que não pagara os dois Camparis no balcão do pirata, que bem podia
ser o próximo Tom Cruise. Desapareceu e regressou minutos depois dizendo
que já podíamos regressar a casa.

A palavra casa tinha-se tornado difícil de definir. Em todo o caso não podia
chamar casa a um lugar onde não me apetecia voltar por ter deixado de
nela me sentir confortável: desde que se tornara no domicílio das minhas
acompanhantes que pareciam, elas sim, habitá-lo desde sempre e para sempre.
Ter as chaves da porta ou não ter já não alterava grande coisa, naquela cidade
onde uma porta tem pelo menos duas fechaduras e uma corrente metálica que
se fecha por dentro e permite observar pela ranhura da porta os indesejáveis.
Eu era o indesejável. Talvez nunca viesse a encontrar uma casa a que pudesse
chamar minha. Só quem não tem casa sabe o que é uma casa. Isso passou a ser
uma certeza.

Imagens Proibidas
Impressão Digital, Maio 2010
(Impressão Digital é uma chancela da Prime Books)

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