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Impressão Rolo&FilhosII, SA
Vergílio Ferreira
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Isto, o quê?
Isto.
O amor?
Sim, o amor.
O amor?
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E depois?
E então?
E então é assim. Não há muito que se possa fazer. É mais do
que suficiente. Tem de se aguentar. Todo o tempo que durar.
Sem nunca saber, do princípio ou do fim, pode-se esperar.
Pode-se esperar?
Eu gostava de saber.
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a não ser continuar este abraço que nos tira a respiração até
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Não, não és tu, não penses. Podias ser outro, podia ser outra
pessoa, és tu só porque és tu, não penses, podias ser outro,
noutro lugar, noutra cidade onde o vento soprasse sem este
desgosto do mar. Que aqui é impossível, não vês? Agora é
impossível, não sabes? Devias saber. Não sabes nada? Essa é
a tua única desculpa, a tua mentira. Tu sabes.
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E ela pediu que ele parasse e pediu que ele se deitasse sobre
ela com o peso todo dele, que não era demais, o peso todo,
e pediu que parasse e depois que não parasse, o peso todo
do corpo que está a mais, sempre a mais, por cima do corpo
dela, muito quieto, a escutar, parado sobre o dela antes de
voltar a mexer-se como todos os corpos fazem, e não fazem
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outra coisa, nunca antes nem nunca depois, pois foi para isso
que foram feitos, se é que foram feitos para o que quer que
seja, ou simplesmente feitos e não ocorridos por acaso, para
se mexerem uns sobre os outros, uns ao lado de outros, perto
e longe de outros, para se mexerem e continuarem a mexer-
se enquanto são o que são, corpos a mais. Os vivos sobre os
mortos, os mortos sobre os vivos, até à ressurreição.
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Olha para mim. Não tenhas medo. Ninguém nos vê. Somos
só nós os dois. O mundo todo ficou fechado lá fora. Repara só.
Neste momento. Eu quero-te como a frágil flor azul precisa
da água que bebe. O nosso amor não passará. Pertence à
bondade e à beleza. A bondade não tem história. A beleza
recusa-se a um qualquer enredo. O amor vive fora do tempo,
que é por onde vamos. Não me sentes? Não mais me verás.
Para poder continuar a estar à tua frente. Como agora. No
silêncio. Para sempre. O tempo encobre a eternidade. Eu sou
também o chão que pisas, o ar que volta.
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Existimos tão pouco, tão pouco, quase nada, todos nós. Não
sei por que falo nisto. Talvez por ser o último dia. Talvez.
Olha para ti, reconheces-te? Sim, sou eu, mas de que maneira
estranha, isto tudo. E não fica menos estranho com o tempo
a correr. Como quem procura e o que vai encontrando logo
fica coberto por um véu de ignorância. Comigo é assim, pelo
menos comigo, com os outros não sei, nem preciso de saber.
Comigo é verdade.
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É tão bom sentir o que sinto. Que alguém, que és tu, me quer
com o maior cuidado para não se enganar, iludir, mentir a
si próprio. Que alguém, e és só tu, não me está a confundir,
sem querer, com o que mais desejava ver, sempre esperou
alcançar, sonhou num sonho de criança que ficou e quer
mostrar aos outros — ao pai em particular — a quem quer
que seja, pouco importa. Como se se tratasse de um presente,
de um boneco, de um pedaço de terra conquistada. Não.
Do que tu gostas mais em mim é dos meus pecados, dos
meus defeitos físicos, de tudo o que não consigo ser, onde
falhei, onde não pára nunca de doer, é isso o que tu queres,
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contado. Vai e volta que eu estou sempre aqui, por mais longe
que seja.
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Pode ser?
Agora não.
Então quando?
Não sei.
Porquê?
Porque não.
E eu?
Tu também não.
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Tuaofimdetudoamormeuaquisempreagoraatéaofimdetudo.
Eu lembrava-me de tudo.
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Inês Maria, deixa que te diga, Maria Inês, ouve-me por favor,
só mais um bocadinho, deixa que te diga, sim, já que todos,
de repente, vamos regressar a uma casa que não fica perto,
e apesar de eu não te merecer, quero que saibas que se não
houve um começo também não vai haver um fim para o nosso
amor. É a primeira e é a última coisa que te digo. Mais não
consigo, faz-se tarde e precisamos de dormir. Vem comigo.
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ouvido: meu querido, sou eu, beija-me já, respondia ela sem
hesitar. Imagina tu que há mesmo um céu do céu para onde
se vai. É melhor marcarmos já o ponto de encontro para não
perdermos tempo a perguntar.
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Por vezes gosta-se de uma mulher por não haver outra por
perto de quem se possa gostar. Por vezes gosta-se de uma
mulher por lembrar outra mulher de quem se gostou e não
descobrimos quem possa ter sido. Por vezes gosta-se de um
homem por se ter gostado muito de uma mulher que deixou
de gostar de nós e precisamos de tudo tentar para a esquecer.
Por vezes gosta-se de uma mulher por se estar muito cansado
de se gostar demasiado de outra mulher. Por vezes gosta-se
de uma mulher só por gostar.
Às vezes ela escrevia frases que depois lhe lia. Ela ria. Ele
ficava muito sério a ouvir, a tentar descobrir em que caso
cabia.
Olhar para a frente sem saber o que vai ser de nós. Olhar
para trás sem nada poder reviver, corrigir, emendar sequer.
Não conseguir fixar o presente, bom ou mau, tanto faz, o
presente que não será mais. Sentir-se transportado para a
frente e depois para trás, ficar tonto, prestes a cair, sem ter
mão no que pensar. Levantar, andar, voltar e depois parar
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Amo-te muito. Amo-te cada vez mais. Não sei o que fazer.
Amo-te muito.
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Para mim?
Para os que sabem ler. Para os que estão tão perdidos como
nós.
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Pirilampo. Era assim que ele por vezes a chamava. Ela gostava
que ele a chamasse assim. Pirilampo, aquele que pela noite
escura se vai iluminando.
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Não. Não pode ser assim. Há histórias que não vale a pena
contar, que nem se conseguem contar. São histórias más,
pesadelos dos quais não conseguimos acordar. São para
esquecer o mais depressa que puderes. Se existir alguma lei
da vida é que ela nunca é fácil. Todos o sabemos, não vale a
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É para já.
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E depois?
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Dele? De quem?
Dele.
Sim, eu sei que tu não gostas que eu diga mal dele, mas eu
não digo mal dele senão diante de ti. Diante de todos os
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não o sabia, e ainda hoje não sei o que era. Eu não queria
nada e cada vez sabia menos o que querer.
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E agora?
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Isto o quê?
Isto.
O amor?
Sim, pode ser, o nosso amor. Quando vai acabar o nosso amor?
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A fazer o quê?
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E ela?
Ela?
Sim, ela.
De ti?
Sempre no meio?
Sempre.
Para sempre?
Sim.
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Porquê?
Assim.
A nós?
A certeza não, mas pode ser. Do que não sabemos, pode ser.
E não te deixes levar sem mais pelas palavras, as palavras
enganam muito sem querer. Tem o máximo cuidado. Todo é
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Discurso sobre a tirania
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O tirano não tem lugar para onde fugir, leva consigo o lugar
da sua morte. É um grande fardo que o torna cada vez mais
pesado. É por isso natural que acabe por cair da cadeira
onde está sentado, sem ser preciso que alguém o empurre.
O tirano de que falo mostrou-se invencível, o povo queria
ser conduzido, o tirano tinha-se reproduzido como um
vírus dentro de cada um. A tirania protege os que nela se
protegem, e nunca se sabe quantos são, podem ser todos.
Dessa protecção só escapam seguramente os loucos e os
criminosos. E nem os que lutavam acreditavam, a não ser
como num dogma, que a tirania ia findar, porque se tinham
medo a lutar mais medo tinham de deixar de lutar e por
isso precisavam, mais do que os outros, que as coisas não
melhorassem, pelo contrário.
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E então por que falas assim? Podias estar numa prisão se não
tivesse havido esse dia.
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Por vezes tenho saudades dos dias antes de esse dia chegar,
confesso. Saudades de mim, de uma liberdade que perdi.
Tínhamos medo mas não nos deixávamos vencer pelo medo.
Encontrávamo-nos num quarto de chão de madeira podre
e um de nós lia, com voz firme e comovida, num canto, de
cima de uma cadeira, um poema de Maiakovski, clamando
pela coragem. Chegámos a ocupar comboios, um barco que
atravessa o rio, com palavras escritas a vermelho em largos
rolos de pano cru que deixávamos desenrolar do alto dos
balcões, interrompíamos o alegre convívio de multidões.
Eu tinha dezassete anos. E havia polícias de cara tapada por
escudos, e cães drogados de raiva, e homens muito velhos
sentados em enormes cadeirões com imenso medo de
morrerem. O inimigo não nos merecia, não estava à nossa
altura, e é sempre triste não ter um inimigo a respeitar.
A coragem estava do nosso lado. Isso basta para a luta ser
desigual. Tinha dezassete anos. Para quem tinha dezassete
anos como eu, foi o melhor que nos pôde acontecer. Para os
outros duvido.
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O homem poderoso não tem amigos e quanto mais poderoso menos é capaz
de amor. Tem aliados tácticos, cúmplices prestes a traí-lo, súbditos pouco
dignos de confiança e os indispensáveis inimigos face aos quais se afirma. Há
uma lógica interna ao poder que faz com que o poder para se manter tenha
de crescer, ser mais poder. Os limites não estão de antemão demarcados, a
sua ambição, conjugada com o constante perigo de lhe ser retirado o poder,
tende a crescer a um ponto perto, ou dentro, da loucura. Os que estão mais
próximos, mesmo por laços familiares, não estão imunes a essa espiral de
violência. A sobrinha de Hitler, Geli Raubal, com a qual este mantinha uma
esquiva relação erótica e talvez fosse a pessoa de quem mais tivesse gostado
à sua maneira, suicidou-se com um tiro do revólver do tio. A mulher de
Estaline, Nadezhda Alliluyeva, suicidou-se, depois de uma festa onde foi por
ele abusada. A quarta e última mulher de Mao, a célebre Giang Qing, que
começou uma carreira como actriz em Xangai e foi julgada como elemento
do Gang dos Quatro após a morte do marido, também acabou por se suicidar.
No entanto estes monstros da história exercem um particular fascínio, que
faz com que quando leio uma boa biografia sinta uma forma de prazer em
conhecer o mais sinistro e macabro, um prazer que procuro anular e não
consigo. Talvez porque uma parte de mim se identifica com o criminoso, tal
como acontece ao ver um filme de acção ou de terror. Freud escreve, citando
Platão, que o criminoso é o que faz o que o inocente só sonha fazer. O mal
pode fascinar, porque é um exercício de poder e o poder fascina, enquanto o
bem e a bondade podem atemorizar porque exigem coragem. Suponho que
seja, em grande parte, este fascínio causado pelo poder, que, por um lado,
permite a execução por muitos das ordens emanadas do monstro, e, por outro
lhe traz uma espécie de imunidade, colocando-o acima de qualquer lei humana
ou divina. Existiram milhões de pequenos hitleres em toda a Europa, milhões
de pequenos estalines na União Soviética, milhões de pequenos maos na China.
A partir de certa medida o monstro torna-se irresponsável. Nos seus últimos
dias Hitler terá afirmado que se os alemães perderam a guerra, isso era por
culpa deles que não mereciam a vitória, e não o mereciam a ele, que na verdade
os tinha conduzido à catástrofe. Tanto Lenine como Mao usaram o mesmo
raciocínio em diversas ocasiões, mostrando o maior desprezo pelas “massas”.
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Abandono o quarto e as teorias para descer até ao rés-do-chão, que está, como
toda a cidade, quatro metros acima do nível do mar. Já não há rua alguma que
me impeça de a atravessar. Quando chuvisca, os incontáveis ciclistas usam uma
gabardine de plástico colorido que os cobre por completo, a eles e à bicicleta
onde vão montados, e continuam a pedalar a uma velocidade constante. Ainda
não vi o Sol, nem a Lua, não sei se por causa da humidade quente que envolve
a cidade, se por causa da poluição que persiste em me irritar a garganta.
Provavelmente pelas duas razões acumuladas e mais alguma que desconheço.
Deixei de ter medo de me perder embora não dispense o nome e endereço,
escrito em chinês simplificado, pois continuo sem conseguir entoar de forma
correcta as palavras que erradamente me parecem ter só uma maneira de ser
pronunciadas.
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mais coisas que não sei o que são porque não sei para que servem. Estaco diante
de uma delas que tem na montra cachimbos para fumar ópio, um poster com
as folhas de marijuana e outros misteriosos objectos. Fico espantado. O tráfico
e o consumo de drogas são nesta região do globo severamente penalizados.
Talvez seja uma ratoeira da polícia de costumes para apanhar moscas como eu
desprevenidas.
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Não sei se o que bebo é de facto cerveja, pois cresce em mim um intenso desejo
por algumas raparigas, certamente em maior número do que os homens em
que mal reparo e são assim invisíveis. O rapaz que me serve tem o cabelo
puxado para cima, como uma crista, fixado por gel brilhante e uma camisa que
veio do Havai. Num inglês perfeito pergunta-me se quero beber outra cerveja
ou se quero provar um saboroso vinho chinês. Digo-lhe que sim, porque não?
Faz parte das experiências culturais. O vinho gelado sabe-me a saké, devendo
portanto ser saké. O barman sorri. Digo-lhe que me parece incorrecto chamar-
lhe vinho, nome que deveria ficar reservado às bebidas alcoólicas provenientes
de frutos, mas sim cerveja, feita à base de cereais, neste caso o arroz. O barman,
que já me estendeu a mão por duas vezes e pediu que o tratasse por Jim,
dá-me razão e vai enchendo o meu copo em miniatura com aquele líquido
esbranquiçado que não me sabe a nada em particular. Algumas das raparigas
olham para mim, o que me alegra, e continuo a fumar e a beber entretendo-
me com a ideia de poder estar num bar unicamente habitado por replicantes.
O meu entusiasmo vai crescendo, agradado por aquela inesperada aventura
que não só desconheço onde me leva, como não desejo sabê-lo. Uma rapariga
aproxima-se. Senta-se no banco vazio do meu lado esquerdo. Pergunta-me o
meu nome e o nome do meu país, que ela só entende, como se torna hábito,
quando refiro o nome de alguns dos nossos jogadores de futebol. Se eu também
jogo futebol? Não, muito obrigado. Peço um copo para a rapariga que me
pede para lhe chamar Jassie e bebemos juntos como se fôssemos há muito
conhecidos.
O som está cada vez mais alto, as luzes mais baixas e a população cresce
exponencialmente, enquanto a cerveja de arroz vai desaparecendo dos seus
recipientes. Pergunto-lhe o que faz. Diz-me que estuda inglês e também é
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Logo a seguir, talvez por instinto, atinge-me uma aflição, uma sensação de
perigo. Peço ao barman, que deixou de ser meu amigo e não se chama Jim com
certeza, a conta. A conta, que consigo ler, apesar da minha miopia turvada por
cereais, frutos vários, e mágicas flores, parece-me excessiva e, com um dedo
aponto para o número que daria de comer a várias famílias chinesas durante
um ano. Jim diz-me que vem incluído o trabalho da rapariga trabalhadora que,
entretanto, desapareceu sem deixar rasto. Pago com as notas estampadas com a
cara do presidente Mao Zedong e saio, furando um mar de gente excessivamente
excitada. Ainda reconheço “We are the champions of the world” tocado pelos
Queen, se não for por uma banda autóctone de nome semelhante.
Na rua paro o primeiro táxi que aparece, mostro o código secreto e passada
meia hora sou largado frente ao hotel que continua precisamente onde antes
estava.
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Subo para o meu quarto e fecho a porta atrás de mim encostando-me a ela.
Respiro fundo pensando, embora confusamente, que por um triz podia não
ter escapado à pena capital, pena que nesta região é amplamente aplicada e
executada com um certeiro tiro na cabeça do condenado ajoelhado. Com o
sinistro pormenor de a bala ter de ser paga pela família da vítima. Prometo a
mim próprio portar-me melhor de ora em diante para não me acontecerem
estas aventuras que insistentemente acontecem sempre que vou de viagem
comigo. Deito-me sobre a cama, fecho os olhos, percorre-me um último arrepio
ao sentir mais uma vez umas mãos delicadas a tomarem conta do meu sexo, e
adormeço ignorando a hora.
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A discoteca chamava-se Hell Paradise e o nome não podia ser mais adequado:
entre o inferno e o paraíso a distância é mínima e pode-se saltar de um para
o outro num abrir e fechar de olhos. Não é necessário esperar pela morte: a
perfeita felicidade tende a transformar-se naturalmente num duradouro
tormento. Só não podes fumar, tudo o resto é permitido, tinha-me segredado
a Sin ao ouvido mal passámos os seguranças halterofilistas. Ficava no
Meatpacking District, assim chamado por ter sido uma zona de armazéns e
comércio de carne junto ao rio Hudson. Agora a carne era outra, mais doce,
humana. O Hell Paradise era um enorme cubo com um balcão em todo o seu
redor, para o qual se podia subir por várias escadas. No piso inferior a pista
de dança era delimitada por longos bares todos eles com um tema diferente.
O balcão era ocupado por sofás, mesas iluminadas por baixo de toalhas brancas
que batiam no chão, deixando espaço bastante para se fazer o que se quisesse.
Por exemplo, observar o que ia acontecendo no piso inferior como quem se
debruça de uma varanda. Do tecto desciam gaiolas de metal dourado, balouços
e outros artefactos, que, não sabendo para o que serviam, não sabia o que eram.
No todo um bem conseguido conceito estético, no caso de existirem conceitos
estéticos. De qualquer modo, para poder apreciar o que quer que seja, uma
pessoa tem de estar em condições de a poder apreciar. Não era o meu caso.
Pensei fugir. Mas não tinha nem as chaves de casa, nem uma nota de dólares.
Nem qualquer documento, uma carta de condução ou uma licença de porte de
arma, muito menos o passaporte novinho em folha provido com os últimos
artifícios da alta tecnologia anti-terrorista, que pudesse certificar que eu era eu,
e não outra pessoa. Só quando não se é ninguém é que se pode ser qualquer
um, pensei prometendo-me voltar a pensar sobre este assunto. A Sin pediu, ou
ordenou, que eu fechasse os olhos e abrisse a boca e pôs-me sobre a língua três
gotas de um líquido adocicado,. Não devia ser adoçante para diabéticos.
A música, que abafava as palavras, era de um género que não soube identificar.
Usava os baixos e a precursão numa batida constante e repetitiva que fazia
dançar uma pequena multidão à minha frente como se fosse um monstro de
muitos braços e cabeças. No caso de se poder chamar dança ao que faziam.
Sobre altas colunas uma ou duas raparigas de mini-saia pulavam correndo
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A partir de certa altura, que foi quase logo, comecei a sentir ondas de calor
que, partindo do centro, irradiavam pelo meu corpo até atingirem a cabeça.
Uma sensação inegavelmente agradável. Contrapus, num diálogo de mim
para comigo mesmo que esta condição nada tinha de aprazível não devendo
portanto sentir qualquer prazer. Nada a fazer: não conseguia impedir de me
sentir excitado e, mais espantoso ainda, o meu corpo começava a mexer-se,
primeiro lentamente e depois por completo desinibido, ao ritmo do som que
o percorria e atravessava. O corpo é nosso sem nos pertencer. Era mais uma
prova a acrescentar às outras. Ao pensar nisto senti uma súbita angústia. Nada
do que eu chamo o meu corpo é na verdade meu, mas antes a prisão da qual
nunca posso escapar ou ser libertado. E aquilo a que chamo eu resume-se a
um nada num instante insustentável e fugidio que não há maneira de deter.
Ao dar um gole, como se tivesse muita sede, naquela bebida execrável, senti
alguém muito perto de mim. Era uma mulher um meio palmo mais alta do que
eu. Olhava em frente, com um copo na mão, e o seu corpo deixava-se mover
subtilmente pelas ondas de som, que se deslocam no ar à velocidade de cerca de
400 metros em cada segundo que já passou, deixando eternamente de existir.
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corpo que, não sendo meu, não sabia de quem era. Ao acabar a minha espécie
de bebida de cor variável reparei que o copo da minha vizinha da direita, cujo
corpo que habitava me pareceu apetecível pois deu-me vontade de o agarrar e
abraçar com entusiasmo, o que não fiz unicamente por receio de represálias,
estava igualmente vazio. Três gotinhas de um líquido sobre a língua eram
o bastante para aquilo e muito mais. Aproximei-me do seu ouvido, que me
pareceu DE uma notável perfeição da natureza, e perguntei se lhe podia ir
buscar outra bebida. Ela virou a cara e fixou os meus olhos de uma posição
superior. Conforme o ambiente dominante eles também mudavam de cor,
como os de um réptil.
É tudo uma mentira que parece verdade, um jogo de aparências sem qualquer
realidade por trás, um véu enganador que tudo cobre e oculta. A realidade é
a mais estranha das fantasias e o amor o mais poderoso dos enganos. Podem
ter sido estas as frases que lhe disse, por esta ou outra ordem, não podendo no
entanto assegurar-me se concordou com elas, ou mesmo se as ouviu. O que
me disse foi: um Campari com água tónica, por favor. Dirigi-me ao balcão
mais próximo, onde um empregado preto estava vestido de pirata, e pedi dois
Camparis com água tónica e gelo. Foi o que me serviu e já só quando os copos
estavam juntinhos um ao lado do outro me lembrei que não tinha dinheiro
para pagar. Atingiu-me uma aflição desmedida, como se tivesse acabado de
cometer um grave crime. O calor do meu corpo transformou-se num suor
frio. O pirata continuava diante de mim e talvez tivesse uma faca, ou outra
arma letal, com que assassinava os maus clientes sem maneira de soldar as
dívidas. Com uma voz suave disse-me para levar as bebidas, que pagaria tudo
no fim. Esta prova de confiança no humano levou-me a um lugar perto da
alegria, como se recuperasse uma dignidade que tinha perdido desde o fatídico
jantar no Nobu, onde jurei nunca mais entrar durante todo o restante tempo da
minha efémera vida.
Quando ofereci um dos copos que levava nas mãos à minha desconhecida de
orelhas perfeitas que apeteciam mordiscar, o meu estado de espírito era outro.
Comecei a narrar-lhe, frase a frase, com um curto intervalo pelo meio, tal
telegrama, a minha aventura, omitindo algumas partes e transformando outras.
Uma história não é uma teoria: não é para ser verdadeira ou falsa. O que tem é
de ser bem contada e credível. São coisas das quais me tornei mais consciente
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desde que começara a tentar ser quem não era: um ilusionista de palavras e
imagens. Nunca se pode contar tudo e o que se conta pode ser narrado de
diversas maneiras, não havendo uma que possa ser considerada inegavelmente
a melhor. Pode sempre haver outra. Falar, ou escrever, é sempre resumir e
simplificar. Se tentasse descrever por completo à minha vizinha o apartamento
da minha irmã ainda lá me encontraria. Constantemente tecemos histórias com
a vida que vamos tendo ou imaginando ter, pela simples razão que a vida, por
si, não tem qualquer sentido. Não a pus a par destas deslocadas considerações,
assim como não lhe falei nem do abandono da Kay no centro de enfermagem,
nem da lingerie para obesos mórbidos que me tinha provocado vómitos. Não
era preciso. O problema era outro: a cada frase que lhe transmitia, ela não
respondia com palavras mas com um sorriso cada vez mais aberto. Quando
lhe disse que as minhas carcereiras estavam a dançar na pista à nossa frente ela
deu uma gargalhada que furou o alto volume da música ambiente. Inclinou-se
ligeiramente para me falar ao ouvido onde deixou as seguintes palavras: nunca
ouvi maneira mais invulgar e interessante de sacar alguém numa discoteca; e
deu-me os parabéns. Assegurei-lhe que não havia razões para isso. De novo
a angústia não teve dificuldade em encontrar-me E lembrei-me que devia
dinheiro ao pirata de voz doce, dinheiro que não poderia pagar e é horrível ser-
se caloteiro. Quando me virei para a mulher de cor de olhos insondável, com
a intenção de me ajoelhar e pedir que me salvasse, ela retirou de uma pequena
bolsa forrada a lantejoulas o que me pareceu ser uma pistola-bisnaga semelhante
àquelas com que brincava nos carnavais da minha infância. Levou-a ao nariz e
puxou duas vezes o gatilho, uma de cada lado. Passou-a para as minhas mãos.
Fiz o mesmo. Ao carregar no pequeno gatilho de plástico translúcido uma
dose de cocaína era projectada para dentro do nariz. Devolvi aquele invento,
certamente patenteado, agradeci e mais uma vez o meu estado de espírito
alterou-se. Era como se quisesse rir e chorar ao mesmo tempo. O ridículo tanto
pode fazer chorar como rir, dependendo de quem é o ridicularizado e qual a
causa do ridículo. Eu era os dois em simultâneo. Tinha de aguentar, nada dura
eternamente, nem mesmo a morte. Muito menos a paixão pela minha quase-
namorada, que não tinha tempo para estar à minha espera, e devia estar a
divertir-se num lugar semelhante àquele com belos homens e mulheres ainda
mais belas a fazerem-lhe a corte. Foi então que a minha vizinha, cujo corpo se
movia de uma forma cada vez mais sensual, os seios levantados por trás de uma
blusa transparente, me perguntou, com gestos de mãos, se eu não queria ir com
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ela para a pista. Há anos que não dançava, mas não podia ser rude com a pessoa
mais gentil que encontrava há setenta e duas horas.
Como já tinha notado, ninguém dançava com ninguém, uma nítida prova da
progressiva degenerescência das relações humanas. Cada um dançava com a
música, consigo próprio, sem deixar que ninguém o fosse perturbar no seu
supremo egoísmo. Dois passos dentro da pista e já tinha perdido para sempre
a minha boa companhia que gostava de brincar com bisnagas, quer fosse ou
não Carnaval. Fechei os olhos, por um acto consciente e voluntário, e deixei-
me invadir pela música. De novo o fogo acendera-se dentro de mim. Não
sabia que horas eram, onde estava, quem era. Naquela pista, onde deviam
estar mais de cem pessoas, éramos todos iguais: marionetas ou escravos de
um deus todo poderoso. Veio-me à cabeça um aforismo do filósofo Nietzsche
que li na juventude e me pareceu ali de uma justiça extrema: temos a música
para não morrer da verdade. A música não é verdadeira nem falsa, não mente
nem engana, não precisa de ser traduzida nem explicada. Se não fosse ela até
as folhas de um relvado acabariam por desfalecer, quanto mais os humanos
sempre de uma inexcedível fragilidade. Tal como eu, e, já agora, todos os outros
que ali estávamos numa comunhão sem interferências, um culto das forças
dionisíacas, que faz com que a vida valha a pena ser vivida, tornando-a mais
intensa e impetuosa.
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MUITO, MEU AMOR
ele tinha-me cobardemente varrido com a sua perna direita. Se não soubesse
cair, o que fiz instintivamente protegendo-me com os antebraços, a minha
cabeça teria sido fracturada com o choque no chão. Mais uma humilhação a
acrescentar às outras. Quando me levantei tentei chegar perto dele, não com a
intenção de lhe fazer qualquer mal, mas sim dar-lhe os parabéns pela execução
do seu golpe. Fui disso impedido por dois halterofilistas, os quais, cada um do
seu lado, me acompanharam em peso até à porta de saída do Hell Paradise.
Julguei, receoso, que me fossem fazer como nos filmes americanos e japoneses:
levar-me para um cais do rio e dar-me uma surra, partindo-me os dentes e
o nariz, antes de me deitarem, como um saco de cimento, para a água. Se tal
acontecesse, e sobrevivesse, ia acabar num hospital. O que talvez fosse a minha
safa. Como recitava a minha mãe: a seguir a duas coisas más vem sempre
uma coisa boa. Perdi o medo quando já não era preciso perdê-lo: ignorando
como foram avisadas, as minhas quase-amigas apareceram momentos depois
e, justificando o meu comportamento não sei como, salvaram-me daquela
situação precária conduzindo-me para a anterior não menos inquietante. Antes
de sairmos disse à Sin, ou à Kay, que de facto não eram exactamente a mesma
pessoa, que não pagara os dois Camparis no balcão do pirata, que bem podia
ser o próximo Tom Cruise. Desapareceu e regressou minutos depois dizendo
que já podíamos regressar a casa.
A palavra casa tinha-se tornado difícil de definir. Em todo o caso não podia
chamar casa a um lugar onde não me apetecia voltar por ter deixado de
nela me sentir confortável: desde que se tornara no domicílio das minhas
acompanhantes que pareciam, elas sim, habitá-lo desde sempre e para sempre.
Ter as chaves da porta ou não ter já não alterava grande coisa, naquela cidade
onde uma porta tem pelo menos duas fechaduras e uma corrente metálica que
se fecha por dentro e permite observar pela ranhura da porta os indesejáveis.
Eu era o indesejável. Talvez nunca viesse a encontrar uma casa a que pudesse
chamar minha. Só quem não tem casa sabe o que é uma casa. Isso passou a ser
uma certeza.
Imagens Proibidas
Impressão Digital, Maio 2010
(Impressão Digital é uma chancela da Prime Books)
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