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O silêncio como ser da linguagem na literatura

moderna

MACHADO, C. H

O SILÊNCIO COMO O SER DA LINGUGAGEM NA LITERATURA MODERNA

Carlos Henrique Machado1

https://orcid.org/0000-0003-0774-972X

https://doi.org/10.33871/27639657.2023.3.2.8298

RESUMO: Se a linguagem é responsável por garantir a existência do sujeito que percebe, abstrai
e diz o mundo à sua volta, garantido a identidade e a diferença das coisas, a literatura moderna,
em alguns de seus aspectos, fez desaparecer aquilo que servia de suporte ao ato linguístico, ao
falante e ao seu discurso. O sujeito ou o eu que fala se fragmentou e se dispersou até desaparecer
num espaço vazio de profundo silêncio, longe dos significados da língua e da dinastia da
representação. Queremos perceber, então, de que modo se dá esta dissolução a partir de um
texto de Kafka de 1917 (O silêncio das sereias), que vem revelar os diferentes sentidos por
intermédio de uma linguagem descentrada, única, capaz de dar a perceber aquilo que escapa à
legislação das palavras. Queremos penetrar os lugares do silêncio onde os encontros de
tendências intempestivas produzem agitações, que antes de poderem ser designadas se
transmutam em uma novidade quando o momento pathico é experimentado no mundo como
acontecimento.
Palavras-chave: linguagem, silêncio, literatura, sujeito, significado,

ABSTRACT: If language is responsible for ensuring the existence of the subject who perceives,
abstracts and says the world around him, guaranteeing the identity and difference of things,
modern literature, and some of its aspects, has made disappear everything that supported the
linguistic act, the speaker and to your speech. The subject or self that speaks has fragmented and
dispersed until it disappears into an empty space of profound silence, far from the meanings of
language and the dynasty of representation. We want to understand, then, how the dissolution
that the literary text comes to reveal takes place, based on a decentered language, the only one
capable of revealing what escapes the legislation of words, penetrating the places of silence
where trends meet. Untimely events produce disturbances that, before they can be designated,
are transmuted into something new, when the pathetic moment is experienced in the world as
an event.
Keywords: Language, silence, literature, subject, meaning,

1
Doutorando em filosofia pela FLUP - Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre pela
mesma instituição. Pesquisador do Aesthetics, Politics and Knowledge do Instituto de Filosofia da
Universidade do Porto e membro do GT Deleuze e Guattari da Anpof. E-mail: petrus166@gmail.com

Artigo publicado em acesso aberto sob a licença Creative Commons Attribuition 4.0 International Licence.

Revista Paranaense de Filosofia, v. 3, n. 2, p. 83 – 101, Jul./Dez., 2023.


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INTRODUÇÃO

O lugar-comum linguagem é um espaço de acolhimento para o pensamento, de


modo que as coisas possam manifestar a ordem contínua de suas identidades e
diferenças e onde seja possível nomear, falar e, em última instância, pensar. A linguagem
vem conferir uma coerência determinada à conteúdos imediatamente sensíveis a partir
de códigos que regem as palavras e o pensamento por leis gerais que estabelecem uma
ordem para uma realidade marcada pela descontinuidade daquilo que chega aos
sentidos. É através da linguagem como uma construção de um sujeito que percebe,
abstrai e fala, que será possível constituir uma descrição que ressalte o lugar onde as
coisas aparecem diante do sujeito, incorporando os eventos às vivências de um Eu
individual, de sua consciência e de seu espaço de significação.
O ato linguístico funciona, assim, para significar a dinâmica do campo perceptivo
e dos meios onde é produzido o pensamento. Eis o palco onde o sujeito não para de
produzir significados para si mesmo e para as coisas com as quais se depara. Se o sujeito
é capaz de perceber, abstrair e dizer o mundo ao redor de si, isso se dá pela ação das
faculdades que organizam aquilo que é percebido em uma ordem interna que se constitui
por dois tipos de imagens: uma como retenção das percepções e outra como produção
da imaginação.
Cada vez que se volta para o mundo o sujeito já carrega consigo as imagens que
o permitirão antecipar aquilo que tem diante de si, nominando sucessivamente cada
percepção e as distribuindo em termos de sucessões. À medida que vai constituindo sua
interioridade o sujeito inaugura simultaneamente a separação entre as suas imagens
internas e as imagens da realidade exterior, produzindo o conhecimento que tem de si e
do mundo. Assim a linguagem assume uma condição de validade de uma instância
subjetiva projetada sobre os objetos percebidos dando a eles uma coloração
especificamente simbólica. Como nos diz Ferrer:
A linguagem parece ter a capacidade de se transformar em algo mais do que
um mero artefato biológico e evolutivo adaptado à sobrevivência de uma
dada espécie viva, mas conduzir a um mundo próprio, psicológico e/ou

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simbólico, com um funcionamento e leis próprias, diversas das do mundo


físico ou, mesmo, biológico (FERRER, 2016, p. 17).

Se os sujeitos produzem conhecimento à medida que significam as percepções


do mundo numa rede de significados onde são constituídas as identidades que os
possibilitam dizer a realidade, os meios onde surgem as coisas é um espaço de aparição
e esvanecimento onde se produzem os signos da linguagem. Em cada manifestação, as
coisas emitem signos que só podem ser lidos e ditos na perspectiva do sujeito que os
recobre com seus próprios significados. Fora desse espaço de significação as coisas
aparecem, somem e levam consigo em cada encontro uma memória sem registros que
dura na exata dimensão da tendência de uma imprevisível novidade.
Dizer as coisas na perspectiva das tendências que se insinuam, requer do sujeito
que fala a suspensão dos significados da consciência a fim de viabilizar o encontro com
as tendências subjacentes às coisas no silêncio de encontros impronunciáveis nos
termos do espaço de significação já traduzido em linguagem. Zona onde não se é capaz
de discernir os signos caso se silencie o conjunto de significados que constituem as
identidades da consciência, onde cada tendência é uma intensidade sempre diferente,
sem registro na memória subjetiva, sem história, partida ou chegada.
Trata-se, então, de se promover um embate entre o dito e o que não pode ser
dito, palavra e silêncio, consciência e esquecimento, abrindo-se espaçamentos na
linguagem que possam liberar a memória de suas lembranças ou dos seus dispositivos
significantes, tomando-a como fruição impermanente onde as tendências não param de
se insinuar e de liberar novas intensidades e onde a imaginação pode operar como
faculdade de produzir mundos em profusão. Ali, a linguagem “não é mais do que o rumor
informe e fluído, sua força está na sua dissimulação; por isso é uma única e mesma coisa
como a erosão do tempo; é o esquecimento sem profundidade e vazio transparente da
espera” (FOULCAULT, 1990, p. 71 e 72).
Esse lugar na literatura coincide com o tempo em que o sujeito foi posto em
questão e com ele as formas estruturadas em torno da consciência de si e do mundo. Se
a linguagem traz o sujeito a seu reboque, ela traz também os germes de sua dissolução.

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O apagamento do Eu coincide com o descentramento da linguagem, espaço do


indivíduo, fragmentado, estranho, dilacerado e deslocado de sua posição de sujeito
soberano em seu pensamento e ações que o texto literário vem revelar a partir de uma
linguagem descentrada, única capaz de dar a perceber aquilo que escapa à legislação
das palavras, penetrando os lugares do silêncio. A literatura deixa de ser, então, uma
linguagem se aproximando dela mesma em sua manifestação, afastando a linguagem o
mais longe possível dela mesma, para que fora de si ela possa desvelar seu ser próprio,
no limite entre a palavra e o silêncio. A partir daí Foucault afirma:
A partir do século XIX a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser; não,
porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento. Porque agora
não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se
achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a
linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa
(FOUCAULT, 2007, p. 61).

Linguagem e silêncio, aparentemente opostos, mas ligados na errância de


palavras que se desprendem do seu lugar de fundamento e desarticulam a dominação
de seu escopo original, chegando a uma zona indeterminável de seu desvanecimento.
Caso fosse viável se penetrar nesse espaço onde tudo se faz e se desfaz sem que as
aparições e os desvanecimentos deixem qualquer vestígio, a instantaneidade dos
encontros estaria sempre a dissolver os limites entre o visto e o dito, onde se formam os
significados que orientam a visão e a língua. Os signos aí não mais estariam encobertos
de elementos da memória evocados por semelhança ou equivalência em cada uma de
suas aparições; seriam signos puros uma vez que emitiriam sempre uma novidade que
não se pode antecipar, definir ou corresponder, pois mudariam a cada encontro,
tornando-se impronunciáveis a partir do conjunto de significados prévios como no meio
onde as coisas se encontram e se insinuam, se fazem e desfazem silenciosamente em
uma memória que é a duração pura de suas tendências; sem passado, presente ou futuro,
mas como intensidade sempre a produzir o novo. O falar nesse meio só se tornaria
possível caso as palavras fossem transmutadas em intensidades em cada uma de suas
aparições, sem evocar significados, mas compondo uma fala que levasse o sujeito para
longe dos espaços de significação onde se encontram as identidades recolhidas na

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memória. Meio onde os encontros de tendências intempestivas produzem agitações;


tendências que se insinuam e que, antes de poderem ser designadas, se transmutam em
uma novidade.
A crise na literatura que tem lugar na segunda metade do século XIX
redimensionou o papel do texto literário, que abandona o primado da representação em
favor de uma linguagem que deixa de ser um instrumento de elaboração, assumindo a
potência da expressão das intensidades que se insinuam para os sujeitos da enunciação.
Expressar essas intensidades requer uma linguagem que se afirme pela combinação de
palavras esvaziadas dos significados, palavras que apareçam como signos puros
preenchidos pela intensidade das agitações de um campo intensivo. Agamben trata
desse campo como um lugar do inacessível que foge ao se tentar apreender com a razão
e se descrever com a linguagem. Ele nos fala de uma ¨experiência de linguagem que vai
em direção ao pensamento sem jamais atingi-lo; ela é tensão e infinita nostalgia, que
jamais compreende o que quer apreender e jamais chega aonde quer ir” (AGAMBEN,
2013, p. 293). Ele descreve uma experiência que passa necessariamente pelo
silenciamento da palavra e que está além de todo nome ou designação.
Como devemos pensar a experiência que é aqui indicada como silêncio e
como estupor, ou ainda, em um insolúvel cruzamento, como “estupor pelo
silêncio”? E o que significa para o homem – o falante, o vivente que possui a
linguagem – fazer experiência do silêncio, estupefazer-se pelo silêncio?
(AGAMBEN, 2013, p 295).

O texto literário moderno passa, então, a liberar linhas que desarticulam as


formas homogêneas das estruturas da linguagem e seus operadores de significância
como nova condição de acesso ao sentido das obras. A partir daí são produzidos efeitos
que irão compor um novo plano no qual os modos de percepção não aparecem na forma
de substâncias ou sujeitos, mas através de potências que se agenciam como condição
de possibilidade de toda experiência. Esse plano é esvaziado das formas representativas
dando lugar à virtualidade das potências silenciosas que não descrevem ou reproduzem
o mundo que chega aos sentidos, mas buscam se apropriar do informe e do intangível,
invocando uma ausência através de uma linguagem empurrada ao seu limite. O século

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XIX conviveu com grandes romances de autores como Melville (1819 – 1891), Flaubert
(1821 – 1880), Dostoievski (1821 – 1881) e Zola (1840 – 1902), nos quais se vê dissolvido
qualquer fundamento de onde se possa apoiar para representar o mundo, apontando um
vazio essencial da elisão da linguagem pelo desaparecimento necessário daquilo que a
funda.
É justamente nesse ambiente que surge a obra de Franz Kafka (1883 – 1924), um
escritor tcheco de ascendência judaica que escrevia em alemão. A modernidade
presente em suas narrativas se caracteriza, como bem descreveram Gilles Deleuze e
Felix Guattari em Kafka: Por uma literatura menor (1975), a partir de uma função
minorizante que faz surgir uma língua outra no interior de uma língua nativa. Deste modo
sua obra possibilita que se chegue a lugares onde os significantes de uma língua maior
são incapazes de atingir, liberando intensidades a-significantes. Kafka instaura dentro da
maioridade da língua alemã um uso menor, deslocando a escrita no interior da própria
língua, produzindo expressões intraduzíveis a partir do momento que a língua se cala ou
se silencia

1 LINGUAGEM E SILÊNCIO

Num conto de 1917 intitulado O silêncio das sereias, Kafka irá explorar esse
momento pathico da sensação a partir de uma releitura da experiência de Ulisses. No
livro XII da Odisseia (VIII a.C), Homero descreve o encontro de Ulisses com as sereias
a partir da estratégia do herói grego de evitar ser seduzido pelo seu canto, que fez
amarrar-se ao mastro do navio para não perecer face o encanto daquelas vozes, sem
evitar, no entanto, de ouvi-las.
Segundo a narrativa de Homero, as sereias eram tipo demônios marinhos que
atraíam com sua música os marinheiros que passavam pela vizinhança. Os navios se
aproximavam de forma perigosa das costas rochosas até afundar, sendo os corpos dos
marinheiros mortos por elas devorados. O canto das sereias trazia uma promessa de
gozo da qual nenhum homem podia fugir, sendo irresistível aos ouvidos mortais. Embora

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prometessem prazer, o seu fim era desespero e destruição. No relato da Odisseia, Ulisses
tapa o ouvido dos seus marinheiros com cera para evitar que eles ouçam o canto sedutor
das sereias enquanto remam, mas ele mesmo mantém os ouvidos destapados, embora
tenha se feito amarrar ao mastro do navio para evitar que o canto o levasse à destruição.
E o que as sereias cantam? A sedução do seu canto não advém apenas da melodia das
suas vozes.
Vem até nós, famoso Odisseu, glória maior dos Aqueus! Retém a nau, para
que nos possas ouvir! Pois nunca por nós passou nenhum homem de sua
escura nau que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas; depois
de se deleitar, prossegue caminho, mais sabedor. Pois nós sabemos todas as
coisas que na ampla Troia Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos
deuses; e sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil (HOMERO,
2018, p. 396).

Seu canto carregava um conteúdo que era capaz de tornar os seus ouvintes mais
sabedores das coisas ao seu redor e a partir daí seduzi-los ao ponto de fazê-los chegar
cada vez mais perto, levando os navios a se chocar contra os corais e os tripulantes a
sucumbirem nas profundezas dos mares. Por isso Ulisses não tapou os ouvidos, pois
queria ouvir esse canto cheio de mistério e perscrutar seu significado e promessa de
conhecimento. Blanchot descreveu o canto das sereias como aquilo que atrai a um lugar
que desaparece; um abismo que atrai e seduz através do desejo pelo nada, momento em
que o desejo leva a um local que se desdobra, se abre infinitamente, sempre sem
chegada, que encanta e convida à desaparição.
As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia,
que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes
e a verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos,
que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em
direção àquele espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o
enganavam, portanto, levavam-no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido
o objetivo, o que acontecia? O que era esse lugar? Era aquele onde só se podia
desaparecer, porque a música, naquela região de fonte e origem, tinha
também desaparecido, mais completamente do que em qualquer outro lugar
do mundo; mar onde, com orelhas tapadas, soçobravam os vivos e onde as
Sereias, como prova de sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas
mesmas. (BLANCHOT, 2005, p. 3).

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Ulisses não deixou se entregar às vozes, pois ao se fazer amarrar no mastro,


garantiu que não sucumbiria a elas, podendo retornar de sua jornada para contar suas
bem-aventuranças. Resistindo ao encantamento, ele foi capaz de acessar o seu conteúdo
inteligível e transformá-lo em uma narrativa. Somente resistindo ao canto se é capaz de
reproduzir as palavras que se ouve e comunicar o conhecimento que contém.
Livrar-se do canto puro era aquilo que, segundo Foucault, garantiria a
sobrevivência da narrativa frente a esse refúgio devorador, pois “para que nasça a
narrativa que não morrerá, é preciso estar à escuta, mas permanecer ao pé do mastro,
pés e mãos atados (FOUCAULT, 2009, p. 234). A postura de Ulisses afasta a palavra de
seu encanto, retirando delas o princípio da sedução. O canto das sereias é o lugar de
onde se pode ouvir uma voz que quando ouvida não cessa nem termina e deixa aquele
que a escuta na espera de um fim que nunca virá. O local do canto das sereias é o lugar
fronteiriço onde as palavras perdem o seu significado frente ao encantamento das vozes
que entoam o canto. Só ali é possível estabelecer uma conversa infinita, onde as palavras
não remetem mais às coisas, mas a um inefável que está sempre a se afastar. Palavras
retiradas do seu lugar original, na verdade, murmúrios incompreensíveis onde o que
sobra são sons desprovidos de significados. Ao ouvir o canto estando preservado do
risco do encantamento, Ulisses restitui às vozes o significado que poderá se perpetuar a
partir do desdobramento da linguagem em sua narrativa. O encantamento, contudo, não
poderá ser reproduzido, uma vez que ele é a atração a um lugar que desaparece e se
afasta até o mais profundo abismo. Ao evocá-lo, Ulisses recobre-o com a linguagem de
quem ouviu o interminável, mas não se entregou a ele.

A luta de Ulisses caracteriza o inevitável desejo de se entregar e se anular,


desaparecendo no vazio, sendo impedido pelas cordas em torno do seu corpo que
transformaram o canto interminável em fala humana. A fala humana surge a partir do
som que traz a presença das coisas, opondo-se ao silêncio do abismo que se ausenta ao
infinito. Ela serve para comunicar sensações e pensamentos e, como afirmava
Heidegger, em A caminho da linguagem (1959), para diferenciar o homem das demais

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formas vivas e inanimadas, uma vez que é aquilo que forma o mundo. Sem ela
estaríamos a mercê daquela voz murmurante que desarranja a vida e de sua mudez que
encanta e ameaça a continuidade da viagem.
Garantido pela força das cordas, Ulisses sobreviveu ao encanto e se pôs a falar,
mas sua fala é apenas uma narrativa sobre as coisas, perdendo o encantamento e a
dimensão imemorial do canto que ouviu sem nele produzir seus efeitos. A experiência
de Ulisses traz com ela o princípio da linguagem humana, uma vez que, para que algo
seja nomeado, é necessário que esse algo seja posto de lado, já que apenas se tornará
presente através da palavra que passa a ser sua negação. Diferente da fala humana, o
canto das sereias é o lugar do desaparecimento, um lugar inalcançável a se afastar
infinitamente nas profundezas do silêncio.
As sereias habitam os lugares do silêncio e ir ao encontro do seu canto tem a ver
com ir ao encontro de uma ausência que traz a presença de um marulhar ao fundo, ruído
que nos põe diante do desconhecido e de sua presença ausente. A relação do silêncio
com o canto revela uma dimensão sonora que se destaca do significante, silêncio pleno
do tumulto ruidoso que se abstém à palavra e do seu significado. O som do canto não é
um suporte para as palavras, mas a origem do encantamento que faz cessar a razão de
quem o ouve e enfeitiça. O sonoro seria, assim, um efeito da dimensão que captura a
atenção dos marinheiros à medida que age como um suporte sensível que imprime em
seus sentidos o abismo que seduz e atrai.
Desfazer-se do sonoro requer que se ative uma outra interface sensível que possa
manter o encantamento e a sedução causados pelas sereias. É com isso que iremos nos
deparar no Silêncio das sereias de Kafka. No conto, Kafka subverte a narrativa de
Homero, uma vez que nele Ulisses não só se faz amarrar ao mastro do navio, mas tapa
os ouvidos com cera para não ouvir as sereias em seu canto. Ao perceber a astúcia do
herói, as sereias silenciam e não cantam mais. Contudo, Ulisses não se apercebe desse
silêncio e acredita que elas ainda estão cantando, não se dando conta da ausência da
linguagem.

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Na ausência da linguagem o encantamento do mundo deverá se servir de outros


registros sensíveis. Ao desistir de ouvir o canto das sereias ele acaba por não ouvir o seu
silêncio, achando que elas cantavam e que ele estava protegido contra o perigo de
escutá-las. “Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os
olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava
relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele” (KAFKA, 2002, p. 105).
As sereias, por sua vez, face a linguagem se tornando ausente, se puseram a dançar.
Mas elas — mais belas do que nunca — esticaram o corpo e se contorceram,
deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras
sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o
mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses (KAFKA,
2002, p. 105).

O encantamento do silêncio é sobreposto, então, pelo movimento dos corpos e


o registro sensível é transferido da disponibilidade dos ouvidos de Ulisses para seu
grande par de olhos, do sonoro para o visual. Tapar os ouvidos servirá para transferir o
encantamento para a beleza que se abre diante dos olhos do herói. Note-se aí que existe
uma diferença fundamental entre o silêncio que Ulisses não ouve e o silêncio que o
cerca, uma vez que aquilo que supõe não ouvir se baseia numa crença na própria forma
verbal, crença prévia ao pensamento que ata o falante à fala. Assim, faz-se a distinção
entre o silêncio das sereias e aquilo que Ulisses imagina. O primeiro é a ausência do
canto que cessa de manifestar-se e que transfere o encanto para uma outra dimensão
sensível, o segundo é uma impossibilidade de ouvir as palavras que continuam
carregadas de significado na forma verbal que age como crença de Ulisses.
Enquanto o herói pensava que estava protegido do canto das sereias pela cera
nos seus ouvidos, observava o movimento dos seus corpos e imaginava que isso fazia
parte do canto supostamente não ouvido. Chama a atenção, também, a inversão de
papéis sofrida pelos protagonistas, no texto de Homero e de Kafka, que tem a ver com
a oposição entre liberdade/necessidade. O Ulisses homérico era livre para escolher
entre a perdição e a salvação, enquanto, por outro lado, a função de cantar das sereias
constituía uma pura necessidade. Por outro lado, o Ulisses de Kafka está amarrado à

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necessidade de não ouvir o canto das sereias, enquanto elas experimentam a liberdade
entre cantar ou silenciar.
No conto de Kafka, a ingenuidade de um ato que surge da necessidade de não
ouvir o (en) canto das sereias é responsável por salvar o herói grego, uma vez que o
canto das sereias, segundo o autor moderno, seria capaz de a tudo penetrar. “Ulisses,
porém, não pensou nisso, embora tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou
plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao
encontro das sereias levando seus pequenos recursos” (KAFKA, 2002, p. 104). As
sereias, entretanto, no exercício de sua liberdade, optaram pelo silêncio, que só não foi
fatal para o herói porque ele não o escutou, presumindo que cantavam e que não as
podia escutar por conta da cera nos ouvidos.
O silêncio das sereias diz respeito a uma ausência ou impossibilidade de
significação e está relacionado ao vazio que se esconde por detrás de cada palavra não
pronunciada. Ele é capaz de seduzir do mesmo modo que o seu canto, de modo que se
torna uma arma mais terrível. Se o canto atrai ao vazio do abismo, o silêncio manifesta
este vazio diretamente. Ulisses só escapou do encantamento por não ser capaz de ouvir
o vazio, mantendo o mundo com seus objetos familiares e domesticados aos seus
sentidos. O silêncio dissolve as identidades das coisas e manifesta o inaudível do qual
ele escapa. O silêncio ameaça os significados da linguagem e a atribuição de sentido que
o signo propicia. A palavra captura o pensamento e impõe a ordem que requer
obediência e submissão, ao ponto de ela continuar ressoando ao ser interrompida
momentaneamente por uma surdez que mantém o seu alcance. O silêncio suprime a
palavra e a substitui por uma absoluta ausência que absorve os sentidos e os abre a
novos registros das coisas.
Ulisses escapa do (en) canto das sereias e do seu silêncio, isto porque estava
amarrado à sua crença nos significados das palavras que viria a reproduzir em sua
narrativa. Palavra desencantada por um lado, mas pressupostamente não ouvida por
outro, ocupam o lugar das coisas e de seu encantamento sensível. A civilização ocidental
deve o seu caráter essencialmente verbal da tradição greco-judaica responsável pela

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concepção e expressão do logos. Ela vive no interior do ato do discurso à despeito da


existência de diferentes registros sensíveis, à exemplo da atividade do espírito enraizada
na vitalidade do silêncio.
A vacância da linguagem permite que se possa penetrar no imediato registro do
mundo que se abre em sua totalidade sem o suporte dos significados das palavras que
visa capturar aquilo que pode ser falado e comunicado no discurso. A realidade do
mundo capturada no interior do discurso passa a ser sobrecarregada a partir de uma
crença prévia que organiza a forma verbal que o domestica. Ela carrega o peso de
milênios de domesticação simbólica onde as coisas cedem lugar aos significantes e aos
significados, manipulados com precisão de modo a retirar da realidade o seu sentido
implícito. As palavras retiram o peso das coisas e mediam a percepção do mundo
impresso através de cifras que marcam o espírito e orientam as sensações responsáveis
por toda a expressão linguística. A ausência da linguagem faz com que a imagem do
mundo escape do alcance da palavra, daí o silêncio das sereias representarem uma arma
muito mais terrível que o seu canto.
A abolição dos recursos da linguagem que ordenam a experiência e as
impressões do espírito liberam sensações como resultado direto dos estímulos sensíveis
sobre terminais nervosos na manifestação de imediata energia sensória do silêncio da
matéria. Ao silenciarem, as sereias apareceram mais belas do que nunca e aguardaram
Ulisses, que não foi capaz de escutar o silêncio delas pelo hábito de articular palavras e
encontrá-las no lugar das coisas. As sereias pretendiam atrair o seu olhar, tornando sua
visão maior que qualquer voz e qualquer memória capaz de recuperar os significados da
língua. Seu silêncio evocava a fuga da sintaxe linguística alcançando a imediaticidade
das formas sensíveis e sua expressão intensiva. Quando a linguagem cessa, o movimento
do espírito se liberta da sobrecarga das representações do mundo e está pronto para
uma vida para além das palavras. Para além da inflação dos registros verbais existe um
mundo sensível que se manifesta no esplendor de imagens nuas que emulam novos
sentidos.

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moderna

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Se os signos linguísticos organizam as sensações, o silêncio estabelece o ritmo


de corpos que se encontram com os estímulos do mundo que sobrevive aos significados
discursivos e que vibra não domesticado e preexistente à linguagem. Barthes afirma que
“a linguagem não pode ser considerada um simples instrumento, utilitário ou decorativo,
do pensamento” (BARTHES,1988, p. 15). Para ele, o homem não preexiste à linguagem,
pois jamais se chegaria a um estado em que o homem estivesse separado da linguagem,
seria a linguagem que determinaria a definição do homem. Eis o porquê de o silêncio
das sereias ser uma arma ainda mais terrível do que seu canto, pois o silêncio desfaz a
imagem do homem-que-nós-somos, obrigando a se obter uma nova imagem não afetada
por milênios de domesticação simbólica. Ulisses escapou ao silêncio das sereias, pois
não o escutou. Ele estava amarrado não só ao mastro do navio, mas à forma do ato
linguístico. Assim, não era capaz de poder continuar qualquer pensamento sem pensar
nas palavras que supunha não poder ouvir.

2 O SER DA LINGUAGEM NA LITERATURA

Se quisermos escutar o silêncio das sereias, nos pondo ao lado das coisas que
preexistem a qualquer significado, obrigamo-nos a encontrar um outro sentido para a
linguagem, retirando-nos o privilégio que nos separa das demais coisas vivas e
inanimadas. O silêncio captura o mundo por outro registro perceptivo, como palco onde
misturam-se animais, vegetais, microrganismos, partículas e toda uma galáxia a atualizar
o esforço pelo qual cada coisa afirma o seu ser. Fora do espaço de significação linguística
as coisas aparecem, somem e levam consigo em cada encontro uma memória sem
registros que dura na exata dimensão da tendência manifesta e que se esvai deixando-
se levar até a luz pelo esquecimento, sem estabelecer o limite a partir do qual se
delinearia como um significado.
Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade
de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos
impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com
os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã.
Choveu, com lentidão poderosa (BORGES, 1999, p. 10)

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Hugo Friedrich, ao descrever a lírica moderna, ressaltava esse vazio como o lugar
de circulação de forças como vibrações superpostas ao significado, que não comunicam
absolutamente nada e que estão situadas além do limite do compreensível. “No início
do ato poético há uma nota insistente e prévia à linguagem dotada de significado: algo
como uma entonação sem forma” (FRIEDRICH, 1978, p. 51). Seria em vão qualquer
tentativa de interpretá-la em seu vibrar neutro com sua intensidade indeterminável que
se lança ao desconhecido, o faz falar e “em substituição ao desconhecido invisível –
converte o real em um desconhecido sensivelmente excitado e excitante, removendo os
limites de suas figuras” (FRIEDRICH, 1978, p. 80).

Segundo Foucault, o “falo” da narrativa ficcional moderna não é limitado por


aquele a quem se dirige, nem por qualquer verdade daquele que diz, ou por quaisquer
valores ou sistemas representativos que utiliza. Ele não se constitui como um discurso,
nem quer comunicar um sentido, mas é a linguagem em seu ser bruto constituindo uma
pura exterioridade. A literatura moderna, segundo ele, seria caracterizada como um
trânsito ao exterior onde a “linguagem escapa do modo de ser do discurso – ou seja – a
dinastia da representação” (FOUCAULT, 1990, p.14).
A palavra literária se desenvolveria a partir de si mesma, não se identificando
consigo mesma, mas se distanciando o mais possível de si, pondo-se “fora de si mesma”
num exterior onde desaparece o sujeito do qual se fala, no fundo do oceano para onde
são atraídos os que se deixam enfeitiçar pelo silêncio das sereias. Foi na segunda metade
do século XIX que, segundo Foucault, perde-se o direito à palavra assentada na
gramaticalidade do discurso que pretendia revelar o segredo de sua interioridade,
quando o pensamento se traveste num discurso da subjetividade quebrantada em sua
“multiplicação teatral e demente do eu” (FOUCAULT, 1990, p. 23). É aí que a linguagem
se converte em potência que a alivia de todos os seus lastros e a faz explodir,
dispersando-a no vazio do inimaginável, onde o discurso se “apresenta sem argumento,
sem máscara, sem afirmação, independente de todo centro, isento de pátria que

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constitui seu próprio espaço como exterior do qual fala” (FOUCAULT, 1990, p. 31).
Perde-se, assim, o vínculo gramatical que representa o sujeito que fala, abrindo-se um
espaço neutro onde nenhuma existência pode arraigar-se.
Para Foucault, o ser da linguagem na literatura moderna é a visível desaparição
daquele que fala, abrindo a linguagem para sua própria ausência, no anonimato de um
rumor informe e fluido, transparência de um “falo” que instala sua própria desaparição.
Ao menos precisamente, que o vazio em que se manifesta a exiguidade sem
conteúdo do falo não seja uma abertura absoluta por onde a linguagem possa
propagar-se no infinito, enquanto o sujeito – o eu que fala – se fragmenta, se
esparrama e se dispersa até desaparecer neste espaço vazio” (FOUCAULT,
1990, p. 13).

Foi para se livrar do desaparecimento que, segundo Kafka, Ulisses, além de se


amarrar no mastro do navio, põe um punhado de cera nos ouvidos. Ele queria se
defender das sereias, cujo canto a todos seduzia. “As sereias, entretanto, têm uma arma
ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio” (KAFKA, 2002, p. 104). Ulisses só escapou
delas, não por estar amarrado ao mastro do navio, mas por se vincular à linguagem que
supunha não ouvir, por estar preso às formas representativas. Somente com a dissolução
da forma representativa do falo, ao qual Ulisses estava amarrado, é que se pode ser
arrastado pela potência do silêncio que arrasta e seduz de modo irremediável. “Apesar
de não ter acontecido isso, é imaginável que talvez alguém tenha escapado ao seu canto;
mas do seu silêncio certamente não” (KAFKA, 2002. P. 104).
Essa abertura através do silêncio se dá como um espaço do desaparecimento do
sujeito e sua materialização desfaz toda forma de interioridade, fazendo-se do dobrar
sobre si mesma, deixando suas marcas que se constituem como uma singularidade desta
ausência, marcas do silêncio que é o próprio ser da linguagem. Quanto mais o sujeito se
ausenta, mais se afrouxam os vínculos entre as palavras e as coisas e é neste vazio de
um movimento potencial que a literatura emerge como seu modo de expressão.
Na instauração de algo que resiste a se expressar, move-se potencialmente aquilo
que será materializado na linguagem que se intensifica como um nada que esvazia o
conteúdo subjetivo em sua indeterminação. Não é mais o sujeito que fala, mas o nada

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que ressoa a sua voz nesta zona de indiscernibilidade a qual faz Agamben exultar:
“Alcançar essa zona impessoal de indiferença, na qual desaparecem cada nome próprio,
cada direito autoral e cada pretensão de originalidade é algo que me enche de alegria”
(AGAMBEN, 2018, p. 43).
A literatura, nessa perspectiva, só se faz possível a partir da dissolução de todo
traço subjetivo que pretenda prender a linguagem a uma rede de significações que
forneça referências e direcione o texto. Há de se reivindicar a autonomia do texto
literário através do silêncio, como o apagamento de qualquer sujeito que faça do ato de
fala a expressão intencional de seus significados prévios. Tal ausência efetiva-se na
escritura quando esta torna-se impessoal, assumindo uma interdição para as instâncias
subjetivas daquele que fala. O sujeito da fala se apaga e a escritura assume o seu
primado. Esta elisão das intenções subjetivas em Barthes surge como a destruição de
toda voz que possa representar uma origem. Para ele, a escritura assume sua
materialidade a partir do desfazimento das instâncias subjetivas ao se produzir, quando
“a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”
(BARTHES, 2014, p 58). Põe-se, então, a linguagem no lugar do falante e faz-se a falar,
suprime-se o autor em proveito da escritura. Escrever não é mais uma operação de
registro, de verificação ou representação, mas é um ato performativo onde “a
enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela
se profere” (BARTHES, 2014, p. 61). A escritura torna-se, então um tecido de signos que
abre uma fenda em qualquer individualidade particular, fazendo o sentido se deslocar,
tornando-se esquivo, incerto e impreciso. A linguagem se cala e os seres nela falam,
momento em que a fala dissimula a linguagem a partir de uma potência que libera novos
e insólitos sentidos das palavras. “Uma palavra que não denomina nada, que não
representa nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem mesmo é uma palavra
e que desaparece maravilhosamente, por inteiro e de imediato, em seu uso”
(BLANCHOT, 1987, p. 33). Essa dissolução coincide com a dissolução do sujeito
moderno e, ao invés de tornar o pensamento e a literatura inviáveis, afirmam o seu
próprio ser, que não se sustenta no fundamento de um cogito ou na interioridade de um

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eu que fala, mas num silêncio como abertura para a multiplicação das sensações de um
momento pathico não representativo do discurso literário a partir da experiência nua da
linguagem.
Esse espaço neutro é o que caracteriza nos nossos dias a ficção ocidental (e
esta é a razão por que já não é nem uma mitologia nem uma retórica). Sendo
assim, aquilo que faz com que seja tão necessário pensar esta ficção – quando
antigamente o que se tratava era de pensar a verdade – é que o ‘falo’ funciona
como ao revés do ‘penso’. Este conduzia com efeito à certeza indubitável do
Eu e de sua existência; aquele, pelo contrário, afasta, dispersa, apaga esta
existência e não conserva dela mais do que sua citação vazia. O pensamento
do pensamento, toda uma tradição mais antiga, todavia do que a filosofia nos
ensinou que nos conduzia à interiorização mais profunda. A palavra da
palavra nos conduz pela literatura, mas talvez também por outros caminhos,
a esse exterior de onde desaparece o sujeito do qual se fala. Sem dúvida é por
esta razão pela qual a reflexão ocidental não se decidiu durante tanto tempo
em pensar o ser da linguagem: como se pressentira o perigo que faria correr
a evidência do ‘existo’ a experiência nua da linguagem (FOUCAULT, 1990, p.
15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É a partir do silêncio que a literatura irá revelar o ser da linguagem que não se
confunde com qualquer tipo de representação que remeta a um sujeito ou a um objeto,
pois nela ambos são elididos em prol das tendências que se insinuam nesse espaço vazio.
Se pretendemos fazer silenciar as palavras que significam as coisas e partir em busca
das tendências que elas insinuam como meio de sua aparição e esvanecimento, temos
de reorientar as faculdades responsáveis por situar e sustentar a consciência do sujeito
que conhece e representa o mundo. Havemos de penetrar num abismo como Orfeu
penetrou no Hades em busca de Eurídice, ou como Teseu o fez no labirinto da grande
fera. Porém, após penetrarmos nesse espaço, o próximo passo é evitar cumprir os
acordos constituídos antes dessa descida, o que não garante o retorno para o “mundo
dos vivos”, uma vez que sem os suportes dos pactos da consciência transformamos o
espaço em um lugar movediço onde não se pode lançar mão dos “fios” de Ariadne ou
das “luzes” dos registros que constituem a base da subjetividade do Eu e, e onde repousa
o sujeito que percebe, lembra e fala. Seria como que um exercício de “esquecimento”

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que lança o sujeito longe de sua identidade e dos significados que o permitem dizer a si
e ao mundo, no silêncio da palavra impronunciável que produz apenas murmúrios.
A fala organizada na estrutura significante da língua deve ceder espaço aos ruídos
de um marulhar sempre ao fundo do silêncio das sereias. Porém, diferentemente de
Ulisses, não se deve estar amarrado ao mastro do navio, nem com cera aos ouvidos,
mas sim deixar-se encantar pelas vozes que não param de balbuciar um canto que só se
ouve no silêncio entre os batimentos do coração do sujeito. Se as palavras são signos
com os quais o sujeito representa o mundo sobre o qual tem consciência, parece
impossível utilizar esses signos sem que estes já apontem os significados arquivados na
memória e que vêm à tona a cada olhar que o sujeito lança sobre a realidade. Se ao dizer
a realidade na qual se encontra imersa a consciência já carrega os significados da língua,
teríamos de buscar formas de expressão não vinculadas às formas estruturadas da
linguagem, onde os signos estivessem esvaziados dos seus sentidos originais, na
brancura onde se rompem as relações entre significantes e significados. Brancura que
faz parte do esquecimento, que se afasta da consciência, que vem se localizar longe da
abstração e onde os signos não mais evocam lembranças que afirmam um Eu
determinado, mas são aptos a emular sensações que se mantêm no exterior da
linguagem e que vêm compor o seu ser.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O silêncio da linguagem. Tradução - Vinícius Nicastro Honesko.


São Paulo: Revista Fronteira Z – nº 11 – dezembro de 2013.
BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BORGES, Jorge Luís. O aleph. São Paulo: Editora Globo, 1999.
FERRER, Diogo. Consciência e linguagem: acerca da crítica linguística do sujeito na 1ª
metade do séc. XX. In: CORRÊA-CARDOSO, João; FIALHO, Maria do Céu. Linguagem
na polis. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp 11-53, 2016.

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FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. São Paulo: Editora Princípio. 1990.


______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2a ed, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
HOMERO. Odisseia. Lisboa: Quetzal, 2018.
KAFKA, Franz. O silêncio das sereias. In: Narrativas do espólio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.

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Recebido: 21/09/2023
Aprovado: 24/11/2023

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