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MACHADO, C. H
https://orcid.org/0000-0003-0774-972X
https://doi.org/10.33871/27639657.2023.3.2.8298
RESUMO: Se a linguagem é responsável por garantir a existência do sujeito que percebe, abstrai
e diz o mundo à sua volta, garantido a identidade e a diferença das coisas, a literatura moderna,
em alguns de seus aspectos, fez desaparecer aquilo que servia de suporte ao ato linguístico, ao
falante e ao seu discurso. O sujeito ou o eu que fala se fragmentou e se dispersou até desaparecer
num espaço vazio de profundo silêncio, longe dos significados da língua e da dinastia da
representação. Queremos perceber, então, de que modo se dá esta dissolução a partir de um
texto de Kafka de 1917 (O silêncio das sereias), que vem revelar os diferentes sentidos por
intermédio de uma linguagem descentrada, única, capaz de dar a perceber aquilo que escapa à
legislação das palavras. Queremos penetrar os lugares do silêncio onde os encontros de
tendências intempestivas produzem agitações, que antes de poderem ser designadas se
transmutam em uma novidade quando o momento pathico é experimentado no mundo como
acontecimento.
Palavras-chave: linguagem, silêncio, literatura, sujeito, significado,
ABSTRACT: If language is responsible for ensuring the existence of the subject who perceives,
abstracts and says the world around him, guaranteeing the identity and difference of things,
modern literature, and some of its aspects, has made disappear everything that supported the
linguistic act, the speaker and to your speech. The subject or self that speaks has fragmented and
dispersed until it disappears into an empty space of profound silence, far from the meanings of
language and the dynasty of representation. We want to understand, then, how the dissolution
that the literary text comes to reveal takes place, based on a decentered language, the only one
capable of revealing what escapes the legislation of words, penetrating the places of silence
where trends meet. Untimely events produce disturbances that, before they can be designated,
are transmuted into something new, when the pathetic moment is experienced in the world as
an event.
Keywords: Language, silence, literature, subject, meaning,
1
Doutorando em filosofia pela FLUP - Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre pela
mesma instituição. Pesquisador do Aesthetics, Politics and Knowledge do Instituto de Filosofia da
Universidade do Porto e membro do GT Deleuze e Guattari da Anpof. E-mail: petrus166@gmail.com
Artigo publicado em acesso aberto sob a licença Creative Commons Attribuition 4.0 International Licence.
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INTRODUÇÃO
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XIX conviveu com grandes romances de autores como Melville (1819 – 1891), Flaubert
(1821 – 1880), Dostoievski (1821 – 1881) e Zola (1840 – 1902), nos quais se vê dissolvido
qualquer fundamento de onde se possa apoiar para representar o mundo, apontando um
vazio essencial da elisão da linguagem pelo desaparecimento necessário daquilo que a
funda.
É justamente nesse ambiente que surge a obra de Franz Kafka (1883 – 1924), um
escritor tcheco de ascendência judaica que escrevia em alemão. A modernidade
presente em suas narrativas se caracteriza, como bem descreveram Gilles Deleuze e
Felix Guattari em Kafka: Por uma literatura menor (1975), a partir de uma função
minorizante que faz surgir uma língua outra no interior de uma língua nativa. Deste modo
sua obra possibilita que se chegue a lugares onde os significantes de uma língua maior
são incapazes de atingir, liberando intensidades a-significantes. Kafka instaura dentro da
maioridade da língua alemã um uso menor, deslocando a escrita no interior da própria
língua, produzindo expressões intraduzíveis a partir do momento que a língua se cala ou
se silencia
1 LINGUAGEM E SILÊNCIO
Num conto de 1917 intitulado O silêncio das sereias, Kafka irá explorar esse
momento pathico da sensação a partir de uma releitura da experiência de Ulisses. No
livro XII da Odisseia (VIII a.C), Homero descreve o encontro de Ulisses com as sereias
a partir da estratégia do herói grego de evitar ser seduzido pelo seu canto, que fez
amarrar-se ao mastro do navio para não perecer face o encanto daquelas vozes, sem
evitar, no entanto, de ouvi-las.
Segundo a narrativa de Homero, as sereias eram tipo demônios marinhos que
atraíam com sua música os marinheiros que passavam pela vizinhança. Os navios se
aproximavam de forma perigosa das costas rochosas até afundar, sendo os corpos dos
marinheiros mortos por elas devorados. O canto das sereias trazia uma promessa de
gozo da qual nenhum homem podia fugir, sendo irresistível aos ouvidos mortais. Embora
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prometessem prazer, o seu fim era desespero e destruição. No relato da Odisseia, Ulisses
tapa o ouvido dos seus marinheiros com cera para evitar que eles ouçam o canto sedutor
das sereias enquanto remam, mas ele mesmo mantém os ouvidos destapados, embora
tenha se feito amarrar ao mastro do navio para evitar que o canto o levasse à destruição.
E o que as sereias cantam? A sedução do seu canto não advém apenas da melodia das
suas vozes.
Vem até nós, famoso Odisseu, glória maior dos Aqueus! Retém a nau, para
que nos possas ouvir! Pois nunca por nós passou nenhum homem de sua
escura nau que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas; depois
de se deleitar, prossegue caminho, mais sabedor. Pois nós sabemos todas as
coisas que na ampla Troia Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos
deuses; e sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil (HOMERO,
2018, p. 396).
Seu canto carregava um conteúdo que era capaz de tornar os seus ouvintes mais
sabedores das coisas ao seu redor e a partir daí seduzi-los ao ponto de fazê-los chegar
cada vez mais perto, levando os navios a se chocar contra os corais e os tripulantes a
sucumbirem nas profundezas dos mares. Por isso Ulisses não tapou os ouvidos, pois
queria ouvir esse canto cheio de mistério e perscrutar seu significado e promessa de
conhecimento. Blanchot descreveu o canto das sereias como aquilo que atrai a um lugar
que desaparece; um abismo que atrai e seduz através do desejo pelo nada, momento em
que o desejo leva a um local que se desdobra, se abre infinitamente, sempre sem
chegada, que encanta e convida à desaparição.
As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia,
que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes
e a verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos,
que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em
direção àquele espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o
enganavam, portanto, levavam-no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido
o objetivo, o que acontecia? O que era esse lugar? Era aquele onde só se podia
desaparecer, porque a música, naquela região de fonte e origem, tinha
também desaparecido, mais completamente do que em qualquer outro lugar
do mundo; mar onde, com orelhas tapadas, soçobravam os vivos e onde as
Sereias, como prova de sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas
mesmas. (BLANCHOT, 2005, p. 3).
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formas vivas e inanimadas, uma vez que é aquilo que forma o mundo. Sem ela
estaríamos a mercê daquela voz murmurante que desarranja a vida e de sua mudez que
encanta e ameaça a continuidade da viagem.
Garantido pela força das cordas, Ulisses sobreviveu ao encanto e se pôs a falar,
mas sua fala é apenas uma narrativa sobre as coisas, perdendo o encantamento e a
dimensão imemorial do canto que ouviu sem nele produzir seus efeitos. A experiência
de Ulisses traz com ela o princípio da linguagem humana, uma vez que, para que algo
seja nomeado, é necessário que esse algo seja posto de lado, já que apenas se tornará
presente através da palavra que passa a ser sua negação. Diferente da fala humana, o
canto das sereias é o lugar do desaparecimento, um lugar inalcançável a se afastar
infinitamente nas profundezas do silêncio.
As sereias habitam os lugares do silêncio e ir ao encontro do seu canto tem a ver
com ir ao encontro de uma ausência que traz a presença de um marulhar ao fundo, ruído
que nos põe diante do desconhecido e de sua presença ausente. A relação do silêncio
com o canto revela uma dimensão sonora que se destaca do significante, silêncio pleno
do tumulto ruidoso que se abstém à palavra e do seu significado. O som do canto não é
um suporte para as palavras, mas a origem do encantamento que faz cessar a razão de
quem o ouve e enfeitiça. O sonoro seria, assim, um efeito da dimensão que captura a
atenção dos marinheiros à medida que age como um suporte sensível que imprime em
seus sentidos o abismo que seduz e atrai.
Desfazer-se do sonoro requer que se ative uma outra interface sensível que possa
manter o encantamento e a sedução causados pelas sereias. É com isso que iremos nos
deparar no Silêncio das sereias de Kafka. No conto, Kafka subverte a narrativa de
Homero, uma vez que nele Ulisses não só se faz amarrar ao mastro do navio, mas tapa
os ouvidos com cera para não ouvir as sereias em seu canto. Ao perceber a astúcia do
herói, as sereias silenciam e não cantam mais. Contudo, Ulisses não se apercebe desse
silêncio e acredita que elas ainda estão cantando, não se dando conta da ausência da
linguagem.
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necessidade de não ouvir o canto das sereias, enquanto elas experimentam a liberdade
entre cantar ou silenciar.
No conto de Kafka, a ingenuidade de um ato que surge da necessidade de não
ouvir o (en) canto das sereias é responsável por salvar o herói grego, uma vez que o
canto das sereias, segundo o autor moderno, seria capaz de a tudo penetrar. “Ulisses,
porém, não pensou nisso, embora tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou
plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao
encontro das sereias levando seus pequenos recursos” (KAFKA, 2002, p. 104). As
sereias, entretanto, no exercício de sua liberdade, optaram pelo silêncio, que só não foi
fatal para o herói porque ele não o escutou, presumindo que cantavam e que não as
podia escutar por conta da cera nos ouvidos.
O silêncio das sereias diz respeito a uma ausência ou impossibilidade de
significação e está relacionado ao vazio que se esconde por detrás de cada palavra não
pronunciada. Ele é capaz de seduzir do mesmo modo que o seu canto, de modo que se
torna uma arma mais terrível. Se o canto atrai ao vazio do abismo, o silêncio manifesta
este vazio diretamente. Ulisses só escapou do encantamento por não ser capaz de ouvir
o vazio, mantendo o mundo com seus objetos familiares e domesticados aos seus
sentidos. O silêncio dissolve as identidades das coisas e manifesta o inaudível do qual
ele escapa. O silêncio ameaça os significados da linguagem e a atribuição de sentido que
o signo propicia. A palavra captura o pensamento e impõe a ordem que requer
obediência e submissão, ao ponto de ela continuar ressoando ao ser interrompida
momentaneamente por uma surdez que mantém o seu alcance. O silêncio suprime a
palavra e a substitui por uma absoluta ausência que absorve os sentidos e os abre a
novos registros das coisas.
Ulisses escapa do (en) canto das sereias e do seu silêncio, isto porque estava
amarrado à sua crença nos significados das palavras que viria a reproduzir em sua
narrativa. Palavra desencantada por um lado, mas pressupostamente não ouvida por
outro, ocupam o lugar das coisas e de seu encantamento sensível. A civilização ocidental
deve o seu caráter essencialmente verbal da tradição greco-judaica responsável pela
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Se quisermos escutar o silêncio das sereias, nos pondo ao lado das coisas que
preexistem a qualquer significado, obrigamo-nos a encontrar um outro sentido para a
linguagem, retirando-nos o privilégio que nos separa das demais coisas vivas e
inanimadas. O silêncio captura o mundo por outro registro perceptivo, como palco onde
misturam-se animais, vegetais, microrganismos, partículas e toda uma galáxia a atualizar
o esforço pelo qual cada coisa afirma o seu ser. Fora do espaço de significação linguística
as coisas aparecem, somem e levam consigo em cada encontro uma memória sem
registros que dura na exata dimensão da tendência manifesta e que se esvai deixando-
se levar até a luz pelo esquecimento, sem estabelecer o limite a partir do qual se
delinearia como um significado.
Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade
de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos
impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com
os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã.
Choveu, com lentidão poderosa (BORGES, 1999, p. 10)
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Hugo Friedrich, ao descrever a lírica moderna, ressaltava esse vazio como o lugar
de circulação de forças como vibrações superpostas ao significado, que não comunicam
absolutamente nada e que estão situadas além do limite do compreensível. “No início
do ato poético há uma nota insistente e prévia à linguagem dotada de significado: algo
como uma entonação sem forma” (FRIEDRICH, 1978, p. 51). Seria em vão qualquer
tentativa de interpretá-la em seu vibrar neutro com sua intensidade indeterminável que
se lança ao desconhecido, o faz falar e “em substituição ao desconhecido invisível –
converte o real em um desconhecido sensivelmente excitado e excitante, removendo os
limites de suas figuras” (FRIEDRICH, 1978, p. 80).
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constitui seu próprio espaço como exterior do qual fala” (FOUCAULT, 1990, p. 31).
Perde-se, assim, o vínculo gramatical que representa o sujeito que fala, abrindo-se um
espaço neutro onde nenhuma existência pode arraigar-se.
Para Foucault, o ser da linguagem na literatura moderna é a visível desaparição
daquele que fala, abrindo a linguagem para sua própria ausência, no anonimato de um
rumor informe e fluido, transparência de um “falo” que instala sua própria desaparição.
Ao menos precisamente, que o vazio em que se manifesta a exiguidade sem
conteúdo do falo não seja uma abertura absoluta por onde a linguagem possa
propagar-se no infinito, enquanto o sujeito – o eu que fala – se fragmenta, se
esparrama e se dispersa até desaparecer neste espaço vazio” (FOUCAULT,
1990, p. 13).
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que ressoa a sua voz nesta zona de indiscernibilidade a qual faz Agamben exultar:
“Alcançar essa zona impessoal de indiferença, na qual desaparecem cada nome próprio,
cada direito autoral e cada pretensão de originalidade é algo que me enche de alegria”
(AGAMBEN, 2018, p. 43).
A literatura, nessa perspectiva, só se faz possível a partir da dissolução de todo
traço subjetivo que pretenda prender a linguagem a uma rede de significações que
forneça referências e direcione o texto. Há de se reivindicar a autonomia do texto
literário através do silêncio, como o apagamento de qualquer sujeito que faça do ato de
fala a expressão intencional de seus significados prévios. Tal ausência efetiva-se na
escritura quando esta torna-se impessoal, assumindo uma interdição para as instâncias
subjetivas daquele que fala. O sujeito da fala se apaga e a escritura assume o seu
primado. Esta elisão das intenções subjetivas em Barthes surge como a destruição de
toda voz que possa representar uma origem. Para ele, a escritura assume sua
materialidade a partir do desfazimento das instâncias subjetivas ao se produzir, quando
“a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”
(BARTHES, 2014, p 58). Põe-se, então, a linguagem no lugar do falante e faz-se a falar,
suprime-se o autor em proveito da escritura. Escrever não é mais uma operação de
registro, de verificação ou representação, mas é um ato performativo onde “a
enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela
se profere” (BARTHES, 2014, p. 61). A escritura torna-se, então um tecido de signos que
abre uma fenda em qualquer individualidade particular, fazendo o sentido se deslocar,
tornando-se esquivo, incerto e impreciso. A linguagem se cala e os seres nela falam,
momento em que a fala dissimula a linguagem a partir de uma potência que libera novos
e insólitos sentidos das palavras. “Uma palavra que não denomina nada, que não
representa nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem mesmo é uma palavra
e que desaparece maravilhosamente, por inteiro e de imediato, em seu uso”
(BLANCHOT, 1987, p. 33). Essa dissolução coincide com a dissolução do sujeito
moderno e, ao invés de tornar o pensamento e a literatura inviáveis, afirmam o seu
próprio ser, que não se sustenta no fundamento de um cogito ou na interioridade de um
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eu que fala, mas num silêncio como abertura para a multiplicação das sensações de um
momento pathico não representativo do discurso literário a partir da experiência nua da
linguagem.
Esse espaço neutro é o que caracteriza nos nossos dias a ficção ocidental (e
esta é a razão por que já não é nem uma mitologia nem uma retórica). Sendo
assim, aquilo que faz com que seja tão necessário pensar esta ficção – quando
antigamente o que se tratava era de pensar a verdade – é que o ‘falo’ funciona
como ao revés do ‘penso’. Este conduzia com efeito à certeza indubitável do
Eu e de sua existência; aquele, pelo contrário, afasta, dispersa, apaga esta
existência e não conserva dela mais do que sua citação vazia. O pensamento
do pensamento, toda uma tradição mais antiga, todavia do que a filosofia nos
ensinou que nos conduzia à interiorização mais profunda. A palavra da
palavra nos conduz pela literatura, mas talvez também por outros caminhos,
a esse exterior de onde desaparece o sujeito do qual se fala. Sem dúvida é por
esta razão pela qual a reflexão ocidental não se decidiu durante tanto tempo
em pensar o ser da linguagem: como se pressentira o perigo que faria correr
a evidência do ‘existo’ a experiência nua da linguagem (FOUCAULT, 1990, p.
15).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É a partir do silêncio que a literatura irá revelar o ser da linguagem que não se
confunde com qualquer tipo de representação que remeta a um sujeito ou a um objeto,
pois nela ambos são elididos em prol das tendências que se insinuam nesse espaço vazio.
Se pretendemos fazer silenciar as palavras que significam as coisas e partir em busca
das tendências que elas insinuam como meio de sua aparição e esvanecimento, temos
de reorientar as faculdades responsáveis por situar e sustentar a consciência do sujeito
que conhece e representa o mundo. Havemos de penetrar num abismo como Orfeu
penetrou no Hades em busca de Eurídice, ou como Teseu o fez no labirinto da grande
fera. Porém, após penetrarmos nesse espaço, o próximo passo é evitar cumprir os
acordos constituídos antes dessa descida, o que não garante o retorno para o “mundo
dos vivos”, uma vez que sem os suportes dos pactos da consciência transformamos o
espaço em um lugar movediço onde não se pode lançar mão dos “fios” de Ariadne ou
das “luzes” dos registros que constituem a base da subjetividade do Eu e, e onde repousa
o sujeito que percebe, lembra e fala. Seria como que um exercício de “esquecimento”
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que lança o sujeito longe de sua identidade e dos significados que o permitem dizer a si
e ao mundo, no silêncio da palavra impronunciável que produz apenas murmúrios.
A fala organizada na estrutura significante da língua deve ceder espaço aos ruídos
de um marulhar sempre ao fundo do silêncio das sereias. Porém, diferentemente de
Ulisses, não se deve estar amarrado ao mastro do navio, nem com cera aos ouvidos,
mas sim deixar-se encantar pelas vozes que não param de balbuciar um canto que só se
ouve no silêncio entre os batimentos do coração do sujeito. Se as palavras são signos
com os quais o sujeito representa o mundo sobre o qual tem consciência, parece
impossível utilizar esses signos sem que estes já apontem os significados arquivados na
memória e que vêm à tona a cada olhar que o sujeito lança sobre a realidade. Se ao dizer
a realidade na qual se encontra imersa a consciência já carrega os significados da língua,
teríamos de buscar formas de expressão não vinculadas às formas estruturadas da
linguagem, onde os signos estivessem esvaziados dos seus sentidos originais, na
brancura onde se rompem as relações entre significantes e significados. Brancura que
faz parte do esquecimento, que se afasta da consciência, que vem se localizar longe da
abstração e onde os signos não mais evocam lembranças que afirmam um Eu
determinado, mas são aptos a emular sensações que se mantêm no exterior da
linguagem e que vêm compor o seu ser.
REFERÊNCIAS
MACHADO, C. H
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Recebido: 21/09/2023
Aprovado: 24/11/2023