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— Eles vão atacar amanhã — Cassius disse, passando o telescópio para Lisandra.

— Estranho. Parecem poucos, não acha? — ela disse, enquanto observava as


criaturas que se preparavam para atravessar o rio Etanhará.
— É bom, vai dar menos trabalho. — A sineta da torre tocou sozinha. — Melhor hora
do dia! Te espero no refeitório. — Cassius disse, pendurando-se pela janela da torre e
escorregando por vinte metros de parede até o chão.
— Exibido! — Lisandra disse e olhou novamente pelas lentes antes de descer as
escadas espirais. Alguma coisa a incomodava. É só mais uma invasão de rotina, ninguém
vai morrer.
Quando chegou ao refeitório, Cassius já estava sentado em uma mesa, com seu
prato cheio de cuscuz e carne de Tatu. Ele era um homem alto, de pele negra retinta. O
rosto liso de barba sempre feita, cabelos ruivos dourados rentes à cabeça. Seus olhos
zombeteiros acompanharam Lisandra conforme ela marchava pelo refeitório, com seus
cabelos curtos e negros, sua pele morena, seus lábios grossos escondendo metade de
um sorriso.
— Cassius pegou sua parte da carne — o servente disse, entregando-lhe um prato
com apenas cuscuz e salada.
— Eu vou furar seu olho! — Ela gritou através do salão, gerando risos e cabeças
balançando em desaprovação. Todos já foram alvos das idiotices de Cassius pelo menos
uma vez. Ela se sentou em frente ao seu amigo, garfando um pedaço do tatu.
— Ei Lisandra, eu sou maior, preciso comer mais! — A mulher tentou lançar um olhar
furioso, mas o combinou com um sorriso, falhando em sua tentativa de intimidação. Ela
mexia a perna nervosamente enquanto comia.
— E essa perna aí?
— E se dessa vez eles fizerem algo diferente?
Cassius descansou o garfo e entortou um pouco a cabeça, antes de responder:
— Que viagem é essa, Lis?
— Não sei.
— O que pode ser diferente? Surgir um novo primordial da razão? Faz décadas
desde que o último apareceu.
— Sim, eu sei! — E ela também sabia que, sem um primordial da razão, os outros
não conseguiam inventar novas formas de agir. — Mas não é estranho eles virem em um
número menor? Isso não é diferente?
— Vai ver eles estão acabando. Vai ver estão desesperados. — Cassius respondeu,
completamente despreocupado. — Lis, faz sete anos que enfrentamos primordiais aqui na
fronteira. Por que essa insegurança agora?
Como ele disse, é o de sempre.
Cassius colocou sua mão sobre a de Lisandra, que a puxou para si, dizendo:
— Não.
— Tá, eu sei, não encosta, desculpa. — Ele encheu a boca de rúcula e disse: —
Não sei o que deu em você.
— Esquece. É só um sentimento, Cassius. Só besteira minha. — Só isso. Nada
mais.

***
Cassius chegou por último, como sempre, na reunião do conselho do forte. A tensão
quase se materializou quando ele fechou a porta. Havia outras três pessoas ali. Lisandra,
líder das sacerdotisas de Taos, batendo uma caneta na mesa. À sua esquerda estava
Érico, líder dos templários de Arkas, um homem careca, pele clara, barba loira,
sobrancelhas sempre franzidas, brincos de ouro em formato de Sol sempre reluzentes. À
sua direita, Talita, líder dos mundanos, alta, gorda, forte, pele escura queimada do campo
e calejada da luta.
— Atrasado. — Talita disse. — Vocês magos não tem mesmo nenhum critério pra
escolher seus líderes.
— Boa tarde pra você também, Talita. Pelo seu bom humor a noite deve ter sido
intensa. — Cassius respondeu, sentando de frente com Lisandra.
— Cala a boca.
— Vamos ao que interessa — a sacerdotisa disse. — Cadê a merda dos templários,
Érico?
— Prezada Lisandra, vamos manter a calma. — Ele falou, cruzando os dedos sobre
a mesa. — Eles estarão aqui em tempo. Há uma questão de última importância que
nossos soldados estão atendendo. Você verá, antes do sol nascer, o aeronavio pousará
no pátio.
— De qualquer forma — Cassius interrompeu —, não precisamos de templários. Os
primordiais irão usar a mesma estratégia de sempre. Vai ser até bom, talvez o conselho
decida que os Arkanistas são inúteis e aumentem o salário dos Defensores.
— Não é hora pra piadas! — Lisandra disse. — Tem meia centena de primordiais se
acumulando do lado de lá do Etanhará. Se houver algum imprevisto, vocês magos vão
estar seguros voando em seu aeronavio, são as tropas de chão que vão se arriscar. —
Talita concordou veementemente.
— Tá bom, Lis, eu luto no chão contigo. — A sacerdotisa apenas bufou ao ouvir isso.
— Não alteremos nossos ânimos — Érico disse. — É apenas uma invasão de rotina.
Pela manhã os templários estarão aqui, e seguiremos a mesma tática de sempre, não há
porquê nos preocupar.
— E se não estiverem? — Lisandra perguntou. Todos deram de ombros. Ela
balançou a cabeça, furiosa e se retirou da sala.
Mais tarde, Cassius bateu à porta do quarto de Lisandra, de banho tomado e com
uma garrafa de pinga com melado embaixo do braço. Ela entreabriu-a e disse:
— Não Cassius, hoje não. — fechando a porta em seguida.
***
Treze magos subiram à bordo do aeronavio. O décimo quarto juntou-se às tropas de
chão. Ele carregava um machado de lâmina dupla e vestia um peitoral de couro
encantado.
— Ei, Lis, estou às suas ordens hoje. — Ele disse, aproximando-se da comandante.
Lisandra usava uma cota de malha e carregava uma lança metálica, o caule de uma rosa
subia pelo cabo até a ponta, pintada como um botão afiado. Cassius sussurrou, ao passar
do seu lado — inclusive à noite, depois que isso acabar.
— Tome sua posição junto às balistas. Hoje você não vai ter a moleza de sobrevoar
o campo de batalha.
— Hah! Você não tem a menor ideia do que significa paralisar uma centena de
primordiais. Essa história de líder é um saco, eu tô é com saudades de brandir meu
machado, feito o brutamontes que eu sou. — Como o maninho dizia. — Cadê o Érico?
— Fugiu. — a sacerdotisa respondeu, amarga. — Com a desculpa de descobrir o
que aconteceu com o aeronavio dos templários. Isso não tá cheirando bem, Cassius.
— Relaxa — ele disse, fez menção de tocar o ombro de Lisandra, mas desviou a
mão, fingindo se alongar.
O aeronavio levantou voo. Parecia-se com um navio marítimo, mas a parte inferior
do casco era reta, com oito patas aparadoras de aterrissagem. Não içavam a vela para
voos curtos de baixa altitude. Os portões do forte se abriram e a infantaria aguardou até
as criaturas chegarem ao alcance das balistas.
Os primordiais da destruição tinham troncos humanos colados em corpos de lagarto,
com seis patas compridas e fortes, arrastando uma cauda pesada atrás de si, cobertos de
escamas vermelhas. Deviam ter uns dois metros de altura e três de comprimento, quatro,
com a cauda. Carregavam picaretas enquanto marchavam em direção ao forte. São
maiores do que eu lembrava. Heh, isso vai ser divertido.

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