Você está na página 1de 8

RELATO DE EXPERIÊNCIA / REPORT OF EXPERIENCE / RELATO DE EXPERIMENTO

O impacto das sequelas sensório-motoras na autonomia e


independência dos pacientes pós-AVE
The impact of sensorial-motor sequels in the autonomy and independence of patients
affected by Cerebrovascular Accidents (CVA)
El impacto de las secuelas sensorio-motoras en la autonomía y la independencia de
pacientes afectados por Accidentes Cerebrovasculares (ACV)

Debora Sanchez Pedrolo*


Carina Tárzia Kakihara**
Margarida Maria de Almeida***

RESUMO: O Acidente Vascular Encefálico (AVE) é a segunda causa de mortes no mundo e uma das maiores causas de sequelas perma-
nentes, em escala correspondente à gravidade da lesão. O objetivo deste trabalho foi avaliar, sob a perspectiva do paciente pós-AVE,
o impacto das sequelas em sua autonomia e independência funcional. É um estudo qualitativo, com entrevistas semiestruturadas de 4
sujeitos, de ambos os sexos, entre 44 e 71 anos. Os dados foram analisados pela técnica de análise de conteúdo temático e emergiram
em quatro categorias: o socorro imediato e o tratamento hospitalar; o impacto das sequelas na autonomia e independência; o modo de
encarar as limitações; e o papel da fisioterapia na reabilitação. As limitações impostas pelas sequelas interferem nas atividades cotidianas,
porém não são impeditivas, graças às adaptações desenvolvidas.
PALAVRAS-CHAVE: Acidente Vascular Encefálico. Qualidade de Vida. Reabilitação.
ABSTRACT: Cerebrovascular Accidents (CVA) is the second cause of deaths in the world and one of the most common permanent causes
of sequels, in a scale corresponding to the gravity of the injury. The aim of this work was to evaluate, under the perspective of the
after-CVA patients, the impact of sequels in their autonomy and functional independence. It is a qualitative study, with semistructured
interviews of 4 subjects, both male and female, with ages from 44 to 71 years. Data were analyzed by the technique of thematic content
analysis and lead to the emergence of four categories: immediate help and hospital treatment; the impact of sequels in the autonomy
and independence; ways to face the limitations; and the role of physiotherapy in rehabilitation. The limitations sequels cause interfere
in daily activities, although they are not impeditive, thanks to the adaptations developed.
KEYWORDS: Stroke. Quality of Life. Rehabilitation.
RESUMEN: Los Accidentes Cerebrovasculares (ACV) son la segunda causa de muertes en el mundo y una de las causas permanentes mas
comunes de secuelas, en una escala que corresponde a la gravedad de lesión. La meta de este trabajo fue evaluar, bajo la perspectiva
de pacientes post-ACV, el impacto de secuelas en su autonomía e independencia funcional. Es un estudio cualitativo, con entrevistas
semiestructuradas de 4 sujetos, hombres y mujeres, con edades desde 44 hacia 71 años. Los datos fueran analizados de promedio la
técnica del análisis del contenido temático y hicieran emerger cuatro categorías: ayuda inmediata y tratamiento hospitalario; el im-
pacto de secuelas en la autonomía y la independencia; maneras de hacer frente a las limitaciones; y el papel de la fisioterapia en la
rehabilitación. Las limitaciones causadas por las secuelas interfieren en las actividades diarias, aunque no sean impeditivas, gracias a
las adaptaciones desarrolladas.
PALABRAS-LLAVE: Accidente Cerebrovascular (CVA). Calidad de Vida. Rehabilitación.

* Fisioterapeuta. Mestre pelo Centro Universitário São Camilo, São Paulo. Professora de Neurologia da Universidade Paulista – UNIP, São Paulo, Brasil. E-mail:
deborapedrolo@uol.com.br
** Fisioterapeuta. Mestre pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Professora da Universidade Paulista – UNIP, São Paulo, Brasil. E-mail:
carinatk@yahoo.com.br
*** Graduada em Fisioterapia na Universidade Paulista – UNIP, São Paulo, Brasil. E-mail: margo.almeida@hotmail.com

O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466. 459


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

Introdução é o tempo entre o início do AVEi A maioria dos trabalhos utili-


(Acidente Vascular Encefálico Is- za como metodologia as técnicas
O Acidente Vascular Encefálico
quêmico) e o início do tratamen- quantitativas, que dimensionam
(AVE) é a segunda causa de mortes
to8,9. Essa janela terapêutica foi os comprometimentos, mas não a
no mundo1. A epidemiologia ain-
expandida para até 4,5 horas3. significação que tais sequelas pro-
da é controversa, porém o acesso
O impacto que o AVE causa vocam na vida das pessoas. Atual-
às informações cada vez mais tem
na vida dos pacientes e familiares mente, as pesquisas qualitativas
se democratizado, sobretudo pe-
imenso, uma vez que a patologia estão ganhando relevância na área
lo formato “online”. Sendo assim,
é complexa, haja vista a varieda- da saúde, já que a percepção do pa-
a Organização Mundial da Saúde
de das sequelas, entre elas: moto- ciente é mais bem caracterizada e
(OMS) criou o STEPS (Enfoque
ras, sensitivas, cognitivas, visuais, mensurada, dada a proximidade
passo a passo para vigilância de
emocionais, comportamentais, com o entrevistado, pois permite
Acidente Vascular Encefálico), um
entre outras10. “Saúde”, segundo a observação comportamental,
sistema internacional padronizado
a OMS, não se restringe à ausên- conduzindo à essência da ques-
para vigilância, coleta e análise de
cia de doença, mas engloba a per- tão14,15,16,17.
dados, disponibilizado em Portu-
guês pela Organização Pan-Ame- cepção individual de um completo
ricana da Saúde2. bem-estar físico, mental e social. Objetivo
O AVE é considerado uma Diante dessa subjetividade, surgiu
Conhecer como foi o aten-
urgência neurológica, e seu re- o conceito de Qualidade de Vida
dimento inicial, o tratamento, a
conhecimento precoce por parte (QV), que é definido pela OMS
reabilitação, as dificuldades e as
do paciente ou familiar, para o como: “a percepção do indivíduo
expectativas de QV, sob a percep-
imediato transporte a um local de sua posição na vida no contexto
ção individual desses pacientes, foi
apropriado para investigação e da cultura e sistema de valores nos
tratamento, é fundamental para o objeto de estudo deste trabalho,
quais ele vive e em relação aos seus
a redução das sequelas3,4,5. Nesse por meio de uma abordagem qua-
objetivos, expectativas, padrões e
contexto, a OMS tem estabelecido litativa. A grande incidência da pa-
preocupações”1. A partir dessas
diretrizes com ênfase no atendi- tologia, os avanços tecnológicos e
definições, surgiu uma infinida- científicos, que aumentam a longe-
mento inicial a partir da concepção de de instrumentos de avaliação
das unidades de AVE1,5. No Brasil, vidade dos pacientes crônicos, são
de QV; existem os questionários razões para o estudo do impacto
segundo o Ministério da Saúde, genéricos e os específicos a várias
estão sendo criadas as UPAs (Uni- das sequelas sensório-motoras na
patologias, entre elas o AVE11. Ao qualidade de vida, na autonomia
dades de Pronto Atendimento), acessar o site da Biblioteca Virtual
que integram a Política Nacional e independência funcional dos pa-
de Saúde (BVS) e utilizar “quali- cientes pós-AVE.
de Atenção às Urgências do Minis-
dade de vida” como descritor para
tério da Saúde e oferecem atendi-
pesquisa, observou-se como resul-
mento de emergência de baixa e Metodologia
tado 121.119 pesquisas, e dessas
média complexidade 24 horas por
por assunto, “Acidente Vascular Trata-se de um estudo quali-
dia6. A telemedicina é tida como
Cerebral”, foram encontrados tativo de caráter prospectivo, com
alternativa para os locais onde não
apresentam tais unidades, e reco- 1.025 trabalhos12. uma amostra de 4 (quatro) sujeitos
menda-se o contato prévio com O questionário SF-36 da OMS que sofreram AVE e estavam no es-
o hospital para onde o paciente é um instrumento genérico com tágio crônico da doença, de ambos
será encaminhado3. O AVE era 36 itens englobados em oito com- os sexos e na faixa etária de 44 a 71
tido como uma patologia sem tra- ponentes: capacidade funcional, anos. Todos assinaram o Termo de
tamento, sendo que a severidade aspectos físicos, dor, estado geral Consentimento Livre e Esclareci-
dos déficits e a extensão da recu- de saúde, vitalidade, aspectos so- do, e o projeto foi aprovado pelo
peração funcional eram determi- ciais, aspectos emocionais e saúde Comitê de Ética da Universidade
nadas pela lesão7. Novas estratégias mental. Nas pesquisas de QV de Paulista – UNIP, sob o No. CAAE –
de tratamento têm surgido e uma pacientes pós-AVE, esse questio- 03380251000-09.
delas, a trombólise, tem sido eficaz nário tem sido prevalente e os re- Todos os sete pacientes com
para aumentar as chances de re- sultados apontam a tendência de sequelas de AVE que faziam reabi-
cuperação funcional, tanto quanto uma pior QV, comparado àqueles litação fisioterapêutica na Clínica
for menor a janela terapêutica, que que não sofreram a patologia11,13. Escola da Universidade Paulista

460 O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466.


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

– UNIP – Campus Pompeia, São leira de Doenças Cerebrovascula- o hospital. Foi dado diagnóstico de
Paulo (SP), no mês de outubro de res (SBDCV) sintetizou que o AVE labirintite, fui medicado, não fiquei
2009, foram incluídos neste es- deve ser considerado uma urgência internado, voltei para casa e fiquei
tudo. neurológica, sendo que a investiga- pior. Não fizeram exame, nada (...).
Foi excluído um paciente com ção deve ser feita principalmente
Presumiu-se que a TC não foi
déficit de linguagem, pela impossi- por Tomografia Computadorizada
realizada imediatamente, como
bilidade de sua participação direta, (TC) e a trombólise deve ser a te-
preconizado pela literatura, exceto
um paciente que possuía menos de rapia de primeira escolha4. As uni-
no segundo AVE dos sujeitos 1 e
40 anos, por estar fora da faixa etá- dades especializadas, preconizadas 3, evidenciando-se, ainda, que um
ria estudada, e outro paciente que pela OMS, são um espaço físico sujeito foi encaminhado a outro
estava na fase aguda da patologia, destinado especialmente para o hospital para realização do referido
visando uma conformação homo- tratamento de AVE e têm sido um exame de imagem, o que permite
gênea da amostra. meio altamente eficaz para redu- se supor a falta de equipamentos
Utilizou-se como instrumento ção da letalidade e das sequelas3,4,5. de diagnóstico em muitos hospitais
uma entrevista semiestruturada A terapia da trombólise, dentro de brasileiros:
(Anexo A), com doze perguntas protocolos específicos, é unanimi-
abertas, que permitiram aos parti- dade e tida no meio científico como (...) às 18 horas estava melhor, me
deram alta. No outro dia, como não
cipantes expressarem espontanea- um recurso eficiente na prevenção tinha melhorado procurei outro hos-
mente suas experiências dentro do de incapacidades e no aumento pital (2º), fiquei internada. No dia
foco proposto. As entrevistas foram das chances de recuperação fun- seguinte, fui transferida para outro
realizadas pelo mesmo pesquisa- cional8,9. O tempo para início do hospital (3º) para fazer TC (...).
dor, com a presença dos acompa- tratamento, isto é, o tempo porta-
Outro aspecto que se inferiu foi
nhantes dos pacientes, porém sem -agulha e o tempo porta-tomo-
a insatisfação e descrença dos viti-
a participação direta deles. Para grafia, faz parte do protocolo dos
mados com a maioria dos atendi-
maior fidedignidade, os relatos fo- centros especializados e é um refe-
mentos nos hospitais, não só pelos
ram gravados por um gravador de rencial de qualidade do atendimen-
relatos a seguir, mas também pelas
voz, marca Power pack®. A transcri- to dessas unidades9. Recentemente,
expressões faciais, tom de voz, pau-
ção foi realizada pelo mesmo entre- a janela terapêutica para a terapia
sas e emoções expressas. Sabe-se
vistador, e, para maior proteção aos de trombólise foi expandida para
que o evento de sofrer um AVE é
pacientes, foram retirados os vícios até 4,5 horas3. Diante dessas reco-
um fenômeno complexo, que fra-
de linguagem. mendações e protocolos, observou-
giliza os pacientes e familiares, e es-
-se a precariedade do atendimento
sas ocorrências estressantes podem
Resultados e discussão do sujeito 1:
dificultar e agravar a situação:
(...) o 1º AVC aconteceu na área
PInicialmente, analisaram-se rural, eu morava no interior da (...) mandou-me embora, arrumou
os dados de cada um dos sujeitos; Bahia, não tinha hospital, fui leva- uns remédios, e só (...);
do para o posto de saúde, não havia (...) voltei para casa, era labirin-
em um segundo momento, foi fei- tite, medicaram-me, não fizeram
ta uma análise na qual os dados de recursos. Fiquei desacordado de 2ª
até 5ª feira. Quando acordei, o en- exames, nada... Pensei, isso não
todos os participantes foram cru- está certo, caí de novo, não vi mais
fermeiro disse: o primeiro quadro
zados, buscando pontos comuns e você recuperou, que foi voltar do nada. Minha mulher levou-me
diferenças. Pela análise temática, coma... Mandou-me embora, deu para hospital e disse: enquanto não
foram levantadas quatro catego- uns remédios e só. Disse: se perder os descobrir o que ele tem, não sairei
movimentos tem que procurar uma daqui (...);
rias, que exprimiram a estrutura
(...) eu estava melhorzinha, me de-
do fenômeno “sofrer um AVE” e cidade com mais recursos (...).
ram alta (...).
conviver com as sequelas sensório- Outro fato, constatado pela fa-
-motoras. Pelos relatos dos pacientes,
la do sujeito 2, é a possibilidade do
confirmou-se o que os estudos
diagnóstico do AVE ser confundido
Primeira categoria: o socorro apontam: há poucos centros es-
com outras desordens, já que cer-
imediato e tratamento hospitalar pecializados no Brasil para aten-
tos sinais clínicos podem também
dimento de pacientes com AVE8,9.
ocorrer em outras patologias7:
O Primeiro Consenso Bra- Aliada a essa carência, outro com-
sileiro do tratamento da fase (...) Tinha muita dor de cabeça, plicador constatado pela literatura
aguda do AVE da Sociedade Brasi- caí, minha esposa levou-me para é a necessidade de treinamento e

O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466. 461


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

atualização para a maioria dos pro- tica da marcha parética. Esses estu- é muito frequente, porém, pouco
fissionais da área da saúde18. dos, enfim, mostram as alterações diagnosticada25.
da marcha, com adoção de padrões Assim como observado na li-
Segunda categoria: o impacto das cinemáticos anormais, que surgem teratura, a maioria dos pacientes
sequelas na autonomia e inde- para não sobrecarregar o membro (81%) que sofreram um AVE é
pendência afetado e, portanto, melhorar essa independente para realização das
capacidade funcional22,23. Neste es- AVD’s26; três dos participantes afir-
A habilidade para realizar ati- tudo, visivelmente pela presença maram realizar sozinhos os hábitos
vidades de forma independente da hemiparesia, a marcha foi afe- de higiene. Apesar do sentimento
em casa, no trabalho e na comu- tada em todos os sujeitos. de independência, evidenciou-se
nidade depende de três funções: Pelos relatos, inicialmente a fa- que houve impacto substancial na
física, psicológica e social19. A fun- la foi comprometida em todos os realização das AVD’s, na vida dos
ção física engloba aspectos inter- sujeitos, mas hoje todos se comu- sujeitos e familiares, e que muitas
-relacionados, que são: equilíbrio, nicam razoavelmente. Apenas o adaptações foram feitas no ambien-
desempenho muscular, flexibili- sujeito 2 possui maiores limitações te físico para minorar as dificulda-
dade, coordenação, estabilidade e de linguagem, porém se comunica. des geradas pelas limitações das
resistência física, e os sistemas que Com relação a essa disfunção, um sequelas. Como constatado em ou-
controlam esses aspectos desenvol- estudo ressaltou que o instrumen- tros trabalhos, o sucesso nas adap-
vem adaptações em função das so- to SAQQL-39, para o qual as infor- tações às demandas impostas pelo
brecargas impostas a eles19. A OMS mações são prestadas diretamente AVE é um indicador relevante para
criou a Classificação Internacional pelos pacientes com dificuldades de o estado de bem-estar subjetivo27.
de Funcionalidade, Incapacidade linguagem ou cognição, tem sido Esse contexto mostra que o AVE é
e Saúde (CIF), mas ainda falta a uma escala viável mesmo para es- uma patologia crônica que acome-
definição objetiva de “deficiência”
ses pacientes, possibilitando, assim, te não apenas o paciente, mas toda
e “incapacidade”, o que tem sido
a explicitação de suas próprias difi- a família, surgindo, assim, a figura
apontado como um empecilho
culdades24. do “cuidador”, definida como um
para promoção de saúde às pessoas
Destaca-se a disponibilidade e fenômeno complexo e singular que
com limitações20.
receptividade de todos os sujeitos implica sentimentos de felicidade,
A literatura enumera vários
e familiares, demonstrando mui- medo, revolta, ansiedade e sobre-
déficits gerados por um AVE, entre
to interesse em discorrerem sobre carga de tarefas28:
eles: marcha, equilíbrio, coordena-
suas dificuldades, mesmo o sujei-
ção, habilidade motora fina, visão,
to 2 com relativa dificuldade de (...) Para tomar banho, me adaptei,
linguagem, comportamental e de-
comunicação. Outro aspecto que quando caio no banheiro tem uma
pressão, os quais também foram moça (ex-namorada) que mora do
observados neste trabalho10. se inferiu foi que a própria família
subavalia a capacidade do paciente lado da minha casa, bato na parede
Um estudo italiano, feito em e ela vem me ajudar. Moro sozinho,
2010 e publicado no European em relatar diretamente sua histó- lavar uma panela de pressão, cortar
Journal of Physical and Rehabilita- ria. Constatou-se esse fato com o carne, essa parte é ela que faz (...);
tion Medicine, envolvendo 528 pa- sujeito 3, já que inicialmente seu (...) Tomo banho sozinho, faço tudo
cientes de AVE, em 18 centros de filho disse que ele não conseguiria sozinho, graças a Deus. Faço minha
participar diretamente, pois não se higiene, estou aprendendo a falar
reabilitação, sugere que o déficit (...);
motor dos membros superiores lembraria dos detalhes; entretan-
(...) Na minha casa tem uma esca-
tem um impacto decisivo na qua- to, para sua surpresa, ele discorreu da, me traziam e me levavam na
lidade de vida, já que os membros ininterruptamente sobre o seu pro- cadeira, aquela confusão! Meu ma-
superiores são fundamentais para cesso de sofrer um AVE. rido falou: vou fazer um elevador.
a realização das atividades de vida Quanto à habilidade moto- Agora já desço e subo de elevador,
ra fina da mão para escrita, todos melhorou um pouco. Para ir ao
diária (AVD’s)21. A marcha tem si-
conseguiram assinar o termo livre banheiro, vou com o andador, meu
do objeto de muitos estudos, já que marido fez uma bacia adaptada.
a locomoção é fundamental para a e esclarecido, mesmo com alguma Para tomar banho, minha filha
independência do ser humano22,23. dificuldade, exceto o sujeito 3, o põe na cadeira, tomo banho do jeito
Em um deles, é estabelecido uma qual foi necessário o filho assinar. que posso depois ela me veste (...).
comparação entre a marcha nor- Somente o sujeito 4, segundo a
mal e a de pacientes hemiparéticos; filha, tem depressão, o que coinci- Um fato relatado por todos e
em outro, há uma análise cinemá- de com a literatura, que diz que ela constatado por uma revisão de

462 O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466.


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

2006 é que as sequelas interferem (...) É aquele negócio, ninguém gos- ve ocorrer simultaneamente, o que
não somente no modo de reali- ta de sofrer um AVE, mas, quando pode, inclusive, reduzir o tempo de
zação das atividades básicas, mas sofre, tem duas opções, viver do jeito internação7,29. Até mesmo no está-
que Deus quer ou se matar e nin-
também impedem o retorno à ati- guém vai querer se matar [risadas]. gio crônico, a fisioterapia tem sido
vidade laboral, o que gera grandes Então, estou encarando numa boa, eficaz. Um estudo retrospectivo
frustrações e declínio no bem-estar entendeu? (...); com 109 pacientes, a maioria crô-
subjetivo, dada a sua importância (...) Eu encaro assim: antigamente nicos, revelou que quanto maior o
para o status e relações sociais27: era muito revoltado, por quê? Por tempo de permanência nos servi-
quê? Um monte de porquês? Agora
não, faço tudo para dar certo. A vida ços de reabilitação, tanto mais há
(...) É! Eu era uma pessoa ativa, ganhos funcionais e melhora nos
trabalhava no restaurante, não me não é ruim, mesmo para as pessoas
adaptei em ficar sem contato com a que tiveram um derrame. Não de- déficits30. Conforme a Associação
população (...); sistir nunca, ter força de vontade, de Assistência a Crianças Deficien-
(...) Sabe, eu queria trabalhar, ser dar um passo por dia, ir em frente, tes (AACD), renomada instituição
gente normal. Eu trabalhava no acreditar, acreditar (...); de reabilitação na cidade de São
comércio e com fotografia (...); (...) Eu sinto que é terrível, mas tem
que aceitar o que Deus quer. Só de Paulo, os pacientes iniciam o tra-
(...) Minha casa é um pouquinho tamento tardiamente, com várias
ter ficado em coma 5 dias, e de re-
grande, eu fazia todo serviço, hoje pente comecei a falar, a comer. Te-
olho e não posso fazer, fico triste, alterações secundárias, na maioria
nho que agradecer a Deus, pedir a das vezes desorientados e desinfor-
né? (...); Santa Misericórdia que interceda e
(...) Fazia tudo antes, fazia comida, mados com relação ao quadro e ao
que me cure completamente (...);
lavava roupa, depois saía [risadas]. (...) Eu encaro assim: para mim, prognóstico10. Os efeitos positivos
não era para acontecer, privou-me da fisioterapia já consubstanciado
Outra constatação consoante de muita coisa. É! Eu tenho força de na literatura foram reiterados por
com a literatura é que houve subs- vontade, né? Mas a gente fica depri- todos os sujeitos:
tancial melhora após a fase aguda, mida, fica pensando, não posso fazer
isso, aquilo (...). (...) A coordenação motora melhora
em função da resolução natural do bastante, andar certinho, tropeçar
processo patológico do AVE, com o Diante desses sentimentos dos menos. Dá resultado, fiquei dois
retorno de algumas funções rever- entrevistados, é importante consi- anos na fila, tá dando certo (...);
síveis, graças à neuroplasticidade, derar o que foi constatado em uma (...) Ah! a fisioterapia é muito
que possibilita a reorganização es- revisão de 2006 em que se analisou importante. É bom, se não fosse a
trutural e funcional do encéfalo7. fisioterapia, a gente não fazia os
o bem-estar subjetivo e o senso de movimentos, vegetava (...);
ajustamento psicológico de indiví- (...) Acho muito bom (...);
Terceira categoria: o modo de en- duos que sofreram AVE: o conheci- (...) Eu acho que é coisa boa. Ah!
carar as limitações mento das implicações psicológicas tem hora que a gente diz: que é coi-
de sofrer um AVE beneficia os pa- sa boba, mas vai ajudar muito a
Abaixo, os relatos mostram cientes e todos que direta ou indi- gente, né? Eu estou gostando, estou
animada. Já fiz fisioterapia outras
que o sujeito 1 se posiciona positi- retamente gerenciam o evento27. vezes, para coluna, eu sei que não é
vamente e busca a superação dia a em vão. É bom, fisioterapia é muito
dia; o sujeito 2, com mais sequelas, Quarta categoria: o papel da fisio- bom (...).
passou inicialmente por um perío- terapia na reabilitação
do de revolta, mas hoje, resignado Com relação a esse último rela-
e confiante, enfrenta bravamente No processo de reabilitação fi- to, a aluna estagiária de fisioterapia
as incapacidades; o sujeito 3, “que sioterapêutica, são necessárias a que realiza o atendimento informou
acha que está muito ruim”, mas compreensão do processo de inca- que a reabilitação está focada na
por ter tido uma melhora substan- pacitação, a abordagem abrangente obtenção de movimentos finos da
cial diante do prognóstico inicial, ao paciente por meio da avaliação, mão, preensão e pinça. Pela fala do
por possuir um amplo suporte fa- diagnóstico e intervenções apro- paciente, confirma-se a importância
miliar e fé, sente-se encorajado e priadas que culminam em resulta- de traçar um plano de tratamento
busca mais e mais melhorias; por dos funcionais significativos sob a com a definição de objetivos signifi-
outro lado, o sujeito 4 mostra-se ótica do paciente19. A reabilitação cativos e funcionalmente relevantes
desanimado frente às limitações – deve ser parte integrante do aten- para o paciente e, sobretudo, a ne-
inclusive, o seu relato, de forma ge- dimento, deve ser iniciada na fase cessidade da explicação do motivo
ral, foi muito frio e objetivo, o que aguda e continuar a partir de então, da realização de certas intervenções,
se presume estar relacionado a sua pois, apesar do tratamento médico favorecendo, assim, sua adesão ao
suposta depressão. ser o foco inicial, a fisioterapia de- processo de reabilitação19.

O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466. 463


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

Conclusão e uma força interior grandiosa, que, gação dos sinais e sintomas, assim
considerações finais somados à fé, tornam os pacientes como a importância do acionamen-
resignados e esperançosos. Por essa to rápido do serviço de emergência.
As limitações impostas pelas se- perspectiva, os pacientes avaliam a Dada a vastidão territorial brasileira
quelas pós-AVE, sobretudo as sen- perda da independência e autono- e diante das poucas unidades exis-
sório-motoras, sob a percepção dos
mia funcional em relação aos es- tentes, seria importante a criação
pacientes, interferem no modo de
tágios iniciais, quando as sequelas de mais unidades especializadas em
realização das atividades cotidianas,
provocadas pelo AVE eram mais in- AVE, e uma alternativa viável para
porém não são impeditivas, já que
tensas. Diante dessa nova condição, os centros menores seria o uso da
os pacientes e cuidadores desenvol-
vem adaptações para superação dos passam a priorizar outros valores; a telemedicina.
obstáculos. Contudo, o não retorno mensuração de QV passa a ser nem Enfim, futuros estudos qualitati-
às atividades laborais gera um gran- melhor nem pior, mas apenas di- vos devem ser realizados, inclusive
de impacto na qualidade de suas ferente e, assim, passam a se sentir de coorte entre a fase aguda e crô-
vidas. vitoriosos e independentes. nica, e os aspectos valorados pelos
Outro fato a destacar é que a Diante da complexidade da pesquisados devem servir de base
recuperação funcional obtida pe- ocorrência de um AVE e da ne- às ações dos governos, dos profis-
la reorganização neurológica da cessidade do pronto atendimento, sionais de saúde, dos cuidadores e
doença, após o estágio inicial, aliada salienta-se que uma estratégia pos- familiares, para que os portadores
aos efeitos positivos da fisioterapia, sível seria a utilização dos meios de de sequelas pós-AVE tenham uma
provoca sentimentos expressos por comunicação em massa para divul- melhor qualidade de vida.

REFERÊNCIAS

1. Organização Mundial da Saúde (OMS). Doenças crônicas e promoção de saúde [acessado 10 Abr 2011]. Disponível em:
http://www.who.int/chp/steps/stroke/en/index.html
2. Organização Pan-Americana de Saúde. Método passo a passo da OMS para vigilância de AVE (STEPS-Stroke) [acessado 10 Abr
2011]. Disponível em: http://www.paho.org/Portuguese/AD/DPC/NC/steps-stroke.htm
3. Nitrini R, Rabello GD, Fortini I, Calderaro M. Condutas em neurologia: clínica neurológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
São Paulo: CBBE; 2009.
4. Sociedade Brasileira de Doenças Cerebrovasculares (SBDCV). Primeiro consenso Brasileiro do tratamento da fase aguda do Aci-
dente Vascular Cerebral. Arq Neuropsiquiatria. 2001;59(4):972-80.
5. Organized inpatient (stroke unit) care for stroke. Cochrane Stroke Groupe [acessado 10 Abr 2011]. Disponível em:
http://onlinelibrary.wiley.com/o/cochrane/clsysrev/articles/CD000197/frame.html
6. Brasil. Ministério da Saúde. O que é UPA 24 horas? [acessado 10 Abr 2011]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/
saude/area.cfm?id_area=1465
7. Delisa JA, Gans BM, Bockenek WL, Currie DM, Geiringer SR, Gerber LH, et al. Tratado de Medicina de Reabilitação: princípios e
prática. São Paulo: Manole; 2002.
8. Oliveira Filho J. Trombólise no Acidente Vascular Cerebral Isquêmico: uma mudança conceitual. Rev Neurociências.
2005;13(2):100-4.
9. Martins SC, Brondani R, Friedrich M, Araújo MD, Wartchow A, Passos P, et al. Quatro anos de experiência no tratamento trom-
bolítico do AVC Isquêmico na cidade de Porto Alegre. Rev Neurociências. 2006;14(1):31-6.
10. Borges D, Moura EW, Lima E, Campos-Silva PA. AACD. Fisioterapia: aspectos clínicos e práticos da reabilitação. São Paulo: Artes
Médicas; 2007.
11. Mota JF, Nicolato R. Qualidade de vida em sobreviventes de AVC: instrumentos de avaliação e seus resultados. J Bras Psiquiatr.
2008;57(2):148-56.
12. Biblioteca Virtual de Saúde. [acessado 10 Abr 2011]. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/regional/?q=qualidade%20
de%20vida&where=ALL&index=&lang=pt&_charset_=iso-8859-1
13. Cesário CM, Penasso P, Oliveira AP. Impacto da disfunção motora na qualidade de vida em pacientes com AVE. Rev Neuroci-
ências. 2006;14(1):6-9.

464 O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466.


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

14. Turato ER. Métodos Qualitativos e Quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde
Pública. 2005;39(3):507-14.
15. Lopes ALM, Fracolli LA. Revisão sistemática de literatura e metassíntese qualitativa: Considerações sobre sua aplicação na pesquisa
em enfermagem. Texto Contexto Enfermagem. 2008;17(4):771-8.
16. Minayo MC. O desafio do conhecimento – Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.
17. Campolina AG, Ciconelli RM. Qualidade de Vida e medidas de utilidade: parâmetros clínicos para as tomadas de decisão em
saúde. Rev Panan Salud Publica (Pan Am) Public Health. 2006;19(2):128-35.
18. Neves PP, Fontes SV, Fukujima MM, Matas SL, Prado GF. Profissionais da saúde, que assistem pacientes com Acidente Vascular
Cerebral, necessitam de informação especializada. Rev Neurociências. 2004;12(4):173-81.
19. Kisner C, Colby LA. Exercícios Terapêuticos: Fundamentos e Técnicas. São Paulo: Manole; 2005.
20. Nubila HBV, Buchala CM. O papel das Classificações da OMS – CID e CIF nas definições de deficiência e incapacidade. Rev Bras
Epidemiol. 2008;11(2):324-35.
21. Franceschini M, Porta FLA, Agosti M, Massucci M. Is health-related-quality of life of stroke patients influenced by neurological
impairments at one year after skoke? Eur J Phys Rehabil Med. 2010 Apr 13.
22. Ottoboni C, Fontes SV, Fukujima MM. Estudo comparativo entre marcha normal e a de pacientes hemiparéticos por AVE: as-
pectos biomecânicos. Rev Neurociências. 2002;10(1):10-6.
23. Iwabe C, Diz MA, Barudy DP. Análise cinemática da marcha em indivíduos com Acidente Vascular Encefálico. Rev Neurociên-
cias. 2008;16(4):292-6.
24. Ribeiro C. Avaliação da qualidade de vida em pacientes afásicos com protocolo específico SAQOL-39 [dissertação]. São Paulo:
USP; 2008. (Mestrado em Ciências)
25. Terroni LMN, et al. Revisão: Depressão pós-AVC – aspectos psicológicos, neuropsicológicos, eixo HHA, correlato neuroanatômico
e tratamento. Rev Psiq Clin. 2009;36(3):100-8.
26. Polese JC, Tonial A, Jung FK, Mazuco R, Oliveira SG, Schuster RC. Avaliação da funcionalidade de indivíduos acometidos por
Acidente Cerebral Encefálico. Rev Neurociências. 2008;16(3):175-8.
27. Rabelo DF, Néri AL. Bem-estar subjetivo e senso de ajustamento psicológico em idosos que sofreram AVC: uma revisão. Estud
Psicol. 2006;11(2):169-77.
28. Mendonça FF, Garanhani ML, MartinsVL. Cuidador Familiar de Sequelados de AVC: Significado e Implicações. Physis Rev Saúde
Coletiva. 2008;18(1):143-58.
29. Motta E, Natalio MA, Waltrick PT. Intervenção fisioterapêutica e tempo de internação em pacientes com AVE. Rev Neurociências.
2008;16(2):118-23.
30. Rodrigues JE, Sá MS, Alouche SR. Perfil dos pacientes acometidos por AVE tratados na clínica escola de fisioterapia da UMESP.
Rev Neurociências. 2004;12(3):117-22.

ANEXO A - ENTREVISTA

Nome_______________________________________ Idade________Data_________

1) Quando foi o AVE?

2) Como ocorreu?

3) Como foi o socorro?

4) Como foi durante o tempo de internação? Ficou na UTI? Tempo de Internação?

5) Como foi o retorno pra casa? Adaptação a sua nova condição?

6) Quais as suas maiores dificuldades no dia a dia?

7) Como você encara a doença? O que mudou em sua vida após o AVE?

O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466. 465


O IMPACTO DAS SEQUELAS SENSÓRIO-MOTORAS NA AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DOS PACIENTES PÓS-AVE

8) Hoje, além de saúde, o que é mais importante pra você?

9) O que as pessoas envolvidas com o tratamento/cuidados poderiam fazer para facilitar/melhorar a sua vida?

10) O que você acha da Fisioterapia?

11) Qual sua expectativa em relação ao futuro?

12) Gostaria de fazer alguma considerações final?

Recebido em 5 de julho de 2011


Versão atualizada 1 de agosto de 2011
Aprovado em 23 de agosto de 2011

466 O MUNDO DA SAÚDE, São Paulo: 2011;35(4):459-466.

Você também pode gostar