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Jules Michelet de História do Arquivo Nacional, e uma nova ocupação como professor
na Sorbonne. A experiência direta com arquivos e documentos lhe seria
Lilia Moritz Schwarcz fundamental. Michelet, sem ser um historiador do tipo que no século XIX
seria conhecido como evenementiel, foi sempre um aficionado pelos docu-
mentos básicos e primários, e os introduziu fartamente em suas obras.
“A primeira obrigação de qualquer historiador é recusar seus falsos deuses.” Assim, com a estabilidade que a nova situação profissional lhe propi-
J. Michelet ciava, Michelet começaria a trabalhar em sua obra mais importante, His-
toire de France; projeto grandioso em que o pesquisador se propunha a
recuperar o destino e o desenvolvimento da França como nação autônoma.
Michelet era, então, um jovem de 30 anos e precisaria de mais 30 para
completar a imensa tarefa.
No entanto, nesse meio-tempo, e como a empreitada era de fato longa,
o historiador não deixaria de produzir outras obras como: Oeuvres choisies
de Vico, Mémoires de Luther écrits par lui-même, e Origines du droit française.
Ainda no ano de 1838 ele foi nomeado como professor no Collège de Fran-
ce; lugar em que ocupou a cadeira de história e ética. O ano de 1839 ficaria
Jules Michelet nasceu na cidade de Paris, em agosto de 1798, no seio de
conhecido como o da publicação de Histoire romaine; obra que já traria cer-
uma família de huguenotes. Seu pai, um impressor e republicano convicto,
to renome a nosso autor. Por sua vez, reunindo uma série de conferências,
segundo reza a bibliografia, reconhecendo o talento de Jules, e a despeito das
Michelet publicaria outros dois volumes: Le prêtre, la femme, et la famille
dificuldades financeiras do momento, o inscreveu numa escola da região, in-
(1843), e Le peuple (1846). Em Le peuple, Michelet analisa as qualidades
vestindo na sua formação. Já em 1821 o filho era contratado como professor
e o que chama de “espírito da classe trabalhadora francesa”, evidenciando
de história, seguindo, de alguma maneira, as premonições do pai.
perspectivas que singularizariam sua própria historiografia: a atenção às
Durante os anos de 1825 e 1827 Michelet produziu um bom número
contribuições culturais das classes populares. Nesse livro ainda, investia na
de ensaios sobre história moderna, nomeadamente a francesa. Em 1831
discussão acerca dos problemas que adviriam das transformações ocasio-
publicaria Introdução à história universal, obra que anunciava seu perfil de
nadas pela industrialização e pela modernização. O historiador abordava,
alguma maneira visionário. O livro indicava, de maneira precoce, uma ca-
dessa maneira, problemas políticos, econômicos e sociais espinhosos para
racterística particular da historiografia que marcaria toda a obra de Miche-
a época, tendo por base as transformações motivadas pela passagem da
let, que, muito avant la lettre, nunca se deixou levar pelo “imperialismo
agricultura para a industrialização, não só na França, como na Europa. O
dos fatos” e, ao contrário, sempre deu vazão à análise das crenças e rituais
volume — que vendeu uma edição inteira no mesmo ano de sua publica-
populares. Já neste contexto o historiador sinalizava, pois, para seu viés
ção, e foi logo vertido para o inglês — apresentava o povo como fonte de
antirracionalista, próximo do modelo de Vico, que já havia defendido a
progresso e entendia estar concentrado nele o espírito perdido de Joana
relevância do uso da imaginação diante da análise fria e distante.
D’arc: “a nobreza da própria humanidade”.
Após os eventos de 1930, que deram início à monarquia de Luís Filipe
Por outro lado, é preciso dizer que Michelet entendia a si próprio
de Orleáns, Michelet — então reconhecido como anticlerical mas também
como um defensor dileto do povo, e por isso viu e interpretou com apre-
como um historiador patriota e liberal, identificado com a República fran-
ensão os acontecimentos de 1848. O historiador, que se recusou a aliar-se
cesa — foi alçado a uma posição mais elevada: obteve um posto na seção
à Segunda República de Luís Napoleão, teve suas conferências no Collège

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de France suspensas, em 1851, assim como perdeu a posição que detinha Até o final da vida Michelet entendeu-se como um liberal que de-
junto ao Arquivo Nacional. fendia o convívio entre as classes sociais (e não o seu desaparecimento) e
Não obstante, longe dos seus afazeres diários e profissionais, Mi- acreditava no caráter infalível do povo, bem como de sua sabedoria. Ata-
chelet parece ter aproveitado o período para concentrar-se em completar cado por historiadores marxistas, por causa de sua fé na reconciliação das
seu projeto mais grandioso. Tanto que, em 1867, seus 19 volumes de classes, o historiador seria relido pelos fundadores dos Annales, e em espe-
Histoire de France estavam terminados, e o resultado seria, de fato, devas- cial por Lucien Febvre, que o considerou uma grande inspiração para uma
tador. Michelet foi talvez o primeiro historiador a fazer um relato forte “história total”, para uma “história das mentalidades”, em tudo oposta a
e emocional sobre uma nação. Seu objetivo era concluir uma espécie de um modelo fatual. Há também, na obra de Michelet, uma aposta na longue
biografia da França, mais do que a história de um personagem ou outro. durée. Do seu relato fazem parte eventos políticos, acontecimentos econô-
Se hoje em dia muitos críticos encontram erros e enganos nos fatos cole-
micos e sociais, mas também a cultura de uma época, com suas lendas, ri-
tados, e principalmente nos juízos do historiador, não há quem deixe de
tuais e tradições. Aí estaria, portanto, mais do que uma narrativa previsível;
mencionar a obra; tanto quando se reflete acerca da França, como quan-
uma história feita de rupturas, sim, mas também de continuidades, dadas
do o tema concentra-se em método e metodologia da história. Além do
mais, se aos olhos de hoje os livros consagrados à Idade Média são con- pelo idioma que marca cada nação, e cujo grande intérprete, na visão de
siderados os mais acabados e aqueles que apresentam maior domínio da Michelet, seria o próprio povo com suas crenças e costumes.
documentação; o relato candente sobre a França da Revolução representa
um testemunho pujante de um contexto em que todos entendiam estar Do método e do espírito: “Liberdade é liberdade”
“fazendo e vivendo história”. Por isso mesmo, o resultado não poderia ser
diferente ou mostrar-se menos passional. A feitura dessa obra — como certa feita disse Roland Barthes — coin-
O texto de Michelet é marcado por um forte anticlericalismo, pela cide com a própria vida de Michelet. A tarefa que fora iniciada em 1833
crítica feroz à nobreza assim como às instituições monárquicas. Por outro só é terminada em 1867, e o historiador morre em 1874. Dessa maneira,
lado, o grande personagem que emerge de suas páginas é o povo francês, pode-se dizer, sem medo de errar, que a “história” de Michelet coincide
entendido como sábio, fiel e generoso, nas mais diferentes situações em com a História da França que o historiador empenhara-se tanto em reali-
que se viu envolvido. zar. Mas nessa grande saga, longe dos heróis ou dos bandidos, dos reis ou
Também é bastante fácil perceber como a nova República, que se se- dos nobres, o grande figurante é a nação francesa e seu povo. O povo e o
guiu à queda de Napoleão III, não seria bem-vista, mais uma vez, por camponês franceses surgem na cena política e cultural nacional, para não
Michelet. Afinal, ele não receberia, novamente, seu cargo de professor no perderem mais seus lugares, e a Revolução é ela própria vivida como um
Collège de France, assim como seria obrigado a se manter afastado de seus caso de amor. Não a revolução do terror, ou das ditaduras, consideradas
demais afazeres. O historiador morreria em Hyères, em fevereiro de 1874, desvios enganosos. Mas a Revolução que anunciava a igualdade e a fra-
ressentido com os rumos da Revolução que acreditava ter sido, de algum ternidade, e que efetivamente convulsionou o mundo ocidental. Aí está a
modo, traída pelos eventos que a sucederam. interpretação romântica desse autor que definitivamente conferiu ao povo
não só a sensibilidade, mas a generosidade e a sagacidade dos grandes
agentes históricos.

Michelet, que viveria, então, entre a França e a Itália, é também considerado o inventor do
termo Renaissance, o qual foi empregado nas obras de 1855-1858, significando a descoberta A História da Revolução Francesa foi escrita em volumes separados,
do mundo pelo homem, no século XVI. O historiador Jakob Burckhardt, no seu The civilization que ganharam um tom mais elevado, próprio daquele que testemunha e
of the Renaissance in Italy (1860), ampliou a concepção de Michelet. Para ele o Renascimento
estaria localizado na Itália de Giotto e Michelangelo, e representava a época de nascimento da
procura pouco arbitrar; a despeito de não conseguir se afastar, totalmente,
modernidade. da tentação. Michelet era um escritor ligeiro e se começou a tarefa em 26

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de setembro de 1846, considerou-a encerrada já a 10 de fevereiro de 1847. das questões metodológicas que presidiram a feitura da obra, mas também
Foram quatro tomos, logo colocados à venda e com grande sucesso do esmiúçam o argumento que a orquestrou. É a partir do povo, da “crença
público leitor. Republicano por definição e coração, o historiador logo se popular” e da “tradição oral” que Michelet afina seu método, clamando
tornou uma espécie de escriba do evento; uma testemunha que observa- para que se “ampliem as investigações”. Seria preciso ouvir, segundo o
va de lugar especial e com a ajuda dos documentos dos arquivos em que historiador, não só “operários, mas mulheres, pessoas em idade, em sexo
trabalhara. e condições diversas”. Ao invés do rei e da rainha, de Voltaire e Rousseau,
O texto que se segue apareceria originalmente, e na versão corrigida agora seria a vez de dar voz a “todos os habitantes dos campos, e à maioria
de 1869, no começo do livro III e constitui uma importante profissão de das cidades”.
fé no ofício do historiador e em seus métodos. É sobre ela que passamos Michelet se opõe, dessa forma, à recusa sistemática a introduzir a
a nos debruçar, sem esquecer, porém, das anotações presentes em alguns crença do povo nas interpretações históricas. De maneira veemente, afir-
prefácios da obra, que ajudam a entender melhor a perspectiva de Miche- ma, mais de uma vez, que é nos axiomas e provérbios do povo que estaria
let, e suas lições como intérprete e memorialista de seu tempo, mas para concentrada a sua experiência e “verdade”. Não estaria presente nos “sá-
além dele. Neles o historiador recupera o que diz ser o “espírito da Revo- bios” a vivência de Dante, de Shakespeare ou mesmo de Lutero, mas no
lução”, quando a França teria ganhado “consciência de si mesma”, tal qual povo que habitava as ruas das cidades e as plantações do campo. Em suas
um “clarão”. É com tal espírito, inundado pelo romantismo de época, que palavras: “essa é a primeira missão da história: redescobrir por meio das
Michelet menciona a noção de “alma” e saúda a chegada de “uma época de pessoas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional”.
liberdade”. É também com esse mesmo espírito que lamenta os descami- Transcrever “as lições do povo”, no tempo e no país, esse, sim, seria
nhos da Revolução, que seriam “a adoração da força”, e a perda da tradição; um olhar “da França sobre a França”: “eis o que nos pede a França, a nós,
que “escapou-lhe e esqueceu-se de si mesma”. Para se opor ao Terror o historiadores: não que façamos a história — ela está feita nos seus pontos
historiador, já no prefácio de 1847, investe contra o mote da “fraternidade essenciais, moralmente, os grandes resultados estão inscritos na consciên-
ou morte”, mostrando que a verdadeira Revolução fora aquela em que a cia do povo —, mas que restabeleçamos a cadeia de fatos, das ideias de
multidão lutou pela liberdade, pela “constante troca de luzes”. onde saíram esses resultados”. A missão a que se destinava o historiador
Mesmo no prefácio de 1868 o tema volta, já tendo o fantasma dos não seria, pois, adivinhar, julgar ou formar crenças. “O historiador não é
críticos a censurá-lo. Mais uma vez, Michelet defende seu trabalho nos Deus”, afirma Michelet, não tem poderes ilimitados. Ele é antes um “copia-
arquivos, primeiro em Paris e depois em Nantes, e procura se escudar das dor” privilegiado, e o “futuro dele copiará exemplos”.
críticas, destacando seu perfil como pesquisador; era nos documentos que E Michelet fez mais: denunciou o anacronismo presente na prática
buscava certezas da história, e não nas veleidades dos homens. de todo historiador — “que julga seu tempo e depois será julgado” — e
Mas o tempo é mesmo um bardo dos mais habilidosos, e o historia- mostrou como “a história é o tempo” e como não há maneira de “ler todos
dor, por mais que quisesse, não deixava escapar as suas simpatias. Seria o os pensamentos de hoje no passado”. Segundo ele, se a história trata pri-
início da Revolução — essa “época santa”, sem distinção de partidos ou vilegiadamente do “específico” e do que caracteriza cada época, deve ficar
classes, marcada pela “bandeira fraterna” e cujo ator era o povo — o mo- atenta “às grandes questões que são sempre eternas” e repousam além das
mento selecionado por Michelet, talvez o maior admirador e propagandista conjunturas do momento. História não é tarefa que se “adivinha”, ou que é
dos momentos iniciais da Revolução popular, cidadã e das ruas, que ele feita “às pressas”, com teorias prévias. O trabalho do historiador é realiza-
próprio teve ocasião de presenciar e celebrar. do a partir do cotejo de documentos, e de nada adianta, ironiza Michelet,
Fica quase evidente, assim, afirmar que as preciosas páginas chama- colar “na frente, atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm
das “Do método e do espírito deste livro” por certo se destinam a tratar nenhuma relação”. Muito antes da era e das facilidades do computador,

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Michelet faz de sua profissão de fé um clamor pela seriedade da labuta do historiador que se inscreve em seu tempo; atua de maneira quase militante;
historiador, que seria feita de “forma paciente” e atenta aos documentos e que pensa a revolução e se propõe a avalizá-la. Nesse sentido, o trecho que
impasses de época. se segue é mais atual do que nunca.
E sua grande novidade estava justamente em não dividir, mas conci-
liar: aliar os novos dados da Revolução com os da tradição; a ciência po-
pular à ciência que entrava nos laboratórios. Metódico, Michelet enumera Prefácio de 1868 (História da
nessas páginas seus grandes trunfos: o verdadeiro e forte espírito francês Revolução Francesa)
que estaria no povo — nas fábulas, lendas, contos e na “poesia popular de
todas as eras, formas e espécies”. Por fim, como se estivesse redigindo um [...] Uma palavra sobre como se fez este livro. Ele nasceu no seio dos
libelo romântico, o historiador defende a ideia positiva de justiça, por con- Arquivos. Escrevi-o por seis anos (1845-1850) nesse depósito central onde
traposição à noção negativa de salvação, a qual, segundo ele, sempre levou eu era chefe da seção histórica. Depois do 2 de dezembro, precisei ainda
à ruína e à morte. É esse espírito que ilumina o pensador que se apresenta, de dois anos, e terminei-o nos arquivos de Nantes, bem perto da Vendeia,
ao mesmo tempo, como historiador e escriba daquele que julga ser um de onde explorei também as preciosas coleções.
novo espírito, o alvorecer de uma nova filosofia dos povos. Armado das próprias atas, das peças originais e manuscritas, pude
É possível dizer que Michelet “foi homem de seu tempo”. Há quem julgar os impressos, e sobretudo as memórias que são defesas, por vezes
afirme que o historiador se posicionou demais, ou que omitiu quando engenhosos pastiches (por exemplo, os que Roche fez para Levasseur).
quis. Críticos mostraram falhas na sua cronologia, ou mesmo lacunas em Avaliei dia a dia Le Moniteur, muito seguido pelos senhores Thiers,
seus relatos. Por certo, as reprimendas são muitas e partem de vários lados Lamartine e Louis Blanc.
e ângulos, com certeza comprováveis. Não há, porém, como negar a Mi- Desde a origem, ele é arranjado e corrigido a cada noite pelos podero-
chelet o que é de Michelet. Foi ele o autor das páginas mais inflamadas da sos do dia. Antes do 2 de setembro, a Gironda o altera, e no 6, a Comuna.
história da Revolução e ao mesmo tempo o mais cético e o mais crédulo Assim como em toda grande crise. As atas manuscritas das assembleias
dos seus seguidores. Cético, pois duvidou do seu devir e da França, que ilustram tudo isso, desmentem Le Moniteur e seus copistas, a Histoire par-
não cumpriu com aquele que ele imaginou, crédulo, quando apostou que a lementaire e outras, que muitas vezes estropiam ainda mais esse Moniteur
verdadeira Revolução é aquela liderada pelo povo e que carrega a bandeira já estropiado.
da liberdade. Uma raríssima vantagem que talvez nenhum arquivo do mundo apre-
Em tempos de tanta descrença, essas páginas de Michelet funcionam sentasse no mesmo grau que eu encontrava nos nossos, para cada aconte-
quase como antídoto. Nada melhor do que acabar essa breve introdução cimento capital, relatos muito diversos e inúmeros detalhes que se comple-
recorrendo a nosso intérprete. Foi no prefácio de 1847 que o historiador tam e se verificam.
confessou: “esses são os dias mais sagrados do mundo, dias bem-aventura- Para as federações, tive relatos às centenas, vindos de outras tantas
dos para a história. Quanto a mim, tive minha recompensa, pois os relatei cidades e aldeias (arquivos centrais). Para as grandes tragédias da Paris
[...]”. Feliz por ter assumido a liderança no relato, Michelet é eloquente ao
descrever os dias que teve o privilégio de viver e desfrutar. No entanto, é no 
Michelet, 1989.
prefácio de 1868, já na mira dos críticos, que ele faz não tanto sua profissão 
Trata-se de dezembro de 1851, data do golpe de Luís Bonaparte, então presidente da Repúbli-
de fé, mas sua verdadeira confissão de fé: “este relato, eventualmente co- ca, do qual resultou — dali a um ano — ele tornar-se imperador com o nome de Napoleão III.
A repressão aos republicanos fez-se por demissões, prisões, banimentos. (N. do E.)
movido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto jamais é turvo, de modo 
Le Moniteur Universel foi o jornal oficial criado por Napoleão I e publicado pela primeira vez
nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs generalidades”. Aí está o em 1789, tendo durado até 1901. (N. do E.)

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revolucionária, o arquivo da prefeitura abria-me sua fonte para os registros entanto um raio de luz, tudo isso tocou, e um dos meus amigos, de partido
da Comuna; e a chefatura de polícia dava-me sua variedade divergente nas contrário, confessou-me que ao ler verteu lágrimas.
atas de nossas 48 seções. Nenhum desses grandes atores da revolução me deixou frio. Não vivi
Para o governo, para os Comitês de Salvação Pública e de Segurança com eles, não acompanhei cada um deles, no fundo de seu pensamento,
Geral, tinha ante os olhos tudo o que se possui de seus registros, e neles em suas transformações, como companheiro fiel? Com o tempo, eu era um
encontrei, dia por dia, a cronologia de suas atas. dos seus, um familiar desse estranho mundo. Eu me dera olhos para ver
Censuraram-me por vezes o fato de citar muito pouco. Eu teria citado entre essas sombras, e creio que elas me conheciam, viam-me só, com elas
com frequência se minhas fontes ordinárias tivessem sido peças soltas. Mas nessas galerias, nesses vastos arquivos raramente visitados. Algumas vezes
meu apoio habitual são essas grandes coleções em que tudo se segue em eu encontrava o marcador no lugar em que Chaumette ou um outro o pôs
uma ordem cronológica. Desde que dato um fato, pode-se reencontrá-lo no último dia. Tal frase, no rude registro dos cordeliers, não foi terminada,
imediatamente em sua data precisa no registro, na pasta de onde o tomei. cortada bruscamente pela morte. A poeira do tempo permanece. É bom
Portanto, precisei citar poucas vezes. Para as coisas impressas e as fontes respirá-la, ir e vir através desses papéis, desses dossiês, desses registros.
vulgares, as notas pouco úteis têm o inconveniente de cortar o relato e o Eles não estão mudos, e tudo isso não está tão morto quanto parece. Eu
fio das ideias. É uma vã ostentação crivar constantemente a página com jamais os tocava sem que certa coisa deles saísse, despertasse... É a alma.
essas referências a livros conhecidos, a brochuras de pequena importância, Na verdade, eu merecia isso. Não era autor. Estava a 100 léguas de
atraindo a atenção para isso. O que dá autoridade ao relato é sua sequência, pensar no público, no sucesso: amava, eis tudo. Ia aqui e ali, obstinado e
sua coesão, mais do que a multidão das pequenas curiosidades bibliográ- ávido; aspirava, escrevia essa alma trágica do passado. [...]
ficas.
Para certo fato capital, meu relato, idêntico às próprias atas, é tão
imutável quanto elas. Fiz mais do que extrair; copiei de próprio punho Do método e do espírito deste livro
(e sem nisso empregar ninguém) os textos dispersos e os reuni. Daí resul-
tou uma luz, uma certeza, as quais nada mudará. Que me ataquem sobre o Este volume contém duas partes, de cerca de 10 meses cada uma;
sentido dos fatos, está bem. Mas em primeiro lugar terão de reconhecer que seu centro, seu apogeu é o belo momento em que a França acreditou ver
tomam de mim os fatos que querem usar contra mim. o céu aberto, a última das federações, a grande Federação do Champ-de-
Aqueles que têm olhos e sabem ver observarão muito bem que este Mars, no 14 de julho de 1790. Assim se eleva a nossa história, cheia de
relato, eventualmente comovido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto esperança e de ímpeto, até esse sonho sublime da união dos corações e dos
jamais é turvo, de modo nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs espíritos. Depois ela desce, pelos degraus da realidade penosa, até o dia 21
generalidades. Minha própria paixão, o ardor que nele punha não se teriam de setembro de 1791, em que essa criança crédula, o povo, abandonada
contentado com isso. Buscavam, queriam o caráter próprio, a pessoa, o por seu tutor, que deserta e a trai, é enfim obrigada a ser homem, em que
indivíduo, a vida muito especial de cada ator. As personagens aqui não são
de maneira nenhuma ideias, sistemas, sombras poéticas; cada uma delas foi
trabalhada, penetrada, até encontrar o homem íntimo. Mesmo aquelas que

Os cordeliers (franciscanos), também conhecidos como Clube dos Cordeliers ou, formalmente,
Sociedade dos Amigos dos Direitos do Homem e do Cidadão, eram uma sociedade de caráter
são tratadas severamente, sob certos aspectos, ganham em ser conhecidas a populista à época da Revolução Francesa. Ganharam essa alcunha porque as reuniões do clube
esse ponto, alcançadas em sua humanidade. Não favoreci de modo algum aconteciam no mosteiro dessa ordem. (N. do E.)

Esta seção consiste numa espécie de introdução ao livro III (6 de outubro de 1789-14 de julho
Robespierre. Pois bem! o que disse de sua vida interior, do marceneiro,
de 1790), onde Michelet revela os fundamentos de sua abordagem, seu entendimento sobre o
da mansarda, do úmido patiozinho que, em sua sombria vida, colocou no conhecimento histórico, que procura rapidamente sistematizar no “Prefácio de 1868”.

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faz a primeira tentativa de um verdadeiro governo de homens: ser homem mente o fundo sobre o qual a era moderna hoje constrói. Pudemos apre-
é reger-se a si mesmo. ciar, melhor talvez do que se faz com um olhar rápido, onde está a base
As duas partes do volume, o livro III e o livro IV, são assim muito diver- sólida, onde estariam os pontos ruinosos.
sas nos temas; de um ao outro, a história muda de caráter, por uma transição A base que menos engana, estamos felizes de dizê-lo àqueles que vi-
mais rápida, menos moderada do que acontece comumente no curso das coi- rão depois de nós, é aquela de que os jovens eruditos mais desconfiam, e
sas humanas. Essa mudança não é de maneira alguma por acaso; é a própria que uma ciência perseverante acaba por descobrir tão verdadeira quanto
crise do tempo, o destino da Revolução. Portanto, dois temas e também duas forte, indestrutível: a crença popular.
cores e duas luzes: uma brilhante de esperança; a outra, intensa, concentrada Verdadeira no total, embora seja, no detalhe, carregada de ornamentos
e sombria. Tem-se a lembrança do projeto proposto por alguns cientistas legendários, estranhos à história dos fatos. A lenda é uma outra história, a
para iluminar Paris, dois faróis de luzes elétricas que, acesos sobre duas tor- história do coração do povo e de sua imaginação.
res, iluminariam, com uma meia-luz, as ruas mais escuras e mais profundas, Demos, na cena do 6 de outubro (tomo I), um notável exemplo desses
reforçando as luzes parciais, locais, de gás ou dos lampiões. Aí está meu livro. ornamentos legendários que de maneira alguma são mentiras do povo, que
Os dois faróis que iluminam suas duas faces são: as federações; os clubes, então afirma apenas o que viu com os olhos do coração.
jacobinos e cordeliers. Esses dois assuntos dominam tudo, estão representa- Afastai os ornamentos; o que resta, na crença popular, especialmente
dos em toda parte; nos capítulos em que deles parecemos afastar-nos mais, no que concerne à moralidade histórica, é profundamente justo e verda-
voltam invencivelmente; mesmo quando não aparecem, não deixam de fazer deiro.
sentir sua presença pela cor muito diversa com que tingem os objetos, alegre Não é preciso que nossa confiança em uma cultura superior, em nos-
luz de um fogo de faia, brilhante como a manhã, sombrio clarão de um fogo sas pesquisas especiais, nas descobertas sutis que acreditamos ter feito,
de hulha, cuja chama intensa, ao iluminar, aumenta a impressão da noite, faça-nos desdenhar facilmente a tradição nacional. Não é preciso que levia-
torna as trevas visíveis. namente empreendamos alterar essa tradição, criar-lhe, impor-lhe uma ou-
Para nós, alegre ou melancólico, luminoso ou escuro, o caminho da tra. Ensinai o povo em astronomia, em química, tanto melhor; mas quando
história foi simples, direto; seguíamos a estrada real (essa expressão para se trata do homem, isto é, de próprio, quando se trata de seu passado, de
nós quer dizer “popular”), sem nos deixar desviar para os atalhos tentado- moral, de coração e de honra, não receeis, homens de estudos, deixar-vos
res aonde vão os espíritos sutis: íamos na direção de uma luz que não vacila ensinar por ele.
jamais, cuja chama tanto menos nos devia faltar quanto era idêntica à que Quanto a nós, que de modo algum temos negligenciado os livros, e
trazemos em nós. Nascidos povo, íamos ao povo. que, ali onde os livros se calavam, temos buscado, encontrado recursos
Aí está quanto à intenção. Mas a reta intenção é coisa tão poderosa imensos nas fontes manuscritas, não temos deixado, em toda coisa de mo-
no homem, qualquer que seja sua fraqueza individual, que acreditamos, ralidade histórica, de consultar antes de tudo a tradição oral.
nesta obra, ter avançado um passo na obra comum. Nesta construção pri- E essa palavra não quer dizer para nós o testemunho interessado
meira, insuficiente, como é, há vários pontos sólidos, onde nossos colegas de tal ou tal homem de então, de tal protagonista importante. A maior
de história poderão audaciosamente colocar o pé, para edificar mais alto. parte dos depoimentos desse gênero tem muito a lucrar com a história
Sim, que marchem sobre nós sem temor, ficaremos felizes de nisso ajudar para que ela possa neles encontrar guias confiáveis. Não, quando digo
e de dar-lhes a mão. “tradição oral” entendo “tradição nacional”, aquela que permanece gene-
Nossa única vantagem era o trabalho anterior, a acumulação paciente ralizadamente difundida na boca do povo, o que todos dizem e repetem,
das obras e dos dias; o que para outros é começo, para nós é coroamento. os camponeses, os homens de cidade, os velhos, os homens maduros, as
Dez anos na Antiguidade, 20 anos na Idade Média, contemplamos longa- mulheres, mesmo as crianças, o que podeis aprender se entrardes à noite

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naquele cabaré de aldeia, o que recolhereis se, encontrando no caminho Tal a tradição nacional, a de toda a França, podeis convencer-vos disso.
um passante que descansa, vos puserdes a conversar sobre a chuva e o Dela retirai apenas alguns escritores doutrinários e alguns trabalhadores le-
bom tempo, depois sobre a carestia dos víveres, depois sobre o tempo do trados que, sob a influência desses dois sistemas, e cultivados há 20 anos por
imperador, sobre o tempo da Revolução. Anotai bem esses julgamentos; uma imprensa especial, saíram da tradição comum à massa do povo. Ao todo,
por vezes, sobre as coisas, ele erra, mais frequentemente ignora. Sobre os alguns milhares de homens, em Paris, em Lyon, em três ou quatro grandes
homens, não se equivoca, muito raramente se engana. cidades; número pouco considerável, diante de 34 milhões de almas.
Coisa curiosa, o mais recente dos grandes protagonistas da história, O catecismo histórico que acabamos de indicar é o de todos os habi-
aquele que ele viu e tocou, o imperador, é aquele que o povo mais investe e tantes dos campos, o da maioria dos habitantes das cidades; “maioria” é impró-
desfigura com tradições legendárias. A crítica moral do povo, muito firme em prio, é preciso dizer “a quase totalidade”.
qualquer outra parte, aqui geralmente enfraquece: duas coisas perturbam o Considerai agora o inverso desse catecismo (Voltaire e Rousseau nada
equilíbrio, a glória e também a desgraça, Austerlitz e Santa Helena. fizeram, a rainha não teve nenhuma influência na sorte do rei, os padres e
Quanto aos homens anteriores, várias de suas coisas estão esquecidas,
os ingleses são inocentes dos males da Revolução etc.), tereis contra vós a
a tradição enfraqueceu-se, quanto ao detalhe de seus atos. Mas, quanto ao
França.
seu caráter, permanece um julgamento moral, idêntico em todo o povo (ou
Ao que respondereis talvez: “somos pessoas hábeis, cientistas; conhe-
em sua quase totalidade), julgamento muito firme e muito preciso.
cemos a França bem melhor do que ela própria se conhece”.
Ampliai, peço-vos, essa investigação. Consultai pessoas de todos os
Tal recusa, oposta à crença do povo, espanta-me, devo confessá-lo.
tipos: não são operários (vários já são antes letrados que povo), não apenas
Essa história, tão enraizada nele, que a viveu, a fez e a sofreu — contestar-
mulheres (sua sensibilidade por vezes as desorienta), mas pessoas diversas
lhe o conhecimento parece-me, da parte dos doutos, uma pretensão pre-
em idade, em sexo, em condição; afastai as oposições acessórias, tomai o
sunçosa, se assim ouso falar. Deixai-lhe, senhores letrados, deixai-lhe seus
total das respostas, eis aqui o que encontrareis, o que se poderia chamar o
“catecismo histórico do povo”: julgamentos, ele bem mereceu conservar-lhes a posse tranquila — posse
Quem conduziu a Revolução? Voltaire e Rousseau. Quem perdeu o grave, importante, senhores; é seu patrimônio moral, uma parte essencial
rei? A rainha. Quem começou a Revolução? Mirabeau. Quem foi o inimigo da moralidade francesa, uma compensação considerável pelo que essa his-
da Revolução? Pitt e Coburgo, os chouans e Coblença. E ainda? Os goddem e tória lhe custou em sangue.
os carolas. Quem comprometeu a Revolução? Marat e Robespierre. Quando o povo tira um axioma, um provérbio, de sua experiência,
ele não é dela extraído facilmente; uma coisa proverbial para ele, em me-
dicina política, que guardou de 1793, é que a sangria pouco vale, e que só

Isso não contradiz em nada o que dissemos no capítulo 9 do livro IV. Ali se tratava do público,
aqui, do povo. Seria insultar a inteligência do leitor explicar a diferença. agrava a doença.

A Batalha de Austerlitz — ou Batalha dos Três Imperadores — foi uma das maiores vitórias mi-
litares de Napoleão, na qual destruiu definitivamente a Terceira Coalizão que se levantara contra
o império francês. Em 2 de dezembro de 1805, sob o comando de Napoleão I, uma armada
francesa subjugou o exército austro-russo comandado pelo czar Alexandre I, numa batalha san- lucionáiria, e a expressão “Pitt e Coburgo” tornou-se célebre para designar as monarquias ini-
grenta de quase 10 horas. Essa batalha aconteceu nas imediações de Austerlitz, cerca de 10 km migas da Revolução e os traidores internos. Os chouans foram os contrarrevolucionários bretões
de Brno, na Morávia. A batalha de Austerlitz entrou para a história como uma obra-prima de dos primeiros anos da Revolução, católicos, monarquistas, sobretudo na Vendeia. Coblença,
tática de guerra. A ilha de Santa Helena era uma colônia britânica onde os ingleses encarceraram cidade renana alemã, foi o ponto onde os emigrados se reuniram para formar o exército que
Napoleão após sua derrota, de onde ele não saiu até 1821, ano de sua morte. (N. do E.) invadiria a França em 1792. Goddem (ou les goddamns ou les goddams) é um tratamento pejo-

Sir William Pitt, ou o “segundo Pitt”, líder político inglês que inspirou e financiou as sucessivas rativo com que os franceses se referiam aos ingleses (especialmente os da infantaria) desde a
campanhas contra a França revolucionária e napoleônica, até sua morte em 1806. Frederico Guerra dos Cem Anos — e em muitos outros conflitos entre Inglaterra e França desde a Idade
Josias, duque de Saxe-Coburgo, foi um general austríaco nas campanhas contra a França revo- Média. (N. do E.)

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E, não tivesse ele a experiência, o bom senso lhe diria suficientemente que o pequeno Shakespeare ouvia, guardando cavalos, à porta do espetá-
que a salvação por via do extermínio não é uma salvação. culo; era a ele que Dante ia ouvir no mercado de Florença. O dr. Martinho
A França estava perdida, após a Salvação Pública, perdida de força e de Lutero, doutor como era, fala-lhe de borla na mão, chamando-o mestre e
coração, a ponto de deixar-se tomar por aquele que quis tomá-la. senhor: “herr omnes” (“senhor todo mundo”).
Agora, doutos senhores, contra essa crença universal, chegai com Todo mundo, ignorante sem dúvida das coisas da natureza (não ensi-
vossos sistemas, fazei entender a esse povo que, “permutando-se a vida e nará física a Galileu ou cálculo a Newton), nem por isso é juiz menos justo
a morte incessantemente na natureza, é indiferente viver ou morrer; que, nas coisas do homem. E soberano mestre em direito. Quando toma assen-
morto um, outros chegam; que com isso a terra só floresce melhor”. Se essa to, em seu pretório e tribunal natural, nas encruzilhadas de uma grande
suave doutrina não encantá-lo de início, dizei-lhe com segurança que ela cidade ou no banco de uma igreja, ou ainda em uma pedra no cruzamento
corresponde inteiramente ao cristianismo; a salvação de que ele nos fala era das quatro estradas, sob o olmo do julgamento,11 ele julga, sem apelo; não
a Salvação Pública, o apóstolo do Terror foi aparentado a Jesus Cristo. De- há que dizer “não”. Os reis, as rainhas e os tribunos, os Mirabeau, os Ro-
pois, tomai esse apóstolo sentimental e pastoral, dai a ele um hábito mais bespierre comparecem modestamente. Que digo eu? O grande Napoleão
celestial ainda do que aquele que usou na festa do prairial,10 e tereis muita faz como fazia Lutero: põe o chapéu na mão...
dificuldade em reconciliar o povo com o nome de Robespierre. Et nunc erudimini, qui judicatis terram!12 Sede julgados, juízes do mundo!
Esse povo tem a cabeça dura. É o que dizia Moisés quando, após ter Alta e soberana justiça, semelhante à de Deus, por quase nunca dignar-
matado 20 ou 30 mil israelitas, chamava em vão pelos outros; eles faziam se a motivar seus julgamentos. Eles surpreendem por vezes, escandalizam.
ouvidos moucos. Os escribas e os fariseus pediriam de bom grado que se interditasse tal juiz;
Ou então, querei vós que eu use uma imagem muito ingênua, que não sabem realmente como desculpar suas contradições: “Povo mutável!”,
achareis chã talvez, mas que não é inexata? É a fábula de La Fontaine: o dizem eles erguendo os ombros, “que, sem nenhum princípio determinado,
cozinheiro, com seu facão ao lado, adula os frangos: “queridos, queridos!”. julga e se retrata”. Indulgente com este e severo com aquele! Justiça toda ca-
Por mais que faça uma voz doce, os queridos não prestam atenção; um prichosa. Os sensatos, felizmente, estão aí para revisar seus julgamentos.
facão não é uma isca. Capricho aos olhos da ignorância; para a ciência, justiça profunda.
Mas falemos seriamente. Quando ele julga, tudo está acabado; cabe a vós outros, historiadores, fi-
Não somos de modo algum desses amigos do povo que desprezam lósofos, críticos, chicanistas, buscar, encontrar, se puderdes, o porquê. Pro-
a opinião do povo, sorriem do preconceito popular, acreditam-se, modesta- curai; ele é sempre justo. O que aí encontrais de injusto, fracos e sutis que
mente, mais sábios que todo mundo. sois, é a imperfeição de vosso espírito.
Todo mundo, para os hábeis e os homens de espírito, é um pobre ho- Assim, esse estranho juiz oferece este escândalo ao auditório: descul-
mem de bem, que enxerga pouco, bate, tropeça, faz garatujas, não sabe pa Mirabeau, apesar de seus vícios; condena Robespierre, apesar de suas
muito bem o que diz. Rápido, um bastão para esse cego, um guia, um virtudes.
apoio, alguém que fale por ele. Grande rumor, muitas reclamações, ditos, contraditas, mas sim, mas
Mas os simples, que não têm espírito, como Dante, Shakespeare e Lu- não... Vários meneiam a cabeça e dizem: “o bom homem perdeu a razão”.
tero, veem de maneira muito diferente esse bom homem. Reverenciam-no,
recolhem, escrevem suas palavras, mantêm-se em pé diante dele. Era a ele
11
Referência à locução francesa em que “sob o olmo” é o lugar de uma espera vã. (N. do T.)
12
Literalmente: “e agora compreendeis, ó reis; instruí-vos, vós que governais a Terra”. São pala-
vras do salmo II, versículo 10, do Livro Santo, citadas para ensinar que devemos ser humildes
10
Prairial foi o nome dado ao nono mês do calendário da Revolução Francesa: de 20 de maio a e aproveitar da experiência alheia. (N. do E.)
18 de junho. (N. do E.)

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Tomai cuidado, senhores, tomai cuidado, é o julgamento do povo, a decisão todas as outras. O que é um livro? É um homem. E o que é um jornal? Um
do mestre; não a corrigiremos em nada; tratemos apenas de compreender. homem. Quem poderia confrontar essas vozes individuais, parciais, inte-
Este último ponto é já bastante difícil, ative-me a isso, sabendo bem, ressadas, com a voz da França?
quando encontrava julgamentos discutidos, por vezes fatos estranhos em A França tem o direito, se alguém pode tê-lo, de julgar em última ins-
que a tradição comum não parecia concordar com tais documentos im- tância seus homens e seus acontecimentos. Por quê? É que ela não é para
pressos, que raramente era preciso preferir estes últimos; as memórias são eles um contemplador fortuito, uma testemunha que vê de fora; ela esteve
defesas de tal causa individual, os jornais defendem do mesmo modo o neles, animou-os, penetrou-os de seu espírito. Eles foram em grande parte
interesse dos partidos. Explorei então outras fontes, até aqui muito ne- obra sua: ela os conhece, porque os fez.
gligenciadas, e vi com admiração que, para subscrever os julgamentos da Sem negar a influência poderosa do gênio individual,13 nenhuma dú-
ignorância popular, o que me faltara era a ciência. vida de que na ação desses homens a parte principal cabe no entanto à ação
Um estrondoso exemplo disso é o fato imenso das federações, com geral do povo, do tempo, do país. A França os conhece nessa ação que foi
que o povo, sobretudo o dos campos, ficou tão profundamente impressio- dela, como seu criador os conhece. Devem a ela o que foram, excetuados
nado, e que ele jamais deixa de lembrar com efusão, desde que se fale no tais ou tais pontos em que ela se torna seu juiz, aprova ou condena, e diz:
ano de 1790. Sem razão? As federações foram simples festas? Acreditar-se- “nisto, não sois meus”.
ia, pela pouca atenção que lhes dão então os jornais de Paris. Foram elas
Todo estudo individual é acessório e secundário diante desse profun-
festas burguesas, como depois se tentou dar a entender? Como é possível
do olhar da França sobre a França, dessa consciência interior que ela tem
então que a imaginação, o coração do povo ainda estejam tomados por
daquilo que fez. O papel da ciência nem por isso deixa de ser grande. Do
elas? Lede as atas das federações; comparai-as aos documentos impressos
mesmo modo como essa consciência é forte e profunda, é também obscura,
da época, descobrireis que essas grandes reuniões armadas, sucedendo-se
tem necessidade de que a ciência a explique. A primeira mantém e manterá
durante nove meses (de novembro de 1789 a julho de 1790), tiveram o
os julgamentos que fez; mas os motivos dos julgamentos, todas as peças do
efeito muito grave de mostrar aos aristocratas as forças imensas, invencíveis
processo, os raciocínios muitas vezes complicados, pelos quais o espírito
da nação; elas lhes tiraram a esperança, fizeram-nos perder o pé, decidiram
popular obtém conclusões que são chamadas de simples e ingênuas, tudo
a emigração, desataram o nó da época. As federações centrais (Lyon, Ruão,
isso apagou-se. E está aí o que a ciência está encarregada de redescobrir.
Paris etc.), que vieram por último, fizeram comparecer apenas os represen-
Eis o que nos pede a França, a nós, historiadores: não que façamos a
tantes da Guarda Nacional; em Lyon, 50 mil homens representaram 500
mil homens. Mas as federações locais, as das pequenas cidades e aldeias, história — ela está feita nos seus pontos essenciais; moralmente, os grandes
dos vilarejos, incluíram todo mundo; pela primeira vez, o povo se viu, se resultados estão inscritos na consciência do povo —, mas que restabeleça-
uniu em um mesmo coração. mos a cadeia dos fatos, das ideias de onde saíram esses resultados: “não vos
Esse fato, imperceptível na imprensa, depois obscurecido, desfigura- peço”, diz ela, “que formeis minhas crenças, que diteis meus julgamentos;
do pelos fazedores de sistemas, reaparece aqui em sua grandeza; domina, cabe a vós recebê-los e conformar-vos a eles. O problema que vos propo-
como dissemos, a primeira metade deste volume. Nove meses da Revolu- nho é o de me dizer como cheguei a julgar assim. Agi e julguei; todos os
ção são inexplicáveis sem ele. Onde estava ele, antes de nós? Nas fontes intermediários entre essas duas coisas pereceram em minha memória. Cabe
manuscritas, na boca e no coração do povo. a vós adivinhar, meus magos! Não estivestes presentes, eu estive. Pois bem,
Essa é a primeira missão da história: redescobrir por meio das pes-
quisas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional. Esta, nos fatos 13
Num belíssimo artigo em que o jornal La Fraternité (outubro de 1847) coloca o verdadeiro
dominantes, é muito grave, muito segura, tem uma autoridade superior a ideal da história, ele reduz muito, contudo, a parte do gênio individual.

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quero, ordeno que me conteis o que não vistes, que me ensineis meu pen- Heu! unain in horam natos!... (“Nascidos na mesma hora!”).
samento secreto, que me digais pela manhã o sonho esquecido da noite”. A tentação do coração, quando se veem passar tão depressa esses
Grande missão da ciência e quase divina! Ela jamais bastaria para pobres efêmeros sob o sopro da morte, seria tratá-los com uma extrema
isso se fosse apenas ciência, livros, penas e papel. Não se adivinha uma indulgência. Não duvidamos que Deus tenha assim julgado, que tenha
tal história senão ao refazê-la com o espírito e a vontade, ao revivê-la, de largamente perdoado. O historiador não é Deus, não tem seus poderes
modo que não seja uma história, mas uma vida, uma ação. Para redes- ilimitados; não pode esquecer, ao escrever o passado, que o futuro, sempre
cobrir e relatar o que esteve no coração do povo só há um meio: é ter o copiador, ele copiará exemplos. Sua justiça vê-se, assim, circunscrita a uma
mesmo coração. medida menos ampla do que aconselhava seu coração.
Um coração grande como a França! O autor de tal história, se algum Está aqui o que podíamos, e o que fizemos:
dia for realizada, será, com certeza, um herói. Raramente apresentamos um julgamento total, indistinto, nenhum
Que admirável equilíbrio de justiça magnânima se encontrará nesse retrato propriamente dito; todos, quase todos são injustos, resultando de
coração! Que sublimes balanças de ouro! Pois, afinal, ser-lhe-á necessário, uma média que se toma em tal ou tal momento da personagem, entre o
na grande justiça popular, que decide em geral, avaliar nos indivíduos a bem e o mal, neutralizando um pelo outro e tornando ambos falsos. Julga-
justiça de detalhe, redescobrir em cada um, por uma benevolente equida- mos os atos à medida que se apresentam, dia a dia e hora a hora. Datamos
de, suas circunstâncias atenuantes, e, mesmo sobre o mais culpado, condu- nossas injustiças; e isso nos permitiu muitas vezes louvar homens que mais
zindo-o ao tribunal, dizer ainda: “foi homem também”. tarde precisaremos condenar. O crítico esquecido e severo condena muito
Essas reflexões nos detiveram muitas vezes, muitas vezes nos fizeram frequentemente começos louváveis em vista do fim que ele conhece, que
sonhar por longo tempo. Sentíamos bem demais o que nos faltava, em pu- vê por antecipação. Mas nós não queremos conhecê-lo, a esse fim; o que
reza, em santidade, para atingir esse equilíbrio. quer que esse homem possa fazer amanhã, anotamos em seu benefício o
O que podemos dizer, ao menos, é que, digno ou não, nós tocamos bem que hoje faz; o mal bem cedo virá: deixemos-lhe seu dia de inocência,
essa balança com mão atenta e escrupulosa.14 Jamais esquecemos que pe- escrevamo-lo cuidadosamente em favor de sua memória.
sávamos vidas de homens... de homens, ah, que viveram tão pouco. E uma Assim, detivemo-nos de bom grado sobre os começos de vários ho-
circunstância grave no destino dessa geração, que nos obriga, para sermos mens por quem tínhamos medíocre simpatia. Louvamos provisoriamente,
justos, a nos tornar indulgentes: ela tombou em um momento único, em onde eram louváveis, o padre Sieyès e o padre Robespierre, o escriba Bris-
que se acumularam séculos; coisa terrível, jamais vista: não mais sucessões, sot e outros.
não mais transições, não mais duração, não mais anos, não mais horas nem Quantos homens em um homem! Como seria injusto, para essa cria-
dias, suprimido o tempo! tura móvel, estereotipar uma imagem definitiva! Rembrandt fez 30 autor-
Alguém, em 1791, na Assembleia Nacional, lembrava 89: “sim”, como retratos, creio, todos parecidos, todos diferentes. Segui esse método; a arte
se diz, “antes do dilúvio”. Camille Desmoulins, falando em 1794 de um ho- e a justiça aconselhavam-no igualmente. Quem tiver o trabalho de acom-
mem de 92: “um patriota antigo na história da Revolução”. O mesmo, ca- panhar, nestes dois volumes, um a um os grandes protagonistas históricos,
sado no final de 1790, escreve em 93: “das 60 pessoas que vieram ao meu verá que cada um deles tem toda uma galeria de esboços, corrigido cada
casamento, restam duas, Robespierre e Danton”. Ele não tinha acabado a um em sua data, segundo as modificações físicas e morais por que passava
linha, e dos dois só restava um. o indivíduo. A rainha e Mirabeau, assim, passam e repassam cinco ou seis
vezes; a cada vez, o tempo os marca com sua passagem. Marat aparece do
mesmo modo, sob diversos aspectos, muito verdadeiros, embora diferen-
Não temos, nesta história, nenhum interesse além da verdade. Não seguimos às cegas nenhu-
14

ma paixão de partido [...]. tes. O tímido e sofredor Robespierre, apenas entrevisto em 1789, desenha-

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mo-lo, em novembro de 1790, à noite, de perfil, na tribuna dos jacobinos; nela encontrar algumas provas de uma teoria pronta, limita em demasia
colocamo-lo de frente (em maio de 91) na Assembleia Nacional, sob um suas leituras, e nem mesmo entende o pouco que leu. É o que acontece aos
aspecto magistral, dogmático, já ameaçador. autores da Histoire parlementaire; dos dois termos que comparam e fundem
Datamos assim curiosamente, minuciosamente, os homens e as ques- sem julgamento, a Idade Média e a Revolução, não conhecem o primeiro, e
tões, e os momentos de cada homem. não compreendem o outro.
Dissemo-nos e repetimo-nos uma frase que permaneceu presente e O que aconteceu quando quiseram impor à Revolução de 1789 o ca-
que domina este 1ivro: ráter socialista dos tempos posteriores? Nada encontrando nos documen-
A história é o tempo. tos revolucionários que reproduzem, suprem a falta colando, na frente,
Essa constante reflexão impediu-nos de levantar as questões antes da atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm nenhuma relação.
hora, como muito frequentemente se faz. É tendência comum querer ler Aí, sem provas, afirmam que tal foi a ideia secreta dos grandes protagonis-
todos os pensamentos de hoje no passado, que muitas vezes não foram tas históricos, de tal homem, de tal partido: eles pensaram isto, aquilo; não
pensados. Para aqueles que têm essa fraqueza, nada é mais fácil. Toda gran- disseram nada, é verdade, mas deveriam tê-lo dito.
de questão é eterna; quase impossível não encontrá-la em qualquer época. Ou, então, se encontram um apoio, algumas palavras que possam, for-
Mas o próprio da ciência não é tomar assim esses aspectos vagos e gerais çando-as, mudar em seu proveito, é no campo inimigo que vão buscá-las...
das coisas, esses caracteres comuns dos tempos, em que eles se confundem;
ao contrário, especificar; insistir, para cada época, na questão realmente
dominante, e não ressaltar nela tal circunstância acessória, que se encontra
em outros tempos, que talvez em nossos dias se tenha tomado dominante,
mas que então não o era.
Foi injustificadamente que os autores da Histoire parlementaire, e
aqueles que a seguem de perto ou de longe, colocaram em primeira linha,
na história da Revolução, as chamadas “questões sociais”, questões eternas
entre o proprietário e o não proprietário, entre o rico e o pobre, questões
formuladas hoje, mas que na Revolução aparecem sob outras formas, ainda
vagas, obscuras, em um lugar secundário.
Esses autores exerceram uma enorme influência, tanto por uma co-
leção fácil de consultar, que parece dispensar outras, como por um jornal
digno de estima, redigido infelizmente no espírito deles, mas cuja vigorosa
moralidade compensa em parte tal defeito. O dever, só essa palavra, rara-
mente atestada em nossos dias, o dever sentido, ensinado, constitui nesse
jornal uma originalidade verdadeira.
Nada reprovamos nos modestíssimos discípulos, mais sensatos aliás
que seus mestres. Quanto a estes, não podemos deixar de admirar sua se-
gurança no absurdo, sua intrepidez de afirmação. No entanto, o dever de
que dão testemunhos ordenava, antes de assim afirmar, estudar com cons-
ciência. Não se adivinha a história. Aquele que a percorre às pressas, para

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Leopold von Ranke sua carreira como professor de letras clássicas no Friedrichs Gymnasium,
de Frankfurt. Ali despertaria seu interesse pelo passado e pela história.
Julio Bentivoglio Depois de muitos estudos e várias visitas a arquivos, redigiu sua pri-
meira obra, publicada em 1825, Geschichte der romanischen und germanis-
chen Völker von 1494 bis 1514 (História dos povos latinos e germânicos de 1494
“Como é ambição natural de todo homem deixar atrás de a 1514), na qual demonstrou sua capacidade de investigação histórica,
si algum registro útil de sua existência, eu tenho alimentado por usando uma variedade de fontes que incluíam memórias, diários, cartas
muito tempo o projeto de devotar minhas energias e minha pessoais e formais, documentos governamentais e diplomáticos, testemu-
capacidade a este trabalho tão importante.” nhos oculares. De maneira semelhante a Niebuhr e Johann Gustav Droy-
Ranke, História da Reforma na Alemanha, 1847 sen (1808-1884), Ranke apoiou-se na crítica documental desenvolvida
por Friedrich A. Wolf (1759-1824) e pelo orientador de Droysen, August
“Parece-me risível [...] dizerem que não me interessam as questões
Böckh (1785-1867), e na hermenêutica romântica de Friedrich Schleier-
filosóficas ou religiosas. Foram justamente essas questões, e só elas, que me
macher (1768-1834). Estava aí a base do método histórico que se consti-
encaminharam à história.”
tuiria a partir de então. Esse livro, que o alçou à carreira acadêmica, trazia
Ranke, Carta a Heinrich Ritter, 1830
em sua introdução a tão incompreendida frase: “a história escolheu para si
o cargo de revelar o passado e instruir o futuro para o benefício das gera-
Franz Leopold von Ranke nasceu, em 21 de dezembro de 1795, em Wiehe ções futuras. Para mostrar aos altos oficiais o que o presente trabalho não
(atual Unstrut), na Turíngia, e morreu em 23 de maio de 1886 em Berlim. pressupõe: ele busca apenas mostrar o que realmente aconteceu”. A despeito
Casou-se em 1843 com Helena Clarissa Graves (1808-1871) quando con- de interpretações apressadas de sua obra, Ranke jamais se limitou a produ-
tava 48 anos e já era renomado historiador. Iniciou seus estudos no ginásio zir uma história factual, meramente política ou que apregoasse que os fatos
de Schulpforta — onde também estudou Fichte (1762-1814) —, man- deveriam falar por si mesmos; tampouco afirmou que o historiador pode-
tendo por toda a vida suas convicções religiosas em meio a uma família de ria anular sua subjetividade, como se verá em seu texto, mais adiante.
pastores luteranos e nutrindo desde a infância grande afeição pelo estudo Recém-ingresso na Universidade de Berlim, em 1825, nomeado como
das letras clássicas. Ausserordentlicher Professor, Ranke colocou-se ao lado de seu amigo Frie-
Em 1814 entrou para a Universidade de Leipzig, onde estudou teo- drich Carl von Savigny (1779-1861) em oposição ao pensamento histórico
logia e filologia. Apreciava o estudo de autores antigos, tendo como seus de Friedrich W. Hegel (1770-1831). Embora não discordasse da existência
prediletos Tucídides (460-400 a.C.), Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.) e Dionísio de uma história universal e de caráter divino, Ranke preferia valorizar o
de Halicarnasso (54 a.C.-8 d.C.). Entre seus contemporâneos, apreciava
o pensamento de Barthold Georg Niebuhr (1776-1831), Immanuel Kant
(1724-1804), Joahnn Gottlieb Fichte (1762-1814), Friedrich Schelling

Schulin, 1966:584.

Iggers, 1988:65.
(1775-1854) e Friedrich Schlegel (1772-1829). Tais simpatias dizem muito 
Gadamer (2003:271) indica, contudo, que o caminho seguido por Ranke se inspira, mas não
acerca da formação e das convicções teóricas de Ranke. Em 1817, iniciou se fundamenta na hermenêutica de Schleiermacher. Para ele a escola histórica buscou apoio na
“teoria romântica da individualidade”; embora os “historicistas” tomem a realidade histórica
como um texto a ser compreendido, eles procuram compreender a totalidade dos nexos da
história da humanidade, inspirando-se em Herder e Chladenius.

Famosa escola criada no século XV, onde lecionou, por exemplo, Friedrich W. Nietzsche entre 
A tão citada frase “wie es eigentlich gewesen”.
1858 e 1864. 
Para muitos, como Fontana (2004:225), “a frase foi tirada do contexto injustificadamente e

Segundo Gay (1990:71), “foi a filologia clássica, e não a história, que atraiu Ranke”. interpretada como uma declaração metodológica”.

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Leopold von Ranke 135 136 Lições de história

aspecto humano e singular na história, recusando-se a aceitar que ela fosse de nossa gente”.15 O fato é que Ranke acompanhou sem entusiasmo a po-
apenas a realização de ideias. O adversário nessa disputa era Heinrich Leo lítica de Otto von Bismarck. Mesmo saudando-o como um dos fundadores
(1799-1878), e o centro da discórdia residia, sobretudo, na divergência do império alemão, em 1879, o fazia somente porque aquele líder havia
em torno do pensamento político e da figura histórica de Maquiavel. Em defendido a Europa dos males da revolução.16
Berlim, despertou-se a insaciável curiosidade arquivística de Ranke, que se Entre 1834 e 1836, Ranke redigiu seu Die römischen Päpiste, ihre kirche
via como um Colombo da história.10 O meio universitário franqueou-lhe ar- und ihr Staat im sechzehnten und siebzehnten Jahrhundert (História dos papas,
quivos. Passou a dedicar-se ao estudo e à pesquisa de fontes primárias — não sua Igreja e Estado no século XVI e XVII). A despeito de o Vaticano ter proi-
somente em território prussiano — e a desdenhar daqueles historiadores bido Ranke de consultar seus arquivos em Roma, ele se valeu das corres-
que ainda se valiam de memórias, anais ou obras bibliográficas já existentes pondências diplomáticas privadas feitas entre Veneza e o papado para seu
para produzir seus trabalhos. A Universidade de Berlim, criada em 1810, trabalho. Nesse livro, formulou o conceito de contrarreforma, e sua recep-
expressava o espírito da Bildung fundido ao de Wissenchaft.11 Ao contrário ção provocou forte polêmica com a Igreja Católica e também com os pro-
das universidades antigas, que priorizavam a instrução, na futura Humboldt testantes; para aquela, Ranke era um crítico mordaz, para estes, um crítico
Universität priorizava-se a pesquisa como um dos pilares para a formação.12 muito brando do catolicismo. Essa obra complementou-se com Deutsche
Em 1825 viajou para Suíça e Itália, retornando em 1827. Em 1831, Geschichte im Zeitalter der Reformation (História da Reforma na Alemanha),
a pedido do governo prussiano fundou a revista Historisch-Politische Zeits- escrito entre 1845 e 1847. Novamente Ranke demonstrou sua incrível ca-
chrift.13 Nela combateu o liberalismo e defendeu um pensamento monár- pacidade de pesquisa ao examinar, em menos de dois anos, os 96 volumes
quico e conservador até meados de 1836. Para Laue, os escritos dessa épo- da Dieta Imperial17 em Frankfurt para explicar a Reforma religiosa alemã,
ca expressam seu pensamento político, que vê de um lado a sociedade e de revelando o elo que havia entre as disputas políticas e religiosas.
outro os experts em governar.14 Outro aspecto decisivo revela a leitura que Em 1841, Ranke tornou-se historiógrafo real da corte prussiana.
tinha, em particular, da experiência política francesa. Ranke via a Revolu- Em 1849, publicou Neun Bücher preussicher Geschichte (traduzido para
ção Francesa como uma expressão daquela nação, e seu programa é claro e o inglês como Memoirs of the House of Brandenburg and history of Prussia,
direto: “organizemo-nos nós próprios, sem imitarmos nossos vizinhos [...] during the Seventeenth and Eighteenth Centuries), onde examinou o Hohen-
precisamos empreender uma tarefa que nos cabe, uma tarefa bem alemã. zollern18 da Idade Média até Frederico, o Grande. Mas nessa obra não
Temos que constituir um verdadeiro Estado alemão, que responda ao perfil há, como nos demais historiadores da chamada escola histórica alemã
— Droysen, Maximilian Duncker (1811-1886) ou Heinrich von Sybel
(1817-1895) —, nenhuma apologia ao Estado prussiano, nem naciona-
lismo exacerbado. Nela a Prússia não é, em momento algum, apresentada

Iggers, 1988:66-69. como uma grande potência do presente e do futuro, mas apenas como

A este respeito ver Baur (1998). um país como outro qualquer.
10
Laue, 1950:34.
11
Bildung significa formação e Wissenchaft, ciência. Na Alemanha do século XIX, ambas são a
expressão máxima do espírito que animava as artes, a cultura e o pensamento. Pressupunham
a formação plena do homem e valorizavam a pesquisa e a cultura como instrumentos decisivos 15
Apud Guilland (2001:64).
para isto.Ver a respeito Gilbert (1990). 16
Iggers, 1988:72.
12
Iggers, 1997:24. 17
Reichstag, termo que significa Dieta Imperial, é a instituição que representa o parlamento ale-
13
Sob a iniciativa do conde von Bernstorff, ministro do Exterior, que pretendia, sobretudo, mão, remontando a Carlos Magno e ao Sacro Império Romano-Germânico no século IX.
defender a burocracia prussiana das críticas de liberais e de partidários da esquerda. Ver Iggers 18
Dinastia real formada na região de Brandenburgo a partir de 1415, depois sob o ducado da
(1988:70). Prússia a partir de 1525, originária de condes da Suábia, que governou a Prússia até o fim da
14
Laue, 1950. I Guerra Mundial, da qual fazia parte Frederico II.

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Os seminários realizados para o futuro rei Maximiliano II da Baviera ra reduzi-lo à visão caricata da tão incompreendida máxima wie es eigentlich
em 1854 são índices preciosos a respeito do método histórico em Ranke. gewesen. Grosso modo, o fragmento refere-se ao fato de que o historiador
Ali, como em sua preleção Sobre as afinidades e diferenças entre história e polí- não deve louvar nem julgar. Um dos mais influentes teóricos do século XX,
tica, desenvolveu sua “exposição mais sistemática e coerente dos princípios Robin G. Collingwood (1889-1943), afirma que Ranke empregava a crítica
historicistas na historiografia do século XIX”.19 Em um deles, professou histórica como cerne de seu trabalho, mas não realizava uma segunda etapa
seu historicismo de cunho religioso, ao dizer que “cada época é imediata cara à filosofia positiva, ou seja, localizar uma lei geral de desenvolvimento
a Deus” (jede Epoche ist unmittelbar zu Gott), deu ênfase às singularidades histórico.23 Para G. P. Gooch essa incompreensão teve um efeito benéfico:
e recusou qualquer tipo de abordagem teleológica na qual um período separou, em alguma medida, o estudo do passado das paixões políticas do
provocaria o período subsequente. Assim, a Idade Média não poderia ser presente.24 Assim, o que pode parecer ingenuidade epistemológica era, na
vista como uma época inferior ao Renascimento, tampouco este um mero verdade, uma postura desafiadora para os demais historiadores alemães,
desenvolvimento daquela. da escola histórica ou da esquerda, que desejavam uma história mais ou
Após sua aposentadoria, em 1871, continuou a escrever sobre uma menos comprometida com o poder. Marrou acertadamente observou que
variedade de assuntos e, a partir de 1880, iniciou um ambicioso trabalho a frase não significava a defesa, por parte de Ranke, da promoção de uma
em seis volumes sobre a história universal, o qual começou com o Egito anti- ressurreição integral do passado.25 De qualquer modo, Hans-Georg Gada-
go e com os hebreus. Até seu falecimento, em Berlim, no ano de 1886, havia mer defende que esse autoapagamento proposto por Ranke não excluía,
alcançado apenas o século XII. Subsequentemente, seus assistentes e orien- em absoluto, a participação no real.26 Ou seja, o historiador pode ter cons-
tandos utilizaram suas notas e rascunhos para expandir a série até 1453. ciência de seus pré-julgamentos e da interferência de sua subjetividade em
Em 1865 Ranke recebeu o título de barão (Freiherr) e em 1882 se tornou suas escolhas e ações, tanto em seu trabalho quanto na vida pública, mas
membro do Conselho Prussiano. Em 1884 foi escolhido como membro de seu engajamento, ou não, é uma questão de opção. Ranke preferiu a discri-
honra da American Historical Association, o que indica sua larga aceitação e ção e o recolhimento, dedicando-se, sobretudo, à pesquisa.
posterior influência nos países anglo-saxões.20 Ranke é herdeiro intelectual de Wilhelm von Humboldt (1767-1835)
Esses breves apontamentos biográficos talvez não façam justiça àquele e de Barthold Niebuhr, a seu modo propagadores do recurso imperativo
que, para muitos, é considerado o maior historiador do século XIX.21 Leo- das fontes primárias27 em pesquisa histórica, do uso da crítica histórica
pold von Ranke foi consagrado em vida como um dos fundadores da ciên- documental, bem como da defesa de uma escrita da história compromis-
cia histórica moderna, eclipsando contemporâneos talentosos como Droy- sada com a verdade dos fatos, objetiva e apartidária. Isso não significou,
sen ou o ganhador do prêmio Nobel Theodor Mommsen (1817-1903). In- em nenhum momento, a recusa da imaginação em Ranke, a presença da
fluenciou toda uma geração de historiadores alemães, ingleses e franceses. subjetividade ou a rejeição de uma poética da história.28 Afinal, ele via com
Lamentável é ver que ainda hoje paira uma incompreensão a respeito de
sua obra — já várias vezes refutada —, onde se demonstra que Ranke não 23
Para Collingwood (1989:133), os historiadores do século XIX teriam aceitado a primeira eta-
era nem nunca foi um historiador positivista.22 Esse mal-entendido procu- pa do método positivo, a recompilação de fatos, mas não a segunda, o descobrimento de leis.
24
Gooch, 1935:97.
25
Marrou [s.d.]:37.
26
Para Gadamer (2003:287), “uma vez que todos os fenômenos históricos são manifestações do
19
Iggers, 1988:70. todo da vida, participar deles é participar da vida”.
20
Gildherhus, 2007:47; Iggers, 1962. 27
Para Gay (1990:75), esse é um de seus méritos: com seus esforços, não deixou dúvidas quan-
21
Vierhaus, 1987. to ao fato de que os documentos detêm a chave da verdade histórica, embora necessitem da
22
Não foram poucos a desmitificar o equívoco: Iggers (1962); Braw (2007); Holanda (1979); intervenção por parte do historiador que os acolhe, seleciona e analisa.
Vierhaus (1987). 28
Ver o brilhante ensaio de Rüsen (1990).

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restrição o preenchimento de lacunas, mas não o recurso à imaginação.29 Para Ranke, um historiador precisa de três qualidades cardeais: bom
Valorizava, igualmente, a narrativa do historiador.30 Para ele, a história era, senso, coragem e honestidade. Figura ao lado de Droysen como um aluno
ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte, e o historiador não deveria in- ideal de Humboldt, como indicou Georg Iggers, pois tem posição seme-
culcar nela suas posições políticas.31 Nesse sentido, afastava-se radicalmen- lhante às do mestre em relação a temas como a natureza do pensamento
te de seus contemporâneos, como Droysen, e de seus próprios discípulos histórico, o Estado, a cultura e a dificuldade de se encontrarem leis univer-
Sybel, Duncker e Heinrich von Treitschke (1834-1896). Evidentemente, sais para o estudo do passado. E cada um, a seu modo, enfatiza a necessi-
Ranke sabia da impossibilidade de uma escrita neutra, mas preconizava a dade do realismo histórico e do senso de realidade.36 Tinha Herder como
recusa a tomar-se partido.32 referência-chave, pois este pensador “forneceu um modelo para um modo
Para Ranke, a meta da história seria conhecer as tendências dominan- de escrever a história que pode ser desprendido de sua base teórica formal
tes de uma época; entretanto, negava a filosofia da história de Hegel por e julgado em seus próprios termos, como um protocolo metodológico que
não ver nela nada de humano, apenas a ideia divina desprovida de qual- pode ser partilhado por românticos, realistas e historicistas indistintamen-
quer traço concreto. Apreciava ainda os romances de Walter Scott e o his- te”.37 Sua compreensão da história como uma ciência rigorosa expressa
toricismo de Herder (1744-1803). E defendia o estudo dos nexos, dos elos uma tensão entre uma demanda explícita por objetividade científica e a
que articulam quaisquer constelações de eventos.33 Por fim, não se pode rejeição aos julgamentos de valor e especulações metafísicas, bem como a
descuidar do conteúdo religioso de seus escritos, mencionado por inúme- intromissão de questões políticas ou filosóficas na pesquisa.38 Igualmente
ros intérpretes há mais de um século. Para Ranke, dar vida ao passado seria rejeitava “toda sorte de positivismo que reivindicasse o estabelecimento
uma forma de encontrar-se com Deus;34 porém, se a história expressa a dos fatos como a tarefa essencial do trabalho do historiador”.39
obra divina, não há nele o fervor do pregador. Sua história conferia ênfase Amigo de Frederico Guilherme da Prússia e de Maximiliano da Bavie-
à política, sobretudo à política internacional (Aussenpolitik). E, embora não ra, Ranke publicou a partir de 1865 suas obras completas, atualmente com
tenha sido o primeiro, pode-se atribuir a Ranke a institucionalização do quase 60 volumes, e pôde ver seus discípulos ocuparem cadeiras de his-
seminário como moderno meio de ensino universitário, disseminado pelas tória nas principais universidades alemãs. Combateu a revolução, o Ilumi-
universidades alemãs a partir de seus cursos.35 nismo, o romantismo e o hegelianismo, E embora rejeitasse a ideia de pro-
gresso, não deixava de compartilhar certo otimismo em sua época, o que
não o impedia de duvidar que qualquer evento histórico pudesse ter uma
29
“Em Ranke, a mão modeladora do artista literário nunca se distancia do labor construtivo do validade universal, pois, para ele, cada criação histórica era um produto
historiador” (Gay, 1990:63). genuíno do espírito de uma nação.40 Para Ranke, a realidade não se esgo-
30
Para Guilland (2001:13), Ranke conferia extrema importância à forma e escrevia com viva-
cidade e graça. tava nos eventos históricos, e a imparcialidade significava reconhecer sua
31
Conta-se a anedota de que, num congresso, um colega teria dito a Ranke que, como ele, posição diante das forças ativas em estudo.41 Aproximar-se de uma época
era historiador e cristão; ao que retrucou Ranke: “sou historiador, não apologeta” (Holanda, seria uma percepção espiritual, e não somente uma constatação construída
1979:13).
32
A este respeito ver, sobretudo, Vierhaus (1990:64-65). a partir dos dados encontrados na pesquisa.
33
Não resta dúvida quanto à influência da apreensão organicista, relacional do processo históri-
co, tal como proposta por Herder. Maior discussão a respeito em Baur (1998).
34
“Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demonstrar, mas que sempre 36
Gilbert, 1990.
se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim como na sucessão dos tempos, os indivíduos 37
White, 1995:91.
importantes ocupam seu lugar; assim é como os há de conceber o historiador” (apud Fontana, 38
Iggers, 1988:25.
2004:227). 39
Ibid.
35
Nestes seminários notabilizou seu método de estudo crítico das fontes (Quellenkritik), ao 40
Para uma síntese de suas principais concepções, ver Braw (2007).
formar duas gerações de historiadores alemães. Ver Stern (1973:54). 41
Iggers, 1988:77.

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Principais obras de Ranke: lidam com o reino do ideal, enquanto a história deve ater-se à realidade.44
Se alguém designasse à filosofia a tarefa de penetrar a imagem que apareceu
F Geschichte der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514 no tempo, isso implicaria descobrir a causalidade e conceituar o âmago da
(1824). 2v.; existência: então, a filosofia da história não seria também história? Se a fi-
F Die serbische Revolution. Aus serbischen Papieren und Mittheilungen losofia da história pudesse atribuir à poesia a tarefa de reproduzir o vivido,
(1829); seria então história.
F Die römischen Päpste in den letzten vier Jahrhunderten (1834-1836). 2v.; A história distingue-se da poesia e da filosofia não em consideração
F Deutsche Geschichte im Zeitalter der Reformation (1839-1847). 2v.; a sua capacidade, mas pelo objeto abordado, que lhe impõe condições e
F Neun Bücher preussischer Geschichte (1847-1848). 3v.; a sujeita à empiria.45 A história traz ambas juntas em um terceiro elemen-
F Französische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahr- to peculiar somente para si. Ela não é nem uma nem outra, porém exige
hundert (1852-1861). 5v.; uma união das forças intelectuais ativas em ambas, poesia e filosofia, sob a
F Englische Geschichte, vornehmlich im sechzehnten und siebzehnten Jahrhun- condição de que estas últimas sejam dirigidas através de sua relação com o
dert (1859-1869). 3v.; ideal em direção ao real.
F Die deutschen Mächte und der Fürstenbund (1871-1872); Existem nações que não têm a habilidade de controlar esse elemento.
F Ursprung und Beginn der Revolutionskriege 1791 und 1792 (1875); A Índia teve filosofia, mas não teve história.
F Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813 É estranho como entre os gregos a história desenvolveu-se quando
(1877); se emancipou da poesia. E os gregos tiveram uma teoria da história que,
F Serbien und die Türkei im neunzehnten Jahrhundert (1879); conquanto marcadamente desigual à sua prática, era, não obstante, signi-
F Weltgeschichte — Die Römische Republik und ihre Weltherrschast. (1886) 2v. ficativa. Alguns destacaram mais o caráter científico, outros, o artístico,
mas ninguém negava a necessidade de unir os dois. Suas teorias movem-se
entre esses elementos e não se pode decidir por nenhum. Quintiliano ainda
Sobre o caráter da ciência histórica42 disse: “historia est proxima poetis et quodammodo carmen solutum”.46
Nos tempos modernos, nos casos de dúvida, tem-se lidado somente
A história distingue-se de todas as outras ciências por ser também
com os elementos de realidade ou então insistido na ciência como único
uma arte.43 A história é uma ciência ao coletar, buscar, investigar; ela é uma
princípio. Têm-se ido tão longe a ponto de fazer a história diluir-se como
arte porque recria e retrata aquilo que encontrou e reconheceu. Outras
uma parte da filosofia.47 De qualquer modo, como foi dito, a história preci-
ciências satisfazem-se simplesmente registrando o que foi encontrado; a
sa ser ciência e arte ao mesmo tempo. A história nunca é uma sem a outra.
história requer a habilidade para recriar.
Como ciência, a história é parecida com a filosofia; e como arte, com
a poesia. A diferença é que, de acordo com suas naturezas, filosofia e poesia 44
A esse respeito, há profunda semelhança do pensamento de Ranke com o de Gervinus, que
escreveu seu Grundzüge em 1837. (N. do T.)
45
É este também o pensamento de Droysen (2009). Lembro, contudo, que Ranke via no fenô-
meno uma totalidade, uma realidade espiritual. (N. do T.)
46
Instituto oratoria X, I, 31: “a história é aparentada ao poema; é, por assim dizer, um poema
42
O texto “Idee der Universalhistorie” foi pela primeira vez editado por Eberhard Kessel e pu- em prosa”. Solutum nesse contexto significa liberdade das restrições métricas (nota de Iggers e
blicado na Historische Zeitschrift, CLXXVIII em 1954. A versão aqui traduzida foi publicada em Moltke, 1973).
Iggers e Moltke (1973:33-46). 47
Há aqui uma crítica direcionada a Kant e, em maior grau, a Hegel, pois Ranke tinha restrições
43
Não há dúvida quanto à influência decisiva de Humboldt nesta sentença (ver Humboldt, em relação a uma filosofia da história que procurasse aprisionar a história como também um
2001). Compartilha dessa opinião Gervinus (2010). (N. do T.) domínio do pensamento especulativo. Cf. Iggers, 1988. (N. do T.)

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Mas é possível que uma ou outra seja mais pronunciada. Em cursos a histó- [Fichte] investe contra o filósofo49 que, partindo de uma verdade en-
ria pode, é claro, aparecer somente como ciência. Só por esse motivo faz-se contrada em algum outro lugar e em um caminho peculiar para ele como
necessário compreender o momento para lidar com a ideia de história. pensador, constrói toda a história para si: como isso deve ter ocorrido de
A arte repousa em si mesma: sua existência prova sua validade. Por acordo com seu conceito de humanidade. Não satisfeito em verificar se
outro lado, a ciência pode ser totalmente desenvolvida fora de sua verda- sua ideia está correta ou incorreta, sem se iludir sobre o curso dos eventos
deira concepção e ser clara em seu núcleo. que realmente ocorreram, ele intenta subordinar os múltiplos eventos à
Consequentemente, eu gostaria de iluminar a ideia de história do sua ideia. Certamente, ele reconhece a verdade da história somente até
mundo em algumas leituras preliminares — tratando sucessivamente do
certo ponto, enquanto a subordina à sua ideia. Esta é um mero constructo
princípio histórico, do alcance e da unidade da história mundial.
de história.
Se fosse correto esse procedimento, a história perderia toda sua inde-
Sobre o princípio histórico pendência. Ela seria governada simplesmente por uma proposição deriva-
da da filosofia pura e sucumbiria como a verdade desta. Tudo aquilo que
Pergunta-se sobre o que justifica os esforços dos historiadores em si.
Seu esforço é reconhecido como necessário, e pode ser vão falar a respeito é peculiarmente interessante a respeito da história universal desapareceria.
de sua utilidade, já que ninguém duvida disso. A sociedade, a inter-relação Tudo que é digno de conhecimento se reduziria a saber em que extensão os
das coisas o exigem. Mas nós precisamos nos situar em um nível mais ele- princípios filosóficos podem ser demonstrados na história: em que exten-
vado. Para justificar nossa ciência contra as reivindicações da filosofia, pre- são o progresso da humanidade, visto a priori, tem lugar. Mas não haveria
cisamos nos reportar ao sublime; procurar um princípio do qual a história interesse algum em investigar os eventos que aconteceram ou mesmo em
receberia uma vida única, própria. Para encontrar esse princípio devemos desejar saber como os homens viveram e pensaram em determinado tem-
considerar a história em sua luta com a filosofia. Estamos falando daquele po. Somente a totalidade do conceito que esteve uma vez vivo na história
tipo de filosofia que alcançou seus resultados mediante especulação e que observável do homem poderia ser importante. Obter certeza sobre o curso
afirma dominar a história. da história universal através do estudo da história não seria mais possível.
Mas quais são essas reivindicações? Fichte,48 entre outros, expres- As únicas variações possíveis estariam em conceitos distorcidos,50 deduzin-
sou-as assim: “se filosofar é deduzir os fenômenos que são possíveis na do-se o menor do maior. Isso é suficiente para dizer que a história se tornar
experiência da unidade de seu conceito pressuposto, então está claro que dependente, sem um objeto inerente e específico, e que sua fonte secaria.
não se necessita da experiência para tudo em seu trabalho. Permanecendo Dificilmente valeria a pena devotar estudo à história, já que esta estaria
livremente dentro dos limites da filosofia sem considerar qualquer experi-
implícita no conceito filosófico.
ência, deve-se estar apto a priori para descrever todos os tempos e épocas
Estas alegações foram levantadas em outras épocas pela teologia, que,
possíveis a priori”. Ele exige da filosofia uma ideia unificada de toda a vida
também com base naquilo que era inquestionavelmente uma incompreen-
que está dividida em várias épocas, cada qual compreensível abstratamente
são, queria dividir toda a história humana em poucos períodos baseados
ou através das outras, assim como cada uma dessas épocas especiais é no-
no pecado, salvação, milênios, ou nas quatro monarquias profetizadas por
vamente um conceito unificado de uma era especial — que manifesta a si
Daniel. Desse modo, procurou capturar a totalidade dos fenômenos em
mesma em um fenômeno mimético e plural.

48
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo alemão, um dos representantes do romantismo. 49
Hegel é este filósofo. (N. do T.)
(N. do T.) 50
No original, splitting concepts. (N. do T.)

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poucas proposições contidas no Apocalipse — como a teologia interpreta- os resultados da filosofia como absolutos, mas somente como fenômenos
va o Evangelho.51 no tempo. Assume que a mais exata filosofia está contida na história da
De qualquer forma, a história perderia toda a base e o caráter cien- filosofia, isto é, que a verdade absoluta reconhecível pela humanidade
tíficos: seria impossível falar de um princípio próprio do qual a história é inerente às teorias que aparecem de tempo em tempo, não importa
derivaria sua vida. como elas se contradizem. A história vai ainda além aqui, pois assume
Mas, adiantamos que a história permanece em inabalável oposição que a filosofia, especialmente quando se engaja em definições, é somen-
a essas reivindicações. Realmente, até mesmo a filosofia nunca foi hábil o te a manifestação do conhecimento nacional inerente à linguagem. Ela
suficiente para exercitar essa regra. Até onde vão os trabalhos impressos a assim nega à filosofia alguma validade e a compreende em sua outra
respeito, não encontrei filosofia alguma que tenha dado o menor sinal de manifestação.54 Nisso, tanto os filósofos como os historiadores, em regra,
ter controlado ou que tenha sido bem-sucedida em deduzir a diversidade aceitam todos os sistemas anteriores somente como passos, apenas como
de fenômenos a partir de um conceito especulativo; para a realidade dos fenômenos relativos, e atribuem validade absoluta somente para seus
fatos, escapa e ilude o conceito da especulação em todos os aspectos. próprios sistemas.
Além do mais, descobrimos que a história sempre se opôs a essas Não pretendo dizer que o historiador está certo em sua visão da filo-
reivindicações com força plena e crescente. Assim prova o caráter único do sofia; só quero mostrar que, a partir de uma perspectiva histórica, há um
princípio inerente à história, oposto ao da filosofia. princípio ativo que se opõe ao olhar filosófico e que constantemente se
Antes de conferir expressão a esse princípio, perguntamo-nos primei- expressa. A questão é que esse princípio é o que permanece na base daquilo
ro com que leis ele se manifesta. que se expressa.
Antes de tudo, a filosofia sempre volta-nos para a afirmação da ideia Enquanto o filósofo vê a história de seu ponto privilegiado e busca a
suprema. A história, por outro lado, traz-nos para as condições da exis- infinitude do ser meramente em progressão, desenvolvimento e totalidade;
tência. A primeira confere importância ao interesse universal; a última, ao a história reconhece algo infinito em cada existência, em cada condição,
particular.52 A primeira considera o desenvolvimento essencial e vê cada em cada ser; algo eterno vindo de Deus, e este é seu princípio vital.55 Como
particular somente como uma parte de um todo. A história volta-se com poderia qualquer coisa existir sem uma base divina?
simpatia também para o particular.53 A filosofia constantemente o rejeita: Consequentemente, como dissemos, a história volta-se com simpatia
estabelece a condição com a qual ela o aprovaria no futuro remoto. Por sua para o indivíduo; portanto, insiste na validade da importância do particu-
natureza, a filosofia é profética, dirigida adiante. A história vê o bem e o lar. Reconhece o benefício, o ser e resiste a mudanças que negam o existir.
benefício naquilo que existe. Tenta compreendê-los e olha para o passado. Até no erro ela admite uma parcela da verdade. Por esse motivo, vê nas
Certamente, nessa oposição uma ciência ataca diretamente a outra. filosofias anteriormente rejeitadas uma parte do conhecimento eterno.
Quando, como vimos, a filosofia pretende tornar a história subjetiva a si, Não nos é necessário provar que o eterno reside no indivíduo. Esse
a história, por sua vez, faz afirmações similares. Ela não quer considerar é o fundamento religioso sob o qual repousam nossos esforços. Acredita-
mos que não há nada sem Deus, e nada vive senão por meio de Deus. Li-
vrando-se das exigências de uma determinada teologia estreita, queremos,
51
Como se teologicamente a história já estivesse dada e cujo fim seria algo conhecido, tal como
na escatologia de João em seu Apocalipse. (N. do T.)
52
É evidente o afastamento em relação ao idealismo de Hegel nesse ponto. Sem contar que em
Ranke não há em nenhum momento o apelo ao conceito de destino (ver Hyppolite, 1970:48- 54
No original, begreift sie unter der anderen Erscheinung — sentido pouco claro (nota 6 de Iggers
62). (N. do T.) e Moltke, 1973:38).
53
Ranke aqui quase reproduz o pensamento de Herder a respeito da historicidade, em contra- 55
A influência da teologia em Ranke é inegável, sua hermenêutica glosa com o divino. Mais a
posição ao de desenvolvimento teológico e necessário da humanidade. (N. do T.) respeito, ver Gay (1990). (N. do T.)

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Leopold von Ranke 147 148 Lições de história

não obstante, professar que todos os nossos esforços provêm de uma fonte mais ou menos talentoso. Todo gênio repousa sobre a congruência entre o
maior, religiosa.56 individual e a espécie. O princípio produtivo que formou e criou a natureza
Deve ser rejeitada a ideia de que mesmo os esforços históricos são [humana] manifesta-se no indivíduo, que a reconhece, evidenciando-se e
dirigidos unicamente para a busca desse princípio maior nos fenômenos. alcançando a autocompreensão.
Assim, a história aproximar-se-ia demasiado da filosofia, já que pressuporia Esse dom é possível em maior ou menor grau e, em certa medida, to-
antes de tudo contemplar esse princípio. A história eleva, confere signifi- dos o possuem. Inteligência, coragem e honestidade para contar a verdade
cado e abarca o mundo dos fenômenos, em e por si mesma, devido àquilo são suficientes. Qualquer um espera descobrir e investigar, desde que a isso
que contém. Ela devota seus esforços ao concreto, não apenas ao abstrato tenha devotado seu esforço e se em seus estudos permanecer livre de pre-
que pode estar contido nisso. conceitos, mantendo sua humildade. Mas o que é ausência de preconceito?
Agora que justificamos nosso princípio supremo, temos de considerar Essa questão leva-nos à terceira exigência que emite nosso princípio.
as exigências que resultam disso para a prática histórica. 3. Um interesse universal. Existem aqueles que estão interessados so-
1. A primeira exigência é o puro amor à verdade.57 Reconhecendo algo mente nas instituições cívicas, nas constituições, no progresso científico, na
sublime no evento, na condição, ou na pessoa que desejamos investigar, ad- criação artística, ou apenas em enredos políticos. A maior parte da história
quirimos certo apreço por aquilo que aconteceu, passou ou surgiu. O pri- até aqui tratou de guerra e paz. Mas já que esses aspectos da sociedade
meiro propósito é reconhecer isso. Se procurássemos antecipar esse reco-
encontram-se presentes não separadamente, mas juntos — certamente, de-
nhecimento com nossa imaginação, contrariaríamos nosso propósito elevado
terminando um ao outro —, e já que, por exemplo, as atitudes da ciência59
e investigaríamos somente o reflexo de nossas noções e teorias subjetivas.
frequentemente influenciam a política doméstica, interesse igual deve ser
Com isso, entretanto, não queremos simplesmente dizer que o indivíduo
devotado a todos esses fatores. Do contrário nos tornaríamos incapazes de
deva permanecer atrelado à aparência, ao seu quando, onde ou como. Pois,
compreender um aspecto sem o outro e trabalharíamos ao contrário da
assim, somente tomaríamos o domínio de algo externo, apesar de nosso pró-
finalidade da cognição. Nisso reside a liberdade de preconceitos que dese-
prio princípio nos dirigir para o interior.
jamos. Isso não é uma falta de interesse, mas sim um interesse em cognição
2. Consequentemente, um estudo documental, penetrante e pro-
pura, despida de noções preconcebidas. Mas como? Poderia esse esforço
fundo faz-se necessário. Antes de tudo, esse estudo deve ser devotado ao
penetrante e essa busca da verdade apenas dissecarem a unidade do campo
fenômeno em si mesmo, à sua condição, seu ambiente, principalmente
em partes individuais, e com isso não nos ocuparíamos somente com séries
pela razão de que nós, de outra maneira, seríamos incapazes de conhecer
a sua essência, seu conteúdo; pois, em última análise, como cada unida- de fragmentos?
de é uma unidade espiritual, ela pode somente ser apreendida através da 4. Investigação do nexo causal. Basicamente, deveríamos estar satis-
percepção espiritual.58 Essa percepção clara repousa sobre a aceitação das feitos com uma informação simples — satisfeitos que elas correspondam
leis, de acordo com o que a mente observadora procede com aquelas que meramente ao objeto. Nossa exigência original teria sido satisfeita se exis-
determinam o surgimento do objeto em observação. Aqui, já é possível ser tisse ao menos uma sequência entre os vários eventos. Mas há uma conexão
entre eles. Eventos que são simultâneos tocam e afetam uns aos outros; os
que precedem determinam os que se seguem; há uma conexão interna de
causa e efeito. Embora esse nexo causal não seja designado por datas, ele
56
Holanda (1979) e Gay (1990) são categóricos em afirmar a influência da religiosidade no
pensamento de Ranke. (N. do T.)
57
Ranke distingue a história da ficção, a narrativa histórica como antagônica à ficcional em
relação ao princípio da referência ao real, semelhantemente a Humboldt. (N. do T.) 59
No original, die wissenschaftlichen Richtungen — sentido não muito claro nesse contexto (nota
58
Fritz Stern (1973:56-57) analisa essa questão, relacionando-a com o círculo hermenêutico. 9 de Iggers e Moltke, 1973:40).

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existe, não obstante. Ele existe, e porque ele existe devemos tentar reorga- 5. Imparcialidade. Como uma regra, dois partidos rivais aparecem na
nizá-lo. Esse tipo de observação da história, que deriva efeitos de causas, história mundial.64 As disputas em que esses partidos estão engajados são,
chama-se pragmática;60 mas gostaríamos de compreendê-la não na maneira com certeza, muito diferentes, mas relacionadas intimamente. Nós sempre
usual, mas de acordo com nossos conceitos. vemos uma desenvolver-se da outra. Que ninguém acredite que eles serão
Desde o desenvolvimento da historiografia contemporânea, a escola tão facilmente esquecidos no curso do tempo. Há no homem uma confian-
pragmática de pensamento, tal como aplicada às ações, tinha introduzido ça feliz no julgamento da história e da posteridade que é apelada mil vezes.
um sistema de acordo com o qual egoísmo e sede de poder seriam a mola Mas, raramente esse julgamento é transmitido objetivamente. Não sobre-
principal de todas as ações.61 O que é usualmente requerido é explicar as vive conosco um interesse similar àquele do passado. Julgamos o passado
ações observáveis dos indivíduos como o resultado de paixões que deriva- muito mais, repetidas vezes, pela situação presente. Talvez esse traço nunca
mos dedutivamente do nosso conceito de homem. O ponto de vista resul- tenha sido pior que no presente, quando alguns interesses que permeiam
tante tem uma aparência de aridez, irreligiosidade e falta de sensibilidade toda a história mundial ocupam a opinião geral e, mais do que nunca, a
que nos conduz ao desespero. Não posso negar que o egoísmo e a sede de dividem em muitos prós e contras.
poder podem ser motivos muito poderosos e tiveram grande influência, Esse pode ser o caminho do proceder na política, mas não é verda-
mas nego que eles sejam os únicos.62 Antes de mais nada, temos que inves- deiramente histórico. Nós, que buscamos a verdade, mesmo em erro, que
tigar a informação genuína tão precisamente quanto possível para determi- vemos cada existência como permeada de vida original, devemos acima de
nar se podemos descobrir os motivos reais. Fazer isso é bem possível, mais tudo evitar esse erro. Onde houver conflito similar, ambos partidos devem
do que frequentemente se pode pensar. Somente quando esse caminho não ser vistos sobre seu próprio terreno, em seu próprio desenvolvimento, por
nos conduz mais além, é-nos permitido conjecturar. Que ninguém acredite assim dizer, em eu próprio estado particular interior. Nós devemos com-
que essa limitação pode restringir a liberdade de observação. Não! Quanto preendê-los, antes que julgá-los.
mais documentada, mais exata e mais frutífera a pesquisa, mais livremente Poder-se-á levantar a objeção de que o escritor, também aquele que des-
pode se desdobrar a nossa arte, que só floresce no elemento da imediata e creve, deve ter sua opinião, sua religião, das quais não pode se desvencilhar.
irrefutável verdade! Motivos apenas inventados são estéreis. Os verdadei- Essa objeção seria justificada se nós presumíssemos dizer quem está
ros, derivados de observações pontuais, são diversos e profundos. Assim correto em cada disputa.65 É muito possível que, mesmo no calor de uma
como o conhecimento em geral, mesmo nosso pragmatismo é documen- disputa, já saibamos claramente que lado apoiaríamos, em favor de qual
tal. Ele pode mesmo ser muito reticente e ainda muito essencial. Onde os opinião decidiríamos. Também é possível que aquela imparcialidade que,
eventos falam por si, onde a composição pura manifesta a conexão, não é em um conflito entre duas opiniões divergentes, geralmente vê a verdade
necessário falar dessa vinculação detalhadamente.63 no meio-termo torne-se impossível para o historiador, já que ele é defini-
tivamente muito devotado a sua própria opinião. Mas isso não é tudo que
importa. Podemos ver o erro, mas onde não há erro? Isso não nos levará a
60
Ranke faz a distinção que também será feita posteriormente por Bernheim (1903) entre his-
tória genética e história prática. (N. do T.)
61
De certo modo, há uma referência implícita aos historiadores iluministas, como Voltaire,
adeptos desse modo de pensar a história. (N. do T.) 64
Partidos que expressam as forças da ordem e da desordem, “que constituem as condições
62
Agentes da história. (N. do T.) primeiras do processo do mundo” (White, 1995:181). (N. do T.)
63
Aqui fica claro onde Ranke sugere que os fatos possam falar por si e, como se pode ver, não 65
Aqui se evidencia uma defesa radical pela não tomada de posição, pelo não julgamento, pela
parece ser algo amplo, mas muito específico, que ocorre em casos particulares de grande com- ausência de juízos de valor em relação às ações humanas no passado, expressão da imparciali-
provação empírica e de evidência espiritual. (N. do T.) dade rankiana. (N. do T.)

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negar as realidades da existência. Perto do bem, nós reconhecemos o mal, 6. Concepção de totalidade. Assim como existe o particular, a cone-
mas este é um mal que é inerente à situação. xão entre um e outro, há também finalmente a totalidade. Se isto é uma
Não são opiniões que nós examinamos. Nós lidamos com a exis- vida, portanto alcançamos sua aparência. Percebemos a sequência pela
tência que tem reiteradas vezes a mais decisiva influência em disputas qual um fator segue outro. Mas não é o bastante. Há também algo de total
políticas e religiosas. Aqui erguemo-nos para contemplar o caráter essen- em cada vida; ela começa, exerce efeitos, adquire influência, ela prossegue.
cial das oposições, dos elementos em conflito, vendo quão complexos e Essa totalidade é tão certa em cada momento quanto em toda expressão.
entrelaçados eles são. Não nos cabe julgar erro e verdade enquanto tais. Precisamos devotar toda nossa atenção a isso. Se estamos tratando com
Nós meramente observamos uma figura surgindo lado a lado com outra um povo, não estamos somente interessados nos momentos individuais de
figura; vida, lado a lado com vida, efeito, lado a lado com efeito contrário. suas expressões de vida. De preferência, tratamos da totalidade de seu de-
Nossa tarefa é investigá-los na base de sua existência e retratá-los com senvolvimento, de suas ações, suas instituições e sua literatura, a ideia nos
completa objetividade. fala tanto que simplesmente não podemos negar nossa atenção. Quanto
Até o presente, dois grandes partidos engajaram-se em uma batalha mais longe vamos, mais difícil é, claro, chegar à ideia — pois aqui também
para a qual a resistência e o movimento das palavras tornaram-se um lema. podemos realizar algo somente através da pesquisa exata, através de uma
A história posiciona-se fora do partido que deseja a preservação eterna, compreensão passo a passo, e através do estudo dos documentos. Se esse
assim como do movimento contínuo avante. Alguns consideram ser a pre- processo procede através da indução do já sabido, ele é um conhecimen-
servação o legítimo princípio. Esses encontram uma legalidade na preser- to intuitivo (divination);66 se procede de uma prenoção, toma a forma
vação de certo status quo, de uma lei definitiva. Eles não querem perceber de proposições filosóficas abstratas. Vê-se quão infinitamente difícil são
que o que existe deriva da reforma pelos conflitos que destruíram o que os objetos da história universal. Que quantidade infinita de fontes! Que
existia antes. Mas, por outro lado, a história cessaria. Ela alcançaria em diversidade de esforços! Como é difícil trabalhar apenas com o parti-
algum ponto o seu objetivo. Não deveria haver, por assim dizer, nenhuma cular. Afinal, há muitas coisas que desconhecemos; então, como vamos
condição ilegal, nada que a razão pudesse confrontar com uma conclusão entender o nexo causal em todo lugar ou ir ao fundamento essencial da
impossível. Mas a história tampouco aceitaria a suplantação do velho, como totalidade? Considero impossível resolver esse problema inteiramente. Só
se fosse algo completamente morto e inutilizável, sem consideração para com Deus conhece a história universal. Reconhecemos as contradições — “as
interesses locais ou particulares. Se a história evita a violência na observação, harmonias”, como disse um poeta indiano: “conhecido pelos deuses, ig-
com maior vontade evitará a violência na execução. Este destruir, mudar e norado pelo homem”, nós podemos apenas intuir, somente nos apro-
novamente demolir não é o caminho da natureza. Ela é a condição de uma ximar à distância. Mas, para nós, existe claramente uma unidade, uma
ruína interior que se manifesta dessa maneira. Ela é um organismo em con- progressão, um desenvolvimento.
flito consigo mesmo, certamente curioso de se observar, mas não agradável. Então, pelo caminho da história chegamos até a definição da tarefa
A história, é claro, reconhece o princípio do movimento, mas como evolu- da filosofia. Se a filosofia é o que devia ser, se a história fosse perfeitamente
ção, e não como revolução. Esta é a verdadeira razão por que reconhece o clara e completa, então elas poderiam coincidir completamente uma com
princípio da resistência. Somente onde movimento e resistência equilibram a outra. A ciência histórica imiscuiria seu sujeito de análise com o espírito
um ao outro sem se envolverem nessas batalhas violentas e vorazes pode a da filosofia. Se a arte histórica pode então surgir ao dar vida ao sujeito con-
humanidade prosperar. Somente porque a história reconhece a ambos, pode creto e ao reproduzi-lo com aquela parte de força poética que não pensa
ser justa com ambos. Não cabe à história sequer julgar em teoria o conflito
que o passado ensina. A história sabe muito bem que o conflito será decidido 66
A divinação é uma das operações iniciais do método compreensivo, tal como se apresenta na
de acordo com a vontade de Deus. hermenêutica de Schleiermacher. (N. do T.)

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novas coisas, mas que espelha em seu caráter verdadeiro aquilo que conse- a Terra. Em nosso método, não revelamos nada sobre esses tópicos; permi-
guiu apreender e compreender, ela iria, como dissemos no início, unir de tamo-nos confessar nossa ignorância.69
maneira peculiar ciência e arte ao mesmo tempo. Como para os mitos, não quero negar categoricamente que eles sequer
contenham um elemento histórico ocasional. Mas a coisa mais importante
é que eles expressam o olhar de um povo sobre si mesmo, sua atitude dian-
Do alcance da história mundial
te do mundo etc. Eles são importantes, sobretudo, como uma característica
Em três caminhos — com respeito a (1) sequência, (2) simultaneida- subjetiva de um povo ou como seus pensamentos foram expressos neles,
de e (3) desenvolvimentos individuais.67 não por causa de algum fato objetivo que possam conter. Em um primeiro
1. Sequência — Em resumo, a história abrangeria toda a vida da hu- aspecto eles possuem um firme fundamento e são muito confiáveis para a
pesquisa histórica, mas não em última instância.
manidade surgida no tempo. Mas muito desta é também perdida e desco-
Finalmente, não podemos devotar maior atenção àqueles povos que
nhecida. O primeiro período de sua existência e seus elos estariam perdi-
ainda hoje permanecem em um tipo de estado de natureza e que nos le-
dos sem qualquer esperança de serem encontrados novamente.
vam a supor que aquilo que eles foram desde o início mantivera-se, que a
Podemos perceber que significado a história tem. Se autores de outro
condição pré-histórica tinha sido preservada neles. Índia e China reivindi-
tipo estão perdidos, perde-se a expressão do individual. Em um livro histó-
cam uma era de ouro e têm uma longa cronologia. Mas até o mais arguto
rico, entretanto, expressam-se não somente a existência e o olhar de um au-
cronologista não pode compreendê-la. Sua antiguidade é lendária, mas sua
tor; o livro histórico interessa-nos por causa do que contém das vidas dos
condição é antes um caso para a história natural.
outros. Muito que era descrito foi perdido, algo que pode ter sido descrito.
Tudo isso é ameaçado pela morte. Somente aqueles que a história relembra
não estão completamente mortos; seu caráter e sua existência continuam
a existir na medida em que eles permanecem na consciência dos homens.
Somente com a extinção da memória estabelece-se a morte.68
Somos afortunados quando vestígios documentais permanecem. Pelo
menos eles podem ser compreendidos. Mas o que acontece quando não
existe nenhum, como, por exemplo, na pré-história? Estou de acordo em
excluir esse período da história porque ele contradiz o princípio histórico,
que é a pesquisa documental.
Alguém poderia excluir por completo aquilo que comumente é to-
mado sobre a história mundial da dedução geológica e dos resultados da
história natural a respeito da primeira criação do mundo, o sistema solar e

67
Esta é uma sentença incompleta no original alemão. Nota 14 de Iggers (1988:45).
68
Passagem que evoca a abertura das Histórias de Heródoto: “Heródoto de Halicarnasso apre-
senta aqui sua historíe, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague 69
Ranke prenuncia a distinção feita por Wilhelm Windelband (1848-1915) que, em discurso
da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros, quanto famoso de 1894, insistiu na separação entre história e a história natural, aproximando esta últi-
pelos gregos, não cessem de ser retomadas” (apud Hartog, 1999:17). (N. do T.) ma das ciências naturais, devido ao seu caráter nomotético. (N. do T.)

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Gabriel Monod do forte sentimento nacionalista que o acompanhou ao longo da vida. A


repulsa ao militarismo do império alemão, vitorioso e expansionista com
Teresa Malatian a anexação da Alsácia-Lorena, resultou na escrita do livro Alemães e fran-
ceses. Na denúncia do chauvinismo e na recusa à violência firmava sua
posição pacifista.
A derrota da França na guerra, porém, não abalou sua admiração
pelo desenvolvimento científico e cultural da Alemanha, que tinha como
paradigma. Separava os dois aspectos: a política militarista de Bismarck e
a sedução intelectual pela cultura germânica, partilhada por intelectuais
franceses contemporâneos, postura que lhe valeu ser conhecido como
germanófilo e atraiu-lhe a antipatia do nacionalismo francês extrema-
do, catalisado por Charles Maurras e pelo movimento radical da Action
Française.
Seu brilhantismo crescente resultou na distinção profissional. Tornou-
se diretor de estudos e logo presidente da IV.e section da École Pratique des
Hautes Études, professor da École Normale Supérieure (1880), da Faculdade
“Nosso século é o século da história.” A frase otimista e de efeito inserida
de Letras de Paris (1904) e membro da Academia de Ciências Morais e Po-
no manifesto de fundação da Revue Historique condensa as preocupações
líticas (1897). A máxima consagração veio com o Collège de France (1906),
e o direcionamento da vida desse historiador, considerado um dos marcos
local de enorme prestígio intelectual, ápice de sua carreira, onde ocupou a
da historiografia do século XIX, na proposta de um procedimento meto-
cadeira de história geral e método histórico.
dológico claramente voltado para a inclusão da disciplina no campo cien-
Na École des Chartes, consagrada instituição de exame e leitura crítica
tífico marcado pelo positivismo. Gabriel Monod (1844-1912) lançava-se
de textos antigos, seguiu cursos como ouvinte e ali desenvolveu sociabili-
para a consagração como intelectual ainda muito jovem, aos 32 anos de
dades que teriam um papel preponderante em sua inserção no campo in-
idade, na sequência de um percurso promissor iniciado na École Normale
telectual e político da Terceira República (1870-1940). Sob o selo da École
Supérieure.
publicaram-se importantes estudos históricos, críticas de fontes e resenhas
Nascido em uma família de comerciantes da Normandia, neto de pasto-
de livros (Bibliothèque de l’École des Chartes — BEC). Por esse ambiente de
res protestantes, cresceu em ambiente propício à vida intelectual, prolonga-
estudos também ficaria marcada a formação de Monod.
do pelos estudos em Paris, onde frequentou círculos liberais e protestantes.
Era de fato o século da história, cuja inserção no campo da ciência vi-
Essa formação seria completada com cursos de paleografia seguidos na Ale-
nha sendo almejada por historiadores imbuídos do cientificismo e ampara-
manha, em 1865/1866, onde viveu também a decepção com Berlim e sua
da pela participação do Estado na construção de instituições favoráveis ao
atmosfera intelectual, à qual não conseguiu adaptar-se.
desenvolvimento do ofício do historiador que então se profissionalizava:
Grandes eventos marcaram sua vida, em especial a Guerra Franco-
Prussiana (1870/1871), na qual se engajou como enfermeiro, imbuído
ração de territórios franceses a esse novo Estado. Após a derrota de Sedan, o imperador Napo-
leão III foi feito prisioneiro, gerando-se assim condições para a proclamação da Terceira Repú-

Envolveu a França e os Estados germânicos encabeçados pela Prússia. Ocorreu no contexto blica francesa.
da unificação do império alemão, liderada pelo chanceler Otto von Bismarck e visou à incorpo- 
Monod, 1872.

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bibliotecas, arquivos, museus, patrocínio para publicação de grandes co- atribuir-lhes a responsabilidade pelo essencial da obra historiográfica da
leções. Ampliava-se também um público consumidor de história, no con- França no século XIX. Renan, pelas lições de método crítico; Taine, pela
texto nacionalista e de expansão colonial dominado pela burguesia. Isso foi tentativa filosófica de fazer da história uma ciência; Michelet, por deter
particularmente válido para a Alemanha, onde já se instituíra uma forma- o segredo criador da visão e da ressurreição do passado. Ali claramente
ção específica e especializada do profissional da história e os métodos de expôs uma concepção de história, devedora dos três historiadores. A dis-
investigação estavam adiantados na heurística e publicação de coleções de ciplina teria por objetivos criticar as tradições, os documentos e os fatos;
fontes documentais. desprender a filosofia das ações humanas, descobrindo as leis científicas
A inserção de Monod nesse ambiente favorável aos estudos históricos que as regem; dar vida ao passado. Com isso a perspectiva aberta em 1876
logo daria seus resultados. Em 1876 ele lançou a revista que o consagraria consolidava-se, depurava-se.
como chefe de escola historiográfica. Com um texto-manifesto intitulado Para bem alcançar a objetividade histórica em seu manifesto Monod
Do progresso dos estudos históricos na França desde o século XVI (reproduzido propunha uma revista que deveria colocar-se acima dos partidos políticos,
na íntegra mais adiante, excetuando-se as notas de erudição), inaugurava a publicando estudos históricos sem preconceitos, conciliadores e estrita-
Revue Historique, que se definia tanto pela oposição à já antiga de nove anos mente norteados pelo desejo de conhecimento científico. Neste aspecto,
Revue des Questions Historiques quanto pela afirmação de uma concepção revelava sobretudo seu descontentamento com o enfoque monarquista e
metodológica adequada às pretensões cientificistas da disciplina então em católico da Revue des Questions Historiques, constituída como oponente.
voga: o estudo imparcial e simpático do passado. Portanto, uma revista A primeira característica comum aos membros do grupo reunido por
destinada ao combate pela modernização ou atualização da disciplina aos Monod e tidos como padrinhos da revista era o fato de terem formação e
paradigmas vigentes no campo da ciência positiva. profissão no campo da história, portanto “trabalhadores sérios”, “funcioná-
Ao se posicionar contra a Revue des Questions Historiques, a Revue His- rios de Clio” saídos em grande parte da École Normale Supérieure ou da
torique demarcava para si um território republicano e laico, porém atento École des Chartes. A lista de “fundadores” incluía intelectuais de diversas
à preservação da pesquisa histórica desinteressada e científica. Na impos- tendências e alocações institucionais, entre eles Lavisse, Littré, Renan, Fus-
sibilidade de inaugurar um marco zero, Monod reconheceu ter nela se tel de Coulanges, Rambaud e Vidal de la Blache.
inspirado ao formatar sua revista, imitando-a para melhor conhecê-la. Assim o manifesto anunciava uma nova postura, a pretensão de fun-
Por outro lado, não bastava ser contrário a um campo historiográfico, dar uma revista que veiculasse uma história objetiva, científica, e formasse
era preciso firmar posição por meio de uma proposta efetiva que indivi­ uma escola visando firmar um paradigma para os historiadores e os que
dualizasse e distinguisse o grupo articulado por Monod e Gustave Fagniez. aspiravam a sê-lo. A adesão ao método era fundamental para essa indivi-
Tratava-se de reunir e dar identidade a vozes discordantes, não articuladas duação no campo historiográfico da época. Um método baseado na con-
em torno de um programa, porém inspiradas em Taine e Renan, que fize- cepção da história como ciência positiva, conhecimento fundamentado em
ram trabalhos de crítica histórica e apostaram no papel da dúvida cética documentos a serem criticamente analisados, para que do crivo da crítica
para a eficácia do trabalho do historiador. O papel de seus maîtres à penser, surgisse a verdade sob a forma de fato histórico.
Renan, Taine e Michelet, seria explicitado posteriormente por Monod ao Nos primeiros anos, a Revue Historique foi essencialmente uma arma
de combate, um episódio na longa batalha científica e política na França da
segunda metade do século XIX. Os sentimentos contraditórios em relação

O manifesto foi republicado na íntegra pela revista em 1978 (v. 17, n. 518).

Gustave Fagniez (1842-1927), um dos fundadores da Revue Historique, formou-se na École
des Chartes e seguiu cursos de Monod na École des Hautes Études. Tornou-se especialista em
história medieval e moderna e trabalhou como arquivista. 
Monod, 1895.

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à Alemanha não impediram, antes favoreceram a abertura das portas da formação erudita do historiador. Tais aproximações com outras disciplinas
revista à colaboração de historiadores alemães, cuja atuação acadêmica era — geografia, etnografia e as ciências consideradas “auxiliares” da história
admirada. Motivo a mais para Monod ser acusado de germanofilia, num — foram particularmente sugestivas de abertura para novos campos do co-
difícil percurso que procurava distinguir ciência de política. nhecimento, mas elas não deram ensejo a qualquer tentativa de incorpora-
Carbonell assinala que o intuito era “rebater o desafio alemão. Para ção de seus conceitos e métodos pelos estudos históricos numa perspectiva
isso, era preciso colocar-se na escola da Alemanha, imitar o que ela pos- interdisciplinar. A história metódica permaneceu ocupada com o relato
suía de bom, e assim, graças ao gênio francês mantido intacto, restituir à do único, singular, particular, baseado na crítica das fontes e na erudição
França o lugar que havia sido seu: o primeiro”. A comparação se impôs amparada pelo método crítico das fontes.
como um desafio desde o primeiro número da revista, com o cotejamento Duas décadas depois, os princípios dessa metodologia divulgados
da historiografia da França e de além-Reno. Cinco anos haviam se passado pela revista seriam sistematizados por dois jovens historiadores, Charles-V.
desde a derrota mutiladora do território nacional, e este fato espicaçava Langlois e Charles Seignobos, que publicaram em 1898 a Introdução aos es-
um ajuste de contas, ao menos no plano intelectual. Ranke e Mommsen tudos históricos. Nesse verdadeiro tratado de método, a proposta de Monod
forneciam os métodos a serem utilizados pela historiografia francesa que se foi de fato codificada e operacionalizada num manual para estudantes e
pretendesse científica: crítica interna rigorosa dos textos, reconstituições, profissionais; e, a despeito dos paradoxos decorrentes dos posicionamen-
análises desvinculadas da filosofia e da literatura. A auto-obliteração do tos políticos da revista e de seu fundador, formou gerações de profissionais
historiador era a garantia de uma história confiável e neutra, voltada para de história até mesmo após seu decreto de decrepitude por Simiand em
o estabelecimento do fato. 1903 e pelos Annales nas décadas de 1920-1930 — revista onde se articu-
O olhar retrospectivo lançado à revista permite que se tome uma lou a nova vanguarda de outros combates pela história e pela ocupação de
amostra do território temático por ela visitado. No período de 1876 a postos no establishment universitário francês.
1900, por exemplo, pode-se verificar um quadro variado da distribuição Cabe ainda sublinhar que o comprometimento maior de Monod era
dos temas publicados pelo periódico, ainda que nele predominasse a his- com a religiosidade na época da fundação da revista, e isso fica bastante
tória política: claro na exposição de seu manifesto inaugural. No entanto, aqui também
seu itinerário não deixou de ser acidentado. Formado no protestantismo,
F política interna — 21,3%;
passou à sedução pelo catolicismo, a que se seguiu uma crise de ceticismo
F política externa e história colonial — 15,8%;
para buscar novos horizontes no hinduísmo e no misticismo esotérico de
F história socioeconômica — 12,3%;
Schopenhauer. Ainda que em 1876, ao criar a revista, estivesse próximo do
F história religiosa — 11,4%;
protestantismo liberal, sua posição ecumênica o identificava antes como
F história militar — 9,6%;
historiador vinculado ao cristianismo. Monod viveu uma polêmica que
F outros temas — 9,6%.
dividiu opiniões a respeito das relações entre ciência e política.
Quanto à sua composição, além de resultados de pesquisas e publi- Os posicionamentos políticos de Monod mantiveram-se sempre no
cação crítica de fontes, a revista distinguiu-se pela publicação maciça de campo republicano, enquanto os restauradores formavam no campo opos-
resenhas críticas de alta qualidade e voltadas para temas relevantes para a to fileiras saudosas do Antigo Regime. Mas o republicanismo não o apro-


Den Boer, 1998:334. A respeito do tipo de história divulgada pela Revue Historique, ver tam-

Carbonell, 1978:344. bém Dosse (1992); Bourdé e Martin (1983).

Den Boer, 1998:334. 
Ribérioux, 1992.

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ximou da esquerda, e o espetáculo da Comuna de Paris lhe bastara para Um dos fundadores da Liga dos Direitos do Homem (1898), Monod
que temesse as sublevações populares. No entanto, sua tomada clara de participou do julgamento de Rennes diretamente no exame dos documen-
partido não o impelia à ação na política interna nos anos 1880; somente tos. Pela imprensa, incansável, Monod publicou cartas e artigos, inclusi-
na década seguinte seria solicitado e responderia a um apelo nacional no ve sob o pseudônimo de Pierre Molé (“Uma exposição imparcial do caso
caso Dreyfus. Em questão, a legitimidade do engajamento de intelectuais Dreyfus”). Seu envolvimento com o caso Dreyfus traduz o peso que o méto-
no debate político que polemizou o “imperativo cívico” em torno do caso do histórico crítico de documentos adquiriu na época do longo julgamento
Dreyfus. Dois modelos de eruditos então foram contestados e colocados iniciado em 1894 e encerrado em 1906, com a absolvição do acusado. A
face a face: de um lado, o do “homem completo”, jornalista, ensaísta, cien- École des Chartes, em especial, desempenhou nele um papel fundamental,
tista e ator político, que na tradição iluminista estava encarregado da mis- pois seus historiadores estiveram na linha de frente na batalha de perícias
são de intervir no debate político; de outro, o do “especialista” preocupado destinadas a verificar a confiabilidade dos documentos que sustentaram a
apenas com o conhecimento do real e a busca da verdade. As relações entre condenação de Dreyfus como espião a serviço da Alemanha.
saber e poder cavaram trincheiras e mobilizaram os historiadores.10 Por outro lado, além da validade do método rigoroso de exame
A atuação política de Monod nesse contexto é uma reviravolta. Supe- das provas, estavam em causa a própria autonomia da ciência histórica
rada a grande comoção da derrota na Guerra Franco-Prussiana, 20 anos se diante da política e a legitimidade da intervenção dos historiadores no
passariam antes que um novo evento sacudisse a França inteira e solicitasse debate político. O chamado ao “imperativo cívico” mobilizou tanto os
dos intelectuais um engajamento contra ou a favor do caso Dreyfus.11 que acreditavam na inocência de Dreyfus e consideravam o caso um
Monod foi então levado à primeira linha do combate que mobilizou erro judiciário quanto os situados no campo oposto. O próprio ofício do
o nacionalismo, o antissemitismo e a situação dos direitos humanos na historiador estava em causa, também, com os desdobramentos do deba-
França. Inicialmente descrente da inocência de Dreyfus, em 1895 mudou te sobre a autonomia da disciplina e sua função social. Nesse contexto,
sua posição após ouvir a família do acusado, duvidando da validade de um também a Revue Historique e a IV.e section da École Pratique des Hautes
processo realizado em ambiente antissemita e nacionalista inflamado. Études passaram por forte mobilização dreyfusista. Muitos historiadores
O exame do processo convenceu-o de que este se baseava em provas saíram da posição de reserva, de seus redutos acadêmicos, onde separa-
falsificadas, forjadas para atender a interesses que intitulou de “ódios religio- vam ciência e política, para participar da batalha pela identificação das
sos e raciais, sob a aparência de uma simples questão de justiça a um ato de provas do processo como verdadeiras ou forjadas.
traição à pátria”. Numa França dividida pela enorme repercussão do caso, Olhando o caso da perspectiva de Monod, é de se ressaltar que ele não
em carta publicada no jornal Le Temps em 6 de novembro de 1897, Monod participara da École des Chartes senão como aluno ouvinte, mas ali tecera
assumiu a defesa da inocência do acusado, reclamando a revisão do caso. relações com intelectuais e dela não se afastara após a criação de sua revis-
ta. Paul Meyer, codiretor da Revue, era um dos historiadores chartistas do
círculo de Monod. Além disso, Monod era bem relacionado nos meios po-
10
Ribémont, 2005.
11
O affaire Dreyfus consistiu num erro judiciário que resultou na condenação do capitão Alfred líticos, inclusive tinha contato com o ministro dos Negócios Estrangeiros.
Dreyfus (1859-1935). Em 1894 ele foi acusado de ter agido como espião e entregado documen- Havia fundado em 1880 a Société Historique com a finalidade de promo-
tos secretos do Exército francês aos alemães. Julgado por traição, foi deportado para a ilha do
ver discussões sobre política e filosofia. Cinco anos depois, ela já contava
Diabo, na Guiana Francesa. Em 1898, o escritor Émile Zola assumiu publicamente a defesa de
Dreyfus com a denúncia intitulada J’accuse, que motivou a reabertura do processo. Em Rennes, com 500 membros, entre juízes, advogados, diplomatas, parlamentares e
em 1899, um novo julgamento reafirmou a condenação, desta vez a 10 anos de trabalhos força- intelectuais. Com tal rede de sociabilidade, Monod foi chamado a partici-
dos. Somente em 1906 a inocência de Dreyfus foi reconhecida, motivando sua reabilitação. O
centro do julgamento final foi a prova de perícia do dossiê que o incriminara, e nela foi conclu-
par do esforço de provar a inocência de Dreyfus, sendo para isso colocadas
siva a constatação da falsidade dos documentos por historiadores especialmente convidados. à sua disposição cópias dos documentos fundamentais do processo. Sua

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estatura intelectual e reputação de respeitabilidade acabaram por colocá- jou-se com outros historiadores no combate pela questão do Oriente, que
lo no centro do furacão, servindo de bússola para outros historiadores. avaliava a situação do império otomano na perspectiva já consagrada na
Do ponto de vista historiográfico, o caso Dreyfus tornou-se uma batalha época: a do “grande doente” cuja morte era esperada a qualquer momento
de perícia centrada na necessidade de comprovação da credibilidade dos pelos analistas da política internacional. Monod prefaciou em 1898 a pri-
documentos que instruíram o processo judicial e na legitimidade do en- meira das muitas edições da obra de Édouard Driault, La question d’Orient,
gajamento de historiadores em questão que envolvia razão de Estado. O onde a história diplomática dos anos que antecederam a I Guerra Mundial
método e a competência legítima foram então postos à prova e respaldaram
foi sendo constantemente atualizada nas sucessivas reedições, num claro
os partidários da intervenção dos historiadores na vigilância crítica sobre
exemplo de engajamento de historiadores na história imediata ou do tem-
os direitos humanos. Afinal, as provas apresentadas contra Dreyfus foram
po presente, ou seja, na história contemporânea.12
consideradas frágeis e, decididamente, falsas.
O auge da participação de Monod nesse episódio ocorreu em 1898,
quando a carta de Émile Zola intitulada “J’accuse” foi divulgada, gerando
Do progresso dos estudos históricos na França
a denúncia e o envolvimento do escritor no processo. Até 1906, quando
desde o século XVI13
Dreyfus foi reabilitado, o processo mobilizou a competência profissional
dos historiadores a partir de seus títulos científicos, de seu reconhecimen- No momento de empreender uma publicação que contribuirá, es-
to pelos pares e, sobretudo, do uso do método científico que se supunha peramos, para o progresso dos estudos históricos em nosso país, importa
ser capaz de garantir a autonomia científica, a função cívica e nacional da determinar bem qual meta perseguimos, qual será o caráter dos trabalhos e
história. qual espírito inspirará nossas pesquisas.
Monod, que havia defendido a postura de distanciamento temporal Para precisar esses diversos pontos, nos pareceu que não seria sem
do historiador em relação aos eventos, jogou-se por inteiro na história de utilidade nem sem interesse lançar um olhar rápido sobre o caminho per-
seu tempo, na história do tempo presente, alargando assim o território corrido durante os últimos séculos pelas ciências históricas, a fim de me-
temporal pertinente ao seu ofício. Já não era possível, nesse caso, escapar lhor apreciar o grau de desenvolvimento que elas atingiram hoje, a tarefa
às paixões do presente, mas a confiança na lisura do método amparava a que lhes resta a cumprir e o caminho que elas devem seguir.14
reviravolta que unia ética e política, responsabilidade científica e de cida- A história, quer a consideremos como um ramo da literatura, quer
dania. A ciência histórica recebeu e aceitou a missão de encarregar-se da como uma ciência, data para nós do Renascimento. Sem dúvida, a Idade
Média15 havia tido entre seus cronistas escritores notáveis, tais como Join-
vigilância cívica.
ville, Villani ou Froissart, mas eles não são em sentido exato historiadores;
A grande comoção do caso Dreyfus foi também seguida pela mobili-
têm em vista antes o presente que o passado; querem mais conservar para
zação de intelectuais franceses, notadamente historiadores, a favor de mi-
norias perseguidas e de flagrantes violações dos direitos humanos. A histo-
ricização do caso contribuiu para que historiadores franceses se interessas-
12
Driault, 1898; Ter Minassian, 2008; Andoniam, 1913.
13
Monod, 1876.
sem por outras tragédias recentes. Foi o caso dos massacres de armênios 14
Esta exposição do progresso dos estudos históricos na França é ao mesmo tempo a introdução
no império otomano, prática corrente nas últimas décadas do século XIX, e o programa de nossa revista.
15
Aqui como em outras expressões, foi feita uma atualização da grafia no que diz respeito ao
mas em especial em 1898. Mais uma vez, Monod atendeu ao apelo cívico e uso de maiúsculas/minúsculas, conforme as formas consagradas na atualidade no Brasil. Os
coerente com a postura assumida na Liga dos Direitos do Homem e enga- nomes próprios e toponímicos foram traduzidos sempre que se trata de referências conhecidas,
conservando-se no idioma original as demais. (N. do T.)

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a posteridade a lembrança dos eventos que viram e dos quais tomaram do, reservado durante muito tempo a uma minoria privilegiada, tornou-se
parte do que expor para seus contemporâneos uma imagem fiel dos tempos uma paixão universal, a principal preocupação de quase toda a sociedade.
anteriores. Seu mérito literário consiste sobretudo na vida, no movimen- O humanismo teve uma influência decisiva sobre o desenvolvimento
to, na paixão que animam seus relatos, e não na arte com a qual a obra é da historiografia. Esta influência se exerceu em dois sentidos opostos. En-
composta, na justa proporção de suas partes, na equidade imparcial dos quanto os letrados e oradores, imitando os historiadores da Antiguidade,
julgamentos. substituíam as compilações sem arte da Idade Média por composições lite-
Na parte de suas obras em que eles não foram testemunhas oculares, rárias, nas quais a arte se desenvolvia muitas vezes em prejuízo da verdade,
mas narram os fatos que conheceram pelos escritores anteriores, os cronis- os filólogos, arqueólogos e juristas se aplicavam ao estudo das instituições,
tas da Idade Média são incapazes de representar os eventos e de relatá-los dos costumes e dos monumentos com esta curiosidade ardente sem a qual
de uma maneira original e pessoal; não sabem fazer outra coisa que copiar não existe verdadeira erudição. Foi por amor à Antiguidade que esta curio-
suas fontes, ou compor com seus extratos um mosaico. Aquilo que deno- sidade erudita logo despertou; da Antiguidade ela se estendeu à Idade Mé-
minamos pesquisas históricas, crítica histórica, não podia existir na Idade dia, a qual, à medida que o Renascimento se desenvolvia, tornava-se cada
Média. Não poderia ocorrer ao pensamento de um homem dessa época a vez mais para os homens do século XVI como que uma segunda Antiguida-
ideia de buscar nas diversas obras antigas ensinamentos esparsos sobre este de. Era preciso, de fato, para que o sentido histórico pudesse se desenvol-
ou aquele personagem, sobre este ou aquele fato, sobre esta ou aquela ins- ver, que o passado aparecesse bem claramente distinto do presente, que se
tituição para criar um conjunto novo, um quadro original. A curiosidade pudesse estudá-lo de um ponto de vista objetivo e como que a distância.
histórica, quando a encontramos, não era senão a reunião infantil de ane- Na Itália, foram dois humanistas, Flávio Biondo e Aeneas Sylvius
dotas tomadas de vários lugares, reunidas mais em vista do divertimento Piccolomini, os precursores da erudição histórica. Após eles, Paul Jove e
que da instrução, como a Otia Imperialia de Gervaise de Tilbury ou a Nugae Bembo compuseram obras em que a retórica teve mais espaço que a histó-
Curialium de Gautier Map. Existiram na Idade Média compiladores e cro- ria, mas que, apesar disso, passaram por modelos aos olhos de seus con-
nistas, não historiadores. temporâneos, enquanto eruditos como Albertini, Strada, Onofrio Panvini e
Não foi senão com o Renascimento que começaram de fato os estudos Sigonius inauguraram os estudos de arqueologia, epigrafia e numismática
históricos. A descoberta da imprensa mudou todas as condições do traba- pelo exame atento dos monumentos figurativos.
lho intelectual, facilitando a reunião de um grande número de livros, seu Enquanto na Itália a atenção dos sábios permanecia concentrada na
emprego simultâneo e sua comparação, estabelecendo uma demarcação Antiguidade, que oferecia um campo infinito de descobertas, na Alemanha,
sensível entre as épocas ainda bárbaras, nas quais não havia senão pesados onde os restos da Antiguidade eram pouco numerosos e as tradições e insti-
e grossos volumes escritos em pergaminho, e a era nova em que o pensa- tuições da Idade Média subsistiam mais vivas que em qualquer outro lugar,
mento se difundia facilmente por toda parte, ao mesmo tempo sob uma o estudo da Idade Média andou lado a lado com o da Antiguidade. Acon-
forma manejável e leve, graças a esta descoberta. Ao mesmo tempo que teceu na ciência histórica o mesmo que nas belas-artes. Assim como Albert
mudavam as condições de trabalho, uma revolução lentamente preparada Dürer, Holbein, Pierre Fischer, Lucas Cranach conservaram fortemente a
desde o século XI se fazia no espírito dos homens dos séculos XV e XVI. marca da Idade Média, mesmo que tivessem recebido o impulso vivificante
A Antiguidade, por muito tempo ignorada e desdenhada, foi redescoberta, do Renascimento italiano, C. Peutinger, Tritheim, Aventino, C. Celtes, Cus-
conhecida, admirada em seus monumentos, em suas instituições, em sua piniano, embora humanistas e ardorosos amantes da Antiguidade, tinham
história, sobretudo em suas obras literárias, que a imprensa logo colocou em relação às coisas da Idade Média um interesse que, naquela época, não
em todas as mãos. A cultura eclesiástica da Idade Média deu lugar, mesmo existia em parte alguma no mesmo grau. Desde 1474, publicou-se uma
entre as pessoas da Igreja, a uma cultura profana e laica. O estudo do passa- parte da crônica de Ursperg, que foi impressa completa em 1515 por C.

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Peutinger. Ele editou ao mesmo tempo Jordanis e Paulo Diácono, enquanto como o primeiro escritor francês que procurou substituir a crônica pela
seu amigo Celtes compunha sua Germania illustrata e recuperava as obras história; tanto isso é verdadeiro que é preciso fazer remontar aos humanis-
de Hroswitha e o poema intitulado Ligurinus. Depois do humanismo, a Re- tas a honra desse progresso literário.
forma veio dar novo impulso às pesquisas históricas. Os centuriadores16 de Se a literatura histórica foi lenta a se desenvolver na França, a erudi-
Magdebourg, ao aplicarem à história da Igreja uma crítica com frequência ção não fez progressos mais rápidos, sobretudo no que concerne à história
temerária e apaixonada, mas vigorosa e apoiada sobre vasta erudição, não nacional.
somente criaram uma obra que marcou época na ciência histórica, mas De fato, foi somente na segunda metade do século XVI que a curiosi-
também provocaram a composição do mais belo monumento da erudição dade histórica despertou verdadeiramente na França. As causas deste des-
católica do século XVI, os anais de Baronius. Pode-se considerar a crítica pertar são múltiplas. O movimento da Reforma foi acompanhado de uma
teológica como o ponto de partida e a origem da crítica histórica. Esta in- aceleração da atividade intelectual, de um espírito quase universal de livre
fluência da teologia sobre a história, sensível no século XVI, foi ainda mais pensamento e de investigação científica; as lutas políticas forçavam todos
importante no desenvolvimento da erudição alemã do século XVIII. os que se encontravam nelas envolvidos a procurar armas na história e
A França, cujo desenvolvimento esteve no século XVI tão intimamen- na erudição; os grandes trabalhos de jurisprudência, o desenvolvimento
te ligado ao da Itália, demorou a se interessar pelos estudos históricos. dos estudos jurídicos, aos quais presidiam os homens ao mesmo tempo
Enquanto para os eruditos alemães a Idade Média era a época do poder imbuídos da Antiguidade e versados no conhecimento das leis herdadas da
imperial, herdeira direta do império romano, para os estudiosos franceses Idade Média, os impeliam ao exame das instituições nacionais da França.
a Idade Média não era senão a época da feudalidade e da barbárie; e via-se Também se vê que os eruditos, que estiveram à frente por seus trabalhos
já nascer esse desprezo por nosso passado nacional, que deveria aumentar históricos ao final do século XVI, eram protestantes ou homens que per-
entre os letrados durante os séculos XVII e XVIII, contribuir para com as tenciam ao grupo dos políticos e professavam, se não o ceticismo filosófico,
violências revolucionárias e prejudicar ao mesmo tempo a ciência histórica ao menos as ideias galicanas17 e hostis às tendências ultramontanas; enfim,
e o desenvolvimento político do país. Foi um humanista e italiano, Paolo quase todos eram jurisconsultos, homens de toga, advogados, conselhei-
Emili, de Verona, quem ensinou aos franceses a arte de escrever a história ros, juízes nos parlamentos.
quando compôs, em latim, atendendo ao pedido de Luís XII, seu De rebus As obras desses diversos eruditos testemunham uma prodigiosa ati-
gestis Francorum, onde encontramos todo o aparato retórico à maneira de vidade intelectual. Todos os assuntos eram abordados, empreendimento
Tito Lívio que fez a reputação de Paul Jove e de Bembo. Esta história pa- de uma singular audácia. Enquanto Scaliger estabelecia as bases de uma
receu tão maravilhosa aos contemporâneos que, durante longos anos, nin- cronologia metódica, Etienne Pasquier esboçava a história das instituições,
guém ousou rivalizar com ele; e quando em 1576 du Haillan compôs uma Fauchet submetia pioneiramente as Antiquités gauloises et françoises a uma
nova História da França, não fez senão traduzir Paul-Émile, intercalando crítica imparcial, Bodin e La Popelinière procuravam estabelecer os princí-
ali extratos de crônicas e de considerações políticas geralmente errôneas. pios do método e da crítica histórica.
No entanto, não foi sem motivo que Augustin Thierry assinalou du Haillan

17
O galicanismo constituiu uma tendência da Igreja Católica na França de procurar tornar-se
independente de Roma e do papa. O termo origina-se de Gália, antigo nome da França. No
16
O termo está relacionado à obra Centuries de Magdebourg, a primeira história protestante da contexto do absolutismo, expressou a busca de autonomia do poder real em relação à autori-
Igreja, que utilizou a periodização em séculos como recurso indispensável para situar eventos dade temporal do papado. Em 1692 o rei Luís XIV promoveu uma assembleia do clero francês
no passado. O início desse procedimento metodológico recua a 1559, quando historiadores que afirmou as liberdades religiosas da Igreja em seu território. Opôs-se à autoridade do papa
reunidos em torno de Faccius Illyricus publicaram o primeiro volume das Centuries, nome re- e às teses ultramontanas que defendem a submissão de toda a Igreja à Santa Sé, inclusive em
sumido e consagrado de uma obra dividida em volumes segundo os séculos. (N. do T.) assuntos temporais. (N. do T.)

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Esses esforços, que testemunham uma curiosidade tão inteligente, talhe, ensinar os historiadores a se servirem de documentos. Essa foi a obra
um tão vivo ardor da erudição, eram prematuros. As paixões contempo- dos eruditos do século XVII, continuada durante o século XVIII; obra que,
râneas exerciam um império muito poderoso sobre os homens do sécu- apesar dos progressos alcançados desde então, não está ainda hoje termi-
lo XVI para que eles pudessem julgar com imparcialidade as instituições nada. A pacificação das paixões políticas e das paixões religiosas contribuiu
do passado; eles não amavam suficientemente a Idade Média para poderem poderosamente para dar esta direção nova aos estudos históricos.
compreendê-la bem e, ao mesmo tempo, procuravam demais a justifica- Enquanto no século XVI os historiadores se envolveram nas lutas parti-
ção e a confirmação de suas ideias políticas contemporâneas. Por outro dárias, serviram-se da erudição como arma de combate, professando mesmo
lado, os documentos publicados eram ainda pouco numerosos, as ciências a maioria opiniões, se não heréticas, ao menos audaciosas e um pouco revo-
auxiliares da história pouco desenvolvidas, a crítica muito vacilante para lucionárias, no século XVII, pelo contrário, eles trabalharam com a assistên-
que fosse possível resolver todas as questões que eles abordavam com uma cia e por assim dizer sob a direção da realeza; foram os fiéis servidores dela e
confiança juvenil. Eles queriam construir o edifício antes de colocar seus quase todos tiveram funções e um caráter oficiais.
fundamentos. Pasquier, Bodin e Hotman eram demasiado passionais; Fau- Ao lado dessa influência monárquica e governamental que se exerceu
chet e La Popelinière tinham entre as mãos materiais muito insuficientes pelos grandes ministros do século XVII, uma outra influência agiu tam-
para poder criar obras duradouras. Eles plantaram sementes úteis, abriram bém fortemente sobre a erudição histórica: a influência eclesiástica. Desde
os caminhos para os historiadores futuros, não deixaram nada de defini- que as guerras de religião chegaram ao fim, e que os decretos do Concílio
tivo. Os alemães, bem inferiores nessa época aos franceses do ponto de de Trento19 fizeram na Igreja uma reforma parcial; desde que os perigos
vista da inteligência, da originalidade e da profundidade de visão, prepara- da anarquia democrática dos ligueurs e da anarquia aristocrática dos pro-
vam mais utilmente o terreno para as pesquisas históricas, publicando de testantes foram afastados, a religião na França foi pacificada como tudo
1566 a 1610 oito compilações de historiadores da Idade Média, enquanto a mais. Tendências diversas dividiam sem dúvida o clero, mas sem causar,
França não havia ainda produzido senão as coletâneas de Pithou e de Bon- ao menos até a explosão contra o jansenismo,20 graves dissidências. Todos
gars. Também ocorreu que um erudito dinamarquês publicou em 1616, na os membros do clero secular e do clero regular21 encontravam-se unidos
Holanda, a primeira obra séria sobre as origens da história da França, as no exercício dos deveres de seu estado, no respeito pela autoridade real
Origines francicae de J. Isaac Pontanus. e no zelo comum pelo estudo e pelos trabalhos intelectuais. Sem dúvida
A França não tardou em ir à desforra. Enquanto na Alemanha a Guer- eles não podiam trazer essa audácia para as pesquisas e teorias, essa inde-
ra dos Trinta Anos18 não somente convulsionava o Estado, mas também pendência que torna tão interessantes e simpáticos os eruditos do sécu-
trazia a ruína para o país inteiro e paralisava quase inteiramente o trabalho lo XVI; mas possuíam outras qualidades que faltavam a seus predecessores.
intelectual, a França, pacificada por Henrique IV e Richelieu, entrava num
período de atividade regular e fecunda. Era necessário, porém, que um tra-
balho mais metódico desse à erudição histórica essas bases sólidas, sem as
19
O Concílio de Trento (1545-1563) consistiu num dos momentos fundadores da Igreja Católica.
Foi convocado pelo papa Paulo III para garantir a unidade da fé e da disciplina eclesiástica em
quais todo trabalho de generalização seria prematuro. Era preciso antes de reação à Reforma protestante. Também conhecido como Concílio da Contrarreforma. (N. do T.)
tudo publicar textos, elucidar por uma crítica minuciosa os pontos de de- 20
O jansenismo foi um movimento religioso e político na França e na Bélgica, nos sécu-
los XVII e XVIII, de inspiração calvinista. Expressou uma reação ao absolutismo real e a aspec-
tos da Igreja Católica, sendo seu ponto fundamental a crença de que o pecado original implicou
a corrupção irremediável da natureza humana e a inclinação do homem para o mal. (N. do T.)
18
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) consistiu em diversos conflitos entre reinos europeus, 21
Os membros do clero regular seguem, como o nome diz, as regras de uma ordem ou congre-
motivados por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. O Sacro Império Romano gação religiosa, vivendo em mosteiros. Já o clero secular vive no “século”, pois está submetido
Germânico e a casa de Habsburgo constituíram seu centro principal, mas também foram envolvi- apenas à autoridade de um bispo, trabalhando a serviço exclusivo de uma diocese. Vive a vida
dos a Suécia, os Países Baixos e a França. Terminou com a Paz de Vestfália (1648). (N. do T.) cotidiana em contato com o mundo dos leigos. (N. do T.)

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Tinham a paciência, o método, o espírito de tradição que permite os vastos maravilhoso conhecimento da literatura hagiográfica, mas também um sen-
e longos empreendimentos, a regularidade e a prudência no trabalho, en- so muito correto, uma liberdade de julgamento e um sábio ceticismo que
fim e sobretudo o amor e a compreensão da Idade Média, que é a grande nem sempre são encontrados no mesmo grau nas obras dos beneditinos.
época da Igreja. O século XVI havia reencontrado a Antiguidade; somente Por mais importante que tenha sido a obra dos jesuítas, dos orato-
no século XVII teve início, na França ao menos, a redescoberta da Idade rianos, do jansenista Tillemont e de alguns membros do clero secular, tais
Média. A história da Idade Média é em grande parte a história da Igreja Ca- como Pierre de Marca ou Longuerue, ela empalidece ao lado dos trabalhos
tólica; não se pode separar uma da outra, e era impossível compreendê-la da ordem ilustre, cujo nome é suficiente para despertar a ideia de uma
sem conhecer o direito canônico, a teologia, a disciplina eclesiástica, numa erudição inesgotável e trabalhos infatigáveis. Uma ciência de beneditino,
palavra, toda a vida da Igreja. Era preciso ser guiado por um verdadeiro um trabalho de beneditino, essas expressões se tornaram proverbiais; e,
amor ao passado para empreender os longos e áridos trabalhos solicitados ainda que uma parte da glória intelectual associada a esse nome deva ser
para o escrutínio dos manuscritos e das cartas legadas pela Idade Média. relacionada aos beneditinos da Idade Média, a maior parte dela recai so-
Onde se poderia encontrar esse conhecimento, essa inteligência, este amor bre a congregação criada em 1627 sob a invocação de Santo Amaro, e que
ao passado senão no clero? No clero regular sobretudo, cuja regra ordenava tinha por sede principal a abadia de Saint-Germain-des-Prés. Não será
os trabalhos do espírito entre os deveres religiosos, cujos conventos con- necessário enumerar os inumeráveis trabalhos históricos devidos aos be-
servavam acumulados há séculos imensas riquezas manuscritas, e onde a neditinos da congregação de Santo Amaro desde meados do século XVII
humildade e a obediência monásticas colocavam o devotamento obscuro até o fim do XVIII. Basta lembrar os nomes de d. Ruinart, de d. Marlot,
de todos a serviço do gênio de alguns. de d. Luc d’Achery, de d. Mabillon, o historiador de sua ordem, o criador
De todos os lados surgiram obras: jesuítas, oratorianos, jansenistas, da ciência diplomática, de d. Montfaucon, que estabeleceu os princípios
beneditinos rivalizaram em ardor e atividade. Os jesuítas foram os primei- da epigrafia grega e mostrou todo o benefício que o historiador pode tirar
ros com Sirmond, que publicou Idace (1611), Flodoard (1619), e a primeira dos monumentos figurativos, de d. Martène e d. Durand, de d. Félibien,
coleção dos Concílios da França (1629). O padre Denis Petau e Philippe de d. Martin, que tentou prematuramente tornar conhecidos os costumes,
Labbe não estiveram abaixo em lançar glórias a sua ordem, o primeiro a história e a religião dos gauleses. Não contentes de publicar as melhores
como cronologista, o segundo como editor de textos. O padre Daniel, cuja edições dos padres que se fizeram até então, e de refundar o glossário de
história da França é superior não somente a todas as que haviam sido com- Du Cange e a diplomática de Mabillon, os beneditinos empreenderam
postas antes dele, mas também à maioria das que foram compostas depois grandes compilações que são ainda hoje a base de todos nossos estudos
dele, era jesuíta. Ao mesmo tempo, às portas da França, em Anvers, os sobre a Idade Média: a Gallia Christiana, a Art de vérifier les dates, a cole-
jesuítas começavam, sob a direção de Jean Bolland, as imensas compilações ção dos historiadores da França, a história literária da França e a coleção
das Acta Sanctorum, cujo plano havia sido feito por Heribert de Roswey e das histórias provinciais. Exceto a Art de vérifier les dates, nenhum desses
que continua até hoje. É muito comum depreciar-se essa compilação com- repertórios pôde ser por eles terminado, mas os beneditinos trabalharam
parando-a à dos beneditinos, e é certo que estes tiveram mais cuidado ao neles com uma atividade prodigiosa que em muito supera a dos eruditos
escolher seus textos, como também mais discrição em seus comentários. de hoje. Não admiramos nelas somente as qualidades intelectuais que
O empreendimento colossal de Bolland e de seus colaboradores não deixa ali foram por eles desenvolvidas, sua erudição e solidez de julgamento,
de ser por isso um monumento de grande valor, não somente pela massa mas também as raras virtudes necessárias ao cumprimento de sua tarefa,
de materiais que eles reuniram, mas também pelos trabalhos de crítica que sua modéstia, sua abnegação e essa mistura de piedade respeitosa e fir-
acompanham os textos. Sua erudição é de costume prolixa e mal ordenada; me independência de espírito que deu a seus trabalhos tanta gravidade e
mas apesar disso encontram-se, nos primeiros volumes, não somente um autoridade.

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Enquanto a ciência eclesiástica se ilustrava assim no século XVIII, a sobre os estudos históricos e abriam-lhes novos horizontes. Buscava-se,
ciência laica não permanecia inativa. Ela tendia mesmo, sob a direção da então pela primeira vez, associar os fatos a ideias gerais; procurava-se com-
realeza que a havia encorajado e sustentado durante o século XVII, a se preender o desenvolvimento da civilização e suas leis. A história universal,
organizar e a associar os esforços dos sábios, tendo em vista grandes empre- que com Bossuet havia permanecido fechada no quadro estreito da teolo-
endimentos análogos aos dos beneditinos. A Academie des Inscriptions et gia, tornou-se para o espírito penetrante de Voltaire, em seu Ensaio sobre
Médailles criada por Colbert e desenvolvida por Luís XIV tornou-se, no sé- os costumes, objeto de considerações apoiadas sobre uma ciência por vezes
culo XVIII, sob o nome de Academie des Inscriptions et Belles-Lettres, uma frágil, mas cujo acerto e profundidade com frequência profética nos surpre-
sociedade que se ocupava sobretudo de pesquisas de filologia, literatura e endem hoje. Ao mesmo tempo, o despertar de discussões políticas deu um
história. Encontramos entre seus membros a maior parte dos eruditos que interesse poderoso às questões relativas à origem das instituições francesas,
marcaram o século XVIII na sociedade histórica. A academia empreendeu e foram transportadas para o passado todas as paixões do presente. Mon-
também grandes coleções, semelhantes às dos beneditinos, mas ela não tesquieu foi, no século XVIII, o representante mais eminente deste espírito
dispunha das mesmas facilidades nem do conjunto de devotamentos que novo ao mesmo tempo filosófico e político aplicado ao estudo da história
tais obras pressupõem. Ela teve, é verdade, Bréquigny, homem de uma in- e das leis. Ele trouxe uma elevação de pensamento e uma penetração su-
teligência e de uma atividade extraordinárias, digno de ser comparado a periores, mas suas obras são mais adequadas a estimular e a fecundar o
du Cange ou a Mabillon, mas que não podia atender às múltiplas tarefas espírito que a esclarecê-lo e guiá-lo com segurança. De todas essas generali-
das quais estava encarregado. Sobre ele quase sozinho repousou todo o zações, de todos esses sistemas históricos, nenhum deveria subsistir em seu
trabalho da coleção das ordenações, da tábua geral das cartas e diplomas, conjunto, mas todas as questões estavam colocadas, ao mesmo tempo com
da compilação dos diplomas, da coleção dos pergaminhos gascões. maior amplitude e precisão. Após os trabalhos dos eruditos e dos filósofos,
Os trabalhos dos beneditinos e os da Academie des Inscriptions et a história aparecia como a base, o centro e o fim de todas as ciências. Todas
Belles-Lettres estão longe de representar todo o movimento histórico do deveriam se servir dela e contribuir para esclarecer aquilo que faz a essên-
século XVIII. Dele constituem a parte mais sólida, porém não a mais bri- cia e o interesse verdadeiro da história: o desenvolvimento da humanidade
lhante. O espírito aventureiro e inovador do século XVI, pacificado e com- e da civilização.
primido no XVII, ressurgiu no XVIII. O libertino22 Saint-Évremond foi o A revolução e o império, que a sucedeu fatalmente, suprimiram qua-
primeiro a fazer da história um objeto de considerações filosóficas e morais se inteiramente os estudos históricos. A revolução, em sua cega aversão
sobre a política, sobre as instituições, sobre o gênio dos diversos povos, contra todas as instituições do passado, destruindo as ordens religiosas
sobre o caráter dos escritores que a relatam. O protestante Louis de Beau- e as academias, paralisou subitamente todos os trabalhos de erudição. A
fort, em suas pesquisas sobre a República romana, misturou a hipóteses compilação de diplomas de Bréquigny, a teoria das leis francesas de Mlle.
arrojadas e a teorias paradoxais visões de gênio nas quais resultados da de Lézardière não puderam sequer ser colocadas à venda. O governo
crítica moderna eram pressentidos e antecipados. O movimento filosófico imperial, que, como herdeiro da Revolução, não permitia que se falasse
e as preocupações políticas que agitavam todos os espíritos agiam também bem do antigo regime, e como protetor do princípio de autoridade, não
permitia também que se dissesse mal dele, não foi mais favorável aos
estudos históricos. De resto, durante esses anos trágicos de lutas intesti-
22
Charles Marguetel de Saint-Denis, senhor de Saint-Évremond (1613-1703), político e escritor
francês, pertenceu ao libertinismo, movimento cultural ocorrido no século XVII e relacionado nas, de início, depois de guerras europeias, nos quais a França não teve
ao conceito de “espírito livre”, sobretudo em reação a crenças estabelecidas, de caráter religioso. paz nem liberdade, não havia lugar algum para os trabalhos pacíficos e
Defendeu os conceitos de liberdade de costumes, vida natural e na natureza como perfeição
desinteressados da erudição, assim como para as vastas concepções da
divina, ausência de restrições aos instintos, busca de prazer físico, sem aceitar a noção de pe-
cado. (N. do T.) filosofia da história.

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O impulso dos estudos históricos só foi mais rápido e enérgico quan- Foi a Alemanha que contribuiu para a maior parte do trabalho histó-
do a Restauração devolveu à França, com uma parte de suas tradições pas- rico de nosso século. Outros países podem citar nomes de historiadores tão
sadas, a liberdade e a paz das quais ela tinha sido privada por tão longo brilhantes quanto os seus; nenhum poderá citá-los em tão grande número;
tempo. O abismo cavado pela revolução e pelo império entre a antiga e a nenhum pode se gabar de ter feito tanto progredir a ciência. Esta superio-
nova França permitia julgar o passado com maior distanciamento, com ridade a Alemanha deve sem dúvida a seu gênio, essencialmente adequado
maior imparcialidade, sob um ângulo mais justo; o esforço para retornar às pesquisas pacientes da erudição; ela a deve também ao pequeno desen-
às tradições da monarquia legítima dava ao mesmo tempo o desejo de se volvimento que a vida pública e a vida industrial tiveram do outro lado do
aproximar do passado e de bem compreendê-lo. De resto, um movimento Reno até uma época recente e à alta estima na qual ela sempre teve os tra-
análogo se produzia em toda a Europa e vinha favorecer a corrente intelec- balhos do espírito; ela a deve, sobretudo, à forte organização de suas uni-
tual que encaminhava os espíritos na França em direção aos estudos histó- versidades. Em lugar de desaparecer lentamente, como na França a partir
ricos. Ao desenvolvimento das ciências positivas, que é o caráter distintivo do século XVI, para não deixar subsistirem senão os colégios de instrução
de nosso século, corresponde, no domínio do que chamamos literário, o secundária, o ensino superior foi, ao contrário, gradualmente modificado
desenvolvimento da história, que tem por objetivo submeter a um conhe- segundo as necessidades do tempo, abandonando as tradições eclesiásti-
cimento científico e mesmo às leis científicas todas as manifestações do cas e teológicas da Idade Média para se abrir ao espírito livre e laico, e
ser humano. As criações originais do espírito se tornaram cada vez menos conservando a alta direção intelectual do país. Os hábitos universitários
numerosas, a contemplação puramente estética das obras intelectuais foi ali se mantiveram e mesmo desenvolveram. Do mesmo modo, enquanto
sempre mais descuidada para dar lugar às pesquisas históricas. História na França o movimento científico e literário foi quase absolutamente es-
das línguas, história das literaturas, história das instituições, história das tranho às universidades e se concentrou na magistratura, no clero e nas
filosofias, história das religiões, todos os estudos que têm o homem e os academias, na Alemanha ele se concentrou nas universidades. A teologia,
fenômenos do espírito humano por objeto assumiram um caráter histórico. longe de ser um obstáculo aos estudos sérios, graças ao espírito de liber-
Nosso século é o século da história. dade que ali reina, tornou-se o domínio onde a crítica se exerce com mais
Graças aos progressos das ciências e dos métodos científicos, a his- minúcia e rigor. Graças às suas grandes corporações de eruditos e profes-
tória possui hoje maravilhosos meios de investigação. Pela filologia com- sores, estabeleceram-se fortes tradições científicas, hábitos universais de
parada, pela antropologia, até pela geologia, ela mergulha seus olhares em método e de crítica. Pela força mesma das coisas e sem acordo prévio, a
épocas para as quais os monumentos fazem falta, assim como os textos exploração dos diversos domínios da história seguiu uma marcha regular
escritos. As ciências acessórias, a numismática, a epigrafia, a paleografia, e sistemática e foi facilitada pelo trabalho em comum, tão fácil de se es-
a diplomática, lhe fornecem documentos de uma autoridade indiscutível. tabelecer entre os professores de uma universidade, secundados por seus
Enfim, a crítica dos textos, estabelecida sobre princípios e classificações alunos. Pode-se sem dúvida censurar mais de um defeito à ciência alemã
verdadeiramente científicos, permitem-lhe reconstituir, se não em sua contemporânea, sua prolixidade, suas minúcias, suas sutilezas, os esforços
pureza primitiva, ao menos sob uma forma tão pouco alterada quanto que ela faz muitas vezes para chegar a resultados mesquinhos, o pouco de
possível todos os escritos históricos, jurídicos, literários que não foram cuidado que ela adota para com a forma literária e que provém metade do
conservados em manuscritos originais e autógrafos. Assim secundada, desdém, metade da impotência. O trabalho que ela realizou neste século
armada de tais instrumentos, a história pode, com um método rigoroso não é menos grandioso. Publicações de textos, crítica de fontes históricas,
e uma crítica prudente, se não descobrir sempre a verdade completa, ao elucidação paciente de todas as partes da história examinadas uma a uma
menos determinar exatamente sobre cada ponto a certeza, o verossímil, e sob todos os seus aspectos, nada foi negligenciado. Basta lembrar os no-
o duvidoso e o falso. mes de Lassen, Boeckh, Niebuhr, Mommsen, Savigny, d’Eicheron, Ranke,

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Waitz, Pertz e Gervinus, ou lembrar as coleções do Corpus Inscriptionum, os trabalhos históricos, nunca exerceu, no entanto, influência sensível so-
dos Monumenta Germaniae, do Jahrbücher des Deutschen Reiches, das Chroni- bre a direção dos estudos. Nós ali ganhamos talvez em originalidade, ao
ken der Deutschen Staedte, as Fontes rerum Austriacarum, os Scriptores rerum menos do ponto de vista da forma literária; ali perdemos do ponto de vista
Prussicarum etc., e as publicações excelentes das inumeráveis sociedades da utilidade científica dos trabalhos de nossos historiadores. Eles são quase
históricas que cobrem a Alemanha. Pode-se comparar a Alemanha a um todos autodidatas; não tiveram mestres e não formaram discípulos. Impuse-
vasto laboratório histórico no qual todos os esforços são concentrados e ram à história a marca de seu temperamento, de sua personalidade. São de
coordenados e onde nenhum esforço é perdido. Para apreciar ali em seu costume, mesmo os mais eruditos, mais literatos que sábios. A prova disso
justo valor o movimento histórico, seria preciso passar em revista todos os é que não se pode vê-los retomando e remanejando as obras para colocá-las
demais ramos de estudos, pois o método histórico é aplicado em toda par- atualizadas em relação aos progressos da ciência. Eles as reeditam com 20
te. Todas as outras ciências, filologia, direito, teologia, filosofia, se servem anos de distância sem nada mudar nelas.23 Sint ut sunt aut non sint.24 O que
da história e são solicitadas por ela a contribuir. Seria ademais bem injusto lhes importa em seus escritos são menos os fatos em si que a forma que
imaginar-se, como se faz por vezes, que a ciência alemã seja desprovida de eles lhes deram.
ideias gerais e se reduza a pesquisas de curiosidade erudita. Ao contrário, A esta falta de tradições científicas e de unidade de direção, aos arre-
as ideias gerais ali são abundantes, somente não são fantasias literárias, batamentos da imaginação vieram se juntar as paixões políticas e religiosas.
inventadas em um momento de capricho e pelo charme da imaginação; Os mais eminentes entre os historiadores deixaram-se influenciar forte-
não são sistemas e teorias destinados a agradar por sua bela aparência e sua mente em suas teorias, em suas apreciações e mesmo em sua crítica dos
estrutura artística; são ideias gerais de um caráter científico, isto é, gene- fatos pelas paixões contemporâneas. Isto é bem verdadeiro para Thierry,
ralizações de fatos lentamente e rigorosamente estabelecidos, ou hipóteses mas também para Guizot, para Michelet como para Thiers. O exemplo e a
destinadas a explicar os fatos já conhecidos e a servir à exploração de fatos lembrança do século XVIII os levou, de resto, a generalizações precipita-
ainda obscuros. É graças a essas ideias gerais que as ciências históricas das, e eles imaginavam que, uma vez terminada a revolução e, sobretudo,
podem merecer realmente o nome de ciências, estabelecer bases sólidas e a carta de 1830 proclamada, teria chegado o momento de escrever de uma
realizar progressos seguros. Nenhum país contribuiu mais que a Alemanha maneira definitiva a história geral da França ou mesmo, como E. Quinet,
para dar aos estudos históricos esse caráter de rigor científico. de traçar em algumas páginas a filosofia da história da França.
O desenvolvimento dos estudos históricos na França está longe de ter Apesar desses defeitos de nossos historiadores mais ilustres, eles nos
alcançado a mesma regularidade. As causas devem ser procuradas, como prestaram imensos serviços. Esse sentimento artístico e literário, essa po-
na Alemanha, no gênio da nação, mais espontâneo, mais impaciente, mais tência de imaginação que os levou excessivamente a substituir com suas
inclinado às seduções da imaginação e da arte; mas também na ausência impressões pessoais a realidade dos fatos permitiu-lhes ao mesmo tempo
de todo ensino superior eficaz, de toda disciplina científica geral, de toda ressuscitar o passado, dar-lhe suas verdadeiras cores, fazê-lo compreender
autoridade diretora, dessas regras de método, desses hábitos de trabalho por assim dizer pelos olhos, dando-lhe um relevo, uma vida extraordinária.
coletivo que toda alta educação universitária proporciona. A Academie des Essas paixões políticas e religiosas, que os conduziram tantas vezes a alterar
Inscriptions, que sucedeu em 1816 aos beneditinos para a realização dos a verdade, lhes permitiram também penetrar mais profundamente que ou-
grandes trabalhos que eles empreenderam — os historiadores da França,
a Gallia Christiana e a história literária; que retomou os trabalhos da antiga
academia — as tábuas cronológicas e a compilação de diplomas e cartas, e Ver Michelet, Guizot e o próprio Auguste Thierry.
23

Diz-se do papa Clemente XIII que, ao ser instado a fazer mudanças drásticas nos estatutos da
24
a compilação das ordenações; que empreendeu mesmo uma coleção nova,
Ordem Jesuíta, teria assim respondido: Sint ut sunt aut non sint (que seja como é, ou não seja de
a dos historiadores das Cruzadas; e que outorgou prêmios numerosos para modo algum). (N. do T.)

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tros o fizeram na alma dos homens do passado, deslindar seus sentimentos nal pela ideias gerais, onde eles não queriam ver senão fantasias ou frases,
íntimos, compreender o lado psicológico e humano da história. Esta ten- e se refugiaram com uma espécie de preconceito em minúcias e detalhes de
dência a filosofar, que engendrou tantas teorias apressadas e falsas, revelou fatos muitas vezes sem interesse. Os homens que verdadeiramente ilustra-
com frequência as relações íntimas e escondidas dos eventos, e a gravidade ram a ciência histórica não a compreendiam assim. Augustin Thierry não
de fatos aparentemente insignificantes. acreditava transgredir seu talento literário quando consagrava seus esforços
Aos historiadores franceses pertence, sobretudo, a glória de terem a classificar os documentos relativos à história do Terceiro Estado;25 Miche-
colocado a vida na história, de terem ali buscado o homem em lugar dos let procurava conter sua imaginação não avançando nada que não pudesse
fatos, e de terem criado uma agitação intelectual fecunda pela quantidade apoiar sobre textos, e considerava os arquivos como o verdadeiro laborató-
de pontos de vista novos, de ideias gerais, prematuras a maioria das vezes, rio do historiador; ninguém fez mais que Guizot pela publicação de textos
mas quase sempre engenhosas e interessantes, que eles divulgaram em seus e documentos históricos. Mas esses homens eminentes não puderam se
escritos. Sua influência foi imensa, e os alemães, cujo método era oposto ao opor às consequências fatais da falta de um ensino superior bem organiza-
seu, foram os primeiros a reconhecê-lo. do, no qual a juventude viesse adquirir ao mesmo tempo uma cultura geral
Chateaubriand renovou a concepção que se fazia da história da França e hábitos de método, de crítica e de severa disciplina intelectual.
em suas Considerações plenas de intuições de gênio; Thierry, cuja vocação Hoje, no entanto, se a França tem a infelicidade de ver desaparece-
histórica foi despertada pela leitura de Chateaubriand, restituiu aos tempos rem, um após outro, sem que sejam substituídos, todos os historiadores
bárbaros e à Idade Média suas verdadeiras cores; Guizot procurou decom- que fizeram sua glória por seu gênio de pensadores e de escritores, temos
por em seus elementos a civilização da Europa e a da França e mostrou na ao menos esta consolação de ver os sadios métodos de trabalho e de crítica
Revolução da Inglaterra o jogo das paixões políticas e religiosas; Michelet se difundirem cada vez mais, o antagonismo entre a literatura e a erudição
melhor que ninguém soube fazer reviver não somente a aparência exterior diminuir, e uma concepção mais justa da ciência histórica aparecer gra-
do passado, mas as paixões, os sentimentos e as ideias que agitaram os dualmente. Aproximam-se as escolas por tanto tempo rivais. Compreen-
homens; enfim, Tocqueville, em seu livro inacabado sobre O Antigo Regime deu-se o perigo das generalizações prematuras, dos vastos sistemas a priori
e a Revolução, apoiando suas ideias gerais sobre um estudo sério dos fatos, que têm a pretensão de tudo abarcar e de tudo explicar. Compreendeu-se
modificou de alto a baixo as ideias recebidas sobre as relações que uniram também o pequeno interesse que oferecem as pesquisas de pura curiosi-
a nova França à antiga, e viu uma continuação lógica lá onde se acreditava dade, que não são guiadas por nenhuma ideia de conjunto, por nenhum
ver uma contradição radical. Ao lado desses Dii Majores da literatura histó- plano traçado com antecedência. Sente-se que a história deve ser objeto
rica na França encontramos admiráveis narradores, como Barante, Thiers e de uma investigação lenta e metódica, em que se avança gradualmente do
Mignet, e um escritor mais poeta que erudito, com espírito vago e aventu- particular ao geral, do detalhe ao conjunto; em que se esclarecem suces-
reiro, mas que, em suas Revoluções da Itália e em seu livro sobre a Revolução sivamente todos os pontos obscuros, a fim de ter quadros completos e de
Francesa, teve verdadeiras adivinhações históricas: Edgar Quinet. poder estabelecer, sobre os grupos de fatos bem constatados, ideias gerais
A maior dificuldade que a ciência histórica teve que enfrentar, na suscetíveis de prova e verificação. É pouco provável que a segunda metade
França, foi a separação ou, melhor dizendo, a espécie de antagonismo que do século veja surgir obras históricas tão deslumbrantes quanto as que ilus-
durante muito tempo pretendeu-se estabelecer entre a literatura e a erudi-
ção. Muitos dos letrados afetaram uma espécie de desprezo pelas pesquisas
de erudição, acreditando que a imaginação, o bom senso, certa dose de 25
Terceiro Estado foi uma classificação da sociedade francesa durante o Antigo Regime, até a Revo-
lução Francesa. Indicava os que não pertenciam ao clero (Primeiro Estado) nem à nobreza (Segun-
espírito filosófico e o estilo bastariam; os eruditos, por seu lado, por vezes
do Estado). Trata-se de uma categoria heterogênea, tanto econômica como socialmente considera-
mostraram um desdém excessivo pela forma literária, uma aversão irracio- da, incluindo a burguesia, os camponeses, artífices e operários de manufaturas. (N.do T.)

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traram a primeira, mas podemos afirmar que a atividade histórica será nela felizes resultados que produziu, o proveito que nós mesmos retiramos de
fecunda. Todos os eruditos estão ao mesmo tempo persuadidos de que o sua leitura foram um estímulo para que a imitássemos. Mas ao mesmo
estilo e a forma literários estão longe de serem ornamentos supérfluos; que tempo ela se afasta muito do ideal que nos propomos, para que sua exis-
eles acompanham quase sempre os trabalhos maduramente elaborados, e tência faça parecer a nossa inútil. Ela não foi fundada simplesmente tendo
que somente eles lhes dão um valor durável. O estilo não consiste em ar- em vista a pesquisa desinteressada e científica, mas para a defesa de cer-
redondar as frases sonoras, mas em revestir o pensamento da forma que tas ideias políticas e religiosas. O sentido no qual as pesquisas históricas
lhe convém; a crítica histórica, assim como a história narrativa comportam devem ser dirigidas é indicado com antecedência por certas ideias gerais
cada qual formas literárias especiais, e o talento de escrever e de compor se que, expressas ou subentendidas, parecem aceitas de antemão por todos os
exerce tanto numa como na outra. A crítica, de resto, não trabalha senão colaboradores.
para preparar as vias da história narrativa e mesmo, em certa medida, da É sobre um princípio totalmente oposto que fundamos a Revue His-
história filosófica. Nesses quadros mais vastos, o talento e o gênio podem torique. Pretendemos permanecer independentes de toda opinião política e
naturalmente se desenvolver mais amplamente. religiosa, e a lista de homens eminentes que aceitaram patrocinar a Revue
Apesar de todos os progressos alcançados, estamos ainda, portanto, prova que eles creem esse programa factível. Estão longe de professar todos
em um período de preparação, de elaboração de materiais que mais tarde as mesmas doutrinas em política e em religião, mas pensam como nós que
servirão à construção de edifícios históricos mais vastos. a história pode ser estudada em si mesma, e sem se preocupar com con-
Os progressos alcançados até agora nada mais fizeram do que iluminar clusões que possam dela ser tiradas a favor ou contra uma ou outra cren-
as condições de uma investigação verdadeiramente científica, e esta investi- ça. Sem dúvida as opiniões particulares influem sempre, em certa medida,
gação está apenas começando. Todos os que se dedicam a ela são solidários sobre a maneira pela qual se estudam, se veem e se julgam os fatos ou os
uns com os outros; trabalham na mesma obra, executam partes diversas do homens. Mas deve-se fazer um esforço para afastar essas causas de preven-
mesmo plano, buscam o mesmo objetivo. É útil, é mesmo indispensável ção e de erro para somente julgar os eventos e os personagens em si mes-
que eles se sintam todos unidos, e que seus esforços sejam coordenados mos. Admitimos, por outro lado, opiniões e apreciações divergentes, sob
para serem mais poderosos. Diversos meios podem contribuir para isso. condição de que sejam apoiadas sobre provas seriamente discutidas e sobre
Um ensino superior bem organizado contribuiria mais que qualquer outra fatos, e que não sejam simples afirmações. Nossa Revue será um repertório
coisa. As sociedades eruditas sérias, como as muitas que possuímos, servem de ciência positiva e de livre discussão, mas ela se limitará ao domínio dos
para isso poderosamente. A Revue Historique, que surge hoje, quer trabalhar fatos e permanecerá fechada às teorias políticas ou filosóficas.
no mesmo objeto. Ela quer não apenas favorecer a publicação de trabalhos Não empunhamos, portanto, nenhuma bandeira; não professaremos
de detalhes originais e sérios, mas também e acima de tudo servir de elo nenhum credo dogmático; não nos envolveremos sob as ordens de nenhum
entre todos os que consagram seus esforços à vasta e múltipla investigação partido; o que não quer dizer que nosssa Revue será uma babel onde todas
da qual a história é o objeto; fazer-lhe sentir sua solidariedade, fornecer-lhe as opiniões virão se manifestar. O ponto de vista estritamente científico
as informações precisas e abundantes sobre tudo o que se realiza atualmen- em que nos colocamos bastará para dar à nossa coleção a unidade de tom
te nos campos variados das ciências históricas. Queríamos contribuir para e de caráter. Todos os que se colocam nesse ponto de vista experimentam
formar pelo exemplo de um bom método os jovens que querem ingressar em relação ao passado um mesmo sentimento: uma simpatia respeitosa,
na carreira histórica, encorajar e manter no bom caminho os que já nele mas independente. O historiador não pode de fato compreender o passado
estão, servir a todos de centro de reunião e informação. sem certa simpatia, sem esquecer seus próprios sentimentos, suas próprias
Há nove anos, uma revista foi fundada com intenções análogas às ideias, para se apropriar por um instante daqueles dos homens do pas-
nossas, a Revue des Questions Historiques. O sucesso que ela alcançou, os sado, sem se colocar em seu lugar, sem julgar os fatos no meio em que

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ocorreram. Ele aborda ao mesmo tempo esse passado com um sentimento a consciência profunda da feliz e necessária solidariedade que as une a
de respeito, porque ele sente melhor que ninguém os mil laços que nos gerações anteriores, mas fazendo ver ao mesmo tempo que essas tradições,
unem aos ancestrais; ele sabe que nossa vida é formada pela deles, nossas que são uma força para caminhar adiante, se tornariam funestas se alguém
virtudes e nossos vícios por suas boas e más ações, que somos solidários pretendesse ali aprisionar-se como em formas imutáveis.
uns aos outros. Há algo de filial no respeito com o qual ele busca penetrar Nossa época, mais que todas as outras, é adequada para esse estudo
em sua alma; ele se considera o depositário das tradições de seu povo e da imparcial e simpático do passado. As revoluções que abalaram e desordena-
humanidade. ram o mundo moderno fizeram desaparecer das almas os respeitos supers-
Ao mesmo tempo, porém, o historiador conserva a perfeita indepen- ticiosos e as venerações cegas, mas elas fizeram também compreender tudo
dência de seu espírito e não abandona nada de seus direitos de crítica e de o que um povo perde de força e vitalidade quando rompe violentamente
julgamento. O tesouro das tradições antigas se compõe de elementos os com o passado. No que concerne especialmente à França, os eventos dolo-
mais diversos, elas são fruto de uma sucessão de períodos diferentes, de rosos, que criaram em nossa pátria os partidos hostis se apegando cada um
revoluções até, as quais, cada uma no seu tempo e por sua vez, tiveram a uma tradição histórica especial, e os que mais recentemente mutilaram a
todas sua legitimidade e sua utilidade relativas. O historiador não é o de- unidade nacional lentamente criada pelos séculos, nos colocam como que
fensor de umas contra as outras; ele não pretende riscar umas da memória um dever de despertar na alma da nação a consciência de si mesma pelo
dos homens para dar às outras um lugar imerecido. Ele se esforça para conhecimento aprofundado de sua história. É por aí somente que todos
encontrar suas causas, definir seu caráter, determinar seus resultados no podem compreender o laço lógico que une todos os períodos do desen-
desenvolvimento geral da história. Ele não faz o processo da monarquia em volvimento de nosso país e mesmo todas as suas revoluções; é por aí que
nome da feudalidade, nem de 1789 em nome da monarquia. Ele mostra os todos se sentirão os rebentos do mesmo solo, os filhos da mesma raça, não
laços necessários que unem a revolução ao Antigo Regime, o Antigo Regi- renegando parte alguma da herança paterna, todos filhos da velha França, e
me à Idade Média, a Idade Média à Antiguidade, observando sem dúvida ao mesmo tempo todos da mesma maneira cidadãos da França moderna.
os erros cometidos e que é bom conhecer para que seu retorno seja evitado, É assim que a história, sem se propor outro objetivo e outra finalidade
mas deve se lembrar sempre que seu papel consiste antes de tudo em com- que o proveito que se tira da verdade,26 trabalha de maneira secreta e segura
preender e explicar, não em louvar ou condenar. para a grandeza da pátria e, ao mesmo tempo, para o progresso do gênero
Bem poucos historiadores se elevam, de fato, a esta imparcialidade humano.
científica. De costume uns se fazem advogados do passado, maldizendo
cada mudança que o progresso dos tempos traz e se consumindo em la-
mentos estéreis sobre o que ele destruiu sem volta; outros, pelo contrário,
se fazem os acusadores do passado, apologistas de todas as revoltas e de
todas as revoluções, incapazes de compreender as grandezas desapare-
cidas em sua impaciência de um ideal sempre por chegar. O verdadeiro
historiador é aquele que, elevando-se acima dessas tomadas de posição
apaixonadas e exclusivas, concilia tudo o que há de legítimo no espírito
conservador com as exigências irresistíveis do movimento e do progresso.
Ele sabe que a vida e a história são uma perpétua mudança; mas que essa
mudança é sempre uma transformação de elementos antigos, jamais uma
criação inteiramente nova. Ele dá às gerações presentes o vivo sentimento, 26
La Popelinière (Premier livre de l’idee de l’histoire accomplie, p. 66).

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Ernest Lavisse de historiadores como Gabriel Monod, Charles Seignobos e Camille


Julian. Lavisse também seguiu esse caminho. Em 1873, o jovem his-
Tereza Cristina Kirschner toriador partiu para a Alemanha, onde aprofundou seus estudos com
Georg Waitz, ex-aluno de Leopold von Ranke e um dos colaboradores
do projeto Monumenta Germania Historica. Quando retornou a Paris,
em 1875, apresentou sua tese de doutorado: A marcha de Brandenburgo;
ensaio sobre uma das origens da monarquia prussiana. Posteriormente, es-
creveria outros livros sobre a história alemã. O enigma da vitória alemã
foi um dos motivos que o levou a pesquisar a história desse país. A his-
tória permitiria conhecer os fundamentos do poderio alemão e revelar
os segredos da derrota francesa. Lavisse entusiasmou-se com o sistema
de ensino alemão e com o papel das universidades na formação do es-
pírito público. “As universidades e os intelectuais alemães formaram o
espírito público na Alemanha”, diria em 1881. Ele retornou à França
com o sonho de ver estabelecida em seu país essa íntima relação entre
ciência e patriotismo. Anos mais tarde, L. Lamounier, um de seus co-
Ernest Lavisse nasceu em 1842, na pequena cidade francesa Le Nou-
legas, comentaria: “toda sua vida foi guiada pela mesma preocupação:
vion-en-Thiérarche, localizada no departamento de Aisne. Oriundo de
renovar os estudos históricos de maneira a torná-los um meio poderoso
uma família protestante de recursos modestos, Lavisse pôde concluir sua
de educação nacional”.
formação intelectual graças à obtenção de uma bolsa de estudos. Em
Lavisse não se entusiasmou com a instauração da Terceira República
1862, diplomou-se na École Normale Supérieure e, em 1865, aprova-
na França, em 1875. O professor mantinha esperança de ver o império
do no concurso para professor de história, começou a lecionar no liceu
restaurado. Em 1878, entretanto, aderiu ao novo regime; parecia-lhe, en-
Henry IV, em Paris. O jovem professor de 26 anos chamou a atenção de
tão, que ele poderia evitar revoltas como a Comuna de Paris, ocorrida em
Victor Duruy, ministro da Educação de Napoleão III, que o indicou para
1870. Lavisse decidiu-se pela República quando ela já estava consolidada;
preceptor do príncipe, função que Lavisse exerceu entre 1868 e 1871.
quando República e defesa da nação faziam parte de um mesmo ideal.
A derrota na guerra com a Prússia, em 1870, e a perda da região da Alsá-
Durante a Terceira República Lavisse consolidou sua carreira uni-
cia-Lorena geraram um sentimento de humilhação entre os franceses, e a ques-
versitária. Em 1876, assumiu o cargo de mestre de conferências na Éco-
tão da honra nacional mobilizou muitos intelectuais. Lavisse não ficou imune a
le Normale Supérieure; em 1880, o de suplente de Fustel de Coulanges
esse sentimento e tornou-se crítico veemente da política expansionista alemã.
na Sorbonne; e, de 1883 a 1888, foi diretor de estudos nessa univer-
Como historiador, propôs-se a contribuir para a “obra de reparação.”
O avanço dos estudos históricos na Alemanha atraía os franceses.
A passagem pelas universidades alemãs foi importante para a formação 
Coleção de documentos alemães publicados a partir de 1826.

Estudos sobre a história da Prússia, (1879); Estudos sobre a Alemanha imperial (1881); Três impe-
radores da Alemanha (1888) e Frederico, o Grande (1891).

Lavisse, 1881.

O ministro adotou o jovem professor como seu “filho espiritual”, e os dois cultivaram uma 
Apud Nora (1962:73). Sobre Lavisse, ver também Delacroix, Dosse e Garcia (2007).
relação de amizade até a morte de Duruy, em 1894. Sobre a atuação de Duruy no ministério, 
À queda do segundo império de Napoleão III, em 1870, seguiu-se a proclamação da Terceira
ver Lavisse (1895). República, que durou até 1940.

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