Você está na página 1de 11

92 Lições de história

Jules Michelet de História do Arquivo Nacional, e uma nova ocupação como professor
na Sorbonne. A experiência direta com arquivos e documentos lhe seria
Lilia Moritz Schwarcz fundamental. Michelet, sem ser um historiador do tipo que no século XIX
seria conhecido como evenementiel, foi sempre um aficionado pelos docu-
mentos básicos e primários, e os introduziu fartamente em suas obras.
“A primeira obrigação de qualquer historiador é recusar seus falsos deuses.” Assim, com a estabilidade que a nova situação profissional lhe propi-
J. Michelet ciava, Michelet começaria a trabalhar em sua obra mais importante, His-
toire de France; projeto grandioso em que o pesquisador se propunha a
recuperar o destino e o desenvolvimento da França como nação autônoma.
Michelet era, então, um jovem de 30 anos e precisaria de mais 30 para
completar a imensa tarefa.
No entanto, nesse meio-tempo, e como a empreitada era de fato longa,
o historiador não deixaria de produzir outras obras como: Oeuvres choisies
de Vico, Mémoires de Luther écrits par lui-même, e Origines du droit française.
Ainda no ano de 1838 ele foi nomeado como professor no Collège de Fran-
ce; lugar em que ocupou a cadeira de história e ética. O ano de 1839 ficaria
Jules Michelet nasceu na cidade de Paris, em agosto de 1798, no seio de
conhecido como o da publicação de Histoire romaine; obra que já traria cer-
uma família de huguenotes. Seu pai, um impressor e republicano convicto,
to renome a nosso autor. Por sua vez, reunindo uma série de conferências,
segundo reza a bibliografia, reconhecendo o talento de Jules, e a despeito das
Michelet publicaria outros dois volumes: Le prêtre, la femme, et la famille
dificuldades financeiras do momento, o inscreveu numa escola da região, in-
(1843), e Le peuple (1846). Em Le peuple, Michelet analisa as qualidades
vestindo na sua formação. Já em 1821 o filho era contratado como professor
e o que chama de “espírito da classe trabalhadora francesa”, evidenciando
de história, seguindo, de alguma maneira, as premonições do pai.
perspectivas que singularizariam sua própria historiografia: a atenção às
Durante os anos de 1825 e 1827 Michelet produziu um bom número
contribuições culturais das classes populares. Nesse livro ainda, investia na
de ensaios sobre história moderna, nomeadamente a francesa. Em 1831
discussão acerca dos problemas que adviriam das transformações ocasio-
publicaria Introdução à história universal, obra que anunciava seu perfil de
nadas pela industrialização e pela modernização. O historiador abordava,
alguma maneira visionário. O livro indicava, de maneira precoce, uma ca-
dessa maneira, problemas políticos, econômicos e sociais espinhosos para
racterística particular da historiografia que marcaria toda a obra de Miche-
a época, tendo por base as transformações motivadas pela passagem da
let, que, muito avant la lettre, nunca se deixou levar pelo “imperialismo
agricultura para a industrialização, não só na França, como na Europa. O
dos fatos” e, ao contrário, sempre deu vazão à análise das crenças e rituais
volume — que vendeu uma edição inteira no mesmo ano de sua publica-
populares. Já neste contexto o historiador sinalizava, pois, para seu viés
ção, e foi logo vertido para o inglês — apresentava o povo como fonte de
antirracionalista, próximo do modelo de Vico, que já havia defendido a
progresso e entendia estar concentrado nele o espírito perdido de Joana
relevância do uso da imaginação diante da análise fria e distante.
D’arc: “a nobreza da própria humanidade”.
Após os eventos de 1930, que deram início à monarquia de Luís Filipe
Por outro lado, é preciso dizer que Michelet entendia a si próprio
de Orleáns, Michelet — então reconhecido como anticlerical mas também
como um defensor dileto do povo, e por isso viu e interpretou com apre-
como um historiador patriota e liberal, identificado com a República fran-
ensão os acontecimentos de 1848. O historiador, que se recusou a aliar-se
cesa — foi alçado a uma posição mais elevada: obteve um posto na seção
à Segunda República de Luís Napoleão, teve suas conferências no Collège

Lições de hist. 4a prova.indd 91 15/5/2013 17:34:38 Lições de hist. 4a prova.indd 92 15/5/2013 17:34:38
Jules Michelet 93 94 Lições de história

de France suspensas, em 1851, assim como perdeu a posição que detinha Até o final da vida Michelet entendeu-se como um liberal que de-
junto ao Arquivo Nacional. fendia o convívio entre as classes sociais (e não o seu desaparecimento) e
Não obstante, longe dos seus afazeres diários e profissionais, Mi- acreditava no caráter infalível do povo, bem como de sua sabedoria. Ata-
chelet parece ter aproveitado o período para concentrar-se em completar cado por historiadores marxistas, por causa de sua fé na reconciliação das
seu projeto mais grandioso. Tanto que, em 1867, seus 19 volumes de classes, o historiador seria relido pelos fundadores dos Annales, e em espe-
Histoire de France estavam terminados, e o resultado seria, de fato, devas- cial por Lucien Febvre, que o considerou uma grande inspiração para uma
tador. Michelet foi talvez o primeiro historiador a fazer um relato forte “história total”, para uma “história das mentalidades”, em tudo oposta a
e emocional sobre uma nação. Seu objetivo era concluir uma espécie de um modelo fatual. Há também, na obra de Michelet, uma aposta na longue
biografia da França, mais do que a história de um personagem ou outro. durée. Do seu relato fazem parte eventos políticos, acontecimentos econô-
Se hoje em dia muitos críticos encontram erros e enganos nos fatos cole-
micos e sociais, mas também a cultura de uma época, com suas lendas, ri-
tados, e principalmente nos juízos do historiador, não há quem deixe de
tuais e tradições. Aí estaria, portanto, mais do que uma narrativa previsível;
mencionar a obra; tanto quando se reflete acerca da França, como quan-
uma história feita de rupturas, sim, mas também de continuidades, dadas
do o tema concentra-se em método e metodologia da história. Além do
mais, se aos olhos de hoje os livros consagrados à Idade Média são con- pelo idioma que marca cada nação, e cujo grande intérprete, na visão de
siderados os mais acabados e aqueles que apresentam maior domínio da Michelet, seria o próprio povo com suas crenças e costumes.
documentação; o relato candente sobre a França da Revolução representa
um testemunho pujante de um contexto em que todos entendiam estar Do método e do espírito: “Liberdade é liberdade”
“fazendo e vivendo história”. Por isso mesmo, o resultado não poderia ser
diferente ou mostrar-se menos passional. A feitura dessa obra — como certa feita disse Roland Barthes — coin-
O texto de Michelet é marcado por um forte anticlericalismo, pela cide com a própria vida de Michelet. A tarefa que fora iniciada em 1833
crítica feroz à nobreza assim como às instituições monárquicas. Por outro só é terminada em 1867, e o historiador morre em 1874. Dessa maneira,
lado, o grande personagem que emerge de suas páginas é o povo francês, pode-se dizer, sem medo de errar, que a “história” de Michelet coincide
entendido como sábio, fiel e generoso, nas mais diferentes situações em com a História da França que o historiador empenhara-se tanto em reali-
que se viu envolvido. zar. Mas nessa grande saga, longe dos heróis ou dos bandidos, dos reis ou
Também é bastante fácil perceber como a nova República, que se se- dos nobres, o grande figurante é a nação francesa e seu povo. O povo e o
guiu à queda de Napoleão III, não seria bem-vista, mais uma vez, por camponês franceses surgem na cena política e cultural nacional, para não
Michelet. Afinal, ele não receberia, novamente, seu cargo de professor no perderem mais seus lugares, e a Revolução é ela própria vivida como um
Collège de France, assim como seria obrigado a se manter afastado de seus caso de amor. Não a revolução do terror, ou das ditaduras, consideradas
demais afazeres. O historiador morreria em Hyères, em fevereiro de 1874, desvios enganosos. Mas a Revolução que anunciava a igualdade e a fra-
ressentido com os rumos da Revolução que acreditava ter sido, de algum ternidade, e que efetivamente convulsionou o mundo ocidental. Aí está a
modo, traída pelos eventos que a sucederam. interpretação romântica desse autor que definitivamente conferiu ao povo
não só a sensibilidade, mas a generosidade e a sagacidade dos grandes
agentes históricos.

Michelet, que viveria, então, entre a França e a Itália, é também considerado o inventor do
termo Renaissance, o qual foi empregado nas obras de 1855-1858, significando a descoberta A História da Revolução Francesa foi escrita em volumes separados,
do mundo pelo homem, no século XVI. O historiador Jakob Burckhardt, no seu The civilization que ganharam um tom mais elevado, próprio daquele que testemunha e
of the Renaissance in Italy (1860), ampliou a concepção de Michelet. Para ele o Renascimento
estaria localizado na Itália de Giotto e Michelangelo, e representava a época de nascimento da
procura pouco arbitrar; a despeito de não conseguir se afastar, totalmente,
modernidade. da tentação. Michelet era um escritor ligeiro e se começou a tarefa em 26

Lições de hist. 4a prova.indd 93 15/5/2013 17:34:38 Lições de hist. 4a prova.indd 94 15/5/2013 17:34:38
Jules Michelet 95 96 Lições de história

de setembro de 1846, considerou-a encerrada já a 10 de fevereiro de 1847. das questões metodológicas que presidiram a feitura da obra, mas também
Foram quatro tomos, logo colocados à venda e com grande sucesso do esmiúçam o argumento que a orquestrou. É a partir do povo, da “crença
público leitor. Republicano por definição e coração, o historiador logo se popular” e da “tradição oral” que Michelet afina seu método, clamando
tornou uma espécie de escriba do evento; uma testemunha que observa- para que se “ampliem as investigações”. Seria preciso ouvir, segundo o
va de lugar especial e com a ajuda dos documentos dos arquivos em que historiador, não só “operários, mas mulheres, pessoas em idade, em sexo
trabalhara. e condições diversas”. Ao invés do rei e da rainha, de Voltaire e Rousseau,
O texto que se segue apareceria originalmente, e na versão corrigida agora seria a vez de dar voz a “todos os habitantes dos campos, e à maioria
de 1869, no começo do livro III e constitui uma importante profissão de das cidades”.
fé no ofício do historiador e em seus métodos. É sobre ela que passamos Michelet se opõe, dessa forma, à recusa sistemática a introduzir a
a nos debruçar, sem esquecer, porém, das anotações presentes em alguns crença do povo nas interpretações históricas. De maneira veemente, afir-
prefácios da obra, que ajudam a entender melhor a perspectiva de Miche- ma, mais de uma vez, que é nos axiomas e provérbios do povo que estaria
let, e suas lições como intérprete e memorialista de seu tempo, mas para concentrada a sua experiência e “verdade”. Não estaria presente nos “sá-
além dele. Neles o historiador recupera o que diz ser o “espírito da Revo- bios” a vivência de Dante, de Shakespeare ou mesmo de Lutero, mas no
lução”, quando a França teria ganhado “consciência de si mesma”, tal qual povo que habitava as ruas das cidades e as plantações do campo. Em suas
um “clarão”. É com tal espírito, inundado pelo romantismo de época, que palavras: “essa é a primeira missão da história: redescobrir por meio das
Michelet menciona a noção de “alma” e saúda a chegada de “uma época de pessoas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional”.
liberdade”. É também com esse mesmo espírito que lamenta os descami- Transcrever “as lições do povo”, no tempo e no país, esse, sim, seria
nhos da Revolução, que seriam “a adoração da força”, e a perda da tradição; um olhar “da França sobre a França”: “eis o que nos pede a França, a nós,
que “escapou-lhe e esqueceu-se de si mesma”. Para se opor ao Terror o historiadores: não que façamos a história — ela está feita nos seus pontos
historiador, já no prefácio de 1847, investe contra o mote da “fraternidade essenciais, moralmente, os grandes resultados estão inscritos na consciên-
ou morte”, mostrando que a verdadeira Revolução fora aquela em que a cia do povo —, mas que restabeleçamos a cadeia de fatos, das ideias de
multidão lutou pela liberdade, pela “constante troca de luzes”. onde saíram esses resultados”. A missão a que se destinava o historiador
Mesmo no prefácio de 1868 o tema volta, já tendo o fantasma dos não seria, pois, adivinhar, julgar ou formar crenças. “O historiador não é
críticos a censurá-lo. Mais uma vez, Michelet defende seu trabalho nos Deus”, afirma Michelet, não tem poderes ilimitados. Ele é antes um “copia-
arquivos, primeiro em Paris e depois em Nantes, e procura se escudar das dor” privilegiado, e o “futuro dele copiará exemplos”.
críticas, destacando seu perfil como pesquisador; era nos documentos que E Michelet fez mais: denunciou o anacronismo presente na prática
buscava certezas da história, e não nas veleidades dos homens. de todo historiador — “que julga seu tempo e depois será julgado” — e
Mas o tempo é mesmo um bardo dos mais habilidosos, e o historia- mostrou como “a história é o tempo” e como não há maneira de “ler todos
dor, por mais que quisesse, não deixava escapar as suas simpatias. Seria o os pensamentos de hoje no passado”. Segundo ele, se a história trata pri-
início da Revolução — essa “época santa”, sem distinção de partidos ou vilegiadamente do “específico” e do que caracteriza cada época, deve ficar
classes, marcada pela “bandeira fraterna” e cujo ator era o povo — o mo- atenta “às grandes questões que são sempre eternas” e repousam além das
mento selecionado por Michelet, talvez o maior admirador e propagandista conjunturas do momento. História não é tarefa que se “adivinha”, ou que é
dos momentos iniciais da Revolução popular, cidadã e das ruas, que ele feita “às pressas”, com teorias prévias. O trabalho do historiador é realiza-
próprio teve ocasião de presenciar e celebrar. do a partir do cotejo de documentos, e de nada adianta, ironiza Michelet,
Fica quase evidente, assim, afirmar que as preciosas páginas chama- colar “na frente, atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm
das “Do método e do espírito deste livro” por certo se destinam a tratar nenhuma relação”. Muito antes da era e das facilidades do computador,

Lições de hist. 4a prova.indd 95 15/5/2013 17:34:38 Lições de hist. 4a prova.indd 96 15/5/2013 17:34:38
Jules Michelet 97 98 Lições de história

Michelet faz de sua profissão de fé um clamor pela seriedade da labuta do historiador que se inscreve em seu tempo; atua de maneira quase militante;
historiador, que seria feita de “forma paciente” e atenta aos documentos e que pensa a revolução e se propõe a avalizá-la. Nesse sentido, o trecho que
impasses de época. se segue é mais atual do que nunca.
E sua grande novidade estava justamente em não dividir, mas conci-
liar: aliar os novos dados da Revolução com os da tradição; a ciência po-
pular à ciência que entrava nos laboratórios. Metódico, Michelet enumera Prefácio de 1868 (História da
nessas páginas seus grandes trunfos: o verdadeiro e forte espírito francês Revolução Francesa)
que estaria no povo — nas fábulas, lendas, contos e na “poesia popular de
todas as eras, formas e espécies”. Por fim, como se estivesse redigindo um [...] Uma palavra sobre como se fez este livro. Ele nasceu no seio dos
libelo romântico, o historiador defende a ideia positiva de justiça, por con- Arquivos. Escrevi-o por seis anos (1845-1850) nesse depósito central onde
traposição à noção negativa de salvação, a qual, segundo ele, sempre levou eu era chefe da seção histórica. Depois do 2 de dezembro, precisei ainda
à ruína e à morte. É esse espírito que ilumina o pensador que se apresenta, de dois anos, e terminei-o nos arquivos de Nantes, bem perto da Vendeia,
ao mesmo tempo, como historiador e escriba daquele que julga ser um de onde explorei também as preciosas coleções.
novo espírito, o alvorecer de uma nova filosofia dos povos. Armado das próprias atas, das peças originais e manuscritas, pude
É possível dizer que Michelet “foi homem de seu tempo”. Há quem julgar os impressos, e sobretudo as memórias que são defesas, por vezes
afirme que o historiador se posicionou demais, ou que omitiu quando engenhosos pastiches (por exemplo, os que Roche fez para Levasseur).
quis. Críticos mostraram falhas na sua cronologia, ou mesmo lacunas em Avaliei dia a dia Le Moniteur, muito seguido pelos senhores Thiers,
seus relatos. Por certo, as reprimendas são muitas e partem de vários lados Lamartine e Louis Blanc.
e ângulos, com certeza comprováveis. Não há, porém, como negar a Mi- Desde a origem, ele é arranjado e corrigido a cada noite pelos podero-
chelet o que é de Michelet. Foi ele o autor das páginas mais inflamadas da sos do dia. Antes do 2 de setembro, a Gironda o altera, e no 6, a Comuna.
história da Revolução e ao mesmo tempo o mais cético e o mais crédulo Assim como em toda grande crise. As atas manuscritas das assembleias
dos seus seguidores. Cético, pois duvidou do seu devir e da França, que ilustram tudo isso, desmentem Le Moniteur e seus copistas, a Histoire par-
não cumpriu com aquele que ele imaginou, crédulo, quando apostou que a lementaire e outras, que muitas vezes estropiam ainda mais esse Moniteur
verdadeira Revolução é aquela liderada pelo povo e que carrega a bandeira já estropiado.
da liberdade. Uma raríssima vantagem que talvez nenhum arquivo do mundo apre-
Em tempos de tanta descrença, essas páginas de Michelet funcionam sentasse no mesmo grau que eu encontrava nos nossos, para cada aconte-
quase como antídoto. Nada melhor do que acabar essa breve introdução cimento capital, relatos muito diversos e inúmeros detalhes que se comple-
recorrendo a nosso intérprete. Foi no prefácio de 1847 que o historiador tam e se verificam.
confessou: “esses são os dias mais sagrados do mundo, dias bem-aventura- Para as federações, tive relatos às centenas, vindos de outras tantas
dos para a história. Quanto a mim, tive minha recompensa, pois os relatei cidades e aldeias (arquivos centrais). Para as grandes tragédias da Paris
[...]”. Feliz por ter assumido a liderança no relato, Michelet é eloquente ao
descrever os dias que teve o privilégio de viver e desfrutar. No entanto, é no 
Michelet, 1989.
prefácio de 1868, já na mira dos críticos, que ele faz não tanto sua profissão 
Trata-se de dezembro de 1851, data do golpe de Luís Bonaparte, então presidente da Repúbli-
de fé, mas sua verdadeira confissão de fé: “este relato, eventualmente co- ca, do qual resultou — dali a um ano — ele tornar-se imperador com o nome de Napoleão III.
A repressão aos republicanos fez-se por demissões, prisões, banimentos. (N. do E.)
movido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto jamais é turvo, de modo 
Le Moniteur Universel foi o jornal oficial criado por Napoleão I e publicado pela primeira vez
nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs generalidades”. Aí está o em 1789, tendo durado até 1901. (N. do E.)

Lições de hist. 4a prova.indd 97 15/5/2013 17:34:38 Lições de hist. 4a prova.indd 98 15/5/2013 17:34:38
Jules Michelet 99 100 Lições de história

revolucionária, o arquivo da prefeitura abria-me sua fonte para os registros entanto um raio de luz, tudo isso tocou, e um dos meus amigos, de partido
da Comuna; e a chefatura de polícia dava-me sua variedade divergente nas contrário, confessou-me que ao ler verteu lágrimas.
atas de nossas 48 seções. Nenhum desses grandes atores da revolução me deixou frio. Não vivi
Para o governo, para os Comitês de Salvação Pública e de Segurança com eles, não acompanhei cada um deles, no fundo de seu pensamento,
Geral, tinha ante os olhos tudo o que se possui de seus registros, e neles em suas transformações, como companheiro fiel? Com o tempo, eu era um
encontrei, dia por dia, a cronologia de suas atas. dos seus, um familiar desse estranho mundo. Eu me dera olhos para ver
Censuraram-me por vezes o fato de citar muito pouco. Eu teria citado entre essas sombras, e creio que elas me conheciam, viam-me só, com elas
com frequência se minhas fontes ordinárias tivessem sido peças soltas. Mas nessas galerias, nesses vastos arquivos raramente visitados. Algumas vezes
meu apoio habitual são essas grandes coleções em que tudo se segue em eu encontrava o marcador no lugar em que Chaumette ou um outro o pôs
uma ordem cronológica. Desde que dato um fato, pode-se reencontrá-lo no último dia. Tal frase, no rude registro dos cordeliers, não foi terminada,
imediatamente em sua data precisa no registro, na pasta de onde o tomei. cortada bruscamente pela morte. A poeira do tempo permanece. É bom
Portanto, precisei citar poucas vezes. Para as coisas impressas e as fontes respirá-la, ir e vir através desses papéis, desses dossiês, desses registros.
vulgares, as notas pouco úteis têm o inconveniente de cortar o relato e o Eles não estão mudos, e tudo isso não está tão morto quanto parece. Eu
fio das ideias. É uma vã ostentação crivar constantemente a página com jamais os tocava sem que certa coisa deles saísse, despertasse... É a alma.
essas referências a livros conhecidos, a brochuras de pequena importância, Na verdade, eu merecia isso. Não era autor. Estava a 100 léguas de
atraindo a atenção para isso. O que dá autoridade ao relato é sua sequência, pensar no público, no sucesso: amava, eis tudo. Ia aqui e ali, obstinado e
sua coesão, mais do que a multidão das pequenas curiosidades bibliográ- ávido; aspirava, escrevia essa alma trágica do passado. [...]
ficas.
Para certo fato capital, meu relato, idêntico às próprias atas, é tão
imutável quanto elas. Fiz mais do que extrair; copiei de próprio punho Do método e do espírito deste livro
(e sem nisso empregar ninguém) os textos dispersos e os reuni. Daí resul-
tou uma luz, uma certeza, as quais nada mudará. Que me ataquem sobre o Este volume contém duas partes, de cerca de 10 meses cada uma;
sentido dos fatos, está bem. Mas em primeiro lugar terão de reconhecer que seu centro, seu apogeu é o belo momento em que a França acreditou ver
tomam de mim os fatos que querem usar contra mim. o céu aberto, a última das federações, a grande Federação do Champ-de-
Aqueles que têm olhos e sabem ver observarão muito bem que este Mars, no 14 de julho de 1790. Assim se eleva a nossa história, cheia de
relato, eventualmente comovido demais, talvez, e tempestuoso, no entanto esperança e de ímpeto, até esse sonho sublime da união dos corações e dos
jamais é turvo, de modo nenhum vago, de modo nenhum indeciso, em vãs espíritos. Depois ela desce, pelos degraus da realidade penosa, até o dia 21
generalidades. Minha própria paixão, o ardor que nele punha não se teriam de setembro de 1791, em que essa criança crédula, o povo, abandonada
contentado com isso. Buscavam, queriam o caráter próprio, a pessoa, o por seu tutor, que deserta e a trai, é enfim obrigada a ser homem, em que
indivíduo, a vida muito especial de cada ator. As personagens aqui não são
de maneira nenhuma ideias, sistemas, sombras poéticas; cada uma delas foi
trabalhada, penetrada, até encontrar o homem íntimo. Mesmo aquelas que

Os cordeliers (franciscanos), também conhecidos como Clube dos Cordeliers ou, formalmente,
Sociedade dos Amigos dos Direitos do Homem e do Cidadão, eram uma sociedade de caráter
são tratadas severamente, sob certos aspectos, ganham em ser conhecidas a populista à época da Revolução Francesa. Ganharam essa alcunha porque as reuniões do clube
esse ponto, alcançadas em sua humanidade. Não favoreci de modo algum aconteciam no mosteiro dessa ordem. (N. do E.)

Esta seção consiste numa espécie de introdução ao livro III (6 de outubro de 1789-14 de julho
Robespierre. Pois bem! o que disse de sua vida interior, do marceneiro,
de 1790), onde Michelet revela os fundamentos de sua abordagem, seu entendimento sobre o
da mansarda, do úmido patiozinho que, em sua sombria vida, colocou no conhecimento histórico, que procura rapidamente sistematizar no “Prefácio de 1868”.

Lições de hist. 4a prova.indd 99 15/5/2013 17:34:38 Lições de hist. 4a prova.indd 100 15/5/2013 17:34:38
Jules Michelet 101 102 Lições de história

faz a primeira tentativa de um verdadeiro governo de homens: ser homem mente o fundo sobre o qual a era moderna hoje constrói. Pudemos apre-
é reger-se a si mesmo. ciar, melhor talvez do que se faz com um olhar rápido, onde está a base
As duas partes do volume, o livro III e o livro IV, são assim muito diver- sólida, onde estariam os pontos ruinosos.
sas nos temas; de um ao outro, a história muda de caráter, por uma transição A base que menos engana, estamos felizes de dizê-lo àqueles que vi-
mais rápida, menos moderada do que acontece comumente no curso das coi- rão depois de nós, é aquela de que os jovens eruditos mais desconfiam, e
sas humanas. Essa mudança não é de maneira alguma por acaso; é a própria que uma ciência perseverante acaba por descobrir tão verdadeira quanto
crise do tempo, o destino da Revolução. Portanto, dois temas e também duas forte, indestrutível: a crença popular.
cores e duas luzes: uma brilhante de esperança; a outra, intensa, concentrada Verdadeira no total, embora seja, no detalhe, carregada de ornamentos
e sombria. Tem-se a lembrança do projeto proposto por alguns cientistas legendários, estranhos à história dos fatos. A lenda é uma outra história, a
para iluminar Paris, dois faróis de luzes elétricas que, acesos sobre duas tor- história do coração do povo e de sua imaginação.
res, iluminariam, com uma meia-luz, as ruas mais escuras e mais profundas, Demos, na cena do 6 de outubro (tomo I), um notável exemplo desses
reforçando as luzes parciais, locais, de gás ou dos lampiões. Aí está meu livro. ornamentos legendários que de maneira alguma são mentiras do povo, que
Os dois faróis que iluminam suas duas faces são: as federações; os clubes, então afirma apenas o que viu com os olhos do coração.
jacobinos e cordeliers. Esses dois assuntos dominam tudo, estão representa- Afastai os ornamentos; o que resta, na crença popular, especialmente
dos em toda parte; nos capítulos em que deles parecemos afastar-nos mais, no que concerne à moralidade histórica, é profundamente justo e verda-
voltam invencivelmente; mesmo quando não aparecem, não deixam de fazer deiro.
sentir sua presença pela cor muito diversa com que tingem os objetos, alegre Não é preciso que nossa confiança em uma cultura superior, em nos-
luz de um fogo de faia, brilhante como a manhã, sombrio clarão de um fogo sas pesquisas especiais, nas descobertas sutis que acreditamos ter feito,
de hulha, cuja chama intensa, ao iluminar, aumenta a impressão da noite, faça-nos desdenhar facilmente a tradição nacional. Não é preciso que levia-
torna as trevas visíveis. namente empreendamos alterar essa tradição, criar-lhe, impor-lhe uma ou-
Para nós, alegre ou melancólico, luminoso ou escuro, o caminho da tra. Ensinai o povo em astronomia, em química, tanto melhor; mas quando
história foi simples, direto; seguíamos a estrada real (essa expressão para se trata do homem, isto é, de próprio, quando se trata de seu passado, de
nós quer dizer “popular”), sem nos deixar desviar para os atalhos tentado- moral, de coração e de honra, não receeis, homens de estudos, deixar-vos
res aonde vão os espíritos sutis: íamos na direção de uma luz que não vacila ensinar por ele.
jamais, cuja chama tanto menos nos devia faltar quanto era idêntica à que Quanto a nós, que de modo algum temos negligenciado os livros, e
trazemos em nós. Nascidos povo, íamos ao povo. que, ali onde os livros se calavam, temos buscado, encontrado recursos
Aí está quanto à intenção. Mas a reta intenção é coisa tão poderosa imensos nas fontes manuscritas, não temos deixado, em toda coisa de mo-
no homem, qualquer que seja sua fraqueza individual, que acreditamos, ralidade histórica, de consultar antes de tudo a tradição oral.
nesta obra, ter avançado um passo na obra comum. Nesta construção pri- E essa palavra não quer dizer para nós o testemunho interessado
meira, insuficiente, como é, há vários pontos sólidos, onde nossos colegas de tal ou tal homem de então, de tal protagonista importante. A maior
de história poderão audaciosamente colocar o pé, para edificar mais alto. parte dos depoimentos desse gênero tem muito a lucrar com a história
Sim, que marchem sobre nós sem temor, ficaremos felizes de nisso ajudar para que ela possa neles encontrar guias confiáveis. Não, quando digo
e de dar-lhes a mão. “tradição oral” entendo “tradição nacional”, aquela que permanece gene-
Nossa única vantagem era o trabalho anterior, a acumulação paciente ralizadamente difundida na boca do povo, o que todos dizem e repetem,
das obras e dos dias; o que para outros é começo, para nós é coroamento. os camponeses, os homens de cidade, os velhos, os homens maduros, as
Dez anos na Antiguidade, 20 anos na Idade Média, contemplamos longa- mulheres, mesmo as crianças, o que podeis aprender se entrardes à noite

Lições de hist. 4a prova.indd 101 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 102 15/5/2013 17:34:39
Jules Michelet 103 104 Lições de história

naquele cabaré de aldeia, o que recolhereis se, encontrando no caminho Tal a tradição nacional, a de toda a França, podeis convencer-vos disso.
um passante que descansa, vos puserdes a conversar sobre a chuva e o Dela retirai apenas alguns escritores doutrinários e alguns trabalhadores le-
bom tempo, depois sobre a carestia dos víveres, depois sobre o tempo do trados que, sob a influência desses dois sistemas, e cultivados há 20 anos por
imperador, sobre o tempo da Revolução. Anotai bem esses julgamentos; uma imprensa especial, saíram da tradição comum à massa do povo. Ao todo,
por vezes, sobre as coisas, ele erra, mais frequentemente ignora. Sobre os alguns milhares de homens, em Paris, em Lyon, em três ou quatro grandes
homens, não se equivoca, muito raramente se engana. cidades; número pouco considerável, diante de 34 milhões de almas.
Coisa curiosa, o mais recente dos grandes protagonistas da história, O catecismo histórico que acabamos de indicar é o de todos os habi-
aquele que ele viu e tocou, o imperador, é aquele que o povo mais investe e tantes dos campos, o da maioria dos habitantes das cidades; “maioria” é impró-
desfigura com tradições legendárias. A crítica moral do povo, muito firme em prio, é preciso dizer “a quase totalidade”.
qualquer outra parte, aqui geralmente enfraquece: duas coisas perturbam o Considerai agora o inverso desse catecismo (Voltaire e Rousseau nada
equilíbrio, a glória e também a desgraça, Austerlitz e Santa Helena. fizeram, a rainha não teve nenhuma influência na sorte do rei, os padres e
Quanto aos homens anteriores, várias de suas coisas estão esquecidas,
os ingleses são inocentes dos males da Revolução etc.), tereis contra vós a
a tradição enfraqueceu-se, quanto ao detalhe de seus atos. Mas, quanto ao
França.
seu caráter, permanece um julgamento moral, idêntico em todo o povo (ou
Ao que respondereis talvez: “somos pessoas hábeis, cientistas; conhe-
em sua quase totalidade), julgamento muito firme e muito preciso.
cemos a França bem melhor do que ela própria se conhece”.
Ampliai, peço-vos, essa investigação. Consultai pessoas de todos os
Tal recusa, oposta à crença do povo, espanta-me, devo confessá-lo.
tipos: não são operários (vários já são antes letrados que povo), não apenas
Essa história, tão enraizada nele, que a viveu, a fez e a sofreu — contestar-
mulheres (sua sensibilidade por vezes as desorienta), mas pessoas diversas
lhe o conhecimento parece-me, da parte dos doutos, uma pretensão pre-
em idade, em sexo, em condição; afastai as oposições acessórias, tomai o
sunçosa, se assim ouso falar. Deixai-lhe, senhores letrados, deixai-lhe seus
total das respostas, eis aqui o que encontrareis, o que se poderia chamar o
“catecismo histórico do povo”: julgamentos, ele bem mereceu conservar-lhes a posse tranquila — posse
Quem conduziu a Revolução? Voltaire e Rousseau. Quem perdeu o grave, importante, senhores; é seu patrimônio moral, uma parte essencial
rei? A rainha. Quem começou a Revolução? Mirabeau. Quem foi o inimigo da moralidade francesa, uma compensação considerável pelo que essa his-
da Revolução? Pitt e Coburgo, os chouans e Coblença. E ainda? Os goddem e tória lhe custou em sangue.
os carolas. Quem comprometeu a Revolução? Marat e Robespierre. Quando o povo tira um axioma, um provérbio, de sua experiência,
ele não é dela extraído facilmente; uma coisa proverbial para ele, em me-
dicina política, que guardou de 1793, é que a sangria pouco vale, e que só

Isso não contradiz em nada o que dissemos no capítulo 9 do livro IV. Ali se tratava do público,
aqui, do povo. Seria insultar a inteligência do leitor explicar a diferença. agrava a doença.

A Batalha de Austerlitz — ou Batalha dos Três Imperadores — foi uma das maiores vitórias mi-
litares de Napoleão, na qual destruiu definitivamente a Terceira Coalizão que se levantara contra
o império francês. Em 2 de dezembro de 1805, sob o comando de Napoleão I, uma armada
francesa subjugou o exército austro-russo comandado pelo czar Alexandre I, numa batalha san- lucionáiria, e a expressão “Pitt e Coburgo” tornou-se célebre para designar as monarquias ini-
grenta de quase 10 horas. Essa batalha aconteceu nas imediações de Austerlitz, cerca de 10 km migas da Revolução e os traidores internos. Os chouans foram os contrarrevolucionários bretões
de Brno, na Morávia. A batalha de Austerlitz entrou para a história como uma obra-prima de dos primeiros anos da Revolução, católicos, monarquistas, sobretudo na Vendeia. Coblença,
tática de guerra. A ilha de Santa Helena era uma colônia britânica onde os ingleses encarceraram cidade renana alemã, foi o ponto onde os emigrados se reuniram para formar o exército que
Napoleão após sua derrota, de onde ele não saiu até 1821, ano de sua morte. (N. do E.) invadiria a França em 1792. Goddem (ou les goddamns ou les goddams) é um tratamento pejo-

Sir William Pitt, ou o “segundo Pitt”, líder político inglês que inspirou e financiou as sucessivas rativo com que os franceses se referiam aos ingleses (especialmente os da infantaria) desde a
campanhas contra a França revolucionária e napoleônica, até sua morte em 1806. Frederico Guerra dos Cem Anos — e em muitos outros conflitos entre Inglaterra e França desde a Idade
Josias, duque de Saxe-Coburgo, foi um general austríaco nas campanhas contra a França revo- Média. (N. do E.)

Lições de hist. 4a prova.indd 103 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 104 15/5/2013 17:34:39
Jules Michelet 105 106 Lições de história

E, não tivesse ele a experiência, o bom senso lhe diria suficientemente que o pequeno Shakespeare ouvia, guardando cavalos, à porta do espetá-
que a salvação por via do extermínio não é uma salvação. culo; era a ele que Dante ia ouvir no mercado de Florença. O dr. Martinho
A França estava perdida, após a Salvação Pública, perdida de força e de Lutero, doutor como era, fala-lhe de borla na mão, chamando-o mestre e
coração, a ponto de deixar-se tomar por aquele que quis tomá-la. senhor: “herr omnes” (“senhor todo mundo”).
Agora, doutos senhores, contra essa crença universal, chegai com Todo mundo, ignorante sem dúvida das coisas da natureza (não ensi-
vossos sistemas, fazei entender a esse povo que, “permutando-se a vida e nará física a Galileu ou cálculo a Newton), nem por isso é juiz menos justo
a morte incessantemente na natureza, é indiferente viver ou morrer; que, nas coisas do homem. E soberano mestre em direito. Quando toma assen-
morto um, outros chegam; que com isso a terra só floresce melhor”. Se essa to, em seu pretório e tribunal natural, nas encruzilhadas de uma grande
suave doutrina não encantá-lo de início, dizei-lhe com segurança que ela cidade ou no banco de uma igreja, ou ainda em uma pedra no cruzamento
corresponde inteiramente ao cristianismo; a salvação de que ele nos fala era das quatro estradas, sob o olmo do julgamento,11 ele julga, sem apelo; não
a Salvação Pública, o apóstolo do Terror foi aparentado a Jesus Cristo. De- há que dizer “não”. Os reis, as rainhas e os tribunos, os Mirabeau, os Ro-
pois, tomai esse apóstolo sentimental e pastoral, dai a ele um hábito mais bespierre comparecem modestamente. Que digo eu? O grande Napoleão
celestial ainda do que aquele que usou na festa do prairial,10 e tereis muita faz como fazia Lutero: põe o chapéu na mão...
dificuldade em reconciliar o povo com o nome de Robespierre. Et nunc erudimini, qui judicatis terram!12 Sede julgados, juízes do mundo!
Esse povo tem a cabeça dura. É o que dizia Moisés quando, após ter Alta e soberana justiça, semelhante à de Deus, por quase nunca dignar-
matado 20 ou 30 mil israelitas, chamava em vão pelos outros; eles faziam se a motivar seus julgamentos. Eles surpreendem por vezes, escandalizam.
ouvidos moucos. Os escribas e os fariseus pediriam de bom grado que se interditasse tal juiz;
Ou então, querei vós que eu use uma imagem muito ingênua, que não sabem realmente como desculpar suas contradições: “Povo mutável!”,
achareis chã talvez, mas que não é inexata? É a fábula de La Fontaine: o dizem eles erguendo os ombros, “que, sem nenhum princípio determinado,
cozinheiro, com seu facão ao lado, adula os frangos: “queridos, queridos!”. julga e se retrata”. Indulgente com este e severo com aquele! Justiça toda ca-
Por mais que faça uma voz doce, os queridos não prestam atenção; um prichosa. Os sensatos, felizmente, estão aí para revisar seus julgamentos.
facão não é uma isca. Capricho aos olhos da ignorância; para a ciência, justiça profunda.
Mas falemos seriamente. Quando ele julga, tudo está acabado; cabe a vós outros, historiadores, fi-
Não somos de modo algum desses amigos do povo que desprezam lósofos, críticos, chicanistas, buscar, encontrar, se puderdes, o porquê. Pro-
a opinião do povo, sorriem do preconceito popular, acreditam-se, modesta- curai; ele é sempre justo. O que aí encontrais de injusto, fracos e sutis que
mente, mais sábios que todo mundo. sois, é a imperfeição de vosso espírito.
Todo mundo, para os hábeis e os homens de espírito, é um pobre ho- Assim, esse estranho juiz oferece este escândalo ao auditório: descul-
mem de bem, que enxerga pouco, bate, tropeça, faz garatujas, não sabe pa Mirabeau, apesar de seus vícios; condena Robespierre, apesar de suas
muito bem o que diz. Rápido, um bastão para esse cego, um guia, um virtudes.
apoio, alguém que fale por ele. Grande rumor, muitas reclamações, ditos, contraditas, mas sim, mas
Mas os simples, que não têm espírito, como Dante, Shakespeare e Lu- não... Vários meneiam a cabeça e dizem: “o bom homem perdeu a razão”.
tero, veem de maneira muito diferente esse bom homem. Reverenciam-no,
recolhem, escrevem suas palavras, mantêm-se em pé diante dele. Era a ele
11
Referência à locução francesa em que “sob o olmo” é o lugar de uma espera vã. (N. do T.)
12
Literalmente: “e agora compreendeis, ó reis; instruí-vos, vós que governais a Terra”. São pala-
vras do salmo II, versículo 10, do Livro Santo, citadas para ensinar que devemos ser humildes
10
Prairial foi o nome dado ao nono mês do calendário da Revolução Francesa: de 20 de maio a e aproveitar da experiência alheia. (N. do E.)
18 de junho. (N. do E.)

Lições de hist. 4a prova.indd 105 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 106 15/5/2013 17:34:39
Jules Michelet 107 108 Lições de história

Tomai cuidado, senhores, tomai cuidado, é o julgamento do povo, a decisão todas as outras. O que é um livro? É um homem. E o que é um jornal? Um
do mestre; não a corrigiremos em nada; tratemos apenas de compreender. homem. Quem poderia confrontar essas vozes individuais, parciais, inte-
Este último ponto é já bastante difícil, ative-me a isso, sabendo bem, ressadas, com a voz da França?
quando encontrava julgamentos discutidos, por vezes fatos estranhos em A França tem o direito, se alguém pode tê-lo, de julgar em última ins-
que a tradição comum não parecia concordar com tais documentos im- tância seus homens e seus acontecimentos. Por quê? É que ela não é para
pressos, que raramente era preciso preferir estes últimos; as memórias são eles um contemplador fortuito, uma testemunha que vê de fora; ela esteve
defesas de tal causa individual, os jornais defendem do mesmo modo o neles, animou-os, penetrou-os de seu espírito. Eles foram em grande parte
interesse dos partidos. Explorei então outras fontes, até aqui muito ne- obra sua: ela os conhece, porque os fez.
gligenciadas, e vi com admiração que, para subscrever os julgamentos da Sem negar a influência poderosa do gênio individual,13 nenhuma dú-
ignorância popular, o que me faltara era a ciência. vida de que na ação desses homens a parte principal cabe no entanto à ação
Um estrondoso exemplo disso é o fato imenso das federações, com geral do povo, do tempo, do país. A França os conhece nessa ação que foi
que o povo, sobretudo o dos campos, ficou tão profundamente impressio- dela, como seu criador os conhece. Devem a ela o que foram, excetuados
nado, e que ele jamais deixa de lembrar com efusão, desde que se fale no tais ou tais pontos em que ela se torna seu juiz, aprova ou condena, e diz:
ano de 1790. Sem razão? As federações foram simples festas? Acreditar-se- “nisto, não sois meus”.
ia, pela pouca atenção que lhes dão então os jornais de Paris. Foram elas
Todo estudo individual é acessório e secundário diante desse profun-
festas burguesas, como depois se tentou dar a entender? Como é possível
do olhar da França sobre a França, dessa consciência interior que ela tem
então que a imaginação, o coração do povo ainda estejam tomados por
daquilo que fez. O papel da ciência nem por isso deixa de ser grande. Do
elas? Lede as atas das federações; comparai-as aos documentos impressos
mesmo modo como essa consciência é forte e profunda, é também obscura,
da época, descobrireis que essas grandes reuniões armadas, sucedendo-se
tem necessidade de que a ciência a explique. A primeira mantém e manterá
durante nove meses (de novembro de 1789 a julho de 1790), tiveram o
os julgamentos que fez; mas os motivos dos julgamentos, todas as peças do
efeito muito grave de mostrar aos aristocratas as forças imensas, invencíveis
processo, os raciocínios muitas vezes complicados, pelos quais o espírito
da nação; elas lhes tiraram a esperança, fizeram-nos perder o pé, decidiram
popular obtém conclusões que são chamadas de simples e ingênuas, tudo
a emigração, desataram o nó da época. As federações centrais (Lyon, Ruão,
isso apagou-se. E está aí o que a ciência está encarregada de redescobrir.
Paris etc.), que vieram por último, fizeram comparecer apenas os represen-
Eis o que nos pede a França, a nós, historiadores: não que façamos a
tantes da Guarda Nacional; em Lyon, 50 mil homens representaram 500
mil homens. Mas as federações locais, as das pequenas cidades e aldeias, história — ela está feita nos seus pontos essenciais; moralmente, os grandes
dos vilarejos, incluíram todo mundo; pela primeira vez, o povo se viu, se resultados estão inscritos na consciência do povo —, mas que restabeleça-
uniu em um mesmo coração. mos a cadeia dos fatos, das ideias de onde saíram esses resultados: “não vos
Esse fato, imperceptível na imprensa, depois obscurecido, desfigura- peço”, diz ela, “que formeis minhas crenças, que diteis meus julgamentos;
do pelos fazedores de sistemas, reaparece aqui em sua grandeza; domina, cabe a vós recebê-los e conformar-vos a eles. O problema que vos propo-
como dissemos, a primeira metade deste volume. Nove meses da Revolu- nho é o de me dizer como cheguei a julgar assim. Agi e julguei; todos os
ção são inexplicáveis sem ele. Onde estava ele, antes de nós? Nas fontes intermediários entre essas duas coisas pereceram em minha memória. Cabe
manuscritas, na boca e no coração do povo. a vós adivinhar, meus magos! Não estivestes presentes, eu estive. Pois bem,
Essa é a primeira missão da história: redescobrir por meio das pes-
quisas conscienciosas os grandes fatos da tradição nacional. Esta, nos fatos 13
Num belíssimo artigo em que o jornal La Fraternité (outubro de 1847) coloca o verdadeiro
dominantes, é muito grave, muito segura, tem uma autoridade superior a ideal da história, ele reduz muito, contudo, a parte do gênio individual.

Lições de hist. 4a prova.indd 107 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 108 15/5/2013 17:34:39
Jules Michelet 109 110 Lições de história

quero, ordeno que me conteis o que não vistes, que me ensineis meu pen- Heu! unain in horam natos!... (“Nascidos na mesma hora!”).
samento secreto, que me digais pela manhã o sonho esquecido da noite”. A tentação do coração, quando se veem passar tão depressa esses
Grande missão da ciência e quase divina! Ela jamais bastaria para pobres efêmeros sob o sopro da morte, seria tratá-los com uma extrema
isso se fosse apenas ciência, livros, penas e papel. Não se adivinha uma indulgência. Não duvidamos que Deus tenha assim julgado, que tenha
tal história senão ao refazê-la com o espírito e a vontade, ao revivê-la, de largamente perdoado. O historiador não é Deus, não tem seus poderes
modo que não seja uma história, mas uma vida, uma ação. Para redes- ilimitados; não pode esquecer, ao escrever o passado, que o futuro, sempre
cobrir e relatar o que esteve no coração do povo só há um meio: é ter o copiador, ele copiará exemplos. Sua justiça vê-se, assim, circunscrita a uma
mesmo coração. medida menos ampla do que aconselhava seu coração.
Um coração grande como a França! O autor de tal história, se algum Está aqui o que podíamos, e o que fizemos:
dia for realizada, será, com certeza, um herói. Raramente apresentamos um julgamento total, indistinto, nenhum
Que admirável equilíbrio de justiça magnânima se encontrará nesse retrato propriamente dito; todos, quase todos são injustos, resultando de
coração! Que sublimes balanças de ouro! Pois, afinal, ser-lhe-á necessário, uma média que se toma em tal ou tal momento da personagem, entre o
na grande justiça popular, que decide em geral, avaliar nos indivíduos a bem e o mal, neutralizando um pelo outro e tornando ambos falsos. Julga-
justiça de detalhe, redescobrir em cada um, por uma benevolente equida- mos os atos à medida que se apresentam, dia a dia e hora a hora. Datamos
de, suas circunstâncias atenuantes, e, mesmo sobre o mais culpado, condu- nossas injustiças; e isso nos permitiu muitas vezes louvar homens que mais
zindo-o ao tribunal, dizer ainda: “foi homem também”. tarde precisaremos condenar. O crítico esquecido e severo condena muito
Essas reflexões nos detiveram muitas vezes, muitas vezes nos fizeram frequentemente começos louváveis em vista do fim que ele conhece, que
sonhar por longo tempo. Sentíamos bem demais o que nos faltava, em pu- vê por antecipação. Mas nós não queremos conhecê-lo, a esse fim; o que
reza, em santidade, para atingir esse equilíbrio. quer que esse homem possa fazer amanhã, anotamos em seu benefício o
O que podemos dizer, ao menos, é que, digno ou não, nós tocamos bem que hoje faz; o mal bem cedo virá: deixemos-lhe seu dia de inocência,
essa balança com mão atenta e escrupulosa.14 Jamais esquecemos que pe- escrevamo-lo cuidadosamente em favor de sua memória.
sávamos vidas de homens... de homens, ah, que viveram tão pouco. E uma Assim, detivemo-nos de bom grado sobre os começos de vários ho-
circunstância grave no destino dessa geração, que nos obriga, para sermos mens por quem tínhamos medíocre simpatia. Louvamos provisoriamente,
justos, a nos tornar indulgentes: ela tombou em um momento único, em onde eram louváveis, o padre Sieyès e o padre Robespierre, o escriba Bris-
que se acumularam séculos; coisa terrível, jamais vista: não mais sucessões, sot e outros.
não mais transições, não mais duração, não mais anos, não mais horas nem Quantos homens em um homem! Como seria injusto, para essa cria-
dias, suprimido o tempo! tura móvel, estereotipar uma imagem definitiva! Rembrandt fez 30 autor-
Alguém, em 1791, na Assembleia Nacional, lembrava 89: “sim”, como retratos, creio, todos parecidos, todos diferentes. Segui esse método; a arte
se diz, “antes do dilúvio”. Camille Desmoulins, falando em 1794 de um ho- e a justiça aconselhavam-no igualmente. Quem tiver o trabalho de acom-
mem de 92: “um patriota antigo na história da Revolução”. O mesmo, ca- panhar, nestes dois volumes, um a um os grandes protagonistas históricos,
sado no final de 1790, escreve em 93: “das 60 pessoas que vieram ao meu verá que cada um deles tem toda uma galeria de esboços, corrigido cada
casamento, restam duas, Robespierre e Danton”. Ele não tinha acabado a um em sua data, segundo as modificações físicas e morais por que passava
linha, e dos dois só restava um. o indivíduo. A rainha e Mirabeau, assim, passam e repassam cinco ou seis
vezes; a cada vez, o tempo os marca com sua passagem. Marat aparece do
mesmo modo, sob diversos aspectos, muito verdadeiros, embora diferen-
Não temos, nesta história, nenhum interesse além da verdade. Não seguimos às cegas nenhu-
14

ma paixão de partido [...]. tes. O tímido e sofredor Robespierre, apenas entrevisto em 1789, desenha-

Lições de hist. 4a prova.indd 109 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 110 15/5/2013 17:34:39
Jules Michelet 111 112 Lições de história

mo-lo, em novembro de 1790, à noite, de perfil, na tribuna dos jacobinos; nela encontrar algumas provas de uma teoria pronta, limita em demasia
colocamo-lo de frente (em maio de 91) na Assembleia Nacional, sob um suas leituras, e nem mesmo entende o pouco que leu. É o que acontece aos
aspecto magistral, dogmático, já ameaçador. autores da Histoire parlementaire; dos dois termos que comparam e fundem
Datamos assim curiosamente, minuciosamente, os homens e as ques- sem julgamento, a Idade Média e a Revolução, não conhecem o primeiro, e
tões, e os momentos de cada homem. não compreendem o outro.
Dissemo-nos e repetimo-nos uma frase que permaneceu presente e O que aconteceu quando quiseram impor à Revolução de 1789 o ca-
que domina este 1ivro: ráter socialista dos tempos posteriores? Nada encontrando nos documen-
A história é o tempo. tos revolucionários que reproduzem, suprem a falta colando, na frente,
Essa constante reflexão impediu-nos de levantar as questões antes da atrás, prefácios ou posfácios que com eles não mantêm nenhuma relação.
hora, como muito frequentemente se faz. É tendência comum querer ler Aí, sem provas, afirmam que tal foi a ideia secreta dos grandes protagonis-
todos os pensamentos de hoje no passado, que muitas vezes não foram tas históricos, de tal homem, de tal partido: eles pensaram isto, aquilo; não
pensados. Para aqueles que têm essa fraqueza, nada é mais fácil. Toda gran- disseram nada, é verdade, mas deveriam tê-lo dito.
de questão é eterna; quase impossível não encontrá-la em qualquer época. Ou, então, se encontram um apoio, algumas palavras que possam, for-
Mas o próprio da ciência não é tomar assim esses aspectos vagos e gerais çando-as, mudar em seu proveito, é no campo inimigo que vão buscá-las...
das coisas, esses caracteres comuns dos tempos, em que eles se confundem;
ao contrário, especificar; insistir, para cada época, na questão realmente
dominante, e não ressaltar nela tal circunstância acessória, que se encontra
em outros tempos, que talvez em nossos dias se tenha tomado dominante,
mas que então não o era.
Foi injustificadamente que os autores da Histoire parlementaire, e
aqueles que a seguem de perto ou de longe, colocaram em primeira linha,
na história da Revolução, as chamadas “questões sociais”, questões eternas
entre o proprietário e o não proprietário, entre o rico e o pobre, questões
formuladas hoje, mas que na Revolução aparecem sob outras formas, ainda
vagas, obscuras, em um lugar secundário.
Esses autores exerceram uma enorme influência, tanto por uma co-
leção fácil de consultar, que parece dispensar outras, como por um jornal
digno de estima, redigido infelizmente no espírito deles, mas cuja vigorosa
moralidade compensa em parte tal defeito. O dever, só essa palavra, rara-
mente atestada em nossos dias, o dever sentido, ensinado, constitui nesse
jornal uma originalidade verdadeira.
Nada reprovamos nos modestíssimos discípulos, mais sensatos aliás
que seus mestres. Quanto a estes, não podemos deixar de admirar sua se-
gurança no absurdo, sua intrepidez de afirmação. No entanto, o dever de
que dão testemunhos ordenava, antes de assim afirmar, estudar com cons-
ciência. Não se adivinha a história. Aquele que a percorre às pressas, para

Lições de hist. 4a prova.indd 111 15/5/2013 17:34:39 Lições de hist. 4a prova.indd 112 15/5/2013 17:34:39

Você também pode gostar