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Faculdade de Teologia

UNASP-EC
Livros Históricos

A descendência de Ismael em 1 Cr 1:28- 31, a aliança bíblica e o Islam


1
Gustavo Emanoel Pacheco Portes

Resumo: O artigo discute brevemente a relação entre a aliança bíblica e descendência de


Ismael, filho do patriarca Abraão, conforme o relato de 1 Crônicas 1: 28-31. Abraão foi eleito
por Deus ao entrar em aliança com ele. A aliança incluía a promessa do nascimento de um
descendente tipológico; Isaque. Neste sentido, considerando os aspectos da mecânica da
eleição e as promessas da aliança bíblica, serão discutidas quais são as relações entre a
descendência de Ismael, a aliança bíblica e o Islam, cujos membros são considerado pela
tradição árabe como descendentes de Ismael.

Palavras-chave: Ismael; Aliança Bíblica; 1 Crônicas 1:28-31; Islam.

Introdução

De acordo com a narrativa bíblica, ao estabelecer a Terra e seus


fundamentos, o Criador entrou em aliança com o homem (Gn 1: 28-29), permitindo
que ele fosse seu eleito e representante na Terra. Entretanto, o homem violou a
aliança (Gn 2: 16-17; 3: 6) tornando-se fadado à morte e à exclusão de seu
relacionamento com Deus. Em sua misericórdia, Deus restaura a aliança através da
promessa da vinda de um descendente (ָ֑‫זַרְע‬2)3(Gn 3: 15), através da genealogia de
Abraão, Isaque e Jacó (Gn 37: 11-12) e Davi (Gn 17: 14).
A partir deste contexto, Deus firma aliança com Abraão, na qual apresenta a
promessa (1) da posse da terra de sua peregrinações e (2) o nascimento de um
descendente (ָ֑‫)זַרְע‬, pelo qual todas as famílias da Terra seriam abençoadas (Gn 12:
1-3, 7). A promessa do nascimento cumpre-se em Isaque, por meio do qual a
aliança é estendida até o nascimento do Messias 4 , perpassando Davi e sua

1
Acadêmico do Bacharelado em Teologia da Faculdade de Teologia do UNASP, Campus Engenheiro
Coelho. E-mail: gustavoepportes@gmail.com . Junho de 2014.

2 Citações em hebraico foram retiradas do texto hebraico Westminster Leningrad Codex.


3
Literalmente semente. Cf. Schokel, L. A. Dicionário Bíblico Hebraico-Portugues. P. 199. São Paulo:
Paulus, 1997.
4
O termo Messias é derivado do hebraico ‫[ ַחמָשִׁ֣י‬mā-šî-aḥ] que significa ungido (Cf. Lev 6:22; 2Sm
5:3; Dn 9:24 (...)), traduzido para o grego na LXX e nos livros do Novo Testamento como Χριστός e,
descendência. Por meio do Messias são estendidas à todas as famílias da Terra as
promessas da aliança através do seu sacrifício expiatório pelo pecado (Dn 9: 27; Ef
2: 12- 14); a adoção como filhos de Deus aos que aderem à [nova] aliança (Jr 34:
31; Jo 1: 12) e a posse da Terra por estatuto perpétuo (Dn 7: 27; Jo 14: 1-3; Mt 25:
34). Entretanto, anteriormente ao Messias, Abraão cede momentaneamente em sua
fé e torna-se pai de um filho fora do casamento e alheio à aliança (Gn 16: 15-16).
Embora em desarmonia com o plano de Deus, Ismael (‫)יִשְׁמָעֵאל‬5 – filho de
Abraão com a escrava egípcia Agar – recebe a promessa que sua descendência
seria multiplicada, príncipes procederiam dele (Gn 17: 20) e lhe é dito por Deus que
o próprio Ismael seria como “jumento selvagem”, sendo que “sua mão [seria] contra
a de todos e a mão de todos contra ele e [habitaria] fronteiro a todos os seus irmãos”
(ARA, Gn 16:12).
O texto de 1 Crônicas 1: 28-31, descreve a genealogia de Ismael, seus doze
filhos e seus nomes; em grande semelhança ao descrito em Genesis 25: 12-18;
sendo registrados na Escritura mais de mil anos após o nascimento de Isaque, o
filho da aliança abraâmica (McCURRY, 1999, p. 12) e ainda citados como povos que
haveriam de ser recolhidos com seus rebanho “no aprisco do Messias” (Is 42: 11;
60: 7, cf. McCurry, 1999, p. 12).
Sob este pano de fundo, este artigo propõe-se a analisar a relação entre a
descendência de Ismael em 1 Crônicas 1: 28- 31 e a aliança bíblica.

1 Descendência de Ismael em 1o Crônicas 1: 28-31

Selman (1994, p. 27) em seu comentário sobre a estrutura literária e teológica


dos livros de 1 e 2 Crônicas, aponta peculiaridades empregadas pelo Cronista6. Ao
elaborar o relato genealógico apresentado nos nove primeiros capítulos do livro, o

em português, Cristo (MT 1:22; 2:5-6 (...)). Refere-se, ulteriormente, ao descendente escatológico (Gn
3:15) da aliança.
5
Do hebraico “Deus ouve”.
6
Há consenso em grande parte dos eruditos do Antigo Testamento em citar o escriba Esdras como
provável autor dos relatos de I e II Crônicas. Paralelos temáticos (templo, sacerdócio, aliança),
lingüísticos (ultima perícope em II Crônicas e introdução imediata no livro de Esdras) e cronologia
abarcada pelo livro de II Crônicas constituem forte evidencia. Cf. BRAUN, R. Word Bible Comentary.
Waco, TX: Word Books Publisher, 1986; NICOLL, W. R. The expositor`s Bible Comentary. New York -
EUA: A. C. Armstrong and Son, 1903; entre outros.
olhar do leitor é direcionado ao fluxo dos gerações de Adão à Esaú (c. 1-1:54);
seguidos pela genealogia das doze tribos de Israel (2:1-9:1) e aportando no relato do
Reino Unido sob Davi e posteriormente Salomão (10-2 Cr 9) para então adensá-lo;
porção onde o autor debruça maior atenção.
A estrutura do livro segue o fluxo de acontecimentos (foreground) que orbitam
um tema central implícito (background): os atos de Deus e do povo de Israel sob o
contexto da aliança bíblica (Idem, p. 44). O próprio relato genealógico apresentado
nos nove primeiros capítulos direciona o leitor (1) à genealogia da aliança de Deus
com Abraão, Isaque, Jacó e posteriormente Davi; (2) aos acontecimentos – em
grande medida – através de seus descendentes sob o contexto da aliança,
especialmente relacionados à adoração e ao templo e (3) à expectativa da vinda do
Messias.
O primeiro capitulo do livro dedica-se à descrever a genealogia de Adão à
Abraão. Os verso 28 a 34 introduzem a descendência de Abraão, iniciando por
Ismael, Quetura - concubina do patriarca - e finalmente Isaque, sendo então
adensado o relato (vv 24- 9:44).
Os versos 28 a 29 introduzem a descendência de Ismael: “Os filhos de
Abraão: Isaque e Ismael. Estas [foram] as [suas] gerações: o primogênito de Ismael,
Nebaiote, então Quedar e Adbeel e Mibsam, Mismá e Duma, Hadad e Teima, Jetur,
Nafis e Quetumá. Estes são os filhos de Ismael7”
O relato de Crônicas é paralelo ao relato de Genesis 25: 12-16, em que a
descendência de Ismael é apresentada. Ao passo que em Genesis o relato é
expandido, em 1 Crônicas é apresentado de forma breve. Genesis 25 apresenta a
seqüência: Quetura (v, 1-5); Ismael (vv. 12-18) e finalmente Isaque (19-34) enquanto
1 Crônicas apresenta a ordem Ismael (vv. 29-31); Quetura (vv. 32-33) e então
Isaque (vv. 34-37). A razão para mudança na seqüência empregada nos dois relatos
parece não estar clara, embora ambos direcionem atenção maior à descendência de
Isaque, clímax da perícope.
Braun (1986, p. 22) pontua uma possível mescla a partir do uso da fonte de
Genesis 25 pelo cronista, especialmente onde a expressão ‫( תֹּלְדוֹתָ֑ם‬suas gerações)
é introduzida no livro de 1 Crônicas, referindo-se à descendência de Ismael. No livro

7
Tradução provida pelo autor a partir da Bíblia Hebraica Stuttgartensia.
de Genesis, a expressão é utilizada para ressaltar perícopes e descrever enredos ou
personagens específicos (Gn 5; 10; 11:10; 25).
Butrick e Harmon (1954, p 342) indicam que o relato genealógico no livro de 1
Crônicas atua como bússola, denotando o verdadeiro Deus que age na história e o
seu interesse pelo povo [da aliança]. Diversos elementos podem ser observados a
partir da estrutura literária do relato genealógico em 1 Crônicas. Dentre as quatro
formas literárias utilizadas pelo autor referidas por Braun 8 (1986), o relato
genealógico cumpre o papel de demonstrar as relações entre Israel e as tribos
vizinhas; estabelecer continuidade de parentescos que a tradição [oral] omite e
ainda estabelecer fontes de referência posteriores. Desta forma, o relato
genealógico de Ismael denota de forma indireta o senso de movimento dentro da
história rumo ao cumprimento do propósito divino em seu povo (JOHNSON, 1969,
p. 80), dentro do contexto mais amplo da aliança.
O relato da descendência de Ismael em 1 Crônicas (vv. 28-31) é apresentado
pelo autor de forma linear, sendo pouco aprofundado; relatos lineares e escassos
costumam incluir descrições de personagens secundários ao passo que relatos
profundos e segmentados são empregados para descrever personagens principais
de acordo com o enredo apresentado na narrativa bíblica (BRAUN, 1986, p. 2).
Relatos lineares demonstram o propósito de Deus sendo cumprido ao longo da
história, incluindo aspectos centrais e periféricos de Seu plano, indicando que nada
fica fora do controle de Deus, mesmo eventos marginais. Da mesma forma,
demonstram a fluidez dos propósitos divinos ao se cumprirem, a despeito de
mudanças na sociedade, economia, cultura ou mesmo com seu povo escolhido;
como acima, o advento de um filho inesperado de Abrão com Agar em desarmonia
às estipulações da aliança.
O relato da genealogia de Ismael, limita-se a citar seus 12 descendentes
diretos. Inicia destacando o fato de Nebaiote (‫ )נְבָיֹ֔ות‬ser o primogênito (‫ )בְּכֹ֤ור‬de
Ismael (v 29). Na cultura do Antigo Oriente Próximo, a primogenitura representava
status social, político e, em alguns contextos, religioso (Ex 13; Nm 8: 14-26). Este
padrão é claramente descrito no Antigo Testamento (AT) (NICHOL, 2011, p. 597).
Da mesma forma, o relato denota padrão seqüencial, sugerindo ordem cronológica
entre os 12 descendentes.

8
Genealogias, listas, discursos e formas mescladas (cf. BRAUN, 1986, xxiii).
O relato é meramente descritivo; parte dos elementos do texto (nomes) são
precedidos de vavs conjuntivos (‫)ְו‬9; seis ocorrências são empregadas para produzir
seqüência ao relato dos filhos de Ismael (‫)וָקֵ֑דְמָה ; וְתֵימָֽא ; ֔וְדוּמָה ; ֽׂוּמִבְשםָ ; וְאַדְבְּאֵ֖ל ; וְקֵדָ֥ר‬
e uma ocorrência (‫ – )וְיִשְׁמָעֵֽאל‬a primeira do relato – ao incluir Ismael como filho de
Abraão (v. 28). O uso do vav conjuntivo denota, neste relato, o ensejo de
acrescentar detalhes à descrição (cf. DAVIDSON, 2011, p. 233) mantendo como
objetivo principal conduzir o leitor ao clímax da perícope, o verso 34 (ao introduzir a
descendência de Isaque).
De forma geral, a genealogia de Ismael é brevemente descrita. Nenhum
detalhe adicional em 1 Crônicas 1: 28-31 é oferecido além da primogenitura de
Nebaiote. Ramos descendentes não são incluídos; lugares de habitação;
características ou período de vida das personagens são omitidos. Por outro lado,
como indica Wolf (2007, p. 270), “os filhos devem ser encarados como um dom de
Javé”; em relação à descendência de Ismael, um dom provido em cumprimento à
promessa de Deus de que sua descendência seria multiplicada (Gn 17:12); a
despeito de ser um filho não planejado por Deus em relação à sua aliança com
Abraão.

2 Aliança Bíblica

Diversos eruditos (cf. Bruggermann; Kaiser Jr.; Cassuto; entre outros) tem
feito referencia ao nexo que perpassa todo o relato bíblico em seus principais
eventos, organizando um fluxo geral de acontecimentos em torno de um eixo central,
ora explícito, ora implícito. Como indica LaRondelle (2005, xii, p. 4, 5), a aliança
bíblica constitui este fio condutor na narrativa e, muitas vezes, serve de pano de
fundo para o desenrolar do enredo.
A expressão aliança (‫ )בְּרִית‬aparece pela primeira vez no relato de Gênesis
6:18, quando após o dilúvio Deus propõe uma aliança à Noé10, informando que as
águas não mais cobririam toda a terra. Seu significado etimológico, indicava o corte

9
Conjunção hebraica prefixada à palavra seguinte. Geralmente denota seqüência ou acréscimo de
informação. Pode denotar quebra de sentido na narrativa. Comumente traduzida como “e”; “então’;
“depois”.
10
Os elementos: geografia, abrangência de alcance e continuidade do pacto com Noé, apontam para
um aspecto universalista e abrangente desta aliança.
de animais em acordos ou tratados entre indivíduos, em que cláusulas eram
adicionadas, pactos feitos e sanções previstas ao lado transgressor (LARONDELLE,
2005, p. 1) 11 . Posteriormente, a expressão é reintroduzida e desenvolvida nos
relatos da aliança abraâmica (Gn 12, 15, 17), sinaítica (Êx 20-31) e davídica (1 Sm
7). No relato de Jeremias (31:31-34); Deus propõe uma nova aliança, diferente em
conteúdo em determinados aspectos mas sustentando elementos comuns à aliança
bíblica como indicado por LaRondelle (Idem, p. 2): prólogo histórico; estipulações e
promessas.
Diferente do que teólogos de cunho racionalista como Von Rad (1962)
apresentam em relação ao fluxo histórico da narrativa bíblica12, Kaiser (1991, p. 56)
indica a existência de uma teologia bíblica comum ao Antigo Testamento (AT).
Segundo o autor, quatro pontos principais de conexão sustem esta teologia:
1. “Benção” pré-patriarcal e a “promessa patriarcal”;
2. “Promessa” patriarcal e “Lei” Mosaica
3. “Deuteronomismo”13 pré-monárquico e a promessa “davídica”
4. “Teologia sapiencial da criação” e a “promessa” profética
Estas temáticas conectoras conduzem o fluxo do relato bíblico, produzindo
continuidade e sentido. O contexto da aliança bíblica produz o pano de fundo onde
estes elementos interagem e produzem continuidade.
O relato bíblico apresenta Deus como Yahweh (ָ֥‫)היְהו‬, “o Deus fiel, que guarda
a aliança” (Dt 7:9; Ne 1:5, ACF) (‫ )םהָֽאֱלֹהִ֑י הָאֵל הַבְּרִ֣ית הַֽנֶּאֱמָ֔ן שֹׁמֵ֧ר תהַבְּרִ֣י‬com seu povo.
A aliança proposta por Deus incluiu um mediador, ou eleito, por meio do qual a
aliança é estendida a outros (Gn 12:1-3). Este processo, descrito como mecânica da
eleição, torna o eleito mediador da aliança entre Deus e o povo.
Justamente em harmonia com este aspecto, o livro de Hebreus aponta Jesus
como o mediador da nova aliança (Hb 12:24; Hb 8; Hb 9); aquele que intercede
como “um advogado para com o Pai” (1 Jo 2:1, ACF); que morreu pelos pecados de

11
LaRondelle indica a grande semelhança entre tratados hititas do Antigo Oriente Próximo e a forma
da aliança bíblica. Cf. LaRondelle, H. K. Our Creator Reedemer. MI: 2011, Andrews University Press,
P. XX.
12
Em grande medida, a teologia neo ortodoxa postula a impossibilidade do relato bíblico ser acurado
e, em alguns casos, real. Gerhard Von Rad, a exemplo, indica que a coleção de narrativas bíblicas
constituem primordialmente relatos da simples tradição religiosa, sendo portanto, impossível de se
estabelecer uma teologia confiável e singular do AT; para Von Rad, portanto, a narrativa do AT não
constitui necessariamente uma revelação de atos reais de Deus na história (Cf. Von Rad, G. Old
Testament Theology. UK: Harper e Row Publishers, 1965).
13
Neste sentido, repetição das Leis (Torah).
toda a humanidade para que todo aquele que o aceitar seja salvo (Jo 3:16). Em
Daniel 9:25-27 é descrito o sacrifício do Messias, referindo-se ao Messias como
aquele que “faria firme aliança com muitos” (‫( )רוְהִגְבִּ֥י תבְּרִ֛י‬v. 27). Jesus, no momento
prévio à sua crucifixão, durante a ceia junto aos discípulos, anunciou que pelo seu
sangue (representado pelo vinho) ratificaria a nova aliança, em favor de “muitos” (Mt
26:28); uma forte alusão ao relato de Daniel 9:27. Em 2 Coríntios 5: 18, Paulo
refere-se a Jesus como aquele que tem reconciliado o mundo com Deus, por meio
de seu sacrifício; o mediador da nova aliança. O próprio Jesus afirmou sua
messianidade nos Evangelhos (Jo 3; 10:1-21; Mt 16: 17-21; Mc 8:29-31).
No livro de Apocalipse (c. 21-22), finalmente, o povo de Deus toma posse da
terra prometida na aliança bíblica; unicamente através do descendente (Messias)
por meio seu sacrifício expiatório (Ap 12: 11). Neste sentido, a nova aliança
permanece como eixo central das Escrituras, centralizada em Jesus, o mediador da
nova aliança, e segue apontando para o cumprimento escatológico das promessas
feitas por Deus na aliança abraâmica (Ap 1:6; 7; 21-22).
A despeito da universalidade da nova aliança14, diversas acordos de caráter
local ou pontual são igualmente registradas no AT: Jacó e Deus (Gn 28:20); Jacó e
Labão (Gn 29:18); Jabes e Naás (1 Sa 11:1) e outras, da mesma forma como estão
registradas variadas promessas de Deus feitas à indivíduos ou grupos (Gn 4: 15; At
1:8).

3 Descendência de Ismael e a aliança bíblica

Após conceber Ismael, Agar foge para o deserto devido ao clima conflituoso
instalado no acampamento de Abraão, provavelmente devido à ciúmes (Gn 16: 6).
Em Genesis 16: 10 o Anjo do Senhor (ָ֛‫ )מַלְאַ֧ךְ היְהו‬a encontra próxima “a uma
fonte de água no deserto, junto a fonte no caminho de Sur15” e lhe indica retornar à
presença de Sara. Em seguida, o Anjo informa que sua descendência seria
sobremodo multiplicada, “de maneira que, por numerosa, não será contada” (Gn
16:10). Caracteres sobre Ismael são acrescentados: viveria fronteiro a seus irmãos,

14
Em termos da abrangência para aos que a aceitam. Conceitos como a salvação universal e
predestinação calvinista não possuem espaço na teologia da aliança bíblica.
15
Provavelmente sentido Egito (Cf. Cambridge Bible Comentary)
seria homem de guerra e solitário; como indica Firestone (2002, p. 536)
características semelhantes aos povos do deserto Arábico.
Após o evento, Deus revela-se novamente à Abraão, reafirmando sua aliança
e as promessas (Gn 17). Abraão infere que Ismael seria o descendente (ָ֧‫)זַרְעֲך‬
prometido em sua aliança com Deus (Gn 17:15-22) e profere a exclamação em
forma de desejo de que Ismael viva diante de Deus. Todavia, Deus indica que o
descendente viria de Abraão e Sara e não de Abraão e Agar. Não obstante, Deus
revela que Ismael não seria esquecido; sua descendência seria multiplicada
“grandissimamente”, “doze príncipes” procederiam dele e posteriormente se
tornariam uma grande nação (Gn 17:20). No verso seguinte (v. 21), Deus esclarece
que seu pacto (ְּ‫ )בְּרִיתִ֖י‬seria estabelecido com Isaque, o descendente (ָ֧‫ )זַרְעֲך‬que
adviria de Sara e não com Ismael.
Elementos importantes são descritos. Deus indica à Abraão que ouviu
(ָ֒‫ )שְׁמַעְתִּיך‬seu clamor quanto à Ismael (֮‫)יִשְׁמָעֵאל‬. O relato em hebraico produz
assonância – típica em poesias (cf. MICKELSEN, 1991, p. 330) – entre as palavras
Ismael e ouvi. São indicados na promessa (1) a multiplicação da descendência de
Ismael e (2) a posse de terra fronteira a seus irmãos (Gn 16: 10). Ambos elementos,
em semelhança, constituíam promessas da aliança abraâmica. Em seguida, é
instituída a circuncisão e o próprio Ismael é circuncidado. Considerando o caráter
misericordioso e benigno de Deus, a lembrança de Ismael parece ter sido motivada
pela consideração de Deus pelo patriarca em sua eleição e por seu caráter e não
por uma nova eleição em Ismael.
O relato de 1 Crônicas 1:28-31 constitui, portanto, um registro de que as
promessas de Deus se cumprem perfeitamente, mesmo em personagens
coadjuvantes da historia bíblica.
Desta forma, os doze filhos de Ismael – previstos por Deus – são citados
posteriormente na Biblia, sendo geralmente identificados como arábios, nômades,
mercadores ou representantes de regiões do Oriente Médio (Is 60:7; Sl 120:5; Ct
1:5; Is 21: 16; Is 21:11; 1 Cr 5:18-21; 2 Cr 16:2).
Embora Crônicas e outros livros não provejam demais detalhes sobre a
descendência de Ismael; em nenhuma ocasião a mecânica da eleição é aplicada à
Ismael ou a aliança é centralizada nele ou em algum de seus descendentes. Pelo
contrario, Ismael é enviado ao deserto arábico para que os planos da eleição em
Isaque fossem plenamente cumpridos (Gn 21).
A descendência de Ismael e o Islam

Firestone (2002, p. 536) em seu comentário sobre Ismael na Enciclopédia do


Alcorão argumenta que parte da tradição Islâmica costuma referenciar Ismael como
o pai do povo árabe e, conseqüentemente, dos primeiros muçulmanos.
O próprio Alcorão apresenta diversas referencias à Ismael como profeta, fiel e
mesmo rei (2:125, 127, 133, 136, 140; 3:84; 4:163; 6:86; 14:39; 19:54; 21:85; 38:48).
A tradição Islâmica divide-se quanto a uma possível genealogia Ismaelita acurada
para os árabes ou muçulmanos. Como Chapman (1989, p. 50-57) postula, é pouco
provável que Mohamed tenha organizado corretamente sua pesquisa genealógica
ao inserir-se como descendente direto da família Ismaelita. Teólogos islâmicos
dividem-se entre afirmar a possibilidade de descendência ou negá-la. Entretanto,
grande parte da tradição popular islâmica afirma sua identidade com Ismael
(McCurry, 1999, p. 14).
A despeito das impossibilidades instrumentais em avaliar um grau de
parentesco real, alguns elementos parecem sugerir uma possível correlação entre o
povo árabe-islâmico e as características da descendência de Ismael segundo a
promessa em Genesis 16:12; 17:20: (1) a descendência de Ismael seria multiplicada
grandemente (Gn 16:10) // a população islâmica no oriente médio ultrapassa 1,2
bilhões de habitantes; (2) Ismael é descrito como homem de guerra (Gn 16:12) //
árabes e muçulmanos foram conhecidos na historia e continuam sendo como um
povo belicoso; (3) Ismael teria sua mão contra todos e a de todos contra ele (Gn
16:12) // diversas guerrilhas nacionalistas e guerras de países ocidentais contra
países islâmicos tem sido registrados na historia; (4) viveria diante da face (ֵ֥‫ )יפְּנ‬de
todos seus irmãos (Gn 16:12) // islâmicos conviveram fronteiros na palestina com
diversos povos; alguns em grupos nômades. Ao que parece, existem maiores
evidencias para uma identidade cultural, de tradições e religiosa (espiritual)
assumida pelo próprio povo islâmico do que graus de parentesco; embora existam
registros de fluxos migratórios semíticos naquela região (HAMMER; REDD et al.,
2000, 6770).
Seja esta uma relação real ou apenas aparente, a Tafsir16 costuma incluir
Ismael em diversas histórias tradicionais, muitas paralelas ao relato bíblico
(ROMAIN, 2014, p. 35).
Heschel (2011, p. 147, grifos acrescentados)17 cita a declaração de um líder
islâmico durante movimentos reacionários entre árabes e judeus em Jerusalém, em
1921, em resposta ao acordo de paz proposto pelo Rabi Ben Zion Uziel:

“Nossos queridos primos! Nosso pai, Abraão, pai de Isaque e de Ismael,


quando viu que seu sobrinho Ló estava causando-lhe problemas, dizendo
que não havia mais espaço para os rebanhos dos dois conviverem juntos,
disse a ele: ‘Não permitamos que existam contendas entre nós, e entre seus
pastores e meus pastores, pois somos como irmãos.’ Nos também dizemos
a vocês, esta terra pode sustentar todos nós e prover para todos nós em
plenitude. Vamos então parar de lutar um contra o outro, pois nós também,
somos como irmãos”

A citação constitui um dos exemplos do apego identitário à Ismael por parte


da comunidade muçulmana. Mais do que um ramo fixo de parentesco, a correlação
entre a descendência de Ismael e o Islam remonta o ensejo de Mohamed e de seu
movimento em incluir-se, de alguma forma (ainda que indevida e ineficaz) na
descendência do eleito, Abraão. “Diferente dos judeus e cristãos, os muçulmanos
traçam sua identidade com Abraão por Agar e Ismael e não por Sara e Isaque”
(McCURRY, 1999, p. 20).
Como indica Firestone (2011, p. 404), a mecânica da eleição no Alcorão
difere grandemente da mecânica da eleição bíblica e da Torah. Enquanto
biblicamente Deus escolhe seu eleito e, por meio dele, a aliança é ampliada aos que
a aceitarem; o conceito corânico alude simplesmente a uma vida em obediência
estrita aos ensinamentos islâmicos, como forma de eleição. Como aponta o autor,
sete palavras distintas são utilizadas ao longo do Alcorão, o que dificulta um
significado preciso e definitivo de eleição; em grande medida divergente do padrão
bíblico (p. 398).

16
Comentário teológico islâmico, conhecido como a exegese corânica.
17
Tradução provida pelo autor.
Considerações Finais

Como observado no artigo, a descendência de Ismael em 1 Crônicas 1: 28-30


é descrita apenas sucintamente. O ponto focal está no relato posterior
(descendência de Isaque), importante para o pano de fundo dos atos de Deus e do
povo de seu povo em relação à aliança e à mecânica da eleição, ao Messias
nascido sob a genealogia de Abraão, Isaque e Jacó. Portanto, o relato de Ismael em
1 Crônicas atua perifericamente, balizando a narrativa rumo a seu clímax. Não
obstante, Deus prometeu a Agar e a Abraão multiplicar a descendência de Ismael. E
assim o fez, como atesta a própria descrição de 1 Crônicas e as referencias
intertextuais sobre as nações sob o nome dos filhos de Ismael (Nebaiote [Is 60:7];
Quedar [Is 42: 11, 21:6]; Hadad [1 Reis 11:14]).
Por conseguinte, a aliança abraâmica em Gênesis 12:1-3; expandida em
Gênesis 15 e 17 centraliza-se na (1) promessa da terra e (2) no descendente;
tipologicamente Isaque e escatologicamente o Messias, Jesus; referido por Paulo
como Mediador da Nova Aliança. No relato messiânico de Isaias 42, citado
parcialmente por Jesus quanto a seu próprio ministério, há o conselho para que
“alcem a voz o deserto [moradores de Quedar] e as suas cidades, com as aldeias
que Quedar habita” (Is 42: 11a); em alusão à obra do Messias em recolher estes
povos se aceitarem a aliança através de Jesus. Em relato semelhante (Is 60:7)
Isaias profetiza acerca dos rebanhos de Quedar e dos carneiros de Nebaiote
(descendência de Ismael) que se ajuntarão à Sião, cidade do Rei. Esta passagem
aponta para uma aplicação escatológica em que os descendentes de Ismael que
aceitarem a nova aliança através de Jesus participarão das promessas inclusas e da
benção do Senhor. Neste tempo, as ovelhas “de outros apriscos” como Quedar e
Nebaiote e os remanescentes da descendência de Ismael que aceitarem a nova
aliança, seguirão um só Pastor e Mestre: Jesus o Messias, denotando, assim ser
esta a única relação possível entre a descendência de Ismael e a aliança bíblica.
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