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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES
DISCIPLINA: TÓPICOS ESPECIAIS EM HISTÓRIA SOCIAL
DOCENTE: ANTÔNIO JOSÉ DE OLIVEIRA
DISCENTE: JOSÉ GERALDO FAUSTINO DE OLIVEIRA

NOTA DE LEITURA
SOUZA, Patrícia Rodrigues de. “Da Cultura Material à Religião Material”: In: Religião
Material: O Estudo das Religiões a partir da Cultura Material (Tese-PPCR-PUC) São
Paulo, 2019. 105-122.

Patrícia Rodrigues de Souza, Doutora e Mestre em Ciência da Religião pela PUC


SP. Pesquisadora em Religião Material. Especialista em estudos da relação entre religião
e alimentação. Encontra-se atualmente em pós-doutoramento na mesma instituição,
ministrando aulas Religião Material com os subtemas: Religião e objetos, religião e
corpo, objetos religiosos em museus.
Capítulo 03 – Da Cultura Material à Religião Material
“O capítulo começa apresentando um breve histórico desta recente abordagem – a
Religião Material – como esta foi se constituindo a partir das teorias de Cultura Material
e depois como estudiosos de religião foram adequando tais teorias a este campo
específico, chegando à ideia do que acabou sendo mencionado como “religião vivida”,
em oposição a uma religião idealizada, baseada, majoritariamente, numa doutrina formal,
preferencialmente escrita”. (p. 105)
“O capítulo é então concluído com uma argumentação sobre a posição do pesquisador em
Religião Material. Considerando-se que neste tipo de abordagem práticas específicas e
objetos, bem como o conhecimento sobre estes e a percepção sensorial são aspectos
fundamentais, pois afetam o pesquisador em relação ao objeto, é necessário deixar claras
as vantagens, em termos de domínio de uma certa técnica, ou as limitações do pesquisador
a esse respeito, a fim de que se tenha uma dimensão mais precisa sobre como e o quanto
tal técnica, prática ou objeto afeta modos de compreensão e de ser entre os sujeitos de
determinada religião”. (p. 105)
3.1. Cultura Material e o estudo da religião
“Nos últimos anos, mais precisamente a partir da década de 80, abordagens materiais, que
consideram o corpo e os objetos em oposição ao foco exclusivo em fontes textuais, têm
ganhado notoriedade nas ciências humanas e, consequentemente no estudo de religiões.
Segundo seus autores, isso significa considerar o que se chamaria de “o mundo real” das
religiões – a religião vivida, em contraste à religião idealizada”. (p. 106)
“A sistematização deste campo de estudos proposta por Bräunlein foi motivada pelos
trabalhos pioneiros nesta abordagem, tais como, Material Christianity, 1995, de Colleen
McDanell, no qual, através de pesquisa histórica entre protestantes e católicos, McDannel
analisa a relação entre religião e consumo de massa. Ela cita exemplos das práticas
religiosas do século XIX até hoje, tais como: Bíblias sofisticadamente elaboradas entre
os protestantes, vitorianos enterrando seus mortos em jardins esteticamente super
cuidados, católicos valorizando a água de Lourdes, mórmons utilizando roupas de baixo
com significado especial para lembrar-lhes de suas promessas religiosas, católicos
discutindo designs de igrejas mais atraentes, etc”. (p. 106)
“Desde a fundação desta publicação, o número de autores e obras no campo vem
aumentando e, especializações dentro da área começaram a surgir – estudos sobre
sentidos, emoções, estética, espacialização, incorporação e objetos – todos voltados ao
campo religioso. Entretanto, uma vez que este campo de estudo ainda não é amplamente
difundido no mundo, a influência do cristianismo deve ser levada em conta, pois, rituais,
estátuas e outros recursos materiais antes, próprios do catolicismo, foram classificadas
como idolatria pelo antimaterialismo e idealismo protestantes e foi sob essa ideologia
antimaterialista que nasceram os primeiros estudos de religião”. (p. 107)
“As questões ecológicas nos afetam materialmente, em termos de recursos, conforto,
saúde, além de gerar uma certa insegurança “apocalíptica”; enquanto o mundo digital
encurta distâncias, muda nossa relação com o tempo e possibilita outras experiências,
confundindo realidades e provocando crises existenciais. Neste sentido, a Religião
Material, por considerar fontes alternativas à escrita, apresenta-se com muitos pontos em
comum às propostas de decolonização, demonstrando que “diferenças [entre culturas ou
religiões] não podem mais ser explicadas por representação ou significado, mas sim
através de diferentes realidades”. (p. 108)
“Em sua argumentação sobre a Religião Material, Bräunlein vai demonstrando como a
abordagem materialista das religiões tem a possibilidade de desmontar estas estruturas e
embaralhar estas oposições, visto que propõe, de uma maneira geral uma flexibilização
das fronteiras entre humanos, coisas, animais e divindades”. (p. 109)
3.1.1. Religião para além da crença
“Este exemplo, hipotético, mas plausível, mostra pelas ações desta e de outras pessoas,
um, entre vários tipos de religiosidade contemporânea, encontrados nas grandes cidades,
convenientemente apelidado por alguns acadêmicos “religião à la carte” – onde o fiel
escolhe suas preferências religiosas”. (p. 110)
“Sua concepção pressupõe que religiões vão além do acreditar – processo mental e
abstrato, que em vez disso, são vividas no dia-a-dia no e através do corpo, nos mais
diversos lugares, além dos templos. Ele não falará em agência humana ou dos objetos,
nem do habitus ou dos sentidos, mas buscou os principais filósofos que colocaram o corpo
e seus processos como ativos na existência”. (p. 111)
“O livro de Vásquez oferece um sólido alicerce teórico para se estudar religiões sob a
perspectiva materialista, entretanto, nesta obra, a materialidade é tratada no sentido
filosófico, funcionando mais como uma espécie de estrutura de pensamento para
acomodar religião e Cultura Material do que como uma perspectiva metodológica. Não
por acaso, este livro não é regularmente citado em autores “clássicos” da Cultura
Material”. (p. 113)
3.1.2. Religião, Cultura Material e Arqueologia
“Na formação de um contexto para o estudo material das religiões, a arqueologia teve
papel fundamental por conectar objetos a práticas religiosas, trazendo até o presente,
mundos sensoriais e mundos de crença de outras épocas. Em seu livro Religion, Material
Culture and Archaeology, 2013, único em abordar tão detalhadamente a relação entre
estes três campos, o autor australiano Julian Droogan, defende que há uma ligação, se não
uma interdependência, entre religião, cultura material e arqueologia”. (p.113)
“Todavia, os aspectos materiais quando considerados por outras áreas de estudo, são
“examinados sob a rubrica de arte sacra ou arquitetura religiosa ou são tratados
perifericamente, em geral como elementos desconhecidos de estudos mais amplos de
sociologia ou antropologia, ou são considerados como parte dos rituais dentro das
ciências sociais”. (Ibid. 24) Arquitetura, dança, hábitos alimentares, entre outras
materialidades, são na melhor das hipóteses um complemento ou ilustração dos textos
sagrados. Por isso, encontra-se também no trabalho de Droogan uma crítica à uma
descomedida influência da filologia no estudo das religiões”. (p. 114)
“Assim, o referido autor dedica todo um capítulo a defender a importância do estudo da
religião no exercício da arqueologia, uma vez que sociedades históricas são grandemente
“ideologizadas”, estando a religião, entre as principais destas ideologias. Droogan
também ressalta a agência dos objetos, citando os trabalhos de Gell e Kopytoff, já
mencionados, mas os relaciona à religiosidade, dada a importância fundamental que a
religião tinha nas sociedades históricas”. (p. 115)
3.1.3. Religião é uma forma de nos relacionarmos com seres e coisas
“Comida, sexo e estranhos. Estas são algumas das perspectivas pelas quais o acadêmico
Graham Harvey acredita ser possível estudar religiões, pois, em sua concepção, religião
manifesta-se em todas as atividades da vida de uma pessoa, na maneira como ela faz o
que faz ou naquilo que ela não faz – seja no modo como limpa e organiza sua casa ou
quando deixa de comer certos alimentos”. (p. 116)
“Uma vez que “atos de consumo são permitidos ou restringidos pela religião, por estarem
entrançados no sistema de valores e nas tradições performativas” (Harvey 2015:32),
religiões estabelecem sistemas de classificação – o que é e o que não é comida, quando e
com quem comer. Em acordo com este pensamento, e logo, por conta desta classificação,
Claude Fischler, sociólogo que estuda hábitos alimentares, atribui um caráter religioso à
alimentação: “Taxonomias básicas incorporam o indivíduo ao grupo, situam todo o grupo
em relação ao universo, ao mesmo tempo que o incorporam a este universo”. (p. 117)
“A conexão entre comida e religião é uma das ideias chave sobre as quais Harvey
desenvolve o conceito de relacionalidade, permitindo, em sua ótica, definir religião como
comer, por exemplo, além de outras coisas cotidianas que acabam por ser, muitas vezes,
parâmetros religiosos”. (p. 118)
“Algum tempo depois de conhecer as ideias de Harvey, quando eu assistia a programas
sobre culinária, já que minha primeira formação foi gastronomia, e eis que, me deparo
com dois programas que pareciam ser exemplos da teoria de Harvey, abarcando tanto a
ideia de relacionalidade, quanto da materialidade, a partir da comida”. (p. 119)
“Neste documentário percebemos como irmã Noëlla materializa sua fé através da
fabricação dos queijos, para ela, a microbiologia é uma das formas de Deus se manifestar,
assim, seu “fazer queijos” é um ato profundamente religioso. Ela se constrói, enquanto
pessoa religiosa, através desta atividade que, em teorias onde há a dicotomia
sagrado/profano, seria considerada profana”. (p. 121)
“Conforme vai cozinhando e montando pratos, monja Kwan vai contando sua história,
onde a cozinha surge em tenra idade, antes da religião, e vai, ao mesmo tempo,
expressando seus valores religiosos, tão intimamente relacionados às suas práticas
culinárias”. (p. 121)
“É possível que o budismo contenha em sua própria filosofia um modo particular de
interpretar o fazer das coisas cotidianas, e que talvez, por isso, monja Kwan perceba este
fazer. Seja lá o que se faça, trata-se de uma atividade religiosa: “Quando você se torna
monge, o que importa não é aprender o budismo em maior profundidade. O importante é
viver com o budismo. Viver com ele, comer com ele. Rezar, trabalhar, cortar lenha,
arrancar pestes. Todas essas coisas viram um estudo. Talvez isso seja o budismo em si”.
(p. 122)
“As duas histórias ilustram exemplarmente as ideias de Harvey, evidenciando que, é, em
grande parte, na relação que ambas têm com suas atividades que sua religiosidade parece
emergir com mais intensidade. Além disso, esta relação delas com a comida e a cozinha
– que empregam ao mesmo tempo todos os sentidos, não apenas o paladar como se pensa,
reforçam a questão da aprendizagem pela materialidade, através da agência de seus
objetos, queijo e a microbiologia no caso da irmã Noëlla e o molho de soja e a cozinha
no caso da monja Kwan”. (p. 122)

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