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Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

Histórias das
Músicas no Brasil
Norte Fernando Lacerda
José Jarbas Pinheiro Ruas Junior
Editores

1
Histórias das
Músicas no Brasil
Norte
Fernando Lacerda
José Jarbas Pinheiro Ruas Junior
Editores

Vitória-ES
ANPPOM
2023
Projeto gráfico e diagramação
Carolina Noury
Sumário
Marina Sirito

Associação Nacional de Pesquisa e


Pós-Graduação em Música Capa
Bruno Constantino
Diretoria 2022-2023
Introdução................................................................................................. 6
Presidente: Luis Ricardo Silva Queiroz, UFPB
Revisão Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior
1ª Secretária: Joana Cunha de Holanda, UFRN
Nayana Ferraz (Revisão com S)

1
2º Secretário: Edilson Assunção Rocha, UFSJ
Tesoureiro: Vanildo Mousinho Marinho, UFPB Amazônias inaudíveis: vestígios
Editora: Mónica Vermes, UFES Créditos das imagens da capa de mundos sonoros antigos........................................................................ 28
- Georges Huebner. Álbum Vistas de Manaus – Líliam Cristina Barros Cohen
Conselho Fiscal Panorama de Manaus, com destaque para o Teatro
Eurides de Souza Santos, UFPB
Helena Lopes da Silva, UFMG
Fabio Soren Presgrave, UFRN
Adriana Lopes da Cunha Moreira, USP
Amazonas, c. 1900. Manaus, Amazonas / Acervo IMS.
- Apito zoomorfo tapajônico - Peixe. Vestígio material
recolhido ao Museu Paraense Emílio Goeldi. LabEtno /
UFPA, Imagem de Lohana Gomes.
2 Música na Amazônia durante
o século XVIII ............................................................................................ 50
Márcio Páscoa
Luciana Marta Del-Bem, UFRGS
João Bellard Freire, UFRJ

Editora de Publicações da ANPPOM


Organização da série
Mónica Vermes (ANPPOM/UFES)
Marcos Holler (UDESC)
3 Ópera na Amazônia entre
o Império e a Primeira Guerra..................................................................... 70
Márcio Páscoa
Mónica Vermes, UFES

4 A mulher na educação musical e na vida


artística em Belém do Pará, da Belle
Époque até a metade do século XX ........................................................... 102
Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

5 Música em Roraima: diversidade cultural na


fronteira norte ..........................................................................................
Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva
126

6 A viola de buriti: aspectos de uma


musicalidade dos sertões do Tocantins ...................................................... 160
Marcus Facchin Bonilla

Sobre os autores ................................................................................... 182

Sobre a série ....................................................................................... 188


Introdução

Fernando Lacerda Simões Duarte


Universidade do Estado do Amazonas

Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior


Universidade Federal do Norte do Tocantins

como citar
DUARTE, Fernando Lacerda Simões; RUAS JUNIOR, José
Jarbas Pinheiro. Introdução. In: DUARTE, Fernando Lacer-
da Simões; RUAS JUNIOR, José Jarbas Pinheiro (ed.). Nor-
te. Vitória: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra-
duação em Música, 2023. p. 6-27. (Histórias das Músicas
no Brasil).
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

O Brasil é uma invenção. Por invenção, não se deve tomar a noção de creatio ex nihilo, considerada, portanto, o termo inicial na colonização europeia da região. Já em 1616, o
mas, sim, de uma tentativa de organizar a imensa pluralidade e diversidade cultural capitão-mor português Francisco Caldeira Castelo Branco teria “fundado” Belém do Pará.
de um vasto território em um único todo coerente. Essa tentativa se vale de mitos de Um exemplo do contraste de temporalidades a se observar acerca dos mitos de funda-
fundação para justificar um autoritarismo latente, muitas vezes performado como cor- ção é que a cidade de Santarém, no Pará, foi “fundada” pelo padre jesuíta João Filipe
dialidade (CHAUÍ, 2000. HOLANDA, 1936). A invenção do Brasil, enquanto identidade Bettendorff, em 1661, embora a ocupação humana de seu território tenha sido contínua
coletiva, perpassa não só a existência de uma língua comum (seja o português, sejam as ao longo dos últimos mil anos.
antigas línguas gerais amazônica e paulista), mas também uma memória histórica co- A presença mais tardia de europeus limita também a possibilidade de localização
mum. Para tanto, a escrita de uma história capaz de coser as diferenças regionais em um de fontes escritas que permitam estudos históricos da música, embora, obviamente, a
único tecido nacional foi central. Assim, a criação de um Instituto Histórico e Geográfico tradição oral, as fontes organológicas e as pinturas rupestres sejam abundantes na re-
Brasileiro, cerca de uma década e meia após a proclamação da independência, não foi gião. Se as fontes de tradição musical escrita, contendo repertório de matriz europeia,
simples acaso, mas fruto de um projeto de construção identitária, pois, como apontou são mais tardias, também os cursos de pós-graduação, nos quais tais fontes poderiam
Joël Candau (2011), sintetizando o pensamento de diversos outros autores, a identidade ser estudadas, o são. Até o ano de 2023, sequer existiam programas de pós-graduação
coletiva é legitimada pela memória coletiva. específicos em música na região Norte. Como se verá detalhadamente mais adiante, à
Muitos são os desafios de um livro que aborda uma região específica do país; entre exceção dos programas de pós-graduação das universidades de Brasília e dos estados
eles, o da articulação entre o local e esse nacional inventado. Antes, contudo, de aden- de Minas Gerais e Goiás, o Brasil tinha uma espécie de corte vertical – semelhante ao
trar tal questão, é necessário ressaltar a historicidade da divisão Brasil em cinco regiões: do Tratado de Tordesilhas – que limitava a concentração dos programas em Música aos
longe de ser estável ao longo da história, ela data de pouco mais de meio século, uma estados costeiros do leste do país, numa faixa que se estendia do Rio Grande do Sul ao
vez que foi elaborada em 1970, mas já passou por revisões à época da promulgação da Rio Grande do Norte. Essa concentração se refletiu, como também será detalhado, na
Constituição Federal de 1988. É, portanto, uma divisão recente, que separa em diferen- distribuição dos eventos acadêmicos de âmbito nacional.
tes regiões territórios que antes integravam um único estado ou uma única província, ao Quanto aos acervos de documentos musicográficos que possam servir à produção
tempo do império. Se todas as regiões foram, de algum modo, afetadas por tal critério, de pesquisas históricas sobre a música, merece destaque a coleção empreendida por
isso é particularmente perceptível no Norte e no Centro-Oeste. Exemplos disso são o Vicente Salles, que hoje se encontra recolhida à Biblioteca do Museu da Universidade
Triângulo Mineiro, que deixou de integrar a antiga Goiás, passando para o Sudeste; e o Federal do Pará (UFPA). O que se observa em tal coleção, contudo, é a prevalência de
Tocantins, também desmembrado de Goiás, passando a integrar o Norte. fontes do século XX sobre as do anterior. Salles ainda adquiriu, em Portugal, um exem-
O antigo território Mairi, tal como era denominado pelos Tupinambá, ou o estado plar de um manual de cantochão dos frades mercedários para o convento do Grão-Pará
do Maranhão, na visão do colonizador, foi, entre os séculos XVII e XVIII, uma colônia impresso no século XVIII, cujo exemplar, hoje, se encontra no acervo familiar do pesqui-
lusitana autônoma do Estado do Brasil, cuja grande extensão abrangia não apenas o sador. O referido manual foi objeto de uma tese defendida recentemente (GABY, 2023).
atual território maranhense e grande parte da região Norte, mas também o atual esta- Para além do acervo de Salles, é possível citar como um arquivo relevante de musico-
do do Piauí. A anexação do Acre, por sua vez, só ocorreu na primeira década do século gráficos manuscritos da Polícia Militar do Pará, que, até poucos anos atrás, se encontra-
XX. Assim, muitas conexões históricas, culturais e do próprio bioma da Amazônia não va em posse do maestro José Maria Vale, na cidade paraense de Vigia de Nazaré, com
coincidem com os limites atuais da região Norte. Surgido na década de 1950, o conceito cópias do entresséculos. Outros acervos mencionados por Vicente Salles e detentores
de Amazônia Legal tenta contemplar características naturais e até mesmo culturais dos – ao menos à época – de musicográficos relevantes são a Biblioteca da Basílica Santuá-
estados que abrange. Integram a Amazônia Legal os sete da região Norte, o Mato Grosso rio de Nossa Senhora de Nazaré e os arquivos das bandas do Corpo de Bombeiros e da
e parte do Maranhão. Escola Lauro Sodré, todos em Belém. Embora já existam trabalhos acadêmicos pontuais,
Para além de aspectos territoriais, há de se pensar a região Norte a partir da tem- sobretudo em nível de mestrado, acerca da atividade musical em bandas de música na
poralidade: se, por um lado, a presença dos povos originários data de dezenas de milha- região Norte – além do livro Sociedades de Euterpe, do próprio Salles (1985) –, a aborda-
res de anos, por outro, a dominação europeia na região é mais recente que em outras gem histórica de tais agremiações no Norte e seu repertório ainda constituem um vasto
partes do Brasil: embora a presença de holandeses na Amazônia brasileira tenha sido campo a ser explorado pelos pesquisadores. Prova disso é que, em uma extensa base de
observada antes da dos franceses, ela não tinha como objetivo a colonização, mas tão dados elaborada pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE, [201-]), elaborada a partir
somente a exploração de recursos naturais. A chegada dos franceses, em 1612, pode ser dos dados recebidos de seus projetos de doação de instrumentos, foram contabilizadas

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Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

225 bandas na região Norte, assim distribuídas: seis no Acre; 28 no Amazonas; cinco origem espanhola, que chegaram ao Maranhão via navegação fluvial, vindos de Quito,
no Amapá; 117 no Pará; 32 em Rondônia; quatro em Roraima; e 33 no Tocantins. Do perfazendo, portanto, o caminho inverso ao dos demais religiosos, que adentravam a
universo das bandas, emergiram figuras como a de Nazaré Satiro de Melo, compositora Amazônia de leste para oeste; além da ausência dos monges beneditinos.
negra cametaense com grande quantidade de obras de distintos gêneros – do sacro ao Dentre os vestígios de atividade musical deixados por tais ordens e congregações,
Carnaval (LARÊDO, 2003) –, cuja quantidade de títulos é de difícil precisão, em razão das é possível citar a caixa do pequeno órgão do século XVIII que se encontra na Igreja do
limitadas informações acerca de obras da compositora nos arquivos das bandas. Um Carmo, em Belém, possivelmente adquirido pelo frade carmelita José das Chagas (SAN-
conjunto de partes instrumentais de um único músico, seu sobrinho, oferece, contudo, TIN, 2012). Como se verá ao longo do livro, o capítulo de Márcio Páscoa sobre a música
um vislumbre de sua vasta produção. na Amazônia no século XVIII ajuda a lançar luzes sobre novas fontes e possíveis cami-
Para a compreensão da música indígena, transmitida oralmente, registre-se a re- nhos de pesquisa. Outras possíveis evidências de atividades musicais foram descritas
levância da Coleção Linguística do Museu Paraense Emílio Goeldi, com gravações de pelo padre Carlos Borromeu, da Congregação do Preciosíssimo Sangue, em artigo para
cantos de diversas etnias. Ainda nesse sentido, é possível citar os registros audiovisuais a revista Música Sacra: o antigo madeiramento de uma capela na Vila do Conde, em Bar-
e em documentação escrita presentes no Centro de Documentação Indígena (CDI), dos carena-PA, cujos entalhes em baixo-relevo serviriam ao ensino de música escrita para
Missionários da Consolata, em Boa Vista, e no Museu Magüta, em Benjamin Constant-AM. os indígenas e a sobrevivência de tubos de órgãos na região do Rio Moju, também no
Embora a região Norte tenha uma das cinco dioceses mais antigas e influentes Pará (BORROMEU, 1951). Contudo, o religioso, que também se dedicou, tal como Vicente
do país – o bispado do Grão-Pará foi erigido em 1719 e seus estatutos foram modelo Salles, à produção de alguma historiografia da música na Amazônia – chegando a ser
para outros –, uma recente investigação no acervo da Sé belenense, sob coordenação referido por Salles (1980) entre suas fontes –, não expôs com clareza se chegou a ver
de Tainá Façanha, não revelou quantidade expressiva de documentos musicográficos tais vestígios ou se apenas recebeu as informações de outros autores. Com relação aos
do século XIX – à exceção de um antifonário. Assim, o acervo da Sé limita-se àquele de documentos musicográficos, fato é que, à exceção do manual mercedário adquirido por
uso corrente em sua Schola Cantorum, com cópias do século XX (SOUSA; DUARTE; GABY, Salles (RITUALE, 1780), restam muito mais silêncios que memórias. Isso certamente se
2020. SOUSA, DUARTE, FAÇANHA, 2022). Datação semelhante observa-se nas fontes explica, em parte, pela expulsão dos jesuítas e mercedários, mas também pela proibição
referentes às práticas musicais da Catedral de Manaus, cujo bispado foi instituído em aos noviciados no centro do século XIX. Há de se notar, ainda, que, mesmo em relação
1892 (DUARTE, 2018). à presença de religiosos de novas congregações e ordens na região – salesianos, bar-
Ao se pensar na antiga colônia portuguesa do Grão-Pará e Maranhão, o bispado do nabitas, verbitas, franciscanos alemães, servitas, capuchinhos, entre outros –, imigradas
Maranhão, erigido canonicamente em 1677, ainda legou ao presente mais vestígios de posteriormente à proclamação da República, num período conhecido como Romaniza-
sua atividade musical. Em razão da separação entre o Brasil e o Maranhão e Grão-Pará ção católica, muito pouca documentação musicográfica foi preservada. Exceções foram
(e vice-versa, tempos depois), o bispado maranhense é considerado, segundo Zeny Ro- notadas em itens pontuais presentes na biblioteca da extinta prelazia de São Paulo de
sendahl (2018), Bispado Primaz Secundário, uma vez que não era sufragâneo da Bahia, Olivença, no Amazonas, no arquivo pessoal de frei Fulgêncio Monacelli, então residente
mas diretamente de Lisboa. Já no Maranhão, foi preservado algum repertório emprega- em Manaus, e no arquivo de seus confrades, da Ordem dos Frades Menores Capuchi-
do localmente na primeira metade do século XIX, tanto por meio de cópias de tradição nhos, em São Luís-MA, que recolhe a documentação da Custódia, que abrange o Pará, o
e das transcrições de memória de Pedro Gromwell dos Reis, encomendadas pelo padre Amapá, o Maranhão e Cuba. Há, ainda, notícias de um acervo na Igreja de Nossa Senhora
João Mohana, quanto pelo livro de Paixões para a Semana Santa, de Vicente Ferrer de Aparecida, vinculada à atuação dos missionários redentoristas, em Manaus, bem como
Lyra ([ca.1796-1857]), compositor lusitano, que havia sido tenor na Sé de Lisboa e assu- um expressivo acervo do Coral Santa Cecília, da Catedral de Óbidos, no Pará, funda-
mira, a partir de 1826, a função de mestre de capela e organista da Sé do Maranhão, do pelos frades menores (franciscanos) atuantes na região dos rios Tapajós e Trombe-
cujo exemplar se encontra, hoje, na Bahia. As referidas transcrições de memória de tas (DUARTE, 2020). Em relação às ordens e congregações femininas, além da recolha
Pedro Gromwell também foram de obras de Ferrer de Lyra. de manuscritos da madre Júlia Cordeiro, religiosa filha de Santa Doroteia, por Vicente
Para além das estruturas eclesiásticas próprias dos bispados, a expansão do ca- Salles, a presença das Filhas de Santana também se fez notar no Hospital Dom Luiz I,
tolicismo na Amazônia foi e permanece marcada pela atividade missionária de ordens da Benemérita Sociedade Portuguesa Beneficente do Pará (DUARTE; CUNHA, 2018). Há,
e congregações religiosas. Tal presença teve particularidades na região, se comparadas ainda, vestígios de práticas musicais no colégio das doroteias, que hoje se encontram
a em outras partes do país: a atuação de capuchinhos da Bretanha, que missionaram recolhidos à Universidade Federal do Amazonas (DUARTE, 2021). Por isso, ainda hoje é
entre os Cariri; a já referida atuação dos religiosos de Nossa Senhora das Mercês, de possível falar em uma acentuada demanda pela ampliação das pesquisas documentais

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Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

in loco nas instituições religiosas de ordens e congregações femininas da região Norte, cro ligado a práticas musicais do passado na Amazônia, com sua difusão por meio da
como, aliás, em grande parte do Brasil. Or-questra de Câmara do Laboratório. Nos anos de 2021 e 2022, o DoMus/UFPA
Com relação à música praticada nos teatros, nos séculos XVIII a XX, as fontes musi- promoveu, ainda, o Encontro Brasileiro de Documentação Musical e Musicologias, evento
cográficas restantes concentram-se, sobretudo, fora da região Norte, havendo exceções, que veio a se somar a outros que já vinham sendo realizados, sobretudo na última
tais como um manuscrito de ópera de José da Gama Malcher (1814-1882), na musicote- década, na região.
ca do Conservatório Carlos Gomes, e uma quantidade expressiva de manuscritos musi- Cabe destacar a promoção de outros dois eventos consolidados no calendário
cais de Ettore Bosio (1862-1936), recolhidos ao Acervo Vicente Salles, na Biblioteca do da região Norte para efeitos de comunicação de pesquisas musicais. Um deles é de
Museu da UFPA, hoje, em processo de digitalização e edição musical, graças a uma par- âmbito itinerante, abrangendo o território da Amazônia Legal; o segundo, com sede
ceria com o Instituto Música Brasilis. Ambas as instituições estão localizadas em Belém. fixa. O primeiro evento em destaque é o Simpósio Internacional de Música na Amazônia
Em que pese a pequena quantidade de fontes documentais musicográficas mais (SIMA), cuja escala está em perspectiva regional considerando os limites da
antigas, a música na Amazônia é plural e extremamente rica. Igualmente, a diversi- Amazônia Legal. Sua primeira edição foi realizada no ano de 2010 na Universidade
dade nas práticas musicais, especialmente popular e tradicional (FAÇANHA; DUARTE, Federal do Acre (UFAC). Em sequência, receberam o evento o Instituto Federal do
[2024?]), e as peculiaridades regionais devem ser observadas: a presença de um reper- Acre (2013), a Universidade Federal do Amazonas e a Universidade do Estado do
tório próprio na realização da festa do Divino Espírito Santo, em barcos, entre Guaja- Amazonas (2014), a Universidade Federal de Rondônia (2015), a Universidade Federal
rá-Mirim, no Vale do Guaporé, em Rondônia, e Guayaramerín, na Bolívia (SILVA, 2014); do Pará (2016), a Universidade Estadual do Amapá (2017), o Instituto Federal do Acre
a música de miração, no contexto do Santo Daime, que se desenvolveu especialmente e Universidade Federal do Acre (2019) e a Universidade Federal de Roraima (2021). A
no Acre (REHEN, 2016. FERREIRA, 2019); a guitarrada e o beiradão, no Pará e Amazonas, edição de 2023 foi realizada na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
respectivamente; o lundu marajoara; o marabaixo, no Amapá; o carimbó paraense; a Observando-se a trajetória do evento, figura como objetivo principal do SIMA
música indígena em toda a região; a música para pastorinhas, transmitida tanto pela promover a integração da pesquisa em música na região amazônica a partir de uma
via da oralidade, quanto a da escrita, semelhantemente àquela praticada no Pássaro rede de pesquisadores que têm por objeto de estudo os fazeres e saberes musicais da
Junino – expressão artística de teatro musicado própria de Belém. Além destas, há as região amazônica.
particularidades no campo da música religiosa: se a cidade de Belém produz a maior Com realização conjugada em suas últimas edições, outros eventos a se
procissão católica do mundo, também foi nela que se institucionalizou a Assembleia enfatizar são a Jornada de Etnomusicologia da Universidade Federal do Pará e o
de Deus, a maior denominação religiosa dentro do espectro evangélico atualmente no Colóquio Amazônico de Etnomusicologia da Universidade do Estado do Pará. Esses
Brasil. É possível citar, ainda, uma tentativa de implantação do deísmo em Macapá, em encontros têm mobilizado uma rede de pesquisas que se encontram articuladas pela
1907, tal como sugere um Catechismo Deista, recolhido por Vicente Salles, que continha ação do Laboratório de Etnomusicologia da UFPA (Labetno). Desse modo, conectam-se
um Hymno a Deus (DUARTE, 2017), de Octávio Meneleu Campos (1872-1927). ao Labetno o Grupo de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia (GPMIA) e o Grupo
A imensa diversidade musical tradicional e popular na região ajuda também a de Estudos sobre Música no Pará (GEMPA), ambos da UFPA, e o Grupo de Estudos
compreender a primazia dos estudos etnomusicológicos sobre os históricos, na região Musicais da Amazônia (GEMAM), da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Para além
Norte, estes últimos com relevantes exceções tais como os trabalhos de Vicente Salles e de fomentar as pesquisas em mú-sica realizadas no âmbito da graduação e pós-
de Márcio Páscoa. Note-se, ainda, que a etnomusicóloga Líliam Barros também produziu graduação, os eventos têm proporcionado um espaço para socialização das pesquisas
trabalhos de cariz histórico sobre musicistas, a música e as instituições musicais no Pará. de cunho etnomusicológico desenvolvidas a partir do Programa de Pós-graduação em
A criação do Laboratório de Documentação Musical da Universidade Federal do Artes (PPGARTES/UFPA), da Faculdade de Mú-sica da UFPA, da Escola de Música da
Pará (DoMus/UFPA), em 2021, foi um marco recente para o avanço das pesquisas de ver- UFPA (EMUFPA), da Escola de Aplicação da UFPA (EAUFPA) e da UEPA.
tente histórica na região. Em seus pouco mais de dois anos de existência, o laboratório Emergiram como temática nos últimos eventos realizados pela rede de pesquisa
esteve presente junto a diversos projetos de pesquisa, tais como as digitalizações do do Labetno:
a sustentabilidade regional por meio de manifestações culturais e mu-
acervo bibliográfico, documental, sonoro e hemerográfico da Sé de Belém; dos docu- sicais expressivas, a patrimonialização de bens culturais imateriais, a
mentos musicográficos do pianista e compositor Altino Pimenta, no Museu da Imagem e construção de identidades musicais, o desenvolvimento do turismo
do Som do Pará; do projeto Sarauparauara, da Escola de Música da UFPA; e o tratamento cultural, a valorização de saberes e fazeres tradicionais e de minorias,
do acervo da pianista Terezinha de Jesus Kozlovski; e a edição musical de repertório sa- entre outras, que tocam o desenvolvimento do Estado paraense e da
região Norte, especialmente nos âmbitos cultural, econômico e social
(LABETNO, [2023]).

12 13
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

Ampliando a escala dos eventos acadêmicos para o nível nacional, é importante UFMG – Universidade Federal de Minas
1990; 2001
Gerais – Belo Horizonte-MG
destacar a atividade da Associação de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM),
UNIRIO – Universidade Federal do Estado do
criada em 1988. Em mais de três décadas de atividade, a ANPPOM tem realizado seus Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ
1993; 1996
encontros anuais em diferentes instituições de ensino superior do país. Pioneira, no sen- USP – Universidade de São Paulo – São
1994
tido de congregar um quadro nacional amplo de pesquisadores cujo objeto de estudo é Paulo-SP
a produção musical e sua relação multidimensional com a sociedade a qual está inseri- UNICAMP – Universidade Estadual de
1998; 2017
Campinas – Campinas-SP
da, a associação figura entre os principais espaços para a socialização do conhecimento
SUDESTE UFRJ – Universidade Federal do Rio de
científico na área. A trajetória do evento em si revela a compreensão e a ampliação do 2005
Janeiro – Rio de Janeiro-RJ
quadro das subáreas, convergindo os membros da comunidade acadêmica musical do UNESP – Universidade Estadual Paulista
2007; 2014
país. “Júlio de Mesquita Filho” – São Paulo-SP
Naturalmente por concentrar o maior número de programas de pós-graduação, UFU – Universidade Federal de Uberlândia –
2011
Uberlândia-MG
a região Sudeste foi, até o momento, a que mais promoveu os encontros anuais da UFES – Universidade Federal do Espírito
2015
ANPPOM, contabilizando 13 eventos, em nove sedes diferentes. A região Nordeste, por Santo – Vitória-ES
sua vez, recebeu, nesse interstício, nove eventos, em três sedes; a região Sul organizou UEMG – Universidade do Estado de Minas
2016
Gerais – Belo Horizonte-MG
seis eventos em quatro sedes; e a região Centro-Oeste promoveu dois eventos, em duas
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande
sedes. do Sul – Porto Alegre-RS
1989; 1991; 2003
Até o ano de 2018, a região Norte nunca havia sediado um encontro da ANPPOM. UFPR – Universidade Federal do Paraná –
Os dois eventos da associação realizados, até o momento, no Norte do país, ocorreram 2009
Curitiba-PR
SUL
na cidade de Manaus, tendo por sede a Universidade Federal do Amazonas. A primeira UDESC – Universidade do Estado de Santa
2010
edição ocorreu em 2018, naquilo que se entendia ser o formato tradicional, ou seja, um Catarina – Florianópolis-SC
encontro no modo presencial; já a segunda, em 2020, foi realizada no formato on-line UFPEL – Universidade Federal de Pelotas –
2019
Pelotas-RS
em consequência da pandemia da covid-19. O quadro 1, a seguir, representa um extrato
da geografia da ANPPOM, considerando as regiões geopolíticas, as instituições-sede e o Quadro 1: Encontros da ANPPOM organizados por região, sede e ano de realização. Fonte: ANPPOM
ano de realização do encontro. ([2023]).

REGIÃO SEDE ANO Lançado um olhar em perspectiva escalar, a realização de eventos de produção
UFG – Universidade Federal de Goiás – acadêmica dedicados à música tem construído um ambiente incentivador e fomentador
1997
CENTRO-OESTE Goiânia-GO
para a reflexão e o debate acerca das especificidades da pesquisa em música nas uni-
UnB – Universidade de Brasília – Brasília-DF 2006
versidades da região amazônica. É importante destacar que, propositalmente ou não,
UFBA – Universidade Federal da Bahia –
Salvador-BA
1988; 1992; 1999; 2008 toda a articulação empenhada nos últimos anos pelas equipes organizadoras desses
UFPB – Universidade Federal da Paraíba –
eventos contribuiu para a construção de um ambiente favorável à criação dos novos
NORDESTE 1995; 2012; 2021 programas de pós-graduação em música na região Norte aprovados recentemente na
João Pessoa-PB
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2013; 2022
do Norte – Natal-RN Considerando a última avaliação quadrienal publicada pela CAPES, realizamos
NORTE
UFAM – Universidade Federal do Amazonas –
2018; 2020 uma breve consulta aplicando como filtro a busca por programas de pós-graduação
Manaus-AM
em música, artes e interdisciplinares que dialogam com a área de artes. Desse extrato,
destaca-se o seguinte resultado: trinta e dois programas de pós-graduação, sendo um

14 15
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

UFRJ – Universidade Federal Rio de


em Artes, Cultura e Linguagens, com mestrado e doutorado (M/D)1; onze em Artes, dos do Rio de Janeiro
1980/2014 ME/DO
Janeiro
RJ
quais, três de mestrado profissional (MP), quatro de mestrado acadêmico (M) e quatro UFRJ – Universidade Federal Rio de
2015 MP RJ
programas acadêmicos também com doutorado (M/D); além de vinte programas espe- do Rio de Janeiro Janeiro
UNIRIO – Universidade
cíficos em música. Rio de
Federal do Estado do Rio de 1993/1998 ME/DO RJ
Embora a aprovação dos quatro primeiros programas de pós-graduação em mú- Janeiro
Janeiro
sica na região Norte seja absolutamente recente – anunciadas entre junho e julho de UFMG – Universidade Federal
1999/2012 ME/DO
Belo
MG
2023 –, pesquisas sobre música vinham sendo desenvolvidas a partir de outros progra- de Minas Gerais Horizonte
UFSJ – Universidade Federal São João
mas, em especial, um na Universidade Federal de Manaus, o Programa de Pós-Graduação Sudeste de São João del-Rei
2019 ME
del-Rei
MG
Sociedade e Cultura na Amazônia; outro oferecido pela Universidade Federal do Pará, UFU – Universidade Federal
2015 ME Uberlândia MG
Programa de Pós-graduação em Artes; e o terceiro, na Universidade do Estado do Ama- de Uberlândia
USP – Universidade de São 1974/1980
zonas, o Programa de Pós-graduação em Letras e Artes. Ademais, não se deve perder Paulo (2007)2
ME/DO São Paulo SP
de vista a capacitação de recursos humanos da região – docentes estatutários(as) – em
UNESP – Universidade
nível de pós-graduação por meio de Dinter e Minter (acordos interinstitucionais para Estadual Paulista “Júlio de 2002/2008 ME/DO São Paulo SP
a oferta de vagas de doutorado e mestrado, respectivamente) junto a programas das Mesquita Filho”
regiões Sul, Sudeste e Nordeste, notadamente da Universidade de São Paulo e das fede- UNICAMP – Universidade
2001/200? ME/DO Campinas SP
rais do Rio Grande do Sul e da Bahia. Estadual de Campinas
O quadro 2 ajuda-nos a compreender a geografia da produção científica do conheci- UFG – Universidade Federal
2000-2016 ME Goiânia GO
de Goiás
mento em música a partir dos programas de pós-graduação da área de música no Brasil.
UnB – Universidade de
2004/2023 ME/DO Brasília DF
REGIÃO INSTITUIÇÃO FUNDAÇÃO CURSO CIDADE UF Brasília

UDESC – Universidade do Centro-Oeste


2006/2019 ME/DO Florianópolis SC
Estado de Santa Catarina
UFMT – Universidade Federal
UEM – Universidade Estadual 2023 ME Cuiabá MT
? ME Maringá PR do Mato Grosso
de Maringá
Sul UFPR – Universidade Federal
2006/2015 ME/DO Curitiba PR UEA – Universidade do Estado
do Paraná 2023 ME Manaus AM
UNESPAR – Universidade do Amazonas
2019 ME Curitiba PR UEPA – Universidade do
Estadual do Paraná Norte 2023 ME Belém PA
UFRGS – Universidade Estado do Pará
1987/1995 ME/DO Porto Alegre RS UFPA – Universidade Federal
Federal do Rio Grande do Sul 2023 MP Belém PA
UFBA – Universidade Federal do Pará
1990/1997 ME/DO Salvador BA
da Bahia
Quadro 2: Fundação dos cursos de pós-graduação em música considerando ano de abertura, local, re-
UFBA – Universidade Federal
2012 MP Salvador BA gião geopolítica e modalidade de curso ofertada. Fonte: Elaborado pelos autores.
da Bahia
UFRN – Universidade Federal
Nordeste 2012 ME Natal RN
do Rio Grande do Norte
Considerado o quadro 2, alguns diagnósticos podem ser acrescentados no que
UFPB – Universidade Federal tange ao desenvolvimento da pesquisa em música no país. O primeiro programa estri-
2004/2013 ME/DO João Pessoa PB
da Paraíba
tamente dedicado à área da música foi fundado em 1980, pela UFRJ. Já o primeiro pro-
UFPE – Universidade Federal
2016 ME Recife PE grama de doutorado em música foi instituído em 1995 pela UFRGS, seguido da UFBA,
de Pernambuco

2
Mestrado em Artes fundado em 1974, e Doutorado em Artes fundado em 1980. Em 2007, houve o des-
1
Oferecido pela Universidade Federal de Juiz Fora, o curso tem como ênfase, no campo das artes, a músi- membramento do Programa de Pós-graduação de Artes para constituição dos cursos de Artes Cênicas,
ca. O mestrado teve início em 2013, e o doutorado, em 2019. Artes Visuais e Música.

16 17
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

em 1997, e pela UNIRIO, em 1998. Logo, ao final da década de 1990, o Brasil contava com uma busca no portal e-Mec3, considerando apenas os cursos oferecidos pelas universi-
três programas de doutorado em música. dades públicas na escala estadual e federal para constituir mais um quadro geográfico
A região Sudeste conta atualmente com oito instituições oferecendo cursos de da formação musical para a região Norte.
pós-graduação em música, seguida por cinco na região Sul, quatro na região Nordes- Os primeiros cursos de graduação em música foram implantados na região Norte
te, três na região Norte e um na região Centro-Oeste. Contudo, há de se ressaltar que, durante a década de 1980, sendo o primeiro no estado do Pará, na cidade de Belém, e o
apenas em 2023, a existência de programas específicos em música alcançou todas as segundo no Amazonas, em Manaus. Os primeiros cursos nascem, portanto, nas duas ci-
regiões do país. Portanto, considerando os dados do último quadriênio da CAPES e a dades que foram fundadas ainda no período colonial, portanto, que sediaram o primeiro
aprovação dos novos programas em 2023, em breve será possível contar a existência movimento de adensamento urbano na região amazônica. Belém e Manaus desempe-
de vinte e quatro programas de mestrado em música, entre acadêmicos e profissionais, nharam um papel importante não apenas nas redes comerciais por serem núcleos de
implantados no país, além de doutorados. um território-zona econômico, mas também pela dimensão política e administrativa da
O gráfico a seguir (Figura 1) nos ajuda a observar o processo de abertura dos pro- região. Os dois primeiros cursos de música no ensino superior foram instituídos a partir
gramas de pós-graduação em música, em grau de mestrado acadêmico (M), mestrado da licenciatura em educação artística com habilitação em música e, posteriormente, ti-
profissional (MP) e doutorado (D). veram suas nomenclaturas de registro alteradas a partir da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – Lei n.º 9.394/1996 (BRASIL, 1996).
Evolução dos Programas de Pós-graduação em Música Majoritariamente, os cursos de música oferecidos pelas instituições de ensino su-
perior da região Norte conferem o grau de licenciatura aos estudantes ingressantes e
25
são ofertados a partir de universidades federais. Pará e Amazonas são os dois estados
que oferecem cursos de bacharelado na área.
20 20
Considerando, portanto, a predominância dos cursos de licenciatura, à exceção do
16
17 M curso de música oferecido pela Universidade Federal do Acre (UFAC), criado em 2005,
15 15
14 14 14 MP os demais estados da região fundaram seus cursos apenas após a instituição da Lei n.º
13 13
D 11.769, de 18 de agosto de 2008 (BRASIL, 2008). Nesse sentido, podemos observar a
11 11
15 9
10
fundação das graduações de Rondônia em 2010; Roraima, em 2013; e Amapá, em 2015.
9 9
8 8
6
7
6
7 O estado do Tocantins apresenta uma particularidade em relação aos demais no
5 5 5 5 5 5
que tange à oferta dos cursos de graduação: embora seus dois primeiros cursos tenham
4 4 4 4 4 4 4 4 4
3 3 3
2 2 2 2 registro de início no ano de 2014, ou seja, também posterior a Lei 11.769/2008, ambos
1 1 1 1 1 1 1 1
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 constituem uma abordagem distinta dos demais. Tanto o curso da Universidade Federal
do Tocantins (UFT), quanto o da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT) são
1974

1980

1987

1990

1993

1995

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2004

2006

2008

2012

2013

2014

2015

2016

2019

2023

cursos interdisciplinares em artes regidos pelos moldes da educação popular, da alter-


Fig. 1: Evolução dos programas de pós-graduação em música. Fonte: Dados da pesquisa dos autores. nância pedagógica e das matrizes formadoras da vida camponesa: terra, território, tra-
balho e cultura (UFT, 2016). Outro ponto de destaque é que o único curso de graduação
com um currículo específico em música oferecido pela UFT é ofertado na modalidade
Já nos dedicamos a expor um quadro com os principais eventos científicos que de ensino à distância (EaD).
transitam pela região Norte considerando três níveis de escala (local, regional e nacio-
nal); o segundo quadro foi dedicado à territorialização da produção do conhecimento
acadêmico musical no Brasil pelos cursos de pós-graduação e sua recente instituciona-
lização na região Norte; é importante, agora, considerarmos a base da pesquisa funda-
mentada pela iniciação científica a partir da implantação dos cursos de graduação em
música nas instituições de ensino superior públicas dessa região. Para tanto, realizamos
3
Portal que apresenta os dados de registro e avaliação dos cursos de ensino superior e tecnológicos
regulamentados pelo Ministério da Educação.

18 19
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

ESTADO INSTITUIÇÃO GRAU MODALIDADE FUNDAÇÃO VAGAS


Os resultados catastróficos não se deveram somente aos agentes biológicos, mas às
Acre UFAC – Licenciatura Presencial 2005 40
Universidade decisões governamentais em sentido contrário às recomendações médicas e científicas.
Federal do Acre A mesma gestão que poderia ter salvado milhares de vidas na pandemia, mas não o fez,
Amapá UEAP – Licenciatura Presencial 2015 60
Universidade também se omitiu em relação aos povos originários da Amazônia, sendo o caso mais
do Estado do noticiado o dos Ianomâmi. Em um livro que trata de memória e história, mas também
Amapá da diversidade musical na região Norte, é necessário deixar registrados os recentes
Amazonas UFAM – Bacharelado4 Presencial ? 16
Universidade Licenciatura Presencial 1981 52 acontecimentos.
Federal do Licenciatura À distância ? ? A ciência e seus organismos também foram duramente atacados, entre 2019 e
Amazonas
UEA – Bacharelado Presencial 2001 47 2022, de modo que a análise da criação de novos programas de pós-graduação no país
Universidade praticamente inexistiu no período. Hoje, tal análise foi retomada e, até a última atua-
Licenciatura Presencial 2001 47
do Estado do
Amazonas lização desta introdução, quatro novos programas de pós-graduação em música foram
Pará UEPA – Licenciatura Presencial 1986 40 aprovados na Amazônia Legal, sendo três deles na região Norte: Manaus passa a dispor
Universidade do Bacharelado Presencial 1993 30
Estado do Pará de um curso de mestrado profissional, oferecido pela UEA; outros dois foram aprova-
UFPA – Licenciatura Presencial 19915 30 dos em Belém, sendo um mestrado acadêmico pela UEPA e um mestrado profissional
Universidade
Federal do Pará
pela UFPA. A região Centro-Oeste passa a contar com mais um curso de mestrado, a
Rondônia UNIR – Licenciatura Presencial 2010 20 ser ofertado pela UFMT. Essa nova fase que se inaugura na Amazônia certamente se
Universidade reverterá em novas pesquisas e futuras publicações acerca das muitas histórias e das
Federal de
Rondônia muitas músicas do Norte. O tempo é de celebração, mas também de memória e vigilân-
Roraima UFRR – Licenciatura Presencial 2013 50 cia! A democracia, a ciência e as artes no Brasil, aos poucos, estão sendo reconstruídas,
Universidade
Federal de e devemos também registrar isso neste volume. Sobrevivemos! E, tendo na memória os
Roraima muitos que nos precederam e não estão mais aqui, prosseguiremos, fazendo música e
Tocantins UFT – Licenciatura À distância 2019 150
Universidade Licenciatura em Presencial 2014 40 pesquisando sobre ela!
Federal do Educação do Da parte dos editores deste volume, registre-se a esperança em dias melhores e
Tocantins Campo Artes e um agradecimento profundo às autoras e autores cujos textos integram a publicação, e
Música
UFNT – Licenciatura em Presencial 2014 40 que passam agora a ser apresentados.
Universidade Educação do Líliam Cristina Barros Cohen é professora da UFPA. Com uma perspectiva etno-
Federal do Norte Campo Artes e
do Tocantins Música
musicológica e considerações em favor de uma arqueomusicologia, contribui com o
capítulo intitulado “Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos”. Barros
Quadro 3: Cursos de graduação em música em universidades públicas da região Norte.Fonte: Dados
obtidos no Sistema e-Mec, Ministério da Educação.
teve como objetivo apresentar aspectos da pesquisa em música ameríndia pré-colonial
dos povos tapajônico e marajoara a partir da análise das coleções das Reservas Técni-
cas Mário Simões que se encontram depositadas no Museu Paraense Emílio Goeldi, no
A publicação deste volume ocorre em um momento de reconstrução. Ela acontece Museu Nacional e no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
após uma pandemia que assolou o mundo ao longo de dois anos e que teve na região A partir de uma aproximação entre a literatura acerca das práticas musicais ameríndias
Norte um triste símbolo, pois a ausência de oxigênio abreviava a vida de pessoas que da atualidade, o pensamento etnomusicológico, organológico e arqueomusicológico, foi
ainda hoje poderiam estar entre nós. De Manaus, chegaram a todo o Brasil as imagens possível dimensionar aspectos referentes à forma, à sonoridade e aos contextos usuais
mais aterradoras desse triste momento, com enterramentos diuturnos em valas comuns. de objetos sonoros, revelando, assim, a complexidade da prática musical dos povos das
Terras Baixas da América do Sul.
Márcio Páscoa é professor da UEA e contribuiu com dois capítulos neste volume. O
4
Piano, violão, violino, flauta transversal, canto lírico e regência. primeiro texto, “Música na Amazônia durante o Século XVIII” proporciona uma reaproxi-
5
Licenciatura em educação artística: habilitação em música. A partir de 2006, altera-se para licenciatura mação com as dimensões geográficas do território amazônico durante o Brasil colonial,
em música.

20 21
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

considerando não apenas os núcleos urbanos, mas também aspectos da bacia hidro- aspectos históricos, culturais, sociais e de gênero que permearam a trajetória da mulher
gráfica da região; principal rota que conduziu o processo de civilizador gerido pelas no período investigado. Souza e Pensador concluem que a inserção da mulher na vida
ordens religiosas. Nesse sentido, Páscoa adota como principal fonte para expor a prática musical de Belém se relaciona com as práticas de consumo de bens culturais e estrutu-
musical os relatos produzidos pela documentação religiosa sobre o cotidiano litúrgico ras institucionais da época.
e processual da vida dos missionários das ordens que se estabeleceram em solo amazô- Gustavo Frosi Benetti e Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva são professores
nico. Com isso, podemos observar aspectos do repertório que outrora foi praticado nos da Universidade Federal do Maranhão do curso de Licenciatura em Linguagens e Códi-
ambientes da cristandade católica. gos: Música, tendo atuado anteriormente no curso de licenciatura em música da UFRR.
Já o segundo texto de Páscoa, “Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Benetti e Mendes contribuem para este volume com o capítulo “Música em Roraima:
Guerra”, descreve as tratativas, os roteiros e as apresentações das companhias líricas diversidade cultural na fronteira norte”. Os autores apresentam uma visão panorâmica
que se apresentaram nas províncias do Norte durante o Brasil Império e as primeiras das manifestações musicais do estado a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica,
décadas da República. Concentrando-se, prioritariamente, no uso de periódicos, o autor contudo integrada aos resultados de pesquisas (documentos arquivísticos, fontes orais,
apresenta um quadro relevante sobre a perspectiva dos agentes locais que ansiavam hemerográficas e iconográficas) e de pesquisas de campo anteriormente promovidas
pela montagem de espetáculos líricos. A partir disso, é possível notar, nesse capítulo, pelos autores. Desse modo, Benetti e Mendes trazem como resultado a diversidade de
uma lista de artistas, empresários, financiadores, obras e espaços cênicos que compu- matrizes culturais que formam o cenário musical no estado, com especial atenção à
seram as temporadas nas duas principais capitais do Norte do país na ocasião. Diante música dos povos originários, às práticas musicais em contextos urbanos e ao meio
das articulações financeiras que pudessem viabilizar os custos para a contração dessas educacional.
companhias, observam-se longos hiatos entre as apresentações. Conforme aponta o Marcus Bonilla é professor no curso de Licenciatura em Educação do Campo: Artes
autor, em Belém, essa cena seria mitigada apenas na década de 1880 com a criação da e Música da UFNT. Em seu texto, intitulado “A viola de buriti: aspectos de uma musica-
Associação Lírica Paraense ou com os acordos de subvenção estadual. Na década de lidade dos sertões do Tocantins”, reporta algumas discussões pertinentes ao desenvol-
1890, Manaus e Belém viram o número de montagens ampliar-se nas temporadas de vimento de sua pesquisa de doutoramento realizada na região do Jalapão, no Estado
1892, 1894 e 1896 a partir da atuação empresarial de Joaquim Franco e, anteriormente do Tocantins, sobre a viola de buriti. Esse instrumento musical, ainda pouco conhecido,
a isso, a visão empreendedora de Adele Naghel. Ainda que outras tímidas tentativas em é produzido e usado nas práticas musicais dos sertanejos dessa região e entorno. Con-
retornar a ópera ao solo da Amazônia durante a Belle Époque tenham sido engendradas, forme apontado pelo autor, o mote gerador da pesquisa foi norteado pelos princípios
Páscoa conclui que elas não tiveram mais a seu favor os recursos abundantes do ciclo metodológicos da Educação Popular, da pesquisa-ação e da pesquisa participante, para
da borracha. atender ao interesse do quilombo Mumbuca, localizado no município de Mateiros no
Dione Colares de Souza é professora da UEPA e da Escola de Música da UFPA, e, Tocantins. Após um processo dialógico, observou-se que o anseio dos membros da co-
juntamente com Luana Santana Pensador, musicista e pesquisadora, contribuiu com o munidade era que a Viola de Buriti obtivesse o reconhecimento como patrimônio ima-
texto “A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle terial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e que
Époque até a metade do século XX”. Nesse capítulo, Souza e Pensador utilizaram fontes fosse produzido o cancioneiro da comunidade cuja viola é usada para acompanhar. O
bibliográficas e documentais para nos apresentar uma compreensão sobre as práticas recorte aqui apresentado refere-se aos aspectos históricos e de musicalidades dos su-
sociais que envolviam a persona mulher no cenário musical na cidade de Belém. Nesse jeitos envolvidos na pesquisa (jalapoeiros) a partir do conceito cunhado pelo autor de
sentido, cabe destacar que parte das fontes documentais foram acessadas a partir do intelorgânica musical.
Acervo Mulheres na Música da Amazônia (MUSA), pertencente ao projeto de pesquisa
institucional em andamento, desenvolvido na EMUFPA. Tendo por objetivo investigar a
participação da mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, até
a metade do século XX, as autoras lançam-nos algumas questões norteadoras: como Referências
ocorreu a participação feminina na música em Belém até a metade do século XX? Como ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (ANPPOM).
foi o processo de ensino-aprendizagem musical dirigido às mulheres daquela época? Programas de Pós-Graduação. [2020]. Disponível em: https://anppom.org.br/progra-
Quais as barreiras enfrentadas pela classe feminina para ocupação do espaço de traba- mas-de-pos-graduacao/. Acesso em: 9 jun. 2023.
lho na música e para a difusão de suas produções artísticas? Diante disso, descrevem

22 23
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

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24 25
Introdução Fernando Lacerda Simões Duarte; Jose Jarbas Pinheiro Ruas Junior

RITUALE Sacris, Regalis, ac Militaris Ordinis B. V. Mariae Mercede Redemptionis Capti-


vorum ad usum Fratrum Ejusdem Ordinis Congregatione Magni Paraensi commorantium
jussu R. P. Praedicatoris Fr. Joannis da Veiga in Civitate Paraensi ejusdem Ordinis Commen-
datoris elaboratum & lucem editum. Olispone [Lisboa]: Typis Patriarchalibus Francisci
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tura em educação do campo (câmpus de Tocantinópolis). Tocantinópolis: UFT, 2016.

26 27
Amazônias inaudíveis: vestígios
de mundos sonoros antigos

Líliam Cristina Barros Cohen


Universidade Federal do Pará

1 como citar
COHEN, Líliam Cristina Barros. Amazônias inaudíveis:
vestígios de mundos sonoros antigos. In: DUARTE,
Fernando Lacerda Simões; RUAS JUNIOR, José Jarbas
Pinheiro (ed.). Norte. Vitória: Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 28-51.
(Histórias das Músicas no Brasil).
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

1. Introdução: Arte e ocupação humana na Amazônia pré-colonial Importante mencionar a antiguidade da ocupação humana na região amazônica
Em seu estudo sobre arte rupestre na Amazônia, a arqueóloga Edithe Pereira apresenta as para que seja possível imaginar essa rede gigantesca de manejo do meio ambiente e
expressões artísticas presentes na região de Monte Alegre, próxima a Santarém, no Pará, geração de conhecimentos, cuja dinâmica milenar foi regida por eventos vários, que
organizadas em petróglifos – arte escavada na pedra – e pictóglifos – arte pintada na pe- permearam as eras geológicas desde então.
dra –, com utilização de pigmentos oriundos da biota do entorno. Pereira informa que, nes-
se estado, foram registrados mais de cem sítios arqueológicos quase sempre localizados Uma vez que é impossível obter a chave que permitiria conhecer o
junto a cursos de água. A autora menciona a tradição rupestre de gravuras denominada significado de cada motivo pintado ou gravado na rocha – visto que
seus atores já não existem para nos explicar – resta ao arqueólogo re-
“amazônia”, localizada no Baixo Amazonas, cujas características se constituem de figuras conhecer temas, estilos e técnicas e classificá-los, agrupando-os pelas
humanas “representadas de forma completa” ou com representação “exclusiva da semelhanças e indicando as diferenças. Esta classificação é necessária
cabeça” (PEREIRA, 2012: 26). Dentre as tradições de pinturas rupestres, a autora e constitui o primeiro passo no estudo da arte rupestre (PEREIRA, 2012:
menciona as das regiões da Serra das Andorinhas, no sudeste do Pará, e as de Alenquer e 27).
Monte Alegre, no Baixo Amazonas. Ela destaca, também, a datação da Gruta Pintada (ou
Pedra Pintada), no município de Monte Alegre, cujas pinturas foram feitas há cerca de Do ponto de vista da arqueomusicologia, a questão ainda é mais complexa, pois
11.200 AP, conforme estudos de Anna Roosevelt e seus colaboradores (PEREIRA, 2012: não há a materialização do som organizado, restando apenas os vestígios materiais
26). Trata-se de uma re-gião cujo relevo é diferenciado, constituído do Domo de Monte depositados em contextos particulares culturalmente localizados, quando escavados de
Alegre, com a presença de várias serras isoladas, entre estas, as importantes serras de forma científica.
Ererê, Paituna, Maxirá e Itaua-juri, e vegetação típica de floresta densa amazônica, porém Ainda tratando de vestígios humanos nessa região do Baixo Amazonas, Regina Oli-
entrecortada com cerrado ou savana (PEREIRA, 2012, p.36). Na fotografia abaixo, Figura veira e Jorge Pereira mencionam que, na região de várzea da Fazenda Taperinha, situada
1, podemos observar a Pedra da Lua, na Serra do Ererê, com algumas inscrições rupestres. em região próxima a Santarém, ocorrem os depósitos de sambaquis (OLIVEIRA; PEREI-
RA, 2011: 402). Esses depósitos são de enorme importância, pois, neles, encontram-se as
cerâmicas mais antigas das Américas, com idade de 7.600 e 7.335 AP (SILVEIRA; SCHAAN,
2010: 42), datadas pela arqueóloga Ana Roosevelt.

É interessante notar que, além desse grande sambaqui ao pé da Serra


de Taperinha, existe outro, num trecho do Paraná de Maicá, em direção
a Santarém, que só aparece durante as grandes baias das águas do
paraná, ficando submerso nas outras ocasiões, milhares de anos atrás,
de vários metros, as populações indígenas da época havendo vivendo
então em suas margens a uma certa distância das serras que correm ao
longo do rio (PAPAVERO; OVERAL, 2011: 412).

Segundo Jalles, Silveira e Nader (2013), as eras de ocupação antigas na Amazônia


são classificadas em três períodos: o Paleoíndio (dos primeiros habitantes que viviam
em grupos de caçadores e coletores); o Arcaico (período de transição de ocupação hu-
mana, quando os grupos passaram a se fixar mais frequentemente nos ambientes, tendo
por exemplo os sambaquis, que representam um tipo de fonte alimentícia); e o Forma-
tivo (caracterizado pelo processo de sedentarização das populações). Silveira e Schaan
(2010: 37) colocam que, a partir do Holoceno, essas populações se fixaram, de forma
mais sedentária, na costa atlântica paraense e que, com esse período, coincide a prática
ceramista, há cerca de 6.000 AP, no caso das populações ali fixadas. Esses manguezais
Fig. 1: Painel principal de pinturas rupestres da Pedra da Lua, situada em um dos paredões da Serra do teriam se formado nessa época, momento em que ocorreu uma redução do nível do
Ererê. Fonte: Benedita Barros (2004).

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Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

mar e a consequente exposição de maior espaço para ocupação humana: “A oferta de Cristiana Barreto sugere que diferentes complexos cerâmicos da Amazônia pré-co-
recursos aquáticos abundantes, ainda que de maneira sazonal, foi o impulso rumo à lonial estavam inseridos em um fluxo dinâmico de redes de trocas, empréstimos, apro-
sedentarização de grupos humanos há 7.600 anos no Baixo Amazonas e um poco mais priações etc. entre os povos amazônicos e de regiões do entorno. Esse fluxo constante
tarde na Costa Atlântica” (SILVEIRA; SCHAAN, 2010: 38). dinamizava, portanto, o fortalecimento e posterior decaimento dos cacicados amazôni-
Cristiana Barreto comenta sobre duas linhas de hipóteses referentes à ocupação cos, tendo isso ocorrido no período anterior à chegada dos europeus (BARRETO, 2010:
da Bacia Amazônica: 200). Como evidências dessas redes de trocas no Marajó, a autora aponta a “circulação
de objetos exóticos à ilha, tais quais os muiraquitãs e outros artefatos de pedra polida,
oscilando entre um sistema de grandes cacicados rivais que teria emer- encontrados no interior de urnas funerárias” (BARRETO, 2010: 201). Diante disso tudo,
gido rapidamente durante o milênio que antecede a chegada dos eu- Barreto (2010: 200) coloca que a cerâmica pode ser considerada como um marcador
ropeus, integrados através de extensas redes de trocas e alianças de
hierárquico e um indicador de complexidade social. Schaan (2009: 50) propõe a existên-
guerra[,] [...] e outro sistema de sociedades menores, o qual teria atin-
gido há milênios um estado de equilíbrio adaptativo na floresta tropi- cia de vários cacicados na Ilha de Marajó e, exemplificando os cacicados Camutins, men-
cal que perduraria até os nossos dias (BARRETO, 2010: 195). ciona a localização geográfica dos aterros (tesos) em relação ao curso do rio homônimo,
identificando os aterros das partes altas e inferior do rio como hierarquicamente su-
Cristiana apresenta, ainda, a hipótese, do arqueólogo César Góis Neves, de que tais periores, por neles estarem contidas cerâmicas mais elaboradas (havendo também, aí,
períodos de cacicados e centralizações seriam alternados por outros de descentraliza- os aterros destinados ao uso cerimonial), e os aterros localizados ao longo do leito do
ções desse sistema hierárquico. A autora menciona também o aspecto da movimenta- rio, com cerâmicas menos elaboradas, pertencentes à população comum. Nos aterros
dae diversa atividade cultural, bem como “intensa comunicação e circulação de objetos de uso cerimonial, Schaan (2009: 64) expõe que os dados sugerem atividades festivas,
entre estas áreas do Baixo Amazonas e outras que a circundam” (BARRETO, 2010: 196). com a presença de vasos grandes e elaborados e objetos rituais. Nos aterros destinados
Esse período – milênio que antecede a chegada dos europeus – é de datação aproxima- ao topo da hierarquia, foram encontradas, entre outras cerâmicas, estatuetas/chocalhos,
da das peças sonorizantes apresentadas aqui e referentes aos povos Marajó e Tapajós. especialmente ligadas aos contextos funerários:
Essas populações, que viveram há milênios na região amazônica, provavelmente
Os fragmentos de estatuetas coletadas de quatro dos aterros cerimo-
também faziam uso das possibilidades sonoras disponíveis em contextos diversificados,
niais mostraram uma variabilidade que é bastante comum em coleções
porém, além da cerâmica, que remonta aos séculos X-XVII EC., não temos outras pistas museológicas. Os dados sugerem que rituais envolvendo estatuetas
até o momento. Contudo, é de fundamental importância ter em mente a antiguidade e a eram realizados em todos os tesos da elite e não apenas nos dois que
legitimidade desses povos das Terras Baixas da América do Sul, notadamente, da região compreendem o núcleo cerimonial. Em M-17 a maior parte dos frag-
amazônica. mentos de estatuetas foi encontrada na área de sepultamentos, o que
sugere seu uso ritual. No entanto, estes fragmentos não estavam asso-
ciados a nenhum sepultamento particular (SCHAAN, 2009: 63).

2. Vestígios sonoros tapajônicos e marajoaras


Conforme se verá nos excertos da literatura arqueológica descritos abaixo, os contextos As camadas sociais eram divididas entre os cidadãos nobres e os comuns, e sua
de realização de práticas musicais parecem estar vinculados às cerimônias funerárias, estratificação social se caracterizava pelo culto aos ancestrais, parentesco mítico e do-
atividades xamânicas e festivas. mínio cerimonial e ritual (SCHAAN, 2009: 74). Schaan (2009: 77) apresenta três níveis
A cerâmica marajoara tem, como uma de suas características, a complexidade de de significação em torno do uso dos objetos cerâmicos: 1) nível das representações hu-
sua confecção e seus simbolismos, além da inclusão de diversas técnicas ceramistas: manas ou animais, nos motivos e formas decorativos; 2) nível dos conteúdos semânticos
e culturais, que distingue os domínios sobrenaturais ou reais das representações; 3)
De fato, a cerâmica marajoara junta o uso de oito técnicas variadas nível das relações sociais em torno dos objetos cerâmicos, que envolve os consensos de
(engobo vermelho, engobo branco, engobo duplo; incisão; excisão; es-
significações da sociedade. Em sua análise, a autora apresenta o aspecto das relações
covado; pintura sobre engobo; retoque) combinadas das mais diversas
maneiras na mesma peça, e aplicadas em peças de diferentes formas e identitárias de grupos sociais da nobreza que possam ser expressas nos padrões deco-
dimensões (BARRETO, 2010: 198). rativos, bem como o de marcação de linhagens de parentescos ancestrais. Tais padrões
decorativos podem se conectar aos grafismos de forma mais realista ou a partir de

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Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

traços e formas minimalistas, que tangenciem com traçado simples, o que se pretende ventre grávido representados. Schaan (2009: 82) menciona a emissão sonora a partir
referendar. Assim, tais padrões decorativos podem estar associados a animais, como de pequenas pedrinhas depositadas no interior das estatuetas, e a presença dos furos
cobras, escorpiões e outros, mas, principalmente, a cobras. Denise Schaan menciona, na altura do pescoço, segundo sua análise, seriam para amarrar fios e pendurar as es-
ainda, a associação entre esses itens rituais e as características transformativas próprias tatuetas em pessoas doentes para fins curativos. Outro aspecto relevante que a autora
do xamanismo (2009: 78). Ressalta-se que a cobra é um elemento deveras importante cita é o fato de algumas estatuetas possuírem cabeças disformes, revelando costume de
no imaginário amazônico como um todo. No caso da tradição marajoara em tela, espe- alteração do crânio de crianças para demarcação de identidade étnica e de parentesco
cificamente, a autora pondera sobre esse animal como assegurador das riquezas aquá- ou linhagem, uma prática de certa forma encontrada em outras sociedades indígenas
ticas e, estando vinculado à nobreza, da própria condição sociopolítica dessa camada na literatura etnológica.
da sociedade. Os enterros secundários nas grandes urnas funerárias também estariam Interessante observar que essas características antropomorfas em idiofones, fáli-
relacionados a essa necessidade de manutenção ideológica dos privilégios políticos de cas e femininas ao mesmo tempo, foram observadas nas peças sonoras constantes nas
uma parte da sociedade (SCHAAN, 2009: 80). coleções inventariadas no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e no Museu Nacional
Papavero e Overal (2011) apresentam uma descrição de Charles Hartt sobre o (MN). Denise Schaan aciona o uso ritual e xamânico curativo para essas estatuetas, que
que o geólogo chamou de “ídolo” dos povos indígenas que habitavam a antiga Fazenda eram confeccionadas em forma de idiofones: “Estas estatuetas podem ter sido utiliza-
Taperinha, nas proximidades de Santarém. Tal ídolo consistia em artefato feito de argila, das em rituais de cura, em forma de espíritos, como se observa em algumas sociedades
que, manejado, produzia som. Segue abaixo a descrição completa: indígenas atuais” (SCHAAN, 2009: 41).
Interpretando aspectos simbólicos referentes às produções cerâmicas tapajônicas,
Na coleção emprestada à Comissão Geologica pelo Sr. Rhome existe a arqueóloga Denise Gomes (2010: 217) aponta para o aspecto da metamorfose entre
um ídolo quase perfeito do mesmo typo que os descriptos da Ilha e humanos e não humanos, incluindo aí animais e entes sobrenaturais, próprio da práti-
Marajó. É representado na fig.10. Est.III [Fig.7.3]. A cinta em cima da
ca xamânica. A autora aborda, ainda, a presença desses seres representados em vasos
cabeça é cuidadosamente representada, terminando se cada lado, logo
acima da orelha, n’uma bossa ou chifre cônico. Os cabelos são partidos de cariátides, urnas e demais utensílios, mencionado tanto o uso ritual desses objetos
ao meio na parte posterior da cabeça. As orelhas são guarnecidas de quanto as questões simbólicas associadas a eles:
pequenos discos em fórma de botão. O nariz é saliente, tendo as nari-
nas representadas, sendo os olhos e a boca apenas sulcos compridos Contudo, um exame mais detalhado da iconografia dos Tapajó passa,
com margens elevadas. Os peitos são proeminentes e o umbigo grande. então, a ser vista como uma tecnologia xamânica – artefatos que ser-
Entre as pernas um espaço triangular destacado por sulcos profundos viram de mediadores entre os seres humanos e não humanos, ativando
parece representar uma tanga do typo das de Marajó. As pernas, muito relações entre os planos cósmicos por meio da ação ritual (GOMES,
separadas, são curtas e de fórma cônica, sendo o pé indicado por um 2010: 216).
sulco transverso perto da extremidade, e por signaes obscuros de qua-
tro dedos. Os braços são estendidos com as mãos nas ilhargas, tendo
os cinco dedos indicados. Logo atraz das orelhas existem dous furos Uma importante menção da autora diz respeito às esfinges em forma de homens
comunicando com a cavidade interna. Na cavidade da cabeça, como é sentados com o chocalho na mão (GOMES, 2010: 26). Alguns com uma fenda nas costas,
usual, há substancias duras que emitem som quando se sacode a figura. o que, segundo a autora, pode significar abertura para inclusão de ossos de enterra-
O material é um barro gordo, de côr clara, coberto com barro esbran- mento secundário. O que nos interessa é a representação da prática musical associada
quiçado, mal cozido e, como toda a louça de Taperinha, muito molle. O
ao uso do chocalho em provável contexto funerário, o que nos dá indicação de prática
ídolo tem 0,’’’1555 de altura (PAPAVERO; OVERAL, 2011: 95).
musical associada ao xamanismo, tendo em vista a relevância do maracá, para as cultu-
ras ameríndias brasileiras e amazônicas, como elemento de comunicação entre mundos.
Comentando sobre as estatuetas marajoaras, Schaan descreve o contexto arqueo- O maracá pode ser pensado como instrumento musical de forte significado para
lógico em que foram encontradas, dando ênfase ao fato de estarem quase sempre que- os povos ameríndios. Um exemplo é o chocalho maracá denominado “hebu mataro” para
bradas na altura do pescoço. A autora afirma, também, que as pinturas que compõem os povos da etnia Warao, cujos agência e poder estão diretamente relacionados à força
as estatuetas podem representar o modo pelo qual o corpo era decorado, incluindo os de sua produção, elementos e forma, suas correlações míticas e os diversos tabus que o
dispositivos labiais, adornos de cabelo, pinturas corporais e faciais. Tais estatuetas, em envolvem (OLSEN, 1996). Importante mencionar que, segundo Olsen (1996), a quantida-
geral, possuíam forma fálica e estrutura feminina, muitas vezes tendo seios, vagina e de de pedrinhas de quartzo e outros objetos presentes dentro do hebu mataro tem a ver

34 35
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

dando-lhe licença para beber em suas casas, convidando-se alternati-


com o poder aumentado do xamã (chamado Wisiratu ou Hoerato, dependendo do tipo
vamente uns aos outros, aconteceu um dia que vendo eu uma fileira
de doença). Esse aspecto é fundamental para se pensar os maracás como instrumentos grande de homens e mulheres com seus filhinhos ao collo ou pelas
de poder e sua confecção como uma ação prenhe de intencionalidade. Montardo (2009) mãos, e igaçabas ou quartas grandes de vinho na cabeça, perguntei ao
abordou, em seu livro, questões fundamentais relacionadas ao maracá e ao xamanismo alferes João Corrêa que cousa era esta procissão de gente, e disse-me
Guarani no Mato Grosso do Sul, sendo esse instrumento considerado sagrado e utiliza- elle que eram os índios da aldêa que iam beber e fazer suas danças que
chamam poracés no Terreiro do Diabo. Mandei-o que fosse avisa-los da
do apenas pelos pajés guaranis. Em diversas outras situações, o maracá pode não ser minha parte que logo voltassem para suas casas, e quando não obede-
considerado sagrado, mas representa e assume aspectos da identidade étnica do grupo. cessem ao que lhes mandava dizer, quebrasse os potes ou igaçabas dos
Então, observa-se o maracá como item importante nas sociedades ameríndias das Ter- índios, e derramasse o vinho no chão, e como o alferes João Corrêa não
ras Baixas da América do Sul, particularmente na Amazônia. Assim, podemos imaginar se atrevesse com receio que os índios o maltratassem, animei-o outra
vez que fosse dizer-lhes de minha parte que se retirassem para suas
o papel proeminente dos maracás nas populações antigas e sua vinculação às práticas casas, e quando não, lhes desse com um pau nas igaçabas e as fizesse
xamânicas e de meio de contato com os vários mundos e/ou o sobrenatural. Ressalta-se em pedaçoes; foi elle então e com prospero sucesso lhes intimou à mi-
a quantidade relevante de exemplares desse instrumento nas coleções das reservas nha ordem, e confiança em Deus que o havia de ajudar, com um pau nos
arqueológicas presentes nas instituições visitadas, a saber, o MPEG, o MN e o Museu de potes e derramou os vinhos. Cousa notável, não houve um só que se lhe
oppuzesse, mas foram-se todos para suas casas e nunca mais foram ao
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). O maracá é, também, im-
terreiro prohibido, comquanto lhes assisti; porém, para não ir com tudo
portante veículo de conexão espiritual e de favorecimento de alteração de consciência, ao cabo daquelles princípios, lhes permitti se convidassem uns aos ou-
levando o xamã ao transe espiritual e à visitação a outras realidades. Nesse sentido, e tros em os dias de suas festas para suas casas, para lá beberem com
considerando todos os elementos mencionados por Denise Gomes quanto ao aspecto moderação. Outro terreiro tinham também dentro da mesma aldêa, que
da metamorfose representada pelas imagens antropomorfas e zoomorfas e figuras mí- os brancos chamavam Mofama, este também não se freqüentou mais e
ficaram tirados os terreiros em que os Diabos tinham grande ganância
ticas, bem como metamorfoseadas, podemos pressupor o uso desse instrumento nesse pelas desordens que elles se commettiam com as continuas beberro-
mesmo viés e caráter transformacional. Conjectura-se que as pedrinhas de argila que nias e danças (BETTENDORFF, 1990: 170).
estão contidas nesses maracás também possam ter tido esse aspecto da intencionali-
dade e do poder relacionado a elas. Foram encontrados maracás tanto entre as peças
marajoaras quanto entre as tapajônicas. Presente na coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, um prato ma-
O contexto das festividades tradicionais também pode ser considerado como pos- rajoara com bordas ocas contendo pedrinhas sonorizantes convida-nos a pensar no uso
sibilidade de práticas musicais dos povos tapajônicos e marajoaras. Tendo habitado suas do som como elemento ritual não necessariamente musical. A literatura etnomusicoló-
localidades no primeiro milênio EC., esses povos foram contemporâneos à chegada da in- gica mostra-nos a relevância do pensamento ampliado do conceito de som e música na
vasão europeia, e há poucos testemunhos dessas práticas musicais na literatura da época, diversidade das culturas ameríndias, incluindo a preparação do corpo sonoro com cho-
a exemplo das crônicas do padre João Daniel, que descreve uma dança em roda com o uso calhos nas tornozeleiras, nas braçadeiras e em outros adornos corporais; a preparação
de instrumentos sonoros e percussivos e de bebidas cerimoniais. ambiental com a mescla entre sons da natureza e vocalizações; o uso do som como ele-
No contexto das menções às práticas musicais antigas pelos padres ou viajantes do mento essencial da vida, não necessariamente conectado ao fazer musical (MENEZES
período, podemos dialogar com a noção de ouvido colonial de Miguel Angel Garcia (2012), BASTOS, 1999); e a sonorização de instrumentos como bastões de ritmos, que, prenhes
ao observar a desnaturalização das sonoridades autóctones enquanto som humanamente de significados, organizam temporalmente a relação som e corpo nas danças e coreo-
organizado e o preconceito de viés religioso atribuído a essas práticas, demonizando-as. grafias, juntamente com a profusão sonoro-musical atrelada aos adornos corporais e
demais elementos descritos anteriormente. Seria possível pensar na preparação sonora
Tinham os Tapajós um terreiro mui limpo pelo matto dentro, que cha- desses contextos musicais dos povos antigos?
mavam Terreiro do Diabo, porque indo fazer alli suas beberronias e
danças, mandavam as suas mulheres levassem para lá muita vinhaça,
Ainda no campo do contexto transformacional xamânico, podemos refletir sobre
e depois pusessem de cócoras com as mãos postas deante dos olhos
para não ver, então falando alguns dos seus feiticeiros com voz rouca o uso de aerofones no espectro da metamorfose e da agência. Importante salientar que
e grossa lhes persuadiam que esta fala era do Diabo, que lhes punha os aerofones tapajônicos (não foram identificados aerofones marajoaras nas referidas
em a cabeça tudo o que queriam; assim se affirmou o principal Roque. coleções), classificados como flautas globulares, possuem aspecto zoomorfo e antropo-
Indo eu com êlle ver aquelle terreiro, para depois prohibil-o, como fiz,

36 37
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

morfo (encontrado na coleção do Museu Nacional). Suas características organológicas se- Número de
Instrumento Etnia Tombamento
classificação
rão melhor descritas mais adiante. Alguns em formato de répteis e outros em formato de
aves, levam-nos a pensar a respeito da importância desses animais no plano mitológico e Idiofone de golpe
sua relação com o fazer musical, não sendo possível, obviamente, imaginar como era sua indireto – chocalho/
112.131.11 Marajó 6.878
maracá sem obstrução
musicalidade. Sabemos que, entre as sociedades indígenas, o pajé pode metamorfosear-se interna
em animais de poder. Em contrapartida, apitos são frequentemente utilizados para imitar
cantos de pássaros entre alguns povos, portanto, diante das informações presentes, não é Idiofone de golpe
possível afirmar o uso exclusivo dessas flautas globulares em sessões xamânicas. indireto – chocalho/
112.131.11 Santarém 8.683
maracá sem obstrução
interna

Idiofone de golpe
indireto – chocalho/
112.131.11 Marajó 9.708
maracá sem obstrução
interna

Idiofone de golpe
indireto – chocalho/
112.131.11 Tapajó 78.919
maracá sem obstrução
interna

Flauta globular 421.13 Tapajó 78.944

Flauta globular 421.13 Tapajó 78.948

Idiofone de golpe
indireto – chocalho/
112.131.11 Tapajó 78.964
maracá sem obstrução
interna

Tab. 1: Tabela dos instrumentos musicais do Museu Nacional (2015).

Fig. 2: Flauta globular em formato de ave. Fonte: Reserva Técnica Mário Simões, MPEG. Fotografia: Loha- Na reserva técnica Mário Simões, do Museu Paraense Emílio Goeldi, foram realiza-
na Gomes, 2014.
das análises nos instrumentos relacionados na Tabela 2, pertencentes às coleções Char-
les Tonwsed, Frederico Barata, Curt Nimuendaju e Xingu. A cada dia, eram analisadas
3. Aspectos organológicos três ou quatro peças, dependendo de sua complexidade. Todo o cronograma foi ajustado
As primeiras ações do projeto Arqueologia Musical Amazõnica foram as visitas ao Mu- com a instituição anteriormente.
seu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2014, ocasiões nas
quais foram realizadas análises organológicas dos instrumentos musicais presentes no
salão e na reserva técnica da instituição. Importante mencionar que, após a tragédia
do incêndio ocorrido no museu, foram enviados, à instituição, fotografias e materiais de
pesquisa coletados nessas visitas. A Tabela 1 contém os instrumentos analisados.

38 39
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

Número de
Instrumento Etnia Tombamento Flautas globulares em
classificação
jogo (ou ocarinas em 421.13 ou
Tapajó 1.257
jogo de sopro direto com 421.222.41
Idiofone de golpe indireto orifício de digitação)
– chocalho/maracá com 112.131.12 Marajó 220
obstrução interna
Flautas globulares em
jogo (ou ocarinas em 421.13 ou
Idiofone de golpe indireto Tapajó 1.258
jogo de sopro direto com 421.222.41
– chocalho/maracá sem 112.131.11 Tapajó 328 orifício de digitação)
obstrução interna
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.259
Idiofone de golpe indireto Flauta globular 421.13 Tapajó 1.260
– chocalho/maracá sem 112.131.11 Tapajó 463
obstrução interna Flauta globular 421.13 Tapajó 1.261

Flauta globular 421.13 Tapajó 1.262


Idiofone de golpe indireto
– chocalho/maracá sem 112.131.11 Tapajó 495 Flauta globular 421.13 Tapajó 1.263
obstrução interna
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.265
Idiofone de golpe indireto Rio Curuá – etnia
– chocalho/maracá sem 112.131.11 Tapajó 500 Trombeta Sem classificação 1.958
não identificada
obstrução interna
Aerofone livre de Alto Xingu Lago das
Flauta globular 421.13 Tapajó 531 interrupção não autófono 412.22 Onças – etnia não 2.011
giratório identificada
Idiofone de golpe indireto
Flauta globular 421.13 Tapajó 2.181
– chocalho/maracá sem 112.131.11 Tapajó 1.000
obstrução interna
Flauta globular 421.13 Tapajó 2.182

Flauta globular 421.13 Tapajó 1.037 Flauta globular 421.13 Tapajó 2.201
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.157
Tab. 2: Tabela com instrumentos musicais da Reserva Técnica Mário Simões, Museu Paraense Emílio
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.158 Goeldi (2015).
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.159
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.249 No Museu de Etnologia e Arqueologia da USP, foram realizadas análises organoló-
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.250 gicas dos instrumentos listados a seguir:
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.251
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.252
1. 0313 – 112.131.11 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá sem obstru-
ção interna);
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.253
2. 0405 – 112.131.12 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá com obstru-
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.254 ção interna);
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.255 3. 0441 – 112.131.11 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá sem obstru-
Flauta globular 421.13 Tapajó 1.256
ção interna);
4. 0615 – 112.131.12 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá com obstru-

40 41
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

ção interna); consideramos o modelo de Sachs e Hornbostel, que, apesar de antigo e, de certa forma,
5. 1570 – 112.131.11 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá sem obstru- generalizante, é utilizado em outras instituições do mundo. Na impossibilidade de trata-
ção interna); tivas com o povo detentor daquele conhecimento específico de método de classificação
6. 1573 – 112.131.11 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá sem obstru- nativa, consideramos que esse modelo poderia satisfazer, em termos de comunicação
ção interna); com as demais instituições museológicas do mundo.
7. 1576 – 112.131.11 (idiofone de golpe indireto – chocalho/maracá sem obstru- Foram selecionados 13 instrumentos musicais para serem confeccionadas répli-
ção interna); cas. O critério para seleção desses instrumentos foi o fato de serem representantes des-
8. 6619 – 421.111.21 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada sas tipologias no acervo: um idiofone com caixa de ressonância dividida; um idiofone
com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13); com mais de uma caixa de ressonância; dois aerofones com três orifícios; um aerofone
9. 5415 (6660) – 421.111.22 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo com um orifício; um aerofone com cinco orifícios; um aerofone duplo; um idiofone com
fechada com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13); caixa de ressonância oval; um aerofone com dois orifícios; dois idiofones com caixa de
10. 5409 (6656) – 421.13 (jogo de flautas globulares); ressonância dividida; um idiofone com uma caixa e base maciça; e um aerofone livre –
11. (6657) – 421.111.22 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada zumbidor.
com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13);
12. 5413 (6659) – 421.111.22 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo 4. Aerofones
fechada com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13); Nas amostras do povo Tapajó, foram analisados 27 aerofones de formatos e tamanhos
13. 5406 (6654) – 421.111.22 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo variados, que foram classificados como flautas globulares em razão de suas caracterís-
fechada com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13); ticas particulares de construção: caixas de ressonâncias com ou sem orifícios de digi-
14. 5404 (6653) – 421.111.22 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo tação; apliques ao redor, configurando o formato pretendido pelo artesão; presença ou
fechada com orifícios para os dedos, ou flauta globular 421.13); não de canais de insuflação. Entre eles, havia 15 flautas com dois ou mais orifícios e
15. 5402 (6652) – 421.13 (jogo de flautas globulares); nove flautas com um orifício de digitação, estas possivelmente eram tocadas fechando
16. 5408 (6655) – 421.13 (jogo de flautas globulares); parcialmente o orifício. Em alguns casos, havia a presença de orifícios para provável uso
17. 6632 – 421.13 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada com como colares. Na coleção do Museu Nacional, foram identificados dois aerofones, am-
orifícios para os dedos, ou flauta globular); bos classificados como flautas globulares e de formato antropomorfo e procedentes de
18. 6596 – 421.13 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada com Santarém, Pará. Ambos os aerofones apresentam faces antropomorfas e com distintas
orifícios para os dedos, ou flauta globular); expressões estampadas nelas.
19. 6599 – 421.13 (flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada com Como características gerais desse conjunto de aerofones tapajônicos da reserva
orifícios para os dedos, ou flauta globular); técnica Mário Simões do MPEG, podemos mencionar: o formato zoomorfo completo;
20. - 29. 6636/6637/6638/6639/6640/6641/6642/6643/6644/6645 - 421.13 (par- relação com práticas xamânicas; posicionamento adequado para as mãos; presença de
tes de peças – flauta sem conduto simples soprada pelo fundo fechada com condutores nas peças com um ou mais orifícios; e construções conjuntas de pares de ae-
orifícios para os dedos, ou flauta globular). rofones. A única diferença diz respeito à face antropomorfa dos exemplares da coleção
do Museu Nacional da UFRJ. Não foi identificado nenhum aerofone nas peças referentes
Para a análise organológica desses instrumentos, foi levada em consideração a ao povo Marajoara nas coleções inventariadas.
experiência documental do musicólogo chileno José Perez de Arce, que inspirou a cria- Os aerofones estão presentes de forma grandiosa na musicalidade ameríndia das
ção da ficha organológica do projeto, cujas categorias de análise consistiam em: clas- Terras Baixas da América do Sul, em exemplares distintos, como trompetes, clarinetes,
sificação numeral, nome genérico, dados de localidade, cultura e/ou etnia, proprietário, flautas e apitos de todo tipo. Além de suas particularidades de performance em con-
inventário, dados de coleta, lugar e data, medidas em geral, detalhamento de confecção, juntos, trio, interlocking, os aerofones presentes na cultura ameríndia amazônica, por
como materiais, adornos, condições de conservação e notação (quando for o caso). Com exemplo, podem ter significações específicas relacionadas a outros elementos da cul-
esses dados, era possível ter informações básicas de procedência e guarda institucio- tura, como ritos de iniciação masculina dentro do Complexo das Flautas Sagradas, que
nal, bem como das condições físicas do instrumento. Como base teórica para a análise, ocorrem no sistema xinguano (MENEZES BASTOS, 1999) ou no Alto Rio Negro (BARROS,

42 43
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

2009), agenciando intencionalidades várias, conectadas com a cosmologia e construção


de pessoa. Conjuntos de aerofones como cariços podem ocorrer em repertórios leves e
de divertimento, como na região do Alto Rio Negro, com tessitura musical coletiva e for-
te conexão com a dança e corporalidade, incluindo, aí, a produção sonora corporal ativa
durante a performance, a partir do uso dos adornos corporais, estes também possuidores
de intencionalidade, por serem herança transgeracional prenhe de força e significados.
Os aerofones podem estar presentes em situações e contextos cotidianos desprovidos
de caráter sagrado ou mesmo em momentos de individualidade do músico. Observando
esses diversos contextos musicais da população ameríndia contemporânea, podemos
imaginar a vastidão de possibilidades para o uso desses aerofones.

5. Idiofones
No âmbito das coleções visitadas, foram identificados idiofones falomorfos com ou
sem representação feminina1, com corpo constituído de caixa de ressonância e pre-
sença de pedrinhas de argila em seu interior. Em alguns casos, com a existência de
membros inferiores e em razão da própria confecção do suporte, com estrutura in-
terna de fechamento entre a “cabeça” e o “tronco” da estatueta, as pedrinhas internas
correm mais lentamente, causando diferenças de produção sonora. Em razão dessa
especificidade, foi feita a classificação como idiofone de golpe indireto – chocalho/
maracá com ou sem obstrução interna. Outro ponto relevante a ser mencionado é a
presença de orifícios nas laterais ou no “pescoço” das estatuetas e, em alguns casos,
bem no alto da cabeça. Cristiana Barreto (2010) pondera que tais orifícios tenham fun-
ção cerimonial no momento do descarte, considerando esse ato final após a cerimô-
nia xamânica, quando o objeto perderia sua intencionalidade. Os mestres ceramistas
Inêz e Levi Cardoso consideram que tais orifícios têm função específica no contexto
da confecção das peças, evitando que estourem durante a queima, ao possibilitar a
evasão dos gases. Do ponto de vista musical, consideramos que os orifícios podem
fazer diferença na produção sonora quanto ao seu volume. Temos como exemplar
uma estatueta unípede tapajônica em formato de cabeça sobre um pé, classificada
como idiofone de golpe indireto – chocalho sem obstrução interna (Fig. 4). Esse ins-
trumento pertence à coleção Curt Nimuendaju da reserva técnica Mário Simões do
MPEG. A cavidade da cabeça constitui a caixa de ressonância sobre a base maciça do
pé. Os objetos de entrechoque são cilindros de argila. Existem dois orifícios pequenos,
fundos e afunilados na parte de trás da caixa de ressonância, o que impede que os
objetos saiam. Os orifícios formam o som mais agudo e audível.

Fig. 3: Idiofone tapajônico. Reserva Técnica Mário Simões, MPEG. Fotografia: Lohana Gomes, 2014.

1
Para maiores estudos acerca das representações feminina e masculina nas estatuetas amazônicas, veri-
ficar obras de Denise Schaan (2009) e Cristiana Barreto (2010).

44 45
Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

6. Difusão científica 7. Inventário: acervos físico e audiovisual do projeto Arqueologia


O projeto Arqueologia Musical Amazônica, realizado entre 2015 e 2018, previa a con- Musical Amazônica
fecção de réplicas de peças em cerâmica da coleção Mário Simões do Museu Paraense O projeto Arqueologia Musical da Amazônia encerrou-se em 2018, porém, dada a di-
Emílio Goeldi. Inicialmente, foi planejada a realização de raio-x das peças, porém, tal versidade e a riqueza dos seus materiais em posse do Labetno, diferentes ações foram
intento não foi possível, devido à logística de traslado das peças e à disponibilidade de realizadas nos anos seguintes. Considerando o fato de que as imagens das peças ar-
aparelho de raio-x não configurado para uso humano. Ora, sendo a cidade de Belém do queológicas já haviam sido inventariadas e analisadas do ponto de vista organológi-
Pará também um polo de produção em cerâmica de tradição tapajônica, marajoara e de co, foi possível integrar tanto as fichas quanto as fotografias ao inventário do Acervo
outros povos antigos amazônicos, foi deliberada, então, a confecção desses exemplares Arqueologia Musical Amazônica, denominado AAMA. Além das imagens fotográficas, o
por mestres ceramistas do Paracuri, no distrito de Icoaracy. O convite foi feito para a sra. acervo conta, também, com horas de vídeos dos mestres ceramistas em sua produção no
Inêz Cardoso e seu filho, Levi Cardoso, respectivamente, esposa e filho do falecido e res- Museu Paraense Emílio Goeldi. Para esse fim, foi utilizada planilha em Excel criada pelo
peitado mestre Raimundo Cardoso, cujo nome foi dado, em homenagem, a uma escola professor Fernando Lacerda para o Labetno, nela contendo todos os metadados do acer-
do local. Para que esse intento fosse possível, foi constituído um plano de trabalho no vo em tela. Pretende-se disponibilizar, no site do laboratório, esses metadados para co-
âmbito do projeto Arte em Toda Parte: temas transversais como colaboradores sociais, nhecimento público, contudo, o acesso ao material específico do acervo dar-se-á a partir
para que a bolsista Camila Costa pudesse acompanhar e registrar todo o trabalho dos do protocolo de acesso ao Acervo do Labetno, que se encontra em fase de constituição.
mestres. Inicialmente, foram selecionadas peças representativas do grande conjunto Assim, o Labetno oportunizará o acesso ao bem público, que é o seu próprio acervo.
analisado pela equipe: aerofones de um e dois orifícios de digitação; conjunto de aero-
fones; um zumbidor; e idiofones falomorfos tapajônicos e marajoaras. Após autorização
do Museu Goeldi, os mestres coletaram a argila necessária e iniciaram a primeira etapa 8. O blog e o catálogo
do processo: a modelagem nas dependências do Museu Goeldi, no Campus de Pesqui- Em 2019, foi criado o blog Arqueologia Musical Amazônica, com a intenção de oferecer a
sa, situado à Avenida Perimetral, bairro Terra Firme, em Belém. Essa etapa consistiu na possibilidade audiovisual a partir da manipulação das réplicas do Acervo do Labetno. A
observação dos exemplares originais e na modelagem da argila, ainda no espaço do manipulação das peças originais não é possível, em razão de sua antiguidade e estado
museu. Posteriormente, na segunda etapa, os mestres encaminharam as réplicas para de salvaguarda, portanto as réplicas oferecem essa possibilidade de experimentação
sua casa, no bairro do Paracuri, distrito de Icoaracy, onde possuem um forno e um espa- sonora, dando condições de identificação de registros, timbres e potência do som das
ço de confecção de cerâmica. Para adquirir tons de envelhecimento, deixavam as peças peças sonorizantes. Tais registros foram feitos pelo doutorando Leonardo Venturieri, que
enterradas no solo do quintal por um tempo, além de outras técnicas. Após a queima, fo- também foi o criador do blog, que pode ser acessado a partir do site do Labetno2. Além
ram confeccionados três conjuntos de réplicas: um conjunto para a instituição parceira disso, o blog oferece informações básicas sobre o projeto e sobre os instrumentos mu-
Museu Paraense Emílio Goeldi; outro conjunto para o Laboratório de Etnomusicologia sicais.
(Labetno) da Universidade Federal do Pará (UFPA); e o último para os mestres, a pedido Com o intuito de possibilitar a difusão das peças encontradas nas reservas técnicas
deles. O conjunto de réplicas que se encontra no Labetno é utilizado para eventos de Mário Simões, do Museu Paraense Emílio Goeldi, e do Museu Nacional, da Universidade
divulgação científica em escolas e ações organizadas pelo laboratório, tendo passado a Federal do Rio de Janeiro, foi feito o Catálogo Arqueologia Musical Amazônica (COHEN;
integrar o Acervo Arqueologia Musical Amazônica, pertencente ao Labetno. Tais réplicas VENTURIERI, 2021), com todas as imagens e classificação organológica das peças, com
foram utilizadas em exposição didática durante a Semana dos Povos Indígenas da Escola autorização das respectivas instituições.
de Música da UFPA, em 2019, e na Exposição de Ciência e Arte Labetno de Portas Abertas:
música é conhecimento e cultura, realizada, em 2019, no Instituto de Ciências da Arte da
UFPA, localizado na Praça da República, durante o mês de outubro, quando havia grande
presença de turistas e da própria população de Belém, em razão das festividades do
Círio. Assim, houve uma grande assistência à adesão de visitantes na exposição. Preten-
de-se repetir essa experiência tão logo quanto for possível.

2
Disponível em: https://arqueologiamusicalamazonica.blogspot.com/.

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Amazônias inaudíveis: vestígios de mundos sonoros antigos Líliam Cristina Barros Cohen

Considerações inais JALLES, Cíntia; SILVEIRA, Maura Imazio da; NADER, Rundsthen V. de. Olhai pro céu, olhai
O presente artigo teve como objetivo apresentar informações acerca de instrumentos pro chão: astronomia e arqueologia: arqueoastronomia: o que é isso?. Rio de Janeiro:
pré-coloniais tapajônicos e marajoaras quanto aos seus possíveis contextos de uso; as- Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2013.
pectos relativos aos referidos cacicados e às funções e aos usos desses objetos sonoros;
e aspectos organológicos, além de possibilitar uma reflexão sobre a necessidade de MENEZES BASTOS, Rafael. A musicológica Kamayurá: para uma antropologia da comuni-
maiores pesquisas nesse rico e abrangente campo de estudo, de caráter interdisciplinar. cação no Alto Xingu. Florianópolis: UFSC, 1999.
A partir de uma proposta mista entre as subáreas da etnomusicologia, etnologia indíge-
na e arqueomusicologia, bem como de minha experiência no campo das musicologias MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do Mbaraka: música, dança e xamanismo Gua-
indígenas, foi feita uma primeira aproximação no sentido de compreensão desses mo- rani. São Paulo: Edusp, 2009.
dos de confecção das peças sonorizantes e, num diálogo com a literatura arqueológica,
da busca pela compreensão desses contextos rituais. Além desses pontos, foi feita a des- OLIVEIRA, Regina; PEREIRA, Jorge L. Galindo. A paisagem da fazenda Taperinha. In: PA-
crição de todas as ações de difusão e divulgação científica, tendo em vista a PAVERO, N.; OVERAL, W. L. (org.). Taperinha. Belém: MPEG, 2011. p. 401-411.
necessidade de maior conhecimento desse campo de estudo pelo próprio povo
paraense e brasileiro. OLSEN, Dale. Music of the Warao of Venezuela: Song People of the Rain Forest. Florida:
University Press of Florida: 1996.

Referências PAPAVERO, Nelson; OVERAL, William L. (org.). Taperinha. Belém: MPEG, 2011. 459 p.

BARROS, Líliam. Repertórios Musicais em Trânsito: música e identidade indígena em São PEREIRA, Edithe. A arte rupestre em Monte Alegre: Pará, Amazônia, Brasil. Belém: MPEG,
Gabriel da Cachoeira. Belém\Pará: 2009. 2012. 211 p.

BARRETO, Cristiana. Cerâmica e complexidade social na Amazônia Antiga: uma pers- SCHAAN, Denise Pahl. Marajó: arqueologia, iconografia, história e patrimônio. Erechim:
pectiva a partir do Marajó. In: PEREIRA, E.; GUAPINDAIA, V. (org.). Arqueologia amazôni- Habilis, 2009. 150 p.
ca. Belém: MPEG, 2010. p. 193-212. v. 1.
SILVEIRA, Maura Imazio da; SCHAAN, Denise Pahl. A vida nos manguezais: a ocupação
BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no humana na Costa Atlântica Amazônica durante o holoceno. In: PEREIRA, E.; GUAPIN-
Estado do Maranhão. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria de DAIA, V. (org.). Arqueologia amazônica. Belém: MPEG, 2010. p. 35-48. v. 1.
Estado da Cultura, 1990.

COHEN, Líliam Cristina Barros; VENTURIERI, Leonardo Vieira. Arqueologia musical ama-
zônica: catálogo de instrumentos tapajônicos e marajoaras pré-cabralinos do Museu
Paraense Emílio Goeldi / Museu Nacional. Belém: Universidade Federal do Pará, Pro-
grama de Pós-Graduação em Artes, 2021. 91 p. Disponível em: https://livroaberto.ufpa.
br/jspui/handle/prefix/1029. Acesso em: 14 ago. 2023.

GARCIA, Miguel Angel. Etnografías del encuentro: saberes y relatos sobre otras músicas.
Buenos Aires: Del Sol, 2012.

GOMES, Denise Maria Cavalcanti. Os contextos e significados da arte cerâmica Tapajó.


In: PEREIRA, E.; GUAPINDAIA, V. (org.). Arqueologia amazônica. Belém: MPEG, 2010. p.
214-234. v. 1.

48 49
Música na Amazônia durante
o século XVIII

Márcio Páscoa
Universidade do Estado do Amazonas

2 como citar
PÁSCOA, Márcio. Música na Amazônia durante o século
XVIII. In: DUARTE, Fernando Lacerda Simões; RUAS JU-
NIOR, José Jarbas Pinheiro. Norte. Vitória: Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p.
50-101. (Histórias das Músicas no Brasil).
Música na Amazônia durante o século XVIII Márcio Páscoa

O Brasil foi, na maior parte do tempo, um conceito dependente dos ideais do mundo A criação do bispado paraense, instalado em 1724, também atrairia, para Belém, a
moderno português. Portugal, entretanto, deixou, lentamente, sua ascendência de nação importância que pertencera antes a São Luiz, outrora capital do estado do Maranhão e
central, ao fim da era das navegações, passando a ser visto como nação semiperiférica Grão-Pará, criado em 1621 (e renomeado em 1654), separado do Estado do Brasil.
dentro do território europeu, ainda em finais do século XVIII. Isso se deu, em parte, por Os limites territoriais a oeste estavam sendo expandidos pelo processo de ocupa-
não ter adotado a mecânica industrialista do capitalismo moderno dessa época. Mas a ção, que, na era pré-pombalina, teve decisivo auxílio das ordens religiosas com colégio
sua política singular de colonização também produziu o atual estado semiperiférico do e convento instalados em Belém e São Luiz.
colonizador e de sua ex-colônia, o Brasil. Ambos passaram a viver, a partir dali, o curio- Chegadas ao longo do século XVII, as ordens religiosas que assistiam ao Grão-
so dilema de Próspero e Caliban, para me apropriar de um elemento de comparação -Pará e Maranhão tiveram sua jurisdição missioneira definida em documento de 1693,
cunhado por Sousa Santos (2008), com base na Tempestade de Shakespeare. O singular, emitido por Pedro II. Os jesuítas ficaram com toda a margem sul do Rio das Amazonas.
no caso, é que cada país viveu, e ainda vive, ambas as experiências. Estavam presentes também na chegada colonizadora ao Mato Grosso e eram os religio-
A expansão territorial do Brasil como colônia portuguesa obrigou não só o dilata- sos espanhóis que se avistavam nas fronteiras das colônias de Castela e Portugal. Os
mento do espaço, mas uma estratégia de ocupação emergente. A ideia de Bourdieu, de mercedários, ou membros da Piedade, assentados em convento de Gurupá, ficaram com
que o estriamento do espaço, ou seja, a qualidade de sua ocupação, é que vai definir o as terras junto à fortaleza dessa localidade, encarregando-se das áreas próximas aos
seu conceito, pode ser aqui refletida em um aspecto mais avançado. O espaço não é de- rios Trombeta, Xingu e Gueribi, ocupando, assim, boa parte do oeste do atual Pará. Aos
finido unicamente pela qualificação de sua ocupação, mas por aquilo que se entendeu capuchos de Santo Antônio, primeiros religiosos a chegar à região, em 1615, coube o
ser essa ocupação. Resulta ser o que a estratégia de ocupação elaborou, independente norte do Rio Amazonas e o Sertão do Cabo Norte, inclusos o Rio Jari, o Parú e a Aldeia de
de sua aplicação, ao mesmo tempo que é ainda a maneira como se pode interpretar tal Urubuquara. Essa área foi, posteriormente, dividida com os antoninos da Conceição, em
ocupação, isto é, uma questão de recepção. 1707, que também se encarregam de duas missões no Maranhão. Por serem cismáticos
A música foi componente cotidiano ativo dessa expansão no mundo luso-brasilei- da ordem na Europa, obtiveram direito à divisão na Amazônia, cabendo-lhes diversas
ro, e aqui, em especial, na Amazônia, e o modo como ela se nos apresenta nos registros aldeias, quase todas no norte do atual Pará, no Maranhão e no Amapá, chegando mes-
históricos que possuímos, ainda que escassos, permite ver em que medida ela foi usada mo à Guiana. Por fim, os carmelitas obraram toda a região do Rio Negro, mas subiram
para construir identidade para tais espaços. o Solimões, avançando, assim, sobre terras de Castela, tornando-as lusitanas, até, pelo
A dimensão territorial daquilo que se entende por Amazônia foi lavrada, até o menos, a Vila de Ega, atual Tefé. Entretanto, de modo não oficial, já estavam presentes
reinado de d. José (a partir de 1750), por forças político-religiosas que emanavam da tão longe quanto em São Paulo dos Cambebas, atual São Paulo de Olivença, nos limites
figura do monarca/patriarca português, detentor do direito do padroado. No auge da do Brasil com o Peru.
expansão da Amazônia no século XVIII, estavam compreendidos, em seus domínios, o O cotidiano civilizador dessas ordens, em solo amazônico, tinha a frequente, em-
Maranhão e terras do Piauí, a nordeste, Grão-Pará e terras da capitania do Rio Negro, bora nem sempre obrigatória, participação da música. Dentre os jesuítas, sabe-se que
com sede em Barcelos, a oeste, ficando os limites de sudeste do bispado do Pará nas o padre António Vieira, quando visitador da ordem no Maranhão e Grão-Pará, deixou,
Minas de São Félix, em São José do Tocantins (hoje em Goiás) e na Serra da Nativida- em sua visita a Belém, um regramento para o colégio da ordem, em que defendia a im-
de, a última freguesia (NORONHA, 1862: 5). As terras do atual Mato Grosso, chamadas portância de “ensinar a cantar e tanger instrumentos para beneficiar os cultos divinos”
também, há algum tempo, de Amazônia Meridional, foram colonizadas, inicialmente, por (LEITE, 1943: 112-113). Isso tinha lugar todos os dias de manhã, após a doutrinação da
bandeiras paulistas, e a sede do seu bispado, nos primeiros tempos, foi o Rio de Janeiro, missa e o ensino de orações ordinárias. Pela tarde, antes do pôr do sol, estipulava Vieira,
mas a proximidade de suas vilas com os afluentes da margem esquerda do Rio Amazo- os meninos sairiam pela aldeia a cantar o Credo e mandamentos (LEITE, 1943: 112-113).
nas/Solimões fez com que, à medida que o século XVIII avançava, passasse a se tornar Isso parece ter se repetido não só na capital, mas nas aldeias, tanto para filhos de por-
região sob a influência econômica e política do Grão-Pará. A navegação do Mato Grosso tugueses quanto para indígenas.
à Amazônia começou, de modo exploratório, em 1749, tornando-se tão frequente, nos Para além dos passeios para cantar ladainhas e outras orações, foi introduzido, ainda
anos posteriores, que, para além de ser uma rota comercial importante, fez com que Be- no século XVII, o terço cantado, a partir das cinco horas, por todos os estudantes do colé-
lém se tornasse ponto de entrada de autoridades nomeadas para o Mato Grosso, e até gio ou das missões, à presença da imagem de Nossa Senhora da Luz (BETTENDORF, 1990:
mesmo de religiosos, que alcançavam a atual Bolívia, quase certamente para as missões 78), culto iniciado por Vieira e devoção que deu nome ao Colégio de São Luiz.
amazônicas desse país.

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Música na Amazônia durante o século XVIII Márcio Páscoa

Sabe-se, ainda, que, algumas vezes, músicos de Nossa Senhora das Mercês eram carmelita, enviou coristas para os aldeamentos onde já havia religiosos da ordem (AHU,
convidados a participar das atividades dos jesuítas (BETTENDORF, 1990: 78), refletindo 1709). A ajuda, certamente, relacionava-se à escassez de indivíduos que pudessem as-
as dificuldades na formação de novos membros entre a comunidade, pois a governança sumir as funções musicais, condição agravada pelas frequentes fugas de religiosos para
colonial não dispensava ninguém de assentar praça, tirando, assim, muitos indivíduos os campos ou outras regiões, como as minas, contando-se, entre eles, ao menos quatro
dos estudos. músicos até 1721, sendo dois organistas e dois coristas (AHU, 1721). Freire, em carta a
Esse parece ter sido o caso acontecido em Vigia, onde, em 1732, os religiosos das d. João V, justifica a sua despesa: “porque como este Estado está sem Bispo se acha com
Mercês fundaram um hospício dedicado à Nossa Senhora da Conceição, a pedido dos muito poucos sacerdotes e para os mandar ordenar à Baia é tão custoso...” (AHU, 1709).
moradores do lugar, para que lhes fosse ensinado ler, escrever, fazer as quatro operações Mas, mesmo com a criação do bispado na década seguinte, o problema não se resolveria
matemáticas e mais gramática latina, teologia, filosofia e solfa (BAENA, 1838: 217), a de imediato.
despeito de já existir, na mesma urbe, um oratório carmelita e um colégio jesuíta, que A bula papal de 4 de março de 1719 criou a Diocese de Belém, conforme pedido
formara cerca de meia centena de pessoas. Mais de meio século mais tarde, o francis- de d. João V, e o primeiro bispo de Belém foi nomeado em 1720 pelo rei português. Mas
cano Caetano Brandão atestava os resultados dos empreendimentos de disseminação o carmelita Bartolomeu do Pilar (1667-1733) deu entrada na cidade somente em 29 de
musical em Vigia, onde ouviu “cantar os meninos os louvores de Deos que o fizerão agosto de 1724, para assumir o novo bispado. Trazia já consigo diversos ocupantes dos
lindissimamente” (BRANDÃO, 1991: 73), impressionando-se, nos dias seguintes, com os cargos que a norma vaticana criara. Vieram o arcediago e mais 18 padres destinados
cânticos dos moços de coro da Matriz, tanto no templo quanto na procissão (BRANDÃO, às Dignidades, Canonicatos e Benefícios, e o corpo capitular, previsto pela bula de ori-
1991: 73). gem da Catedral, devia compor-se, ainda, de 40 ministros, surgindo logo, na hierarquia
Tal repertório pode não ter sido, necessariamente, polifônico ou mesmo atual, se mais alta dos cônegos graduados, a figura do chantre. No documento, também estavam
refletir os termos da ação musical mercedária para a Amazônia àqueles dias. Chegados previstos nove capelães cantores para os serviços e um organista (BAENA, 1838: 210).
à região ainda na primeira metade do século XVII, os piedosos tiveram coligidos os seus O culto divino foi servido a partir da posse do bispo, em 21 de setembro daquele ano,
cantos em um livro a cargo do paraense frei João da Veiga. A publicação, realizada em na Capela de São João Batista, na Paróquia de Nossa Senhora da Graça, uma vez que
Lisboa, em 1780, na oficina de Francisco Luiz Ameno, trata-se de um volume de 495 a respectiva igreja estava destruída e outra ainda não havia lhe substituído. A escolha
páginas com 83 obras musicais relativas às festas da ordem, que se intitula1: Rituale desprezava o imponente conjunto jesuítico de Santo Alexandre, já de pé, cuja sacristia
/ Sacri, Regalis, AC Militaris Ordinis / B.V.Mariae de Mercede / Remptionis Cativorum, / Ad terminara de ser sofisticadamente decorada em 1719, e mesmo o complexo do Carmo,
usum / Fratrum ejusdem ordinis / in Congregationi Magni Paraensi commorantium, / Jussu / por se tratarem de jurisdições externas às da paróquia fundadora.
R.B. Praedicatoris Fr. Joannis da Veiga / in Civitate Paraensi ejusdem Ordinis Commendatoris As forças musicais continham, para além do chantre e dos capelães músicos, mais
ela- /boratum & in luce editum2. oito moços de coro – acrescidos de mais dois, a meio do século –, organista, mestre
A esse tempo, a ação dos mercedários diminuía sensivelmente na Amazônia, e a de capela e subchantre, este escolhido entre 16 capelães. Pelo que se sabe, somente
obra de Veiga pode ser das últimas iniciativas para confirmar os compromissos da or- dois músicos vieram de Lisboa, chamados Braz Ribeiro de Almeida e Antônio Marques
dem na região (BRANDÃO, 1991: 310). (QUEIROZ, 1961: 20). Os demais músicos podem ter vindo do Maranhão e, mais acerta-
Os carmelitas, que começaram a erguer seu convento em Belém em 1626, também damente, da prelazia de Pernambuco, onde Bartolomeu do Pilar servira, por mais de uma
se valeram da música no seu processo de ocupação. Com a divisão de jurisdição esta- década, como qualificador do Santo Ofício.
belecida em 1693 pelo rei português, a Ordem do Carmo passou a estabelecer aldeias Mas também é certo que o corpo artístico da Sé paraense tenha se valido de
no Rio Solimões e por todo o Rio Negro. Logo, em 1708, o governador do Grão-Pará, naturais do lugar, pois só assim o bispo poderia promover exonerações no grupo quando
Cristóvão da Costa Freire (?-1724), de acordo com a requisição do vigário provincial necessário, como no caso do rabequista (violinista) Eduardo Lopes de Faria. Bartolomeu
do Pilar não relevava indisciplinas e, ainda que tenha lamentado por causa do seu ta-
1
O volume foi adquirido, junto a um alfarrabista de Lisboa, em meados dos anos 90 do passado século, lento, desligou o músico porque, além de se tornar faltoso e desobediente em extremo,
pelo pesquisador Vicente Salles, por 1.500 dólares, de recursos próprios, e era, com justa razão, um dos ausentou-se do serviço de residência em agosto de 1731 para ir à célebre Festa da Vigia,
itens mais estimados do seu espólio, não só pelo esforço pessoal da aquisição, como pela raridade ímpar
do exemplar.
fato culminante para a demissão (QUEIROZ, 1961: 21).
Para conter a indisciplina e as faltas, Bartolomeu do Pilar, que chegava mesmo
2 Ritual da Sagrada e Real Ordem Militar de Nª Sª das Mercês, da Redenção dos Cativos, para uso dos fra-
des da mesma ordem residentes na Congregação do Pará, por mandado do R.P. pregador fr. João da Veiga, a ler música da estante junto ao efetivo catedralício, não poupou cabeças: desligou o
comendador da mesma ordem, na cidade do Pará.

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cônego-diácono Inácio Lix de Castelo Branco, ainda em 1726, na mesma altura em que ta-se de um trabalho de autoria de Luiz Cesar de Menezes, editado em Lisboa, em 1737,
depôs o chantre Antônio Rodrigues de Azevedo, com o agravante de este se opor às suas por Bartolomeu Perez Petroch: Liber / In quo continentur / Missae cantariu solitae / Cum
decisões (QUEIROZ, 1961 20). A disciplina da capela continuaria austera pela década Cantico Gregoriano Commofito / Per Fr. Aloysium Cesar de Menezes / Jusu A. R. P. FR. Antonio
seguinte, quando, em 1732, os cantores João e José Carneiro Moraes, sobre quem pesa- de Araújo / Actualis Prioris hujus Carmelitani / Paraenfis Conventus4 (CA-15346).
vam diversos motivos desabonadores, inclusive o de não querer aprender o cantochão, O volume, de 48 x 33cm, contém pouco mais de 50 páginas com antífonas, motetos
tiveram o mesmo destino dos precedentes (QUEIROZ, 1961: 20). e cantos para as festas de santos. A notação quadrada em preto foi disposta sobre
O caso mais sério veio após o falecimento de Bartolomeu do Pilar, em 1733, e pa- pentagrama em vermelho. Os demais livros que o acompanham não trazem menção
rece ter sido o que envolveu duas das maiores dignidades da Sé. Em 1736, o arcediago individual a lugar de uso. Três deles – um com 19 páginas, outro com 58 e o terceiro
Francisco Salgado e o arcipreste Luiz Borges, estando no coro durante a Missa da Hora com 101 – estão sem índice, sem capa e sem origem. Outro volume, de 75 páginas,
da Terça, fustigaram-se com os breviários, e, fugindo o primeiro, caiu diante do altar de traz a indicação de “Missas festivas”, enquanto o item remanescente, de 43 folhas, é
Santa Anna, ferido à faca pelo segundo, sendo ambos excomungados posteriormente o único contendo polifonia, a três e quatro vozes, sob a indicação de ser uma missa. A
(BAENA, 1838: 219-220). proximidade de fatura dos volumes permite aludir à mesma proveniência e ao mesmo
Para conter os repetidos desfalques do efetivo da capela, foi chamado, à posição destinatário. O único autor referido está no primeiro volume, o frei Luiz Cesar de Mene-
de chantre da catedral, o padre paraense Lourenço Álvares Roxo de Potfliz (1700-1756). zes, considerado “perito na Arte de Canto Cham” (NERY, 1980: 51), que compunha com
Filho de pai francês, radicado no Pará por volta de 1692, e mãe brasileira de direta frequência, a pedido dos prelados de sua ordem, não se furtando, ainda, de mandar es-
ascendência portuguesa, o músico herdou o nome do avô materno – Lourenço Álvares tampar os livros que editou pelas diversas prensas existentes em Lisboa. Da sua lavra,
Roxo (PT/TT/TSO-CG/A/008-002/3603) – e teve sua educação no Colégio dos Jesuítas saíram muitos volumes com ladainhas, antífonas, credos, missas completas, sequências
de Santo Alexandre, de modo que, ao tempo da chegada do primeiro bispo do Pará, já e hinos diversos, sendo alguns identificados na mesma data que o volume destinado ao
devia ser organista ativo (SALLES, 1980: 67). Foi dele a iniciativa de criar, em 1735, ao Pará ( NERY, 1980: 51).
lado de um seu irmão de sangue, o ensino regular de música para formar moços de coro A chegada desse material parece coincidir com o adensamento e a regularidade
– a Schola Cantorum –, assumindo, assim, a preparação de quadros para as necessidades das atividades musicais dos carmelitas da Amazônia.
do bispado. O segundo bispo do Pará, frei Guilherme de São José Freire, que deu entrada na
Entre os aspectos musicais de que Bartolomeu do Pilar cuidou pessoalmente, es- cidade em julho de 1739, constatou que, nas missões carmelitas do Rio Solimões, os ín-
tava a formação do repertório. Sabe-se que, por mais de uma vez, encomendou, ao com- dios “todos os dias duas vezes vaõ á Igreja, onde alem da Santa Doutrina digo da Santa
positor Francisco Leal, seu irmão do Carmo de Lisboa, o repertório inicial da sua Sé: Doutrina cantaõ varios Hymnos, e Oraçoes” (AGOCII, 1748).
“[Francisco Leal] compos o Responsorios / das Matinas do Natal à instância do Sr. Bispo Frei Luciano de Santo Alberto confirmava, à mesma altura, que, em seus trabalhos
do Gram / Para D. Fr. Bartholomeu do Pilar, e foram os primeyros q se / cantaram na sua nas missões, ele e seus irmãos preocupavam-se com os gentios das aldeias, “fazendo-os
Igrª, e pª o mesmo Bispo a Nouena da Srª / Stª Anna a quatro vozes” (NERY, 1980: 48). hir todos os dias duas vezes á Igreja, aonde alem da Santa Doutrina que aprendem lhes
Ainda que não se tenha mais notícias a respeito da restante música que se ouviu tem ensinado varios Hymnos, e Antiphonas em Latim que cantão” (AGOCII, 1748).
na catedral do Pará, deve-se presumir que ao menos uma boa parte da música ouvida Frei Antônio de Araújo, vigário provincial do Maranhão, falando do Rio Negro, conta
no norte brasileiro, àquela altura, tenha vindo da Europa, ou mesmo toda, como sugere que, na igreja em Mariuá, a cargo do frei José da Madalena, “indispensavelmente se can-
o cronista jesuíta José de Moraes (1708-1759), formado pelo colégio do Maranhão: “não ta o terço de Nª Sª todas as tardes, além de outras muitas devoções que nela exercitam e
tem inveja a mais miúda e delicada solfa da corte, donde se extraíram para esta catedral cantam os seus Aldeanos e nos Sábados, Domingos e dias Santos os faz cantar também
[do Pará] os melhores e mais harmoniosos papeis e cantorias” (MORAES, 1860:160). Missa” (PRAT, 1941: 94). Araújo revela, em carta de 2 de outubro de 1741, que o frei José
Não só a polifonia foi mandada vir, mas também o cantochão, para se usar nos da Madalena também estimulara a prática de música em outra aldeia onde obrara: “no
conventos e nas missões. Nos arquivos da prelazia do Carmo, em Belo Horizonte, sobre- dia de Nossa Mãe Sma. faz também ajuntar os mesmos missionários na Missão de Nossa
vivem seis livros de cantochão, dos quais um é endereçado ao convento do Pará3. Tra- Senhora do Carmo do Camará, para lhes conferir o mesmo benefício da absolvição geral

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Eles são identificados, no acervo em que residem, sob as cotas: CA-15346; CA-15341; CA-15342; CA 4
Livro em que estão contidas as habituais missas cantadas com canto gregoriano, composto por Luiz
15343; CA-15344; e CA-15345. Cesar de Menezes / A.R. p. fr. Antônio de Araújo, atual prior dos carmelitas do convento paraense.

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e solenizarem a sua festa, com sermão e Missa cantada” (PRAT, 1941: 35). O ouvidor e intendente Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, em seu périplo pelos
A prática musical em Mariuá manteve-se firme e seguiu exitosa pelas décadas se- rios Negro e Solimões, passando pela região entre 1774 e 1775, informa que o padre
guintes, causando surpresa por quem lá passava. O governador do Grão-Pará, Francisco que dizia a missa na Nogueira era o mesmo que dizia em Ega e destaca que
Xavier de Mendonça Furtado (1701-1769), disse-se surpreso com o coro religioso que
ouviu naquela vila, quando lá esteve em 1753: Enquanto se disse missa cantarão as índias o “Tantum ergo” com har-
monia não vulgar, e de admirar em tal qualidade de gente”, ressalvan-
Logo S. Ex”. seemcaminhou p” a Igreja adoude secantou pelas Inchas da do: “mas he certo que não só no canto, mas em qualquer outra arte,
Aldeya o Tê Deumlaudamos comtudo oprimor edepois selebrou Missa recebem os índios com muita facilidade as instruções, que se lhe dão
comtoda a solinid.e e Rm° P Comissario contada pelas mesnuts mu- (SAMPAIO, 1825: 36).
zicas admirando-se todos claq’ em Pais ta’o remotto decomunicaça’o
e civilide, dasgentes, eta’o faltos deproffessores podessem ser ta ‘bem O repertório era quase sempre de culto mariano. O padre jesuíta Carlos Brentano,
instruhidas (REIS, 1948: 289). provincial da Província de Quito, em dezembro de 1746, escrevia que o carmelita frei
Domingos de Santa Teresa ensinava aos índios, em São Paulo dos Cambebas (São Paulo
Criada a Capitania de São José do Rio Negro, sua sede foi instalada em Mariuá, de Olivença), “os louvores divinos e de Sua Santíssima mãe em cantos harmônicos e que
logo elevada à condição de vila com o novo nome de Barcelos. O governador da capita- convertia suas falas e supersticiosas crenças em um terno e devoto culto do Verdadeiro
nia, Joaquim de Melo e Póvoas, sobrinho de Furtado, também deu conta das habilidades Deus e de Sua Santíssima Mãe”5 (AGOC II, 1746, tradução nossa). Sobre isso, frei Francis-
musicais praticadas na localidade. Em carta ao tio, disse que, para comemorar a vida do co de Santo Elias, escrevendo em março daquele ano, informa mais detalhadamente que,
rei, “se celebrou Missa cantada com Sermão Senho exposto, e Thedeo Laudamus” (PÓ- na citada aldeia de São Paulo dos Cambebas:
VOAS in CARTAS, 1983: 241).
Alexandre Rodrigues Ferreira, mais de duas décadas depois, testemunhou que a com muita devoçam cantaõ todos os dias de tarde na Igreja o Terço
a Nossa Senhora, e nos Domingos o fazem em Procissam pela Aldeia
Catedral de Barcelos dispunha de coro composto de indígenas, que se fazia acompanhar
com a ladainha da mesma Senhora no fim, e a Salve Raynha, Ave Maris
de um órgão de tabocas tangido, igualmente, por uma “índia”, de nome Custódia, “a ponto Stæla, Stæla Cœli e as Antiphonas, O Gloriosa Domina, Sub tuum præ-
de oficiar qualquer missa, rezada ou cantada, sem haver salmo, hino ou motete de uso sidium, Virgo Maria, Tota pulchra es; e na mesma forma cantaõ a Missa
eclesiástico que não o soubessem” (FERREIRA, 2008: 197). que o Padre Missionario diz todos os Domingos, dias Santos, Pascho-
Mendonça Furtado, que viajava com “pessoas do seu séquito [que] o recrearam as, e Festas de Nossa Senhora com a Antiphona Veni Sanctæ Espiritus,
e Asperges me no principio ao uzo Carmelitano, tudo officiado pelos
com danças e concertos de Psalterio, Rabeca e Viola, e outros prazeres da graciosa hu- mesmos Indios com suas Opas vestidas que para esse fim lhes mandou
mana sociedade” (BAENA, 1838: 252), registrou igual satisfação na Vila de Ega, onde fazer (AGOC II, 1741-1752).
constatou coro e orquestra de indígenas com os instrumentos ali mesmo fabricados.
Décadas mais tarde, o bispo frei Caetano Brandão esteve presente na mesma vila, Em muitos desses lugares, a atividade musical começava pelos coros infantis,
agora com o nome de Tefé, e disse que, na igreja de Santa Thereza de Jesus, pequena como em Colares, Soure e Monforte, no Pará (BRANDÃO, 1991: 231). Na bela igreja de
e coberta de palha, como todas as casas da aldeia, “cantarão as índias o Tantum ergo e Monforte, “Cantarão hoje os meninos o Tantum ergo à elevação da hóstia, no que achei
outras letras com tanta graça, que nos causou admiração. Soube que tinham sido ins- muita graça, porque erão vozes lindíssimas, e proferião bem o latim, não obstante se-
truídas em outro tempo por quem entendia música, e que chegarão a cantar missa de rem todos filhos de índios” (BRANDÃO, 1991: 82). Em alguns casos, já se vislumbravam
órgão” (BRANDÃO, 1991: 127). talentos individuais, como em Odivelas, onde Brandão viu que as crianças “cantarão os
Possivelmente, os núcleos de maior concentração, como Ega (Tefé) e Mariuá (Bar- louvores de Deos por differentes modos, e alguns bem engraçados, no que se distingui-
celos), passaram a irradiar práticas musicais. A duas léguas de Tefé, no Lugar da Noguei- rão muito duas meninas, que tinhão lindíssimas vozes, e estavam bem ensaiadas pelo
ra, a “Igreja tem a invocação de Nossa Senhora do Rosário: e a particularidade de estar vigário, sacerdote já idoso e de muito zelo, e probidade” (BRANDÃO, 1991: 67).
o respaldo do altar decorado com pinturas índias; as quais além desta habilidade, tem
a de musicar, pois enquanto se diz missa cantam com muita suavidade várias rezas” 5
Original: “las alabanças Divinas, y de Su Santisima Madre en Cantares harmonicos e que convertia sus
(BAENA, 1961: 320). falsas, y supersticiozas creencias en un tierno, y devoto culto del Verdadero Dios, y de Su Santisima Madre”

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O bispo parecia ter especial apreço por esses coros infantis, tendo trazido, de um O religioso considerou a família “numerosa e excelentemente educada” (QUEIROZ,
seminário de meninos de Lisboa, uma Ave Maria, que agora se espalhava por todo o 1961: 404), ressaltando que “só de mulheres brancas excede de 40 e entre índias, negras,
Pará, porque a cantavam sempre nas vilas e aldeias por onde passava e, por ser de seu escravos e meninos, excede de 200 pessoas” (QUEIROZ, 1961: 404). Mas o que surpreen-
gosto, ficou conhecida como “Ave Maria do Bispo” (BRANDÃO, 1991: 79). deu o bispo foi a música ali praticada:
A estratégia do ensino musical às crianças estimulava a posterior prática musical
na vida adulta e entre leigos, como foi o caso do vasto grupo vocal e instrumental que
Como o dia em que aportamos era sábado, assistimos à ladainha, que se
se formou na fazenda de João de Morais, em Cametá, importante vila do Rio Tocantins.
cantava a coros, dentro e fora da tribuna que têm na capela mor de um
devoto e asseado oratório, função que se executou com tanta devoção e
Aqui, o bispo Brandão, em 1787, viu desempenharem-se “os obséquios divinos com harmonia que nos levou à lembrança aos conventos recoletos da Mãe de
a maior perfeição; vozes lindíssimas, e muitas, e estilo nobre” (BRANDÃO, 1991: 251) e Deus, Sacramento e Conceição da Luz em Portugal (QUEIROZ, 1961: 405).
completou:
tinham luzes de solfa inspiradas por um sujeito da mesma casa (o filho Os Morais produziriam, ao menos, um membro de maior destaque, o chantre da Sé
mais velho e que a governa, moço prendado, muito hábil na dita fa-
do Pará, Joaquim Pedro Morais Bitancourt (ou Bettencourt), que esteve ativo entre 1813
culdade e no toque de diversos instrumentos); gostei infinito de ouvir
cantar ao bandolino o Bendito Sejais por cinco diferentes modos, todos e 1821, quando se tornou membro do governo provisório paraense, vindo a falecer em
engraçadíssimos; uma mulata de cinquenta anos sobressaía incompa- 1833 (BAENA, 1838: 466).
ravelmente (BRANDÃO, 1991: 251). Queiroz revelou, ainda, a existência de mais capelas particulares servidas de mú-
sica, mesmo em lugares mais isolados. No sítio de Luis Vieira, pela baía do Limoeiro, vi-
Brandão fez, ainda, destacada menção à prática dos cantos angélicos, hinos de sitou família em que “se reconhecia devoção da harmonia com que todos os dias canta-
Nossa Senhora e “Benditos sejais”, em muitos outros aldeamentos que visitou, fossem os vam o terço de Nossa Senhora e outras canções que naquele retiro e silêncio infundiam
mais próximos de Belém, como Almeirim, Carrazedo, Cintra, Porto Salvo, Soure, Monforte, sentimentos de religião e piedade” (QUEIROZ, 1961: 196).
Monsarás, Azevedo, Cachoeira, ou nos mais longínquos, como Serpa (Itacoatiara), Ayrão, Em outro momento da visita pastoral pelo seu bispado, em 1761, relatou que:
Alvelos (Coari) e Borba (BRANDÃO, 1991: 54, 60, 69, 76, 79, 82, 87, 115, 127 e 129).
Mesmo na zona rural, a meio caminho entre vilas e lugares, o bispo surpreendeu- entrando pelo Acará dentro, rio alegre e de boas terras, chegamos à
casa de Guilherme Brossem, visitamos a sua capela onde ouvimos mis-
-se com os aldeões praticando música em seu núcleo familiar. Nas cercanias de Cametá,
sa, a qual foi cantada pelas suas índias e mamelucas, quatro vozes bem
na fazenda da viúva do mestre de campo Pedro Sequeira: “acabada a missa, em cujo ajustadas, e no fim várias cantatas devotas e de edificação (QUEIROZ,
templo ouvi cantar as filhas, e outras pessoas da casa o Tantum ergo e differentes letras 1961: 179).
sagradas com belíssima harmonia, que me pareceu estar ouvindo as freiras do seu côro”
(BRANDÃO, 1991: 100). Em algures entre Vigia e Porto Salvo, deu-se resultado parecido: Nessa última ocasião, o bispo, então, decidiu fazer advertências contra a profani-
dade musical, que ele julgava ser preocupante: “sobre o que lhe fizemos uma pequena
Receberão-me com Te-Deum laudamus de música, sendo cantores o pai prática em louvor ao canto honesto, e ao mesmo tempo invectiva contra as sarabandas
dono do sítio, a mai com três filhas, e hum filho, que o fizerão bellamen- e modas do tempo” (QUEIROZ, 1961: 179).
te; também cantarão sobre letras latinas, portuguesas ou espanholas
Queiroz podia estar reverberando casos recentes, como o do padre recentemente
em que lhes achei muita graça; e é de advertir que são pessoas que tra-
chegado ao Carvoeiro, lugar do Alto Rio Negro, que, amasiado com a bebida, já tinha por
balhão no campo, e nenhum músico de profissão (BRANDÃO, 1991: 76).
hábito sair travestido a bailar e tocar por outras vilas (PÓVOAS in CARTAS, 1983: 300).
O beneditino bispo do Pará, João de São José Queiroz, também esteve em Cametá Mas as razões para o mal-estar de Queiroz com a música não religiosa podem ser
décadas antes, entre 1762 e 1763, e teve excelente impressão da propriedade de Morais. mais complexas. A partir do reinado de d. José, houve um grande estímulo à ópera e,
consequentemente, aos gêneros assemelhados, assim como a subida de Sebastião José
Sua casa fica a 4 horas da vila, em agradável retiro, com canaviais nas de Carvalho ao poder se refletiu na perda de apoio, espaço e prestígio das ordens reli-
ilhas vizinhas. Perto destes tem magníficas casas adornadas ao estilo
giosas na Amazônia. Os jesuítas foram os primeiros a se retirar pela expulsão de 1759,
da Corte, com cadeiras de veludo, cortinas de damasco, papeleiras, cô-
modas e cantoneiras com serviço de baixela e porcelana e todo com seguidos dos mercedários, cuja querela com o bispo frei Caetano Brandão lhes rendeu
grande asseio (QUEIROZ, 1961: 404).

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um recolhimento e expropriação antes mesmo de findar o século XVIII. Os carmelitas Batista de Gois, patrocinou, entre 1787 e 1789, a existência de uma orquestra com so-
ainda resistiram mais tempo, mas, em 1832, a ordem foi extinta em Portugal, e, em 1855, listas cantores para as academias que tinham lugar nos espaços do seminário, antiga
o imperador Pedro II proibiu-os de receber noviços. O apostolado dos franciscanos so- propriedade dos jesuítas da igreja de Santo Alexandre. O grupo, em conformidade com
breviveu à laicização da política pombalina, e sua existência na região permaneceu até os padrões da época, iniciou-se com seis ou sete rabecas, dois rabecões (provavelmente
o século XIX. Entretanto, a Provincia da Piedade retirou-se em 1757, enquanto os frades um grande e um pequeno – contrabaixo e violoncelo), duas flautas, acrescentado, depois,
da Conceição se recolheram ao convento. de um par de oboés e cravo, para desempenhar árias italianas e sinfonias, música, man-
A segunda metade do século XVIII viu, então, uma nova estratégia de ocupação, dada vir de Portugal, “dos melhores autores” (BRANDÃO, 1867: 225).
com a refundação de vilas pela Amazônia, a reorganização do estado do Grão-Pará e O teatro musical parece ter se disseminado nessa região como noutras partes do
Maranhão, a criação das capitanias do Rio Negro e do Mato Grosso e a chegada de go- reino. Na vila de Mazagão, transferida do Marrocos para a Amazônia em 1769, os festejos
vernantes provenientes de um círculo próximo ao poder real, fossem eles da nobreza da aclamação de d. Maria I, em 1777, tiveram representadas Dido desesperada, destruição
tradicional ou ascendente, e mesmo dos representantes do clero. Com eles, chegaram de Cartago, Enéas em Getúlia, O mais heróico segredo, ou, Artaxerxe e Demofonte em Trácia,
também vários militares com preparação superior, para servir nas demarcações das ter- esta última chamada nominalmente de ópera e a mais representada, três vezes (PALMA
ras, erigir prédios de valor simbólico e utilidade pública, entre os quais igrejas, e urba- MUNIZ, 1916: 424), embora todas pertençam ao repertório que se usou chamar de ópera
nizar vilas e lugares. ou teatro de cordel.
Essa nova população também veio dar novos hábitos seculares às vilas e aos luga- Mais adiante, em 1786, na cidade de São Luiz do Maranhão, Demofoonte (BRITO,
res onde residiu. O bispo Caetano Brandão conta que, passando em 30 de novembro de 1989: 82-83) foi novamente representada, sem que sejam sabidos maiores detalhes ou
1788 por Barcelos, foi recebido pelo governador da capitania e diversos oficiais6. Todos conexões com o acontecido no Amapá. Foi, aliás, por ver um pequeno teatro em Macapá
reunidos pela noite na casa do comissário de campo (das demarcações), recitaram ao que o governador provincial João Pereira Caldas (1724-1794), nobre da Casa de Sende,
bispo vários discursos, e, nos seus dizeres: “porém nada me tocou tanto o coração como encarregou o arquiteto italiano Antonio Landi (1713-1791) de erigir um teatro em Be-
certas letras, que na derradeira noite cantarão alguns hábeis militares com tom assaz lém (BAENA, 1838: 291-292).
terno, e mavioso, acompanhado de diversos instrumentos” (BRANDÃO, 1991: 235). Rodrigues Ferreira surpreendeu-se com o tamanho desse teatro e com as vistas
Com esses novos habitantes da Amazônia, também surgiram as primeiras notícias nele retratadas, mas não parece ter assistido a nenhuma representação de profissionais,
do teatro musical, pois ele permitia a discussão sobre o lugar e a importância dos sen- pois ressalva que “os que nele representam algumas vezes são curiosos, que dedicam
timentos, direitos, deveres, honra, virtude, entre outros, visando à educação moral das esses obséquios aos senhores generais” (SALLES, 1980: 46). Escrevendo pouco tempo
assistências (KIMBELL, 1991: 195). depois, em 18 de julho de 1787, ao mesmo Rodrigues Ferreira, o professor de filosofia
Queiroz menciona, em tom de reprovação, as representações cênicas decorridas do Seminário do Pará, José Eugênio de Aragão e Lima, atestava que o teatro se manti-
entre 1762 e 1763 em Belém, “que ainda não tínhamos revisto as comédias na ausência nha em uso, dizendo que haveria “tragédia santa na Casa da Ópera, fogos, árias, quatro
larga da visita e que nos constava serem as óperas do judeu Antonio José, depois conti- sermãos, carros triunfantes” (ALMEIDA, 1942: 300).
nuadas por Alexandre Antonio, as que ocupavam o teatro [em Belém]” (QUEIROZ, 1961: Aragão e Lima foi autor de um drama recitado no mesmo teatro (1794) em 1793,
405). quando das comemorações pelo nascimento da herdeira do trono lusitano. Recheado de
Brandão, por sua vez, já parecia não se importar com a mistura repertorial desses trechos corais, a obra precedeu a apresentação das óperas Ezio em Roma e Zenobia, além
novos tempos. Tendo passado a noite numa fazenda da Ordem do Carmo, depois Nª Sª de a comédia A beata fingida (ARAGÃO E LIMA, 1794: 5-18). As duas primeiras, assim
da Conceição da Cachoeira, testemunhou, na capela do lugar, que: “Cantou-se o Te Deum: como a citada Demofoonte, eram textos originalmente de Metastasio, que, a essa altura,
e os escravos e escravas cantarão o Bendito Sejais, e outras modas com tanta graça, e já haviam sido muito usados para óperas de diversos autores. O mais provável, aqui, é
doçura que não pude suster as lágrimas” (BRANDÃO, 1991: 86) que tenham se valido da prática luso-brasileira, corrente àquele tempo, de pastiche –
O próprio bispo, que trouxe um novo mestre de capela para a Sé, chamado João utilização de música de muitos autores, escrita previamente para outros trabalhos – e
contrafacta, que é a tradução ou apropriação de textos em outra obra que não a sua
condição original, com costumeiro uso de inserção de personagens graciosos.
6
Brandão não disse o nome das pessoas nesse episódio, exceto o do tenente-coronel João Batista Martel Com maior número de cantorias previsto, o drama pastoril de Bento Aranha, inti-
(Mardel), que o veio receber na Fortaleza da Barra (Manaus) para o acompanhar Rio Negro acima, até
Barcelos. O governador era, provavelmente, Manuel da Gama Lobo d’Almada (1746-1799), português de tulado Pastores do Amazonas, ganhou lugar na mesma temporada laudatória. Pela metri-
família fidalga.

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ficação das partes de recitativo e ária, além das inequívocas vinhetas dramatúrgicas, é XVIII, e talvez somente os festejos pelo nascimento do infante d. José, em 1763, podem
possível concluir que se tratou de obra cantada (ARANHA, 1794) e pode ter sido igual- ter se equiparado, em fausto, aos sobreditos: “durou o festejo um mês com comédias,
mente arranjada em música de diversos autores, previamente escrita para outros textos. óperas, danças, carros triunfantes, cavalhadas, fogos, com tanto fervor, que já aborreciam
Aranha, nascido em Barcelos em 1769, mudou-se, pouco antes da adolescência, tantas festas rematadas com a chegada de uma grande monção de canoas com bom
para Belém, sendo educado entre os capuchos de Santo Antônio. Antes dos 20 anos, já sucesso” (BARBOSA DE SÁ apud MOURA, ob. cit.: 67).
frequentava as academias promovidas por Caetano Brandão, para debater assuntos de O teatro havia ocupado, definitivamente, o lugar de destaque no convívio social da
natureza filosófica, ocasião em que o franciscano introduziu o ensino de canto vocal no Amazônia colonial. Ele servia tanto no modo de organizar as hierarquias do espaço so-
Seminário do Pará, apartado do ensino de cantochão. A estruturação textual de Pastores cial, onde a verticalização dos estamentos pode ser observada por todos que acodem às
do Amazonas reflete o modelo das serenatas e dos elogios dramáticos em uso àquele funções, como pelo texto recheado de princípios moralizantes, ideais virtuosos e forte
tempo, o que evidencia contato que Aranha deve ter travado com o repertório mandado identidade popular, com a tradução cultural do modelo de ópera séria ao gosto luso-
trazer por Brandão para as academias. -brasileiro, em que as classes baixas ou em ascensão são introduzidas na representação.
Com o crescimento da capitania do Mato Grosso e o tráfego dos rios Madeira e Essa estratégia de reprodução da corte na Colônia visava, sobretudo, a preparar o espaço
Tocantins se intensificando, respectivamente, na direção da capitania do Rio Negro e para que a Colônia viesse a integrar a Metrópole, emulando-a como centro, não pelo
entre Goiás e o Grão-Pará, surgem notícias, cada vez mais amiúde, de representações do seu motor industrialista, como nos estados do norte da Europa, em que o capitalismo
teatro musical em Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, antiga capital mato-gros- institucionalizou tudo, mas como um processo de homologação, em que a instituição
sense. A mais detalhada de todas as temporadas, até mesmo de todo o Brasil colonial, existe à parte do processo econômico, permitindo à periferia ser um pormenor do cen-
diz respeito às homenagens prestadas, em Cuiabá, ao juiz de fora Diogo Lara Ordonhes tro, uma parte fractal dele. O veículo eficaz, entretanto, não esteve contido somente na
(1753-1827) em 1790. As festas, acontecidas entre agosto e setembro, duraram por vol- linguagem verbal, pois, sobre o teatro, já afirmava o Mestre da Música no entremez do
ta de um mês inteiro, com atividades diárias, destacando-se várias óperas e comédias, Theatro Novo: “ninguém te nega o constante poder da Poesia. Mas quem há de sofrer
representadas exclusivamente por homens. Além da relação repertorial, que incluiu en- Catão ou Dido, do grande Metastasio repetido, entre velhas cortinas, sem orquestra?”
tremezes e bailados, sobrevivem apontamentos críticos de muitos dos espetáculos ali (BRAGA, 1871: 75-76).
decorridos, como Ezio em Roma, Zaira e O conde Alarcos, não deixando dúvidas de que
tais títulos foram sempre cantados, o que deve ter se repetido com o restante da tempo-
rada (ORDONHES, 1898-1899: 220-242). As que se chamaram comédias, seguramente, Referências
eram obras com partes de graciosos enxertadas, mesmo que o texto de origem possa
ter sido uma obra séria, como Aspazia na Syria, Zenóbia no Oriente e Tamerlão na Persia. AGOC: II Maranhão Commune 1, Commune Vicariae – 1741-1752 / atestados 1748.
Como os casos anteriores, o mais provável é que tais títulos, no todo ou em parte, te-
nham se baseado nos folhetos homônimos que se publicaram em Portugal, e a música AHU. Maranhão – Papeis Avulsos, Cx. 11, 1709.
tenha sido coligida de diferentes fontes e autores para a montagem dos espetáculos, no
mesmo modelo, antes descrito, para as obras vistas no Pará. AHU. Maranhão – Papeis Avulsos, Cx. 14, 1721.
Ordonhes deixa saber que o desempenho das peças estava a cargo de grupos
majoritariamente de curiosos (amadores ou artistas que tiravam subsistência de outros ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Briguiet e Cia.,
trabalhos), organizados aparentemente por distinção de cor – Tamerlão na Persia, por 1942.
exemplo, foi desempenhada por um grupo de “crioulos” –, e eram os grupos ensaiados e
financiados por pessoas diferentes, quase sempre do alto estrato social da vila (ORDO- ARAGÃO e LIMA, 1794. Drama recitado no Theatro do Pará ao princípio das óperas e co-
NHES, 1898-1899: 220-242) Além de dar o nome de alguns artistas de destaque, como média nele postas pelo doutor juiz presidente da câmara, e vereadores, do ano de 1793, em
Victoriano (Tamerlão), José Francisco (Osman em Zaira) e Silvério José (Zaira), Ordonhes aplauso ao fausto nascimento de sua alteza real a serenissima senhora D. Maria Thereza,
disse que alguns instrumentos eram raros naquelas paragens, como a trompa, tendo princeza da Beira e presumptiva herdeira da coroa de Portugal. Lisboa: Oficina de Simão
mencionado também cordas, flautas e trombetas (ORDONHES, 1898-1899: 220-242). Thadeo Ferreira.
A essa altura, espetáculos cênico-musicais já eram comuns, tanto em teatro quan-
to em tablado público, por toda a região, principalmente na segunda metade do século

64 65
Música na Amazônia durante o século XVIII Márcio Páscoa

ARANHA, Bento 1794. Os pastores do Amazonas, Drama Pastoril. Que se apresntou no LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália; Rio de Ja-
Theatro da Cidade do Pará no Dia Faustíssimo, e anniversario de Sua magestade no qual neiro: INL, 1943. v. 4.
festejarão juntamente com este o Feliz Nascimento de sua recém nascida e Augusta Neta,
a Serenissima Senhora Princesa da Beira, os Índios Paraenses, a custa dos quaes se fez MENEZES, Luis Cesar de. Liber / In quo continentur / Missae cantariu solitae / Cum Can-
esta função, dirigidos pelo seu intendente e Thesoureiro offerecido ao Illmo e Exmo Snr. D. tico Gregoriano Commofito / Per Fr. Aloysium Cesar de Menezes / Jusu A. R. P. FR. Antonio
Francisco de Sousa Coutinho, do Conelho de Sua Magestade, governador e capitão general de Araújo / Actualis Prioris hujus Carmelitani / Paraenfis Conventus. Lisboa: Bartolomeu
do Estado do Pará, e à exigências do dito snr. Composto por Bento de Figueiredo Tenreiro Petroch, 1737.
Aranha Natural do mesmo Estado. Anno de 1793. Lisboa, Officina de Simão Thadeo Fer-
reira, 1794 MORAES, José de. Historia da Companhia de Jesus na extincta Provincia do Maranhão e
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66 67
Música na Amazônia durante o século XVIII Márcio Páscoa

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Redemptionis Captivorum, / Ad Usum / Fratrum Ejusdem Ordinis / in Congregatione Magni
Paraensi commorantium, / Jussu / R. P.Prædicatoris Fr. Joannis Da Veiga / in Civitate Para-
ensi ejusdem Ordinis Commendatoris ela-/boratum, & in lucem editum. / [grav.] / Olisipo-
ne / Typis Patriarchalibus FrancisciAloysii Ameno./ M.DCC.LXXX [1780]. A’ Descencione
B. Virginis Mariæ de Mercede, ejusque Ordinis Re-/velatione, & Fundatione 562. /
Regiæ Curia Censoriæ Permissu.

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Ópera na Amazônia entre
o Império e a Primeira Guerra

Márcio Páscoa
Universidade do Estado do Amazonas

3 como citar
PÁSCOA, Márcio. Ópera na Amazônia entre o Império e a
Primeira Guerra. In: DUARTE, Fernando Lacerda Simões;
RUAS JUNIOR, José Jarbas Pinheiro (ed.). Norte.
Vitória: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Música, 2023. p. 70-101. (Histórias das
Músicas no Brasil).
Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Guerra Márcio Páscoa

Nos anos entre os reinados de Pedro I e Pedro II, a atividade operística no Brasil parece As duas dúzias de récitas terminaram ainda no primeiro semestre de 1844, mas
ter experimentado incertezas e, ao menos na capital do país, uma ausência, que só se diante do sucesso da temporada, a direção do teatro se empenhou em recontratar o gru-
viu compensada por outros gêneros de teatro musical, como a farsa e o entremez, além po para mais vinte e cinco récitas de assinatura (THEATRO, 1844: 2) que, somadas com
de concertos vocais com trechos de óperas. A retomada de espetáculos líricos, sob novos récitas extraordinárias e benefícios, atingiriam o ano de 1845. Para tal objetivo, foram
gêneros e repertórios, deu-se por iniciativas diversas, mas só após a criação das unida- contratados mais cantores, dentre os que já estavam em atividade no Rio de Janeiro.
des provinciais e abafadas as muitas revoltas regionais que ameaçavam a estabilidade Entretanto, em 16 de dezembro de 1844, Giuseppe Galletti saiu da cidade em
do país. Poucos anos após a ascensão de Pedro II ao trono, a vida artística, não só do Rio direção a Pernambuco, acompanhado de Luigi Guizoni1, o outro baixo da companhia
de Janeiro, mas também das principais cidades brasileiras, entrou em nova fase. (MOVIMENTO, 1844: 4). A sua viagem pode ter sido proposital. Não pararam em Salvador,
No que concerne à ópera, uma conjunção de iniciativas diversas promoveu a es- escala natural a caminho do Recife, talvez porque já devia ser sabido que a companhia
treia quase simultânea de temporadas líricas pelas principais cidades costeiras. No Rio de lírica do tenor Clemente Mugnai estava para chegar à Bahia, onde efetivamente estreou
Janeiro, em 1844, logo a seguir em Salvador, no Recife e em São Luiz, sempre em 1845. O a 6 de fevereiro de 1845, permanecendo por todo o ano (CHRONICA. 1846: 31).
desenrolar dos acontecimentos nessas cidades acabaria por incluir Belém neste rol. Galletti e Ghisoni encontraram-se, no Recife, com o tenor espanhol Carlos Ric-
Ao final da década de 1830 e início da década de 1840 o grupo societário que mo- co e sua esposa, a soprano portuguesa Margarida Lemos. O casal se apresentara no
vimentava o Teatro São Pedro de Alcântara no Rio de Janeiro já vinha falando publica- Theatro Philo-Dramático, da capital pernambucana nessa altura, ainda em dezembro de
mente sobre a organização de uma companhia lírica italiana, mas mantendo o consenso 1844 (THEATRO, 1844: 3), mas anúncios de princípio de 1845 dão a entender que eles
de que, por motivos diversos e não muito bem explicitados, esta não se poderia realizar chegaram com os baixos italianos e o barítono João Toselli, como integrantes de uma
àquele momento. (FOLHETIM, 1840: 1) A companhia dramática que se apresentava sob companhia lírica (COMMUNICADO, 1845: 2).
contrato neste teatro costumava contar com cantores líricos desempenhando trechos A brevidade com que o grupo estreou a ópera italiana no Recife, no começo de
de óperas nos intervalos dos atos das peças. Alguns eram cantores já estabelecidos no fevereiro, leva a crer que os cantores tenham se articulado para tal antes de chegar ao
Rio, remanescentes da capela imperial sob o reinado de Pedro I e até experientes em Nordeste, provavelmente ainda no Rio, onde todos se conheceram. Ricco havia substi-
ópera, mas havia vários outros que eram chegados recentemente à altura em que se tuído Graziani, o tenor trazido por Galletti, na récita de 19 de fevereiro de 1844 de Il
arriscou fazer o primeiro ato de L’italiana in Algeri (FOLHETIM, 1841: 1) e o primeiro ato barbiere di Siviglia naquela cidade. A soprano, por sua vez, era contratada de outro teatro
de La Cenerentola, ambas de Rossini (THEATROS, 1841: 3). A ópera já tinha sido vista na carioca para cantar nos intervalos de espetáculos dramáticos.
íntegra pelos cariocas muitos anos antes. A diferença é que agora parecia haver espaço Embora o público do Recife tenha considerado Ricco o esteio da companhia, o
para a recepção da cultura italiana para fora do público cortesão, pois havia diversos tenor fez questão de deixar publicamente claro que Giuseppe Galletti, agora seu sócio,
anúncios em jornal ofertando aulas de língua italiana, restaurantes com cardápio de re- era quem tinha “uma principal tarefa na direção da parte lírica e cênica de nossas repre-
ceitas italianas e, claro, a venda de partituras de música italiana e professores de canto sentações” (CORRESPONDÊNCIA, 1845: 2).
que ensinavam pela “escola moderna italiana” (OBJECTOS, 1842: 4). O quinteto desenvolveu a temporada inaugural do lírico italiano no Recife até
Em fins de 1843 surgiu, enfim, uma companhia italiana de canto. Tratava-se de fins de junho de 1845 (THEATRO, 1845: 3)2 e retirou-se para o Maranhão. A estreia do
um grupo de oito cantores chegados ao Rio pelo navio sardo Empireo, contratado para grupo em São Luiz aconteceu em 18 ou 19 de agosto do mesmo ano, com Il barbiere
seu transporte (CORRESPONDÊNCIAS, 1844: 2). di Siviglia, e a intenção era permanecer dois meses em atividade (CORRESPONDÊNCIA,
Os acionistas da sociedade que movimentava a pauta do Teatro São Pedro de Al- 1845: 3). Já não estava com eles o barítono João Toselli, e podem ter se valido de artistas
cântara autorizaram então o inspetor dramático a contratar o grupo dirigido pelo baixo locais para completar o elenco
cômico Giuseppe Galletti, para vinte e quatro récitas (THEATRO, 1843: 2). A estreia acon- Não está claro como terminou a atividade da companhia no Maranhão, mas, em
teceu algumas semanas mais tarde, em 17 de janeiro de 1844, com a Norma, de Bellini. 1º de novembro, anunciava-se a saída dos cantores de São Luiz: “Carlos Ricco, Mar-
Mesmo que o grupo lírico tivesse ambições mais modestas – previa de início algo como garida Lemos, Giuseppe Galletti e sua sra., Luigi Guizzoni, se retiram desta província”
5 óperas, apenas – contratempos de saúde do elenco e a disponibilidade de artistas re- (ANNUNCIOS, 1845: 4).
sidentes no Rio foram promovendo novas inserções no grupo, consequentemente mais
récitas, mais óperas e temporada mais longa. 1
O nome deste cantor foi grafado de diferentes maneiras pelos jornais, sobretudo como Ghisoni, mas
ainda Guizoni, Ghizzoni e Ghizoni.
2
O último espetáculo deve ter sido com a ópera L’inganno felice, de Rossini

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Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Guerra Márcio Páscoa

Espera-se todos os dias de volta do Pará a companhia italiana que já


O destino dos artistas foi o Pará. Lemos e Ricco embarcaram para Belém em 17 de cá esteve, dizem que traz mais uma prima dona e um basso, e por notí-
novembro (MOVIMENTO, 1845: 4) e, embora não haja manifestos publicados de embar- cias que temos de lá consta-nos que tem aquela uma vocalização fácil
cações levando Galletti e Guizzoni, ambos tiveram o mesmo destino. e agradável com quanto não seja de muita força, sendo sofrível a sua
A chegada a Belém e o início de suas atividades não ficaram estabelecidos na escola de canto; desempenhou no teatro da Cidade onde atualmente se
acha a companhia [Belém], o papel de Adalgisa da Norma de modo que
prensa local, ao menos nos periódicos hoje disponíveis. Mas o grupo deve ter entrado não desagradou, pelo que já a podem julgar aqueles que que já tiverem
em atividade ainda em 1845, pois, a 10 de dezembro, a empresa lírica achou por bem ouvido bem desempenhar a ópera: quanto ao novo basso nada sabe-
esclarecer, em nota pública, que: mos a respeito, guardamo-nos para dar o nosso juízo depois que aqui
o tivermos ouvido, se por ventura vier como dizem: muito desejáramos
que se verificasse a notícia que damos, pois já nos sobram saudades das
Tendo-se espalhado que a Companhia só vende bilhetes por 12 récitas,
belíssimas harmonias do Sr. Carlos Ricco, com a suavíssima voz de tenor
se participa ao público que é falsa esta invenção e que o resto de ca-
que tem (VARIEDADES, 1846: 24)3.
marotes e demais localidades do Theatro que não estão assinados se
acham à disposição de quem os quiser comprar nos lugares de costume
(AVISOS, 1845: 4).
A última récita da companhia italiana em Belém deu-se em favor da Irmandade
Com os escassos registros jornalísticos da presença dessa companhia lírica ita- de Nossa Senhora de Nazareth, cuja renda seria destinada às obras da sua ermida (AVI-
liana em Belém, fica sendo, até o momento, o melhor depoimento de sua passagem pelo SO, 1846, p.4). Para dar transparência na prestação de contas, o diretor da irmandade
Pará a memória de Domingos Antônio Raiol (1830-1912), o barão de Guajará. Ele deixou fez publicar um balanço resumido, que permite algumas conclusões interessantes. Os
impressão geral sobre o Teatro Providência àquela altura, local onde o grupo lírico se bilhetes vendidos compreenderam 13 camarotes de primeira ordem (num total de 82
apresentou: mil réis), 18 de segunda ordem (116 mil réis), quatro torrinhas (9 mil réis), 14 cadeiras
de 2 mil réis cada (total de 28 mil réis), 17 bilhetes para a varanda, ao custo
Falei em teatro. O único que aqui [em Belém] existia era o antigo Provi- individual de 500 réis (total de 8.500 réis) e 99 bilhetes para plateia (somando 107 mil
dência, no largo das Mercês (Praça Visconde do Rio Branco), construído
réis), o que alcançou a receita de 350 mil réis (AO, 1846: 2 e 3). Isso permite concluir
em madeira, acanhado, mal pintado, não me recordo se tinha ilumina-
que o teatro podia ter algo em torno de 260 a 300 lugares, caso estivesse cheio e
ção de azeite da terra ou andiroba. Por aí, podemos calcular as compa-
nhias que ali trabalhavam (SALLES, 1995: 24). levando em conta que seus camarotes tivessem capacidade para de quatro a seis
pessoas. Um item da despesa publicada pode ajudar a confirmar esse número. Foram
Em seguida, Raiol recuperou algumas lembranças da passagem da primeira com- gastos 10 mil réis para imprimir 300 exemplares em tipografia, provavelmente
panhia italiana que Belém viu, com as melhores impressões que lhe causou o grupo, relativos ao libreto de sala, nú-mero previsto para sua especulável capacidade de
mencionando até mesmo duas óperas do repertório. lotação4.
Entre as restantes despesas, apenas não foram incluídos os cantores, o que não
A primeira [companhia] que tenho lembrança, foi uma chamada lírica, nos permite saber qual o valor de seus cachês. Mas o restante foi arrolado na prestação
composta de quatro cantores, a Margarida Lemos, o Carlos Ricci (sic), o de contas. O aluguel do teatro custou 50 mil réis. O gasto com a iluminação foi de
Giuseppe Galleti (sic) e um outro cujo nome me foge à memória.
20 mil réis, e tanto o iluminador (3 mil réis) quanto seu ajudante (2 mil réis) foram
O Pará inteiro concorria, naquela época, ao teatro, sendo para notar que
a troupe, com aquelas quatro figuras, levava à cena o Barbeiro de Sevi- pagos. Pagaram-se oito coristas a 8 mil réis e 14 comparsas5 a 5.600 réis. A orquestra
lha, o Elixir do Amor, e outras peças, cujas audições muito me deliciava deve ter sido paga sob a designação de “Muzica” (72 mil réis), e mais um provável
e aos avós de quem me ler (SALLES, 1995: 24). grupo de ins-trumentos de sopro, quiçá os da cena, grafado “Bando”, ao qual se
destinou o montante de 3 mil réis. A cópia de partes para a orquestra também custou
Até o fim de fevereiro de 1846, é certo que a companhia estava no Pará. Na vizi-
nha província do Maranhão, o retorno do grupo era esperado para uma nova temporada, 3
O Archivo, São Luiz, 28 de fevereiro de 1846.
e dava-se conta de que alguns novos cantores teriam sido agregados na digressão a 4
Algumas pessoas pagaram a mais por seus bilhetes, de modo a contribuir com a arrecadação: “os Snrs
Belém e, provavelmente, seriam trazidos para São Luiz: Comendador Chermont e Advogado Almeida, que pagaram cada um pelo seu camarote dez mil reis; bem
como o Mr. Doim, que deu cinco mil reis pelo se bilhete de plateia” (AO, 1846: 3).
5
Os comparsas são figurantes ou atores de pouca importância, que pouco ou nada dizem e cantam.

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Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Guerra Márcio Páscoa

3 mil réis. Ainda que não tenha sido dita qual a ópera levada àquela noite, o A imprensa paraense, a essa altura, já concluía que o problema da ocupação do
pagamento de mil réis “ao Tambor do Elixir” sugere que se assistiu a L’elisir d’amore, Teatro Providência era a falta de subvenção: “como poderá sustentar uma companhia a
de Donizetti (AO, 1846: 3). grandes ordenados, não estando o Theatro subvencionado, é o que não podemos com-
Também foram desembolsados recursos para pagar o cabeleireiro (2 mil réis) e preender” (FOLHETIM, 1856: 2).
a “despesa extraordinária do colçado [sic], chamado pequeno vistuario [sic]. Ainda Outros dez anos se passaram, e o problema persistia. O tenor e empresário Giu-
um derradeiro item chama a atenção: o pagamento de vinho e doce para a “cea das seppe Marinangeli, que, como os precedentes, firmara seu nome em outras capitais, veio
duas pe-ças”. Fica sugerido que houve duas óperas encenadas àquela noite ou uma ao Pará tentar acordo com o governo provincial e chegou a formalizar requerimento
programação que contou com uma ópera e outra obra menor ou fragmentária. pedindo subvenção para organizar uma companhia lírica para Belém (PARÁ, 1868: 1).
Também não se sabe se os itens comprados foram para uso em cena ou para serem Não há registro de que as negociações tenham evoluído.
consumidos pelos artistas nos bastidores. O Teatro Providência, ocupado com alguma frequência por grupos locais, já era
Apesar de discriminado o número de coristas, não há pistas sobre a composição considerado “antigo, acanhado, pouco arejado e merecia realmente ser substituído por
da orquestra que serviu a essa primeira temporada lírica italiana em Belém. O cachê um mais digno da população desta capital” (ALMANAK, 1868: 180-181), mesmo que, a
desses músicos deve ter sido, como de costume, maior que o dos cantores do coro, essa altura, o teatro já tivesse passado por alguma ampliação, pois agora se dizia que
e pode ser aventado algo em torno do dobro do que estes ganharam ou semelhante ele possuía 42 camarotes, divididos em três ordens, sendo que, na terceira, haveria uma
ao que se pagou ao copista das partes, o que indicaria um grupo entre 24 e 36 galeria de lugares, e, na plateia, 280 cadeiras (ALMANAK, 1868: 180).
músicos. Acreditava-se, provavelmente, que a precariedade de meios impedia a vinda de
O repertório também pode ser dedutível dentre aquilo que os cantores desen- companhias artísticas melhores, pelo que, então, o presidente da província sancionou
volveram nas capitais em que se apresentaram antes de chegar ao Pará. Além das lei votada pela Assembleia Provincial, destinando fundos para a construção de um novo
duas óperas citadas por Raiol, podem ter sido desempenhadas Norma, L’italiana in teatro (ALMANAK, 1868: 181).
Algeri, L’in-ganno felice e Lucrezia Borgia. O Teatro Providência, entretanto, sobreviveu à inauguração de outros espaços cê-
De Belém, o grupo retornou a São Luiz, onde deve ter recomeçado a nicos, como o Teatro Chalet e o Teatro da Paz, talvez por causa da presença de Vicente
trabalhar ainda em abril, pois, ao fim de maio, já havia feito sete espetáculos Pontes de Oliveira (1835-1882), laborioso empresário teatral, que teve sua história vin-
(VARIEDADES, 1846: 67). Como essa segunda digressão maranhense estava prevista culada às três casas. Ele começou a trabalhar em Belém por volta de 1865 e, mesmo
para dez récitas de assi-natura, os cantores parecem ter tomado rumos diferentes a tentando reformar o Teatro Providência, acabou se convencendo de que era melhor
partir daí. Galletti e esposa voltaram à Europa (ANNUNCIOS, 1846: 4), mas Guizzoni investir em outra opção. Enquanto o primeiro era no Largo das Mercês, na faixa central
retornou a Belém, pois sabe-se dele saindo de barco da capital paraense em fins de da cidade e já rodeado de estabelecimentos comerciais que encareceriam a expansão, o
agosto de 1846 (AVIZOS, 1846: 6). Ricco e Lemos voltaram ao Pará somente em 1847, segundo estava em situação oposta.
para concertos (THEATRO, 1847: 4). A partir daí, entretanto, os paraenses demorariam O Teatro Chalet ergueu-se em 1870 no bairro de Nazareth, uma localidade afas-
muito tempo para se reencontrar com o lírico italiano. tada da cidade àquela altura, cujo acesso se dava por trens de meia em meia hora, a
Algumas oportunidades de receber novas empresas líricas foram malogradas partir de 20h e até meia hora depois de acabados os espetáculos, num total de quatro
por variados motivos. Uma nova empresa só chegaria ao vizinho teatro do Maranhão viagens por noite em cada sentido. A primeira empresa de Oliveira para o Chalet foi um
em 1856, trazida pelo baixo e empresário José Maria Ramonda, e a crônica paraense grupo que se intitulou Bouffes Parisiennes, em alusão ao célebre teatro de Offenbach na
esperançou-se: “O Sr. Ramonda é quem, com os seus líricos, podia vir dar-nos por algum capital francesa, mas cujos artistas franceses foram contratados entre os que já estavam
tempo noites aprazíveis e apreciáveis; e estamos certos que não se arrependeria disso. no Rio de Janeiro. No seu repertório, estavam algumas operetas e um número maior de
O público paraense sabe apreciar o bom” (FOLHETIM, 1856: 2). Mas não há registros dis- vaudevilles e peças de gênero assemelhado, mas não necessariamente ópera.
so, pois Ramonda encerrou o contrato dos artistas em São Luiz em agosto daquele ano Não muito tempo mais tarde, foi inaugurado o Teatro da Paz, após alguns anos
(ANNUNCIOS, 1856: 3) e, no fim de outubro, após atribulada temporada, anunciava estar de construção e algumas querelas com empreiteiros. Fazia mais de uma década que se
se retirando para a Europa (ANNUNCIOS, 1856: 4), onde iria contratar nova companhia estendia o seu assunto, e, mesmo depois de abrir as portas, muito ainda se fez para dar
lírica para o Teatro São Luiz, do qual era empresário. Ramonda ainda estacionaria no a casa por pronta e acabada, tal a dimensão da obra.
Ceará em novembro de 1856, ao lado de alguns cantores, talvez na intenção de minimi- A inauguração foi a 15 de fevereiro de 1878, com a lotação do teatro comple-
zar perdas econômicas (INTERIOR, 1856: 1). Após nova temporada lírica maranhense em tamente esgotada (FOLHETIM, 1878: 1). Para movimentar o então Teatro de Nossa Se-
1857, a empresa de Ramonda faliu definitivamente (ANNUNCIOS, 1858: 4).
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nhora da Paz em seu início, providenciou-se uma temporada artística. Assim sendo, na
primeira noite de função da casa, já se assistiu à estreia da companhia dramática de
Vicente Pontes de Oliveira, que contava com bom elenco, do qual sobressaíam os nomes
de Manuela Lucci (esposa de Oliveira), Emília Câmara e Xisto Bahia.
Coube a uma peça de Adolphe D’Ennery, intitulada As duas órfãs, estrear o palco do
Teatro da Paz. O restante da temporada seguiu-se com semelhante repertório e regula-
ridade de atuações. Mas, depois da boa temporada inaugural, o Teatro da Paz precisou
esperar algum tempo para promover o reencontro dos paraenses com a ópera.
Após três temporadas de teatro declamado, finalmente uma companhia lírica
voltou a Belém, já no segundo semestre de 1880. A companhia era trazida pelo empre-
sário Thomaz Passini, conhecido por empresas líricas no Recife (1876) e, mais recente-
mente, em Salvador (1879), de onde veio o grupo que se apresentou em Belém.
A companhia aportou, então, em Belém a 5 de agosto de 1880, e a estreia deu-se
no sábado, dia 7 do mesmo mês, com a ópera Ernani, de Verdi (ERNANI, 1880: 1).
Foi ocasião de grande enchente de espectadores no teatro, e a animação descrita
parecia igual à da inauguração poucos anos antes. Com a assistência lotada, o Teatro da
Paz presenciou o protocolo de costume nas noites de gala. Após a chegada do presiden-
te da província, executou-se o hino nacional, e só então a peça se iniciou (ANNUNCIOS,
1880: 3).
Se houve um ponto alto nessa temporada de nove óperas em dois meses, deu-se
com a estreia de Il Guarany, de Carlos Gomes, no Pará, com o tenor Lodovico Giraud no
papel titular (Figura 1). O depoimento que o barítono Ulisses Nobre deu, 35 anos depois,
sobre o acontecido destacou a ocasião como uma das mais significativas para os primei- Fig. 1: Lodovico Giraud como Pery, em Il Guarany ([ca. 1880]). Fonte: acervo do autor.

ros tempos do teatro erigido na Praça da República: “Após o primeiro ato, como o público
não podia vitoriar pessoalmente a Carlos Gomes, chamou à cena o maestro Bernardi, O público belenense alimentava a esperança de que Gomes viesse ao Pará, pois
regente da orquestra, simulou que tinha em sua presença o imortal paulista e vitoriou-o estivera na Bahia durante as récitas de sua ópera com a mesma companhia meses antes.
estrondosamente” (FOLHA, 1915: 1). Ainda segundo o cronista, o mesmo aconteceu ao Na sua ausência, o compositor foi representado por um busto seu, que permaneceu em
final de cada ato, em euforia crescente, até que, ao fim da peça, a assistência já estava cena no decorrer da récita de Il Guarany.
a delirar, atirando ao palco as mais diversas oferendas, flores, poemas, hinos, presentes Não só os atos de culto aos artistas se estabeleceram nessa primeira temporada
etc.6 lírica do Teatro da Paz, mas as manifestações de claque também mostraram sua força.
Em Lucrezia Borgia, o tenor principal cedeu espaço ao seu substituto, Umberto Gigli, en-
volvido amorosamente com a soprano Savio. O público desagradou-se dele de imediato,
sacando jornais dos bolsos e levantando-os diante dos olhos. Gigli sentiu-se ofendido e
não quis voltar para o segundo ato, recebendo a solidariedade de Savio. O casal foi parar,
naquela mesma noite, na delegacia por desobediência contratual (NEGÓCIOS, 1880: 1).
Ajudada por desempenhos artísticos eficientes e elementos anedóticos, a ópera
retornara ao Norte brasileiro com grande sucesso. Para impedir novo lapso de apre-
6
Foi ao quarteto principal da companhia que coube a honra da estreia gomesiana no Pará: a soprano sentações, surgiu a Associação Lírica Paraense, com a finalidade de levantar fundos e
Filomena Savio, o tenor Lodovico Giraud, o barítono Antonio Putó e o baixo Ruggero Mailini. O elenco organizar a vinda de novos grupos. Desse modo, conseguiu-se obter uma sequência de
completou-se com a meio-soprano Climene Kalasch e pequeno número de comprimários.
temporadas anuais com alguma regularidade em Belém.

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rio relativo ao custo das produções e às possibilidades de receita para as realizar, pois
Ano/temporada Óperas de Verdi Óperas de Rossini, Óperas de autores Óperas de outros
Bellini e Donizetti brasileiros autores somente a temporada de 1882 alcançou número superior, apresentando 11 peças dife-
1880 Ernani La favorita Il Guarany Ruy Blas rentes.
Il trovatore Lucrezia Borgia A predominância de Verdi é outro ponto em evidência. Suas óperas compuseram
Un ballo in maschera Norma de um a dois terços das temporadas, sendo que, no primeiro caso, somadas ao grupo
Rigoletto
de obras da trinca mais famosa de primo ottocento (Rossini, Bellini e Donizetti), elas
1881 Ernani Lucia di Idália Faust
Il trovatore Lammermoor completam o quadro majoritário do repertório. Isso significa que as obras mais recentes
Un ballo in maschera Il barbiere di daquele tempo, quer do repertório italiano dos scapigliati, quer do repertório francês,
La traviata Siviglia eram de menor interesse e levadas em número mínimo.
La forza del destino
Apesar da predominância de Verdi, das mais de 20 obras de seu catálogo, apenas
1882 Ernani Lucia di Salvator Rosa Faust
Il trovatore Lammermoor Jone nove foram assistidas em Belém na década em questão, e, ainda assim, algumas delas
Un ballo in maschera Il barbiere di podem ter sido tratadas como mera curiosidade. O sucesso de Ernani, a mais vista em
Rigoletto Siviglia
todo o período e hoje considerada um título menos atraente do autor, deve-se ao mes-
La traviata Norma
La forza del destino Linda di mo ânimo de Il trovatore, com frequência quase igual à primeira: ambas configuram um
Chamounix modelo estrutural mais bem-definido desse tipo de dramaturgia, mostrando que havia
1883 Ernani Lucrezia Borgia Il Guarany Ruy Blas uma intenção educativa por parte de todos quanto pudessem opinar na programação,
Il trovatore
fossem eles o público, os empresários, os artistas ou os financiadores. Outra prova dis-
Un ballo in maschera
La traviata so é a presença de uma ópera de autor brasileiro em mais da metade das temporadas,
La forza del destino refletindo uma política de construção nacionalista que se vivia; em todas as ocasiões,
Macbeth
essas óperas de autor nacional tiveram sua escolha defendida nos contratos entre o
1884 La traviata Le educande di
Sorrento
poder público, que subsidiou as temporadas, e os empresários contratados.
Crispino e la comare Além de Gomes, dois autores locais tiveram oportunidade em temporadas distin-
1886 Ernani La favorita Ruy Blas tas. O primeiro deles foi Henrique Eulálio Gurjão (1834-1885). Bolsista da província para
Il trovatore Norma Bella Elena estudar música na Itália, Gurjão retornou em 1861, após nove anos de ausência, trazen-
La traviata Il barbiere di
Aida Siviglia
do a ópera consigo (TREZE, 1861: 6). Por ter sido subvencionado pelo Pará, só aceitaria a
estreia da Idália diante dos paraenses, esperando, assim, 20 anos para isso.7 Idália foi, en-
tão, criada a 3 de novembro de 1881, com o papel titular confiado à soprano Giuseppina
1888 Ernani Il barbiere di de Senespleda, cantora de origem catalã, especialista na parte da Violeta de La traviata.
Il trovatore Siviglia
Rigoletto La favorita Apesar de muito bem-recebida e com duas récitas extras bastante concorridas, Idália
1890 Ernani La sonnambula Bug Jargal La Gioconda não foi mais encenada, a despeito de ter sido incluída na proposta de subvenção que o
Un ballo in maschera La favorita Ruy Blas Pará concedeu à temporada lírica de 1883 e do desejo do empresário Joaquim Franco
I due Foscari Carmen em obter permissão para a montar, em 1892, nos teatros com os quais tinha acordos, em
São Luiz, Belém e Manaus (MARANHÃO, 1891: 2).
Quadro 1: Relação das óperas assistidas em Belém durante a década de 1880. Não muito depois de Gurjão, outro compositor paraense conseguiu ver ence-
nada sua ópera. José Cândido da Gama Malcher (1853-1921) estudou engenharia na
Embora as óperas tenham trocado de elenco, empresário e até de palco, ao final Universidade LeHigh na Pensilvânia, de onde se dirigiu para Milão para se aplicar em
dessa década, o que se viu em Belém foi uma estratégia de formação repertorial con- composição sob a orientação de Michele Saladino. Em 1881, voltou a Belém e assumiu
dizente com o desejo de consolidar um gosto específico no público. Entre 1880 e 1890,
desenvolveram-se oito temporadas em Belém (Quadro 1). Mais da metade delas teve 7
A título promocional, alguns trechos foram executados antes de 1881, como foi o caso de uma romanza
nove óperas na programação, sugerindo que esse pode ter sido um limite orçamentá- de tenor, cantada por Lodovico Giraud em algumas oportunidades da temporada lírica de 1880, no Teatro
da Paz. (ANUNCIOS, 1880: 3)

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a organização da temporada lírica de 1882 no Teatro da Paz, sob a incumbência de sa- Coube à Adele Naghel ([ca. 1855]-1891), meio-soprano da companhia e esposa
tisfazer o desejo público de trazer Gomes ao Pará. Gomes veio para a estreia de Salvator de Scano, assumir a empresa e iniciar uma carreira muito bem-sucedida por teatros de
Rosa, mas a temporada culminou num desentendimento entre ele e Malcher. O paraense Norte a Sul do Brasil, os quais ela já corria desde 1880, pelo menos (COMPANHIA, 1880,
retornou a Milão decidido a concluir sua primeira ópera, o que, de fato, aconteceu em p.4) 10. Em 1886, associou-se ao pianista e regente Joaquim Franco (ca. 1857/59-1927),
1885. Baseada no romance homônimo de estreia de Victor Hugo, Bug Jargal foi estreada para empresariar uma companhia lírica que ocupou o Teatro da Paz àquele ano, e, quan-
durante a segunda empresa lírica dirigida por Malcher em Belém, a 17 de outubro de do essa casa se fechou para reformas, nos anos finais da década de 1880, Naghel levou
1890. Diferente do destino de Idália, cuja partitura está, até o momento, desaparecida, companhias líricas ao Theatro-Circo Cosmopolita (PÁSCOA, 2020: 235-254).
Bug Jargal foi levada pelo autor e elenco criador para ser apresentada nos teatros de
São Paulo e Rio de Janeiro, entre 1890 e 1891. A partitura orquestral, a versão de canto e 1. Manaus e as óperas: o advento da república
piano e as partes cavas estão, atualmente, na Biblioteca Alberto Nepomuceno, na Escola No início da República brasileira, mesmo que assomada por crescente inflação herdada
Nacional de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)8. do período imperial, as capitais do Norte brasileiro viveram o auge da economia da
Agruras empresariais não deixaram de faltar nessa década. A temporada de 1882, borracha. A modificação do espaço urbano, da constituição populacional e dos hábitos
empresariada por Malcher, arrastou-se até terminar em desalento, e ainda rendeu de- culturais andou de par com o incremento econômico na vida de Manaus e Belém, que,
sentendimento entre ele e Gomes9. Não por acaso, Gomes assumiu a empresa lírica de nesse fim de século XIX, viram chegar, rapidamente, diversas melhorias, como a luz elé-
1883 do Teatro da Paz, com a ambição de iniciar digressão nacional de suas óperas para trica, o telefone e as políticas públicas de higiene e urbanização.
se tornar mais conhecido em sua pátria, mas a temporada decorreu tumultuada, e a Nesse ímpeto, companhias artísticas começaram a frequentar Manaus desde fins
empresa acabou abreviada, ali mesmo, em Belém. Sucederam-se problemas financeiros, da década de 1860, e, com a regularidade das visitas, começou-se a preparar a existência
atraso nos pagamentos de artistas de canto e da orquestra, entre outras indisposições de um teatro público a partir de 1881.
no elenco, e, para completar, Gomes não compareceu. O único teatro existente até então, o Teatro Beneficente, levantado e administra-
Ainda mais dramático foi o acontecido com o tenor e empresário Fausto Scano. do pela comunidade portuguesa do Amazonas em 1875, revelou-se incapaz de abrigar
Oriundo de longa digressão pelo Atlântico Sul, ele chegou a Belém com sua companhia grupos artísticos maiores e público mais frequente:
lírico-cômica, conforme a chamou, para trabalhar no Theatro-Circo Cosmopolita, outro
palco recentemente inaugurado na capital paraense. A estreia deu-se em 7 de junho de Em 1885... a única casa de espetáculos de Manaus funcionava no ter-
1884, e, em menos de um mês, Scano transferiu-se, com o grupo, para o Teatro da Paz; reno então pertencente à Sociedade Beneficente Portuguesa e atual-
mente ocupado pelo Paço Episcopal, num antigo barracão levantado
o governo paraense tinha retomado o acordo com Tomás Passini, mas este repassou
por aquela associação para os leilões em benefício do seu hospital em
a pauta à atriz Manuela Lucci, que se tornara empresária da companhia dirigida por construção e, ao qual, pela forma circular do telhado e pelo esteio que
Vicente Pontes de Oliveira, falecido recentemente. Como Lucci estava com o seu grupo sustentava no centro, o público dava o nome tão típico quanto pito-
teatral em outro lugar, e a autoridade provincial pressionava por movimentar o palco do resco de Chapéu de Sol. Aí, a população ainda reduzida aquele tempo,
ia de vez em quando desopilar o fígado dilatado pelas ardentias do
teatro público, o privilégio foi parar na mão de Scano, não sem polêmica. Assim, a 2 de
clima tropical com as pilhérias do Passos, o mais pavoroso Lusbel dos
julho, o grupo italiano estreou no Teatro da Paz. Nenhuma das estreias da companhia de Milagres de Santo Antônio que jamais se viu nos teatros brasileiros, ou
Scano foi com ópera, e, a bem da verdade, em meio a operetas, só se ouviram três óperas soluçar de comoção com as tiradas sentimentais do Penante, contrace-
em três ocasiões pontuais: La traviata (11 de junho), Le educande di Sorrento (5 de julho) nando com a Helena Balsemão, encarnando a Morgadinha de Val Flor,
e Crispino e la comare (12 de julho), sendo apenas estas duas últimas no Teatro da Paz. no seu alentado físico de quarentona obesa. Creio mesmo que esse
modesto templo da arte, coberto de telhas podres e minado de cupins,
Ainda assim, o grupo parecia estabilizar-se, quando Scano morreu, subitamente, em 14 teve a honra insigne de abrigar novo carro de Thespis, artistas do valor
de julho, aos 28 anos. de Manuela Lucci, uma das mais ilustres atrizes, dentre as poucas que

8
O conjunto de partitura e partes foi dado, como pagamento de impostos, ao estado, pois a empresa Mal-
cher faliu no Rio de Janeiro, uma vez que o compositor e empresário paraense fora enganado no contrato
10
Os registros mais antigos que mencionam Adele Naghel, no Brasil, são os anúncios da companhia lírica
pela pauta do Teatro Fênix, na capital carioca. de Maria Frigerio em São Paulo, prevista para atuar a partir de setembro de 1880. Passando a outras com-
panhias, como a de Luigi Miloni, firmou-se no repertório de operetas e óperas cômicas, trabalhando em
9
O desentendimento deu-se porque Malcher acusou Gomes de lhe copiar o tema da ópera de estreia. O diversos teatros, como os de Santos, Rio de Janeiro, Salvador, Maceió, Aracaju, Recife, São Luiz, Fortaleza,
tema central de Bug Jargal é a escravidão, como Lo schiavo de Gomes, ópera que ele anunciou escrever Belém, Manaus, Montevidéu, Rio Grande do Sul e Argentina.
após a vinda ao Pará.

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temos possuído, e de Xisto Bahia, porventura o ator mais completo...


(TRECHO; 1907: 2) Amazonas a 16 de dezembro de 1890, com Il trovatore, ao que se seguiram cerca de 40
espetáculos, distribuídos entre 14 óperas, número excepcional de títulos se comparado
ao que se via na maior parte das praças brasileiras do período. Franco lançou mão de
Apesar de muitas outras companhias e artistas de toda sorte terem ocupado o um expediente comum em todas as suas empresas daí por diante, trazendo um elenco
Teatro Beneficente, nada de ópera havia sido trazido, e, se muito, uma ou outra opereta equilibrado entre artistas de nome consolidado, que deveriam entrar em peças pontuais
em português fora apresentada, até o dia em que a cantora e empresária Adele Naghel e de sua especialidade, e jovens talentos de maior ou menor dimensão, que deveriam se
veio a Manaus para alguns concertos. Estava acompanhada da soprano Rosa Genolini, encarregar de rechear o calendário de apresentações. Entretanto, nessa primeira empre-
do barítono Giuseppe Dominici e do pianista e maestro Joaquim Franco, membros da sa, os artistas mais proeminentes do elenco apresentaram-se somente em Manaus (ver
sua companhia artística, que se apresentava em Belém e São Luiz (GAZETINHA, 1885: Quadro 2). Sem subvenção maranhense, por exemplo, ele sequer arriscou uma tempo-
1). Certamente, a intenção era prospectar o ambiente para maiores empreendimentos rada, e os remanescentes da digressão por Belém e Manaus é que se organizaram entre
artísticos, o que, de fato, veio a acontecer nos anos seguintes, quando Naghel trouxe si para dar alguns espetáculos em São Luiz (ASSOCIAÇÃO, 1891: 2)11. À medida que se
grupos dedicados ao repertório lírico mais leve. estruturavam as associações líricas e os acordos de subvenção estadual eram fechados,
A sensação provocada por essa iniciativa foi o estopim para que um gosto lírico ficavam garantidas as melhores condições para oferta de elencos, cenários, guarda-rou-
começasse a se desenvolver na capital do Amazonas, conforme atestariam memórias pas e partituras. Franco foi anualmente a Milão, onde podia obter materiais e serviços
daquele tempo. em diferentes fornecedores, como para a temporada de 189212, ou contratar tudo por um
mesmo agente, como foi em 1893, com a Agenzia Deliliers.
Um dia, porém, os frequentadores do Chapéu de Sol libaram o prazer Os estipêndios estatais concedidos à ópera foram crescentes durante a última
de uma sensação nova, que os arrancasse aos costumados espetáculos
década do século XIX no Norte brasileiro. O Pará concedeu a Franco a quantia de 24,4
de farsas e dramalhões, um pequeno grupo composto da cantora buffa
italiana Adelia [sic] Naghel, de um contralto que me escapa agora e do contos de réis para a temporada de 1892, 40 contos de réis para 1894 e 60 contos de
barítono Dominici, a servir-lhe audições de cançonetas humorísticas, de réis em 1896 (ALBUQUERQUE MENDONÇA, 1897: 21-22)13. Ainda que a diferença de
mistura com trechos de óperas (TRECHO, 1907: 2). valores compreenda o processo inflacionário, ela não se explica apenas por isso.
O volume de óperas foi semelhante nessas três temporadas. Em 1892, Franco trou-
Por causa disso e da decadência acelerada do Teatro Beneficente, a empresa Couto xe material e elenco para fazer 23 óperas, promovendo algumas mudanças de repertó-
& Lucas construiu o Eden Teatro com grande rapidez e o inaugurou em 1888, pois, na rio entre Belém (28 jan. a 11 abr.) e Manaus (7 jun. a 4 ago.)14, mas mantendo a exibição
ausência desse tipo de diversão, o público manauense se considerava “asfixiado pela de 20 óperas em cada capital, semelhante ao número de óperas assistidas em 1894 em
fatal rotina” (THEATRO, 1888: 2). Belém e 1896 em Manaus15.
Naghel ocupou o Eden, até janeiro de 1890, com grupos sucessivos de operetas em A diferença ficou, então, por conta da maior fama dos cantores envolvidos nas
português e envolvendo-se com a vida social da cidade. Ao se retirar, naquele ano, dava temporadas de 1894 e 1896. No primeiro caso, o destaque veio estampado em todos os
adeus às digressões líricas, pois, mesmo se apresentando em alguns eventos menores anúncios: “Grande companhia lírica italiana da qual faz parte o célebre tenor comenda-
em Belém, onde fixara residência, já devia estar seriamente comprometida pela tuber- dor CARLO BULTERINI” (THEATRO, 1894: 2). Bulterini (1839-1912) havia tomado parte
culose que a matou em 1891, aos 35 anos.
Joaquim Franco, que estivera em várias empresas com Naghel desde o Rio de Janei-
ro, em 1883, herdou a posição de empresário lírico nas capitais do Norte. Ele dominou a
11
O barítono Giuseppe Dominici dirigiu esse grupo com cantores da empresa de Franco, que se apresen-
tara em Manaus e Belém e estreou Rigoletto em São Luiz a 6 de maio de 1891.
contratação de empresas líricas no Amazonas, Pará e Maranhão durante a última década
12
Os fornecedores de Franco para aquela temporada de 1892 foram a Casa Ricordi (partituras), Ercole
do século XIX, exceto em pontuais casos. Para isso, Franco promoveu o estabelecimento Sormani (cenografia), Viccinelli (vestuário), Beati (malharia), Panni (calçados), Pessaglia (peruqueria) e
de associações líricas nas capitais desses estados. Ele primeiro fechou acordo em Manaus, Pagliani & Rancati (adereços). (COMPANHIA, 1891: 3).
onde estava nos últimos anos, trabalhando com Naghel, e depois passou a São Luiz, onde 13
Há uma menção a subvenção para 1893, mas não foi encontrado repasse ou contrato para esse fim, o
buscou organizar um grupo de 140 sócios, em 1891 (ASSOCIAÇÃO, 1891: 2). que pode explicar a diminuta temporada desenvolvida àquele ano em Belém.
O sucesso da primeira temporada lírica em Manaus foi importante para a credi- 14
Franco começou a digressão desse ano por São Luiz.
bilidade do novo empresário do ramo. A companhia de Franco estreou na capital do 15
Manaus assistiu, provavelmente, a 18 óperas em 1896, enquanto Belém assistiu a apenas dez, porque a
companhia estava contratada para a inauguração do Teatro Amazonas, a que deu prioridade.

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na criação absoluta de Il Guarany e de Fosca, de Gomes, sem falar da sua ampla presença ção: “Do aparato cênico diremos apena que é de uma riqueza tal, que eclipsa os mais
pelos palcos mais importantes da época. Não seria possível trazê-lo sem que um exce- ricos cenários que conhecemos do Teatro da Paz”. A isso se somou uma ótima recepção
lente elenco estivesse arrolado. Para dividir os papéis com Bulterini, estava outro nome ao arrojo criativo de Malcher:
bastante afamado, o tenor Giulio Ugolini, e, para dividir a cena, a soprano Leonilde Gabbi,
mais jovem que ambos, mas altamente conceituada. Yara é, não há dúvida, revelação de muito estudo, de muita técnica e,
Em 1896, a situação foi semelhante, pois estavam presentes as sopranos Libia Drog, para falarmos francamente, pode-se afirmar que o ilustre compositor pa-
raense mostra-se hábil e conhecedor dos segredos de sua arte. Não só
recentemente saída de temporadas nos melhores teatros norte-americanos, como o Me-
os efeitos orquestrais casando harmoniosamente as diversas gradações
tropolitan Opera House, e Maria Peri, egressa de grandes palcos, como o Scala milanês. dos instrumentos, mas as massas corais traduzem uma manière moderna.
Os elencos das empresas de Joaquim Franco relacionam-se diretamente com o Sente-se vivamente que não é forçada a inspiração (YARA, 1895: 2).
repertório que desenvolveram. Tal repertório ainda foi massivamente composto dos
maiores sucessos de Verdi, e nota-se o especial apreço pelo primo ottocento, em medida A temporada de 1895 contou com outros momentos memoráveis, dedicados tan-
ainda maior que na década anterior. Em 1892, por exemplo, das 20 óperas trazidas na to ao elenco, quanto à presença de Gomes, agora definitivamente morando em Belém, a
bagagem, somente cinco não entram nessa conta, e, em 1894, quando vieram Bulterini e quem Malcher, agora de amizade reatada, rendeu homenagens, fazendo estrear a Fosca no
Ugolini, o primeiro cantou quase todo o Verdi disponível, e o segundo veio praticamente Norte brasileiro, além de um festival artístico, no último espetáculo da temporada, em que
para cantar apenas em La traviata. o ilustre campineiro compareceu ao palco e recebeu muitos presentes (ESTADOS, 1895: 2).
Entre as estreias operísticas importantes na derradeira década de oitocentos, con- A empresa de Malcher pode não ter seguido caminho a Manaus tanto pelos pro-
tam-se algumas importantes realizações. Inicialmente, a criação da Aida, de Verdi, em blemas administrativos da companhia quanto pelo fato de o governo amazonense estar
Manaus, ainda em 1891, com o papel de Radamés confiado a Ferdinando Ambrosi, um empenhado, prioritariamente, em concluir a construção do Teatro Amazonas.
tenor que fez longo sucesso na Escandinávia, mas faleceu em Belém ainda naquele A grande acolhida pública da ópera em Manaus, nos anos anteriores, parece ter
ano. Em 1892, deu-se a criação da Cavalleria rusticana, de Mascagni, apenas dois anos sido o estímulo decisivo para o Governo do Estado assumir a empreitada. O governador
depois de sua première absoluta em Roma, tanto em Belém (19 mar) quanto em Manaus de então, Eduardo Ribeiro, decidiu que, mesmo pegando, no início de sua gestão, dois
(2 jul). Em ambos os casos, com o mesmo par central, a já consolidada soprano Amalia metros de muro sobre a acrópole construída para o edifício, entregaria o prédio pronto
Conti Foroni e o jovem tenor Gino Martinez-Patti (1866-1925), que se tornaria muito para receber espetáculos ainda em seu mandato.
popular por causa da intensidade com que cantou e gravou entre Europa e América; o As obras correram em ritmo acelerado, mas não estariam prontas no segundo
cantor palermitano tinha 26 anos quando fez 18 óperas diferentes em dois meses de semestre de 1896. Franco, que havia sido contratado para organizar a temporada lírica,
temporada no Éden de Manaus. Por fim, com grande significado para os anos seguintes, não conseguiu retardar a vinda do grupo, e a saída foi solicitar que a companhia desse
deram-se as estreias de L’africana (1894), L’ebrea (1894) e Gli ugonotti (1896)16, versões espetáculos em Belém antes de ir a Manaus, e não depois, conforme se planejara. A au-
italianas de óperas francesas, que marcariam o início de uma guinada de gosto galicista torização parece ter saído mediante algum acordo que acabou deixando os paraenses
nas empresas de Franco. com metade das óperas trazidas na bagagem, em relação ao que se viu em Manaus.
Entretanto, o empresário estava prestes a viver grande interregno, pois, logo em O Teatro Amazonas inaugurou-se em 31 de dezembro de 1896, com um concerto
1895, já não trouxe companhias ao Norte, quando os registros dão conta de apenas uma de trechos vocais de diversas óperas pela companhia trazida por Franco. Mas não se
temporada decorrida em Belém. Nesse ano, Gama Malcher, que vivia na capital do Pará, inaugurou completo, embora toda a decoração interna, que estava a cargo de Crispim do
empregado como professor do Liceu Paraense, entre outros, licenciou-se para ir à Itália Amaral (1858-1911), tenha sido realizada a tempo, salvo raras exceções, como a monta-
articular a realização de temporada em que teria especial interesse. Malcher assumiu gem do pano de boca. O artista pernambucano, a quem se confiara também a concepção
posição na Associação Lírica Paraense, obteve 50 contos de réis de subvenção estadual externa do teatro, trouxe o pano de boca das oficinas da Casa Carpezat de Paris, onde
e trouxe a companhia Alzatti & Villa para cerca de 60 espetáculos com 13 óperas. O viveu, mesmo lugar onde fabricou também os panos de boca do Teatro da Paz (THEA-
interesse de Malcher era a estreia de sua segunda ópera, Jara, também chamada Yara TRO, 1891, p.1) e do Theatro-Circo Cosmopolita de Belém (THEATRO-CIRCO, 1891: 1)17.
pelos periódicos, cuidada aos detalhes pelo autor/compositor/empresário para a produ- A temporada inaugural do Teatro Amazonas iniciou-se com La Gioconda, a 7 de
janeiro de 1897, e seguiu até princípios de abril, contando com novidades importantes,
16
As estreias de L’africana e L’ebrea, em 1894, aconteceram somente em Belém, enquanto Gli ugonotti estreou,
em 1896, apenas em Manaus. As três foram repetidas, em anos posteriores, em ambas as cidades. 17
Crispim preparou, ainda, o pano de boca do Teatro Santo Antônio, de Recife.

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Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Guerra Márcio Páscoa

como o Otello de Verdi. Ao final da temporada, Franco estabeleceu-se definitivamen- contraponto com os tenores Agostini, que pisou o palco em 17 noites, e o malfadado
te em Manaus, dedicando-se exclusivamente ao ensino artístico. Ele criou a Academia Giovanni Peirani, que cantou por dez noites antes de morrer em Belém.
Amazonense de Belas Artes, durante anos subvencionada pelo Governo do Estado, na Diante disso, ficou frustrada a estreia mais importante da temporada, o Lohengrin
qual estavam dois núcleos importantes, de artes visuais e música, nutridos por profes- de Wagner, do qual se levou somente um ato em noite de retalhos líricos, com a compa-
sores de diversas origens e muitos concertos e exposições. nhia se extinguindo sem ter forças de ir a Manaus.
Na sua ausência, estabeleceu-se um hiato nas apresentações de óperas no Norte Carvalho continuou a dominar a pauta do Teatro da Paz e do Teatro Amazonas e
brasileiro. O empresário português Juca de Carvalho, que havia se estabelecido no Rio trouxe nova companhia lírica em 1901, dessa vez com temporadas que foram finalizadas
de Janeiro no início dessa última década do século XIX, preencheu temporariamente de melhor modo, sem celebridades consumadas e composta de artistas jovens ou em
essa lacuna. Ele apareceu no Norte com uma empresa lírica contratada pelo governo ascensão, vários deles com passagens por palcos da América do Norte. O mais elogiado
paraense em 1900. O objetivo era comemorar a efeméride dos descobrimentos, mas o foi o tenor Giovanni Badaracco (Fig.2), de voz robusta e, portanto, bastante diferente dos
empresário acabou por trazer, por três anos seguidos, alguns grupos de ópera e opereta. seus congêneres que já haviam cantado na Amazônia:
Na primeira oportunidade, Carvalho trouxe dois grupos líricos, um de operetas e outro
de óperas, para se alternarem entre Manaus e Belém. O primeiro, a Companhia Calil & não é somente o tenor poderoso, cuja voz melodiosa pode enfeitiçar
Aprea, começou pela capital do Amazonas, enquanto o segundo estreou no Teatro da o mais indiferente auditório. Se ele possuísse apenas este dom pre-
cioso, que é puramente mecânico, não mereceria o qualificativo nobre
Paz. A meio da temporada de ambas as companhias, irrompeu uma epidemia de febre
de artista, de que se pode orgulhar. A expressão de sua frase musical,
amarela, que se abateu nas capitais e, claro, fustigou os dois grupos, interrompendo as da sua mímica superior, suas atitudes perfeitas, riscam-lhe em relevo a
atividades e espalhando terror entre os artistas com os falecimentos sucessivos; alguns mais acentuada psicologia de artista emocional... achamo-lo inexcedí-
abandonaram a empresa e buscaram embarcar para fora do país logo que possível, ou- vel, assombroso e formidável, interpretando ‘Os Palhaços’, com tamanha
intensidade... que parecia uma criação de momento, dessas que nascem
tros foram desassistidos pelos empresários e precisaram contar com auxílio de particu-
da consciência de um cérebro predestinado.(PERFIS, 1901: 1)
lares e campanhas públicas para poder ir embora.
O grupo lírico que atuou no Teatro da Paz, em meio a valores emergentes, tra-
zia um trunfo de magnitude estelar, como os apresentados no passado. O tenor Franco
Cardinali, célebre intérprete do Otello verdiano e um dos mais famosos no seu registro
àqueles dias, fora contratado para desempenhar repertório seleto. A estreia com Verdi
foi decepcionante para público e crítica, e logo se abriu uma animosidade com ele por
parte dos paraenses (COM, 1900: 3). Motivado por isso ou pelos rumores da epidemia
que se formava, Cardinali tentou fugir para a Europa e foi interceptado pela polícia.
A coisa, que já havia ganhado tintas de escândalo antes do episódio, piorou bastante,
a ponto de nem o empresário Juca de Carvalho conseguir mais o defender e, na ten-
tativa de eximir seu nome do episódio, publicou nota na imprensa local, dizendo que
pagara adiantado ao elenco e que “se os representantes da imprensa acompanhassem
o movimento de uma companhia lírica, saberiam quanto o empresário, nestas terras, é
sacrificado à ganância de alguns artistas, aos conselhos dos seus áulicos, e ao chamado
bem-estar comum” (SENHOR, 1900: 2).
Cardinali foi retirado de dentro do vapor Re Uberto, em meio a uma pequena
crise diplomática por causa dos protestos do cônsul italiano no Pará, e foi compelido a
retornar ao cumprimento de sua obrigação contratual. Dias mais tarde, subiu outra vez
à cena para mais uma ópera que devia ser de sua especialidade, La Gioconda, na qual foi
fragorosamente vaiado no momento que apareceu (HOUVE, 1900: 2). Um pouco melhor
nas reprises, Cardinali completou a temporada cantando apenas em seis noites, em
Fig. 2: Cartão de visita do tenor Giovanni Badaracco, impresso para Manaus. Fonte: coleção do autor.

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Manaus assistiu a quatro óperas que os belenenses não viram, mas nenhuma delas O músico e empresário não parecia realmente apreciar a moderna escola de canto
era uma estreia, e, aparentemente, foram produções mais afeitas ao gosto local, como ou de composição, mas retornar aos títulos italianos do início do século XIX também
La Gioconda, que se repetia pela primeira vez cinco anos depois de inaugurar o Teatro não seria boa estratégia, apesar de ser flagrante a sua afinidade com esse repertório. A
Amazonas, ou as peças a quem apreciava os dotes de um soprano leve. solução foi inovadora e reposicionou o programa repertorial operístico dos nortistas.
Carvalho retornou, em 1902, com uma companhia lírica, mas de repertório misto Franco trouxe uma companhia integralmente francesa, com repertório em francês, em
entre operetas e óperas, sendo que, deste último gênero, se viu somente sete óperas em que se poderiam apreciar obras raramente vistas no idioma original e na sua integrali-
Manaus e uma a menos em Belém. O fato pode ter se dado pelo falecimento súbito da dade. A partir desse critério principal, a escolha de títulos, entre gêneros diversos, aca-
soprano Cleonice Campagnoli, no Amazonas. Esposa do tenor Giorgio Quiroli, sua ausên- bou por se constituir no elemento diferenciador dessa temporada para as outras vistas
cia o obrigou a cantar no elenco de operetas para poder compensar a impossibilidade até então no país. Houve espaço para opereta, opera comique, opera romantique, grand
de se levar óperas. opera e uma inédita tradução francesa de La bohème, que acabou sendo o maior sucesso
Repetiram-se anos de hiato operístico nas duas capitais da borracha, e, somente de uma estação vitoriosa. Franco (Fig. 3) trouxe cenários da firma Ercole Sormani, um
em 1905, apareceu em Belém uma companhia lírica, que vinha se apresentando desde corpo de baile com 11 pessoas, coro de 24 membros e orquestra com 32, mais que sufi-
as cidades do Cone Sul. O grupo lírico era dirigido pelo baixo Donato Rotoli, agora mais cientes para as dimensões existentes, naquele tempo, no Teatro Amazonas.
dedicado a funções empresariais, que, aqui no Brasil, tivera o suporte de Assis Pacheco, Um dos seus grandes trunfos, fartamente divulgado, foi a estreia de Faust, de Gou-
conhecido compositor e regente. Foi uma digressão rápida e intensa. Entre 3 de maio e nod, completo, que incluía o bailado da “Noite de Walpurgis” com um cenário mandado
15 de junho, foram encenadas 20 óperas. Para isso, o grupo contava com quatro tenores fazer especialmente para o Teatro Amazonas. Entre fins de junho e meados de agosto,
e três sopranos, entre as quais estava Tina Poli Randaccio, antes de se tornar celebridade foram dadas 35 récitas, das quais 20 eram de assinatura.
da maior dimensão e uma das maiores sopranos do verismo. O repertório da Companhia
Rotoli/Assis Pacheco no Teatro da Paz foi, aliás, enfaticamente voltado à giovane scuola, e
mais da metade dos títulos havia sido composta dentro do ânimo pós-verdiano. Chamam
atenção as produções de Moema, do próprio Assis Pacheco, e de Iris, de Mascagni, ópera
com contornos simbolistas marcantes. Verdi ainda se fez presente com cinco títulos, de
que se sobressaiu o retorno de Otello ao Norte brasileiro, e a única ópera de primo otto-
cento que se levou foi a recorrente Lucia di Lammermoor, de Donizetti. Esse título ainda
era apreciado por causa da dimensão psicológica vivida pela personagem principal, es-
pecialmente a cena da loucura ao final, que era, frequentemente, destacada para compor
espetáculos de trechos avulsos ou se emparelhar com a Cavalleria rusticana, outra obra
exemplar de conflitos emocionais e limitantes. Para azar dos manauenses, a companhia
desfez-se ao final de sua apresentação em Belém, talvez porque os artistas já estivessem
cansados da longa sequência, de alguns anos, em constante viagem e trabalho.
Manaus só se reencontraria com as óperas em 1906, quando, fortuitamente, a com-
panhia de Rafaele Tomba se apresentou novamente na cidade – onde já estivera em
1897, somente com operetas no repertório. Trazida por Juca de Carvalho, ela era de gê-
nero misto e encenou cinco óperas, incluindo a trinca verista mais apreciada de então:
La bohéme, Cavalleria rusticana e Pagliacci. O grupo que foi ao Pará fez um título a menos,
assumindo, ainda mais, a sua vocação para as operetas.
A essa altura, Joaquim Franco já havia sido chamado pelo Governo do Amazonas
para retornar às lides de empresário e revigorar a cena lírica do Teatro Amazonas. Fran-
co assinou um contrato de cinco anos para trazer empresas líricas a Manaus e, já em
1906, estrearia a primeira temporada desse novo ciclo. Fig. 3: Joaquim Franco, em foto de Percy Pitt. Fonte: Cerqueira (2019).

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ano 1892
S: Amalia Conti Foroni,
O sucesso da experiência fez com que Franco ousasse ainda mais para a segunda Lucia di Fernada Rapisardi e Maria
temporada francesa, em 1907. Ele trouxe um elenco maior e óperas ainda mais difíceis Lammermoor Bosi
Il trovatore
tecnicamente, quer pelo desempenho vocal, quer pela montagem a que se propunham. Lucrezia Borgia Ms: Maria Petich e
Ernani
+Linda di Desdemona Campagnoli
Duas delas eram exemplares paradigmáticos da grand opera: a então mítica Guillaume Rigoletto
Chamounix T: Gino Martinez-Patti e
La traviata Cavalleria
Tell, de Rossini, e Les Huguenots, que, na versão original, fazia justiça ao nome de “ópera +Don Pasquale Angelo Morini
La forza del rusticana Fra
das sete estrelas”, em face das dificuldades dos sete papéis principais. O empresário La favorita Joaquim Br: Sante Athos Caldani e
destino *La Gioconda Diavolo
Poliuto Franco Giuseppe Dominici
também aproveitou para mostrar, aos públicos do Norte, a versão original de duas co- Un ballo in
+Maria di Rohan
+O duque de *Faust
Bs: Francesco Rusconi,
maschera Vizeu
nhecidas óperas de Donizetti, La favorite e La fille du regiment. Logo se vê, por essas Crispino e la comare Giovani Scolari, Ladislao
Ruy Blas
escolhas, que a parte preocupante era a do tenor. Franco trouxe três, pensando espe- Norma Pascoschi e Luigi Ferrari
La sonnambula
cificamente nos detalhes de partituras tão desafiadoras, mas perdeu dois para a febre Il barbiere di Reg: Giacomo Cornetto,
amarela, ainda em Manaus (COMPANHIA, 1907: 2)18. Hughes, tenor escalado para os Siviglia Joaquim Franco e Ettore
papéis dramáticos, assumiu mais de 20 récitas com oito óperas diferentes em Manaus Bosio
e número próximo disso em Belém, cantando toda a temporada. Além de repetir a pro- ano 1893
dução de Faust do ano anterior, Franco encomendou, ao poeta Jules Algier, a tradução S: Maria Bosi e Constanza
Brini
para o francês da obra-prima de Gomes, e a criação de Le Guarany aconteceu em 13 de Lucia di
Ms: Mathilde Schoavinato
Lammermoor
maio, no palco do Teatro Amazonas, seguida de mais três reprises na semana seguinte, *Ernani
*La favorita *Fra
T: Pietro Pratti e Luigi Bianchi
deixando o público manauara em grande comoção. A companhia seguiu caminho para Rigoletto O duque de Joaquim Br: Sante Athos Caldani e
*Don Pasquale Diavolo
Martha Vizeu Franco Giuseppe Dominici
Belém, onde permaneceu apenas um mês. *La sonnambula +Faust
Bs: Carlos Lopes, Luigi
Il barbiere di
Fewrari e Ferdinando Fava
Siviglia
Reg: Joaquim Franco
ano + 1894
S: Leonilde Gabbi e Palmira
Óperas de
Óperas Óperas de Ramini
autores
de Verdi e Óperas de bel Puccini, Aida Ms: Natalia Popoff-Barbini e
franceses Empresa Elenco
contemporâ- canto verismo e Il trovatore Lucia di Elena Baus Scarlatti
ou em
neos scapigliati Ernani Lammermoor Faust T: Carlo Bulterini, Giulio
francês Cavalleria
Rigoletto La favorita L’africana Ugolini, Ricardo Petrivich e
rusticana Joaquim
Un ballo in Lucrezia Borgia L’ebrea Alfredo Velebole
ano 1891 Il Guarany Franco
maschera La sonnambula Fra diavolo Br: Salvatore Vinci e
La Gioconda
S: *Adele Bianchi Montaldo, La traviata Il Barbiere di Carmen Bartolomeo Dadone
Maria Bosi e Costanza Brini La forza del Siviglia Bs: Francesco Nicoletti e
*La favorita Ms: *Mathilde Schiavinatto, destino Vincenzo Gasparini
Il trovatore
*Norma Paulina Motta e Giulia
Ernani Reg: Silvio Barbini
Lucia di Vittoria
Rigoletto
Lammermoor T: *Carlo Callioni, *Ferdinando ano + 1895
La traviata Joaquim
Linda di Chamounix Ambrosi e Ventura Bruschi S: Ana Politoff, Maria di
*Un ballo in Franco
Don Pasquale Br: Antonio Bucci e Giuseppe Nunzio, Raymonda da Costa,
maschera
Il barbiere di Dominici Alessandra Bottero e Maria
*Aida
Siviglia Bs: Carlo Cristofoli e Aida Cavalleria Mori
*Ruy Blas
Crispino e la comare Alessandro Niccolini Un ballo in rusticana Ms: Cltilde Sartori
La favorita Alzatti
maschera La Gioconda T: Antonio Ceppi, Giuseppe
Reg: Joaquim Franco Lucia di Faust & Villa
Il trovatore Jara Iaricci e Ferdinando Percuopo
Lammermoor Mignon / Gama
Rigoletto Fosca Br: Alessandro Arcangeli e
Malcher
Pagliacci Vittorio Trevisan
Benevady cantou em La fille du Regiment e Dragon de Villars, enquanto Henric estreou Mignon e Carmen,
18 Bs: Francesco Nicoletti e
sem poder, entretanto, repeti-las. Outro tenor comprimário também faleceu na ocasião. Giovani Scolari

Reg: Giacomo Armani


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Ópera na Amazônia entre o Império e a Primeira Guerra Márcio Páscoa

1896 (Belém) 1897 (Manaus) +1905


S: Libia Drog, Maria Peri, La bohéme S: Tina Poli Randaccio, Laura
Anitta Bacini e Maria Alonso Manon Silva e Sofia AIfos
Aida *La favorita Ms: Anna Berti-Cecchini Lescaut Ms: Emma Longhi
*Ernani *Lucrezia Borgia T: Vincenzo Maina, Lazaro Aida Tosca T: Edoardo Castellano,
La Forza del Lucia di La Gioconda Faust Otaviani, Augusto Nanetti e Il trovatore Iris Francesco Conti, Ferdinando
Donato
destino Lammermoor Il Guarany *L’ebrea Joaquim Joaquim Tavares La forza del Cavalleria Faust de Neri e Ruggero Randaccio
Lucia di Lamermoor Rotoli /
Un ballo in Norma *Cavalleria *Gli Franco Br: Cesare Bacchetta e destino rusticana Sansone e Br: Salvatore Vinci e Arturo
La sonnambula Juca de
maschera La sonnambula rusticana Ugonotti Francesco Maria Bonini Rigoetto Pagliacci Dalila Cerrateli
Carvalho
Otello *Il barbiere di Bs: Enrico Serbolini, Giuseppe Otello Fedora Bs: Michele Fiore e Giuseppe
*Ruy Blas Siviglia Conti e Vincenzo Gasparini Il Guarany Sorgi
La Gioconda
Reg: Enrico Bernardi Mefistofele Reg: Gianett e Gino Puccetti
+1900 Moema
S: Aida Alloro, Tilde +1906a
Maragliano e Maria Cavallini S: Amalia Agostoni e Adelina
La bohème
Ms: Lina Costanzi e Maria Motta
Manon
Aida Bastia Pagnoni Ms: Gisela Govoni
Lescaut
Otello T: Giuseppe Agostini, Franco T: Pietro Bersellini, Ettore
Cavalleria
Il trovatore Lucia di Juca de Cardinali e Giuseppe Peirani La bohème Rafaele de Beaumont e Arturo
rusticana
Rigoletto Lammermoor Carvalho Br: Alessandro Modesti e *Lucia di Cavalleria Tomba / Maccentelli
La Gioconda Rigoletto
La traviata Guletiero Pagnoni Lammermoor rusticana Juca de Br: Michele Rossini
Il Guarany
Ernani Bs: Antonio Sabellico, Ubaldo Pagliacci Caravalho Bs: Luigi di Liandri e Alberto
Fedora
Ceccarelli e Antonio Appiani Adami
Ideale
Reg: Giorgio Polacco Reg: Gennaro Pesci e Pompeo
1901 Richieri
S: Cleonice Campagnoli 1906b
Quiroli, Carlota Zucchi- Faust
Ferrigno, Elvira Miotti e Carmen
S: Lucy Delmay, Armel e
Aida *La Gioconda Mabel Nelma Le Grand
Ricordeau
*La traviata La bohème Ms: Maria Barbieri, Olga Mogol
Ms: D’Angeville e Berthy
Il trovatore Manon Caracciolo e Elisa Colonna Mignon
*Il barbiere di Joaquim T: Deamauroy
Ernani Lescaut +Faust T: Michele Sigaldi, Giovani La bohème Mireille
Siviglia Juca de Franco Br: Villete
La forza del Fedora +Gli Badaracco e Giorgio Quiroli Roméo et
*Lucia di Carvalho Bs: Paul Cerviéres e Jagorel
destino Cavalleria Ugonotti Br: Riccardo de Franceschi e Juliette
Lammermoor
Un ballo in rusticana Franco Polimeni *La fille
Reg: Edouard Boni
maschera Pagliacci Bs: Salvatore di Giulio, du tambor
Rigoletto Il Guarany Michele Fiore, Simeone major
Mongeli e Alceste Mori 1907

Reg: Giorgio Polacco


*Mignon
1902 S: Mendez de Leon, Demours,
*Dragon de
Comte e *Moska
S: Salvina Fornari e Cleonice Villars
Ms: Botti
Campagnoli *La fille du regiment La juive
T: Hughes, *Henric e
Ms: Cesira Gori Pasquali *La favorite L’africaine Joaquim
*Fedora Le Guarany *Benevady
Il trovatore T: Giorgio Quiroli e Ettore de Guillaume Tell Faust Franco
Lucia di Cavalleria Juca de Br: Georges Valdor e Tritignan
La traviata Beaumont Carmen
Lammermoor rusticana Carvalho Bs: Manent e Darnaud
Ernani Br: Remo Billi Les
La bohème
Bs: Vittorio Formetini Huguenots
Reg: Edouard Boni
Galathée
Reg: Luigi Longo

Quadro 2: óperas assistidas em Manaus e Belém, entre 1891 e 1907 com respectivos elencos. * Só em
Manaus. + Só em Belém.

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científicos e especialmente musicais. Irrequieto, neurastênico, andava


2. Conclusão sempre às turras com seu pince-nez que não deixava um momento se
Os problemas decorrentes da crise da economia da borracha começaram a se fazer ajustar sobre o nariz de justas proporções e quase elegante. Cabelo
sentir nos anos seguintes. As plantações inglesas na Ásia passaram a produzir borra- ondulado, preto, vestir descuidado, empertigava-se, tomando posições
cha em 1905, e a tendência crescente dessa produção já apontava para uma competi- semi-dramáticas quando a discussão se tornava mais intensa e anima-
ção que desfavorecia o produto brasileiro de muitos modos. Não só porque a borracha da. Passava de uma argumentação concisa, austera, grave, à conversa
mais pilhérica, infantil e apimentada (BOSIO, 1934: 85-86).
amazônica era silvestre – havia uma mística local que desacreditava a possibilidade
de plantação –, como também as firmas que lidavam com o comércio internacional do
produto eram inglesas ou estavam sediadas na Inglaterra ou operavam na Bolsa de Joaquim Franco morreu em Manaus, aos 70 anos de idade, em 27 de novembro de
Londres. Para piorar a situação, em Manaus, os serviços públicos essenciais haviam sido 1927, como último remanescente de uma época. Ainda que outras tímidas tentativas de a
privatizados e eram controlados por firmas inglesas, que haviam obtido a concessão. ópera retornar ao solo da Amazônia da Belle Époque tenham sido engendradas, elas não
Os anos seguintes à segunda temporada francesa de amazonenses e paraenses tinham mais, a seu favor, os recursos vultosos e os homens predestinados a fazer disso sua
foram de temor e prudência nos investimentos de dinheiro público. A independência história19.
das produções artísticas, que havia levado as duas maiores cidades do Norte brasileiro
a programar suas temporadas líricas a partir de iniciativas próprias, sem contar com a
rede de circulação que abrangia as outras cidades da América do Sul, agora se revelava
um problema, pois não havia mais segurança orçamentária para dar continuidade ao
contrato com Joaquim Franco ou fomentar outras opções líricas. Ainda vieram compa-
nhias de operetas e outros gêneros teatrais depois de 1907. Mas esse foi o ano em que
o fastígio da época da borracha se encerrou definitivamente para o teatro lírico nortista.
Durante algum tempo, ainda se viveu a expectativa de que as coisas podiam não
ser tão sérias ou mesmo mudar de figura. Era comum que alguns artistas, que vinham
com o lírico, ficassem em Belém e Manaus durante meses ou mesmo anos, e a lista foi
bem grande. Alguns deles pretenderam fixar residência e, além das aulas habituais, abri-
ram negócios. Por exemplo, Edouard Boni, regente das últimas temporadas, pretendeu
ficar em Manaus e abriu loja de partituras e instrumentos musicais, ao lado de outras desse
gênero, mas, com a crise gomífera, em poucos anos desfez-se de tudo e retirou-se.
Franco retornou ao seu projeto de formação artística, ora se anunciando no Conserva-
tório Carlos Gomes, ora no externato que levou seu nome, ou ainda na Academia de Belas
Artes, nenhum deles contando mais com subvenção pública. O compositor e violoncelista
Ettore Bosio, que se radicou no Pará e teve uma ópera encomendada e encenada por Franco
em 1892 – O duque de Vizeu –, deu, em suas memórias, um retrato do músico:

Um empresário original. Joaquim Franco, figura conhecida no nosso


meio artístico, pelo valor intelectual, pela maneira de encarar os fatos
e as cousas, desse miserável planeta, e pelos seus atos algumas vezes
extravagantes, foi por diversas vezes empresário lírico, trazendo-nos
as melhores as melhores companhias que obtiveram os mais justos
sucessos. O seu físico, quando o conheci pela primeira vez na cidadela
de Busto Arsizio, na Itália, era o de um homem insinuante, de olhar as- 19
Amazonas e Pará mandaram, à Europa, diversos bolsistas de música e outras artes. Octavio Meneleu
tuto e de uma conversação atraentíssima, demonstrando sempre gran- Campos (1872-1927) voltou a Belém, depois de estudos em Milão, e compôs Gli eroi, que jamais conseguiu
de entusiasmo pelas artes. Culto, de uma cultura robusta, não perdia encenar. Elpídio Pereira (1872-1961) retornou a Manaus, após estudos em Paris, e também fez uma ópera,
vasa quando podia explanar o seu vasto repertório de conhecimentos intitulada Calabar, que só conseguiu levar em concerto fora do Brasil. Ambos foram embora da Amazônia
com a crise da borracha.

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Fontes e referências CORRESPONDÊNCIA, Diário de Pernambuco, Recife, p.2, 15 mar. 1845.

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Outras fontes

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ALMANAK administrativo, mercantil e industrial para o anno bissexto de 1868. Pará:


Carlos Seidl & Co., 1868.

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A mulher na educação musical e na vida
artística em Belém do Pará, da Belle
Époque até a metade do século XX
Dione Colares de Souza
Universidade Federal do Pará

Luana Santana Pensador


Universidade do Estado do Pará

4 como citar
SOUZA, Dione Colares de; PENSADOR, Luana Santana. A
mulher na educação musical e na vida artística em Be-
lém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX.
In: DUARTE, Fernando Lacerda Simões; RUAS JUNIOR,
José Jarbas Pinheiro (ed.). Norte. Vitória: Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p.
102-125. (Histórias das Músicas no Brasil).
A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

1. A presença feminina na música em Belém-PA: considerações Na cidade de Belém, era comum a circulação de músicos com formação europeia.
iniciais Por isso, famílias abastadas contratavam aulas particulares de instrumento e canto para
O mundo social, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, abriu espa- os seus filhos, pois o requinte da cultura europeia se tornou o modelo aspirado na so-
ço para a criação de agentes de fomento à prática e ao consumo da música erudita euro- ciedade (VIEIRA, 2001: 50), o cultivo do instrumento piano se projetou como elemento
peia na capital paraense. A assimilação de tradições musicais e modos sociais europeus de valorização social e seu estudo se inseriu como elemento simbólico associado à
implicou hibridar a cultura local e passou a fazer parte das práticas e representações tradição familiar e ao dote feminino.
artísticas fortemente evidenciadas e valorizadas em Belém no período que ficou conhe- Acrescenta-se que piano, idioma francês, leitura e noção básica de matemática,
cido como a Belle Époque paraense, em decorrência do fausto da borracha. geralmente, eram as disciplinas que as moças de classe privilegiada deveriam aprender,
Nesse contexto, propõe-se investigar a participação da mulher na educação musi- por meio de aulas particulares ou em ambientes religiosos, entretanto, as de classes me-
cal, na vida artística e cultural da cidade de Belém do Pará, mais precisamente durante nos abastadas deveriam dedicar-se totalmente aos trabalhos domésticos e aos cuidados
o período de 1896, ano da nomeação de Antônio Carlos Gomes como primeiro diretor do com irmãos menores, sendo-lhes negado o direito à educação (LOURO, 2018: 445-446).
então Conservatório de Música1, até a metade do século XX, perpassando as produções Contudo, algumas mulheres abriram espaço no campo profissional da educação
artísticas de autoria feminina evidenciadas nas fontes pesquisadas, bem como a sua musical em Belém, na época de recorte desta pesquisa. Um desses nomes é o de Antônia
atuação no campo da educação musical em Belém, com destaque à figura da pianista Rocha de Castro3, professora de música e fundadora da Escola Carlos Gomes, em 1915,
Helena Souza2 (1906-1990), primeira mulher a assumir a direção daquele conservatório, que funcionou durante o período em que o Instituto Carlos Gomes permaneceu desati-
em 1936. vado. Destaca-se também Helena Nobre, notável cantora lírica paraense, descendente
Para tanto, busca-se abordar aspectos históricos, sociais e de gênero que permea- de uma família de músicos, que respirou música durante a sua vida, atuando, ainda, na
ram a trajetória da mulher – compreendida nas primeiras décadas de existência do Con- área do magistério do canto, ministrando aulas particulares, e, mesmo com os tabus da
servatório de Música em Belém e durante o período da Belle Époque, que testemunhou a época, “teve a oportunidade de subir ao palco com vários de seus parentes, em especial,
construção de uma cidade cuja expansão se deveu à organização urbanística e à adoção com seu irmão Ulysses Nobre – dupla de cantores que até hoje é lembrada sob o título
de parâmetros artísticos europeus. Destarte, amplia-se a compreensão acerca da par- ‘Irmãos Nobre’” (MAIA, 2010: 29).
ticipação feminina, pontuando os processos do ensino-aprendizagem musical dirigido Ainda no campo pedagógico musical, tem-se a figura de Helena Souza, primeira
ao público feminino daquela época, as práticas e produções artísticas de mulheres, bem pianista a assumir a cátedra de piano no Instituto Carlos Gomes e primeira mulher a
como as dificuldades sociais enfrentadas por esses sujeitos para ocupação do espaço assumir sua direção. A artista, que, “durante muito tempo[,] se dedicou à interpretação,
de trabalho na música. tendo aparecido em muitos concertos e recitais” (SALLES, 2016: 544), protagonizou dois
Desta feita, os fatos históricos demonstram como os hábitos e a herança cultural, fatos históricos importantes no que tange à atuação da mulher na música durante o
provinda da riqueza da exploração e exportação da borracha, privilegiaram o magistério período pesquisado, marcando época enquanto figura feminina na educação musical
musical em Belém e o cultivo da música erudita europeia durante a Belle Époque, forjan- em Belém.
do um mercado de consumo de bens culturais no qual a música era muito valorizada. Além dessas referidas personalidades femininas, outras mulheres participaram
Corroborando essa ideia, Vieira (2001: 51) afirma que: ativamente da vida musical da cidade, ainda que no anonimato dos saraus particulares
promovidos pelas famílias burguesas, compondo músicas ou atuando no mercado de
Na verdade, o porto de Belém exportava borracha e importava os re- trabalho musical em Belém.
quintes para ostentação da burguesia local: não só os figurinos de Paris,
A partir da análise das fontes documentais selecionadas para este estudo, em
mas uma arquitetura de inspiração francesa, que ajudou a compor a Be-
lém da “belle époque” (1870-1912), com seus cafés (Café Chic, Café da acréscimo ao processo de inserção da mulher nos espaços educacionais e na vida musi-
Paz) e teatros erguidos em torno do mais belo de todos: o Teatro da Paz. cal da cidade, busca-se apontar as barreiras socioculturais enfrentadas em seus contex-
tos de atuação, bem como revelar identidades de mulheres invisibilizadas que atuaram
no campo composicional.
1
O Conservatório de Música foi criado em Belém no ano de 1895, como departamento da então Academia
de Belas Artes. Posteriormente foi transformado em estabelecimento escolar público, passando a se chamar
Instituto Carlos Gomes, em 1897 e Instituto Estadual Carlos Gomes, em 1986 (VIEIRA, 2001: 69).
2
Helena Souza (1906-1990), pianista diplomada em Portugal, sendo a primeira mulher na direção do então 3
Antônia Rocha de Castro (1881-1937), pianista, professora de piano, regência e canto coral. Estudou no
Instituto Carlos Gomes. Nas fontes pesquisadas, encontrou-se inconsistência na grafia de seu sobrenome, a ICG e compôs música lírica e instrumental (SALLES, 2016: 180-181).
saber, “Souza” e “Sousa”. Adota-se “Souza” neste artigo (SOUZA; COELHO DE SOUZA, 2022: 105).

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Os procedimentos metodológicos adotados para realização deste estudo contaram Entretanto, para Vieira (2001: 43-44), a música erudita europeia foi reforçada, em
com o levantamento bibliográfico e documental. As fontes bibliográficas fundamentam Belém do Pará, pelos acontecimentos que marcaram o cenário político e econômico da
a compreensão dos aspectos históricos e sociais que envolvem a mulher no cenário mu- cidade. Assim sendo, a organização da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
sical na capital paraense. Assim, sustentam as bases desta pesquisa: Salles (1980, 2007, Maranhão (1755) e a instalação do Bispado do Pará (1719-1721) ratificaram os interes-
2016), Bourdieu (2007), bem como Vieira (2001), na área da educação musical; e Souza ses da burguesia, que aspirava ao modelo cultural europeu, inclusive, buscando os re-
(2020), quanto à presença da mulher na música do Pará. quintes da Belle Époque, com o estímulo às construções de espaços culturais, tais como a
Recorreu-se ao Acervo Mulheres na Música da Amazônia (MUSA), do projeto de Casa da Ópera ou o Teatro Cômico (1775), em Belém, e outros locais de entretenimento
pesquisa institucional vinculado à Escola de Música da Universidade Federal do Pará da burguesia local. Tem-se, então, a ideia de habitus social, a respeito da qual Bourdieu
(EMUFPA), compreendendo pesquisas e materiais sobre a atuação feminina na música (2007: 164) afirma que:
do Pará, como periódicos, jornais, programas de concerto, panfletos, partituras de autoria
feminina, fotos e documentos diversos, pertencentes a familiares dessas mulheres. A dialética das condições e dos habitus é o fundamento da alquimia que
transforma a distribuição do capital, balanço de uma relação de forças,
Por fim, o alinhamento dos dados levantados para esta pesquisa com as áreas de em sistema de diferenças percebidas, de propriedades distintivas, ou
discussão propostas será apresentado em quatro seções. A primeira abordará a forma- seja, em distribuição de capital simbólico, capital legítimo, irreconhecí-
ção de uma sociedade musical até a criação do Conservatório de Música em Belém. A vel em sua verdade objetiva.
segunda discutirá a educação musical feminina do final do século XIX até as primeiras
décadas do século XX. A terceira apresentará produções artísticas de autoria feminina. Acrescenta-se que a Schola Cantorum, criada em 1735, foi a primeira instituição
A última seção descreverá o protagonismo feminino na educação musical em Belém do musical do Pará, na qual a educação se destinava especificamente aos jovens do sexo
Pará, com destaque para Helena Souza. masculino, meninos de famílias abastadas, com o objetivo de os instruir durante sua
participação no coro. Além do mais, era ofertado conhecimento completo em outras
2. Da formação de uma sociedade musical à criação do Conservató- áreas, paralelamente aos conteúdos ministrados de música, tais como religião e letras.
rio de Música em Belém No entanto, as meninas não tiveram as mesmas oportunidades, pois tinham que ficar em
Nos primeiros registros sobre ensino musical formal em Belém, é possível observar a casa para se aprimorar nos cuidados do lar.
herança de uma estética europeia, que pautou as práticas musicais na sociedade local. A criação do Conservatório de Música em Belém partiu dessas primeiras iniciativas
Segundo Salles (1980: 35), a educação musical no Brasil e no Pará iniciou-se com o pro- de educação musical, conforme afirma Vieira (2001: 45): “Os espaços criados pela igreja
cesso de colonização de um modelo europeu, uma vez que as ordens religiosas tiveram para a música foram o embrião do conservatório, instituição especializada exclusiva-
que criar estratégias para catequizar índios e negros, nas regiões com pouca ou nenhu- mente no ensino da música, firmada na Europa, no século XIX, mesmo século em que foi
ma interação social. Assim, na província do Grão-Pará, houve a intenção de converter os propagada no Brasil e transplantada para Belém”.
índios e negros ao cristianismo, utilizando-se a música como ferramenta de conversão Para reforçar a prática da música erudita em Belém, grupos de artistas e intelectu-
religiosa, conforme se observa: ais criaram associações musicais na cidade, tais como a Lyra Paraense de Santa Cecília,
o Clube Euterpe, a Bela Harmonia, a Tuna Luso Caixeiral, entre outras (VIEIRA, 2001: 53).
Embora escassa a documentação, sabe-se[,] todavia[,] que os primeiros Destas, resultou a Associação Paraense Propagadora das Belas Artes, que se subdividia
colonos, militares e religiosos, introduziram a dança e a música euro-
péia [sic.], bem como instituíram aulas de cantar e tanger instrumentos em dois departamentos: o de Artes Plásticas e o Conservatório de Música. A Academia
musicais. Aos missionários devemos a maior cota desse esforço, pois das Belas Artes, mais especificamente o Conservatório de Música, custeado pela Asso-
dava bons resultados a prática evangelizadora com alguma base musi- ciação Propagadora das Belas Artes e pelo Governo Estadual, foi um marco decisivo para
cal. Assim, logo nos primeiros anos da colonização, a Amazônia recebeu a disseminação da música erudita em Belém e para o seu ensino, entre as numerosas
o forte influxo do canto gregoriano, vulgarmente chamado cantochão,
instituições surgidas nos primeiros anos da República (SALLES, 2012: 11).
diluído, à sociedade, na memória musical do povo de tal forma que se
tornou presente, até nossos dias, em farta cópia de textos da música A Academia das Belas Artes, da qual o conservatório fazia parte, foi instalada em
popular e folclórica, que sendo essencialmente modal, apresenta os reunião solene ocorrida no Theatro da Paz, no dia 24 de fevereiro de 1895 (SALLES,
diferentes modos do cantochão (SALLES, 1980: 35). 2016: 205). Assim, no ano de criação do Conservatório de Música em Belém, em 1895,
o terceiro mais antigo do Brasil, o maestro Antônio Carlos Gomes, que desfrutava de
prestígio e reconhecimento musical, recebeu o convite para ser seu primeiro diretor, e a

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posse oficial do cargo ocorreu em 5 de junho de 1896, oficializando o marco da primeira no Pará e espaço propagador das artes. Os arquivos de programas ocorridos no Theatro
direção desse conservatório. da Paz testemunham esse ambiente social de entretenimento cultural, já enraizado no
Entretanto, Carlos Gomes não conseguiu dar continuidade aos seus projetos rela- habitus da sociedade burguesa.
cionados ao Conservatório de Música, porque se encontrava gravemente doente, vindo Portanto, a participação feminina torna-se crescente no processo de construção de
a falecer logo depois de ter assumido a direção dessa instituição, no dia 16 de setembro uma sociedade musical em Belém, inicialmente aprendendo música como parte de sua
de 1896. Um ano depois de sua morte, formação educacional, o que oportunizou a interação artística da mulher nos espaços
público e privado, e, depois, nos de formação musical, caso dos cursos particulares de
O Governador Paes de Carvalho, autorizado pela lei nº 525, de música, que se propagaram tanto durante quanto após o período em que o Instituto
1º/07/1897, mudou a denominação do Conservatório de Música para
Instituto Carlos Gomes e deu a nova estrutura, em seis seções: elemen-
Carlos Gomes permaneceu fechado.
tar, vocal, instrumental, preparatória e complementar de composição,
literária e de conjunto (SALLES, 2016: 205). 3. A predominância do piano na educação musical feminina paraense
Como abordado na seção anterior, o aprendizado do piano foi predominante em Belém
Portanto, a homenagem do estado auferida a Carlos Gomes deve-se à grande es- nas primeiras décadas do século XX e simbolizava a apropriação de bens culturais e
tima pelo maestro e a seu prestígio, assim, o então Instituto Carlos Gomes (ICG) prosse- do modo de vida europeus. O piano mostra-se como importante meio de socialização
guiu com suas atividades sob a direção dos seguintes professores, em ordem sucessiva: e distinção social na vida burguesa, além de veículo para interação entre associações
Enrico Bernardi, José Cândido da Gama Malcher, Meneleu Campos e Paulinho Chaves. artísticas.
Este último permaneceu até 1908, quando a instituição não pôde mais manter os seus Desta feita, enfatiza-se que o piano foi o instrumento erudito mais “popular” até
custeios e ficou desativada por 20 anos. o início do século XX, símbolo de valorização social, que se tornou tradição nas famí-
Mesmo após o encerramento das atividades do Instituto Carlos Gomes, em 1908, o lias mais abastadas, e parte da formação educacional feminina, inserindo-se, assim, no
piano, sendo o maior símbolo de ostentação da burguesia e fonte de modelo de ensino “campo de interesses burgueses associados ao glamour das festas de bailes, saraus fa-
musical europeu sistematizado e formal, permanece como foco de interesse da bur- miliares e programas de concerto” (SOUZA, 2020: 52). Ainda, Souza (2020: 48) prossegue
guesia local, uma vez que se tornara o instrumento mais popularizado. Assim, por mais afirmando que:
que não se soubesse tocá-lo, considerava-se importante manter o instrumento em casa.
Ficava na sala de estar dos casarões, para ser tocado nas reuniões sociais íntimas ou O piano desponta simbolicamente como testemunha de uma história
política, econômica e ideológica, associada a uma paisagem que de-
simplesmente como uma mobília que demarcava um status social de classe. monstra o processo de urbanização e consequente europeização de va-
Em vista disso, o comércio de compra e venda de pianos em Belém foi estimulado lores culturais. Nesse ícone, ressoam os grandes avanços tecnológicos
devido à exportação da borracha, desde 1858. O francês Frederico Vionne, representante conquistados pela era da revolução industrial que projetou em um só
dos pianos Allison, intensificou o negócio de fabricação, importação, afinação e manu- instrumento recursos sonoros jamais antes experimentados.
tenção de pianos na cidade (SALLES, 2016: 453).
Logo, durante o período em que o Instituto Carlos Gomes ficou desativado, mante- Portanto, saber tocar bem o piano tornou-se pré-requisito na educação feminina,
ve-se intenso interesse pelo aprendizado musical, especialmente como parte da educa- pois se esperava que as mulheres tivessem a habilidade de entreter os encontros fa-
ção feminina naquela época. A sociedade patriarcal e conservadora promovia e estimu- miliares ou as reuniões sociais, a partir de uma lógica de consumo de bens culturais
lava o estudo do piano, pois este representava lazer e ocupação para o sexo feminino. oriundos de uma tradição herdada da Europa, que se afirma, em Belém, como paradigma
Conservou-se enquanto instrumento de maior interesse para as aulas particulares, pois cultural, no qual o piano se tornara agente de conservação e difusão de um capital sim-
podia ser tocado sozinho ou acompanhando outros e era requisito para o estudo do bólico importante. Para reforçar essa ideia, retoma-se Bourdieu (2007: 104):
canto também.
Além da atuação feminina nos espaços da vida privada, muitos locais de manuten- A determinado volume de capital herdado corresponde um feixe de
trajetórias praticamente equiprováveis que levam a posições pratica-
ção e difusão do gosto pela música erudita europeia se desenvolveram. Dentre estes, mente equivalentes – trata-se do campo dos possíveis oferecido obje-
destacam-se teatros, clubes, associações culturais, por exemplo, o Theatro da Paz, cons- tivamente a determinado agente; e a passagem de uma trajetória para
truído no período de apogeu da exportação da borracha, símbolo da cultura europeia outra depende, muitas vezes, de acontecimentos coletivos (guerras, cri-

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ses, etc.) ou individuais (encontros, ligações amorosas, privilégios, etc.)


observar no excerto abaixo, em que Salles (2012: 12-13) descreve os cursos ofertados
descritos, comumente, como acasos (felizes ou infelizes), apesar de de-
penderem, por sua vez, estatisticamente, da posição e das disposições no Instituto Carlos Gomes em sua primeira fase:
daqueles que vivenciam tais eventos.
CONTRAPONTO E COMPOSIÇÃO: Antônio Carlos Gomes; PIANO, para o
sexo feminino, Antônio de Almeida Facciola; PIANO e ainda a cadeira de
Corroborando essa ideia, Souza (2020: 56) afirma que, em Belém, “os modos sociais ELEMENTOS, DIVISÃO E SOLVEJO[sic.], para o sexo feminino, Clemente
voltados para o incremento cultural do cultivo de gêneros e estilos musicais da época Ferreira Junior; PIANO, para ambos os sexos, Manuel Francisco Pereira de
promoveram a criação de práticas sociais que circunscreviam as práticas femininas nos Sousa; PIANO, curso elementar, para o sexo feminino, Joana Corrêa (de
espaços público e privado”. Sá Pereira); VIOLINO, para ambos os sexos, Luigi Sarti; VIOLINO E CAN-
TO, para o sexo feminino, Virgínia Sinay Bloch; FLAUTA, ELEMENTOS E
Acrescente-se que os encontros familiares e aqueles entre amigos, no ambiente
DIVISÃO, Roberto de Barros; INSTRUMENTOS DE METAL, Aureliano Pinto
burguês, eram frequentes e se realizavam, costumeiramente, no espaço privado das ca- de Lima Guedes; FAGOTE, Giuseppe Cerone; HARPA, Esmeralda Cervantes
sas de família, fortalecendo a socialização entre artistas e associações culturais a cada Grossmann; HARMONIA, SOLFEJO, CLARINETA, OBOÉ E CORN-INGLÊS,
encontro. Nessas reuniões particulares, a execução pianística, na maioria das vezes, fica- Her-menegildo Alberto Carlos [sic]. ANATOMIA E FISIOLOGIA DOS ÓR-
GÃOS VOCAIS, dr. Euphrosino Nery; LÍNGUA FRANCESA, dr. Heliodoro de
va por conta das mulheres, como é possível constatar na nota jornalística do periódico
Brito; LÍNGUA ITALIANA, F. Veirgtell; LITERA-TURA[sic.] (poética e dra-
A Semana4, que evidencia esses encontros particulares no ambiente privado e reforça o mática), HISTÓRIA E ESTÉTICA DA MÚSICA, dr. Paulino de Brito.
cultivo pela música erudita europeia em Belém:
Nota-se que, nessa primeira fase do ICG, o corpo docente era formado por pro-
Momentos de arte e de encantadora espiritualidade passaram-se quin- fessores do sexo masculino, alguns vindos da Europa para compor o projeto de ensino
ta-feira última, em casa de Mlle Helena Souza. A noite, para homenage-
musical do Conservatório de Música. Tal fato reflete a circulação do dinheiro na época,
ar o nosso collaborador poeta Gonzaga Lima, numa demonstração de
fraternidade do Pará pelo Ceará, reuniram se na residencia da encanta- na qual se observa a prosperidade econômica, que permitiu a concessão, pelo Governo
dora pianista paraense famílias, litteratos, musicos, jornalistas e, todos Estadual, de bolsas de estudos aos músicos locais para aprimoramento na Europa, no
na maior cordialidade espiritual… Uma sobrinha da família Souza, cujo compromisso de retornarem ao estado a fim de prestarem serviços à educação musical
nome lamentamos não nos ocorrer, cantou, com emoção, exhibindo a em Belém. Assim, Vieira (2001: 48) ressalta que:
crysálida de uma voz que se faz Cacilda Ortigão... Foi um encantador
serão, a que a família Souza sobre elevou pelo agrado, dispensado a
todos [sic.] (PARÁ e Ceará unidos pela arte, 1933). Para o aperfeiçoamento dos músicos, dois elementos foram fundamen-
tais: o patrocínio do governo e o fato de Belém ser um porto extremo
da navegação de longo curso, que ligava a cidade aos principais portos
A nota jornalística ressalta a rotina de costumes vivenciados, durante as décadas do Atlântico Sul com os Estados Unidos, sendo a primeira parada dos
iniciais do século XX, pelos moradores de Belém. Depreende-se que os encontros eram navios que, por essa rota chegavam ao Brasil. A comunicação dos Es-
realizados como parte de uma tradição musical na cidade, em casas de famílias da tados Unidos com a América do Sul, fazia-se, portanto, via este porto.
sociedade local, a exemplo do referido sarau realizado na residência de Helena Souza,
como parte do habitus cultural em 1933, validando a estética da música erudita euro- Portanto, o piano, que, inicialmente, foi introduzido como instrumento de formação
peia em Belém. ideal para o sexo feminino, oportunizou a participação efetiva da mulher na música. O
Assim como os ambientes da vida privada onde saraus musicais eram realizados, crescente interesse pelo instrumento também abriu espaço para as primeiras atuações
espaços como o Theatro da Paz contribuíram para a propagação e difusão da prática femininas no campo educacional da música em Belém.
musical e ampliaram a participação da mulher na vida cultural, pois elas se apresenta- Desse modo, observa-se a predominância feminina no corpo discente na primeira
vam em concertos, tocando ou cantando. fase do Instituto Carlos Gomes (ICG), até o encerramento de suas atividades, em 1908. A
Desde a época da criação do Instituto Carlos Gomes (ICG), a estrutura curricular partir desse marco histórico, a figura da mulher passa a expandir sua atuação na educa-
e a divisão de matérias demonstram que o estudo do piano privilegiava as pessoas do ção musical, pois o fechamento do ICG serviu de impulso para a iniciativa privada.
sexo feminino. As mulheres podiam também estudar canto e violino, como é possível Assim, no período em que o ICG permaneceu desativado, de 1908 a 1928, foi cres-
cente o número de cursos particulares de música, especialmente voltados ao ensino
do piano, como é o caso da Escola Carlos Gomes, criada, em 1915, por Antônia Rocha
4
Essa revista circulou, no início do século XX, em Belém e tratava da vida cotidiana e política da cidade.

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de Castro, que atuou como professora de música, e do Jardim Musical de Santa Cecília,
dirigido pela pianista e professora Helena Souza a partir da década de 1930. Além de
escolas particulares de música, diversas associações civis tiveram grande influência na
difusão da música erudita europeia e na manutenção do ensino musical em Belém, tais
como: a Tuna Luso Caixeiral, a Associação Recreativa Musical Portuguesa, o Clube Euter-
pe e o Centro Musical Paraense (VIEIRA, 2001: 71).
Observa-se que, no programa curricular desenvolvido na Escola Carlos Gomes,
em outras escolas particulares e nas associações musicais, a manutenção do modelo
curricular adotado pelo ICG durante o seu período de atividade, ou seja, a tradição dos
estudos e as metodologias aplicadas naquelas instituições, se espelhava nos moldes de
formação conservatorial. Essa tradição era reforçada pelos professores, que promoviam
recitais periódicos com seus alunos nos salões de suas residências, em auditórios e nos
teatros da cidade de Belém (VIEIRA, 2001: 72).
O rastro dessa tradição musical em Belém, que se volta ao aprendizado musical
dirigido às mulheres nos primeiros decênios do século XX, pode ser observado no de-
poimento da professora Itacy Silva5 (2015), em relato para a pesquisa de Barros e Vieira
(2015: 339):
A primeira a começar a estudar música em casa foi a minha irmã mais ve-
lha – somos três irmãs. Essa minha irmã começou a aprender a tocar pia-
no, mas nós não tínhamos o instrumento em casa, ela ia praticar na casa
de uma colega. Ela não aprendeu muita coisa, não chegou a ingressar no
conservatório. Talvez o fato de nós não termos o instrumento em casa fez
com que ela não prosseguisse. Mas ela pode ter sido uma influência para
eu tocar piano, além da minha mãe que quis que também eu estudasse
piano, mesmo não tendo piano em casa.
Eu comecei tendo aula particular, eu ia à casa da professora Cândida.
Ela não dava aula no conservatório apenas em sua residência e lá ela
fazia recitais no fim do ano com todos os alunos, em que nós tocávamos
algumas peças. Como eu gostava muito e já estava um pouco mais de-
senvolvida – já estava com ela há uns três anos –, a professora falou com
a minha mãe para que eu fosse estudar no Conservatório Carlos Gomes.

Nota-se que as lembranças relatadas pela professora conservam detalhes de sua


vida no tempo em que vivenciou a tradição voltada ao habitus social de valorização
da formação pianística em Belém. Suas memórias demonstram uma relação afetiva e
saudosa com o período em que iniciou seu aprendizado musical, além de reforçarem a
importância de estudar em uma instituição de tradição conservatorial.
Na Figura 1, observa-se o programa de um recital realizado em 1932, no Salão da
Fig. 1: Programa de recital na Tuna Luso Commercial, 1932. Fonte: fundo pessoal Helena Souza, recolhi-
Tuna Luso Commercial, promovido pela Associação dos Amigos da Arte, que, costumei-
do ao Acervo MUSA (2021).
ramente, fomentava esses encontros musicais.

5
Itacy Silva, natural de Belém do Pará, estudou piano em aulas particulares e no conservatório. Começou a
trabalhar no ICG em 1970, como professora de musicalização, teoria e solfejo (BARROS; VIEIRA, 2015: 339-340).

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No programa da Associação dos Amigos da Arte, constata-se a predominância de gosto pela escuta da música que circulava nos programas de concerto, nas críticas de
mulheres na execução musical, ao piano e na prática do canto. O programa, executado arte, nos anúncios musicais de toda espécie, no mercado litográfico de partituras, nos
no Salão da Tuna Luso Commercial, demonstra que havia outros locais de difusão dessa cadernos de estudo das alunas do Instituto Carlos Gomes, nos saraus promovidos em
prática social além dos teatros. O programa matinal promovido pela Associação dos ambiente privado e em diversos outros espaços de difusão musical.
Amigos da Arte indica uma interação entre as artes, pois apresenta uma parte literária, Para o presente estudo, lança-se mão do conjunto documental de partituras de
que antecede a apresentação musical. Portanto, o fato de o evento ter ocorrido em um autoria feminina até a primeira metade do século XX, objeto da tese doutoral de Souza
domingo de manhã denota que as atividades artísticas voltadas à realização de con- (2020). Na aludida pesquisa, a autora recorreu a diferentes fontes, a destacar a coleção
certos de música erudita integravam a vida social cotidiana da cidade, que, por sua vez, Vicente Salles, composta pela biblioteca que pertenceu ao historiador que dá nome ao
mantinha interesse nesse tipo de programação cultural como forma de lazer. acervo. Essa coleção perfaz a história musical da Amazônia e está constituída por ma-
Contudo, o ICG volta a funcionar em 1929, ano este em que se reafirma a tradição nuscritos raros, obras editadas e documentos diversos, que compreendem centenas de
do ensino da música erudita europeia na cidade de Belém. Mesmo nos anos em que se partituras datadas desde o século XIX.
manteve fechado, a mobilização de professores que atuaram na primeira fase do ICG Assim, para fins comparativos, Souza (2020: 29) destaca que, somente em relação
permitiu a preservação e a continuidade do ensino musical aos moldes curriculares ao quantitativo de partituras de canções manuscritas encontradas no acervo Vicente
estabelecidos pelo Conservatório de Música desde a sua inauguração. Na retomada de Salles, pertencente ao Museu da Universidade Federal do Pará, em Belém, há 587 parti-
suas atividades, os alunos que pertenciam à Escola Carlos Gomes foram todos remane- turas de autoria masculina e 104 de autoria feminina, entre composições para canto e
jados para o ICG, onde também a professora Antônia Rocha de Castro passou a integrar piano, bem como instrumentais. Considerando, ainda, partituras encontradas em outras
o corpo docente, ratificando o entendimento de que a reabertura da instituição era uma fontes – a saber, a biblioteca do atual Instituto Estadual Carlos Gomes, documentos do
expectativa para a sociedade local. Acervo MUSA, ainda em fase de ampliação, e partituras mantidas em acervos particula-
res, enfim, todo o conjunto documental pesquisado em Belém –, Souza (2020) levantou
4. Produções artísticas de autoria feminina em Belém o quantitativo de 59 canções manuscritas e editadas de 16 compositoras que nasceram
A produção artística de autoria feminina no Pará, da Belle Époque até os primeiros de- em Belém até a década de 1920, circularam, publicaram ou viveram na cidade durante
cênios do século XX, constrói-se em meio às práticas culturais do período investigado. algum período de suas vidas.
Mediante as partituras manuscritas e as editadas, os programas de concerto e os jornais O quantitativo de canções acima descrito é de autoria das seguintes compositoras:
da época, é possível alinhar os componentes estéticos observados nas obras seleciona- 1) Maria de Lourdes Rangel Antunes (Belém, 1905-?); 2) Simira Bacellar (Manaus, 1920-
das aos fatos históricos e sociais que ocorrem no entorno dessas produções. Portanto, ?); 3) Zilda Bacellar (data de nascimento não encontrada, mas publicou em Belém na
as práticas de consumo de bens culturais, as relações sociais na perspectiva de gênero e década de 1920); 4) Ana de Holanda da Cunha Beltrão, conhecida como Anita Beltrão
as estruturas institucionais da época forjaram o ambiente para a expressão artística da (Belém, 1896-1977); 5) Olindina Cardoso (data de nascimento não encontrada, mas pu-
mulher que transitava pela música. blicou em Belém na década de 1920); 6) Júlia das Neves Carvalho (Belém, 1873-1969);
Com a modernização urbana da cidade de Belém, ocorrida ao final do século XIX 7) Antônia Rocha Castro (Belém, 1881-1937); 8) Dora de Abreu Chermont (Belém, 1886-
e que invadiu os anos iniciais do século XX, em decorrência da exploração e do comér- ?); 9) Júlia Cesarina Ribeiro Cordeiro, conhecida como Madre Cordeiro (Belém, 1867-Re-
cio gomíferos, a mulher passou a interagir com novos espaços de difusão e circulação cife, 1947); 10) Maria de Nazaré Figueiredo (data de nascimento não encontrada, mas
da estética musical europeia, rompendo aparente e superficialmente com o sistema de publicou em Belém em 1942); 11) Marcelle Corrêa Guamá, conhecida como Marcelle
papéis sociais a ela impostos. A metrópole paraense testemunhou mudanças arquite- Guamá (Paris, 1892-Rio de Janeiro, 1978); 12) Eneida do Espírito Santo Moraes (Belém,
tônicas que simbolizam a modernização urbana da Belle Époque e que transformaram 1918-?); 13) Helena Nobre (Belém, 1988-1965); 14) Dulcinéa Paraense (Belém, 1918-?);
Belém em um polo de produção musical importante, com a criação de espaços como o 15) Raquel Angélica Peluso (Santarém, 1908-São Paulo, 2005); e 16) Coêmia Espíndola
Theatro da Paz, o Instituto Carlos Gomes, o Cine Olympia e outros salões de concerto Rodrigues (Belém, 1916-?).
instituídos por associações culturais. Algumas ações no campo da pesquisa acadêmica vêm sendo realizadas com o
Nesse contexto em que novos hábitos e costumes se concretizavam, a mulher intuito de promover a circulação e difusão de canções de autoria feminina, de compo-
vivenciou as condições para produzir artisticamente, face aos pressupostos de uma edu- sitoras nascidas até 1920 em Belém. Resultados preliminares foram publicados no III
cação musical herdada pela família e cultivada pela sociedade local, que emulou o Congresso Internacional e Interdisciplinar em Patrimônio Cultural (2021) e no XXV Con-

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A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

gresso Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) (2021), nos artigos percurso, a mulher também ampliou sua participação em várias apresentações musicais
de Souza e Coelho de Souza (2021a, 2021b). O Acervo MUSA é um projeto de pesquisa em ambientes públicos e privados.
institucional em andamento, vinculado à Escola de Música da Universidade Federal do No entanto, o reconhecimento e o espaço profissional conquistados pela mulher
Pará, escola pública de ensino especializado em Belém, e, em sua primeira etapa, vol- foram resultados de processos de resistência e muitas discussões de tabus, vivencia-
ta-se à criação do Cancioneiro Feminino no Pará, que objetiva a editoração, a revisão dos em uma época em que ela não possuía os mesmos direitos civis que o homem. Na
crítica, o registro fonográfico e a difusão de canções manuscritas de autoria feminina, sociedade patriarcal brasileira da década de 1920, a mulher casada só podia trabalhar
da Belle Époque até a metade do século XX, nunca antes editadas, com a finalidade de fora de casa com expressa autorização do marido, e a conquista pelo direito a voto, em
recuperar suas identidades, suas práticas, suas memórias, suas vivências, seus saberes 1932, foi incorporada à Constituição apenas em 1934, e como voto facultativo. Diante
e suas produções artísticas. O projeto, atualmente, encontra-se ativo e em andamento. desse contexto social, a mulher encontrou, na docência, o espaço para atuar no merca-
Ao analisar o direcionamento temático das canções de autoria de mulheres (SOU- do de trabalho, pois a área educacional era aceitável, para a sociedade burguesa, como
ZA, 2020: 152), observam-se indícios que denotam que sua atividade composicional atividade feminina.
estava circunscrita, predominantemente, aos contextos que legitimavam a atividade fe- Segundo Louro (2018: 448), o magistério, no Brasil, inicialmente foi representado
minina, quais sejam, a família, a igreja e espaços educacionais. Assim sendo, encontram- pela figura masculina, e, aos poucos, a mulher foi se inserindo no mercado de ensino.
-se obras autógrafas com dedicatórias para familiares dessas mulheres, hinos escolares Para o autor, considerava-se que a mulher demonstrava vocação para o ofício de ensinar,
e religiosos e canções com temáticas sentimentais. Um aspecto coletivo em comum foi conforme o excerto abaixo:
que todas as compositoras elencadas escreveram canções com acompanhamento ao
piano. Afirmavam que as mulheres tinham, “por natureza”, uma inclinação para
o trato com as crianças, que elas eram as primeiras e “naturais educa-
Com a decadência da ópera e o advento da indústria cinematográfica, que resultou doras”, portanto nada mais adequado do que lhes confiar a educação
na criação do Cine Olympia em Belém, em 1912, Souza (2020: 114) observa a emer- escolar dos pequenos. Se o destino primordial da mulher era a mater-
gência da música popular brasileira a partir de 1920, resultando em composições “em nidade, bastaria pensar que o magistério representava, de certa forma,
estilo leve, como valsas, e gêneros populares, como samba-canção e marchinhas carna- “a extensão da maternidade”, cada aluno ou aluna vistos como um filho
ou uma filha “espiritual” (LOURO, 2018: 450).
valescas, evidenciando a articulação entre atuação profissional, criatividade artística e
mercado de bens de consumo...”.
Portanto, constata-se que a mulher participou dessa base de cultivo e consumo Diante dos anseios da sociedade burguesa, ocorreu a reativação do Instituto Carlos
de bens culturais, os quais atuaram na construção de um projeto de sociedade que le- Gomes (ICG) em 1929. A instituição seguiu seu curso, retomando suas atividades dentro
gitimou e institucionalizou a música erudita europeia em Belém, avançando, a partir de da tradição de formadora de profissionais na área da música. Nessa nova fase do ICG, e
1920, em direção à assimilação de ritmos populares brasileiros, em canções que ainda em meio a uma lógica social que concebia uma vocação feminina voltada à família e à
preservavam fortes traços de influência da estética do canto lírico. No entanto, a mulher educação, constata-se o predomínio da representatividade feminina no magistério mu-
que atuava na música se deparou com um cenário ambíguo, o qual, ao mesmo tempo, se sical em Belém, diferentemente do que se verifica na primeira fase de funcionamento
abria para sua atuação no ambiente público, especialmente atrelado à atividade amado- da instituição, até 1908, fato que ratifica a ideia de que a atividade do magistério era
ra e diletante ou ao magistério musical, mas, potencialmente, inibiu a carreira artística socialmente aceita como ocupação feminina.
e a difusão da obra musical de autoria feminina. Assim, as evidências de circulação de Observa-se, na Figura 2, um programa comemorativo ao aniversário de reabertura
músicas autorais dessas mulheres permanecem restritas às poucas publicações de par- do ICG, realizado no Theatro da Paz, em 1932, reunindo alunos, na primeira parte do
tituras pelas casas editorais da época. programa, e o corpo docente do estabelecimento de ensino musical, na segunda. Assim,
a programação ocorreu com diversas apresentações musicais de alunos e professores
5. O protagonismo feminino na educação musical em Belém da instituição, a saber: o diretor Ettore Bosio, as professoras Olympia Martins, Thereza
A partir da reabertura do Instituto Carlos Gomes, em 1929, observa-se que as ações Ponte Souza, Philomena Brandão, Helena Souza, entre outros, além da banda do corpo
pedagógico-musicais ocorridas durante os 20 anos em que a instituição permaneceu de bombeiros, executando a abertura da ópera O Guarani, uma das mais conhecidas do
desativada promoveram a profissionalização de mulheres na música, por meio do pro- compositor Carlos Gomes.
cesso de formação em aulas particulares e associações civis. Consequentemente, nesse

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A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

dade ou fora dela, caso de Helena Souza (1906-1990), que se aperfeiçoou em Portugal.
Professores e professoras promoveram a continuidade ao trabalho realizado no ICG,
com o objetivo de preparar os alunos para ingressar no instituto quando este voltasse
a funcionar, e foram agentes da preservação e difusão da estética musical erudita em
Belém.
O interesse pela tradição musical erudita europeia fez com que a sociedade man-
tivesse um habitus pautado nesses valores culturais. A formação de instrumentistas,
para atuarem tanto na performance quanto no ensino musical, dependia de uma sólida
e longa formação no ICG, formação esta que se fazia também necessária para quem de-
sejasse ocupar cadeira docente nessa instituição de ensino musical. Esse fato pode ser
observado no depoimento da professora Guilhermina Nasser7 (2012), em relato para a
pesquisa de Barros (2012: 92-93):

Bom, sobre o maestro Bosio o que eu sei é isso, que ele arregimentou os
professores, procurando não sei de que maneira, e formou o conserva-
tório … O Pereira de Castro era marido da professora Antonia. Só podia
trabalhar aqui quem tivesse uma cadeira de música. Então é isso, ele
era professor de História da música e… da música que eu estudei tam-
bém e ele era diretor. Quando o maestro Bosio morreu, ele ficou como
diretor e pediu a Helena Souza… [que] ficasse responsável pela parte
artística porque ele só lecionava História da Música.

Enfatiza-se que a pianista Helena Souza (1906-1990), citada na fala da professora


Guilhermina Nasser, foi uma figura emblemática na história do Instituto Carlos Gomes.
Considerada muito competente em sua área musical, como instrumentista e professora,
Helena Souza iniciou seus estudos em Belém e concluiu sua formação em Portugal,
na classe de piano do professor Viana da Mota (SALLES, 2016: 544). Diplomada pelo
Conservatório de Lisboa, retornou a Belém ao final dos anos 1920 e foi uma prestigiada
pianista, figura constante nas páginas sociais dos jornais que circulavam na cidade por
volta dos anos 1930.
Contudo, Helena Souza (Figura 3), além de ser pianista, tinha habilidade em outras
áreas. Possuía domínio de harmonia musical, era organista e atuava em outros campos,
Fig. 2: Programa de concerto de aniversário do Instituto Carlos Gomes, Palácio Theatro6, 1932. Fonte: como o do jornalismo. Como resultado de sua sólida formação musical e seu trabalho
fundo pessoal Helena Souza, recolhido ao Acervo MUSA (2021). profissional no magistério da música, foi indicada para a direção do Instituto Carlos Go-
mes, quebrando a hegemonia masculina que lá vigorava.
É irrefutável, então, a predominância feminina nesse período, em oposição ao pri-
meiro. Durante suspensão das atividades do ICG, alunas da primeira fase do instituto,
muito provavelmente, prosseguiram sua formação musical em aulas particulares na ci-

7
Guilhermina Nasser nasceu em 1917, era de nacionalidade portuguesa e chegou ao Brasil com seis anos
de idade. Sua mãe era pianista, e Nasser iniciou seus estudos de piano em aulas particulares; em seguida,
6
O Palácio Theatro, ou Palace Theatre, foi construído em Belém após 1850, período em que outros teatros diplomou-se pelo Instituto Carlos Gomes, em 1938, onde começou a dar aulas em 1942 e de onde foi
foram erguidos na cidade para receberem apresentações de companhias artísticas (VIEIRA, 2001: 49). diretora de 1991 a 1995 (BARROS; VIEIRA, 2015: 224. SALLES, 2016: 399).

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A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

Ao se ler sobre a biografia, percebe-se de imediato quantas áreas im-


portantes da História se cruzam ou mesmo se confundem, quantos te-
mas estão contidos ou próximos da biografia: a micro-história, os estu-
dos de caso; a História oral, as histórias de vida; os trabalhos sobre vida
cotidiana, sobre sensibilidade, sobre sociabilidade. Também a discussão
sobre memória, sobre geração, sobre família, sobre gênero são de gran-
de interesse para quem precisa entender uma vida individual.

Portanto, compreender que, no contexto da vida social e musical da cidade de Be-


lém que circunscreve as práticas femininas até as primeiras décadas do século XX, mu-
lheres se depararam com uma sociedade patriarcal, sofreram restrições de toda ordem
e foram controladas em seus atos civis nos permite considerar alguns marcos históricos
da trajetória percorrida pela mulher, até a ocupação dos espaços públicos e do magisté-
rio musical na capital paraense, como ações de resistência feminina às sanções sociais
evidenciadas durante o período estudado.

Considerações finais
No presente capítulo, buscou-se constatar e compreender a presença feminina na edu-
cação musical em Belém até a primeira metade do século XX, pontuando-se questões
relativas à formação de uma sociedade musical, que culminou com a criação do Con-
servatório de Música em Belém, bem como debates que atravessam as discussões sobre
a atuação feminina no campo da educação musical e no campo criativo. Assim, perce-
beu-se a presença crescente da mulher no ensino musical, constatando-se processos de
formação, nos quais o piano, o canto e as composições de autoria feminina podem estar
simbolicamente situados como elementos que consolidaram os processos de urbaniza-
ção e europeização de valores culturais.
Fig. 3: Foto publicada no jornal Folha do Norte, em Belém, 12 de novembro de 1934. Fonte: fundo pesso-
al Helena Souza, recolhido ao Acervo MUSA (2021). Para evidenciar o protagonismo da mulher na educação musical em Belém, pro-
pôs-se a traçar uma linha do tempo em relação à trajetória histórica e social percorrida
Helena Souza permaneceu como diretora do ICG de 1936 a 1937. Salles (2016: pela mulher, desde o final do século XIX, quando a sociedade burguesa aspirava ao
544) relata que, em 1937, a pianista fundou a escola Jardim Musical de Santa Cecília, requinte do habitus cultural europeu, até a década de 1930, quando a mulher conquista
que manteve muito prestígio na sociedade local. Essa iniciativa demonstra que Helena novos espaços sociais.
Souza buscou se estabelecer profissionalmente em outros espaços sociais, trabalhando Na primeira parte da pesquisa, abordou-se a formação de uma sociedade musical
no magistério, em aulas particulares, e realizando apresentações musicais em teatros e até a criação do Conservatório de Música em Belém, apontando-se, brevemente, para
associações artísticas com seus alunos e alunas. as práticas musicais que definiram os caminhos percorridos até a europeização dos
Conquistas, como a reportada na história de Helena Souza, o direito de votar, em costumes incorporados ao habitus cultural da cidade. Buscou-se, também, evidenciar a
1932, e ser votada, em 1933, e o espaço para atuação na área pedagógica, refletem uma atuação da sociedade e do Estado para a criação desse conservatório, fundado em 1895.
mudança de comportamento social para garantir direitos e deveres iguais entre os gê- Em seguida, descreveu-se a educação musical feminina do final do século XIX até
neros, embora em meio a tantos conflitos, que ainda pautam o debate contemporâneo as primeiras décadas do século XX em Belém, cujo centro do aprendizado era o piano.
acerca dessa temática. Evidenciou-se, ainda, o ensino musical por meio de aulas particulares, durante o período
Borges (2008: 215) ressalta a importância de se recorrer aos registros históricos, de inatividade do Instituto Carlos Gomes, e os mecanismos sociais para permanência e
para se compreender os percursos de sujeitos antecessores e os reflexos na sociedade difusão do modelo de ensino da música erudita europeia.
atual, ao afirmar que:

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A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

As questões de gênero que marcam a formação de uma sociedade musical e cir- LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, M. (org.); PINSKY, C. B.
cunscrevem os espaços de atuação da mulher atravessam também as discussões das (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p.
produções artísticas de autoria feminina, deixadas como rastro da expressão de identi- 443-481.
dades invisibilizadas do ponto de vista historiográfico.
Por fim, destacou-se o protagonismo feminino na educação musical em Belém, MAIA, Gilda Helena. O cenário musical paraense da primeira metade do século XX: o
destacadamente com a figura de Helena Souza, em 1936. Assim, pretendeu-se levantar rouxinol paraense e sua rede de relações. Ictus: periódico do Programa de Pós-Gradua-
questões sociais e de gênero que envolveram a mulher naquele período, dando ênfase ção em Música da UFBA, Bahia, v. 11, n. 1, p. 29-40, jul. 2010.
à presença feminina no ensino musical e na vida artística da cidade de Belém e apon-
tando os processos de ocupação dos espaços de trabalho, especialmente no campo do PARÁ e Ceará unidos pela arte. A Semana, Belém, 3 jun. 1933. Fundo pessoal Helena
magistério musical. Souza, recolhido ao Acervo MUSA, não catalogado. Recorte de jornal.
Considera-se que o estudo sobre mulheres nas práticas musicais em Belém do
Pará até meados do século XX reforça o entendimento de habitus cultural observado SALLES, Vicente. A música e o tempo no Grão-Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura,
nos espaços de formação, reprodução e difusão da música erudita europeia. A mulher, 1980.
enquanto partícipe da história sociocultural da cidade, insere-se nos processos de for-
mação de uma sociedade musical. Tais processos promoveram sua capacitação pro- SALLES, Vicente. Música e músicos do Pará. 2. ed. rev. e aum. Belém: Secult; Seduc;
fissional e abriram novos espaços para a atuação desses sujeitos sociais no ambiente Amu-PA, 2007.
público, após o rompimento de barreiras que permitiram o trabalho fora de casa, a con-
quista de cargos de gestão na educação musical e o domínio dos espaços socialmente SALLES, Vicente. Música e músicos do Pará. 3. ed. rev. e aum. Belém: Secult; Seduc; Amu-
aceitos para atuação feminina, sobretudo na área do magistério musical, embora a plena -PA, 2016.
expressão artística da mulher ainda tenha sofrido restrições de toda ordem e permane-
cido, por muitas décadas, subordinada às sanções impostas pela sociedade. SALLES, Vicente. Memória histórica do Instituto Carlos Gomes. Fac-símile. In: BARROS,
L. C. da S.; ADADE, A. M. (org.). Memórias do Instituto Estadual Carlos Gomes 1895-1986.
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NACIONAL DA ABEM, 25., 2021, Juiz de Fora. Anais [...]. [S. l.]: Associação Brasileira de
FOLHA do norte. Belém, 12 nov. 1934. Fundo pessoal Helena Souza, recolhido ao Acer- Educação Musical, 2021b. v. 4. p. 1-12.
vo MUSA, não catalogado. Recorte de jornal.

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A mulher na educação musical e na vida artística em Belém do Pará, da Belle Époque até a metade do século XX Dione Colares de Souza; Luana Santana Pensador

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pianista (1906-1990). In: VIEIRA, L. B. (org.). Mulheres da música no Pará: compositoras,
intérpretes e educadoras - memória. Revista da Academia Paraense de Música, Belém,
v. 2, n.2, nov. 2022, p. 104-113. Disponível em: https://apm.mus.br/web/academia/
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VIEIRA, Lia Braga. A construção do professor de música : o modelo conservatorial na for-


mação e na atuação do professor de música em Belém do Pará. Belém: Cejup, 2001.

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Música em Roraima:
diversidade cultural na
fronteira norte
Gustavo Frosi Benetti
Universidade Federal do Maranhão

Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva


Universidade Federal do Maranhão

5 como citar
BENETTI, Gustavo Frosi; SILVA, Jefferson Tiago de Souza
Mendes da. Música em Roraima: diversidade cultural na
fronteira norte. In: DUARTE, Fernando Lacerda Simões;
RUAS JUNIOR, José Jarbas Pinheiro (ed.). Norte. Vitória: As-
sociação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Mú-
sica, 2023. p. 126-159. (Histórias das Músicas no Brasil).
Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

A música em Roraima possui características singulares, define-se pela multiplicidade de produziu referências significativas para o estudo dos povos da Amazônia, incluindo-se
culturas presentes no estado. Há práticas de matrizes variadas, seja das manifestações registros sonoros, musicográficos, iconográficos e audiovisuais, conhecidos, atualmente,
de culturas originárias ou afro-latinas, seja da sonoridade da música ocidental. Essa como os conteúdos publicados mais antigos de música em Roraima. A pesquisa reali-
diversidade cultural ainda é contemplada pelas relações fronteiriças com a Venezuela zada na expedição produziu os cinco volumes bibliográficos da obra Vom Roroima zum
e a Guiana, ambos países com línguas, matrizes étnicas e costumes bastante diferentes Orinoco (1917-1928), além de “diversos rolos de filme [dos quais] 15 minutos resultaram
em relação ao Brasil. aproveitáveis” (FRANK, 2010: 154). Erwin Frank informou ainda que foram produzidos
Este texto traz um breve panorama musical de Roraima, com mais lacunas do 50 cilindros de gravações musicais (2010: 154). Dos volumes de Koch-Grünberg, o mais
que continuidades, construído a partir de múltiplas fontes. As inúmeras indicações de significativo para o estudo da música é o terceiro (1923), que traz descrições e icono-
referências são propositais, dedicadas ao leitor que quiser se aprofundar em algum dos grafia, mas, principalmente, um anexo intitulado “Musik und Musikinstrumente”, uma
assuntos apresentados. colaboração do musicólogo Erich von Hornbostel (1923: 395-440).
Dentre as manifestações com elementos musicais descritas por Koch-Grünberg,
1. Música dos povos originários citamos, como exemplo, o Parischerá, ou parixara, que o próprio pesquisador afirmou ter
Na literatura do século XIX, percebemos um interesse em conhecer a cultura dos povos presenciado em várias oportunidades entre agosto e setembro de 1911, promovidas por
originários no território brasileiro. Contudo, nas leituras que realizamos, não há muitas populações das etnias Taurepang, Makuxi e Wapixana (KOCH-GRÜNBERG, 1923: 156).
referências com as quais possamos identificar essas atividades com o que hoje conhe- De acordo com o relato indicado, participavam da dança em torno de 200 pessoas, com
cemos como o estado de Roraima. Um exemplo de uma breve referência encontra-se indumentária confeccionada de folhas de palmeira, que as cobria parcialmente da cabe-
no “Diario da viagem philosophica pela Capitania de São-José do Rio-Negro com a in- ça aos pés. Seguravam na mão esquerda um tubo de madeira, pelo qual produziam sons,
formação do estudo presente”, publicado por Alexandre Rodrigues Ferreira (1888), no e balançavam-se para cima e para baixo com os joelhos dobrados. A dança evoluía com
qual o autor dedica uma seção aos costumes dos indígenas. No texto, há indicação dos um passo longo para frente, seguido de um curto para trás. Há uma descrição detalhada
“gentios”, que inclui os habitantes das margens dos rios do Norte: “No Queceuene, ou em algumas páginas, que destaca elementos instrumentais e de canto, inclusive (KOCH-
Rio-Branco: Os Paurauanas, ditos Aroaquiz, Parauás, Aturahiz, Pauxianas, Guayumazás, -GRÜNBERG, 1923: 156-159). Em relato proveniente de pesquisa de campo, Oliveira e
Tapicariz, Saparaz, Uajurus, Xaperús, Uapixanas, Sucuris, Jaricunas, Carapis, Uaicás, Ma- Benetti informam que “o Parixara ainda é praticado”, mas que se percebe mudança consi-
cuxis, Caripunas, Amaribás, Arinas, Quiúaos, Pericôtos, e alguns Macus dispersos” (FER- derável, em relação ao que foi descrito por Koch-Grünberg, “na indumentária, na língua,
REIRA, 1888: 7). O Rio Branco, citado por Ferreira, encontra-se inteiramente localizado e no próprio objetivo do ritual. Há um desuso e um desconhecimento dos instrumentos
em Roraima. Nasce da confluência dos rios Uraricoera e Tacutu, entre as cidades de Boa musicais” (OLIVEIRA; BENETTI, 2015: 294, grifo nosso) descritos por Koch-Grünberg há
Vista e Bonfim, e a foz localiza-se no extremo sul do estado, no Rio Negro, divisa com pouco mais de um século.
o Amazonas. Após uma longa lista dos “gentios” e sua localização geográfica, Ferreira Em 2006, o Arquivo Fonográfico de Berlim, instituição que detém a guarda do acer-
descreve costumes, sem especificar a qual das etnias está se referindo, dando a entender vo sonoro de Koch-Grünberg, lançou em CD gravações digitalizadas provenientes de 30
que se trata de uma descrição generalizadora de todos os povos citados na obra. Depois cilindros gravados em fonógrafo. Galucio (2009: 555) destacou o pioneirismo do trabalho
de falar de atividades de dança, descreveu os “instrumentos marciais e festivos”: de Koch-Grünberg e informou que a publicação desse material, em meio acessível como
o CD, é exemplo positivo “do valor da documentação para a preservação do patrimônio
São os trocanos, tamborinhos, trombetas, torés, membis, gaitas feitas de cultural e da importância da criação e manutenção de acervos científicos dessa natureza”.
cana, de ossos de animais, e de bicos das aves; cascavéis nos pulsos, nos
Koch-Grünberg faleceu acometido de malária durante a expedição de Hamilton
joelhos, e nas tabocas que lhes servem de bengalas, com que batem no
chão, e determinam o compasso das danças; o que tudo produz uma Rice em Roraima, na localidade de Vista Alegre, hoje município de Caracaraí, em 8 de
música horríssona aos ouvidos, sem harmonia qualquer que ela seja, ou outubro de 1924 (BISPO, 1994). O material produzido por ele é constantemente utiliza-
instrumental ou vocal (FERREIRA, 1888: 16). do por pesquisadores atuais, seja como fonte, seja de uma perspectiva crítica, ou mesmo
como inspiração para novos projetos, como é o caso de A Música das Cachoeiras (VAS-
Pouco mais de duas décadas da publicação de Ferreira (1888), o etnógrafo alemão CONCELOS, 2013). O projeto, que tinha a intenção de reproduzir o roteiro da viagem de
Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) realizou sua terceira expedição pelo Brasil, que in- Koch-Grünberg passados mais de cem anos, resultou em uma publicação de livro e um
cluiu a região de fronteira entre Brasil e Venezuela. Essa expedição, entre 1911 e 1913, acervo de gravações realizadas no percurso.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

Em artigo publicado em 2017, Lewy descreveu um estudo cuidadoso dos cilindros, lho de Peres, que entrevistou, em 2013, o ancião Hermes, da comunidade Boca da Mata,
que foi concebido não somente a partir dos áudios, mas ao “levar os arquivos de volta localizada ao norte de Roraima, no município de Pacaraima:
para o campo” (LEWY, 2017: 279), com a interação dos povos indígenas que escutaram e
participaram desse estudo. Ressaltamos a interessante contribuição sobre o areruya do Aqui na Boca da Mata têm um grupo que dança e canta na língua Ma-
cuxi. Aqui também tem outros povos (Wapichana, Taurepang, Sapará)
cilindro de número 41, que “soa como uma canção cristã bem conhecida, que até hoje é
que não cantam e dançam mais seus cantos e danças. Os Taurepang
praticada. Descobriu-se que é uma canção chamada The Sweet by and By, composta por que moram aqui na comunidade não cantam e nem dançam mais na
J. P. Webster em 1862” (LEWY, 2017: 269). Na interpretação do pesquisador, não se trata língua Taurepang. De primeiro os Taurepang, antes de eles serem da
de um simples processo de apropriação de ordem cultural, mas “os xamãs indígenas [te- igreja adventista eles cantavam e dançavam os cantos deles junto com
riam usado] essa imitação da língua inglesa com o objetivo de entrar em contato com a gente, mais depois que eles passaram a frequentar a igreja eles foram
deixando de realizar a dança deles. Eles dizem que os cantos e as dan-
espíritos cristãos” (LEWY, 2017: 270). Santos (2018: 37-47) descreveu um possível per- ças Macuxi não agradam o senhor Jesus e agora eles só cantam o que
curso para o estabelecimento do areruya em Roraima, que, de acordo com as pesquisas aprendem na igreja (HERMES apud PERES, 2013: 78).
da autora, seria derivado de missões religiosas na Guiana a partir das primeiras décadas
do século XIX, que, posteriormente, teria se difundido pelo circum-Roraima, a região que Esse tipo de interação ora é percebido, ora se revela como sugestão. Algumas gra-
compreende a tríplice fronteira entre Guiana, Venezuela e Brasil. A autora esclarece que, vações realizadas a partir do projeto Panton Pia’, iniciado, em 2007, sob a coordenação
“no areruia, é muito clara a influência cristã. Além do termo que deu nome ao canto, os de Devair Fiorotti, foram analisadas em um estudo realizado por Martins (2019). O autor
conteúdos são de cunho religioso” (SANTOS, 2018: 53). propôs algumas transcrições em notação tradicional – partitura –, e há algumas apro-
Os cantos dos povos do circum-Roraima são denominados “erenkon”, palavra de ximações conceituais com a teoria ocidental que merecem cuidado, como tonalidade
origem macuxi, em plural. No singular, eren, e, em taurepang, eremu (FIOROTTI; OLIVEI- e compasso, por exemplo. Outras iniciativas contemporâneas que marcam a interação
RA, 2016: 50). Sobre os cantos, Fiorotti (2020: 22, grifo nosso) descreveu: “O parixara, pa- entre povos originários e a cultura ocidental são exemplificadas por aquelas coordena-
riisara em macuxi, está relacionado, em geral, à fartura das colheitas, à chegada de uma das pelo Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de
caçada ou de uma pescaria e a datas comemorativas”. Os instrumentos do parixara são Roraima (UFRR). Em 2011, originou-se a banda Cruviana com alunos do instituto, com o
o “kewei (chocalho), sampura (tambor), kamaini (flauta grande de embaúba)” (FIOROT- propósito de “realizar diversas atividades que concebem a prática musical como forma
TI, 2018: 111, grifos nossos). Sobre o tukui, o autor informa que são cantos “relaciona- de intercâmbio de saberes, possibilitando experiências de musicalidades indígenas e
dos à sabedoria dos pajés, para se fazer intervenções na natureza, como chamar chuva, não-indígenas” (ALBERNAZ; CABALLERO, 2018: 299).
acalmar trovões e, vale acrescentar, também eram dançados coletivamente” (FIOROTTI, Após esse breve panorama sobre a música dos povos originários, passaremos às
2020: 22-23). Os instrumentos do tukui seriam os mesmos do parixara, acrescidos de manifestações musicais nos municípios, a partir da localização de publicações relacio-
“wana e ruwe (tipos de flautas pequenas)” (FIOROTTI, 2018: 111, grifos nossos). Sobre o nadas a elas. O estado de Roraima é constituído, atualmente, por 15 municípios, sendo
marapá, o autor informa que: a capital Boa Vista e 14 do interior, que veremos a seguir.

tem como significado morcego, que segundo relatos indígenas seriam 2. Música nos municípios do interior
canções de danças noturnas ou canções de ninar [...]. Os areruias, que
Vimos que a produção de Koch-Grünberg é referência importante para estudos sobre
significa aleluia, são cantos que surgiram do contato com o não índio,
podendo serem vistos como uma imitação do parixara, originado das a música indígena, a ponto de ser muito difícil encontrar algum trabalho sobre o tema
missões religiosas (FIOROTTI apud SANTOS; FIOROTTI, 2015: 1.653). que não remeta ao autor. Mas nela também se fez algumas descrições de manifestações
musicais com características urbanas em Roraima, e essas são as publicações mais an-
Essas quatro categorias de cantos, parixara, tukui, marapá e arereuia, são, de acordo tigas que localizamos sobre o tema. Uma descrição desse tipo, que aparece no volume
com Fiorotti, “ritmos intimamente ligados à dança, pertencem principalmente ao am- 1 (KOCH-GRÜNBERG, 1917), não é propriamente em ambiente urbano, mas no trajeto
biente da festa. Se hoje eles foram gravados de forma diversa, sem a festa e a dança, feito, em via fluvial, na viagem que partiu de Manaus no dia 17 de junho de 1911, que
essa não é a realidade de seu uso social” (FIOROTTI, 2020: 32). adentrou o Rio Branco no dia seguinte e deu sequência à expedição em Roraima. Os
Há um aspecto interessante a se destacar, apontado por alguns autores, sobre in- meios de transporte foram a lancha Macuchy, cujo proprietário era Bento Brasil, e barcos
terferências externas na cultura dos povos originários. Como exemplo, citamos o traba- auxiliares, que viajavam rebocados. O Bento Brasil descrito por Koch-Grünberg seria,

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

possivelmente, Theodoro Bento Brasil, filho do capitão Bento Ferreira Marques Brasil (BEZERRA et al., 2016: 168). Entre as manifestações tradicionais, estão o bumba-meu-boi
(CÂNDIDO, 2021). Em um desses barcos rebocados, viajava Adolpho Brasil, o filho do e a mangaba:
proprietário, que era músico (KOCH-GRÜNBERG, 1917: 1-8). De após passar pelo povoa-
do de Santa Maria do Boiaçu, localizado logo ao sul da linha do equador, hoje parte do O Bumba-meu-boi veio do Maranhão, representado por João Batista
Marques de Moraes, conhecido por João do Boi, em São João da Baliza
município de Rorainópolis, citamos a seguinte descrição:
desde 1995. [...]
A Mangaba é uma dança que se constitui, principalmente, num diver-
Após o pôr do sol, passamos pela linha do equador, que corta a grande timento, num lazer, sendo dançada, com mais frequência, na época ju-
ilha Aruaná. A nossa “orquestra” toca para celebrar o momento. Acor- nina contagiante. Sua coreografia apresenta evoluções, formando, no
deão, violão e – terrivelmente belo – trompete, e o comandante mostra entanto, um núcleo comum. Todos os passos são feitos em redor de uma
alguns de seus truques de mágica com grande habilidade. Depois, vêm formação em oito, tomada ao iniciar a brincadeira. Mesmo com toda a
as cartas, e começa o jogo diário, mais alto do que o habitual. Sen- movimentação da dança, há a exigência de manter a forma do número
tamo-nos no topo do barco na noite abafada. Adolpho canta canções oito no decorrer do espetáculo.
de amor melancólicas ao violão1 (KOCH-GRÜNBERG, 1917: 8, tradução Em São João da Baliza, o grupo é composto por brincantes de ambos os
nossa). sexos e de variadas idades, embora haja predominância de adultos. As
pessoas que praticam a Dança da Mangaba não constituem um grupo
organizado, mas as que a conhecem e sabem dançá-la, incluindo aí os
Após esse relato, há uma descontinuidade na literatura sobre o tema; todos os cantores e os músicos. O acompanhamento dessa dança é, principal-
registros posteriores encontrados são de tempos próximos. Na sequência, apontaremos mente, de percussão (BEZERRA et al., 2016: 171).
alguns eventos e iniciativas culturais importantes para a música, nas cidades do interior,
do sul ao norte do estado.
Há, ainda, uma forte influência da cultura nordestina no município, representada,
2.1 Rorainópolis principalmente, pelas tradições juninas. O 32º Arraial Junino ocorreu em 2015; depois
Atualmente, na cidade, ocorre o Festival de Música de Rorainópolis (FESTMUR), que, disso, a cidade ficou alguns anos sem esse tradicional evento, que voltou a ser realizado
em 2021, estava na oitava edição. Trata-se de uma iniciativa apoiada pelo Governo do em 2022, na sua 33ª edição.
Estado e pela Prefeitura, que tem como principal objetivo “estimular a criação, a pro-
dução e a difusão musical no estado de Roraima, em particular em Rorainópolis, res- 2.3 Caroebe
peitando-se as especificidades culturais, estreitando-se o contato entre o compositor, o Em Caroebe, há escassez de registros, fator apontado em publicação dedicada à
intérprete e o público” (SILVA et al., 2016a: 155). cultura local: “o município tem uma deficiência muito grande na parte documental [...].
Rorainópolis ainda promove um arraial, denominado Arraianópolis, e comemora A cada nova gestão, inclusive a documentação também acaba sendo extraviada de al-
Santo Reis, ambas manifestações que envolvem música (SILVA et al., 2016a: 156). Sobre guma maneira” (ALBUQUERQUE et al., 2016: 95).
o reisado, citamos o seguinte relato: “Zé da Viola e alguns moradores da mesma vicinal É comum, em cidades do interior de Roraima ocorrer um tipo de evento ligado à
se reúnem anualmente a partir do dia 26 de dezembro e, entoando cantorias do folgue- produção de frutas e vegetais do local, em que a música desempenha função social sig-
do, fazem visitas nas casas, com o objetivo de arrecadar doações para a realização do nificativa. Um dos exemplos é o Festival da Banana, em Caroebe, que é o maior produtor
festejo” (SILVA et al., 2016a: 156). da fruta no estado. Deixou de ser realizado durante sete anos e retornou em 2022. Em
eventos desse tipo, é usual ocorrerem apresentações de músicos locais. Outra manifes-
2.2 São João da Baliza tação cultural presente na cidade são os arraiais (ALBUQUERQUE et al., 2016: 90).
A atividade musical em São João da Baliza conta com o apoio da Prefeitura Muni-
cipal, no sentido de subsidiar grupos de música para participação em eventos culturais 2.4 São Luiz
Sobre a cidade de São Luiz, não há muitos registros da atividade musical. Encon-
tramos apenas alguns indícios, em especial relacionados a dois eventos, a Vaquejada e a
1
Original: “Nach Sonnenuntergang passieren wir den Äquator, der die große Insel Aruaná schneidet. Zur
Feier des Augenblicks spielt unser ‘Orchester’. Ziehharmonika, Guitarre und – schauerlich schön – Piston, Semana Farroupilha. Sobre o último, relaciona-se à influência cultural gaúcha, difundida
und der Kommandant gibt mit großem Geschick einige seiner Taschenspielerkunststückchen zum Bes- junto às comunidades de migrantes do Sul, no qual há presença de atividade musical.
ten. Dann kommen die Karten, und das tägliche Spiel beginnt, höher als sonst. Wir andern hocken in der
schwülen Nacht auf der Spitze des Bootes. Adolpho singt zur Guitarre schwermütige Liebeslieder”.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

Se iniciou na década de 1990, implantado pelo sargento Leomar. A Sema-


na Farroupilha é um evento festivo da cultura gaúcha, que se comemora Há uma caracterização, proposta por Silva, de uma das canções presentes na edi-
de 14 a 20 de setembro, com a cavalgada em homenagem aos líderes ção de 2015 do festival, intitulada “Caracaraí, minha terra amada”, da Cobra Mariana:
da Revolução Farroupilha. O evento lembra a Semana Farroupilha, em
que toda comunidade gaúcha das imediações do município de São Luiz A letra valoriza a questão da terra, do regionalismo e nações indígenas
se reúne para se confraternizar, tomando chimarrão, comendo churrasco bem como seus costumes. Logo no início, o autor cita diversas etnias
tipicamente gaúcho, fazendo apresentações e se caracterizando de for- indígenas da região como: Macuxi, Waimiri, Atuari e Carimbó, Uapixana,
ma adequada: moças vestidas de prenda e homens de bombacha, lenço, Wai-Wai, Yanomami e Taurepangues. A questão dos timbres é trabalha-
guaiaca, chapéu, entre outros (SILVA et al., 2016b: 185). da com sons que lembram instrumentos indígenas, como a flauta, que
se destaca nos primeiros compassos da música e tambores que fluem
durante toda canção. Também é possível observar ao longo da música,
entoações que lembram gritos de guerra indígenas. A melodia é similar
Sobre a Vaquejada, trata-se de evento com atrações musicais de gêneros como às toadas do boi-bumbá de Parintins (SILVA, 2019: 36).
forró e sertanejo. Em 2022, a 24ª edição do evento ficou conhecida nacionalmente pela
polêmica contratação de um show por valores desproporcionais em relação ao número Oliveira (2021a), a partir de entrevista realizada com Soraia Teles, representante da
de habitantes e incompatíveis com a receita do município. Cobra Mariana, destacou a existência de um estilo próprio de Caracaraí no início do fes-
tival, que se transformou em algo próximo da toada amazonense com o passar dos anos.
2.5 Caracaraí
A cidade destaca-se pela realização do Festival Folclórico de Caracaraí, que se con- Quando começou o festival, o ritmo aqui era outro, era tradicional, só
que houve críticas ao ritmo, logo, o ritmo foi modificado para uma toa-
figura como uma disputa entre dois grupos, Gavião Caracará e Cobra Mariana. Sobre o
da semelhante ao do Amazonas, pois é um ritmo melhor para a dança,
primeiro festival, Oliveira (2021a) informa que foi mais alegre, e o Gavião (Caracará) que havia permanecido no ritmo
tradicional também aderiu a toada amazonense (TELES apud OLIVEIRA,
realizado no dia 27 de maio de 2006, em consonância com o aniversário 2021a: 29-30).
do Município de Caracaraí-RR, e foi um Festival em caráter experimental.
Não foram poupados esforços no sentido de seu êxito pela administração
do município, tendo sido expectativas superadas diante da repercussão Oliveira (2021a) editou, em notação musical, os padrões rítmicos usados recor-
do significativo número de visitantes. Por força disso, criou-se o Festival rentemente pelos instrumentos de percussão, em formato de material didático. O autor,
Folclórico de Caracaraí-RR como evento permanente do calendário anu- com o intuito de viabilizar o ensino de percussão com padrões locais e o fomento de
al do município, respeitando as datas do calendário cultural do Estado. percussionistas para atuação nos dois grupos do festival, empenhou-se em
Para que o projeto caminhasse em um cunho cultural, foi estruturado na
forma de apresentações de danças com a criação de dois Grupos Folcló-
ricos: Associação Folclórica de Caracaraí Cobra Mariana e Grupo Folclóri- registrar uma parte da música folclórica praticada no nosso estado, es-
co de Caracaraí Gavião Caracará (OLIVEIRA, 2021a: 26-27). pecificamente no município de Caracaraí, no sul do estado. No decorrer
da investigação, foi assimilando que o mais importante não era “des-
cobrir” ou documentar algo inédito, e sim preservar algo que podemos
Recentemente, o Festival Folclórico de Caracaraí foi tema de duas monografias re- perder em razão da modernidade, da própria ação do tempo e da falta
alizadas no curso de licenciatura em música da UFRR, a de Oliveira (2021a), citada de registro. Por isso, podemos dizer que este catálogo traz consigo um
anteriormente, e a de Silva (2019), que discorreu sobre as características estilísticas pedacinho da história musical deste estado, contada pela percussão e
pelo ritmo da toada que cerca, encanta e representa tão bem a nossa
musicais: Amazônia (OLIVEIRA, 2021a: 38).

o Festival promove e valoriza o trabalho de artistas locais, como pinto-


res, artistas plásticos, escultores, coreógrafos, compositores, intérpretes
2.6 Iracema
e músicos em geral. Todavia, o aspecto musical revela-se com o principal
foco que acirra a rivalidade entre os dois grupos, uma vez que a Gavião Em Iracema, existem alguns eventos culturais que envolvem música, mas com
Caracará mantém o mesmo estilo desde o início do Festival, com um poucos registros. Esses eventos costumam ser promovidos pelas escolas estaduais e
ritmo que remete à música afro-brasileira; enquanto a Cobra Mariana pela Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto. Na cidade, ocorrem os se-
decidiu adotar um ritmo que se assemelha ao indígena e que, segundo guintes eventos: Carnaval (Esquenta Iracema), Arraial de Todos os Santos, Festa da Banana,
eles, é mais coerente com a Região Amazônica (SILVA, 2019: 20).

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

Aniversário do Município e Festejo de Santa Luzia (SILVA et al., 2016d: 102-103). A cidade também promove o “Arraiá Cantaense, com apresentações de quadrilhas e
A cidade também dispõe da Rádio Comunitária Iracema, veículo de divulgação show com bandas de forró do próprio município, e também da capital, Boa Vista” (SOUSA
cultural relevante (SILVA et al., 2016d: 101). A empresa que gere a rádio possui registro et al., 2016: 70, grifos nossos).
há cerca de 24 anos e se encontra ativa no órgão governamental responsável.
2.9 Bonfim
2.7 Mucajaí A cidade de Bonfim localiza-se na região de fronteira do Brasil com a Guiana, país
Encontramos alguns registros que remetem à atividade musical na cidade desde a da cidade vizinha Lethem. Há relações culturais importantes entre as duas cidades, com
década de 1980. Ernandes Silva e outros indicam a existência de um show de calouros intercâmbios estilístico-musicais evidentes:
no Teatro Municipal Venceslau Catossi, bem como as bandas 3ª Dimensão, formada por
“Daniel Martins Correia (guitarrista), Geraldo Pacheco (teclado e voz) e Josué Araújo (vo- O hábito de ouvir e dançar o forró e o reggae é fortemente cultiva-
do pela população de Bonfim e Lethem. Nas festas pesquisadas o forró
calista)” (SILVA et al., 2016c: 115), e Os Vikings, com os músicos “Naldo (guitarra), Edimil-
e o reggae estão presentes e compõem o repertório musical presente
son (teclado), Josué Araújo, Francisco Pereira Lima, vulgo Alemão, (vocais) e Raimundo nas festas de ambas as cidades. Os seus participantes demonstram o
dos Reis, vulgo ‘Bolo frito’ (baterista)” (SILVA et al., 2016c: 115). conhecimento das letras das músicas, tanto de forró como do reggae,
Em 1993 e 1994, ocorreram duas edições do Festival de Música de Mucajaí. A pri- as cantam enquanto dançam. Na descrição das festas que fazem parte
meira foi realizada desta etnografia esta constatação está evidenciada. Festa de reggae em
Lethem sem forró não existe, o mesmo acontece com a de forró em Bon-
fim, a presença do reggae é obrigatória. Por fazerem parte desta cultura
na sede do Atlético Progresso Clube, e contou com a participação de de fronteira, os donos das casas de festas utilizam dessa prática cultural
vários artistas amadores da cidade. Foi, na época, um dos principais já incorporada nos hábitos dos habitantes desta fronteira como fator de
eventos culturais do Município, coordenado pelo artista plástico Ma- atração de público, já que neste espaço fronteiriço as populações são
noel Matias. A banda que acompanhou a final do festival foi a Banda compostas por indivíduos de ambos os países. e dividem e comparti-
Memory, a mais famosa do estado na época (SILVA et al., 2016c: 116). lham este mesmo espaço em forma de lazer (MENESES, 2014: 134).

A segunda foi realizada no Ginásio Municipal Francisco Arinaldo de Sousa Paiva


e contou com o seguinte corpo de jurados: “Eliakin Rufino, Vânia Coelho, Neuber Uchôa, Na cidade de Bonfim, um dos pontos de realização dessa troca cultural é o cha-
Odelir Sampaio, Carlos Alberto Alves, Neto Araújo e Paulo Santos [...]. Os artistas que mado Bar do Coqueiro, no qual músicos brasileiros e guianenses realizam suas apresen-
se destacaram no Festival foram: Félix, Evandro Inácio, Eronilde Mesquita e Eris Carlos” tações de forró e reggae, “envolvendo os sujeitos que vivem e transitam nesse espaço
(SILVA et al., 2016c: 116). transfronteiriço e que fazem circular os diversos elementos das inúmeras culturas que
Um evento de importância estadual, realizado na sede do munícipio, é a Encenação formam e dão vida ao lugar” (MENESES; RODRIGUES; VALE, 2015: 156). A presença de
da Paixão de Cristo, que também conta com a realização de shows de artistas locais. Em afro-guianenses e caribenhos em municípios de Roraima, por meio de shows e apre-
2022, foi realizada a 38ª edição. sentações culturais, possibilita a circulação de características musicais do reggae. Para
A cidade ainda dispõe da Fanfarra Municipal de Mucajaí, criada em 2015, à época Braga (2015: 45), “essas atividades possibilitam a circulação de elementos simbólicos,
regida por Fernando Nogueira Leitão, com 45 crianças provenientes das escolas muni- próprios da cultura exercida por eles, que podem interagir em situações de contato”.
cipais (SILVA et al., 2016c: 119). Há ainda uma fanfarra na Escola Estadual Aldébaro José Alcântara e o grupo de
capoeira Raízes Brasileiras, do mestre Búfalo (LEITÃO et al., 2016: 58).
2.8 Cantá
Em Cantá, há número expressivo de habitantes das etnias Wapixana e Macuxi, e al- 2.10 Alto Alegre
gumas atividades das quais a música faz parte têm interface significativa com os povos O município de Alto Alegre, localizado no noroeste do estado, tem como peculia-
originários, como o Parixara, que ocorre no Centro Comunitário de Taba Lascada (SOUSA ridade a formação a partir da imigração japonesa na década de 1950. Algumas famílias
et al., 2016: 69). Existem ainda diversos festejos dedicados aos produtos alimentícios, de japoneses se estabeleceram na região do Taiano para o plantio de pimentas e outros
como a Festa do Beiju, Festa da Mandioca, Festa do Doce, Festa do Milho, Feira da Produti- vegetais, e foram os primeiros habitantes da Colônia Agrícola Coronel Mota. A influência
vidade, Festa da Damurida e Festa do Abacaxi (SOUSA et al., 2016: 69-71). cultural nipônica é presente até hoje na cidade e estende-se à capital, com a presença

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

da Associação Nipo-Brasileira de Roraima (PIRES; COMPAGNON; DIAS, 2019). rituais e os repertórios musicais cantados nas comunidades indígenas se ressignifica-
Assim como ocorre em muitos municípios de Roraima, a cultura nordestina é pre- ram com a presença de elementos estilísticos externos:
sente nos eventos da cidade, com apresentações musicais de forró e “nas danças tradi-
cionais, tendo o seu maior exemplo no grupo de bumba meu boi Douradinho, liderado No caso dos Makuxi, a instrumentalização da “cultura” foi ampliada,
de modo peculiar, ao forró – à “cultura do branco” – e através de tais
pelo senhor Raimundo Carin” (NUNES et al., 2016: 21).
ritmos buscaram enfatizar sua existência, emulando a operação dos
Há registros de alguns projetos sociais voltados à música na cidade, como o Co- compositores regionais, isto é, sem se apegar unicamente à “tradição”,
ral Canto do Curió (NUNES et al., 2016: 23), a Banda Tom Jobim e o Coro Toque de Vida mas valendo-se dela como ponto de partida para suas produções cultu-
(RORAIMA, 2008). rais-artísticas. Essa inflexão caracteriza o procedimento de bricolagem
composicional dos Makuxi enquanto instrumento criativo e equaliza-
dor de “forças culturais” e como modo de criação por imitação (FER-
2.11 Amajari NANDES, 2015: 114).
Na cidade de Amajari, como também ocorre em outros munícipios do estado, os
eventos juninos estão presentes no calendário local. O arraial, organizado pela Prefeitu-
ra Municipal, conta com as tradicionais quadrilhas e bandas de forró. O Instituto Federal A Prefeitura Municipal também promove eventos culturais, entre os quais o Festejo
de Roraima, campus de Amajari, promove um arraial com a participação de músicos Uiramutã, que já excede 60 edições. Há ainda os arraiais com concursos de quadrilhas.
locais, alunos e músicos de Boa Vista. Há registros de outros eventos religiosos e nas Fernandes (2015: 114) não indica especificamente em qual município acontecem
comunidades indígenas, mas sem continuidade, por falta de recursos ou interesse do essas interações, somente que são na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que não se
poder público. Os dirigentes municipais de cultura relataram, conforme Soares e outros, encontra exclusivamente no território de Uiramutã, mas também nos de Normandia e
que “alguns destes eventos já não aconteciam por diversos motivos, outros não tinham Pacaraima. Portanto, a divisão entre cidades, nesse caso, é meramente estrutural, com
data fixa e somente quatro eram realizados, anualmente, a saber: Festa Junina, Jogos e algumas manifestações claramente delimitadas, outras delas indissociáveis do ponto de
Festejo da Comunidade Indígena Araçá, Festival do Tepequém e Festejo da Padroeira Santa vista territorial.
Luzia” (SOARES et al., 2016: 32, grifos nossos).
O Tepequém Jazz Blues Festival, iniciado em 2014, realiza-se no bar Platô 2112. A 2.13 Normandia
localização é de evidente potencial turístico, repleta de cachoeiras e belezas naturais. Em Normandia, como já visto em outros municípios, há festividades relacionadas
Apesar do nome, o festival não se restringe a jazz e blues, mas abrange outros gêneros a gêneros alimentícios, como o Festival da Melancia, que, em 2022, teve sua 17ª edição.
musicais e manifestações artísticas diversas. Além do festival, o Platô 2112 abriga ou- Há participação de músicos regionais e locais, alguns conhecidos no estado e na região,
tros eventos, como “o Forrozinho Pé de Serra, com o Xaxado da Paraíba, Toca Raul, Virada como a Banda Pipoquinha, o compositor Zerbine Araújo e o tecladista Sipriano, “indí-
Cultural (festas de fim de ano), a presença da Casa do Nêuber, em evento próprio” (ALEN- gena que foi destaque na década de noventa, época da primeira formação da Banda
CAR, 2019: 89, grifos nossos). Pipoquinha de Normandia. Sipriano abandona a arte do teclado e volta a viver na co-
munidade Raposa I, onde constitui família e passa a viver como um dos seus” (ESBELL;
2.12 Uiramutã SANTOS; NOVAIS NÉTO, 2016: 135).
Uiramutã é o município mais setentrional do Brasil; abrange o Monte Roraima Na comunidade Raposa I, nas proximidades do lago Caracaranã, ocorre o Festival
e a tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Parte considerável do territó- das Panelas de Barro. O evento promove oficinas de cerâmica, demonstração de rituais e
rio configura-se como terra indígena – a mais conhecida delas seria a Raposa Serra apresentações culturais.
do Sol. Não é possível dissociar a música em Uiramutã das comunidades, nas quais
ocorrem festejos, cada uma com seus cantos e danças: “O tucui é cantado e dançado 2.14 Pacaraima
para receber o parixara. Então, quando há uma comunidade que vai fazer festa, dança Pacaraima, localizada na fronteira com a cidade venezuelana de Santa Elena de
o tucui e usa vestimentas e adereços típicos dessa dança” (ARAÚJO et al., 2016: 204, Uiarén, esteve em evidência nos últimos anos, devido ao processo migratório decorrente
grifos nossos). da crise na Venezuela. Assim como a profícua relação de trocas culturais descrita entre
Além das festividades e rituais dos povos originários, percebe-se a interação entre Bonfim e Lethem, Pacaraima e Santa Elena de Uairén também são locais de interações
esses elementos e outros de caráter urbano. Fernandes descreveu como as práticas, os importantes.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

relva alta, e a rua principal é também lugar de repouso de animais, dos


A Universidade Estadual de Roraima (UERR) tem um campus na sede do município, bois e, sobretudo, dos porcos, que descansam na lama e grunhem, indig-
no qual desenvolveu diversas atividades extensionistas na área de linguagens, cultura nados, quando a luz da lanterna os atinge. O baile é sem graça, como
indígena e não indígena. O poeta Devair Fiorotti, durante suas atividades como profes- todos do tipo. Nada original. Danças europeias: valsa, mazurca, quadrilha,
sor da UERR, realizou uma série de pesquisas em Pacaraima e nas terras indígenas da como a nossa. Algumas das moças são bastante bonitas, em todos os tons
de cor, algumas com vestidos bem-ajustados, outras vestidas de maneira
região, abordando as línguas indígenas, as manifestações culturais e os cantos presen-
um tanto antiga, tons claros e suaves; os homens de ternos escuros, pro-
tes nos rituais, conforme visto no primeiro subtítulo deste texto. vindos de Manaus. Orquestra: violão, flauta, gramofone. Bebidas: cerveja
Alencar (2019) aponta que a UERR ainda realizou uma série de eventos artísti- engarrafada, cerveja nacional do Rio e aluá, um refresco de milho. O salão
co-culturais em Pacaraima, como Yamix (2008-2013), Encontro Científico e Cultural do de dança é uma espécie de varanda, os funcionários índios ficam espian-
do por cima do muro de barro. Dança arrastada. Muita poeira. A única
Campus de Pacaraima (2013-2016) e Circuito Universitário de Cinema (2015). Há também
visão realmente refrescante é a de uma cadela sentindo-se confortável
o evento Fronteira Cultural (2012-2015), organizado pelo Serviço Social do Comércio no salão durante um intervalo de dança e amamentando seus filhotes2
(Sesc). Para Alencar: (KOCH-GRÜNBERG, 1917: 15-16, tradução nossa).

durante dois anos (2012 e 2013), Pacaraima foi privilegiada com dois Há ainda um registro fotográfico (Figura 1) contemporâneo dessa descrição, re-
grandes eventos culturais: o Fronteira Cultural no começo do ano e o
alizado por George Huebner, possivelmente em 1904, publicado em 1906 por Alfredo
Yamix já́ no segundo semestre. Isto demonstra que a cidade, em sua
localização fronteiriça, era um atrativo para realização de eventos, em Ernesto Jacques Ourique, como resultado da expedição promovida pelo governador do
especial por causa da possibilidade de intercâmbios e estabelecimento Amazonas Antonio Constantino Nery. Existe uma edição atual desse material, publicada
de relações transfronteiriças (2019: 64). pela Editora da UFRR (ZOUEIN; MAIA, 2017).
A legenda é a da publicação original, e a Fazenda Graciosa, localizada às margens
Sobre as interações culturais entre Brasil e Venezuela perceptíveis em Pacaraima, do Rio Uraricoera, possivelmente era próxima à confluência com o Rio Tacutu, hipótese
destacam-se, ainda, os eventos Micaraima e Mercorumba, relacionados às festividades de nossa que considera a ordem das fotos na publicação. É antecedida por fotos da Fazenda
Carnaval, e eventos relacionados ao rock, a saber: Reggae e Rock, Grito Rock e Gran Saba- São Marcos, localidade que ainda é possível identificar, atualmente, também às margens
na Rock (ALENCAR, 2020: 150). do Rio Uraricoera, e sucedida por fotos já no Rio Tacutu. À direita da imagem, vê-se um
Há ainda iniciativas voltadas à formação e à educação musical, como o Coral Ca- homem em traje escuro segurando um violão. Esse é o registro fotográfico mais antigo
narinhos da Amazônia e a Orquestra de Pacaraima, que contam com participantes bra- com referência à música encontrado em nossas pesquisas.
sileiros e venezuelanos (ALENCAR, 2020: 152-153).

3. Música em Boa Vista


Em Boa Vista, a capital de Roraima, há uma dinâmica que envolve o fazer musical mais
presente na literatura do que nas cidades do interior. Há registros de inúmeros eventos
musicais, um número expressivo de compositores e um contexto de ensino musical que 2
Original: “Um 10 Uhr nachts gehe ich mit unsrem Kommandanten João Silva zum Ball bei Terentio An-
vem crescendo nas últimas décadas. tonio de Lima, einem kaffeebraunen, sehr liebenswürdigen. Herrn. Er gilt als einer der einflußreichsten
O primeiro registro encontrado, relativo a um fazer musical de característica ur- Bewohner von Boa Vista. Von einem kleinen Indianerjungen werden wir mit der Laterne abgeholt. Es ist
aber auch nötig, denn die Straßenbeleuchtung m Boa Vista ist gleich Null. Die Wege sind mit hohem Gras
bana, assim como nas demais seções deste texto, também é de Theodor Koch-Grünberg. bewachsen, und auch die Hauptstraße ist der Tummelplatz des lieben Viehs, von Ochsen und besonders
A expedição relatada anteriormente chegou a Boa Vista no dia 29 de junho de 1911, Schweinen, die in den tiefen Morastlöchern der nächtlichen Ruhe pflegen und unwillig grunzen, wenn
der Schein der Laterne sie trifft. Der Ball ist eine ziemlich langweilige Geschichte, wie alle diese Sachen.
durante a tarde, e há a descrição de um evento musical à noite: Nichts Originelles. Europäische Tänze: Walzer, Mazurka, Quadrille, wie bei uns. Die Mädchen zum Teil recht
hübsch, in allen Farbenabstufungen, einige in gut sitzenden Reformkleidchen, andere nach etwas antiker
Às dez horas da noite, vou com o nosso comandante, João Silva, ao baile Mode zurechtgeputzt, durchweg hell und luftig; die Männer in dunklen Anzügen, Dutzendware aus Ma-
náos. Orchester: Guitarre, Flöte, Grammophon. Getränke: Flaschenbier, ‘Cerveja nacional’ aus Rio, und Aluá,
na casa do Terêncio Antonio de Lima, um senhor de pele morena, muito ein aus Mais hergestelltes Erfrischungsgetränk. Der Tanzsaal ist eine Art Veranda, über deren Lehmmauer
amável. É considerado um dos moradores mais influentes de Boa Vista. als Zaungäste das Indianerpersonal guckt. Schlürfender Tanz. Viel Staub. Den einzigen wirklich erfrischen-
Um menino índio nos busca com uma lanterna. Algo necessário, porque den Anblick gewährt eine Hündin, die es sich während einer Tanzpause im Saal bequem macht und ihr
não há iluminação nas ruas de Boa Vista. Os caminhos estão cobertos de Junges säugt”.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

Fig. 1: Fazenda Graciosa – Rio Uraricoera. Fonte: Zouein e Maia (2017: [102]).

Fig. 2: Porto da Vila de Boa Vista. Fonte: Zouein e Maia (2017: [79]).

Um dos achados mais significativos de nossa investigação foi o acervo musical de


Adolpho Brasil, que foi digitalizado durante as atividades do projeto de pesquisa Mú- Como na figura anterior, a legenda foi mantida no original, apenas com grafia atua-
sica e História em Roraima: Bibliografia, Documentação e Eventos Musicais, vinculado lizada. A residência em questão é a segunda edificação no sentido da direita à esquerda
à UFRR e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno- da imagem (Figura 2), com vista parcialmente encoberta pela vegetação, identificável,
lógico (CNPq). Adolpho, descrito por Koch-Grünberg (1917: 8) quando tocava violão e principalmente, pelo detalhe circular ao centro, acima da fachada. Há fotos contempo-
cantava durante a viagem de Manaus a Boa Vista, é avô de Petita Brasil, detentora do râneas para comparação, disponíveis on-line, as quais são facilmente localizadas devido
acervo, localizado na residência da família, construída em 1888. De acordo com Petita à importância histórica e arquitetônica da residência para a cidade, como a que segue
(BRASIL, 2018), trata-se da segunda casa de alvenaria mais antiga de Boa Vista. George (Figura 3):
Hubner, possivelmente em 1904, fotografou a casa (Figura 2).

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

giosa” (DUARTE, 2020: 202). O autor ainda se refere a outras instituições com potencial
de custódia documental na cidade, como a biblioteca do Seminário São José, e “a Cúria
Diocesana, que recolhe documentação e possui biblioteca própria” (DUARTE, 2020: 201).
Além dos possíveis acervos em Boa Vista, Duarte alerta:

É uma história que não pode ser desconectada, de modo algum, da


Amazônia como um todo, seja brasileira ou não, mas também alcança
a Europa, para além dos países mais “óbvios”: Portugal, Espanha, Ale-
manha e Itália. Também não é possível esquecermos as passagens das
ordens e congregações religiosas, o que leva a pesquisa para Belo Ho-
rizonte, Recife e Rio de Janeiro. Na sucessão de dioceses, antes de se
tornar prelazia nullius, outras cidades da Amazônia passam a figurar
como possibilidades de pesquisa, especialmente Manaus e Belém (DU-
ARTE, 2020: 205).

Indicamos, ainda, alguns estudos dedicados a manifestações musicais diversas,


construídos principalmente a partir de fontes que não se restringem à bibliografia. Lima
coletou informações a partir de fontes orais, “com alguns artistas entre eles [os entre-
vistados]: Dilmo Pina, Ricardo Nogueira, Alisson Chrystian, Eliakin Rufino e com o his-
Fig. 3: Residência da família Brasil. Fonte: Cavalcante (2017). toriador Jaber Xaud, que nos contaram histórias belíssimas contadas ou vividas pelos
pais, avôs ou ainda pessoas que conviveram na época, como a Senhora Terezinha Brasil”
Em relação ao acervo guardado na casa de Petita, pudemos verificar a existência (LIMA, 1999: 6). Por sua vez, Oliveira, valendo-se de fontes hemerográficas, discorre so-
de três cadernos pautados com pentagrama, manuscritos, um deles datado de 1926, os bre “a vida musical em Boa Vista na década de 1950 motivado pelas notícias veiculadas
outros sem datação, mas contemporâneos daquele. Na maior parte dos cadernos, foram no jornal O Átomo” (2021b: 4, grifo nosso).
copiadas apenas as melodias, de gêneros diversos – há temas populares brasileiros,
como modinhas, maxixes e sambas, e danças diversas, como valsas, marchas e foxtrotes. 3.1 Um panorama do ensino de música na capital
As músicas copiadas são de autores variados, alguns de renome, alguns desconhecidos, e Não há como desconectar os eventos histórico-musicais dos processos educativos
uma valsa assinada pelo próprio Adolpho Brasil. Além de cantar e tocar violão, Adolpho musicais em Boa Vista. Até o início do século XX, não havia formalização do ensino no
também tocava clarinete (BRASIL, 2018). Esses indícios sugerem um cenário de música estado, mas ressaltamos que os processos de transmissão do saber musical ocorriam
instrumental – uma hipótese plausível seria a existência de um contexto de choro em nas comunidades indígenas e nas rodas de violeiros, nos cantos, na presença da guarni-
Boa Vista; isso ainda carece de informações e pode ser um tema para pesquisas futuras. ção músico-militar do Forte de São Joaquim do Rio Branco e nos ritos religiosos.
Entre os registros antigos, a música de função religiosa costuma ocupar espaço
importante nas pesquisas, não apenas por aspectos rituais, técnicos ou musicais, mas, Em meados do século XVIII iniciam-se na região expedições missiona-
rias pela Bacia do Rio Branco com interesses de povoar, explorar e cate-
principalmente, pela estrutura organizacional dos acervos e pelo evidente potencial de
quizar as comunidades indígenas da região de Roraima. Para Oliveira e
guarda das instituições. Em Roraima, ainda é um campo aberto, com poucos resultados Duarte (2007) as Missões Carmelitas em 1725 permitiram os primeiros
publicados recentemente, embora com indícios de que há muito por fazer. Nesse sen- contatos das tribos indígenas com os conceitos musicais europeus, os
tido, Duarte (2020: 202) apontou o Centro de Documentação Indígena – gerido pelos estudos musicais eram presentes na catequização como ferramenta de
missionários da Consolata, com destaque ao irmão Carlo Zacquini – como um acervo de sedução e estratégia de fomentar a cultura europeia e a religião católi-
ca, tal como realizaram a Ordem religiosa dos Jesuítas (SILVA, 2016: 2).
interesse. “Dentre os diversos tipos documentais ali existentes – fontes hemerográficas,
documentos e outros –, aquelas em formato audiovisual chamaram-nos particularmente
a atenção, pela possibilidade de conterem registros de práticas musicais de função reli- Um dos registros sobre a educação musical em Roraima no século XX consta no

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

livro Educação musical no Brasil (2007), organizado pelas professoras Alda Oliveira e de música3, Reginaldo Oliveira (1991) apresenta um estudo sobre o ensino e a cultura
Regina Cajazeira, no qual músicos/educadores de cada estado foram convidados a re- em Roraima entre 1978 e 1988, mas, principalmente, sobre o contexto da educação
latarem a situação da educação musical. O artigo “Música e educação em Roraima”, de básica e o ensino de música. Oliveira (1991: 55) aponta que o ensino era precário pela
Reginaldo Oliveira e Rosangela Duarte, é um dos primeiros textos da área de educa- “falta de conhecimento sobre música entre os próprios responsáveis por seu ensino na
ção/historiografia musical sobre Roraima. Os autores relatam os processos de ensino a região”. Sobre o panorama da educação formal, o então Território Federal de Roraima
partir da relação das missões das carmelitas com os povos originários da região e das não possuía professores com a formação adequada para essa atuação, criando “a neces-
apresentações das agremiações civil-militares, passando para o ensino de piano, canto sidade de fundar uma escola que pudesse preparar as pessoas e capacitá-las para que
e outros instrumentos musicais até o início do século XXI. exercessem o ensino do canto e da música nas escolas” (OLIVEIRA; DUARTE, 2007: 362)
Os autores destacam três mulheres que realizaram esse processo de ensino na – esse é o primeiro passo para a criação da Escola de Música de Roraima (EMUR).
primeira metade do século XX, as pianistas Olívia da Silva (a partir de 1943), Carmem A EMUR foi uma demanda dos músicos e da própria sociedade roraimense, que
Eugênia Macagi (a partir de 1948) e Delzira Gomes Bezerra (a partir de 1950), como au- pedia aos governos um espaço de ensino para a formação musical dos professores da
xiliar de regência, no curso de formação de regente, juntamente com Carmem Eugênia. educação básica e dos interessados em formação técnica musical, criada a partir do
O “êxito obtido pela música e a dança nessas primeiras décadas levaram as famílias a Decreto Federal nº 107/1983 (SILVA, 2021). Na Escola de Música, teremos dois profissio-
solicitar vários professores de piano para o Território Federal de Roraima” (OLIVEIRA; nais fundamentais para os registros sobre a arte/música em Roraima e proposições da
DUARTE, 2007: 362). área de formação musical no estado. Ambos Reginaldo Oliveira e Rosangela Duarte di-
Um outro nome de destaque no ensino de música em Roraima, entre as décadas rigiram a Escola de Música, foram professores de música na educação básica e atuaram
de 1950 e 1960, é o do maestro e professor Dirson Costa, que nasceu no Piauí e migrou, na UFRR, com papéis fundamentais para a criação da primeira licenciatura em música
ainda pequeno, para Roraima com a família. Costa em Roraima.
Reginaldo Oliveira, em entrevista concedida para Silva (2021), conta como foi o
trabalhou no garimpo do maior fazendeiro local, Adolfo Brasil, de quem processo de criação da Escola de Música e sua formação.
conquistou profunda amizade e respeito e logo se tornou seu pupilo.
No garimpo, passava as horas vagas sozinho tocando violão e compon-
No segundo semestre de 1983, durante um concerto de dezembro com
do. A música embalou a saudade e o fez usufruir da intimidade familiar
um coral adulto e um coral infanto-juvenil que pertenciam a Coorde-
de Adolfo Brasil, um homem apaixonado por música e, mais tarde, seu
nação de Artes do Departamento de Cultura [estadual] que funcionava
mecenas. Tinha em sua casa uma sala de música com vários instrumen-
num antigo prédio onde hoje é a Assembleia Legislativa, naquele Natal
tos musicais, onde promovia com frequência festas e saraus. A pedido
de 1983, o Secretário de Educação e o Governo de Roraima se sensibi-
dele o jovem Dirson se apresentava tocando saxofone, flauta, piano ou
lizaram e o grupo de professores que atuavam neste Coral elaborou o
violão para seus convidados demonstrando grande habilidade para a
projeto que implantou a Escola de Música que passou a funcionar em
música (INSTITUTO DIRSON COSTA, [20--]).
1984, em um prédio da Prefeitura ali atrás de onde é hoje a Assem-
bleia Legislativa, esse grupo inicial tinham também uma proposta de
pensar num curso superior de música voltado também para essa Coor-
O músico teve sua formação financiada pelo fazendeiro, em Belém e, posterior- denação de Música do Departamento de Cultura, e ai criou um projeto
mente, no Rio de Janeiro, estudando com nome s como Villa-Lobos e Lorenzo Fernandez. dos professores se qualificarem num mestrado, então desde grupo eu
fui o primeiro a sair para fazer o mestrado, por isso o meu mestrado
Com o retorno ao Norte, atuou entre as cidades de Manaus e Boa Vista. Em Roraima,
é em música, só́ que no retorno aquele grupo originário da Escola já́
formou “saxofonistas, flautistas e violonistas, cuja participação se pode pôr fim formar a tinha saído, já́ tinha saído da Escola, então encontrei a Rosangela que
primeira banda de Música do Governo e da Guarda Civil Territorial nas décadas de 1960 tinha chegado, ai eu disse, mas cadê? Daqui vai sair os outros para o
e 1970” (OLIVEIRA; DUARTE, 2007: 362). É creditada a ele a composição do “Hino de mestrado. E ela, não tem mais essa proposta. E aí foi uma frustação
muito grande, mas enfim, continuamos trabalhando na Escola de Músi-
Roraima”, juntamente com o escritor e poeta Dorval Magalhães.
ca... Mas sempre tínhamos essa ideia de um curso superior na área de
Na educação básica, o ensino de música ocorria através da educação artística im- música, para nos ajudar, auxiliar estes professores que acabam atuando
plementada pela então Lei nº 5.692/1971, que fixava as diretrizes e bases para o ensino
de primeiro e segundo graus. Na dissertação Roraima, Amazônia de Makunaima e o ensino
3
Há um volume fotocopiado do trabalho original datilografado na Biblioteca Central da UFRR, material
riquíssimo sobre o ensino de artes em Roraima, que necessita ser digitalizado para a preservação.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

em diferentes áreas não só́ da escola, mas também das igrejas, com o
canto coral, e demorou um pouco, mas finalmente ainda no início dos Com a carência de formação de professores específicos em música, a ampliação
anos da segunda década do Século XXI nós conseguimos implantar o dos cursos superiores pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
Curso de Música (SILVA, 2021: 112). das Universidades Federais (Reuni), a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação), a Lei nº 11.769/2018 e as consultas, realizadas pela UFRR, a candidatos ao
Rosangela Duarte mudou para Roraima em 1986 e encontrou, na EMUR, um espa- vestibular sobre a oferta de novos cursos, foi possível que, em novembro de 2012, fosse
ço para atuação profissional, mas com uma demanda urgente de formação para profes- protocolado o processo de abertura do curso de licenciatura em música da UFRR, sob o
sores e alunos: “evidentemente, minha vida começou a girar em torno dos estudos, dos número de registro 23129.002327/2012-17 (SILVA, 2021: 112).
concertos de piano e coral, das visitas às escolas de música e regular, ou seja, minha vida A criação do curso de licenciatura em música da UFRR possibilitou a ida de pro-
assumiu os rumos da Educação e da Música” (DUARTE, 2010: 15). Ela dirigiu a escola, fissionais para atuação no ensino superior e a ampliação dos trabalhos de educação
ministrou aulas de piano e teoria musical, montou e regeu diversos corais – para ela, a musical no estado, mas também o fortalecimento em ações de extensão universitária e,
atuação na EMUR contribui para os “processos reflexivos sobre o ensino de música na sobretudo, o aumento de pesquisas na área de música nos mais diversos níveis acadê-
escola regular” (DUARTE, 2010: 16). micos.
A EMUR tem um papel fundamental na formação técnica de músicos na cidade de A atuação sistematizada, a percepção sobre o papel de ser professor universitário
Boa Vista, com cursos de instrumentos e percepção/teoria musical e um espaço de en- e a preocupação com a formação de pesquisadores permitiram, a partir de 2013, um au-
sino semelhante aos conservatórios espalhados por todo o Brasil, mas com um quadro mento nas publicações sobre a música em Roraima, em eventos nacionais organizados
reduzido de profissionais com formação em música. A sua ainda vinculação à Secretaria pela Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) e pela Associação Nacional de
Estadual de Cultura, e não à Secretaria Estadual de Educação, a inexistência de projetos Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e no Simpósio Internacional de Música
pedagógicos dos cursos técnicos aprovados pelo Conselho Estadual de Educação e a na Amazônia (SIMA), entre outros, além das participações em eventos fora do Brasil, que
própria ausência de interesse dos governos estaduais em valorizar a instituição não amplificaram o nome do Curso de Música da UFRR, mas, principalmente, a música em
permitem à EMUR alcançar um padrão de ensino de excelência com certificação técnica Roraima.
em música (RORAIMA, 2018. SILVA, 2021. FRIESEN; BAPTAGLIN, 2022). O Curso de Música da UFRR conta com profissionais em diversas subáreas do
Outro importante espaço de formação musical em Roraima é o Instituto Boa Vis- conhecimento musical – educação musical, performance, musicologia, etnomusicologia
ta de Música (IBVM), uma ação sociocultural da Prefeitura Municipal de Boa Vista, que –, mas é importante destacar o trabalho de três ex-professores, que hoje atuam em ou-
realiza, através do instituto, o ensino de musicalização e de instrumentos como violão tras instituições de ensino superior no Brasil, sendo eles Gustavo Benetti (Universidade
e sopros de cordas, com ações e apresentações dos seus corpos artísticos (bandas e or- Federal do Maranhão), Jefferson Silva (Universidade Federal do Maranhão) e Jéssica
questra). O IBVM é de Almeida (Universidade de Brasília). Segundo dados de indicadores de produção da
Plataforma Lattes (2022), os três professores contribuíram com 179 registros, lançados
voltado para a inclusão social, promoção da cidadania e desenvol- como artigos em periódicos, trabalhos apresentados em eventos, capítulos e livros, pu-
vimento artístico cultural de crianças e adolescentes. Foi criado em
blicados de 2013 a 2022. Os outros sete professores, no período, tiveram 61 registros
15/09/2005, autorizado como organização social sem fins lucrativos
pela Lei Municipal nº831/2005, porém, essa instituição não emite cer- lançados na plataforma. Somando a atuação dos três ex-professores em Roraima, é pos-
tificação de nível técnico, devido à formação docente: a maioria dos sível verificar um intenso trabalho de ensino, pesquisa e extensão durante a passagem
professores não possui formação superior em Música (LIMA, 2018: 37). pelo estado, no qual se tornaram referências sobre a música pesquisada ou realizada
entre 2013 e 2022.
O IBVM tem papel fundamental no que tange à internacionalização e à ampliação Encontramos registros da atuação de dois grupos de pesquisa – Musicologia na
de laços com músicos venezuelanos. Alguns professores que passaram por ele ou que Amazônia (MusA) e Grupo de Estudos e Pesquisas (Auto)Biográficas em Educação Mu-
atuam nele são de origem do El Sistema venezuelano; o próprio instituto começou com sical (GEPAEM)4 – criados no âmbito do Curso de Música da UFRR. O GEPAEM contou
uma proposta didática semelhante, e muitos músicos foram convidados para apresen- com professores (da UFRR e externos), alunos e ex-alunos da licenciatura em música da
tações, fortalecendo o laço cultural dos dois países (ALENCAR, 2019). Com a migração
venezuelana nos últimos anos e suas ações socioculturais, o IBVM recebe crianças bra-
sileiras e venezuelanas para o ensino de música na cidade de Boa Vista. 4
Extintos em 2020 e 2022, respectivamente, em razão da redistribuição de seus líderes para outras ins-
tituições de ensino.

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Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

UFRR; suas “ações estiveram voltadas para os estudos da educação musical, memória curso são fonte valiosa de dados que dizem respeito a essa população, de pessoas que
e história nos mais diversos espaços de formação, tendo como objetivo discutir e pro- vivenciaram, em maior ou menor grau, o desenvolvimento da educação e da vida musi-
blematizar a formação inicial, continuada ou permanente através de perspectivas teóri- cal de Roraima ao longo das últimas décadas” (FRIESEN; BAPTAGLIN, 2022: 75) – alguns
co-metodológicos (autobiográficas)” (SILVA, 2021:156). Em uma de suas ações, o MusA deles contribuem com a construção deste texto sobre o panorama da musicologia em
promoveu o Música em Pauta, ação de extensão que tinha como iniciativa “ampliar as Roraima.
atividades do grupo de pesquisa, possibilitando ao público o contato com os temas Os trabalhos realizados no âmbito do Curso de Música da UFRR e em outros espa-
discutidos no âmbito da pesquisa musicológica” (OLIVEIRA; BENETTI; SILVA, 2018: 8), ços de ensino possibilitam um levantamento de informações sobre a música na região
organizando “conferências e debates sobre a música como manifestação artística, social Norte e em Roraima. Ter um olhar voltado para esse banco de dados permite conhecer
e, como elemento da cultura” (OLIVEIRA; BENETTI; SILVA, 2018: 8). um pouco das ações de música no ponto mais setentrional do nosso país. As vivências
Podemos destacar, desses grupos, que houve ações de extensão e a pesquisa/ dos pesquisadores em estágios e sua atuação como professores, na interpretação e na
publicação de trabalhos de musicologia, principalmente com os textos de Benetti, e de composição musical, proporcionam uma compreensão dos estudos da musicologia pre-
educação musical, com os de Almeida e Silva. Os dois docentes da área de educação sentes em Roraima.
musical, assim como os demais professores e alunos, utilizaram o curso de licenciatura
em música como objeto de suas pesquisas, possibilitando uma reflexão ativa a partir 3.2 Algumas práticas musicais contemporâneas
dos estudos de caso, pesquisas-ação e de campo desenvolvidos naquele ambiente. A exemplo do que se discute em relação à música brasileira de uma forma geral,
Na sua tese de doutorado Biografia músico-educativa: produção de sentido em meio à a música em Boa Vista também dispõe de práticas musicais de matrizes variadas, sejam
teia da vida, Jéssica de Almeida traz, pela primeira vez, publicações sobre as abordagens ocidentais, sejam dos povos originários, sejam de culturas afro-latinas.
(auto)biográficas e as narrativas de alunos/professores em Roraima e amplia, na região A música autoral em Boa Vista é, em parte, resultante desse processo de inúmeras
Norte, as discussões sobre as temáticas: “trouxe-me uma contextualização diferenciada referências. Na cidade, há, desde a década de 1970, uma tradição de festivais voltados
sobre a produção na região, fazendo-me perceber novos caminhos decorrentes de seu à composição musical, os quais “são bastante representativos para a formação de um
contexto e, também, a necessidade de que as pesquisas do Norte sejam divulgadas ao estilo identificado com uma estética regionalista na música” (BENETTI; SILVA, 2020:
restante do país (ALMEIDA, 2019: 249-250). 63). Vale mencionar o 2º Festival de Música Popular de Roraima, realizado em 1984, em
Já nas pesquisas realizadas por Jefferson Silva, temos um crescimento de publi- especial a música premiada com o segundo lugar, “Roraimeira”, de Zeca Preto. Essa mú-
cações sobre a formação de professores e o currículo em licenciaturas em música. Os sica viria a dar nome a um movimento cultural, que “aglutinou músicos, escritores, dan-
trabalhos culminam com a tese de doutorado Licenciatura em música: inter-relação e çarinos, poetas, fotógrafos, entre outras expressões artísticas voltados para construção
aplicabilidade entre ensino, pesquisa e extensão universitária em Roraima – Brasil (2021), cultural de uma identidade para o povo de Roraima, calcado, sobretudo, nos elementos
realizando um extenso relato sobre políticas públicas em formação de professores de da cultura e da paisagem natural existentes no estado” (OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA,
música, a criação do Curso de Música da UFRR e as ações de ensino, pesquisa e extensão 2009: 28). Dentre os nomes relevantes desde o início do movimento, destacamos Eliakin
na instituição, apontando proposições sobre um currículo que busque a indissociabili- Rufino, Neuber Uchôa e Zeca Preto, aos quais Souza (2017: 56-60) dispensou alguns
dade entre ensino, pesquisa e extensão com as unidades curriculares do curso. parágrafos biográficos em sua dissertação. Dedicamos poucas linhas, com a indicação
de algumas fontes, pois o Movimento Roraimeira é um tema extensamente tratado na
Percebemos ao longo da investigação que a vivência entre o ensino, a literatura acadêmica.
pesquisa e a extensão no contexto da Licenciatura em música da UFRR,
Outra manifestação relevante em Boa Vista, também identificada em diversas ci-
permite uma formação mais consciente e aprimorada do professor de
música, mas infelizmente essa prática não ocorre de forma consistente, dades do interior, consiste na comemoração das tradições juninas, proveniente da região
os poucos alunos que responderam os questionários indicaram que é Nordeste. As quadrilhas começaram a ser organizadas em Boa Vista a partir da década
importante a participação nas três frentes de formação universitária, de 1950, por iniciativas pessoais, e, aos poucos, esse movimento foi se ampliando devido
porém, ela ocorre para poucos (SILVA, 2021: 223) à ação de instituições diversas. A partir da década de 2000, os brincantes passaram a se
organizar em associações, e os eventos juninos tornaram-se mais abrangentes, com in-
A ampliação de pesquisas da música em Roraima ocorre também a partir dos tra- centivo financeiro de órgãos públicos. Há dois grandes eventos, o Arraial das Três Nações,
balhos de monografia do Curso de Música da UFRR; “estes trabalhos de conclusão de promovido pelo Governo Estadual, e o Boa Vista Junina, promovido pela Prefeitura (AL-

150 151
Música em Roraima: diversidade cultural na fronteira norte Gustavo Frosi Benetti; Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva

BUQUERQUE, 2013: 47-72). A música tem papel importante nos eventos, que propiciam, ALENCAR, Gabriel de Souza. Os eventos artístico-culturais na fronteira norte: ferra-
inclusive, a composição musical, visto que costuma haver a exigência de alguma música mentas catalisadoras da arte. In: BENETTI, G. F.; ALMEIDA, J. (org.). Música em Roraima:
inédita em cada evento (SILVA, 2017a: 80). eventos, práticas e registros. Boa Vista: Editora da UFRR, 2020. p. 139-162.
De menor projeção que a tradição nordestina, mas também relevante no contexto
da capital, é a tradição musical sulista. Estabelecida a partir de um fluxo migratório ALENCAR, Gabriel de Souza. Os eventos artístico-culturais transfronteiriços: cooperação
ocorrido na década de 1970, a cultura do Sul tem como ponto de encontro o Centro de e solidariedade na fronteira. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Fronteira) - Centro
Tradições Gaúchas Nova Querência, fundado em 1981. A análise de Silva (2017b: 19) de Ciências Humanas, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2019.
buscou “compreender como a musicalidade gaúcha [...] se faz presente na construção
da musicalidade em Boa Vista”. ALMEIDA, Jéssica de. Biografia músico-educativa: produção de sentido em meio à teia
A música de influência afro-latina também possui espaço em Boa Vista, especial- da vida. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal de
mente pelo reggae da banda Guy-Bras, composta por imigrantes guianenses e consi- Santa Maria, Santa Maria, 2019.
derada referência do gênero musical no estado (BRAGA, 2015: 76). Além da Guy-Bras,
outras bandas compunham na época essa cena do reggae em Boa Vista, como Roots e ARAÚJO, Dayana Soares; MELQUIOR, Lindinaia Pereira; LIMA, Omério Cavalcante de;
Jam Rock (BRAGA, 2015: 91). O reggae entrou em Boa Vista por, pelo menos, duas rotas: DIAS, Wagner da Silva. Diagnóstico situacional da cultura no município de Uiramutã/
além da Guiana, o gênero musical também chegou através da migração do estado do RR: abordagens e sistematizações iniciais. In: LEVINO, S. S. A.; LIRIO, F. C. (org.). Panora-
Maranhão, nessa via caracterizado como o reggae de radiola, uma prática por meio de ma cultural de Roraima. Boa Vista: Editora da UFRR, 2016. p. 194-208.
equipamento de som e um deejay (NOGUEIRA, 2015: 106).
Como indicamos no início, o panorama apresentado possui algumas continuida- BENETTI, Gustavo Frosi; SILVA, Levi Leonido Fernandes da. Os festivais da canção
des, muitas lacunas, e nossa intenção é de que possa ser útil aos interessados em seguir (1974-2017): concursos de música autoral em Boa Vista. In: BENETTI, G. F.; ALMEIDA,
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158 159
A viola de buriti: aspectos
de uma musicalidade dos
sertões do Tocantins
Marcus Facchin Bonilla
Universidade Federal do Norte do Tocantins

6 como citar
BONILLA, Marcus Facchin. A viola de buriti: aspectos de
uma musicalidade dos sertões do Tocantins. In: DUARTE,
Fernando Lacerda Simões; RUAS JUNIOR, José Jarbas Pi-
nheiro (ed.). Norte. Vitória: Associação Nacional de Pes-
quisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 160-181. (His-
tórias das Músicas no Brasil).
A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

1. Introdução to enquanto parte de uma construção dialógica, além do retorno das produções para as
A viola de buriti é um instrumento usado nas práticas musicais em algumas regiões no comunidades envolvidas.
interior do estado do Tocantins, em especial na região do Jalapão. Trata-se de um ins- Vale ressaltar que este trabalho nasceu do envolvimento de um docente com dis-
trumento ainda pouco conhecido nos circuitos culturais, que passou a ter uma maior centes de um curso de educação do campo. De forma bastante sintética, os cursos de
visibilidade a partir dos anos 2015 e 2016, quando o projeto Violas Brasileiras, do licenciatura em educação do campo surgem de um movimento de engajamento políti-
Sonora Brasil do Serviço Social do Comércio (Sesc), promoveu um circuito com o mes- co-social-educacional, protagonizado pelos movimentos sociais do campo, voltado para
tre do quilombo Mumbuca, Maurício Ribeiro (Fig. 1), em diversas apresentações pelo atender e formar educadores que possam atuar em comunidades rurais do campo, das
Brasil. Antes disso, em 2010, houve também uma edição do projeto Voa Viola, realizada florestas, das águas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas.
no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, com a dupla Tradição do Jalapão, formada por Apenas para que entendamos o contexto em que esta pesquisa nasce e a impor-
Maurício Ribeiro e Arnon Tavares, que impactou o público com a música “Violinha de tância da concepção freiriana e das metodologias adotadas na educação do campo, res-
vereda”, com os violeiros trajados com seus chapéus de capim dourado, simbolizando salto que as aulas do curso acontecem na lógica da “pedagogia da alternância”, que se
seu pertencimento à identidade jalapoeira e destacando a importância de suas violas. trata da existência de dois tempos-espaços de construção de conhecimento. Um deles,
Além desses dois momentos de projeção nacional, em que a viola de buriti chegou realizado no ambiente escolar, na universidade, de modo mais intensivo; e o outro, que
a um grande público, a ampliação do turismo que acontece na região do Jalapão tam- acontece na comunidade em que os educandos vivem, onde ocorrem, necessariamente,
bém contribui para que esse instrumento comece a ter mais visibilidade. as pesquisas, os trabalhos coletivos e, quando for o caso, a aplicação ou experimenta-
Este artigo traz um recorte sobre alguns aspectos históricos, da invisibilidade e de ção de conteúdos trabalhados durante o tempo na universidade. Essa pedagogia prevê
características da musicalidade de sujeitos envolvidos com a viola e a rabeca de buriti também o envolvimento dos(as) educandos(as) com as suas famílias, a manutenção do
no quilombo Mumbuca e em comunidades no entorno do Parque Estadual do Jalapão trabalho e a relação com a comunidade. Durante o chamado tempo-espaço “comunida-
(PEJ), no Tocantins. Os dados apresentados aqui foram extraídos de alguns trabalhos de”, docentes fazem o acompanhamento das pesquisas e dos processos de construção
interligados, como a minha tese de doutorado (BONILLA, 2019), um inventário participa- de conhecimento dos(as) educandos(as). Para Molina (2014: 7), “essa metodologia de
tivo (GRUPO QUILOMBO MUMBUCA DE PESQUISA, 2018) e um documentário (A VIOLA, oferta intenciona também evitar que o ingresso de jovens e adultos na educação supe-
2018), realizado pelo Grupo de Pesquisadoras do Quilombo Mumbuca (GPQM)1, assim rior reforce a alternativa de deixar de viver no campo”.
como o relatório final da pesquisa solicitada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Foi nesse contexto de pedagogia da alternância em trabalhos de pesquisa em
Artístico Nacional do Tocantins (Iphan-TO), que visou a mapear violeiros de buriti em tempo comunidade que a ligação do pesquisador se estabeleceu com os sujeitos da
cidades de regiões próximas e no entorno do Jalapão (IPHAN, 2018)2, pesquisa essa que comunidade, no caso, o quilombo Mumbuca. Nesse sentido, observou-se um interesse
nasceu a partir da entrega do inventário que realizamos e de uma carta de solicitação da comunidade em divulgar sua musicalidade e registrar seu instrumento como um
feita pelo quilombo Mumbuca a esse instituto. patrimônio imaterial. Para dar início às atividades, foi acordado, com as lideranças e pes-
Este trabalho nasce de um comprometimento ético de pesquisa, envolvendo pes- quisadoras desse quilombo, um trabalho conjunto para a realização de um inventário
quisador e pesquisados, no intuito prioritário de atender ao interesse de uma comunida- participativo, na metodologia sugerida pelo Iphan (2016), no intuito de gerar documen-
de, o quilombo Mumbuca, localizado no município de Mateiros-TO, na região do Jalapão. tos e relatórios, além de viabilizar a realização de um documentário para auxiliar no
Nesse sentido, tratou-se de uma pesquisa com o viés da etnomusicologia aplica- material de solicitação de registro da viola de buriti como patrimônio imaterial brasi-
da, podendo ser classificada também como pesquisa-ação participante, nos termos de leiro ao instituto.
Thiollent (2011), ou, de forma mais ampla, como uma pesquisa participante (BRANDÃO, Além desse objetivo, houve a manifestação do quilombo para a realização do re-
1981), em que a responsabilidade social e a valorização das pessoas são prioritárias gistro de sua musicalidade em formato de partitura, escrita, assim como para a viabiliza-
diante dos demais aspectos metodológicos, assim com o entendimento do conhecimen- ção da produção de textos acadêmicos destacando o ponto de vista do próprio quilom-
bo sobre as questões que lhe dizem respeito e lhe são caras. Para finalizar a parceria de
pesquisa, houve também a participação em editais de fomento cultural para atender às
1
Fizeram parte do GPQM as seguintes pesquisadoras/moradoras do quilombo: Ana Claudia Matos da
Silva, Givoene Matos da Silva, Keila Barbosa da Silva, Núbia Matos da Silva, Railane Ribeiro da Silva e demandas do quilombo Mumbuca.
Sirlene Matos da Silva.
2
Pesquisa realizada com a pesquisadora e antropóloga doutora Suiá Omim Arruda de Castro Chaves.

162 163
A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

O estado do Tocantins tem, hoje, o seu território definido como parte da região
Norte do país, sendo um dos mais recentes da Federação. Foi criado junto com a última
Constituição Federal, no dia 5 de outubro de 1988. Fruto de longas lutas populares, sua
criação objetivou a geração de um maior desenvolvimento do norte do então estado
de Goiás, historicamente esquecida pelo Estado e por políticas públicas. Entretanto, a
ocupação humana nessa região é bastante antiga. Segundo Giraldin (2002), o território
que hoje conhecemos como Tocantins já era ocupado por mais de 20 grupos indígenas
antes de os bandeirantes e missionários da Coroa portuguesa percorrerem a região em
busca de ouro durante o século XVII. Suas primeiras cidades, como Natividade, Arraias
e Dianópolis, segundo Aquino (2011), foram criadas na sua primeira onda migratória, ao
longo do século XVIII, no curto período de mineração de ouro que houve nessa região.
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, houve também outros ciclos migratórios, incluindo a
expansão da pecuária, movimento esse que envolveu a vinda de muitas pessoas negras
para o estado. O Rio Tocantins foi a principal rota de acesso migratório. Não por acaso,
as primeiras cidades foram criadas à sua margem, o que facilitou também a chegada de
migrantes do Norte e do Nordeste, atraídos, principalmente, pela mineração, mas tam-
Fig. 1: Mestre Maurício Ribeiro (1974-2021), do quilombo Mumbuca, com sua viola de buriti, uma home-
nagem póstuma por sua enorme contribuição para a visibilidade da arte jalapoeira. Fonte: Acervo e foto bém pela criação de gado. Segundo Aquino (2011), a construção da rodovia BR 153, tam-
do autor. bém conhecida como Transbrasiliana, que corta o estado do Tocantins no eixo norte-sul
e liga o Norte do Brasil ao Centro-Oeste, foi outro fato importante, que gerou outra onda
Depois desse trabalho realizado, juntamente com uma carta de solicitação de re- migratória em fins da década de 1950.
gistro entregue para o Iphan-TO, fomos surpreendidos com uma rápida resposta desse Esses dados sobre a formação do território do estado do Tocantins nos ajudam a
instituto na publicação de um edital selecionando pesquisadores para a realização de compreender um pouco algumas questões sobre essa invisibilidade e o entendimento
pesquisas adicionais, conforme já informamos no início do texto, os Estudos (dossiê) de das práticas musicais, assim como a musicalidade das pessoas que se expressam, brin-
viabilidade de registro da viola de buriti nas microrregiões de Porto Nacional, Dianópolis cam e se identificam nessa região.
e Jalapão, no estado do Tocantins (IPHAN, 2018), para os quais fomos selecionados en- Nesse contexto, a busca por informações históricas sobre a viola de buriti foi um
quanto pesquisadores. Esse trabalho gerou uma boa quantidade de dados, ainda não dos mais desafiadores processos durante a construção desta pesquisa. Fontes documen-
explorados em sua totalidade. tais, como fotos, imagens, textos, publicações em jornais de época ou quaisquer outras
Outro retorno que tivemos do Iphan foi a sua iniciativa de promover, juntamente informações escritas ou impressas, foram escassas, beirando a inexistência. As principais
com o quilombo Mumbuca, o I Encontro de Violeiros para Salvaguarda da Viola de Buriti fontes do trabalho foram centradas em relatos orais, mesmo assim, com dificuldade. Por
que oportunizou a troca de saberes entre os violeiros da região, além de o estímulo pro- uma série de fatores, as práticas musicais envolvendo a viola de buriti são invisibilizadas.
porcionado por esse tipo de ação. Esse movimento tem incentivado também o estado O primeiro documento a que tive acesso, que faz referência ao instrumento, foi por
e as prefeituras a desenvolverem ações voltadas para o fomento aos violeiros e demais ocasião da publicação do catálogo do circuito Sonora Brasil, projeto do Serviço Social
artistas da cultura popular. do Comércio (Sesc), em que houve a participação do mestre do quilombo Mumbuca,
Maurício Ribeiro (Figura 1), virtuose do instrumento e grande responsável pela divulga-
2. Aspectos históricos ção da viola de buriti para o restante do Brasil, que, infelizmente, faleceu recentemente
O primeiro aspecto que quero destacar, observado durante as pesquisas, é a invisibilidade por covid-19, o que sentimos demais. Por sua vez, esse projeto gerou um catálogo com
do instrumento, não apenas para o restante do Brasil, mas também dentro do próprio es- um texto produzido pelo violeiro e pesquisador Roberto Corrêa, que define a viola da
tado do Tocantins, o que se refletiu na enorme dificuldade de se encontrar documentos seguinte forma:
e notícias a seu respeito.

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A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

Viola de Buriti – é construída com talos desta palmeira típica do cer-


rado. Nas veredas, locais onde se encontra água à flor do chão, nascen-
tes e pequenos córregos, há buritis em abundância. O instrumento é
construído com três talos da folha, ocados na parte que corresponde à
caixa de ressonância e colocados um ao lado do outro, sendo o talo do
meio mais comprido, de modo a servir de braço para o instrumento. Até
o presente temos notícias de violas de buriti de cinco ordens na parte
norte da região central do Brasil, porém ainda não se tem pesquisas,
de fato, sobre o instrumento. Em uma viagem de reconhecimento ao
estado do Tocantins, mais precisamente na região do Jalapão, no ano de
2007, encontramos na cidade de Lagoa um tocador de Viola de Buriti de
quatro ordens, Expedito Ribeiro da Costa, conhecido por Canhotinho da
Viola de Buriti, que encordoava sua viola com linhas de pesca (náilon),
na afinação [E2, A2, C#3, e3] e, na cidade de Ponte Alta, um tocador de
rabeca de Buriti, conhecido por Seo Miúdo (CORRÊA, 2015: 27).

Essas mesmas informações são replicadas e complementadas em um livro mais


recente do próprio autor, publicado quatro anos mais tarde, já ao final da realização
desta pesquisa (CORRÊA, 2019: 46).
Nesse trecho de Corrêa, podemos observar que o autor teve a oportunidade de ir
ao Tocantins, conviver com o mestre Canhotinho, violeiro da região do Jalapão, da cidade
de Lagoa do Tocantins, e observar parte das peculiaridades de sua musicalidade. A afina-
ção observada pelo autor é a mesma (usando transposição) que é largamente utilizada
na região, que os violeiros mumbucas chamam de “tempero natural”. No I Encontro de
Violeiros para Salvaguarda da Viola de Buriti, promovido pelo Iphan-TO, como ação de-
corrente da nossa pesquisa, tive a oportunidade de conhecer o senhor Expedito Ribeiro
da Costa, o mestre Canhotinho, que, na ocasião, tocava em um instrumento, não mais de
quatro, mas de cinco cordas, um pouco diferente da descrita por Corrêa.
Entrei em contato também com o livro de Ricardo Ohtake, intitulado Instrumentos
musicais brasileiros (OHTAKE, 1988), que foi outra referência que trouxe pistas sobre
possíveis caminhos da viola de buriti. Nesse documento, podemos observar a foto de
um instrumento que foi nomeado como “rabeca krahô” (Figura 2), que tem sua coleta
atribuída ao pesquisador Harald Schultz, em 1949, na Bacia do Tocantins (GO), atual
estado do Tocantins. A imagem do instrumento assemelha-se ao que conhecemos como Fig. 2: Imagem da rabeca krahô recolhida por Harald Schultz, em 1949. Fonte: Ohtake (1988: 43).

viola de buriti, sua estrutura parece, sim, ser feita de buriti, além de vir acompanhada
com seu arco, o que nos remete ao instrumento que conhecemos como rabeca de buriti, As informações que acompanham a imagem indicam que se trata de um instru-
também muito praticado na região do Jalapão, que se imbrica nos estudos e na relação mento que estaria exposto no Museu Paulista, porém, em contato com a museóloga
com a viola de buriti. desse museu, Valesca Henzel Santini, fui informado da possibilidade de que “este objeto
tenha sido transferido para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE), em 1989,
quando foi feita a transferência das coleções arqueológicas e etnográficas do Museu
Paulista para o MAE” (SANTINI, 2010). Com as ferramentas de busca do portal MAE

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A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

(2022), é possível verificar que esse instrumento faz parte do acervo do museu, com o região em que viviam, no município de Carolina, no Maranhão, migraram para o municí-
nome de “violino de coqueiro”, o número de registro “RG 3132 A” e a indicação de estado pio de Pedro Afonso-TO e, entre o final do século XIX e o início do século XX, acabaram
de conservação “regular”. Já o arco está registrado com outra numeração, a de “RG 3132 fugindo para o território onde vivem atualmente. O autor alerta-nos também que existiu
B”, e, segundo o portal, encontra-se em estado “bom”. um processo de perseguições a esse grupo, como no caso do massacre de cerca de cem
A imagem dessa rabeca krahô é referenciada também no livro de Holler (2010: Krahô, protagonizado por fazendeiros da região em 1940 e noticiado nos principais jor-
122), como uma possível influência da atuação jesuítica no período colonial, como se nais da época. Outro episódio envolvendo essa etnia, que data do início do século XX, foi
fosse uma herança, porém o próprio autor afirma não ser possível estabelecer essa re- a vinda de jagunços baianos, que amedrontavam os moradores da região e, em especial,
lação com certeza. os indígenas, comerciantes, fazendeiros e sertanejos. Segundo Lira (2012), esse fato
O pesquisador Harald Schultz apud (OHTAKE, 1988: 43) nomeia esse instrumento pode ter sido o motivo mais provável da saída dos Krahô para uma região mais distante.
com a palavra indígena da etnia Krahô, no entanto, não temos nenhuma informação de No decorrer desta pesquisa, foi encontrada também uma outra referência histórica
como esse instrumento chegou a suas mãos, em qual contexto ou motivo. No livro que da viola de buriti no Museu Estadual Professor Zoroastro Artiga, na cidade de Goiânia-
encontramos, a figura vem acompanhada do seguinte texto: -GO: dois exemplares de instrumentos confeccionados de buriti, sendo uma viola e uma
rabeca. Segundo a ficha catalográfica enviada pela museóloga Maria de Fátima Rodri-
Os krahô, sem a mesma capacidade de cópia dos Guarani, também gues da Silva, então diretora desse museu, os instrumentos foram doados à instituição
construíram seu violino, de tronco de árvore, de acordo com suas pos-
no dia 10 de março de 1953, por um senhor chamado Benjamin Constant.
sibilidades e necessidades culturais. Se não chegam a emitir o mesmo
som dos Stradivarius, as rabecas guarani e krahô são mais do que sufi-
cientes para cumprir a finalidade à qual se destinam – abrilhantar, com - Viola de 4 cordas – feita em madeira de buriti. Procedência sítio Sibé-
mais possibilidades sonoras do que os instrumentos rústicos, festejos ria, município de Pedro Afonso. Doador: Benjamin Constant.
da tribo e folguedos de origem indígena (OHTAKE, 1988: 43). - Rabeca - feita em madeira de buriti, no Sítio Sibéria, município de
Pedro Afonso.
As cordas eram improvisadas com crina de cavalo, nas quais se passava
O trecho destacado relaciona o instrumento “violino” a uma produção dos Krahô, breu para dar vibração e sonoridade.
mas não sabemos se essa relação foi estabelecida pelo autor do livro ou pelo pesqui- Doador: Benjamin Constant (MUSEU ESTADUAL PROFESSOR ZOROAS-
TRO ARTIGA , 1953).
sador que lhe atribuiu o nome. Cabe-nos, neste caso, abstrair a subjetividade do texto
apresentado e atermo-nos à importante informação de que, na década de 1940, a técni-
ca de construção da viola e da rabeca de buriti, tal como é feita hoje, já circulava entre A partir desses dados catalográficos, observa-se que esses instrumentos foram
os sertanejos e indígenas da margem leste do Rio Tocantins, incluindo indígenas da produzidos em um sítio nomeado como “Sibéria”, no município de Pedro Afonso-TO, e
etnia Krahô, que, atualmente, vivem nos municípios de Goiatins e Itacajá, no Tocantins. vieram dele. Vale destacar que esse município se localiza na margem leste do Rio To-
A imagem da rabeca apresentada por Ohtake, acompanhada de seus comentários cantins, ao norte do PEJ, que, por sua vez, fica ao sul da atual reserva indígena dos Krahô,
subjetivos, não nos permite saber se, de fato, foi produzida pelos Krahô ou fazia parte entre os municípios de Goiatins e Itacajá, mais especificamente entre os rios Manoel
de suas práticas musicais, ou se o instrumento se encontrava entre eles e chegara lá Alves Grande e Manoel Alves Pequeno.
levado por alguma pessoa de fora, ou mesmo se esse nome foi atribuído aos Krahô por Ao relacionar a região de origem da viola e da rabeca de buriti expostas no Museu
algum outro motivo, como uma homenagem, por exemplo. Trago essa questão pois não Estadual Professor Zoroastro Artiga, doadas em 1953, com a da rabeca krahô recolhida
encontrei nenhuma outra referência a esse instrumento em trabalhos de pesquisado- por Harald Schultz, em 1949, podemos perceber que são próximas uma da outra, assim
res que se dedicaram ao estudo específico da musicalidade desse povo, como em Setti como nem tão próximas de onde desenvolvemos nossa pesquisa, no Jalapão e seu en-
(1999) e Melatti (1982), depois de 1949, além da densa etnografia realizada por Curt torno, ambas na margem leste do Rio Tocantins e dentro do estado. Entretanto, apenas
Nimuendajú (1946) com essa etnia, provavelmente em 1930. Em contrapartida, uma das com esses dados, por enquanto, não temos elementos suficientes para pensarmos em
pesquisadoras do GPQM, que fez parte do grupo de pesquisa que realizou o inventá- um processo histórico de musicalidades envolvendo esse instrumento, ou seja, é impor-
rio participativo, sondou pessoalmente lideranças krahô, que afirmaram desconhecer a tante que mais pesquisas sejam realizadas.
existência desse instrumento nas suas aldeias ou nas práticas musicais. Além de a esses documentos, tive acesso, até o momento – sobre possíveis origens
Segundo as pesquisas de Elizeu Lira (2012), em 1848, os Krahô foram retirados da e caminhos percorridos envolvendo a viola de buriti, seus mestres e suas musicalidades

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–, a relatos de transmissão oral de pessoas de comunidades tradicionais e que tocam e/ sos naturais para atender às suas necessidades – o que vou chamar de “intelorgânica
ou fazem esse instrumento ou que já tiveram algum tipo de contato com ele. musical” (BONILLA, 2019) e discutir mais adiante –, atreladas ao que o autor nos relata
O primeiro aspecto comum, que me chamou a atenção, com relação a esses sujei- da habilidade dessas pessoas sobre o aproveitamento do “material da natureza”, um
tos, são as suas autoidentificações enquanto jalapoeiros(as). Conforme já contextualiza- entendimento contrário ao que Geiger chama de “pobreza”. Vamos usar essa caracte-
do no início deste texto, o Tocantins possui um histórico de migração, que vai desde o rística posteriormente no texto para entender um pouco da musicalidade desses(as)
ciclo do ouro e a criação das primeiras cidades históricas, no século XVIII, seguidas por jalapoeiros(as). A recorrência do autor em tratar sobre o tema do isolamento é outro
cidades que foram sendo criadas às margens do Rio Tocantins, até, mais recentemente, aspecto que observamos que contribui para a identificação dessas pessoas, como ele
outras migrações, em virtude da criação da BR 153. A região do Jalapão, por suas pecu- mesmo afirma: “O homem é raro nos gerais” (GEIGER, 2014, n.p.). Depois, o autor tam-
liaridades geográficas, ficou à margem desses fluxos migratórios, tendo sido ocupada bém comenta sobre os possíveis processos migratórios das pessoas que lá vivem, “é
por migrantes de regiões próximas, como a Bahia, o Piauí e o Maranhão, o que lhe con- um lugar de povoação relativamente recente e já em despovoação. Só as crianças são
fere características culturais diferentes de outras regiões do Tocantins. goianas; a maioria dos adultos é baiana que aí nasceu antes da passagem do Jalapão
Sobre aspectos históricos e especificidades da região, foi consultado um docu- para Goiás ou veio de outros lugares, cearenses e piauienses, fugidos pela seca e po-
mento inédito, divulgado pela revista Terra Brasilis, de um relatório resultante de uma breza” (GEIGER, 2014, n.p.).
expedição que o geógrafo Pedro Pinchas Geiger fez, em 1942, ao Jalapão, uma espécie A região que o geógrafo explorou foi muito ampla, não temos como saber exa-
de mapeamento da região para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). tamente a que comunidade(s) ele estava se referindo. Como ele mesmo coloca: “nós
Algumas descrições desse trabalho são muito interessantes e se assemelham aos rela- estivemos só num trecho do Jalapão de cima” (GEIGER, 2014, n.p.). No entanto, ainda
tos dos mestres e mestras entrevistados no lugar, em especial no quilombo Mumbuca, hoje, ao andar pelo Jalapão, precisamos percorrer muitos quilômetros para encontrar
além de à minha própria experiência enquanto pesquisador na área. algum povoado ou quilombo. Em outro aspecto, também em consonância com as obser-
A própria definição do Jalapão por Pedro Geiger, enquanto pesquisador que chega vações do autor, observamos que, durante as pesquisas que fizemos, eram recorrentes
de fora, já nos confere identidade: “em relevo suave é fácil ter a estrada, mas, a areia é os relatos de antepassados que vieram da Bahia ou do Piauí, como no caso do próprio
que dificulta, os animais afundando numa marcha difícil. A estrada bastante larga parece quilombo Mumbuca, que defende o discurso de que sua formação foi de antepassados
que já foi carroçável” (GEIGER, 2014, n.p.), característica essa que observamos e que se migrantes do oeste da Bahia.
mantém até hoje, um grande desafio para pesquisas na região, e para a vida das pessoas Sobre o aspecto do povoamento do Jalapão, a pesquisadora Greise Alves da Silva
que por lá vivem. (2018) corrobora esses dados, ao afirmar que essa região foi a que recebeu menos mi-
O trecho que destaco a seguir, dando a sua devida contextualização e respeitando grantes se comparada a outras do estado. A autora atribui esse fato às características
a distância temporal, nos traz alguns elementos interessantes. geográficas da região, que, embora faça fronteira com o Piauí e a Bahia, possui dificul-
dades de acesso. Segundo Silva, baseada em dados oficiais, as taxas de migração, nas
Os geralistas, pobres que fugiram de outros lugares para terras sem últimas décadas do século XX, apontam que houve 4.966 migrantes, provenientes do
dono, fugitivos da seca ou da justiça, nascidos do lugar descendentes
Maranhão, do Piauí, de Goiás e do Ceará, ao passo que emigraram, desse território, no
de caboclos ou de outros mestiços, constroem as casas rudimentares,
às vezes simples choupanas, aproveitando o material da natureza. Dos mesmo período, 7.611 pessoas (SILVA, 2018: 38), ou seja, houve uma redução significati-
sassafrases fazem as armações e com a palha de buriti trançam as pa- va no número total de pessoas.
redes e fazem o telhado. Algumas têm as paredes com terra batida. Ao retomar o relatório de Geiger, obviamente que minha esperança, nesse docu-
Instalado na terra, dela vai vivendo o geralista porque ele está isolado mento, era a de encontrar alguma referência de relato ou imagem de instrumentos mu-
do mundo. Faz então a pequena lavoura para o consumo; escolhe um
lugar junto ao brejo, faz a derrubada, a queimada, cerca e planta (GEI- sicais ou de algum artefato que pudesse nos dar pistas sobre músicos, violeiros, a viola
GER, 2014, n.p.). ou a rabeca de buriti, porém, infelizmente, não a obtivemos. Entretanto, Geiger menciona
uma figura importantíssima, que foi recorrente nas histórias orais em relação à viola
A descrição que o geógrafo Pedro Geiger nos apresenta nesse trecho reflete as- de buriti, que é o “comerciante viajante”, que cruzava e ainda cruza o Jalapão levando e
pectos que, ainda hoje, poderiam ser observados, a depender da ótica do observador. trazendo mercadorias, canções e violas da Bahia, do Maranhão ou do Piauí, com direção
O que me chama a atenção, em especial, é a relação dos “geralistas”, ou o que vamos à cidade de Porto Nacional-TO, às margens do Rio Tocantins, ou no seu retorno ao seu
entender aqui como jalapoeiros(as), com a natureza e a inteligência do uso dos recur- estado de origem. Vejamos esse relato no texto de Geiger:

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Quem ficar em Pedra de Amolar um dia, talvez, veja uma tropa passar perceber discursos semelhantes, envolvendo a viola de buriti, que podem nos trazer
pela localidade. Se vier do E., jumentos, burros, deve ser de um comer- pistas de possíveis rastros históricos desse instrumento e dos sujeitos envolvidos em
ciante da Bahia ou Piauí que às vezes vêm de muito longe, andando pesquisas futuras, assim como nos apresentar mais detalhes das características da iden-
meses para vender aguardente, queijo, rapadura, para os operários do tidade jalapoeira.
Pium a preços exorbitantes. É uma das especulações do dia do comer-
Essa característica, pela qual os jalapoeiros se identificam e, principalmente, re-
ciante destas bandas. De Pedra de Amolar, também, sai alguma rapa-
dura ou cereal para o Tocantins. [...] As tropas goianas se conhecem conhecem seus pares, é muito marcante na região, e ficou muito claro para mim, nas
porque são de cavalos; para monta e para carga. Vão vender couros em pesquisas que realizamos, especialmente quando eu estava acompanhado das pesqui-
Formosa e voltar com o sal, café, pólvora e outros objetos manufatura- sadoras do GPQM, que, ao abordarmos qualquer pessoa desconhecida, esta já se identi-
dos (GEIGER, 2014, n.p.).
ficava enquanto jalapoeira, diferentemente de quando realizei pesquisas acompanhado
de uma pesquisadora colega da universidade.
Talvez os nossos instrumentos pudessem se enquadrar no que o autor chama de Essa particularidade foi apontada também pela pesquisadora Greise Alves da Sil-
“outros objetos manufaturados”, porém, o que me chamou a atenção nos relatos orais, va, que propôs a realização de um Atlas linguístico do estado do Tocantins e destaca as
com relação a esses comerciantes, não foi a comercialização dos instrumentos em si, peculiaridades de fala e sotaque das diferentes regiões desse estado. “O Tocantins só
mas, sim, a referência a esses comerciantes como agentes culturais, na troca de conhe- pode ser compreendido em sua heterogeneidade cultural” (SILVA, 2018: 45). Argumenta
cimentos sobre a confecção dos instrumentos e de seus repertórios. No meu entendi- a autora que cada microrregião possui suas idiossincrasias. Silva defende que existe, no
mento, foram esses comerciantes viajantes, assim como os tropeiros, que faziam esse Jalapão, um fenômeno diferenciado com relação às demais regiões do estado, resultan-
mesmo trajeto, os responsáveis pela circulação dos conhecimentos relacionados à viola do em características linguísticas únicas; segundo a pesquisadora, essa região possui
e à rabeca de buriti pelas mais remotas comunidades do Jalapão e do seu entorno. “semelhanças dialetais com o Nordeste brasileiro e tendências lexicais a variantes mais
Sobre essa relação entre o personagem do viajante no Jalapão e a prática da viola rurais” (SILVA, 2018: 200), ou seja, muitos aspectos da fala e da cultura características da
de buriti, quero destacar duas entrevistas realizadas enquanto atuava como pesquisador Região Nordeste do Brasil podem ser observados nessa parte do Tocantins, mais do que
para edital do Iphan, em sua pesquisa de mapeamento e viabilidade de registro da viola nas outras, e isso se deve, ainda conforme a autora, principalmente pelo isolamento da
de buriti no entorno do Jalapão. Uma delas, acompanhado da minha colega Suiá de Cas- região. No meu entendimento, essas especificidades também são observadas na cultura
tro Chaves, foi com o geógrafo e professor Elizeu Lira, na cidade de Porto Nacional. Na como um todo e, em especial, na sua musicalidade.
ocasião desse encontro, ele relatou que o seu pai e o seu tio faziam essa travessia pelo Esses dados explicam, em parte, o conceito nativo de jalapoeiro, que percebi tan-
Jalapão com os tropeiros e vinham do Piauí para Porto Nacional em torno da década de to no quilombo Mumbuca como em outras localidades do Jalapão e no seu entorno, e
1930, em função de seu ofício de “tangedores de boi”. Nosso entrevistado conta que seu que faz com que os quilombolas se identifiquem, primeiro, como jalapoeiros e, depois,
pai tocava e confeccionava violas de buriti e andava com elas nas viagens, estabelecen- como quilombolas, o que vai refletir diretamente em suas musicalidades e nas práticas
do trocas culturais por onde passava. Nas palavras do próprio Lira: envolvendo a viola de buriti.
As nomenclaturas usadas pelos mestres para identificarem o instrumento que es-
Ele trouxe ela [viola de buriti] na bagagem, ele e meu tio, e outros tamos estudando também são um aspecto interessante. No quilombo Mumbuca, além
também traziam. Mas que eu conheci foram só eles, meu pai, Raimun-
de “viola de buriti”, o nome mais usado para se referir ao instrumento é “violinha de
do Lira, e meu tio Francisco Lira. Então, ela veio na bagagem dos Lira,
que conheceram os mumbucas, em Mateiros. Eles passaram por ali, na vereda”, que se justifica pela relação com o território. A palmeira do buriti desenvolve-se
comunidade do Prata, era caminho para quem vinha do Piauí. Mateiros, nas regiões de vegetação conhecida como “de vereda”, lugar de muita importância para
Prata, São Felix (LIRA, 2018: 21). as atividades do quilombo, em especial, na colheita do capim dourado, matéria-prima da
principal atividade econômica da região, que é o seu artesanato com o capim dourado.
Ainda sobre essa pesquisa, no distrito de Taquaruçu, em Palmas-TO, o artesão Wa- Em outras áreas como no caso de Brejinho de Nazaré e Arraias, mais ao sul do es-
nderley Carvalho nos contou a história de quando era jovem, período em que morava tado, ouvimos outros nomes, como a “bandurra”, a “bandola” ou a “bandolina” de buriti,
em uma espécie de pensão na beira da estrada e aprendeu a fazer violas de buriti com para se referir a esse mesmo instrumento.
um tropeiro chamado Romeu, que vinha do Jalapão e pernoitava em sua casa antes de No município de São Félix-TO, em entrevista com seu Vanja (EVANGELISTA, 2018) e
seguir viagem rumo a Porto Nacional (CARVALHO, 2018). Nesses exemplos, podemos Nonato Ferreira (FERREIRA, 2018), ouvimos a expressão “viola de machete” e “machetinho”,

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assim como em Rio Sono, em entrevista com seu Pedim (SIQUEIRA, 2018), que se referia reduzida, a intelorgânica musical trata-se de uma inteligência orgânica, integrada com
à afinação que usava como “afinação de machete”, uma nomenclatura muito curiosa, uma a natureza e a sabedoria dos antepassados, para viabilizar determinadas sonoridades.
vez que o instrumento viola de machete, devido ao seu risco de extinção e à existência Fui inspirado por uma frase de dona Santinha, uma das mestras do quilombo Mumbuca:
de apenas um mestre no Recôncavo Baiano, foi registrado como patrimônio imaterial do “Nunca deixamos de brincar por conta de dificuldade”; ou seja, defendendo a ideia de
Brasil pelo Iphan em 2004 (IPHAN, 2004). Vejamos o que nos traz esse dossiê: que as práticas musicais são prioridade para as atividades nesse quilombo. Portanto,
primeiro existe um objetivo estético/musical a ser alcançado, e, em seguida, os recursos
O segundo tipo encontrado, chamado no Recôncavo de machete, é uma disponíveis e os saberes-vivências ancestrais são acionados para que se chegue lá.
viola de talhe diminuto, como se fosse uma soprano da família das vio-
Nesse entendimento, a viola de buriti deixa de ser um objeto idealizado em si,
las. De fato, na pesquisa de Ralph Waddey encontra-se menção a três
tamanhos diferentes de violas artesanais do Recôncavo, obedecendo tornando-se um meio para que a música aconteça, dentro dos recursos e limitações que
à velha terminologia portuguesa para os dois maiores: regra inteira e a vida em regiões de isolamento oferece. Vários foram os relatos que me levam a esse
três quartos. O nome do modelo menor também tem origem portugue- entendimento, e vou trazer alguns aqui para exemplificar, a começar pela entrevista com
sa, situada, ao que parece, na Ilha da Madeira. Tanto lá como no Brasil, seu Gumercindo, ex-morador do Mumbuca e ex-prefeito da cidade de Mateiros, reali-
machete foi muitas vezes um outro nome para o cavaquinho, que tem
quatro cordas simples e é ainda menor (IPHAN, 2004: 42). zada com o GPQM, que traduz essa faceta da musicalidade jalapoeira. Ao falar sobre a
importância da viola de buriti para ele e seus pares, o entrevistado coloca:

Apesar de o instrumento que estamos estudando se assemelhar mais à descrição Isso aqui não foi uma coisa que trouxeram de outros lugares, isso aqui
foi fruto da própria inteligência deles [dos antepassados]. Você vê que
apresentada do instrumento originário de Portugal do que à viola de machete produzi-
isso é uma coisa que trata de geração, como é que as pessoas fazem
da no Recôncavo Baiano, não podemos ignorar totalmente a relação entre eles. Inclusi- os instrumentos, eles mesmos cantam, usam e executam a coisa, isso é
ve, uma das afinações possíveis da viola de machete, apresentada no dossiê, chama-se uma coisa muito bonita. Ela faz uma função que poucas pessoas lá de
“afinação natural”, o mesmo nome usado no quilombo Mumbuca, e em outras regiões fora dão conta de fazer, e o sertanejo, aquele que fabricou, dá conta de
pesquisadas, quando se referiam às suas afinações. executar, isso é muito importante, a divulgação da violinha, isso aqui
tem mais segredo que o próprio violão. [...] isso é bom, porque a gente
O que podemos concluir, por enquanto, é que pode ter existido uma relação dos passa a dar valor pra aquilo que antes a gente não achava de importân-
mestres da viola de buriti de hoje ou de seus antepassados e mestres com possíveis cia, né? E, se eu soubesse que isso ia pra frente, eu tinha me dedicado
mestres e detentores de conhecimento de práticas musicais que envolveram a viola de mais (OLIVEIRA DA SILVA, 2017: min. 26)
machete encontrada no Recôncavo Baiano no passado e em outras regiões, ainda mais se
considerarmos os viajantes e tropeiros que circulavam no Jalapão e sua associação com Nessa fala, seu Gumercino reconhece, nesses tocadores e fazedores da viola, uma
o estado da Bahia, além do histórico de ocupação da região leste do Rio Tocantins por inteligência especial, que estamos definindo aqui como intelorgânica musical, que é de-
migrantes vindos de boa parte do Nordeste do Brasil, ao longo dos séculos XVIII e XIX. senvolvida por eles e que se diferencia de práticas musicais de outros lugares, que usam
o violão, instrumento que, segundo sua fala, não requer tanto conhecimento. Por meio
3. A musicalidade e a intelorgânica musical de suas afirmações, percebemos que não havia uma valorização por parte de quem fazia
Mesmo sem espaço para um maior aprofundamento, quero destacar algumas caracte- ou tocava essa viola, como está começando a ter agora, motivo do seu arrependimento
rísticas da musicalidade jalapoeira, que entendo serem de interesse musicológico. A por não ter dado continuidade à prática.
depender da região e dos mestres envolvidos, a viola de buriti é usada para atender Um encontro que foi bastante revelador e relevante para entender esse processo
a diferentes musicalidades, a maior parte para entretenimento e diversão, reforçar as foi o com seu Josias, que, infelizmente, faleceu alguns meses após a nossa entrevista.
identidades e, também, cumprir e acompanhar rituais e solenidades religiosas, como as Lamentamos muito por isso – foi a segunda perda de mestre da viola de buriti em pouco
festividades do Divino, incluindo a Esmola Geral. mais de dois anos. Mestre Josias usava um violão Gianinni antigo, adaptado a um braço,
Pontos interessantes, como peculiaridades de modalismo, afinações relativas ou feito com o talo da palmeira de buriti, e explicou da seguinte maneira:
o “tempero” da viola, foram observados e aprofundados em Bonilla (2019), entretanto,
o que trago aqui é um recorte específico para o conceito de “intelorgânica musical”, Isso aqui era um violão, aí ele caiu e quebrou essa parte aqui. Aí eu
fiquei estudando, um dia lá em casa, como é que eu vou inventar, é que
que tenho cunhado para entender melhor a musicalidade dessas pessoas. De forma
minha menina me deu esse violão com todo o carinho pra mim, e eu

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A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

não queria jogar ele fora. Aí eu peguei ele e disse: “Eu vou fazer uma
indústria aqui, do buriti, eu vou refazer ele de novo”. Aí fui, arrumei ele sível improvisar uma festa com um violão ou, em último caso, com uma viola de buriti.
direitinho, botei as cordas, e deu certinho. Ficou bom, legal (TAVARES, Nas suas palavras, “Já ganhei muito dinheiro moço, em festa aí, ganhei muito dinheiro
2017: min. 3). nas festas, eu tocava a sanfona. [...] É, a viola ficava muito baixo, aquele barulhão de
gente, e é muita gente, e na sanfona dá um som mais alto” (TAVARES, 2017: min. 7).
Mestre Josias explica, com entusiasmo, o que ele fez, aplicando as técnicas usadas Esse mesmo sentimento com relação a esses instrumentos foi observado em en-
para a viola de buriti para transformar um violão quebrado em um instrumento de so- trevistas com outros mestres da viola de buriti, como nos casos de seu Adelino (GOMES,
noridade única e que atende melhor às suas necessidades estéticas (Figura 3). O mestre 2017), em Mateiros; seu Pedim (SIQUEIRA, 2018), de Rio Sono, e seu Abelo (LOBATO,
tinha esse instrumento como o seu predileto, pois proporcionava uma sonoridade mais 2017) da comunidade de Rio Novo, que, na ocasião da nossa entrevista, estava com 108
potente do que a das demais violas de buriti, ou seja, o uso de uma caixa de um antigo anos de idade. Vejamos um trecho da fala de seu Adelino:
violão representou um ganho para o seu objetivo musical.
Eu comecei a tocar sanfona, mas, naquele tempo, sanfona era difícil, o
dono morava longe, aí eu não cheguei a aprender direito. Até comecei a
tocar, mas, se eu tivesse uma sanfona, hoje eu era... Não era sanfoneiro
profissional... Mas não prestava mais tocar, isso eu sabia... Mas, no vio-
lão e nessa viola aí [apontando para a viola de buriti], eu sou profissio-
nal (GOMES, 2017: min 11).

Mestre Adelino teve uma experiência com a sanfona, porém, ele lamenta que o
instrumento não era dele, não tendo condições de seguir adiante, passando a se dedicar
à viola de buriti, em que se considera profissional.
Os relatos do mestre Pedim (Pedro Ribeiro Siqueira), jalapoeiro e rabequeiro com
77 anos, morador do município de Rio Sono-TO, também corroboram o nosso entendi-
mento de uma intelorgânica musical. Ele conta que tocava uma rabeca de buriti, que,
com o tempo, estragou, e hoje toca com uma rabeca de madeira, que ganhou de presen-
te, mas também flertou com a sanfona.

Pesquisador: O senhor chegou a ganhar algum dinheiro tocando em


festa?
Pedim: Não, só um dinheirinho véio besta, uma bestagem no jeitim...
Não é como a sanfona, né? Sanfona que é assim, importante. A pessoa
pega um emprego e ganha um dinheiro melhor. Na rabeca, a pessoa dá
só uma gorjetinha véia, e tá bom...
Pesquisador: Não é fácil achar uma sanfona, né?
Pedim: É não, eu tinha vontade, rapaz, demais, de pegar uma sanfona
Fig. 3: Mestre Josias Tavares com sua viola de buriti mista com uma caixa de um antigo violão Giannini, pra mim e já aprendia. Há duas coisas que eu tive vontade de aprender
durante as entrevistas para o inventário participativo. Fazemos aqui também uma homenagem póstuma na época: ler e saber uma tabuada boa; e tocar sanfona. E a leitura não
a esse mestre, inspirador dos violeiros do Mumbuca. Fonte: Bonilla (2019: 109). encontrei, porque, nas épocas, era difícil onde eu morava, e o povo era
fraco de condição (SIQUEIRA, 2018: min. 30).
O mestre Josias deixa claro também que o seu sonho era tocar sanfona, porém
nunca teve condições de comprar uma. A sanfona era o instrumento ideal para poder Nessa fala, o mestre Pedim, além de relatar seu vislumbre de ter uma remuneração
animar uma festa e, quem sabe, ter uma renda com a música. Sem uma sanfona, era pos- melhor enquanto músico com a sanfona, também nos traz a questão do acesso à educa-
ção, uma questão importantíssima, que afeta as populações periféricas e invisibilizadas
do Brasil.

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A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

Durante a pesquisa, foi recorrente também caso de violeiros que chegaram a tocar Referências
a viola de buriti no passado, mas, quando tiveram acesso a instrumentos comerciais,
como o violão ou a viola de 10 cordas, abandonaram essa prática, pois esses novos AQUINO, Napoleão Araújo de. Cidades, migrações e memórias no Tocantins: (re)visi-
instrumentos supriam melhor suas necessidades estéticas, reforçando minha tese de tando escritas e falas na década de 1990. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26.:
que a intelorgânica musical tem seu objetivo principal nessas necessidades e desejos ANPUH: 50 anos, 2011, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: ANPUH-SP, 2011. n.p.
estéticos.
A VIOLA de buriti. Direção: Marcus Facchin Bonilla. Produção participativa: Povoado
Considerações finais Mumbuca. Mateiros: [s. n.], 2018. Documento audiovisual. Disponível em: https://youtu.
O objetivo principal de todas as ações da pesquisa foi de que os resultados do trabalho be/_CINPUjabJM. Acesso em: 9 set. 2022.
pudessem contribuir, efetivamente, para os sujeitos envolvidos nesse processo. Nesse
sentido, tivemos muitos avanços e observamos impactos positivos ainda depois do tér- BONILLA, Marcus Facchin. Minha viola é de buriti: uma etnomusicologia aplicada-parti-
mino dos nossos trabalhos. Foi o caso da publicação das partituras das músicas do qui- cipativa-engajada sobre a musicalidade no quilombo Mumbuca, no Jalapão (TO). Tese
lombo; da criação do Memorial do Quilombo Mumbuca, com verba do Edital de Culturas (Doutorado em Artes) - Instituto de Ciências da Arte, Universidade Federal do Pará,
Populares; da publicação de artigos científicos em coautoria com as pesquisadoras do Belém, 2019.
quilombo Mumbuca, abordando questões importantes; assim como da entrega do in-
ventário participativo e do documentário A viola de buriti para o Iphan, que já retornou BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). Pesquisa participante. São Paulo: Editora Brasiliense,
com pesquisas e ações adicionais em benefício do quilombo e dos demais mestres da 1981.
viola de buriti no estado do Tocantins. Esses resultados demonstram a importância de
metodologias participativas baseadas na educação popular e na educação do campo, CARVALHO, Wanderley Batista de. Entrevista concedida a Marcus Facchin Bonilla em
como a pesquisa participante, a pesquisa-ação participativa, a etnomusicologia aplica- dez. 2018. Arquivo de áudio digital. Não publicada.
da-participativa-engajada, ou qualquer outro nome que se dê para esse tipo de trabalho
que prime pela valorização dos sujeitos e pela construção horizontal de conhecimentos. CORRÊA, Roberto N. Cinco ordens de cordas dedilhadas: a presença da viola do Brasil.
Os dados históricos e as características da musicalidade dos jalapoeiros apresen- In: SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO (Sesc). Departamento Nacional. Violas brasileiras:
tados neste texto trataram-se de uma pincelada dos desdobramentos desta pesquisa e circuito 2015-2016. Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2015. p. 10-29. (So-
demonstram a necessidade urgente de investigações mais aprofundadas sobre práticas nora Brasil).
sonoras e musicais produzidas em ambientes periféricos, invisibilizados, afastados de
centros urbanos, envolvendo pessoas que resistem, lutam, brincam e produzem conhe- CORRÊA, Roberto N. Viola caipira: das práticas populares à escritura da arte. Brasília:
cimentos e sonoridades nos sertões do Brasil. Viola Corrêa, 2019.

EVANGELISTA, João. Entrevista concedida ao Grupo Quilombo Mumbuca de Pesquisa


em março de 2018. Arquivo de áudio digital. Não publicada.

FERREIRA, Nonato. Entrevista concedida ao Grupo Quilombo Mumbuca de Pesquisa em


março de 2018. Arquivo de áudio digital. Não publicada.

GEIGER, Pedro Pinchas. Excursão ao Jalapão: trechos de um relatório inédito. Terra Bra-
silis: revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, Niterói, n.
3, n.p., 2014. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/1030?lang=-
fr#tocto1n5. Acesso em: 14 fev. 2019.

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A viola de buriti: aspectos de uma musicalidade dos sertões do Tocantins Marcus Facchin Bonilla

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sobre os autores

Histórias das
Músicas no Brasil

Norte
Dione Colares de Souza Jefferson Tiago de Souza Mendes da Silva
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará, Mestre em perfor- Professor Adjunto no Curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos/Música, do Centro
mance vocal pela University of Missouri – Columbia (EUA) e Licenciada Plena em Músi- de Ciências de São Bernardo - Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Ciências
ca pela Universidade do Estado do Pará. Diplomada em Canto pelo Conservatório Carlos da Educação, pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Portugal). Mestre em
Gomes em Belém e em Piano pela Escola de Música da UFPA. Possui intensa atividade Música - Processos Analíticos e Criativos, pela Universidade Federal de Minas Gerais.
artística, tendo interpretado diversos papéis de ópera em produções profissionais, den- Licenciado em Música com habilitação em Violoncelo pela Universidade Federal de
tre eles o papel título na ópera Suor Angelica de Puccini e Condessa na Ópera As Bodas São João del-Rey. Bacharel em Ciências Contábeis, pelo Centro Universitário Claretiano.
de Fígaro de Mozart. Respondeu pela direção do Theatro da Paz em Belém de 2007 a Coordenador do Curso de Linguagens e Códigos/Música da UFMA. Coordenador da su-
2010 e pela direção geral e artística do Festival de Ópera durante o mesmo período. É bárea Artes/Música no PIBID. Coordenador do Estágio Supervisionado. Líder do Grupo
docente da UEPA e da Escola de Música da UFPA, onde coordena projeto de pesquisa de Pesquisa Música e Formação (UFMA). Realiza pesquisas e atividades nas áreas de:
voltado à criação e ampliação do “Acervo MUSA: mulheres na música da Amazônia”. Educação Musical; Currículo; Formação de professores.
dione_colares@hotmail.com jtamancio@gmail.com

Fernando Lacerda Simões Duarte José Jarbas Pinheiro Ruas Junior


Graduado em Música, com habilitação em Composição e Regência, mestre e doutor pela Graduado em música com habilitação em violão pela Escola de Música da Universidade
UNESP. Bacharel em Direito pelo Instituto Mackenzie. Concluiu estágios pós-doutorais Federal do Rio de Janeiro. É mestre e doutor em Música na linha de história e docu-
junto aos PPGs Música/UFMG e Artes/UFPA, tendo sido bolsista CAPES na pós-gradua- mentação da música ibero-americana pela mesma instituição. Professor do curso de
ção e nos pós-doutorados. Possui experiência docente em diversos níveis e instituições. Licenciatura em Educação do Campo: Artes e Música da Universidade Federal do Norte
Hoje, é bolsista de pós-doutorado junto ao PPG-Letras e Artes/UEA, com fomento desta do Tocantins. Desenvolve trabalhos de pesquisa na área de Musicologia com ênfase na
IES. Sua pesquisa de campo em acervos alcança cerca de 160 cidades, sendo mais de história econômica da música; cartografia econômica da música; história social do co-
um terço delas na Amazônia. É autor de mais de 160 títulos, entre artigos, capítulos e nhecimento musical.
trabalhos completos em anais, publicados ou no prelo (mais de 130 como único autor). josjarbas85@gmail.com
Foi o fundador do DoMus - Laboratório de Documentação Musical da UFPA, coordena-
dor de sua orquestra e do Encontro Brasileiro de Documentação Musical e Musicologias. Líliam Barros Cohen
lacerda.lacerda@yahoo.com.br Pianista e etnomusicóloga. Possui graduação em Bacharelado em Música - Piano pela
Universidade Estadual do Pará, mestrado em Etnomusicologia pela Universidade Fe-
Gustavo Frosi Benetti deral da Bahia, doutorado em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Bahia e
Professor do Curso de Linguagens e Códigos / Música, Centro de Ciências de São Bernar- Pós-Doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília e Pós-doutorado no Cen-
do, Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Pós-Doutorado em Artes / Musicologia tro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília. Atual-
pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Doutor em Música pela Uni- mente é professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Tem experiência na área
versidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio na University of Montana (UM). Mestre de Música, com ênfase em Etnomusicologia, com vários livros publicados sobre música
em História e Graduado em Música pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Membro paraense, música das sociedades indígenas da Amazônia, bem como livros literários.
do grupo de pesquisa “Música e Formação”, Coordenador do projeto de extensão “Quarta Desenvolve atividades como pianista, especialmente com música amazônica. Coordena
Cultural” e do projeto de pesquisa “Cantador: repertório brasileiro como recurso para o Grupo de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia e o Laboratório de Etnomusico-
percepção e leitura musical”. Foi professor do Curso de Música da Universidade Federal logia da UFPA.
de Roraima (UFRR) entre 2013 e 2020. liliambarroscohen@gmail.com
gustavo.benetti@ufma.br

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Luana Santana Pensador
Musicista, Licenciada Plena em Música pela Universidade do Estado do Pará (2021) e
pós-graduada no curso de especialização lato sensu em Educação Musical Decolonial.
Possui curso Técnico em Música pelo Instituto Estadual Carlos Gomes, com habilitação
em Flauta Doce, tendo participado do grupo de “Flautas Doces da Amazônia” de 2012 a
2016. É integrante do grupo de pesquisa Educação Musical, Memória e Arte na Amazô-
nia - GEMMA, vinculado à UEPA. Atua como professora de música no Centro de Formação,
Capacitação e Atendimento juvenil “Martino Beltrame”, pertencente à Associação Irmãs
Mestras de Santa Dorotéia Filhas dos Sagrados Corações desde 2021, em Benevides-PA,
bem como na Escola de Música “Mestre Odilon”, em Castanhal-PA, além de, atuar como
musicista (Flauta Transversal), na Banda Municipal 28 de Janeiro, em Castanhal-PA.
luanapensador@gmail.com

Márcio Leonel Farias Reis Páscoa


Professor Associado da Universidade do Estado do Amazonas, atuando na Graduação
em Música e no Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes. Na mesma instituição,
coordena o Laboratório de Musicologia e História Cultural e a Orquestra Barroca do
Amazonas, com a qual toca e dirige, tendo com ela gravado 5 CDs e se apresentado por
mais de 40 cidades na América do Sul e na Europa. É membro da Associação Brasileira
de Musicologia, do RIdIM-Brasil e da Academia Amazonense de Música. Publica fre-
quentemente em periódicos e coletâneas, no Brasil e no exterior. Editou oito óperas de
autores do século XVIII e XIX, de Brasil, Portugal e Itália.
mpascoa@uea.edu.br

Marcus Bonilla
Doutor em Artes pela UFPA na área de Etnomusicologia, mestre em música, musicolo-
gia-etnomusicologia pela UDESC e bacharel em música (violão) pela UFRGS com es-
pecialização em Educação Musical pela UDESC. Possui experiência como professor e
músico profissional desde 1993, tendo participado de diferentes trabalhos artísticos
premiados. Atualmente é professor adjunto do curso de Licenciatura em Educação do
Campo da UFNT. Desenvolve trabalhos nas áreas de Etnomusicologia, pesquisa-ação
participante, práticas e práxis musicais, violas brasileiras, construção de conhecimentos
em música e Educação do Campo.
marcus.bonilla@ufnt.edu.br

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A série Histórias das Músicas no Brasil, organizada pela Anppom – Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, foi concebida com o propósito de dar
visibilidade à reflexão sobre a história do vasto e plural cenário da música no Brasil. Ela

Sobre a série
compreende cinco volumes, cada um deles dedicado a uma região do país, e se constitui
de capítulos sobre o processo histórico de todos os tipos de música, particularmente dos
repertórios e práticas que têm recebido menos atenção da academia, com vários tipos
de abordagem, das mais consolidadas às mais inovadoras.
Cada um dos volumes foi editado por um par de pesquisadoras(es) convidadas(os)
a partir do rigor e excelência de sua produção acadêmica:

Região Norte

Histórias das
Editores: Fernando Lacerda (UFPA) e José Jarbas Pinheiro Ruas Junior (UFT)
Região Nordeste
Editoras: Inez Martins (UECE) e Thais Rabelo (UFS)

Músicas no Brasil Região Sudeste


Editoras: Virgínia de Almeida Bessa (Unicamp) e Juliana Pérez González
Região Sul
Editores: André Acastro Egg (UNESPAR) e Márcia Ramos de Oliveira (UDESC)
Região Centro-Oeste
Editoras: Ana Guiomar Rêgo Souza (UFG) e Flavia Maria Cruvinel (UFG)

Estamos imensamente satisfeitos com o resultado do trabalho dedicado das(os)


editoras(es) e autoras(es) destes volumes e os entregamos à comunidade cientes de
que se trata de uma primeira e inicial contribuição para uma ampla reflexão sobre a
música no Brasil e para dar visibilidade aos promissores trabalhos das novas gerações
de pesquisadoras(es).

Mónica Vermes (ANPPOM/UFES)


Marcos Holler (UDESC)
Organização geral da série Histórias das Músicas no Brasil

Vitória/Florianópolis, outubro de 2023

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