Você está na página 1de 14

REVISÃO | REVIEW 63

Da noção de determinação social à de


determinantes sociais da saúde
From the notion of social determination to one of social determinants
of health

Júlia Arêas Garbois1, Francis Sodré2, Maristela Dalbello-Araujo3

RESUMO O ensaio aborda criticamente a noção de determinantes sociais da saúde, veiculada


oficialmente pela Organização Mundial da Saúde, a partir da discussão sobre sua perspec-
tiva conceitual que difere bastante daquela cunhada por volta dos anos 1970, pela corrente
médico-social latino-americana, de determinação social da saúde. A discussão desnuda os
preceitos filosóficos que sustentam a noção de determinantes sociais da saúde, a partir dos
argumentos fundados na sociologia positivista de Émile Durkheim. Conclui-se que essa noção
identifica um ‘social’ fragmentado, trazendo consequências práticas e políticas e mostrando-
-se insuficiente para analisar as mudanças sociais da contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE Ciências sociais. Medicina social. Saúde pública. Epistemologia. Processo


saúde-doença.

ABSTRACT The article critically discusses the concept of social determinants of health, conveyed
officially by the World Health Organization, from the discussion of its conceptual perspective
that differs greatly from that coined around the 1970’s by Latin American medical-social current,
1 Universidade Federal of social determination of health. The discussion reveals the philosophical principles that
do Espírito Santo (Ufes),
Programa de Pós- underpin the notion of social determinants of health from the arguments based by the positivist
graduação em Saúde sociology of Émile Durkheim. We conclude that such notion identifies a fragmented ‘social’, that
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil. reflects practical and political consequences and it is insufficient to analyze the social changes of
juliagarbois@hotmail.com contemporaneity.
2 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes), KEYWORDS Social sciences. Social medicine. Public health. Knowledge. Health-disease process.
Programa de Pós-
graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil.
francisodre@uol.com.br

3 Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes),
Programa de Pós-
graduação em Saúde
Coletiva – Vitória (ES),
Brasil. Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de
Misericórdia, Programa em
Políticas Públicas – Vitória
(ES), Brasil.
dalbello.araujo@gmail.com

DOI: 10.1590/0103-1104201711206 SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017
64 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Introdução questionamento do paradigma biomédico da


doença, que a conceituava como um fenô-
Este ensaio objetiva discutir, do ponto de meno biológico individual. Esse movimento
vista teórico-científico, a ideia de deter- de crítica se situa em um contexto social
minantes sociais da saúde, procurando de- marcado pela dificuldade da Medicina na
monstrar sua fragilidade e distanciamento produção de um novo conhecimento que
em relação à noção de determinação social, fosse capaz de compreender e explicar a
oriunda da corrente de pensamento da me- causalidade dos principais problemas de
dicina social latino-americana. Noção esta saúde que emergiam nos países industriali-
de grande importância para a demarcação do zados, como as doenças cardiovasculares e
campo de conhecimento da saúde coletiva. os tumores malignos (LAURELL, 1983).
Para isso, entende-se ser pertinente revi- Nesse movimento questionador ao para-
sitar a produção acadêmica latino-americana digma biomédico, a corrente da medicina
da década de 1970 sobre o conceito de saúde, social latino-americana trouxe importantes
marcada por intensas discussões conceituais contribuições para a argumentação teórica
que culminaram na perspectiva da deter- sobre as condições de insuficiência das práti-
minação social do processo saúde-doença. cas médicas em oferecer soluções satisfatórias
Após, será feito um contraponto com as atuais para a melhoria das condições de saúde da
propostas de abordagem desse processo, es- coletividade, demarcando a entrada de cor-
pecialmente a partir da criação da Comissão rentes do pensamento social na área da saúde,
dos Determinantes Sociais da Saúde, pela a partir da realização de uma nova leitura da
Organização Mundial da Saúde (OMS) com a saúde pública (FACCHINI, 1994; LAURELL, 1983; BREILH,
proposta de trabalho erigida sobre uma noção 1991; TAMBELLINI-AROUCA, 1984; AROUCA, 2003).
bastante diferenciada daquela da década de A argumentação partiu especialmente da
1970: a noção de determinantes sociais da crítica à abordagem positivista inscrita no
saúde (TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009; NOGUEIRA, 2009). modelo da história natural da doença, que
Busca-se elucidar o arcabouço teórico sub- interpretava o processo de adoecimento a
jacente à noção de determinantes sociais da partir de uma perspectiva ‘naturalizada’,
saúde, a partir dos argumentos fundados na centrada na causação linear e marcadamen-
sociologia clássica, mais especificamente, na te biologicista. A abordagem sugerida pela
sociologia positivista de Émile Durkheim, no corrente médico-social fundou-se, então,
intuito de desvelar os preceitos filosóficos que na recolocação da problemática da relação
lhe dão sustentação. Finaliza-se, estabelecendo entre o processo social e o processo bioló-
considerações a respeito das implicações ad- gico, a partir da perspectiva da ‘determina-
vindas da adoção da noção de determinantes ção’. Compreendeu a produção das doenças
sociais da saúde e de alguns dos desafios postos no plano da coletividade e construiu uma
pela atualidade que envolve essa problemática, análise científica dos processos que operam
com contribuições de pensamentos de teóricos como determinantes destas, por meio da am-
da sociologia como Latour (2012) e Santos (2008). pliação da explicação do princípio da causa-
lidade (LAURELL, 1983; BREILH, 1991).
Em ‘Saúde e sociedade’, Donnangelo (1979)
Origens da noção de compreendeu as complexas relações sociais
determinação social da existentes no processo de produção da saúde
e da doença, por meio da análise dos vínculos
saúde que existem entre a extensão de cobertura
dos cuidados médicos, os serviços de saúde e
No final dos anos 1970, houve um profundo as necessidades do capitalismo no sentido de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 65

manter e reproduzir a força de trabalho, con- mais profundas das doenças, valorizando a
trolar as tensões e antagonismos sociais e reali- essência dos fatos sociais, e não apenas as
zar a acumulação de capital do setor industrial suas manifestações fenomênicas. Cria-se,
de equipamentos e de insumos médicos. a partir desse intenso debate teórico-con-
A ótica de análise passou a ser estabele- ceitual, a noção de ‘determinação social da
cida pela abordagem da dimensão coletiva saúde’ como categoria analítica, com refe-
como produtora e reprodutora das formas, rencial teórico delimitado, para servir de
tanto de adoecimento, quanto de vitalidade. base conceitual aos estudos desenhados com
Ou seja, se a finalidade era compreender a o propósito de ampliar a discussão sobre a
saúde-doença como um fenômeno coletivo, o produção coletiva da saúde.
objeto de estudo não partia mais do indivíduo, Breilh (1991) propôs o arcabouço teórico-
mas sim do grupo. Dessa maneira, o objeto de -metodológico do materialismo histórico
estudo da corrente médico-social envolvido como uma possibilidade de integrar o ponto
na produção de conhecimento passou a ser o de vista popular e o rigor de um método de
processo saúde-doença coletivo: análise científica, uma ferramenta efetiva
de transformação política. A partir dessa
Por processo saúde-doença da coletividade, perspectiva, Tambellini-Arouca (1984) enfati-
entendemos o modo específico pelo qual za as relações entre o trabalho e o processo
ocorre no grupo o processo biológico de saúde-doença. A partir de então, será essa a
desgaste e reprodução, destacando como principal categoria retirada do pensamento
momentos particulares a presença de um marxista para auxiliar na leitura aos fenôme-
funcionamento biológico diferente com con- nos considerados estritos à saúde, colocando
sequência para o desenvolvimento regular no processo de trabalho a dimensão da de-
das atividades cotidianas, isto é, o surgimento terminação do processo de adoecimento, ao
da doença. (LAURELL, 1983, P. 152). considerá-lo como o mediador das relações
estabelecidas entre o homem e a natureza e
A reformulação da natureza da doença, entre os próprios homens.
que passou a ser vista como um processo
da coletividade – no qual o que interessa é o
estudo do modo como o processo biológico A noção de determinantes
acontece socialmente –, trouxe, como conse- sociais da saúde
quência, a mudança do léxico: ‘de fator para
processo’. Essa visão saúde-doença como Desde a virada do século, a temática da deter-
resultante de um processo social traduziu-se minação social da saúde passou a ocupar uma
na reinterpretação de suas causas: de entida- posição central nos debates internacionais a
des estáticas, passíveis de abstração formal, respeito das relações entre a saúde e a socieda-
ao entendimento de seu caráter dinâmico, de. Entretanto, tal retomada entrou na agenda
como parte integrante do “movimento global política mundial a partir de uma perspectiva
da vida social” (BREILH, 1991, P. 200). teórico-metodológica bastante diferenciada
O deslocamento de uma produção cientí- daquela produzida pela corrente médico-social
fica que migra de um ‘fator social’ para um latino-americana, a epidemiologia social da
‘processo social’ cria o encadeamento de década de 1970 (ALMEIDA-FILHO, 2010).
ideias que sugerem a formação de um novo As discussões reaparecem sob a chancela
campo. Um campo no qual o foco de análise de ‘determinantes sociais da saúde’ (DSS), no
recai sobre a necessidade de observação das sentido de fomentar um intenso debate cujo
leis históricas de produção e organização foco principal de análise incide sobre o tema
das sociedades na explicação das causas ‘desigualdades’, por meio da constatação de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


66 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

importantes disparidades nas condições de circunstâncias em que as populações cres-


vida e de trabalho, no acesso diferenciado a cem, vivem, trabalham e envelhecem, bem
serviços assistenciais, na distribuição desi- como os sistemas implementados para lidar
gual de recursos de saúde e nas suas repercus- com a doença,
sões sobre a morbidade e mortalidade entre
os diferentes grupos sociais (ALMEIDA-FILHO, 2010). circunstâncias tais que são moldadas,
Esse contexto de reaparecimento da temáti- por outro lado, por “forças de ordem polí-
ca foi, em grande parte, alavancado pela OMS tica, social e econômica” (COMISSÃO PARA OS
quando, em 2005, criou uma comissão espe- DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010, P. 1). Nesse
cífica para discutir os determinantes sociais sentido, as condições de vida mostram-se
da saúde – Comissão para os Determinantes determinadas pelo lugar que cada um ocupa
Sociais da Saúde (CDSS) – e convocou as auto- na hierarquia social. Esse conceito, tal como
ridades dos países para a necessidade de chegar elaborado pela comissão, foi inspirado no
a uma decisão coletiva de combater as expressi- modelo de Dahlgren e Whitehead (COMISSÃO
vas desigualdades em saúde. PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010), e
A CDSS entende os determinantes sociais pode ser resumido conforme a figura 1 a
da saúde como as seguir:

Figura 1. Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Dahlgren e Whitehead e adotado pela OMS

Condições de Vida
e de Trabalho
Ambiente de
Trabalho Desemprego

Educação Água e Esgoto

Serviços
Sociais
de Saúde
Produção
Agrícola e de
Alimentos IDADE, SEXO
E FATORES Habitação
HEREDITÁRIOS

Fonte: Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (2008).

Nesse modelo, os determinantes sociais Assim, conforme a figura, os indivíduos


da saúde são abordados em camadas, desde encontram-se na base desse modelo, com
aquelas que expressam as características suas características individuais de idade,
individuais, até as que incluem os macro- sexo e fatores genéticos. A camada seguin-
determinantes do processo saúde-doença. te, representada pelos comportamentos e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 67

estilos de vida individuais, encontra-se no acordo com a renda, a educação, a ocupação,


limiar entre aqueles fatores individuais e o gênero, a raça/etnia e outros fatores. Essas
os DSS, já que os comportamentos, além de posições socioeconômicas, por sua vez, de-
serem dependentes de opções individuais, terminam vulnerabilidades e exposições
são também dependentes dos DSS, como diferenciadas nas condições de saúde (deter-
o acesso a informações e alimentos saudá- minantes intermediários) e refletem o lugar
veis, lazer, entre outros. A camada seguinte das pessoas dentro das hierarquias sociais.
é representada pelas redes comunitárias e Entre os fatores contextuais relacionados
de apoio, que conformam redes de solidarie- com a produção e manutenção da hierarquia
dade e expressam, em maior ou menor grau, social, os autores destacam: 1) estruturas de
de acordo com a sua organização, o nível de governança formais e informais relaciona-
coesão social. Logo após, encontram-se os das com mecanismos de participação social
fatores relacionados com as condições de da sociedade; 2) políticas macroeconômicas,
vida e de trabalho dos indivíduos, disponibi- incluindo políticas fiscais, monetárias, polí-
lidade de alimentos, assim como o acesso a ticas de mercado e a estrutura do mercado
serviços essenciais, como saúde e educação, laboral; 3) políticas sociais nas áreas de
indicando os diferenciais de vulnerabilidade emprego, posse de terra e habitação; 4) po-
a que estão expostos os indivíduos que se líticas públicas em áreas como educação,
encontram em condição de pobreza. Por fim, saúde, água e saneamento, assim como a ex-
a última camada expressa os macrodetermi- tensão e a natureza de políticas redistributi-
nantes relacionados com as condições eco- vas, de seguridade social e de proteção social
nômicas, sociais e ambientais em que vive e 5) aspectos relacionados com a cultura e
a sociedade, assim como os determinantes com os valores sociais legitimados pela so-
supranacionais como o processo de globali- ciedade (SOLAR; IRWIN, 2010).
zação (COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES Os determinantes intermediários refe-
SOCIAS DA SAÚDE, 2008). rem-se ao conjunto de elementos categori-
Em 2010, a OMS estabelece um novo zados em circunstâncias materiais (como
marco conceitual sobre os DSS, sintetiza- condições de moradia, características da vi-
do a partir do modelo proposto por Solar zinhança, condições de trabalho, qualidade
e Irwin (2010), e que foi adotado no ano se- do ar, acesso e disponibilidade a alimentos,
guinte, na Conferência Mundial sobre os água), fatores comportamentais (estilos de
Determinantes Sociais da Saúde de 2011, vida e comportamentos, que se expressam,
sendo incluído no relatório ‘Diminuindo entre outros, nos padrões de consumo de
diferenças: a prática das políticas sobre de- tabaco, álcool e na falta de atividade física),
terminantes sociais da saúde’ (ORGANIZAÇÃO biológicos (fatores genéticos) e psicossociais
MUNDIAL DA SAÚDE, 2011). Nesse modelo ( figura (estressores psicossociais, circunstâncias
2), os determinantes estruturais operam por estressantes, falta de apoio social). Nesse
meio de um conjunto de determinantes in- marco conceitual, o sistema de saúde é con-
termediários para moldar os efeitos na saúde. siderado um determinante intermediário da
A ‘estrutura’ expressa como os mecanismos saúde, reconhecendo principalmente a influ-
sociais, econômicos e políticos dão origem a ência das barreiras de acesso. A coesão social
um conjunto de posições socioeconômicas, e o capital social atravessam as dimensões
em que as populações são estratificadas de estrutural e intermediária (SOLAR; IRWIN, 2010).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


68 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Figura 2. Modelo dos Determinantes Sociais da Saúde proposto por Solar e Irwin

CONTEXTO
SOCIOECONÔMICO
E POLÍTICO

Governança
Posição
Socioeconômica Circunstâncias materiais
Políticas
macroeconômicas (Condições de moradia IMPACTO
e trabalho, disponibilidade
de alimentos etc.) SOBRE A
Políticas sociais EQUIDADE
Classe social EM SAÚDE
Mercado de trabalho Gênero
Habitação, terra Fatores comportamentais EO
Etnia (racismo)
e biológicos BEM-ESTAR
Políticas públicas
Educação, Saúde Fatores psicossociais
Proteção Social Educação
Coesão Social & Capital Social
Cultura e Ocupação
Valores sociais
Renda

Sistema de saúde

DETERMINANTES ESTRUTURAIS
DAS DESIGUALDADES DE SAÚDE DETERMINANTES INTERMEDIÁRIOS
DA SAÚDE

Fonte: Solar e Irwin (2010).

As causas estruturais são projetadas em de vida. Além disso, o desenho de Solar e


ambos os modelos conceituais em formatos Irwin, ao explorar o recurso gráfico da seta,
bastante diferenciados, alcançando posições dá projeção à compreensão das relações e
de relevância e significação distintas. No conexões entre os determinantes estruturais
modelo proposto de Dahlgren e Whitehead e os determinantes intermediários da saúde.
( figura 1) tais causas aparecem muito peri- Breilh (2013) entende que essa abordagem
fericamente (a ‘camada’ mais fina da figura), inscrita no marco conceitual proposto por
sob a denominação de ‘determinantes Solar e Irwin, apesar de representar um pa-
distais, ou macrodeterminantes econômi- radigma de transição crítica que se abre para
cos e sociais’. Entende-se que a projeção a percepção do ‘estrutural’, começa a romper
periférica dada aos determinantes estru- com uma visão mais restritiva da epidemio-
turais nesse desenho esquemático, somada logia convencional, sem que isso represente
à ênfase dada à camada intermediária das uma mudança de paradigma.
‘condições de vida e de trabalho’, assim como Muitas críticas têm sido estabelecidas a
a dos fatores individuais (como idade, sexo e essa abordagem da OMS sobre os determi-
fatores hereditários), traduz a pouca impor- nantes sociais da saúde. Essas críticas têm
tância conceitual que foi atribuída a estes na sido articuladas especialmente por meio de
construção dessa noção de DSS. debates no interior da saúde coletiva e da
Já no modelo de Solar e Irwin ( figura 2) medicina social latino-americana, circulan-
adotado atualmente pela OMS, as causas es- do ao redor da diferenciação entre deter-
truturais assumem uma posição de destaque, minante sociais da saúde e a determinação
mais próxima ao alcance da ideia de ‘raiz’ social do processo saúde-doença (ARELLANO;
ou ‘base’, representando a prioridade causal ESCUDERO; CARMONA, 2008; TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009;
(que foi dada neste marco conceitual) aos NOGUEIRA, 2009; BREILH, 2013; ALBUQUERQUE; SILVA,
fatores estruturais na geração das iniquida- 2014; GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014, BORDE;
des em saúde e na modulação das condições HERNANDEZ-ALVAREZ; PORTO, 2015).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 69

Entendem, em geral, que a OMS aborda os ‘singular’, essas não foram reconhecidas
determinantes sociais da saúde sob o ponto como contribuições latino-americanas origi-
de vista de ‘fatores’ (condições de vida, de nais (BREILH, 2013). Além disso, essas dimensões
trabalho, de moradia, de educação, de trans- foram transformadas em níveis de variáveis
porte etc.), ‘contextos’, ‘circunstâncias’ e ou fatores causais, em modelos que traba-
‘condições’, adotando, assim, uma perspecti- lham com ações de governança limitadas
va reducionista e fragmentada da realidade e funcionalistas, uma vez que acabam por
social. Isso ofusca sobremaneira o entendi- limitar superação das desigualdades sociais
mento dos múltiplos processos socioeconô- em saúde ao plano da ‘melhoria das condi-
micos, culturais, ecobiológicos, psicológicos ções de vida’ e à ideia de ‘repartir recursos’,
que compõem as articulações dinâmicas do limitando a saúde a um bem de justiça distri-
objeto saúde-doença, uma vez que não reco- butiva a cargo do Estado (BREILH, 2013; ARELLANO;
nhece que o perfil patológico é criado e trans- ESCUDERO; CARMONA, 2008). Em outros termos,
formado por cada sociedade em diferentes trata-se de uma abordagem que não reco-
momentos históricos, ao mesmo tempo que nhece a incompatibilidade entre o regime de
converte as estruturas sociais em variáveis e acumulação capitalista e os modos de vida
não em categorias de análise do movimento saudáveis (BREILH, 2013).
de produção e reprodução social (TAMBELLINI; Esse posicionamento foi assumido pela
SCHÜTZ, 2009; ARELLANO; ESCUDERO; CARMONA, 2008; Associação Latino-Americana de Medicina
BREILH, 2013). Social (Alames) – e publicado pelo Centro
Breilh (2013) afirma que essa perspectiva Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – no
de abordagem é reducionista, pois oculta ca- ano de 2011. Nessa colocação, solicitou-se
tegorias analíticas de peso dentro das ciên- que o conceito de determinantes sociais não
cias sociais (como reprodução social, modos fosse banalizado ou reduzido, mas que fosse
de produção, relações de produção etc.) e lembrado que por trás de todo reducionismo
torna difícil proporcionar um pensamento do conceito estava uma clara ideia de mer-
crítico direto sobre a essência da organi- cantilização da vida. Uma ideia incitada por
zação social da sociedade de mercado e do um poder hegemônico neoliberal que se ex-
regime de acumulação capitalista, por meio pressa em uma propriedade intelectual que
dos processos de geração e reprodução da beneficia a indústria médica, assim como
exploração humana e da natureza e as suas em diferentes estratégias de manipulação do
marcadas consequências na saúde. pensamento coletivo, que possuem a mídia
Conforme Breilh (2013), as ‘causas estru- e os meios de comunicação como veículos
turais’ das desigualdades sociais em saúde, centrais nesse processo (CEBES, 2011).
apesar de assumirem uma posição de maior No plano da epistemologia científica,
relevância no último modelo adotado pela Garbois, Sodré e Dalbello-Araujo (2014)
OMS ( figura 2), ainda aparecem como abs- problematizam a visão sobre o ‘social’ pre-
trações esvaziadas de conteúdo crítico e sente na noção de determinantes sociais da
de movimento. Impossibilitam, também, a saúde. Os autores partem de leituras críti-
análise do processo radical de acumulação cas produzidas por Boaventura de Sousa
econômica-exclusão social como eixo de Santos (2008) e Latour (2012) em relação ao
uma reprodução ampliada das desigualdades modelo de racionalidade científica ela-
sociais (em saúde). borado na modernidade, para colocar em
Muito embora ambos os modelos análise e produzir questionamentos em
assumam ideias-chave da produção crítica relação ao recorte que tal modelo imprime
latino-americana da década de 1970, como aos estudos científicos sobre o social
as dimensões do ‘geral’, do ‘particular’ e do (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


70 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

Nessa análise, esclarecem que o paradig- que sustentam a noção de determinan-


ma que dá base a esse modelo impõe uma tes sociais da saúde. Nesse campo, Émile
separação total entre a natureza e o ser Durkheim (1858-1917) é considerado um dos
humano, exalta a quantificação, a divisão e autores clássicos, aquele que trouxe grande
fragmentação dos elementos componentes influência na sua consolidação enquanto dis-
da realidade a ser investigada, a centralidade ciplina acadêmica, inspirando-lhe rigorosos
da ciência estatística e, principalmente, favo- procedimentos de pesquisa. A partir da de-
rece o rigor enrijecido da objetividade e da limitação e investigação de um considerável
neutralidade científica (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO- número de temáticas, esse autor deu-lhes
ARAUJO, 2014; SANTOS, 2008). Além de fragmentar, definição sociológica própria e uma parcela
essa racionalidade demarca o social como considerável de sua obra foi dedicada à dis-
domínio específico e circunscrito, como algo cussão do método de pesquisa adequado à
distinto dos demais, como biologia, direito, instituição de uma ciência social.
geografia, psicologia etc., e útil apenas para
explicar os aspectos residuais que as outras
disciplinas não contemplam (LATOUR, 2012). A noção positivista de
Nesse sentido, configura-se a visão de um ‘determinantes sociais’
social fragmentado e externo à dimensão
saúde (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAUJO, 2014). Segundo Löwy (2009), a ciência social po-
Esse modelo foi inicialmente desenvolvi- sitiva de Durkheim possui como preceito
do no âmbito das ciências naturais, a partir central a noção de ‘lei social natural’. Esse
da revolução científica do século XVII, pressuposto considera que os acontecimen-
tendo como atributo necessário a enuncia- tos humanos podem ser explicáveis ‘natural-
ção de leis universais. Apoiava-se no prin- mente’, visto que compartilham a condição
cípio do determinismo, fundado a partir da de constância e regularidade, a mesma com
ideia de ordem e estabilidade do mundo, que se interpretam os fenômenos naturais.
e anunciava que a natureza é regida por A consequência epistemológica decorrente
constantes e regularidades e que caberia à desse pressuposto foi a de que os critérios,
ciência descobri-las. Aplicado ao campo da regras e procedimentos usados para a pes-
investigação científica, esse princípio resul- quisa das sociedades deveriam ser iguais
tou na premência dada à busca das relações aos utilizados pelas ciências naturais. Por
de causalidade entre os fenômenos (SANTOS, mostrarem-se subordinadas aos mesmos
2008). Nos séculos seguintes (XVIII e XIX), métodos das ciências naturais, as ciências
os pressupostos que apoiaram o desenvol- da sociedade deveriam limitar o estudo dos
vimento dos métodos de excelência para a fenômenos sociais à observação e à expli-
investigação dos fenômenos naturais foram cação causal, tornando possível interpretar
considerados como igualmente oportunos os ‘fatos naturais’ que regem as relações
para basearem a investigação dos eventos humanas e sociais (LÖWY, 2009).
sociais, especialmente a partir da corrente Da mesma forma que as ciências naturais
filosófica positivista (SANTOS, 2008). eram reconhecidas como sendo objetivas,
Nessa discussão considera-se pertinen- neutras, livres de juízo de valor, as ciências
te revisitar os argumentos que foram con- sociais também deveriam proceder, usando
cebidos no bojo do desenvolvimento da o mesmo modelo de objetividade científi-
racionalidade científica moderna no campo ca. Assim, a concepção positivista afirmava
da sociologia, mais especificamente, da so- a possibilidade de que as ciências sociais se
ciologia positivista de Émile Durkheim, no desvinculassem de todos e quaisquer tipos de
intuito de desvelar os preceitos filosóficos julgamentos de valor e de ideologias (LÖWY, 2009).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 71

Em ‘Regras do método sociológico’, A abordagem científica dos fenômenos


Durkheim (2007) estabeleceu as principais sociais enquanto ‘fatos’ traz como consequ-
regras que considerava necessárias para que ência a primeira regra essencial do método
a sociologia se tornasse uma ciência autô- sociológico: considerá-los como ‘coisas’.
noma, procurando demonstrar que poderia
haver uma ciência sociológica objetiva e É coisa, com efeito, tudo o que é dado, tudo o
científica, tal qual as ciências físico-mate- que se oferece, ou melhor, se impõe à obser-
máticas. Para isso, tal esfera de conheci- vação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-
mento precisaria constituir e delimitar o seu -los na qualidade de dados que constituem o
próprio objeto de investigação: o fato social. ponto de partida da ciência. Os fenômenos
sociais apresentam incontestavelmente esse
É fato social toda maneira de fazer, fixada ou caráter. (DURKHEIM, 2007, P. 28).
não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coerção exterior; ou ainda, toda manei- O caráter de ‘coisa’ atribuído à análise
ra de fazer que é geral na extensão de uma científica da vida social retira dos indivíduos
sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui a ideia ou noção que fazem dos fenômenos
uma existência própria, independente de suas e se foca nas representações estabelecidas
manifestações individuais (DURKHEIM, 2007, P. 13). pela coletividade, materializadas por meio
de normas jurídicas, de valores econômicos
O fato social, como um objeto passível de etc.
observação e explicação científica, precisa- Dessa regra fundamental, Durkheim (2007)
ria apresentar características bem definidas: extraiu as subsequentes. Uma delas diz res-
a exterioridade, ou seja, a capacidade de peito à necessidade de o pesquisador esta-
revelar-se independentemente dos indivídu- belecer um afastamento de suas pré-noções,
os; a coercitividade, mostrando-se capaz de de seus preconceitos, das ideias formadas e
exercer uma imposição sobre os pensamen- cristalizadas pelo senso comum, para que
tos e sentimentos dos indivíduos; a gene- aquele possa realizar a observação dos fatos
ralidade, isto é, a capacidade de mostrar-se sociais. Esse afastamento requer do sociólo-
comum a todos ou à maioria dos indivíduos a go um rompimento com conceitos formados
partir de determinadas maneiras de pensar, em domínios exteriores ao científico e que o
agir e sentir (DURKHEIM, 2007). autor julga como falsas evidências. A ciência
Por apresentarem-se como realidade seria o lócus de um saber neutro, desprovi-
externa, anterior aos indivíduos, em outras do de julgamentos de valor. Dessa maneira,
palavras, elaboradas por gerações anteriores o sociólogo, em uma investigação científica,
às existências atuais, a ‘internalização’ dessas dirigindo-se a um grupo determinado de
maneiras coletivas de agir e pensar se dá por fenômenos, deveria defini-los previamente.
intermédio da educação. Esta, segundo o autor, Essa regra é colocada como a condição pri-
consiste em um contínuo esforço por socializar meira e indispensável para que exista a pos-
o indivíduo no meio em que vive, impondo, sibilidade de prova e verificação dos fatos
desde os primeiros anos de vida, maneiras de (DURKHEIM, 2007).
agir, de sentir e de ver às quais não chegaria Essa definição, segundo o autor, deve ser
de forma espontânea, como comer e dormir a mais objetiva possível, de maneira que seja
em horários regulares, ter hábitos higiênicos, capaz de exprimir os fenômenos por meio
ser obediente e paciente, estudar, trabalhar. de propriedades inerentes a eles próprios, e
Aos poucos, essas maneiras de agir vão dando não daqueles que provenham de uma ideia
lugar a hábitos e tendências que resultam dessa do pesquisador. Isso significa que a inves-
coerção (DURKHEIM, 2007). tigação deve partir das manifestações mais

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


72 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

exteriores de um fenômeno. Definir os fe- o afastamento das pré-noções, crenças e pre-


nômenos sociais a partir de seus caracteres conceitos do pesquisador na observação dos
exteriores requer também que o pesquisador fatos sociais.
os considere naqueles aspectos em que se Essa caracterização e delimitação do
apresentam isolados de suas manifestações social tornou-o passível de ser isolado,
individuais, de forma que sejam represen- fragmentado e classificado pela ciência.
tados da maneira mais objetiva possível Possibilitou decompô-lo em tantos ‘fatores’,
(DURKHEIM, 2007). Isso quer dizer que o que pre- ‘estratos’, ‘camadas’ quanto fossem necessá-
valece é a forma como o fenômeno apresen- rios para que se estudassem e organizassem
ta-se na coletividade, em sua generalidade. as relações de causalidade com fenômenos
da vida, como o processo saúde-doença. A
Fora dos atos individuais que suscitam, os hábi- partir dessas considerações, entende-se ter
tos coletivos se exprimem por meio de formas explanado a maneira pela qual os pressupos-
definidas: regras jurídicas, morais, provérbios tos positivistas se inscrevem na mutação de
populares, fatos de estrutura social, etc. Como léxico entre determinação social e determi-
estas formas existem de maneira permanente, nante social. Então, resta apontar, ainda que
como não mudam com as diversas aplicações incipientemente, as consequências de tal al-
que delas são feitas, constituem um objeto teração, tanto do ponto de vista epistemoló-
fixo, uma medida constante que está sempre gico como para a diminuição das iniquidades
à disposição do observador e que não deixa lu- em saúde.
gar às impressões subjetivas e às observações
pessoais. (DURKHEIM, 2007, P. 45-46).
Considerações finais
Vê-se aí, como a propriedade de ‘coisa’
atribuída ao ‘social’ retira-lhe a dinamici- O estudo teve como ponto chave de discussão
dade e a organicidade inerentes. Para que a noção de determinantes sociais da saúde
os fenômenos sociais possam ser objetiva- veiculada oficialmente pela OMS a partir do
mente abordados, precisam apresentar uma ano de 2005. Nesse sentido, entende-se que
fixidez, uma medida precisa, que se mostre é importante reforçar a diferença entre as
por si mesma e que independa do ponto de noções de ‘determinação social da saúde’ e a
vista do pesquisador, eliminando tudo o que de ‘determinantes sociais da saúde’.
tem de variável e de subjetivo. A noção de determinação social da saúde
As regras estabelecidas pelo positivismo foi construída nas três últimas décadas do
de Durkheim não apenas trouxeram, mas, século XX, a partir de um importante mo-
principalmente, legitimaram, no interior vimento de produção científica da corren-
das Ciências Sociais, os pressupostos da te médico-social latino-americana. Essa
objetividade, fundamentada na reificação corrente empenhou-se em trazer suporte
do social enquanto ‘fato’, a partir de duas teórico para elaboração de um pensamen-
características consideradas indispensáveis to social na área da saúde, na realização de
para a validação científica: a exterioridade, uma nova leitura da Saúde Pública, a partir
ou seja, a capacidade de mostrar-se como de uma perspectiva crítica à abordagem po-
uma realidade independente e externa ao sitivista da história natural da doença. Essa
indivíduo e a generalidade, ser comum a leitura crítica foi intensamente marcada
todos ou à maioria dos indivíduos. Além de por referenciais vinculados ao materialismo
exigir a neutralidade da ciência na análise histórico, com ênfase nos processos de pro-
dos fenômenos sociais, na medida em que dução e reprodução social. Retirou do pensa-
colocou como fundamentalmente necessário mento marxista o ‘trabalho’ como categoria

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 73

central e assentou no ‘processo de trabalho’ natural, social, biológico. Configuram-se,


uma notável importância sobre a determina- assim, perfis profissionais desmotivados e
ção do processo de adoecimento. despreparados para encarar os desafios que
Anos mais tarde, na entrada do século a atualidade impõe e que se expressam na
XXI, a OMS, por meio da criação da já citada necessidade de conexão de saberes e fazeres.
comissão, retoma a discussão do social na Considera-se que insistir na abordagem
análise e compreensão do processo saúde- de um social fragmentado é escolha de um
-doença, a partir da noção de ‘determinan- caminho que se mostra na contramão dos
tes sociais da saúde’. Essa noção explicita a esforços envidados para a construção da
reificação do social e a necessidade de ca- interdisciplinaridade.
racterizá-lo como um domínio específico e Em outra perspectiva, Ianni (2011) apre-
limitado da realidade, além de tratá-lo como senta os grandes desafios postos na con-
algo externo ao sujeito coletivo/individu- temporaneidade para o avanço do campo
al, algo estabelecido ‘a priori’: uma medida científico, desafios estes que estão ligados às
precisa, estática, fixa, ou, nas palavras de bases históricas sobre as quais se constituiu
Durkheim o pensamento das ciências sociais ‘clássicas’.
Para a autora, as ciências sociais desenvolve-
[...] um objeto fixo, uma medida constante que ram o seu arcabouço teórico-conceitual de
está sempre à disposição do observador e que explicação dos fenômenos sociais recorren-
não deixa lugar às impressões subjetivas e às do exclusivamente à sociedade, partindo da
observações pessoais. (DURKHEIM, 2007, P. 46). pressuposição de que tais fenômenos fossem
explicados apenas por causas sociais, dene-
Assim, uma revisitação às obras de gando o universo biológico e o meio externo
Durkheim, deixa claros os pressupostos posi- natural, assim como o indivíduo, e focando
tivistas presentes na ideia de determinantes apenas nos processos coletivos.
sociais da saúde, na medida em que desvela
os argumentos filosóficos de fragmentação e Nos marcos do pensamento moderno, por-
esquematização dos fenômenos sociais em tanto, as questões que permeiam a saúde-
fatores diversos, passíveis de serem estuda- -doença mantiveram-se polarizadas de forma
dos isoladamente, como ‘fatos sociais’. excludente – o indivíduo e o coletivo, o bio-
A consequência de operar dessa maneira lógico e o social, as diferentes racionalida-
reforça a disciplinarização e a divisão do des (Ciências sociais – Ciências naturais).
conhecimento em ‘setores de saber’ incomu- Ao biológico, esfera das Ciências naturais, o
nicáveis. No campo de produção de conhe- ‘quase imutável’, o mundo das leis fixas. Ao
cimento e formação em saúde, encontra-se social, esfera das ciências sociais, o mundo
um exemplo emblemático ao se analisar dis- em transformação, das crises, das revoluções,
ciplinas da grade curricular dos diversos dos levantes e mudanças históricas, políticas.
cursos que a compõem (a área da saúde), (IANNI, 2011, P. 34).
como a sociologia e a psicologia, na qual, na
grande maioria das vezes, são ofertadas de Os atuais problemas ambientais, tais
modo paralelo e sem relação com as demais como as mudanças climáticas ocorridas
disciplinas, colocando-se o social como uma em decorrência do aquecimento global, as
‘dimensão externa’ ao indivíduo e à saúde e catástrofes naturais, a diminuição dos re-
que podem ser acessados quando se precisa cursos hídricos, a diminuição e extinção de
estabelecer frouxas relações com o processo espécies, o aumento da produção de lixo
saúde-doença; estabelecendo e reforçan- e as contaminações de produtos agríco-
do dicotomias entre indivíduo, coletivo, las por agrotóxicos acabam por desvendar

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


74 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

a aparente e equivocada divisão entre o abordagem ao social, que o compreenda como


natural e o social, uma vez que esses fenô- ponto de chegada, de convergência, e não
menos são “natureza produzida socialmente, como ponto de partida. Abordagem esta capaz
pelas mãos humanas” (IANNI, 2011, P. 35). de afirmar que não há nada de específico na
No entanto, o presente momento de emer- ordem social, que o social não deve ser com-
gência de profundas mudanças sociais vem preendido como uma coisa particular ou como
forçando a teoria social contemporânea uma realidade específica. Tal abordagem trata
a ocupar-se pelos fenômenos e contextos de reagrupar, de redefinir e de restabelecer
sociais de sua atualidade (IANNI, 2011, P. 35). conexões e associações fornecidas por domí-
nios específicos e heterogêneos da realidade
Emergem conceitos como reflexivo, risco, lí- de modo a entender os fenômenos a partir de
quido, mundialização, global, cosmopolítico suas incessantes vinculações. Na perspectiva
etc. Agora os problemas já não são mais da de Santos (2008), trata-se de uma ciência que
afirmação de objetos disciplinares da nature- seja capaz de estudar os fenômenos naturais a
za ou da cultura, do biológico e do social (e partir dos sociais. Isso requer incorporar, para
nem poderiam sê-lo). além de métodos capazes de quantificar a rea-
lidade, aqueles métodos que possam se debru-
Diante desses grandes desafios, entende-se çar na compreensão da realidade subjetiva do
ser urgente abrir um amplo debate sobre os ‘outro’, da vida em coletividade.
caminhos e trajetórias adotados e sua possível Do ponto de vista das políticas públicas
transformação. Um dos pontos é a necessida- de saúde, entende-se que insistir na sepa-
de da superação do paradigma da disjunção, ração entre o social e a saúde significa con-
da redução, da divisão, da fragmentação, que trariar o princípio da integralidade. Reforça
sustenta a ciência moderna (SANTOS, 2008). Isso a fragmentação da vida e constrói atalhos
significa uma reforma radical do pensamen- contrários às diretrizes do Sistema Único de
to, afirmando um paradigma que dê conta da Saúde. Abordar os acidentes e as mais varia-
complexidade, da diversidade, das costuras, das formas de violência como ‘causas exter-
das conexões. nas’ ao setor saúde é reduzir a capacidade
Esse movimento de superação do para- política de todos os atores sociais para agir
digma moderno da racionalidade científica perante essas complexas questões sociais.
que fragmenta e dispersa o social, tem sido Na perspectiva das práticas cotidianas de
realizado de forma sustentada por impor- atenção à saúde, e, tendo como pressuposto
tantes teóricos sociais (LATOUR, 2012; SANTOS, que todo ato em saúde é dotado de significa-
2008). O paradigma emergente se sustenta na ção, adotar a noção de ‘determinantes sociais
condução de uma ciência pós-moderna que da saúde’ reforça a polaridade estabeleci-
ultrapasse a ideia de um mundo controlado da entre o ‘ser biológico’ e o ‘ser social’. É
e manipulado para a de um mundo que deva nessa lógica que o sujeito portador de certas
ser compreendido e contemplado; um para- doenças específicas, além de ser ‘dissecado’
digma que afirme a necessidade de que os pelas diversas especialidades médicas, é des-
pressupostos metafísicos, culturais, os siste- considerado como aquele que sofre violência
mas de crenças e sabedorias diversas sejam familiar, que vive em condições precárias de
parte integrante da explicação científica da vida e de trabalho, que depende das políticas
natureza e da sociedade; um paradigma que de assistência social para viver. Assim, o ser,
supere a dicotomia entre sujeito-objeto, ob- em toda a sua complexidade de existência,
servador-observado, natural-social, mente- é partido em distintas dimensões: o ser
-matéria, coletivo-individual (SANTOS, 2008). biológico – ‘investigado’ por médicos, en-
Latour (2012) sustenta a defesa em uma nova fermeiros, fisioterapeutas, dentistas, entre

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde 75

outros profissionais de saúde; o ser social, ensaio, elaboração do rascunho e da revisão


para os assistentes sociais; e o ser psicoló- crítica e participou da aprovação da versão
gico, para os psicólogos. Cabe perguntar final. Francis Sodré contribuiu substancial-
em que medida essa postura contribui para mente para a concepção, planejamento do
a compreensão dos complexos fenômenos ensaio, elaboração do rascunho e da revisão
humanos e insufla o agir sobre eles. crítica e participou da aprovação da versão
final. Maristela Dalbello-Araujo contribuiu
substancialmente para a concepção, planeja-
Colaboradores mento do ensaio, elaboração do rascunho e
da revisão crítica e participou da aprovação
Júlia Arêas Garbois contribuiu substancial- da versão final. s
mente para a concepção, planejamento do

Referências

ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S. Sobre a saú- BORDE, E.; HERNANDEZ-ALVAREZ, M.; PORTO,
de, os determinantes da saúde e a determinação social M. F. P. Uma análise crítica da abordagem dos
da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 103, Determinantes Sociais da Saúde a partir da medicina
p. 953-965, 2014. social e saúde coletiva latino-americana. Saúde em
Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 106, p. 841-854, 2015.
ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica da deter-
minação social da saúde. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde.
Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio Tradução: Luiz Roberto de Oliveira. São Paulo: Editora
de Janeiro: Cebes, 2010. p. 13-36. UNESP: Hucitec, 1991.

ARELLANO, O. L.; ESCUDERO, J. C.; CARMONA, L. ______. La determinación social de la salud como her-
D. Los determinantes sociales de la salud. Una perspec- ramienta de transformación hacia una nueva salud
tiva desde el Taller Latinoamericano de Determinantes pública (salud colectiva). Rev. Fac. Nac. Salud Pública,
Sociales de la Salud, ALAMES. Medicina Social, v. 3, n. Medellín, v. 31, supl 1, p. 13-27, 2013.
4, p. 323-335, nov. 2008. Disponível em: <http://jour-
nals.sfu.ca/socialmedicine/index.php/medicinasocial/ CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS EM SAÚDE
article/view/260/538>. Acesso em: 2 jun. 2016. (CEBES). O debate e a ação sobre os determinantes
sociais da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 35,
AROUCA, A. S. S. O Dilema preventivista: contribuição n. 90, p. 496-498, 2011.
para a compreensão e crítica da medicina preventiva.
São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES
SOCIAIS DA SAÚDE. As causas sociais das iniquidades

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017


76 GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M.

em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. NOGUEIRA, R. P. Determinantes, determinação e


determinismo sociais. Saúde em Debate, Rio de Janeiro,
COMISSÃO PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS v. 33, n. 83, p. 397-406, set./dez. 2009.
DA SAÚDE. Redução das desigualdades no período de
uma geração. Igualdade na saúde através da ação sobre ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).
os seus determinantes sociais. Lisboa: OMS, 2010. Diminuindo diferenças: a prática das políticas sobre
determinantes sociais da saúde: documento de dis-
DONNANGELO, M. C. F. Saúde e sociedade. São Paulo: cussão. Rio de Janeiro, Brasil, 19-21 de outubro de
Duas Cidades, 1979. 2011. Disponível em: <http://cmdss2011.org/site/wp-
-content/uploads/2011/10/Documento-Tecnico-da-
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. 3 ed. Conferencia-vers%C3%A3o-final.pdf>. Acesso em: 16
São Paulo: Martins Fontes, 2007. mar. 2017.

FACCHINI, L. A. Por que a doença? A inferência cau- SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São
sal e os marcos teóricos de análise. In: ROCHA, L. E.; Paulo: Cortez, 2008.
RIGOTTO, R. M.; BUSCHINELLI, J. T. P. (Org.). Isto é
trabalho de gente? Vida, doença e trabalho no Brasil. São SOLAR, O.; IRWIN, A. A conceptual framework for
Paulo: Vozes, 1994, p. 33-55. action on the social determinants of health. Social
Determinants of Health. Discussion Paper 2 (Policy
GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. and Practice). Geneva: WHO, 2010.
Determinantes sociais da saúde: o “social” em questão.
Saúde Soc, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1173-1182, 2014. TAMBELLINI-AROUCA, A. Análise dos determinan-
tes das condições de saúde da população brasileira. In:
IANNI, A. M. Z. Questões Contemporâneas sobre GUIMARÃES, R. (Org.). Saúde e Medicina no Brasil:
Natureza e Cultura: notas sobre a Saúde Coletiva e a contribuição para um debate. 4 ed. Rio de Janeiro:
Sociologia no Brasil. Saúde Soc., São Paulo, v. 20, n.1, p. Edições Graal, 1984, p. 147-154.
32-40, 2011.
TAMBELLINI, A. M. T.; SCHÜTZ, G. E. Contribuição
LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à para o debate do CEBES sobre a “Determinação Social
teoria do ator-rede. Salvador: Edufba; Bauru: Edusc, da saúde”: repensando processos sociais, determina-
2012. ções e determinantes da saúde. Saúde em Debate, Rio
de janeiro, v. 33, n. 83, p. 371-379, set./dez. 2009.
LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social.
In: NUNES, E. D. (Org.). Medicina social: aspectos his-
Recebido para publicação em outubro de 2016
tóricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983, p. 133-158. Versão final em janeiro de 2017
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de
Münchhausen: marxismo e o positivismo na sociologia
do conhecimento. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 41, N. 112, P. 63-76, JAN-MAR 2017

Você também pode gostar