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2 abr/15 ARTIGO 04
Resumo: Nesse trabalho, propomos um retrato de bibliotecas públicas como espaço físico através de seu papel mais essencial:
elas participam do processo de costura social enquanto elementos capazes de captar indícios de sofrimento social. Por isso,
não é suficiente a realização de bibliotecas em que técnicos, administradores, bibliotecários possuem as necessárias
competências sociológicas, de comunicação e de criatividade. As bibliotecas, nesse artigo, são pensadas como laboratórios de
cidadania muito mais próximos dos processos da vida real do que atualmente são: oficinas permanentes de apropriação do
espaço coletivo e de ações compartilhadas.
Palavras Chave: Biblioteca Pública; Mediação; Comunidade; Inovação; Serviços; Cidadania.
Abstract: In this paper, we propose a portrait of public libraries as a physical space through their most essential role: they
participate to the process of social sewing as elements capable to collect indications of social suffering. In order to do that, it is
not enough to have libraries where technicians, administrators, librarians own the needed sociological, communicational and
creative skills. Libraries, in this paper, are presented as a citizenship laboratory much closer to real life processes then how
they actually are: permanent workshops appropriating collective space and shared actions.
Key-words: Public Library; Mediation; Community; Innovation; Services; Citizenship.
Em um tempo de tecnologias, pode parecer obsoleta uma reflexão sobre a defesa das bibliotecas
públicas em sua existência física: as tecnologias exercem, inevitavelmente, uma atração
centralizadora no campo da Ciência da Informação. Sem dúvida revolucionárias do próprio
conceito de conhecimento, elas têm capitalizado o interesse pelas formas de organização e
acesso das informações.A proposta da tecnologia como acesso remoto é crescente para todos os
serviços, do pagamento de contas e homebanking ao empréstimo bibliotecário. A tecnologia
permite uma organização voltada para um público composto de navegadores. Observa-se o uso
da tecnologia voltada ao “infotainment”, ou informação entretenimento: notícias, leituras,
filmes, vídeos e musicas são acessíveis de qualquer dispositivo eletrônico conectado em rede,
que podemos utilizar sem a necessidade de sair de casa para recuperar informações com
conteúdos comparáveis aos de TV, jornais ou best-sellers.
Google (e as novas tecnologias em geral) deu vida a uma espécie de “biblioteconomia de massa”
que, de certa forma, deslegitima os papeis tradicionais do bibliotecário. Isso, porém, tem um
custo em termo de informação de qualidade, pois claramente temos que nos satisfazer com a
obtenção de resultados insatisfatórios e superficiais no plano da pesquisa. O “consumidor”,
todavia, mais do que o usuário, nesse caso, de notícias, acessa os sites da web como forma de
infotainment.
Em que pesem publicações dedicadas principalmente a este aspecto (Cesarino, 2007), a época
em que o bibliotecário desempenhava seu papel através das fichas do catálogo e indo ao
depósito para buscar o livro procurado acabou há muito tempo. E, de qualquer forma, não
condiz com estruturas que colocam como central uma ação com o público e não com as
coleções. Se esse papel de organização e recuperação da informação é desempenhado pelas
novas tecnologias, não é absurdo pensar que a informação estratégica da catalogação, um tempo
base de todo e qualquer trabalho bibliotecário, no âmbito das bibliotecas públicas um dia possa
desaparecer, ainda que um numero (bem limitado) de catalogadores sempre será necessário
(Agnoli, 2009). A presença das tecnologias deve reduzir a necessidade de funcionários atrás do
balcão, obrigando-os a transformar seu papel para o de mediação, facilitando a aproximação dos
usuários aos estoques de informação. Todavia, ainda hoje, muitos bibliotecários estão
convencidos de que suas tarefas principais são ligadas ao “back office”, e não consideram de
sua competência aquelas ligadas ao público, para as quais, com freqüência, são utilizadas
pessoas sem competências bibliotecárias.
Cada época deve eleger seus instrumentos para interpretar as necessidades sociais, eliminando
velhos hábitos e preconceitos. Todo serviço público que envolve um espaço coletivo deve ser
analítico das situações, para escolher seus rumos e evoluir. Desde a emergência das tecnologias
de informação e comunicação, o universo das bibliotecas públicas é questionado em sua
existência pelas mudanças, abrindo caminho à necessidade de reformulação. Com efeito, se o
sistema bibliotecário não funciona, significa que não corresponde às exigências do público.
Deve, portanto, transformar-se sem perder sua natureza ou competir com outros campos.Por que
a biblioteca pública enquanto espaço físico? Assistimos à diminuição dos lugares públicos, a
crises que deterioram os tecidos urbanos, ao surgimento de novas dinâmicas de segregações
espaciais (Canclini, 2009). O que as cidades cada vez mais oferecem como opção de agregação
social são espaços ou eventos marcadamente comerciais, cada vez mais parecidos nas operações
de franchising global. Muito serviços são mobilizados na tentativa de manter as costuras sociais
estáveis. A biblioteca pública pode ser o território mais rico para realizar o encontro entre
realidades diversas, buscando saídas das crises sociais que nos cercam.
Nesse trabalho, propomos um retrato de biblioteca pública como espaço físico através de seu
papel mais essencial: ela participa do processo de costura social enquanto elemento capaz de
captar indícios de sofrimento social. Por isso, não é suficiente a realização de bibliotecas em que
técnicos, administradores, bibliotecários possuem as necessárias competências sociológicas, de
comunicação e de criatividade. A biblioteca pode ter sucesso nas mudanças se é capaz de uma
mobilização rumo à sua transformação em um lugar que recebe, apoia e oferece tecnologias,
claro. O que permite, todavia, que a biblioteca desempenhe seu papel social é a presença de
cidadãos capazes de se articular com essa instituição que se encontra, assim, na necessidade de
formar bibliotecários capacitados em tornar próprias as necessidades dos usuários, colocando-se
a disposição para envolve-los na realização de suas atividades, tornando a biblioteca uma
instituição mediadora.
A biblioteca pública, em sua existência física, nesse artigo é proposta como laboratório de
cidadania muito mais próxima dos processos da vida real do que atualmente é, uma oficina
permanente de apropriação do espaço coletivo, de ações compartilhadas. Existe uma vontade e
uma necessidade de relações comunitárias, a necessidade de conectar o micro com o macro e,
muitas vezes, se produzem experiências interessantes que permanecem isoladas porque não é
exercido um papel eficaz de mediação, papel que cabe muito bem à biblioteca e a seus
profissionais que, porém, precisam de novos paradigmas interpretativos. Se não aceitarmos que
temos um olhar paradigmático não teremos saída: há uma necessidade de valorizar a inteligência
que opera na cotidianidade coletiva e de construir “dispositivos” que a reforcem, eliminando a
diferença entre cultura “alta” e “baixa”.
Como a biblioteca participa desses processos? Alguns exemplos podem ser oferecidos ejá são
integrados nos serviços de bibliotecas “modelos” ao redor do mundo, oferecendo cursos de
acesso e uso dos computadores em que os mais jovens, voluntariamente, trocam suas habilidades
pelos saberes de vida dos idosos, há produção de novos saberes que ela registra e torna
acessíveis; criando laboratórios de escritura, a biblioteca estabelece uma rede com iniciativas
semelhantes e, nisso, incluir bibliotecas de outros sistemas, como o carcerário, permitindo o
estabelecimento de um novo lugar de mediação com a experiência penal (Agnoli, 2014).
Todos diletantes da vida até seu final, podemos pensar em bibliotecas como lugares de
tecelagem de narrativas bastante diferentes e complexas, uma “Terra do Meio” dirigida para o
futuro. As memórias se tornam, assim, lugares onde todos podem residir e a biblioteca é o lugar
de acolhimento e de encontro reflexivo sobre os novos significados para afiar as armas contra a
vulnerabilidade. Uma biblioteca, enfim, que se torna lugar de criação das possibilidades da
palavra enquanto lugar “seguro”, em tempos de rápidas mudanças, por ser diferente da cultura
descartável, enquanto lugar delegado à tutela da memória, oferece segurança (Assman, 2011).É
um sentir sob forma de hospitalidade como as antigas praças e jardins eram, lugares de velar uns
os outros, para encontrar o outro alem de seu ser. Para isso, é necessário um espaço que permita
a gratuidade do encontro e, nesse sentido, as bibliotecas se oferecem como potencialmente
privilegiadas para satisfazer o direito a um lugar que leva à construção de narrativas de
memória. Nesse sentido, os livros nada mais são do que o instrumento do encontro que permite
cultivar as capacidades de cuidarmos uns dos outros, nesses tempos em que emerge a
necessidade de lugares públicos para reconfigurar a vida de maneira menos individualista. A
biblioteca, como lugar de liberdade, lida com necessidades diferentes, se torna um lugar político,
que acompanha na fragilidade para que se torne possível continuar nos exercícios de
responsabilidade.
A biblioteca pública pode se tornar, assim, um antídoto contra a incerteza do futuro dos mais
jovens, das mudanças para os usuários de meia idade e de entrega do passado dos idosos. É um
desafio fascinante, ousar uma nova capacidade de reflexão que difere do consumo cultural
consolador artificialmente construído pelo mercado, através das narrativas de mulheres e
homens que foram capazes de comunicar, abrindo assim oficinas de construção do futuro: não é
possível entender o sertão brasileiro, hoje, sem confrontar-se com Euclides da Cunha e com
Guimarães Rosas em uma biblioteca: os usuários devem poder adquirir seus instrumentos para
escrever seus próprios sertões.
Se torna, assim, necessário propor ativamente materiais que, através de percursos sugeridos,
estimulem a leitura dentro das bibliotecas para públicos não somente infanto-juvenis, fato que
aparenta ser o investimento central nas reflexões sobre bibliotecas, mas também de usuários
capazes de aprender textos diversificados que, literariamente, oferecem chaves de possíveis
interpretações da contemporaneidade, como bem mostra Ferrieri (2011 e 2013), diretor dos
serviços culturais e bibliotecários da província de Milão.
O suporte tecnológico e informacional que uma biblioteca pode oferecer torna essa possibilidade
atraente: tecnologia acessível e acesso à informação mais estruturada, através de profissionais
qualificados. Como poderia falhar, uma biblioteca que, entre suas missões qualificasse o
trabalho inovador de potenciais “start ups” enraizadas e cultivadas em ambientes colaborativos
dessa natureza? A mudança social que as próprias bibliotecas devem contribuir a realizar talvez
inclui os que se encontram nas bordas do tecido social: a biblioteca resiste à marginalização.
Baste pensar na experiência do Beaubourg, em cuja biblioteca muitos clochard encontram
refúgio no inverno. Essa situação, aliás, está mudando radicalmente o público das bibliotecas
públicas na Itália também. Em um evento recente sobre bibliotecas públicas (La biblioteca va in
città, Monticelli Terme, 11 de abril de 2014), um elemento de destaque que aflorou das
discussões das várias oficinas foi o problema enfrentado por praticamente todas as realidades
italianas de verdadeiras “ocupações” das salas por parte de indigentes e de estrangeiros sans
papiers. O interessante foi a percepção que a maioria dos bibliotecários expressou: trata-se de
públicos indesejáveis, cuja presença deve ser limitada.
A biblioteca de Trento, por exemplo, retirou os espelhos dos banheiros para impedir que esses
usuários façam a barba. Um indício de como as dificuldades com os públicos são globalizadas.
A New York Public Library, por outro lado, adota políticas de acolhimento bem diferentes. Com
efeito, durante um inverno particularmente frio, um alto numero de sem-teto nova-iorquinos
procurou refúgio nas salas de leitura da biblioteca. Na hora do fechamento, porém, os
bibliotecários sentiram a responsabilidade de deixar nas ruas esses usuários, e resolveram
organizar uma sessão noturna com os filmes de seu acervo. Bibliotecas públicas, portanto, que
abrem seus serviços para os novos e velhos pobres, oferecendo serviços qualificados a todos
(Dubbini, 1999).
Inovar as bibliotecas.
Inovar as bibliotecas é um projeto que precisa de momentos de reflexão, para recuperar o
sentido das dimensões do serviço que elas oferecem. A biblioteca é um laboratório, algo em
devir, um organismo que cresce, através de sua dimensão de experimentação e de projetação.
A missão dos bibliotecários, enquanto mediadores de conhecimentos, consiste em melhorar a
sociedade facilitando a criação de novos conhecimentos nas comunidades de referencia. Elas
exercem um papel de facilitadoras não somente para a fruição das informações que guardam em
forma de conhecimento tácito, mas também na produção de novos conhecimentos (Salarelli,
2008).
A biblioteca funciona quanto mais ela é enraizada no território, que não deve ser analisado
somente em termos estatísticos, através do estudo de usuários, como ainda proposto nos
princípios e diretrizes para a biblioteca pública (Fundação Biblioteca Nacional, 2010), mas
também interpretado através do conhecimento das parcerias, dos organismos prepostos ao seu
funcionamento e das comunidades de referencia, que devem ser escutadas. Nesse caso, também,
não se trata de um estudo estatístico de comunidade: escutar significa se expor ao risco de ouvir
pedidos que implicam a mudança dos serviços oferecidos, de se confrontar com exigências e
atividades novas (Diaz, 2006). Se a biblioteca também contribui em alguma medida ao processo
de alfabetização, o faz na base de uma sinergia com todos os outros sujeitos públicos e privados
do território. Por exemplo, uma das funções que pertencem sem dúvida às bibliotecas, é a de
Information Literacy, ou Letramento Digital. Outra é incentivar a leitura tanto das crianças como
do público adulto, através de ações e estratégias diferenciadas.Para a International Federation of
Library Associations and Institutions, IFLA (Manifesto, 1994) a biblioteca é a sala que cria
oportunidades, algumas das quais podemos individuar:
Uma empresa social e cultural de comunidade é capaz de atrair recursos de natureza diferente,
de combinar abordagens de vária natureza, de disseminar sistemas de organização capazes de
satisfazer estruturas motivacionais complexas. Há sempre, em suas ações, a referência explícita
à comunidade como stakeholder da organização, dotando-se de uma capacidade flexível e
rizomática de desenvolver relações no nível informal. O desenvolvimento é, em geral, ligado a
escolhas e situações favoráveis, em que se conjugam a atenção das administrações e a
colaboração dos bibliotecários, que buscam a abertura de novos serviços, pois uma biblioteca
dessa natureza realiza conexões estruturadas com os principais atores do sistema social em que
vive, oferecendo a abertura ao sistema de governance e aos processos produtivos. A capacidade
empreendedora, de um ponto de vista da política e da administração de uma biblioteca pública, é
saber adaptar-se às novas exigências da sociedade, criando lugares de agregação e de
sociabilidade para alem do livro e da leitura.
Através da escuta das necessidades dos territórios, ela promove uma coalizões de atores e neles
individualiza os possíveis stakeholders. Através da valorização também do conhecimento tácito,
favorecer a circulação da informação, pois cria e gerencia conexões entre as redes formais e
informais. O cidadão deve encontrar um lugar onde se sentir bem, relacionar-se e não somente
em relação às exigências culturais. Responder às exigências: é difícil ter ideia do papel de
interlocução entre todos os atores se tudo se apoia na boa vontade dos administradores e
operadores e não na participação social. A biblioteca, portanto, documenta as atividades e as
escolhas e, além da documentação, se torna parte de uma rede com outras realidades parecidas e
diferentes, para entender as perguntas e as exigências existentes e procurar as respostas (não
somente bibliotecários). É o caminho para uma biblioteca participativa: não interessam as
fotografias do existente, com frequente intenção congratulatória, mas sim buscar os lugares e as
circunstâncias de percursos positivos.
Ao mesmo tempo, porém, é consumidor, na medida em que utiliza os serviços. Não é o consumo
passivo do mercado, pois requer participação ativa, levando à criação de pensamento produtor
de cultura, feito de sociabilidade. O objetivo da biblioteca é participar da criação de um cidadão
que queira empreender. A biblioteca permite o encontro e fornece os instrumentos da
transformação do existente. A biblioteca é uma incubadora de pensamentos e palavras, tanto que
adquire a função de tutelar e promover o patrimônio cultural do território, composto tanto de
livros, como de pessoas.
Relatando suas experiências, Ulisses não lê um livro, mas reúne as histórias e as narra,
envolvendo os presentes, em um compartilhamento que produz um patrimônio comum de
conhecimentos. É da mesma maneira que a biblioteca reúne a experiência de quem nela circula.
A biblioteca é um lugar em que é possível o encontro. É um acesso “leve”, que permite entrar na
idéia de que um serviço cultural pode ser de baixo impacto na interceptação das condições de
fragilidade, de vulnerabilidade, em que os cidadão expressam novas exigências e pedidos. A
biblioteca não pretende substituir outros serviços mas, sim, orientar e colaborar em rede com os
outros.
Percebe-se, na leitura, que os dois protagonistas enxergam, cada um de seu ponto de vista,
somente aquilo que há para se ver “ao vivo”, na vida real (Godos, Hunos, turistas alemãos...).
Eles são perturbados em suas atividade do presente por eventos que os envolvem. No caso do
duque o casamento das filhas, a conversa com o capelão; no caso de Cendrolin, a insistência e a
diversidade dos turistas alemães (shortinhos, mochilas...). Em seus sonhos (a Imaginação), pelo
contrario, coloca o duque em um lugar futuro e Cendrolin no passado. Finalmente, o encontro
entre passado e futuro, enfim, acontece no presente. Seria possível, portanto, afirmar que o
sentido da história se obtém de quatro elementos entrelaçados e que o problema, então, se torna
o de oferecer um conteúdo específico a cada um desses elementos, para depois procurar colher
um sentido do conjunto que formam, que depende do ponto de vista do observador: quanto mais
alto o lugar de observação, tanto mais longe as coisas o perturbam. Quanto mais baixo o ponto,
tanto mais será afetado pelas coisas em volta, que o cercam no cotidiano. Próximo e distante,
porém, não são mais categorias que apontam o “aqui” e o “alhures”, mas sim diferenças que se
aproximam no mesmo espaço, que podemos individualizar na biblioteca.
A grande questão é o que há, hoje, que podemos enxergar nas proximidades, diferente do que
havia antes? Homens e mulheres diferentes, que estavam “alhures”, nas periferias, nas favelas,
em países distantes, hoje compartilham ou querem compartilhar os mesmos espaços das cidades,
com suas vestimentas, estilos, culturas; o longínquo preço do petróleo na bolsa de Wall Street
não difere mais daquele da bomba próxima de casa, quando reabastecemos; Comer uma feijoada
na Itália, um cous-cous marroquino na Alemanha, ou um frango tandoori no Brasil hoje em dia
não é mais algo exótico, pois os mais diversos hábitos gastronômicos estão todos presentes em
nosso cotidiano; as imagens dos amigos que viajam chegam ao nosso celular, nas redes sociais
em tempo real pela internet, e não mais pelo correio.
O que aconteceu e o que significa tudo isso? Parece que três antigas dicotomias perderam seu
significado costumeiro: O Próximo/Distante marcou nosso mundo ao longo de milênios, mas
caducou progressivamente, nas últimas quatro décadas, pois em qualquer lugar é possível a
proximidade virtual com coisas, pessoas e lugares, em comunicações que são o destilado do
nosso universo e do nosso mundo. O Igual/Diferente tem sido uma constante no comportamento
de todas as sociedades humanas onde, historicamente, o diferente ameaçava a homogeneidade
social, fundamento da identidade do conjunto. Os outros “diferentes” de nós eram, assim,
expulsos o mantidos à margem, sob vigilância (os Bárbaros, os metecos, os ciganos, os
judeus...). Hoje, a diversidade já se tornou normalidade em muitas sociedades.O Estável/Instável
representou o paradigma fundamental de toda administração cultural e política. Preservar a
estabilidade das regras, de todas as relações sociais, da cultura, do quadro ideológico do
conjunto, constituiu o pilar dos governos e, por converso, sempre esteve presente a luta de todos
os sistemas em afastar os elementos de instabilidade ou admiti-los no sistema de maneira
compatível com sua configuração. A presença do diferente e o compartilhamento do mesmo
espaço entre diferenças constitui um fato novo que esvazia, em parte, as configurações
existentes: culturas, economias, sistemas alimentares, religiões, imagens do mundo, artes são, ao
mesmo tempo, entidades visíveis diversas no lugar que remetem diretamente ao resto do mundo
pelo fato de existir no nosso próprio espaço que, por isso, tornou-se também diferente do
passado.
O ato de ver, portanto, oferece aos nossos olhos o nosso mundo e o dos outros em um conjunto
indistinto, que ainda não é uma combinação nova.
Esse conjunto ainda informe pode ser lido de maneira simplória através da rejeição à mistura, da
ignorância e do desaconchego mental. A mistura, porque de repente sem preparo prévio, se
encontram nos percursos cotidianos pessoas de diversa origem, cultura, hábitos e maneiras de
pensar. A ignorância, porque pouco sabemos dos outros, pouco nos ensinaram e pouco
continuam a ensinar. Isso permite pensar nos outros com preconceito de mais arcaica e variada
formulação. A ignorância, enfim, nos torna frágeis e dependentes dos preconceitos. O
desaconchego mental, porque mistura e ignorância, provocando desconfiança no presente e
angustia para o futuro, insinuam na mente a insegurança e o desconforto em saber avaliar as
inovações possíveis.
Esse quadro in fieri postula que não se pode sair de medos e inseguranças a não ser “juntando”
o nosso passado e o dos outros, os nossos presentes com os deles, buscando pontes,
combinações, relações ativas, enfim, conhecimentos que, tanto de um ponto de vista das culturas
como do ponto de vista mental permitam de criar algo novo. Os problemas e suas possíveis
soluções podem se tornar coletivos, dentro de uma biblioteca pública enquanto construção de
cidadania. Caso contrario, as diferenças que, antigamente, diziam respeito a espaços separados e
distantes, continua se apresentando, diversamente do passado, em espaços separados porém, ao
mesmo tempo, colocados no mesmo lugar. Isso pode levar a formas de discriminação sociais,
raciais, culturais e a desentendimentos que, no final, são o melhor veículo para inseguranças de
todo tipo. A Imaginação é a qualidade humana que sabe conjugar as diferenças, tornando-as
projeto positivo e é, portanto, o que se deve por em jogo na continuidade com a sabedoria de
cada cultura envolvida em uma biblioteca pública, lugar que nos parece possuir todos os
pressupostos para jogar o encontro entre passado e futuro na atualidade.
Parece, então, que o sentido da biblioteca resida nisso: buscar combinar em nossa cultura as três
dicotomias, que não são mais como a tradição as definia: o próximo/distante de toda espécie, o
idêntico/diferente e o estável/instável são misturas a serem convertidas em combinações através
de serviços bibliotecários voltados para a formação informal, para a information literacy, os
incentivos à leitura, ao lado de encontros, simpósios, exposições, musica, imagens diferentes. É
uma tarefa árdua, porém envolvente. Por outro lado, não se pode nunca fugir do fato que, hoje, a
biblioteca deve alimentar-se de muitos objetos e sujeitos diversos e que tudo isso significa, com
certeza, assumir a dimensão que lhe compete de espaço público a todo campo. A biblioteca pode
se tornar, enfim, omphalos onde todos se encontram, se combinam e reformulam. Essa é a nova
realidade, essas são soluções possíveis para o encontro de novas formas participativas de
cidadania.
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Giulia Crippa
giuliac@ffclrp.usp.br