Você está na página 1de 5

Daojia nº 24 Abr/Mai/Jun 2023

1
Daojia nº 24 Abr/Mai/Jun 2023
10

A Vida e o Legado do
Mestre Wǔ Cháo
Xiāng 武朝相
da China ao Brasil

Por: Matheus Oliva da Costa

I
magine alguém que conhece várias línguas, praticou artes
marciais chinesas com vários mestres, sobreviveu a guer-
ras internacionais, teve diversas formações acadêmicas
e técnicas, trabalho em muitas profissões, e, depois de tudo
isso, ainda se mudou com toda a família para um país em
outro continente, deixando um legado que mobilizou milhares
de pessoas ao longo de décadas. Soa como uma vida incrível,
certo? Pois essa pessoa existe, e o nome dele é Wǔ Cháo
Xiāng 武朝相 (1917-2000).

Mais conhecido pela grafia Wu Chao-Hsiang, o mestre Wǔ


nasceu e cresceu no estado de Shān Xī 山西, norte da ainda
jovem República da China, quando começavam a buscar
conciliar modernidade estrangeira e tradição chinesa. Nesse
contexto aprendeu artes marciais, se formou na educação
básica já modernizada, começou a trabalhar no Banco Central
de lá e conheceu sua esposa, Wǔ Zhāng Ruò Líng 武張若苓,
ou “dona Lin”. Seu principal mestre, o Bù Xué Kuān 布學寬
(1876-1971), aprendeu Xíng Yì Quán 形意拳 com o famoso
Chē Yì Zhāi 車毅齋 (1833-1914), e treinou Tài Jí Quán 太極
拳 e Bā Guà Zhǎng 八卦掌com o famoso Sūn Lù Táng 孫祿
堂 (1861-1933) – não o “estilo Sūn” em si, mas com a pessoa/
mestre Sūn, cuja linhagem remonta a quase todos os outros
estilos e textos clássicos de Tài Jí Quán. O mestre Bù tam-
bém aprendeu sistemas de Shào Lín Quán 少林拳, como as
12 sequências ou rotinas de Tán Tuǐ 彈腿, o Punho do Pato
Mandarim Yuān Yāng Quán 鴛鴦拳 (ou Chute do Pato Man-
darim, Yuān Yāng Jiǎo 鴛鴦腳) com Wèi Chāng Yì 魏昌義 e
ainda técnicas com armas tradicionais como Lança (Qiāng 槍),
Facão/Sabre (Dāo 刀), Espada reta (Jiàn 劍) e bastão (Gùn
฀). Tudo isso o mestre Wǔ praticou ainda durante os tempos
de escola, na região de Tài Gǔ 太谷. Já adulto, devido às
viagens motivadas pelo seu trabalho no Banco Central, ele
também treinou Tài Jí Quán, Shào Lín Quán e Tán Tuǐ com
Yú Zhèn Shēng 于振聲 (1871-1958) e seu amigo Mǎ Jīn Biāo
馬金標, dois mestres de Chá Quán 查拳.
Daojia nº 24 Abr/Mai/Jun 2023
11

Depois das guerras mundial e civil que impactaram toda a história o título Tai Chi Chuan: como usar a técnica da grande energia
chinesa, ele e sua esposa passaram a viver em Taiwan entre 1949 cósmica. Esse livro foi reeditado este ano, 2023, com revisões
e 1972, momento em que criaram o seu filho, Wǔ Zhì Chéng 武 e ampliações (incluindo depoimentos de discípulos, história do
志成 (ou Wu Jyh Cherng, como registrou-se no Brasil). Nesse mestre, genealogia do seu estilo e fotos inéditas), sob o título de
período o mestre Wǔ criou associações de artes marciais com Tài Jí Quán 太極拳: a arte de unir Yīn e Yáng. O livro faz parte
outros professores e ensinou o legado que aprendeu anterior- da coleção “As Artes Daoistas” da editora Mauad X, coordenado
mente. Ele foi um dos sete diretores fundadores da Associação por Lîla Schwair, que foi nora do mestre Wǔ.
de Pesquisa Acadêmica em Tài Jí Quán da China, Zhōng Guó Tài
Jí Quán Xué Shù Yán Jiū Huì 中國太極拳學術研究會, fundada em Para finalizar esse breve texto que tem como objetivo apenas
1966, e depois ajudou a liderar a Associação de Artes Marciais registrar de forma breve a vida e o legado do mestre Wǔ, vou
Nacionais de Táiwān, Tái Wān Guó Shù Huì 台灣國術會, na capital agora apontar alguns dos seus ensinamentos presentes no livro
Tái Běi 台北. Nesse momento conheceu outros professores de recém reeditado. Primeiro, um princípio: o mestre Wǔ cresceu em
Tài Jí Quán que dominavam outros estilos, como Dù Yù Zé 杜毓 um ambiente que buscava intensamente conciliar a modernidade
澤 do estilo Chén陳 e Wáng Yán Nián 王延年 do estilo Yáng. Foi com a tradição, e uma das expressões disso é sua postura de
nessa época também que ele teve o seu aluno mais internacio- não apenas praticar, mas também estudar teoricamente o que
nalmente famoso, o pesquisador Stanley Henning, que registrou pratica, de forma dialética. É como Confúcio disse nos Analectos
com fotos e publicações escritas seu treinamento com o mestre 2.15: “estudar sem pensar leva a incertezas, pensar sem estudar
Wǔ. Além de tudo isso, foi nessa parte da vida quando aprendeu leva a riscos”. No caso das artes marciais, é importante que o
Medicina Chinesa. praticante estude o que pratica, e pratique o que estuda. Somente
praticar sem estudar as teorias pode levar a práticas equivocadas
Com toda essa bagagem cultural, a partir de 1973 se mudou para e ingênuas, enquanto somente estudar sem praticar pode tornar
Brasil, onde fixou-se no Rio de Janeiro junto com a esposa e o filho o estudo sem propósito e ainda enfraquecer o corpo. Você, que
até o final da sua vida. Ele é reconhecido em obras acadêmicas e treina Tài Jí Quán, leu e refletiu o que os textos clássicos do Tài
fontes tradicionais como um dos pioneiros no ensino e na difusão Jí Quán dizem? E já conseguiu colocar em prática o que estudou?
das artes marciais chinesas e da medicina chinesa nessa cidade Isso é o que importa.
brasileira. Dentre as múltiplas tradições, técnicas e ensinamentos
que trouxe consigo, o Tài Jí Quán se destaca como a arte em que
ele teve mais alunos, e também por ter desenvolvido um estilo
único e novo, fruto de décadas de treinamento e aprimoramento
com diversas fontes tradicionais. Outras artes marciais que ele
ensinou foram o Xíng Yì Quán, o Bā Guà Zhǎng, o Shào Lín Quán
e o Tán Tuǐ. Ele atendia e ensinava Medicina Chinesa, incluindo
fitoterapia, acupuntura, meditação e Qì Gōng 氣功. Tudo isso
acontecia, principalmente, em seu Instituto de Cultura Chinesa
Wu Chao Hsiang, fundado em 1977.

Com o tempo, mestre Wǔ formou diversos discípulos que trans-


mitiram seu legado. Seu próprio filho, mais tarde conhecido como
mestre Cherng, além de ensinar a tradição do pai, também criou
a Sociedade Taoista do Brasil no início dos anos 1990. Na minha
estimativa a partir dos relatos, documentos e fotos, o mestre Wǔ
teve centenas de alunos brasileiros, sendo que algumas dezenas
foram formados para instrutores e professores. O mestre Marcos
Vinicius de Almeida Gomes fundou a AFICORJ (Associação Filo-
sofia Cultura Oriental do Rio de Janeiro), a instituição com maior
número de membros e filiados que representa o legado do mestre
Wǔ. Há também o Instituto Tao Te Tang, fundado e mantido pelo
discípulo Hay Arruda, que treinou com o mestre Wǔ e com seu
filho, mestre Cherng. Relativo à Medicina Chinesa, há o Instituto
Sino-Brasileiro de Acupuntura, Moxabustão e Terapias Orientais,
fundado por Bartolomeu Alberto Neves, e agora continuado pelos
seus familiares. E esses são alguns exemplos, não todos.

Somada a tradição prática e oral que o mestre Wǔ ensinou, ele


também escrevia aspectos teóricos do que ensinava, normalmente
em textos mais curtos, como artigos em revistas de artes marciais,
no caso, em língua chinesa e, depois, em português. Felizmente
ele também deixou, ainda em vida, o registro da sua perspectiva
sobre o Tài Jí Quán, publicado em 1984 originalmente como
Daojia nº 24 Abr/Mai/Jun 2023
12

Outro ensinamento é que o mestre Wǔ aponta para uma pers-


pectiva integral do Tài Jí Quán: é uma arte marcial, mas também
é uma prática que conduz à saúde e longevidade, além de ter
aspectos espirituais. Ver o Tài Jí Quán somente como arte mar-
cial, pode perder de vista os princípios mais básicos, inclusive
o de não forçar situações de rigidez ou atrito. Ver o Tài Jí Quán
somente como prática de saúde pode tornar a prática sem vigor e
esvaziada do seu sentido original (de luta, Quán), eventualmente
deixando a execução dos exercícios sem intenção, relaxada e
sem fundamentos. Ver o Tài Jí Quán como somente uma forma
de espiritualidade é ignorar os aspectos propriamente práticos e
físicos para o cotidiano, que gerariam mais confiança para viver
em situações de perigo e propiciam mais vigor ao corpo. Assim,
viver o Tài Jí Quán: é preparar-se para se defender, se necessá-
rio; é cultivar a própria saúde; é cultivar um estado de ser mais
realizado, mais alinhado ao Dào 道 apontado por Lǎo Zǐ 老子, o
caminho do retorno à unidade com o todo.

Referências
CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução e comentários Giorgio Sinedino. São Paulo:
Ed. Unesp, 2012.
LAO TSE [Laozi]. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude (Dao De Jing).
Tradução direta do chinês e comentários Wu Jyh Cherng; co-autoria para trans-
crição, edição e adaptação, dos textos Marcia Coelho de Souza. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2011.
Matheus Oliva da Costa: Instrutor de Tàijí quán da escola Wǔ
WILE, Douglas. Lost T’ai-chi classics from the late Ch’ing dynasty. New York: SUNY, Cháoxiāng, estilos tradicional e formas modernas de Beijing.
1996. Doutor em Ciência das Religiões. Pesquisador das culturas e
WU, Chao Hsiang [Wu Chao Xiang]. Tài Jí Quán 太極拳: a arte de unir Yīn e Yáng. filosofias chinesas. Praticante de meditação budista e daoísta.
Coordenador da nova edição Matheus Oliva da Costa. 6ª edição, atualizada, revi-
sada e ampliada. Coordenadora da coleção “As Artes Daoistas” Lîla Schwair. Rio
de Janeiro: Mauad X, 2023.
** Fotografias do arquivo pessoal de Wu Jyh Cherng.
Daojia nº 24 Abr/Mai/Jun 2023
13

Você também pode gostar