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1
Rodrigo Wolff Apolloni (rwapolloni@gmail.com) é mestre em Ciência da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Praticante de Tai-Chi-Chuan e Kung-Fu desde 1985, é professor formado pelos mestres
Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh e Jorge Jefremovas. É diretor de práticas corporais do Centro Ásia, em
Curitiba (www.centroasia.com.br).
2
Em uma contagem de dezembro de 2015.
3
Em termos exatos, a expressão “Tai-Chi-Chuan” (“太極拳”) se refere às técnicas e formas praticadas
com as mãos livres. Formas que incorporam espada, sabre, leque, lança, alabarda e clava substituem o
terceiro ideograma - Chuan, (拳), “punho” – pelo da respectiva arma tradicional. Neste artigo, para
simplificar a leitura, usaremos a expressão “Tai-Chi-Chuan” de forma ampla, isto é, identificando tanto
as formas de mãos livres quanto as formas com armas. Quando a diferenciação se fizer necessária, ela
será indicada no próprio texto.
4
Por “modernas”, no presente contexto, devemos compreender as formas criadas pelo governo da
República Popular da China (através do Conselho Nacional Chinês de Esportes e Educação Física) a partir
de 1956, ano em que foi lançada a rotina de mãos livres em 24 movimentos da Escola Yang. Formas
concluída com um retorno ao ponto de partida, sendo o movimento final, de
fechamento da forma, e exato oposto ao de seu início: os pés se reencontram,
o corpo permanece ereto e os braços retornam suavemente à posição de
descanso junto ao corpo5.
Para o observador leigo e mesmo para muitos praticantes de Tai-Chi-
Chuan, a postura situada imediatamente antes do início e logo após o
fechamento não merece maior atenção. Não seria ela, apenas e tão somente, a
posição de entrada e saída da forma, uma “moldura” adequada por sua
inexpressividade corporal?
Seria, se ela originalmente se limitasse a esse papel. Examinando textos
clássicos sobre Tai-Chi-Chuan, ficamos surpresos ao descobrir a atenção e o
número de caracteres dedicados à descrição dos elementos físicos, mentais e
“energéticos” que compõem a postura inicial e final das formas. Essa postura
materializa o chamado Wuji ou Wu-Chi ( 無 極 ), termo que traduziríamos
inicialmente como “Vazio Primordial”, um estado de grande importância para a
religiosidade chinesa, especialmente no contexto do Taoísmo.
A proposta deste artigo é abordar Wuji e outros conceitos “filosófico-
corporais” 6 do Tai-Chi-Chuan a partir de alguns desses textos e perceber como
seus autores os situavam dentro da prática da modalidade. Para tanto, vamos
trilhar um caminho que prevê, em um primeiro momento, uma introdução aos
conceitos de Tai-Chi-Chuan e de Tai-Chi; em seguida, buscaremos desvelar o
conceito de Wuji, partindo de sua relação com o conceito de Tai-Chi (a
“Cumeeira Suprema”).
A seguir, faremos uma aproximação da história da arte marcial chinesa,
em especial do período situado entre o declínio da Dinastia Ming (século XVII)
e o início do século XX, buscando localizar algumas de suas relações com a
religiosidade de corte budista-taoista.
“clássicas” são as canônicas anteriores a esse período. Sobre a datação do Tai-Chi-Chuan moderno, ver
LI, X., HONG, Y., e CHAN, K., "Tai chi: physiological characteristics and beneficial effects on health",
artigo publicado em British Journal of Sports Medicine, volume 35, número 03, junho de 2001, pp. 148-
153, p. 148.
5
O Tai-Chi registra formas cujo ponto de fechamento não equivale ao de abertura. Elas, porém, são
raras.
6
A expressão “filosófico-corporais” não dá conta da amplitude de conceitos como “Wuji”: eles são
filosóficos, na medida em que nascem das escolas chinesas de pensamento; são religiosos porque se
associam ao Taoísmo e ao Budismo; são energéticos, porque se referem à cosmogonia e à teoria médica
chinesa.
Passaremos então à observação dos textos. Nesse processo,
buscaremos perceber as chaves usadas para traduzir, em termos corporais –
na prática da arte marcial e do estado mental a ela associado – conceitos sutis,
muito mais porque próprios de um padrão de integração corpo-mente com que
não estamos acostumados neste início de século XXI. Como conclusão,
faremos algumas considerações a respeito de como o conhecimento de
conceitos como os de Wuji e Tai-Chi podem beneficiar a prática atual do Tai-
Chi-Chuan.
Uma observação antes de iniciar o trabalho: ideias como as de Wuji e Tai-
Chi perpassam boa parte do pensamento chinês dos últimos vinte e cinco
séculos, sendo, portanto, tremendamente ricas em suas relações com o
contexto histórico. Nós propomos um recorte sobre a sua conexão com a
prática marcial, mais especificamente a do Tai-Chi-Chuan7.
1. TAI-CHI-CHUAN
7
Para facilitar a leitura por parte de pessoas não acostumadas com os sinais diacríticos do sistema de
romanização Pīnyīn, optamos pelo uso de uma romanização mais simples, pautada no uso comum de
termos como “Tai-Chi-Chuan”, “Chi”, “Chi Kung”, “Wuji”, “Wudang” e “Shaolin”; ao final do texto,
contudo, trazemos uma lista com os termos na transliteração simplificada, em escrita tradicional chinesa
e em romanização pelo sistema Pīnyīn.
8
Sobre o nascimento da moderna arte marcial chinesa, ver SHAHAR, M., “O Mosteiro de Shaolin”, 1ª
edição, São Paulo: Perspectiva, 2008, 349 p.
9
Fase de conformação e consolidação institucional da prática nos cinco estilos clássicos ou canônicos.
recentes têm grande valor os ganhos à saúde e à sociabilidade 10 . Esses
valores, por certo, não são excludentes – eles recebem, apenas, ênfases
diferentes em contextos histórico-culturais distintos.
Em nosso artigo, em que se busca conhecer de forma mais detalhada um
conceito essencialmente chinês, o recorte do Tai-Chi-Chuan terá como centro
olhares mais antigos, ancorados em elementos da marcialidade e,
especialmente, da cosmogonia chinesa materializada na prática psíquico-
corporal. Uma perspectiva que, acreditamos, guarda interesse para praticantes
e professores de nossa época interessados em adquirir um arcabouço teórico
ao mesmo tempo tradicional e aplicável à vivência da arte.
2. O TAI-CHI-CHUAN ETIMOLÓGICO
10
Ênfase que é assumida pela própria academia, como vemos em WAYNE, P., e FUERST, M., “The
Harvard Medical School Guide to Tai Chi”, 1ª edição, Boston: Shambala, 2013, 336 p.
11
Em ordem de leitura da esquerda para a direita. Outras ordens de produção da escrita – da direita
para a esquerda ou de cima para baixo – também são possíveis.
12
Sobre as dificuldades de tradução do termo no contexto da marcialidade, ver SHAHAR, M., op. cit., pp.
165 e 166.
13
Idem, pp. 181-183.
espada reta), “ 刀 ” (“Dao”, faca/sabre/facão), “ 扇 ” (“Shan”, leque) ou “ 枪 ”
(“Chien”, lança).
14
Para essas duas acepções, ver CEINOS, P., “Manual de Escritura de los Caracteres Chinos”, 1ª edição,
Madri: Miraguano Ediciones, 2008, 381 p., p. 19 e 56; GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, 1ª edição,
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 415 p., nota 403 (p. 369); e ROBINET, I., “Wuji and Taiji”, in
PREGADIO, F., "The Encyclopedia of Taoism - Volume 1 & 2", 1ª edição, Nova Iorque: Routledge, 2008,
1551 p., p. 1059.
15
GRANET, M., op. cit., nota 403 (p. 369); no sentido de “cumeeira”, ver CHENG, A., “A História do
Pensamento Chinês”, 1ª edição, Petrópolis: Vozes, 2008, 816 p., p. 497.
Ao traduzir “Tai-Chi” literalmente, então, chegaríamos a uma expressão
indicativa de algo que é insuperável em sua grandeza. Em inglês, aliás, “Tai-
Chi” é muitas vezes traduzido como “Supreme Ultimate” (no sentido de o maior,
o melhor ou o mais rematado representante de alguma coisa) 16 . Nesse
contexto, portanto, “Tai-Chi-Chuan” poderia ser lido como a “forma de luta
insuperável em sua grandeza”, “a arte marcial invencível” ou “a mais refinada
técnica de luta”.
Tai-Chi ( 太 極 ), contudo, comporta outra leitura, mais próxima do
significado pretendido quando da construção, entre os séculos XVII e XIX, de
uma cultura do Tai-Chi-Chuan que é produto da soma entre conteúdos
corporais e não corporais. Essa leitura se relaciona com aspectos históricos e
cosmológicos chineses.
A expressão “Tai-Chi”, explica a sinóloga Isabelle Robinet, se liga a um
antigo conceito chinês relacionado ao fulcro ou ao centro do universo e da
pessoa:
16
A tradução é encontrada, por exemplo, em LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., “The Essence of
T’ai Chi Ch’uan”, reedição da 1ª edição (1985), Berkeley: Blue Snake Books, ND, 102 p., p. 99.
17
ROBINET, I., op. cit. p. 1059, tradução nossa. Mawangdui, a que se refere a citação, é um sítio
arqueológico escavado na província chinesa de Hunan no início dos anos setenta do século passado. Ele
é composto por um conjunto de tumbas de nobres da dinastia Han (Han Chao, 漢朝). Referência: BONN-
MULLER, E., “China’s Sleeping Beauty”, in Archaeology, edição de 10 de abril de 2009, disponível em
http://migre.me/sHV14 (acesso 15.01.15).
masculino18 – que regeria o universo. Chuang Tzu relaciona o conceito ao do
Tao, o princípio de que emana a realidade:
Este é o Tao; nele há emoção e sinceridade, mas ele nada faz e nem
possui corporeidade. Ele pode ser transmitido (pelo professor), mas pode
não ser recebido (por seus alunos). Ele pode ser apreendido (pela mente),
mas não pode ser visto. Ele possui suas raízes e seu solo (de existência)
em si mesmo. Antes que houvesse céu e terra, nos tempos mais remotos,
ele seguramente já existia. Dele vêm as misteriosas existências dos
espíritos, dele vem a misteriosa existência de Deus. Ele produziu o Céu;
ele produziu a Terra. Foi antes do Tai Ji e, ainda assim, não pode ser
considerado elevado; estava abaixo de todo o espaço e, mesmo assim,
não pode ser considerado profundo. Foi produzido antes do Céu e da
Terra, e, mesmo assim, não se pode dizer que existiu por muito tempo; era
mais velho que a mais remota antiguidade e, mesmo assim, não pode ser
considerado velho. Fu-Xi19 o possuía e, por meio dele, penetrou o mistério
da maternidade do tema fundamental.20
18
“O Yin e o Yang não podem ser definidos nem como puras entidades lógicas, nem como simples
princípios cosmogônicos. Não são nem substâncias, nem forças, nem gêneros. São tudo isso,
indistintamente, e nenhum técnico jamais os considera sob um desses aspectos, à exclusão dos outros.”
GRANET, M., op. cit., p. 99.
19
“(...) Fu Hsi (伏羲) foi o primeiro dos Três Imperadores, o assim chamado fundador da China, a quem
são creditados o estabelecimento do regramento real, das leis de casamento e a contagem do tempo
pela invenção de um calendário que utilizava uma corda com nós.” STEVENS, K., “Chinese Gods – The
Unseen World of Spirits and Demons”, 1 ª edição, Londres: Collins & Brown, 1997, 191 p., p. 56.
Tradução nossa para o português.
20
CHUANG TZU, “O Grande e Mais Honrado Mestre” (“大宗師”, “The Great and Most Honoured
Master”), tradução de James Legge para o inglês disponível in Chinese Text Project -
http://ctext.org/zhuangzi/great-and-most-honoured-master (acesso 06.01.16). Tradução nossa para o
português.
21
CHENG, A., op. cit., p. 497.
22
Idem.
Ao examinar “O Grande Comentário” ("Chuan" - “傳” ou “As Dez Asas”,
"Shi I" – “十翼”) – interpretação do “Livro das Mutações” (“I Ching”, “易經”)
atribuída a Confúcio –, o intelectual Shao Yong (邵雍, 1012-1077) apresenta o
Tai-Chi como a matriz da divisão do elemento original indivisível (Wuji, que
veremos no próximo item) em duas polaridades que interagem e geram as
mutações que configuram o universo:
23
Idem, p. 489.
24
Idem, p. 490.
25
A chegada dos comunistas ao poder e a fundação da República Popular da China implicaram
transformações no olhar sobre a arte marcial tradicional: em muitos casos, ela perdeu seu caráter
privado, mágico ou subversivo, e ganhou contornos mais próximos do valorizado pelo pensamento
socialista: uma arte de cunho desportivo ou voltada à saúde e, principalmente, à construção do “novo
homem chinês”. A esse respeito, ver BALLARDINI, B., "Between Sport and Ideology: the modernisation
of the Chinese Martial Arts", apud APOLLONI, Shaolin à Brasileira: estudo sobre a presença e a
transformação de elementos religiosos orientais no Kung-Fu praticado no Brasil, dissertação
apresentada ao Departamento de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2002, 221 p., p. 55.
Um conceito complementar ao que apresentamos é de Susan Foe,
tradutora e editora de uma das primeiras compilações em língua inglesa de
clássicos chineses sobre Tai-Chi-Chuan, publicado em 1975. Segundo ela,
“T’ai Chi Ch’uan é um método pelo qual assuntos externos são regulados
(autodefesa) enquanto o ch’i (respiração) é cultivado (yoga)”27.
Ao associar respiração a um princípio energético (ch’i ou chi – "氣"), esse
conceito estabelece uma conexão material entre a corporeidade e os princípios
regentes do cosmos segundo a tradição taoista. Essa aproximação, corrente
em boa parte dos textos clássicos sobre Tai-Chi-Chuan, é importante para a
compreensão do valor do Wuji no contexto desta arte marcial.
3. WUJI
26
Um conceito mais amplo de Tai-Chi-Chuan deveria incluir elementos que ganharam relevo na prática
nas últimas décadas, tais como a valoração da saúde, da sociabilidade e mesmo da possibilidade de uma
vivência religiosa de cunho pessoal pautada em leituras da religiosidade chinesa.
27
LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., op. cit., p. 09. Tradução nossa.
28
A tradução “Sem Extremidades” aparece em uma nota produzida por Tim Cartmell para a tradução da
obra do Mestre Sun Lutang, LUTANG, S., “A Study of Taijiquan by Sun Lutang”, 1ª edição, Berkeley: Blue
Snake Books, 2003, 221 p., p. 69, nota 01. As traduções “Sem Extremidades”, “Sem Fim”, “Sem
Fronteiras” ou “Infinito” são de Isabelle Robinet e aparecem em in PREGADIO, F., op. cit. p. 934.
configuração anteriores a quaisquer sistemas de medição – anteriores, mesmo,
a uma inteligência demiúrgica à moda platônica, capaz de construir valores e
classificar as coisas.
29
Ver CHENG, A., op. cit., p. 208.
30
Idem.
31
JULIAN, S., “Tao Te King. Le livre de la voie et de la vertu composé dans le VI siècle avant l'ère”, 1ª
edição, Paris: L’Imprimerie Royal”, 1842, 303 p., p. 107. Obra disponível em http://migre.me/sG5Ju
(consulta 12.01.16). Tradução nossa.
32
PIETROBON, X., “L’Équilibre des Opposés du Taiji Quan 太極拳 comme principe d’harmonisation” ("O
Equilíbrio dos Opostos do Tai-Chi-Chuan 太極拳 como princípio de Harmonização"), tese de doutorado
No Capítulo 40, Lao Tzu observa que “todas as coisas sob o Céu surgem
Dele [o Tao], existentes (e nomeadas); esta existência surge Dele [o Tao] como
não existente (e não nomeada).”33 A ideia de Wuji, nesse contexto, aparece no
ideograma Wu (無), com sentido de negação (“não existente/não nomeada”,
“não ser”), que se opõe ao ideograma You (有, ter), atribuído às coisas do
mundo.34
em Filosofia apresentada à Université Paris Ouset Nanterre La Défense, 2012, 495 p., nota 01, p. 57.
Tradução nossa.
Disp. em http://rhuthmos.eu/IMG/pdf/Xavier_Pietrobon_L_equilibre_des_opposes.pdf (c. 25.01.16)
33
LAO TZU, “Dao De Jing”, tradução para o inglês por James Legge disponível em http://ctext.org/dao-
de-jing (consulta 12.01.16). Tradução nossa.
34
Anne Cheng (op. cit., p. 499) traduz a mesma frase como “As dez mil coisas sob o Céu nascem do há
(you, 有), o há nasce do não-há.” Essa forma, menos truncada que a tradução de Legge, aproxima mais
os sentidos de materialidade e imaterialidade expressos pelo verbo "有" e pela partícula “無”.
35
ROBINET, I., op. cit., p. 1058.
36
Pesquisadores recentes colocam em questão o momento de vida e mesmo a existência de Wang
Zongyue. Segundo algumas fontes, ele teria vivido no século XIII; segundo outras, no século XV; alguns
autores tradicionais afirmam que ele teria sido aluno de Chang-San Feng, o fundador mítico do Tai-Chi-
Outra obra, a do mestre Gu Ruzhang (顾汝章, 1894 - ?)38, reproduz uma
parte do “Manual de Tai-Chi-Chuan” (“Tai-Chi-Chuan Jiang Yi”, “太极拳讲义”)
escrito por Yao Fuchun & Jiang Rongqiao e publicado em Xangai no ano de
1934. Os autores seguem a mesma linha de considerar Tai-Chi como matriz de
Wuji – eles também estabelecem uma relação importante entre os dois
conceitos e sua materialização no corpo do praticante de Tai-Chi-Chuan:
Está escrito no Livro das Mutações [“I Ching”]: “a Não Polaridade gerou a
Grande Polaridade, a Grande Polaridade. Gerou os aspectos duais, os
aspectos duais geraram as quatro manifestações e as quatro manifestações
geraram os oito trigramas.” Quando minha mente está em silêncio, sem
desejos ou preocupações, mesmo todas as coisas boas se aquietam – isto é
chamado Não Polaridade. Quando ativa, então há movimento, isso é como a
Grande Polaridade. Mas quando passiva, quando há quietude, isso é como
a Não Polaridade. Quando o movimento começa, então o aspecto ativo é
gerado. Quando o movimento alcança seu limite, então o aspecto passivo é
gerado.39
Chuan. Independente de a obra ser ou não um original ou uma falsificação, o fato é que, desde seu
aparecimento, em 1812 em um depósito de sal, ela se tornou uma referência – um legítimo clássico do
Tai-Chi-Chuan. Sobre a polêmica envolvendo o personagem, ver HU, C., “Tai Chi Chuan: an Historical
Update”, artigo publicado em Black Belt Magazine, edição de abril de 1975, 86 p., pp. 46-50.
37
Tradução para o inglês em LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., op. cit., p. 31. Texto original em
chinês disp. em http://itcadc.org/doc/itca_taichi_library_theory.pdf (c. 15.01.16).
38
RUZHANG, G., “Tai-Chi-Chuan” (“太極拳”), tradução para o inglês por Paul Brennan, agosto de 2013,
texto disponível em https://brennantranslation.wordpress.com/2013/08/20/the-taiji-manual-of-gu-
ruzhang/ (c. 18.01.16).
39
Idem, tradução nossa.
40
ROBINET, I., op. cit., p. 1059.
Cumeeira suprema!” (“wuji er taiji”, “無極而太極”) –, nasce de uma leitura do
“Tao Te Ching” que manifesta a intuição de que
41
CHENG, A., op. cit., pp. 38 e 39.
42
Sobre a escola Madhyamaka, ver, por exemplo, HAYES, R., "Madhyamaka", The Stanford Encyclopedia
of Philosophy (Spring 2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.), artigo disponível em
http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/entries/madhyamaka/, e BUSWELL, R. e LOPEZ, D., “The
Princeton Dictionary of Buddhism”, 1ª edição, Princeton: Princeton University Press, 1265 p., p. 487.
43
“Sutra do Coração”, tradução por CONZE, E., disp. em http://www.dharmanet.org/HeartSutra.htm (c.
18.01.2015).
Hexagramas 01 (“Chien” – “乾”) e 02 (“Kun” – “坤”) do “Livro das Mutações” (“I
Ching”, “易經”) (Fig. 04). Os hexagramas e os ideogramas correspondentes
traduzem uma ideia de oposição: se o primeiro indica masculino, o segundo
indicará feminino, positivo/negativo, céu/terra, ativo/receptivo, Yang/Yin.44
44
I CHING, texto original e tradução para o inglês por James Legge disponíveis em Chinese Text Project”,
http://ctext.org/book-of-changes/yi-jing (c. 20.01.16) .
conceitos cosmológicos e uma linguagem esotérica própria do universo
religioso chinês.
45
Ver, por exemplo, SAWYER, R. (tradutor), “The Seven Military Classics of Ancient China including The
Art of War”, 2ª edição, Boulder (Colorado): Basic Books, 2007, 568 p., e RUSONG, W., WANG, H., e
HUANG, Y., “Sun Zi’s Art of War and Health Care”, 1ª edição, Beijing, New World Press, 1997, 148 p.
46
Dissecando o ideograma "夫", vemos “pessoa” ("人", ren), "grande" ("大", ta, pessoa de braços
abertos) e "céu” ("天", tien, maior que grande). O traço esquerdo de "人" que se eleva acima do traço
superior horizontal de "天" mostra uma pessoa que alcançou o céu, que, na China, é visto como símbolo
da perfeição. "夫" também é interpretado como uma forma simplificada de representação do erudito
chinês com seu penteado típico e o prendedor de cabelo que o sustentava. Ver HSUAN-AN, T.,
“Ideogramas e a Cultura Chinesa”, 1ª edição, São Paulo: É Realizações, 2006, 502 p., pp. 37- 40.
cultura, velhos costumes e velhos hábitos –, fez uso extensivo de termos e
imagens originárias da antiga cosmogonia47. E ela segue firme no século XXI,
nos hábitos, alimentação, calendário e relações de gênero na China continental,
em Taiwan e nas colônias chinesas em todo o mundo.
Diante de uma presença de tal forma pervasiva, é possível compreender
porque o conjunto da arte marcial chinesa (fruto da soma de elementos
militares, corporais, medicinais, políticos, sociais, religiosos e mágicos) também
tem sua linguagem e visão de mundo tão influenciadas por elementos como
Wuji e Tai-Chi. Esse conjunto marcial, aliás, participou e participa da afirmação
desses valores na China e além das fronteiras chinesas.
Em toda a sua cor, porém, a arte marcial chinesa parece especialmente
próxima da cosmogonia e dos elementos religiosos e mágicos que dela
emergem. Um bom exemplo é o próprio Tai-Chi-Chuan, cujo nome e padrão de
movimentos (lentos e muitas vezes distantes de um pragmatismo marcial)
espelham essa afiliação.
Tamanho grau de proximidade com valores civilizacionais fundantes
poderia ser explicado em termos políticos e de busca de uma identidade
chinesa em um momento de crise nacional: o período imperial Qing (1644 –
1912), marcado tanto pelo mandato de uma dinastia não pertencente à etnia
majoritária Han (汉) - mas oriunda da Manchúria (满洲地区, Manzhou dichu) -
quanto pela ameaça das potências ocidentais e pela intercorrência de dezenas
de rebeliões, algumas de grande porte (exemplo, Rebelião Taiping: Taiping
Tienguo Yundong - 太平天国运动, 1851–1864)48.
Os monges guerreiros de Shaolin (少林寺), por exemplo, desempenharam
uma função marcial real (em especial, durante as campanhas antipirataria de
meados do século XVI, em Zhejiang), com reflexos extraordinários sobre o
imaginário rebelde chinês favorável à restauração da Dinastia Ming49. O mito
da destruição do mosteiro em 1736 e o suposto juramento de vingança feito por
clérigos sobreviventes contra os imperadores “estrangeiros” (manchus) da
47
Ver APOLLONI, R., & CHANG, C., "'Dez Mil Anos de Felicidade!': respostas da leitura textual e
imagética de um cartaz da Revolução Cultural Chinesa", artigo apresentado no Grupo de Trabalho de
Sociologia da Imagem (GT-27) do XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Curitiba, 2011,
disp. em http://migre.me/sM6Iq (c. 23.01.16).
48
Sobre a rebelião Taiping, ver SPENCE, J., “O filho chinês de Deus”, 1ª edição, São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, 413 p.
49
SHAHAR, M., op cit., pp. 75-118.
Dinastia Qing não só inspirou muitos estilos de Kung-Fu da família de Shaolin50,
como também as Tríades Chinesas (“Sociedade do Céu e da Terra”,
“Tiendihui”, “天地會”), grupos altamente ritualizados que, no século XX, dariam
origem à máfia chinesa51.
O caso do Tai-Chi-Chuan traz, ainda, um segundo elemento nacionalista.
A tese é defendida por Meir Shahar, que aponta uma diferenciação,
estabelecida por intelectuais dos séculos XVIII e XIX, entre os estilos de luta
oriundos de Shaolin – lar de uma religião “estrangeira” ou “não tão chinesa
assim”, o Budismo52 – e os nascidos em Wudang (武當山), sede do Taoísmo –
religião chinesa por excelência53.
Os estilos associados a Wudang, aliás, são chamados de “internos” (“nei
jia”, “escola interna”, “ 內 家 ”), por oposição aos estilos da família Shaolin,
chamados “externos” (“wai jia”, “escola externa”, “ 外 家 ”). Seus fundadores
lendários são, respectivamente, um personagem central do Taoísmo – o
alquimista Chang San-Feng (張三丰, que teria vivido entre os séculos IX e XII)
– e o celebrado patriarca do Zen-Budismo, Bodhidharma (बोधििमम; em chinês,
Puti Tamo - 菩提达摩), que teria vivido nas imediações do mosteiro de Shaolin
entre os anos de 520 e 527 d. C.
Uma observação quanto ao viés político da adoção dos termos “wai” (“ 外”)
e “nei” (“內”) também é feita por Douglas Wile, que percebe, em obras do
período Qing, uma associação entre o “interno” e o elemento nacional chinês, e
entre o “externo” e o estrangeiro. Por essa visão, o “interno” – no qual se situa
o Tai-Chi-Chuan – seria mais nobre porque totalmente chinês.54 A divisão vai
além da política: enquanto os estilos “externos” teriam por foco a ofensividade
50
Caso do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, do grão-mestre Chan Kowk Wai. Ver ACADEMIA SINO-
BRASILEIRA DE KUNG-FU, "Kung Fu – versão curta de uma história muito longa", São Paulo, 1998, 26 p.
51
MURRAY, D., "The Origins of the Tiandihui – The Chinese Triads in Legend and History", 1ª edição,
Stanford: Stanford University Press, 1994, 350 p.; TER HAAR, B., “Ritual & Mythology of the Chinese
Triads”, 1ª edição, Leiden: Brill´s Scholars List, 1997, 577 p.
52
O primeiro mosteiro budista chinês, o Templo do Cavalo Branco (“Bai Ma Si”, “白馬寺”) foi fundado
no ano de 64 d. C. em Henan. Com o passar do tempo, o Budismo incorporou elementos da religiosidade
chinesa (o Zen é um exemplo disso) e cedeu elementos ao Taoísmo e ao Confucionismo. Uma presença
tão antiga e tão profundamente entranhada na espiritualidade chinesa, contudo, não foi suficiente para
desvestir o Budismo, junto a certos círculos nacionalistas do período Qing, do rótulo de “religião
estrangeira”.
53
SHAHAR, M., op cit., pp. 263-269.
54
WILE, D., “Lost T’ai-chi Classics from de Late Ch’ing Dinasty”, 1ª edição, 1996: State University of New
York Press, 1996, 233 p., p. 26.
e a força muscular, os “internos” estariam ancorados no cultivo e controle da
energia universal, “Chi” ("氣"), e da força interna, “Jin” ("勁").
Esse é o argumento da obra que estabeleceu a diferenciação estilos
externos x estilos internos e, com o tempo, conferiu ao Tai-Chi-Chuan uma
dimensão ainda mais profundamente taoista – o “Epitáfio de 1669 para Wang
Zhengnan” (“Wangjangnan Muziming”, “王征南墓志銘”), escrito pelo intelectual
Huang Zongxi (黄宗羲, 1610 – 1695):
55
ZONGXI, H., “Epitáfio de 1669 para Wang Zhengnan”, in SHAHAR, op. cit., p. 263.; a mesma obra
aparece traduzida em WILE, D., “T’ai Chi Ancestors – The Making of na Internal Martial Art”, 1ª edição,
Nova Iorque: Sweet Ch’i Press, 1999, 224 p., p. 53.
56
Machados, espadas retas, lanças, sabres e bestas e lanças fazem parte do arsenal sínico desde, pelo
menos, o período Zhou (1046 a 256 a. C.), quinze séculos antes do surgimento da moderna arte marcial
chinesa. Exemplos podem ser vistos no “Exército de Terracota” encontrado no túmulo do imperador Qin
Shi Huang em Xian (西安), Shaanxi (陕西). Um catálogo de armas chinesas foi publicado por MING, Y.,
“Ancient Chinese Weapons – A Martial Artist´s Guide”, 2ª edição, New Hampshire: YMAA Publication
Center, 142 p. Ver, também, PINKOWSKI, J., "Chinese terra cotta warriors had real, and very carefully
made, weapons", in The Washington Post, 26.11.12, disp. em http://migre.me/sKWmm (c. 21.01.16).
fruto, também, de outros grupos sociais que, de uma forma ou outra, estiveram
envolvidos com episódios de violência em larga escala. Um bom exemplo é o
dos monges de Shaolin, que, mesmo descumprindo o primeiro dos Cinco
Preceitos de sua religião (“Abster-se de intenções prejudiciais”)57, tornaram-se
célebres por suas habilidades de combate.58
Essa “dispersão marcial” poderia ser explicada, entre outros motivos, pela
desorganização institucional do período final da Dinastia Ming (século XVI), que
aumentou os níveis de violência e levou populações e poderes locais a
constituírem milícias de autodefesa; pode ser explicada, também, pela
popularidade da chamada cultura “Wuxia” (literalmente, “herói marcial”, “武俠”),
que desde muito cedo promoveu a valorização da figura do herói justiceiro
errante entre as classes letradas e iletradas, na literatura, ópera e histórias
contadas nas praças59; ela encontra justificativa, ainda, na exclusão de uma
elite étnica Han do poder quando da ascensão da Dinastia Qing, fato que
alimentou ressentimentos e engendrou movimentos de resistência e rebelião.
Douglas Wile localiza três cenários das artes marciais chinesas, situando-
os no período que começa durante a dominação mongol (Dinastia Yuan: Yuan
Chao, 元朝, 1271-1368) e avança pelas dinastias Ming (Ming Chao, 明朝) e
Qing (Qing Chao - 清朝, 1368 – 1912): o primeiro é o da classe militar, berço de
entusiastas e exegetas das formas de combate; o segundo é o do ambiente
teatral – da ópera, saltimbancos e contadores de histórias –, responsável pela
fusão, replicação e criação de conhecimentos em termos orais-corporais; e o
terceiro é o privado ou dos clãs, que, em seus esforços de defesa, reforço dos
laços familiares e transmissão de valores, também apelavam a práticas de
adestramento corporal60. A religiosidade, por certo, permeou os três ambientes,
57
BUSWELL, R. e LOPEZ, D., "Ahimsā" (verbete), op. cit, p. 21.
58
SHAHAR, M., op. cit.
59
APOLLONI, R., “Wuxia”, caderno especial de cultura publicado pelo jornal Gazeta do Povo, de Curitiba
(PR), em 27.05.2011. Matérias disponíveis em http://migre.me/sObke (c. 26.01.16).
60
Meir Shahar se refere ainda a uma categoria mais ampla, que englobaria artistas de rua e outros
grupos de pessoas caracterizados pelo desenraizamento: “Artistas marciais do período Ming tardio
estavam normalmente, assim, na estrada, ou, como diriam os chineses, ‘na água’. Autores dos séculos
XVI e XVII se referem a artistas marciais no contexto de ‘rios-e-lagos’ (jianghu), termo que designava a
todos aqueles que possuíam uma vida ‘transitória’: atores, caixeiros viajantes, caçadores de fortuna e
semelhantes”. SHAHAR, M., "Evidências da Prática Marcial em Shaolin durante o Período Ming", art.
publicado em REVER - Revista de Estudos da Religião, nº 04, 2003, pp. 93-144, p. 110. Disp. em
http://www.pucsp.br/rever/rv4_2003/p_shahar.pdf (C. 12.12.16).
com especial vigor o segundo e o terceiro, menos sujeitos a um regramento
institucional e mais próximos de comportamentos e práticas de cunho sectário61.
A força de cada um desses cenários esteve relacionada à configuração
política: em períodos de dominação estrangeira (mongol e manchu), quando as
forças militares nacionais (de etnia Han) foram desmobilizadas ou proibidas,
ganharam importância as práticas marciais artísticas e familiares, mais
estilizadas e menos visíveis aos olhos do poder institucional.
61
Utilizamos o termo “sectário”, neste artigo, no sentido dado por Meir Shahar, de movimentos
chineses associados a crenças religiosas, práticas mágicas e ação política armada.
62
Essa datação é confirmada pela descoberta, no já referido sítio arqueológico de Mawangdui, de um
rolo de seda com imagens de pessoas fazendo exercícios de Daoyin (o chamado “Daoyin Tu”, ”导引图”
ou “Diagrama de Daoyin”). Essas práticas, aliás, encontram semelhança com a de exercícios de Chi Kung
(práticas respiratórias mais recentes) praticados atualmente. Imagem do “Daoyin Tu” no site do Museu
Provincial de Hunan, China: http://migre.me/sNwz8 (c. 25.01.16).
63
DESPEUX, C., La Moëlle du phénix rouge : santé et longue vie dans la Chine du xvie siècle, Paris, Guy
Trédaniel, coll. “Arts martiaux”, 1990, 371 p., pp. 38-39, citado por PIETROBON, X., op. cit., nota 4 (p.
273). Tradução nossa para o português.
ser lido tanto em termos de respiração quanto em termos de circulação da
energia), é significativa. Nas modernas academias, aliás, muitas vezes as aulas
de Tai-Chi-Chuan começam com práticas de Chi Kung (气功, “Trabalho de
Energia” - exercícios respiratórios)/Daoyin.
Sobre esse contato entre marcialidade e “corpo-espiritualidade”, vale citar,
também, o primeiro estudioso verdadeiramente moderno das artes marciais
chinesas, Tang Hao (唐豪, 1887-1959). Referindo-se especificamente à gênese
do Tai-Chi-Chuan, ele observou que:
64
HAO, T., e LIUXIN, G., “Taijiquan yanjiu”, pp. 5-6, in SHAHAR, op. cit. pp. 217 e 218. Grifo nosso.
65
DAVIS, B., op. cit., pp. 03-22.
patriarca do estilo Yang; e Yang Luchan em relação a Wu Yuxiang ( 武禹
襄,1812-1880), que viria a se tornar patriarca do estilo Wu (Hao)66.
O fim da transmissão exclusiva entre membros de um mesmo clã e a
transformação da prática em um ativo econômico – pela abertura de escolas e
pelo ensino a oficiais de governo e particulares - possibilitaram a popularização
da arte marcial na China e, décadas mais tarde, no Ocidente.
A institucionalização do Tai-Chi-Chuan, em especial quando de sua
valorização pela elite chinesa Qing – Yang Luchan tornou-se instrutor da Corte
Imperial por volta de 1850 –, também implicou o surgimento de uma tradição
literária relacionada à prática, algo comum no conjunto das artes marciais
chinesas desde o século XVI67.
Essa tradição foi formada por obras que traziam detalhes sobre aspectos
práticos (técnicas, diagramas de rotinas) e teóricos (fundamentos históricos,
associação aos princípios cosmogônicos, relações com a religiosidade,
elementos medicinais).
É interessante observar, com olhos hoje, a liberdade com que esses
antigos textos foram repetidamente incorporados a novos trabalhos, obras
publicadas até os anos trinta do século XX68. Isso talvez possa ser explicado
por uma disposição da cultura tradicional chinesa, de base confucionista, de
valorizar a tradição em detrimento da afirmação da própria autoria. Por essa
lógica, o melhor produto não é o que inova, mas o que organiza o passado,
venera mestres fundadores e soma elementos para uma compreensão mais
profunda do tema que é objeto de interesse.69
Esse “encadeamento bibliográfico” contribuiu para a consolidação de um
cânone de Clássicos do Tai-Chi-Chuan que, nas últimas décadas, vem sendo
66
Três dos cinco estilos clássicos ou canônicos de Tai-Chi-Chuan.Ver o primeiro parágrafo da Introdução
deste artigo.
67
Ver, a esse respeito, KENNEDY, B., e GUO, E., “Chinese Martial Arts Training Manuals – A Historical
Survey”, 1ª edição, Berkeley: Blue Snake Books, 2005, 328 p.
68
Ela pode ser confirmada, por exemplo, pela leitura das obras traduzidas para o inglês por Paul
Brennan e publicadas em “Brennan Translation”, disponível em
https://brennantranslation.wordpress.com (c. 29.01.16)
69
“No entendimento chinês, os textos, embora não mudem – sua forma é idealmente inviolável -, estão
sempre revelando uma nova realidade.” - comentário de Giorgio Sinedino ao aforismo 6.25 (Capítulo 06:
“Yongye – Elogio e Crítica II”) dos “Analectos”. In CONFÚCIO, “Os Analectos”, 1ªedição, São Paulo:
Editora Unesp, 2011, 607 p., p. 206.
traduzido para a língua inglesa. A atual extensão dessa biblioteca, como
observa a tradutora Barbara Davis, porém, é problemática:
70
DAVIS, B., “The Taijiquan Classics – an Annotated Translation”, 1ª edição, Berkeley: Blue Snake Books,
2004, 212 p., p. 30.
71
DAVIS, B., op. cit.; LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., op. cit., WILE, D., op. cit.
72
Todos os textos transcritos são de nossa tradução.
73
WILE, D., “T’ai Chi’s Ancestors…”, op. cit., pp. 53-57.
Peng (掤, rebater), lu (履, recuar), chi (挤, empurrar), an (按, pressionar), tsai
(采, colher), lieh (列, separar), tsou (肘, cotovelos) e kao (靠, ombros) são os
Oito Trigramas [Pa Kua, 八卦].
Passo à frente [Jinbu, 进步], passo de retorno [Tuibu, 退步], olhar para a
esquerda [Zuogu, 右盼], olhar para a direita [Youpan, 左顾] e o equilíbrio
central [Zhongding, 中定] são os cinco elementos [Wuxing, 五行].
Peng, lu, chi e an são chien [masculino, ativo], kun [feminino, receptivo], li
[离, trigrama do “I Ching” – “☲” associado ao fogo] e as quatro direções
cardeais.
Avançar, recuar, esquerda, direita e equilíbrio central são metal, água, fogo
e terra [os cinco elementos do universo taoista]74
74
LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., op. cit., p. 27.
75
Uma lista completa das relações entre posições, elementos e trigramas pode ser encontrada em
CHING, T., "13 Postures (十三式)", in The Ultimate Fist, disp. http://www.theultimatefist.com/taijiquan-
theory/13-postures (c. 30.01.16).
76
DAVID, B., op. cit., p. 77.
77
LO, B., INN, M., FOE, S., e AMACKER, R., op. cit., p. 43.
V. “Canção das Treze Posturas” (“Shisan shi ge”, “十三式歌”), anônimo:
“Tenha consciência das mutações substanciais e insubstanciais; o Chi
(respiração) se espalha por tudo sem impedimentos”. 78
82
Idem, pp. 84-89.
83
LUTANG, S., “A Study of Taijiquan by Sun Lutang”, op. cit. pp. 69-71.
A forma é ilustrada iconograficamente pelo próprio Sun Lutang da
seguinte maneira (Figura 05):
Comece olhando para frente. O corpo está reto, com as mãos tombadas ao
lado do corpo. Os ombros pendem naturalmente; não use força para
empurrar os ombros para baixo. [Os calcanhares estão unidos e os] dedos
dos pés estão separados em um ângulo de noventa graus. Os dedos não
devem se prender ao chão com força. Os calcanhares não devem pisar e
nem estar torcidos com força. Permaneça como se você estivesse apoiado
na areia. Não há controle consciente das mãos e dos pés. Seu corpo e sua
mente ainda não estão conscientes de quaisquer movimentos de abertura e
fechamento, e não há tentativa consciente de elevação do topo da cabeça.
Permaneça e flua com o que ocorre naturalmente. Internamente, o coração
(mente) está “vazio” de qualquer pensamento controlado. Externamente,
não há foco visual consciente. Não há, ainda, qualquer traço de
movimento.84
84
Idem, 72.
Como céu, ela se manifesta como destino. Como homem, manifesta-se
como a natureza humana. Como objetos inanimados, manifesta-se como
princípio de ordem. Como técnicas marciais, manifesta-se como a Escola
Interna [Neija] das artes marciais. Ainda que apareça sob diferentes nomes
e diferentes manifestações, o princípio permanece o mesmo. A esse
princípio nos chamamos “Tai-Chi” (a interação mútua dos extremos).
Os antigos diziam: “De Wuji nasce Tai-Chi”. Esse princípio não é exclusivo
das artes marciais. Esse mesmo conceito foi descrito pelos sábios quando
eles falavam acerca da moderação e de manter a medida média [das coisas].
Os budistas se referem à mesma ideia quando falam de “iluminação”. Os
taoistas se referem a esse conceito como “Espírito do Vale” [“Tao-Te-Ching”,
Capítulo 06]. Ainda que o conceito seja conhecido por diferentes nomes,
todos eles se referem a permitir que o qi flua suavemente. As artes marciais
internas e os métodos dos taoistas [dentre os quais se situa o Chi Kung] são
por dentro e por fora. Esse princípio (“De Wuji nasce Tai-Chi” possui
aplicações que vão além do mero fortalecimento do corpo e ampliação da
vida.85
85
Idem, pp. 73-74.
86
Idem, p. 75.
Fig. 06 – Postura de Tai-Chi.
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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leitura textual e imagética de um cartaz da Revolução Cultural Chinesa", artigo
apresentado no Grupo de Trabalho de Sociologia da Imagem (GT-27) do XV
Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, Curitiba, 2011, disp. em
http://migre.me/sM6Iq (c. 23.01.16).
88
O quadro não é muito diferente na própria China, onde, nos últimos sessenta anos (quando da
publicação da primeira rotina moderna de Tai-Chi, a chamada “Forma de Pequim em 24 Movimentos”),
o Tai-Chi-Chuan foi desvestido de seus antigos elementos doutrinários e passou a ser ensinado como
prática voltada à saúde e como esporte de competição.
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de abril de 2009, disponível em http://migre.me/sHV14 (acesso 15.01.15).
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An (按) - Àn
Bai Ma Si (白馬寺) - báimǎ sì
Bodhidharma (菩提达摩) - Pútí dá mó
Chang San-Feng (張三丰) - zhāngsānfēng
Chen (陳) - chén
Chen Changxing (陳長興) - chén zhǎngxìng
Chi (挤) - jǐ
Chi (氣) – qì
Chi Kung (气功) - Qìgōng
Chuan (傳) - Chuán
Da Zongshi (大宗師) - Dà zōngshī
Daiheng (太恆) - tài héng
Dantien (丹田) - Dāntián
Dao (刀) - dāo
Daoyin (導引) - dǎo yǐn
Dashou Ge (打手歌) - dǎshǒu gē
Fu (夫) - fū
Fu Hsi (伏羲) - fúxī
Gan (乾) - gàn
Gu Ruzhang (顾汝章) – gùrǔzhāng
Han (汉) - hàn
Han Chao (漢朝) - Hàn cháo
Hebei (河北) - héběi
Henan (河南) - hénán
Hsin (心) - xīn
Hsing I Chuan (形意拳) - Xíng yì quán
Huang Zongxi (黄宗羲) - huángzōngxī
Huangji (皇極) - huáng jí
I Ching (易經) - yì jīng
Jian (劍) - jiàn
Jin (勁) - jìn
Jinbu (进步) - Jìnbù
Jingwu (精武) - jīng wǔ tǐyùhuì
Jinzheng - (勁整) - jìn zhěng
Jixing (極星) - jí xīng
Kao (靠) - kào
Kun (坤) – kūn
Lao Tzu (老子) - Lǎozi
Li (离) – lí
Li Yishe (李亦畬) - Lǐyìshē
Lieh (列) - liè
Lu (履) – lǚ
Manchúria (满洲地区) - Mǎnzhōu dìqū
Mawangduei (馬王堆) - Mǎwángduī
Mei Hua Chuan (梅花拳) - méihuā quán
Ming Chao (明朝) - Míng Cháo
Nan Chuan (南拳) - nán quán
Nei jia (內家) - nèi jiā
Neipian (內篇) - nèi piān
Pa Kua (八卦) – bāguà
Pa Kua Zhang (八卦掌) - bāguà zhǎng
Peng (掤) - Bīng
Qien (枪) – qiāng
Qilian (氣斂) - qì liǎn
Qin Shi Huang (秦始皇) - Qínshǐhuáng
Qing Chao (清朝) - Qīng Cháo
Ren (人) – rén
Shaanxi - (陕西) Shǎnxī
Shan (扇) - shàn
Shao Yong (邵雍) - Shào Yōng
Shaolin Chuan (少林拳) - shàolínquán
Shaolin Si (少林寺) – shàolínsì
Shenju (神聚) - shén jù
Shenling - (身灵) - shēn líng
Shi I (十翼) - shí yì
Shisan Shi (十三式) - shísān shì
Shisan shi ge (十三式歌) - shísān shì gē
Shisan shi xinggong win jue (十三势行功心解) - shísān shì xíng gōng xīn jiě
Song Chao (宋朝) - Sòng cháo
Sun (孫氏) - sūn shì
Sun Fuquan (孫福全) - Sūn fúquán
Sun Lutang (孫祿堂) – Sūnlùtáng
Sunshi Tai-Chi-Chuan Jiouba Shi (孫式太極九八式) - Sūn shì tàijí jiǔbā shì
Sunshi Tai-Chi-Jian leoushi ershi (孫式太極劍六十二式) - Sūn shì tàijí jiàn liùshí'èr shì
Ta (大) - dà
Tai-Chi (太極) - tàijí
Tai-Chi-Chuan - (太極拳) - tàijí quán xué
Tai-Chi-Chuan Jiang Yi (太极拳讲义) - tàijí quán jiǎngyì
Tai-Chi-Chuan Jing (太極拳經) - tàijí quán jīng
Tai-Chi-Chuan Lun (太極拳論) - tàijí quán lùn
Tai-Chi-Chuan Lun (太極拳論) - tàijí quán lùn
Tai-Chi-Chuan Sun (孫氏太極拳) - sūn shì tàijí quán
Tai-Chi-Chuan Xué (太极拳学) - tàijí quán xué
Tai-Chi-Chuan Xué (太极拳学) - tàijí quán xué
Taijitu Shuo (太極圖說) - tàijí tú shuō
Taiping Tienguo Yundong (太平天国运动)
Tao (道) - dào
Tao Te Ching (道德經) - dàodé jīng
Tazongshi (大宗師) - dà zōngshī
Tien (天) - tiān
Tsai (采) - cǎi
Tsou (肘) - zhǒu
Tuibu (退步) - tuìbù
Wai jia (外家) - wài jiā
Wang Zongyue (王宗岳) – wángzōngyuè
Wangzhengnan muzhi ming (王征南墓志銘) - wángzhēngnán mùzhì míng
Wenhua dageming (文化大革命) - Wénhuà dàgémìng
Wu (吳氏) - wú shì
Wu (武) - wǔ
Wu Yuchiang (武禹襄) – Wǔyǔxiāng
Wu Yuxiang (武禹襄) Wǔyǔxiāng
Wu Zi Jue (五字诀) - wǔ zì jué
Wu/Hao (武/郝氏) - wǔ/hǎo shì
Wu-Chi (無極) - wújí
Wudang (武當山) - wǔdāng shān
Wuhang (五行) - wǔháng
Wuji er taiji (無極而太極) - wújí ér tàijí
Wuxia (武俠) – wǔxiá
Xian (西安) - Xī'ān
Xinjing (心静) – xīnjìng
Xu Shichang (徐世昌) - Xú Shìchāng
Yang (楊) - yáng
Yang (楊氏) - yáng shì
Yang (陽) - yáng
Yang Cheng-Fu (楊澄甫) - yángchéngfǔ
Yang Luchan (楊露禪) - yánglùchán
Yangchgngfu tai-chi-chuan shuo shi yao (杨澄浦太极拳说十要) - yángchéngpǔ tàijí quán shuō
shí yào
Yin (陰) - yīn
You (有) - yǒu
Youpan (左顾) - yòu pàn
Yuan Chao (元朝) - Yuán Cháo
Zanguo Shidai (戰國時代) - Zhànguó shídài
Zhongding (中定) - zhōng ding
Zhou Chao (周朝) - Zhōu cháo
Zhou Dunyi (周敦頤) – Zhōudūnyí
Zonguan Pai (中觀派) - Zhōngguān Pài
Zou jia dashou xinggong yao yan (走架打手行功要言) - zǒu jià dǎshǒu xíng gōng yào yán
Zuogu (右盼) - zuǒ gù