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O BRASIL DOBROU À DIREITA: UMA SOCIOLOGIA

resenha
POLÍTICA DO VOTO BOLSONARISTA EM 2018

BRAZIL TURNED RIGHT: A POLITICAL SOCIOLOGY OF THE


BOLSONARIST VOTE IN 2018

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em


2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, 142 p.

Palavras-chave: Eleições presidenciais (Brasil, 2018). Conservadorismo. Extrema-direita.


Comportamento eleitoral. Bolsonarismo. Antipetismo.

Saulo Vinicius Souza Barbosa*

“Vertigem” é a palavra que melhor de- bolsonarismo e de sua ascensão. Por con-
fine a sensação causada pela vitória do ul- siderar que “a vitória de Bolsonaro é o fei-
traconservador Jair Messias Bolsonaro nas to mais impressionante da história das elei-
eleições presidenciais brasileiras de 2018. ções brasileiras” (p. 11), o autor, que é cien-
Passados mais de cinco anos de sua eleição, tista político e professor da Fundação Ge-
muitos ainda olham atônitos para aquele túlio Vargas (FGV), mobiliza sua expertise
pleito, em busca de respostas para as ques- de mais de vinte anos de estudo de siste-
tões como e por que Bolsonaro tornou-se mas políticos e eleições para entender como
presidente do Brasil. Em meio a esse debate, O Brasil dobrou à direita.
ainda bastante acalorado, prenhe de redu- Em sua perspectiva, qualquer um que
cionismos e simplificações, O Brasil dobrou olhasse para o Brasil no começo de 2018
à direita: uma radiografia da eleição de Bol- não teria muita dúvida em classificar a vi-
sonaro em 2018, de Jairo Nicolau (2020), é tória do então deputado federal Jair Mes-
uma obra sóbria e rigorosa. Indispensável, sias Bolsonaro, como improvável. Ape-
portanto, à compreensão do fenômeno do sar de parecer bem colocado nas pesqui-

* Universidade Federal de Sergipe (UFS), SE, Brasil. E-mail: saulo.vinicius93@gmail.com ORCID: https://
orcid.org/0000-0002-4938-9753.

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sas eleitorais, Bolsonaro era visto como um so, pode-se falar de uma clara guinada à di-
“cavalo paraguaio” por analistas e políticos reita do eleitorado naquele pleito. Mas, “afi-
brasileiros. Em seu sétimo mandato conse- nal, quem votou em Bolsonaro?” (p. 17). É
cutivo na Câmara Federal, tendo passado essa pergunta que Jairo Nicolau quer res-
por oito partidos, todos ligados ao chama- ponder com seu livro.
do Centrão, Bolsonaro era um parlamentar Adotando uma abordagem extensamen-
de pouca expressividade, “do baixo clero” te quantitativa, Nicolau realiza uma socio-
– como se dizia. Historicamente compro- logia do voto bolsonarista ao traçar o per-
metido com a representação das corpora- fil sociodemográfico dos eleitores do PSL e,
ções militares, de onde é originário, ele no- por contraste, do PT no segundo turno de
tabilizou-se nacionalmente pela promoção 2018. Para tanto, utiliza-se principalmente
de uma pauta ultraconservadora. Era vis- de dois tipos de dados: os macrodados dos
to com reserva pelos seus pares e, para con- resultados oficiais das eleições, divulgados
correr à presidência, filiou-se a um partido pelo TSE, e do censo populacional do IB-
minúsculo – o PSL. GE, que consideram o conjunto da popu-
No contexto das eleições de 2018, con- lação estudada; e os microdados, baseados
forme Nicolau, Bolsonaro não reunia, ne- em pesquisas amostrais, como as pesquisas
nhum dos recursos que, desde a redemocra- eleitorais do Ibope e do DataFolha bem co-
tização, foram decisivos nas eleições pre- mo do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) –
sidenciais brasileiras: estrutura partidária, survey pós-eleitoral realizado desde 2002
tempo de propaganda eleitoral, alianças pelo CESOP (UNICAMP).
partidárias amplas, palanques estaduais por Esse material é analisado, basicamente,
todo o país, dinheiro para a campanha. No através de análises de frequências e regres-
entanto, venceu as eleições com folga (48% sões logísticas, com a qual o autor analisa
dos votos válidos no primeiro turno e 55% a interação de duas variáveis independen-
no segundo turno). Mais que isso, hipertro- tes sobre o voto (e.g. como religião e origem
fiou a minúscula bancada do PSL, que saiu regional influenciou o voto em Bolsonaro
de 1 para 52 deputados. Fora isso, não fo- ou Haddad). Vale destacar que esse proce-
ram poucos os candidatos de outros parti- dimento é aplicado a quase todas as vari-
dos que pegaram carona na onda Bolsona- áveis analisadas na obra. Isso possibilita a
ro, no segundo turno, para se eleger. Bol- elaboração de um quadro muito mais nu-
sonaristas de última hora, como João Dó- ançado das eleições de 2018, destacando o
ria (PSDB), Romeu Zema (NOVO), Eduardo trabalho em relação aos estudos eleitorais
Leite (PSDB), Wilson Witzel (PSC), para fi- mais tradicionais. Além disso, Nicolau põe
car só nos governadores, associaram suas suas análises em perspectiva histórica, com-
candidaturas à de Bolsonaro e se beneficia- parando o voto bolsonarista com o voto no
ram disso. O autor argumenta que tudo is- PSDB nas eleições presidenciais de 2010 e
so ocorreu na contramão de qualquer ma- 2014, quando os candidatos foram, respec-
nual de campanha: não houve, por parte de tivamente, José Serra e Aécio Neves (ambos
Bolsonaro, qualquer moderação do seu dis- derrotados por Dilma Rousseff, do PT) . Com
curso, qualquer tentativa de ganhar o voto isso, ele consegue não só perceber continui-
do centro político. Ao contrário, foi o centro dades significativas no eleitorado de direita,
que foi ao encontro de Bolsonaro e, por is- mas, sobretudo, apontar rupturas relevan-

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tes que permitem diferenciar o bolsonaris- a partir de sondagens de opinião. Nicolau
mo no eleitorado brasileiro. mostra que, desde então, o PT consagrou-se
O formato da obra foge ao estilo acadê- o partido com maior identificação entre os
mico tradicional, pois, como, ressalta o pró- eleitores (petismo). Em contrapartida, tor-
prio autor, a intenção do livro é ir além dos nou-se aquele com maior rejeição (antipe-
muros da academia e do círculo dos espe- tismo). Em 2018, segundo o autor, essa divi-
cialistas. Nesse sentido, Nicolau (p. 13) ca- são ganhou ainda mais relevância. No séti-
racteriza sua obra como “um ensaio basea- mo capítulo, “As redes sociais”, o tema cen-
do em dados” que combina a escrita em pri- tral é a relação entre voto e uso de mídias
meira pessoa, análises estatísticas, narração sociais. A campanha de Bolsonaro fez uso
de anedotas e uso frequente de linguagem extensivo dessas plataformas. Nicolau mos-
figurada. O resultado disso é uma obra le- tra que isso teve um peso relevante no vo-
ve, de linguagem despojada e acessível, di- to bolsonarista, em especial, entre usuários
vidida em nove capítulos curtos1 e objeti- de Facebook e WhatsApp. Nos dois últimos
vos, recheados com gráficos e tabelas bas- capítulos, Jairo Nicolau reorienta o foco de
tante elucidativos e didáticos. sua análise: dos indivíduos, passa ao terri-
Os capítulos foram assim distribuídos: o tório. Com base nos resultados oficiais das
primeiro – “As regras e a evolução da cam- eleições de 2018, o autor escrutina a geo-
panha eleitoral” –, analisa dois processos: grafia do voto considerando, primeiramen-
as mudanças na legislação eleitoral que te, “Regiões e estados” e, por fim, os “Mu-
passaram a vigorar em 2018, tópico que, nicípios”. Neste último, as municipalidades
conforme o autor, muitas vezes foi ignora- são consideradas em duas dimensões, tama-
do pelos analistas, e o desenrolar da cam- nho populacional e nível de escolaridade.
panha dos dois candidatos nos últimos 45 Apesar de ser uma obra curta (apenas
dias que antecederam a votação do segun- 142 páginas), O Brasil dobrou a direita é
do turno. Os quatro capítulos seguintes – extremamente rica em resultados – razão
“A escolaridade”, “Gênero”, “Idade” e “Re- pela qual, opto por deixar à provável leito-
ligião”, nessa ordem –, como se vê, partem ra ou leitor o convite de conferi-los na in-
de perguntas clássicas dos estudos de com- tegra. Destaco apenas alguns dos que julgo
portamento eleitoral e baseiam-se, princi- mais importantes. Em primeiro lugar, Jai-
palmente, nas pesquisas de opinião do Ibo- ro Nicolau mostra que Bolsonaro quebrou
pe e do Datafolha. um padrão histórico de vitórias que pauta-
Dois fenômenos foram extremamente ram as eleições presidenciais desde a rede-
relevantes no pleito de 2018: a atitude do mocratização; venceu com pouco tempo de
eleitorado em relação ao Partido dos Traba- TV e rádio, sem apoio de palanques estadu-
lhadores, e o crescente uso político de mí- ais e gastando pouco mais que um candida-
dias sociais. “Petismo e antipetismo”, o sex- to eleito para o cargo de deputado federal.
to capítulo, analisa a relação do eleitora- Em segundo lugar, a televisão deixou de ser
do brasileiro com o PT desde os anos 1990, o recurso mais importante na disseminação

1. Salvo o primeiro capítulo, que faz um histórico das regras eleitorais, cada capítulo compreende em tor-
no de dez páginas. Além dos noves capítulo centrais, o livro é composto de introdução, considerações fi-
nais e um brevíssimo anexo metodológico.

O Brasil dobrou à direita, de Jairo Nicolau: uma sociologia política do voto bolsonarista em 2018 195
de uma candidatura presidencial, dando lu- ta, requer que pensemos em termos daquilo
gar às mídias sociais, especialmente ao Fa- que Becker (2008, p. 90-95) chama de “cau-
cebook e ao WhatsApp. Outros dois resul- salidade multiplicativa”. Nessa perspectiva,
tados importantes têm a ver com gênero e o pleito de 2018 deve ser analisado a par-
religião: Bolsonaro teve voto de 70% dos tir das relações entre um conjunto de va-
evangélicos (segmento que já esteve com o riáveis consideradas independentes e que,
PT) e da maioria dos homens, independen- combinadas, viabilizaram a vitória de Bol-
temente do nível de escolaridade. Até en- sonaro. Não se trata, portanto, de se esta-
tão, como o autor demonstra, o gênero não belecer porque isso necessariamente acon-
era uma variável que distinguia o eleitor do teceu, mas como foi que se tornou possível.
PT de do PSDB. O Brasil dobrou à direita constitui um
No quesito escolaridade, Bolsonaro ven- excelente ponto de partida para tanto. É fa-
ceu em todos os níveis, do fundamental ao to que Jairo Nicolau nos mostra muito bem
superior. Houve, aqui, como mostra o au- quem foram os eleitores de Bolsonaro em
tor, uma inversão de um padrão de votação 2018. Ainda assim, há dimensões importan-
observado em 2010 e 2014, onde o PT do- tes a serem entendidas. Por basear-se, como
minou os segmentos menos escolarizados vimos, em dados oficiais e pesquisas de opi-
(fundamental e médio) e o PSDB, os eleito- nião, o trabalho tem como limite a dispo-
res com ensino superior. Tal constatação é nibilidade e a consistência desse material. É
importante porque houve um aumento do notável, nesse sentido, a ausência de capítu-
relativo das frações mais escolarizadas do los relativos à renda e à identidade étnico-
eleitorado, que está relacionado com a ex- -racial, que ocorre, segundo o autor, devido
pansão do ensino médio e do superior ope- a inconsistências nos dados relativos a essas
radas pelos governos do PT. No entanto, es- duas varáveis. Menos que um problema, is-
se eleitor, na medida em que se escolarizou, so apenas coloca um limite – perfeitamente
descolou-se do PT. Por quê? É uma ques- justificável, saliente-se. Para usar uma me-
tão a ser investigada. Para finalizar, o livro táfora evocada pelo próprio autor, o livro
de Jairo Nicolau aponta ainda uma relação procura entender o voto bolsonarista apenas
entre bolsonarismo e urbanização. Como aonde a luz desses dados ilumina bem.
constata o autor, Bolsonaro venceu em mu- Não obstante, a eleição de 2018 é uma
nicípios mais populosos e mais escolariza- rua permeada de muitas zonas de escuridão
dos, principalmente na região Sudeste. Ha- e penumbra. É preciso que pesquisadoras e
ddad, por sua vez, predominou em cidades pesquisadores se aventurem nessas sendas
menos populosas e menos escolarizadas, so- munidos de outras abordagens e técnicas
bretudo no Nordeste. de pesquisa que, deixando emergir o “pon-
Esse e os demais resultados que o livro to de vista do nativo”, possibilite compre-
traz nos dão a ideia de que a vitória de Bol- ender o bolsonarismo2 em seus próprios ter-
sonaro em 2018 não pode ser explicada por mos. Isso, é claro, sem deixar de olhar para
uma lógica de causalidade estreita. A simul- a big picture apresentada por Nicolau. So-
taneidade de processos que envolveram as mente com essa dialética de luz e sombra,
eleições de 2018, que Nicolau nos apresen- poderemos tornar cada vez mais inteligível

2. Ou, o que acredito ser mais provável, os bolsonarismos.

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o que aconteceu em 2018 e, talvez, expur-
garmos a sensação de vertigem que ainda
vivenciamos.

Referências

BECKER, Howard. Segredos e truques da pesqui-


sa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma


radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio
de Janeiro: Zahar, 2020, 142 p.

Recebido em: 15/02/2022


Aprovado em: 12/01/2023

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