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EDIÇÃO 146 | NOVEMBRO_2018

questões eleitorais II

O TRIUNFO DO BOLSONARISMO
Como os eleitores criaram o maior partido de extrema direita da história do país
JAIRO NICOLAU
Até o início do horário eleitoral, a visão dominante sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos
anteriores. Nem PT nem PSDB acreditavam no fenômeno Bolsonaro LAERTE_2018

N
o sábado, véspera do primeiro turno das eleições, fui a uma festa de
família em Nova Friburgo, minha cidade natal. Durante o dia, no
inevitável passeio pela avenida principal da cidade, deu para
perceber os sinais de campanha presidencial, o que não tinha ocorrido em
nenhum momento no Rio de Janeiro: dezenas de cabos eleitorais
balançando bandeiras, muita gente vestindo a camisa amarela com a foto
de Bolsonaro estampada.

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Em conversa com familiares, comecei a dimensionar a força do


bolsonarismo na cidade. No grupo de 25 pessoas que jogam vôlei com a
minha irmã, apenas ela e mais três disseram que não votariam no
candidato do PSL; no grupo de vinte que jogam a tradicional pelada de
fim de semana com o meu cunhado, apenas ele e mais quatro não iam
votar em Bolsonaro. O mais inesperado foi ouvir relatos sobre antigos
colegas de colégio, figuras silenciosas e discretas, que tinham se
transformado em virulentos defensores de Bolsonaro nas redes sociais.
Adotando uma “tática de enxame”, eles se especializaram em
conjuntamente atacar páginas do Facebook de amigos que postassem
qualquer crítica ao capitão.

Friburgo é uma cidade conservadora, mas saí de lá com a sensação de


que Bolsonaro estava muito mais forte do que eu imaginava. De volta ao
Rio, ao votar no primeiro turno, encontrei uma situação muito mais
equilibrada. Meu passatempo, durante a longa espera, foi tentar
identificar o voto dos eleitores das filas vizinhas. Alguns, atendendo ao
pedido da campanha de Bolsonaro, chegaram com a camisa da Seleção
brasileira. Vi muitos com adesivos de candidatos do PSOL e de Ciro
Gomes. Será que as urnas em geral estariam mais próximas da maré
bolsonarista vista em Friburgo ou do cenário mais equilibrado das filas
de uma escola de Botafogo?

Já faz alguns anos que não ligo a tevê para acompanhar a apuração.
Prefiro baixar o programa do TSE e abrir o site de um grande jornal,
navegando conforme as minhas escolhas. Esse ano, porém, como os
resultados demoravam a aparecer, resolvi seguir as previsões feitas pelas
pesquisas de boca de urna. À medida que os resultados eram divulgados
nos jornais televisivos e outros eram compartilhados via WhatsApp por
amigos que estudam eleições, mais estupefato eu ficava.

No Rio de Janeiro, o juiz Wilson Witzel, candidato apoiado pela família


Bolsonaro, chegava em primeiro lugar, desbancando Eduardo Paes, líder
em todas as pesquisas que foram publicadas desde o começo do ano.
Imediatamente, recebo mensagens de toda a parte. Quem é esse juiz? Em
Minas Gerais, os petistas sonharam com o crescimento do candidato do
Novo, um empresário chamado Romeu Zema. Mas não imaginavam que
ele tirasse o governador Fernando Pimentel da disputa no segundo turno.
A sensação de que essa era uma eleição de ruptura com a velha ordem
partidária ficou clara quando apareceram os dados para o Senado de
Minas, com a ex-presidente Dilma amargando o quarto lugar. Era isso
mesmo? Sim. Uma ex-presidente vitoriosa em quatro turnos naquele
estado estava atrás de outros três concorrentes.

Os resultados da noite deixaram os analistas de política sem adjetivos. O


uso de analogias climáticas, embora meio desgastado depois de anos de
crise (quem não se lembra da “tempestade perfeita”?), foi a opção.
Estávamos diante de um “tsunami” eleitoral, do “furacão” Bolsonaro, da
“avalanche” de votos do PSL. Restava falar da velha ordem política
também com imagens de destruição. O sistema partidário estaria “em
escombros”, “em ruínas”, teria vindo ao chão diante de uma “hecatombe”
de renovação.
A
final, quais eram as bases do sistema partidário que teria sido
destruído no primeiro turno do pleito de 2018?

Vale a pena voltar no tempo e lembrar a grande instabilidade que marcou


a primeira década da vida partidária após a redemocratização. Cinco
partidos foram fundados ainda no regime militar: PDS, PMDB, PT, PDT e
PTB. Entre 1985 e 1994, nada menos do que 68 partidos foram
organizados e disputaram pelo menos uma eleição. Dentre esses,
destacam-se o PFL, o PSDB, o PL, o PCdoB, o PSB e o PRN.

Mais do que pelo grande número de legendas, o período foi caracterizado


pela crise que afetou os partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais
de 1989, os candidatos do PMDB e PFL – os dois partidos responsáveis
pela vitória na eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – tiveram
um desempenho pífio. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia
Constituinte que encerrara seu trabalho um ano antes da eleição, obteve
4,7% dos votos. Aureliano Chaves, ex-vice-presidente da República,
alcançou apenas 0,9%.

A vitória de Fernando Collor pelo PRN, legenda à qual se filiou apenas


para concorrer à Presidência, e o subsequente governo de Itamar Franco,
presidente que se desfiliou do PRN e governou sem estar vinculado a
nenhuma legenda, ilustram bem o quadro de crise do sistema partidário
nos primeiros anos da década de 90.

Podemos definir o ano de 1994 como o início do sistema partidário com


características mais ou menos estáveis, que perduraria por duas décadas
até as eleições de 2014. Destaco três principais características desse
sistema.

A primeira delas é a polarização entre PT e PSDB na disputa presidencial.


Os dois partidos chegaram em primeiro ou em segundo lugar em todos
os dez turnos disputados entre 1994 e 2014. Nas duas eleições em que o
PSDB venceu no primeiro turno (1994 e 1998), o PT chegou em segundo
lugar. Nos oito turnos em que o PT venceu (2002, 2006, 2010 e 2014), o
PSDB chegou em segundo lugar.
A segunda característica é o papel central do PT no sistema partidário.
Será difícil para os historiadores do futuro não chamarem esses vinte
anos de “era do PT”. O partido ficou à frente da Presidência por mais
tempo do que qualquer outro na história da República. Mesmo durante o
governo Fernando Henrique Cardoso, o PT conseguiu ser um ator
relevante, comandando uma combativa oposição.

Para além do sucesso eleitoral, um aspecto que sempre chamou a atenção


no PT foi a sua capacidade de organização. Enquanto os outros partidos
mantiveram uma estrutura organizacional tênue, com baixo
envolvimento dos filiados em suas atividades, o PT inovou ao apostar em
uma estrutura capaz de mobilizar milhares de quadros para as suas
fileiras.

Os cientistas políticos David Samuels e Cesar Zucco, no livro Partisans,


Antipartisans and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil (2018),
mostraram como a divisão PT/anti-PT foi importante na escolha dos
eleitores. Caso raro, o principal concorrente do PT não foi outro partido,
mas um sentimento genérico com nome próprio: antipetismo.

Uma terceira característica do sistema partidário brasileiro é a


fragmentação. Contrastando com a disputa concentrada para a
Presidência, o quadro no Congresso Nacional é de alta pulverização,
tendência que vem se aprofundando desde os anos 90. Para se ter uma
ideia dessa dispersão: em 1994, as quatro legendas mais importantes
(PSDB, PMDB, DEM e PT) tinham, juntas, 308 cadeiras na Câmara dos
Deputados; em 2014, passaram a deter apenas 210. A predominância dos
quatro partidos não é por acaso. PT e PSDB controlaram a Presidência,
enquanto o PMDB (depois MDB) e o PFL (depois DEM) foram centrais no
controle do Congresso Nacional.

D
epois da perplexidade com os resultados de boca de urna do
primeiro turno divulgados pela televisão, voltei ao computador
para analisar os dados oficiais da apuração. Ao abrir os resultados
de deputado federal do Rio de Janeiro me dei conta que o sucesso de
Bolsonaro tinha transbordado para os cargos proporcionais.
Quem é esse Hélio Lopes que chegou em primeiro entre os candidatos a
deputado federal, elegendo-se com 345 mil votos, à frente de Marcelo
Freixo? Encontro na internet a foto de Lopes. Lembro que recebi um
santinho dele. Dias depois, me atualizo. Chamado por Bolsonaro de
“Hélio Negão”, ele é subtenente do Exército e tentou ser vereador em
Nova Iguaçu em 2016, quando recebeu 480 votos. Nas estatísticas não
será considerado como um político que tenta um cargo pela primeira vez.

Numa eleição de tantas surpresas, nada foi mais espantoso do que a


votação obtida pelo Partido Social Liberal para a Câmara dos Deputados.
O partido obteve 11,3% dos votos e 10,1% das cadeiras. Havia conseguido
eleger apenas um deputado federal nas quatro das cinco eleições que
disputou antes de 2018. Era um dos partidos a serem barrados pela
cláusula de desempenho. A filiação de Bolsonaro e de seus seguidores ao
PSL, em março desse ano, mudou inteiramente a sorte da legenda.

O PSL foi o partido que teve o maior crescimento desde as eleições de


1990, quando é possível comparar com a primeira eleição do regime
democrático, em 1986. Em 1990, o PRN do então presidente Collor obteve
8,3% dos votos, enquanto o estreante PSDB recebeu 8,7%. Ambos já
contavam com um grande número de deputados e tinham o apoio de
importantes lideranças regionais.

Outra característica singular do PSL é o grande número de eleitos que


disputam um cargo pela primeira vez. Dos 52 deputados federais eleitos,
trinta nunca haviam concorrido. Nunca um partido elegeu tantos novatos
como o PSL. Guardadas as proporções, é um fenômeno semelhante ao da
ascensão do partido do presidente francês Emmanuel Macron (La
République en Marche!) e do Movimento 5 Estrelas, na Itália; são novos
partidos que levam dúzias de cidadãos sem experiência prévia aos
legislativos nacionais.

Os diversos perfis da bancada do PSL feitos pela imprensa destacam a


sua heterogeneidade. O que os une, além da admiração por Bolsonaro, é
o fato de se posicionarem na extrema direita do espectro partidário. Só no
fim da noite de domingo do primeiro turno da eleição, quando já era
possível estimar o tamanho das bancadas de cada partido, me dei conta
de algo surpreendente: os eleitores haviam criado o maior partido de
extrema direita da história das eleições brasileiras.

Q
uando teria começado a ruína dos partidos e de parte da tradicional
elite política do país? Não são poucos os analistas que atribuem a
origem de tudo às manifestações que varreram o país em 2013. O
forte conteúdo antipolítica dos protestos teria ajudado a minar a
confiança da população no sistema representativo.

Além de pedir aos manifestantes que não usassem camisas com símbolos
partidários e promover a queima da bandeira dos partidos, os protestos
lançaram alguns bordões que expressam uma visão realmente negativa
da política. “Partidos não” e “Não me representa” eram palavras de
ordem reiteradas inúmeras vezes quando as pessoas se aproximavam da
Câmara Municipal ou da Assembleia Legislativa.

É difícil dimensionar se 2013 teve um efeito mais duradouro sobre a


avaliação dos brasileiros acerca dos seus representantes. O fato é que nas
eleições do ano seguinte o impacto não foi perceptível. As pesquisas de
opinião não indicaram um aumento da desconfiança em relação às
instituições e aos partidos. A taxa de abstenção continuou praticamente a
mesma da eleição anterior. Fora do padrão, apenas um aumento dos
votos nulos e em branco para deputado federal, particularmente nos
estados do Rio e de São Paulo.

Somente uma força externa muito poderosa poderia abalar um sistema de


partidos estruturado em duas décadas de competição política, com
diversos mecanismos de autoproteção. A Operação Lava Jato cumpriu
esse papel. As investigações afetaram diversas legendas, mas sobretudo
as três mais importantes: PT, PSDB e MDB. O PT teve vários de seus
dirigentes presos e investigados, entre eles o ex-presidente Lula. Os
principais dirigentes investigados do MDB tinham foro privilegiado
(eram senadores e deputados), mas o que se viu na maior seção do
partido, a do Rio de Janeiro, com a prisão de Sérgio Cabral, Eduardo
Cunha e Jorge Picciani, foi suficiente para fazer um estrago sem
precedentes na legenda. Vários dirigentes do PSDB investigados também
se beneficiaram do foro privilegiado, mas a revelação das conversas de
Aécio Neves com o empresário Joesley Batista também amplificou muito
a rejeição ao partido.

Olhando para trás e relembrando a maré de denúncias contra a elite


política que circulou entre 2015 e 2018, percebo como os analistas
subestimaram os efeitos da Lava Jato. A operação mudou o patamar de
rejeição em relação aos principais partidos. Todos foram igualados por
participarem sem pudor de gigantescos esquemas de corrupção.

A
té o começo do horário eleitoral, a visão dominante dos cientistas
políticos sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões
dos pleitos anteriores. Eles acreditavam que: a disputa pela
Presidência se daria novamente entre PT e PSDB; a renovação
parlamentar seria baixa; e o trio PSDB/PT/MDB continuaria dominando
a política brasileira.

O argumento dos que defendiam a tese de que “essa eleição é igual às


últimas” baseava-se em duas premissas. Primeiro, a importância que a
estrutura partidária e a montagem das coalizões de apoio nos estados
havia tido em pleitos anteriores. Segundo, a nova legislação eleitoral, que
concentrou o tempo de propaganda eleitoral e o dinheiro do fundo
eleitoral nos grandes partidos; juntos, MDB, PSDB, PT e PP ficaram com
44% do dinheiro.

A mesma visão parece ter orientado as ações dos dirigentes partidários.


O PSDB optou por lançar Geraldo Alckmin, uma liderança tradicional,
que já havia sido candidato à Presidência. O ex-governador de São Paulo,
mais do que qualquer um dos nomes ventilados pelo partido, tinha a cara
da velha política. O PSDB teve como prioridade a montagem de
palanques estaduais e o apoio dos partidos para conquistar o que havia
sido o melhor ativo de outras eleições: o tempo de propaganda na tevê.

A estratégia do PT também mirou o passado. A ideia parecia simples.


Lula liderava as pesquisas com enorme vantagem. O que, por si só, seria
uma evidência de que o eleitorado queria uma nova edição da época de
ouro dos governos petistas. Como as pesquisas mostravam que um
número expressivo de eleitores estaria disposto a votar em um nome
indicado por Lula, a equação estava fechada. Confiando na força do ex-
presidente e na teoria de transferência de votos, o PT se deu ao luxo de
fazer a mais estreita coalizão eleitoral desde 1989. Só conseguiu o apoio
do PCdoB – que retirou a candidatura de Manuela D’Ávila à Presidência
– e do PROS.

Nada, porém, supera a crença dos partidos na manutenção da velha


ordem do que o comportamento dos partidos do centrão (DEM, PP, PR,
PRB e Solidariedade). É interessante lembrar que alguns deles haviam
sido sondados pelo PT e outros pela candidatura de Ciro Gomes.
Bolsonaro gostaria de ter o senador Magno Malta como seu vice, mas o
PR não aceitou. Depois de semanas de negociação, os partidos
resolveram apoiar qual candidato? Geraldo Alckmin.

PT e PSDB se prepararam para enfrentar um ao outro. Nenhum dos dois


acreditava no fenômeno Bolsonaro. No último debate do primeiro turno
na Rede Globo, a certa altura Alckmin escolheu Haddad para responder
uma de suas perguntas. Durante minutos os dois falaram como se
estivessem em 2014. Enquanto isso, Bolsonaro concedia uma entrevista
nos seus termos à Rede Record do bispo Edir Macedo.

F
ui mais cético que meus colegas de ofício sobre a possibilidade de
que a eleição de 2018 repetisse o padrão das eleições anteriores.
Minha desconfiança se devia a duas razões. A primeira, mais
genérica, pode ser resumida no sentimento de que, depois de três anos de
crise política, dificilmente as estruturas do sistema partidário não sairiam
abaladas. Lembro-me de uma conversa com a cientista política Maria
Hermínia Tavares de Almeida, que também compartilhava do meu
ceticismo, em que ela fez a pergunta definitiva: “Depois de tudo que
aconteceu nesses anos, as eleições não vão mudar nada?”

A segunda razão é que venho há anos acompanhando a movimentação


do candidato Bolsonaro. Por intermédio de um amigo que compartilha o
material do candidato, assisti aos seus vídeos postados nas redes sociais,
e os mais impressionantes deles mostravam o acolhimento efusivo que
recebia de seus seguidores pelos aeroportos do país. Mas, apesar de não
desprezar a força de Bolsonaro, minha expectativa sobre o que seria a
eleição presidencial se revelaria totalmente equivocada. Consulto os
slides de uma apresentação que fiz em março deste ano sobre o tema.
Estimava que Bolsonaro teria algo em torno de 15% a 20% dos votos.

Minha aposta era que cinco candidatos (Marina, Alckmin, Ciro,


Bolsonaro e o candidato do PT) disputariam entre si as duas vagas para o
segundo turno; todos eles com potencial de votação semelhante, entre
10% e 20% dos votos. Uma pessoa cujo nome não lembro e que
compartilhava de avaliação semelhante chegou a propor um número
mágico: nesse cenário, o candidato que tivesse 17% dos votos passaria
para o segundo turno.

Meu equívoco maior se deu quando projetava os resultados do segundo


turno. Mais de uma vez, fui perguntado em debates e aulas sobre as
chances de Bolsonaro vencer as eleições. Na resposta, sempre me
lembrava do caso francês. Bolsonaro é candidato de um segmento
específico do eleitorado, é um candidato de nicho, que lembra o
desempenho do partido de extrema direita da França. Lá, a Frente
Nacional consegue até chegar ao segundo turno, mas todas as forças do
espectro político (da direita republicana à esquerda comunista) se juntam
contra o partido, que é sempre derrotado. Não me lembro, mas
provavelmente devo ter dito uma frase que muitos falavam em meados
do ano: “O candidato do PSL será derrotado por qualquer um no
segundo turno.”

B
olsonaro saiu do nicho. Esse é o fenômeno mais impressionante da
campanha presidencial de 2018 e será o tema incontornável dos
estudos sobre o comportamento político no Brasil nos próximos
anos.

Como um candidato com uma história tão à direita no espectro político,


com dezenas de vídeos em que revela seu racismo, sua homofobia e seu
menosprezo pelas mulheres, foi capaz de conquistar uma parcela tão
expressiva de eleitores de alta renda e alta escolaridade? Fui a São Paulo
em junho e percebi que Bolsonaro já era o preferido dos motoristas de
Uber e dos trabalhadores do hotel onde me hospedei. Em setembro, em
nova viagem, soube que a comunidade judaica o apoiava em peso. O
mesmo acontecia com a elite da cidade, outrora eleitora do PSDB.

O mais impressionante é que uma grande parte do eleitorado passou a


apoiar Bolsonaro sem conhecer minimamente suas ideias. Recolhido no
hospital ou em casa desde o atentado que sofreu em 6 de setembro,
Bolsonaro compareceu somente aos dois primeiros debates da campanha.
Sem dispor de tempo no horário eleitoral gratuito, também não detalhou
nenhum dos seus projetos para o país. Minha impressão é que seus
eleitores, ao votarem nele, imaginam escolher uma espécie de João Doria
nacional.

Outra hipótese, mais óbvia mas não menos intrigante, é a que vê no


antipetismo uma razão forte para Bolsonaro ter saído de seu nicho. A
maré bolsonarista deveria menos aos méritos do candidato do que a uma
força inercial da opinião pública. Dito de outro modo, qualquer
candidato que disputasse contra o PT acabaria vencendo.

Usei o adjetivo “intrigante” no parágrafo acima por uma razão muito


simples. Onde estava o antipetismo tão visceral que ninguém foi capaz de
dimensioná-lo? Aos olhos de agora, parece que todo mundo já sabia da
força do antipetismo, mas nenhuma pesquisa de opinião feita antes de a
campanha começar foi capaz de capturá-lo. Ao contrário, as pesquisas
mostravam que Lula reerguia o petismo e que o partido já recuperava seu
tamanho como legenda preferida do país. Havia inclusive uma hipótese
para explicar a força do petismo: “O governo Temer e a prisão do Lula
teriam ressuscitado o PT.”

Estudos sobre o desenrolar da campanha eleitoral de 2018,


particularmente sobre o papel das redes sociais, devem mostrar a
evolução do antipetismo. Meu palpite é que tanto a ampliação do
antipetismo, como a mudança de patamar desse sentimento (de um
estágio relativamente leve para um visceral) deve-se à eficácia do que
chamarei, na falta de expressão melhor, de máquina de propaganda da
campanha de Bolsonaro.
As eleições para prefeito do Rio de Janeiro em outubro de 2016 e a greve
dos caminhoneiros, em maio de 2018, mostraram a força de uma nova
forma de comunicação e mobilização social: o WhatsApp. Falo
especificamente desse instrumento porque ele é realmente uma inflexão
na forma de os brasileiros se comunicarem. De novo, não tenho estudos,
mas posso observar na minha rotina que o WhatsApp é o grande
responsável pela inclusão de milhões de cidadãos de baixa renda e baixa
escolaridade na era digital.

Somente a comunicação via redes sociais, cultivada nos últimos anos no


país, poderia explicar a força e a rapidez com que as ondas de opinião se
propagaram nessas eleições. Antes, velhas ondas de campanha
demoravam dias para se formar e precisavam do “boca a boca” para se
propagar. Agora, a propagação da informação faz-se de maneira veloz,
em escala geométrica – como provavelmente ocorreu na impressionante
campanha que levou o juiz Witzel a saltar de um dígito nas pesquisas
feitas na quarta-feira antes da eleição para 41% dos votos válidos no
primeiro turno.

A campanha também foi invadida por uma onda de fake news. Assisti a
dezenas de vídeos, quase todos pró-Bolsonaro, com montagens toscas,
adulterações de fatos e estatísticas inventadas. A Justiça Eleitoral não se
preparou para lidar com o fenômeno. Diferentemente do que tinha feito
em outras eleições, quando controlava os desvios e agressões da
propaganda de rádio e televisão, nesse ano o silêncio foi a sua tônica.

Mas nem tudo foi fake news. Depoimentos e trechos de eventos foram
difundidos com eficácia pela campanha do PSL. Ouvi pastores e
lideranças empresariais pedirem voto para o Bolsonaro. Vi compararem
algumas propostas do candidato com as do PT. Acabo de assistir a um
vídeo em que um bispo finaliza a sua homilia repetindo, e sendo
efusivamente aplaudido pelos fiéis, o principal bordão da campanha
bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”

Bolsonaro é, a meu juízo, o maior fenômeno da história das eleições no


Brasil. Muitos o comparam com Collor em 1989, mas sua força e
abrangência são bem maiores. Uma coisa parece certa. Com Collor, vimos
a emergência de um fenômeno propagado pelas redes de televisão.
Bolsonaro não só nos mostrou que a era da televisão está se encerrando,
como uma nova era começa: a das campanhas feitas nos subterrâneos da
sociedade, por meio das redes sociais.

E
mbora essa seja uma análise ainda inicial, minha sugestão é que o
pleito desse ano é um exemplo do que os cientistas políticos
chamam de “eleição crítica”: uma disputa que desestrutura o padrão
de competição partidária vigente.

Enumero quatro elementos que demonstram que as eleições deste ano


marcam o encerramento do sistema partidário que vigorou por duas
décadas: o fim da polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais;
o fim da centralidade do primeiro como força organizadora do sistema
partidário; o declínio dos dois maiores partidos de centro (PMDB e
PSDB); e a emergência de um novo e expressivo partido de direita (PSL).

A onda bolsonarista foi tão forte que, nos dias que se seguiram ao
primeiro turno, os prognósticos sobre o resultado do segundo turno
podiam ser resumidos em duas perguntas: Qual será a diferença a favor
do candidato do PSL? Será que ele superará o desempenho de Lula em
2002? (Nesse ano, o candidato do PT recebeu 61,3% dos votos válidos, a
maior votação já obtida por um candidato a presidente.) As pesquisas
publicadas na primeira semana após o segundo turno reforçaram a ideia
de vitória por grande margem. Na pesquisa do Datafolha, o deputado do
PSL vencia com 58% dos votos válidos; na pesquisa Ibope vencia com
59%.

Em razão da grande vantagem confirmada nas primeiras pesquisas,


Bolsonaro manteve a mesma estratégia adotada no último mês de
campanha do primeiro turno: priorizou a difusão de mensagens por
intermédio das redes sociais, não participou de eventos públicos e nem
compareceu aos tradicionais debates promovidos pelos principais meios
de comunicação do país. A diferença é que sua campanha chegou ao
rádio e à televisão.
Com apenas oitos segundos, o ex-capitão havia sido quase invisível nos
meios tradicionais de comunicação no primeiro turno. No segundo, com
os dez minutos do programa eleitoral e centenas de inserções, ele teve
que dar uma atenção especial ao velho (e para ele novo) formato de
comunicação.

Se pudermos recorrer a uma metáfora esportiva, a estratégia de


Bolsonaro lembrou a dos times de futebol que, vencendo por larga
vantagem, “jogam contra o relógio”. Deixam o tempo passar, trocam
passes para o lado até que o juiz aponte para o centro do gramado.

Na campanha de Haddad, em contrapartida, inicialmente nada parecia


funcionar. A tentativa de organizar uma frente democrática foi um fiasco.
O petista recebeu apoio crítico do PDT e Ciro Gomes preferiu não
declarar seu voto; Fernando Henrique Cardoso e outras lideranças
nacionais do PSDB também preferiram não se manifestar; Marina Silva
deu seu apoio quinze dias depois do domingo do primeiro turno.
Chegavam notícias de que até mesmo os dirigentes do PT não
acreditavam na sorte de seu candidato e temiam uma derrota
humilhante. Em mais de uma conversa com amigos chamei a atenção
para a “solidão de Haddad”. A sensação era outra: a do time que está
sendo derrotado por uma grande diferença e conta os segundos para que
o jogo acabe.

A incapacidade de Haddad e do PT para ampliar o seu arco de alianças


foi relativamente compensada por um movimento de apoio, também
cultivado nas redes sociais, que contou com grandes atividades de rua na
última semana antes do pleito. Foi provavelmente por causa desse
movimento que o candidato do PT não sofreu a derrota que se desenhava
no começo do segundo turno. A comparação dos votos dos dois turnos,
incluindo os votos nulos e em branco no cálculo, mostra que Haddad
acabou crescendo mais (passou de 27% para 40% dos votos totais), do que
Bolsonaro (passou de 42% para 50%).

E
screvo as linhas finais desse texto poucos minutos após a
confirmação de que Bolsonaro é o novo presidente do Brasil. Escuto
E
muitos gritos, panelas batidas e fogos para celebrar a vitória. O volume se
assemelha ao das manifestações contra a ex-presidente Dilma Rousseff.
Numa eleição de tantas novidades cabe registrar mais essa. Pelo menos
no Rio de Janeiro, nunca tinha visto uma vitória eleitoral ser tão
celebrada.

Ainda vou passar muitas semanas analisando os dados das eleições de


2018. Mas como não podia deixar de ser, começo observando o que
ocorreu em Nova Friburgo: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 63% dos
votos válidos, Ciro Gomes, 16% e Haddad, 10%. No segundo turno,
Bolsonaro obteve 73%. Já na minha zona eleitoral, no Rio, o quadro foi
bem mais equilibrado no primeiro turno: Bolsonaro obteve 44% dos
votos, Ciro, 30% e Haddad, 13%; no segundo turno Bolsonaro chegou aos
54%.

Olho os números e me dou conta de como Bolsonaro foi bem votado em


outras áreas da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os gritos pró-
Bolsonaro e contra o PT continuam a ecoar lá fora. Realmente, estamos
diante de um fenômeno eleitoral diferente de tudo que eu já tinha visto.

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