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Georges Gurvitch

Proudhon
e Marx II

Este é o segundo volume do curso universitário dado pelo sociólogo


Georges Gurvitch dedicado à análise do pensamento político e social
de Proudhon e Marx. Tal como se referiu na apresentação do primeiro
volume, também saído nesta Biblioteca de Ciências Humanas, a preo-
cupação de Gurvitch é situar a sua investigação no contexto histórico
cm que a acção destes dois pensadores—Proudhon e Marx — decorreu.
Nessa medida o seu trabalho alia aos cuidados do rigor analítico uma
ampla informação histórica e sociológica, tornando esta edição reco-
mendável como obra de estudo e de consulta.
GEORGES GURVITCH

Proudhon e Marx
Uma Confrontação

Tradução de
LUZ CARY

BIBLIOTECA D E CIÊNCIAS HUMANAS

1. O Político o o Cientista — Max Weber


2. Materialismo Dialéctico e Psicanálise — W. Reich
3. Sobre o Trabalho Teórico — L. Althusser
4. Novas Perspectivas das Ciências do Homem —
Armando de Castro e outros
5. Teoria do Romance — Georg Lukács
A Crise da Social-Democracia — Rosa Luxemburg
7. Critica do Gosto I — Galvano delia Volpe
8. Crítica do Gosto II — Galvano delia Volpe
9. Proudhon e Marx I — Georges Gurvitch
Textos Filosóficos — Marx e Engels A O
11. Materialismo Dialéctico e Sociologia — Henri Lefebvre
12. Proudhon e Marx II — Georges Gurvitch EDITORIAL PRESENÇA
Título Original:
PROUDHON ET KARL MARX
(ç) Centre de Documentation Universitaire & Société d'Édition
d'Enseignement Superieur, Paris.

Capa de TERCEIRA PARTE


F. C .

Distribuidores para o Brasil:


LIVRARIA MARTINS FONTES
Praça da Independência, 12 — S A N T O S — B R A S I L

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à


Editorial Presença, Lda. — Avenida João X X I , 56-1.° — Lisboa
AS OBRAS DE P R O U D H O N DE 1853
A T É À SUA M O R T E

DÉCIMA LIÇÃO

Na Introdução ao Manuel d'un spéculateur de la


Bourse (1853), Proudhon declara que o «Estado como
a propriedade estão em plena metamorfose, e que a
democracia industrial não exclui de maneira nenhuma,
antes reforça e completa a democracia política. É este
novo ponto de vista que triunfará nas obras ulteriores
de Proudhon. Aliás, a obra intitulada De la Justice
dam la Révolution et dans l'Eglise (1858) contém um
verdadeiro estudo do Estado e da realidade deste.
Os desenvolvimentos contidos nesta Introdução ao
Manuel são de grande importância. Proudhon que já
falara várias vezes em «feudalidade económica», ins-
pira-se muito provavelmente na expressão «feudalidade
industrial» empregada por Enfantin na obra que
escreveu sobre a Argélia. De facto, o incidente que
opõe Proudhon ao banco Pereire por ocasião do con-
curso do projecto de construção do caminho de ferro
Besançon-Belfort é conhecido; Proudhon recusa-se a

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aceitar a compensação que lhe é proposta pelo feliz «queda da oligarquia governamental» e da «feudalidade
vencedor declarando: «Pereire é o representante e o industrial»).
chefe do princípio Saint-Simoniano da feudalidade
c) As vicissitudes e as monstruosidades da feuda-
industrial».
lidade industrial fazem surgir a sombra ameaçadora
Para Proudhon, a «feudalidade industrial» é ape-
do Império Industrial, que é o «apogeu da crise». É o
nas uma fase do capitalismo. Distingue três formas de
ponto culminante da absorção capitalista, bancocrá-
organização económica correspondente a idêntico nú-
tica e especulativa; é a centralidade da vida económica
mero de fases do capitalismo: a Anarquia Industrial,
nas mãos do Estado, que exerce a sua ditadura sobre
a Feudalidade Industrial e o Império Industrial. A estes
a indústria para dividir os lucros desta com os patrões;
três regimes, a revolução social virá opôr «a Demo-
é o capitalismo do Estado; é o «cesarismo económico».
cracia Industrial e a República Industrial».
Sublinhemos que na obra que escreveram sobre a
aj A Anarquia Industrial é o capitalismo concor- A Comuna de 1871 (1960), Bruhat, Dautry e os seus
rencial idealizado pela economia política clássica. E «o colaboradores fazem o processo dos proudhonianos
nada do direito económico», pois que a propriedade (dois de entre os quais, Tolain e Chaudey, não parti-
absoluta e a concorrência reinam sem limites na socie- ciparam na Comuna), mas que retomam o termo
dade económica. Império Industrial inventado por Proudhon, sem no
entanto se lhe referirem (cf., pp. 17-25). — É evidente
b) A Anarquia Industrial, pela concentração dos que ao descrever o Império Industrial Proudhon se
capitais, conduz à Feudalidade Industrial, isto é, à orga- refere ao Segundo Império, mas também, sem ter dú-
nização capitalista e bancária em proveito de uma vidas disso e «avant la lettre», ao dirigismo fascista.
oligarquia de chefes de empresas financeiras e indus- Não crê contudo que o Império Industrial possa man-
triais associadas, a que mais tarde se chamará trusts ter-se por muito tempo; «O Império Industrial não é
e carteis. Os feudais industriais e bancários aprovei- mais que uma contradição (...). A fórmula imperial
tam-se do poder económico que detêm para fundar é inaplicável à ordem económica». Portanto, a solução
vastas associações de dominação c submeter os tra- do problema «não pode ser o produto destas três fór-
balhadores ao seu arbítrio. Numa palavra, é o capita- mulas: anarquia, feudalidade, império industrial, do
lismo organizado. (É interessante notar que os autores mesmo modo que a unidade não pode advir de uma
do apelo em favor dos «candidatos socialistas revo- adição de zeros».
lucionários» da secção francesa da Primeira Interna-
cional com vista às eleições legislativas no Segundo d) Optimista, Proudhon crê que a ameaça do
Império, empregam os mesmos termos e falam da Império Industrial o qual conduz «a uma nova escra-

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vatura e ao nada» basta só por si para intensificar e rencia de restauração feudal, para uma democracia
fazer prevalecer as tendências para a revolução social, industrial». Equilíbrio entre o Estado e a Sociedade
cuja finalidade é a Democracia Industrial, única solução, económica organizada em bases de autogestão ope-
único fim possível da crise. « À Feudalidade Industrial rária, constituição social democrática reposta entre as
(...) deveria suceder, segundo a lei das antinomias mãos dos trabalhadores, constituição política de onde
históricas, uma Democracia Industrial», que tem já terá sido eliminado todo o autoritarismo, limitação
por ponto de referência as «companhias operárias, do Estado pela propriedade socializada e mutualista,
lares e células da futura «constituição social» chamada eis o que será a República Industrial.
a limitar e a equilibrar a constituição política. Resumindo, Proudhon prevê um colectivismo plu-
A democracia industrial apresenta segundo Prou- ralista descentralizado destinado a substituir, depois da
dhon vários aspectos. Antes de mais, elimina a domi- revolução social, o capitalismo organizado. Este colec-
nação arbitrária dos patrões ou do Estado nas fábricas tivismo recorreria à autogestão operária assim como
e nas empresas, e confia o controlo e a própria gestão a um «equilíbrio» realizado entre a propriedade fede-
destas aos representantes dos operários, prefigurando ralizada dos meios de produção sob o controlo da
assim aquilo a que mais tarde se chamará a autogestão democracia industrial dos operários, e a democracia
operária. Mas, esta «república industrial» vai ainda política limitada nas suas funções. Quando analisarmos
mais longe. Penetra no seio das relações de propriedade a obra Du Príncipe Fédératif ou de la necessite de
e faz de todos os operários co-proprietários e, como Reconstruir le Parti de la Révolution (1863), voltaremos
Proudhon dirá mais tarde, organiza uma propriedade a este ideal de Proudhon.
federativa e mutualista dos meios de produção cujos Abordaremos seguidamente a análise da obra De
proprietários são simultaneamente a organização eco- la Justice dans la Révolution et dans VÉglise (1858),
nómica inteira — central e regional — os diversos ra- em quatro volumes.
mos da indústria, cada fábrica e por fim cada operário. Em Maio de 1855, um publicista católico da
É este o melhor meio de liquidar definitivamente todos extrema direita, E. de Mirecourt, lançou contra Prou-
os vestígios do capitalismo. dhon um panfleto cheio de inexactidões e calúnias.
Numa passagem da Introdução à obra que estamos A brochura continha também uma carta do cardeal
a analisar, Proudhon afirma que a democracia indus- Mathieu, arcebispo de Besançon. Depois de algumas
trial se revelará como uma «comandita do trabalho hesitações, Proudhon decidiu-se a responder e traba-
pelo trabalho»; e considera que «seja qual for o aspecto lhou durante quase três anos na redacção do seu
sob que consideremos as coisas, torna-se cada vez mais texto. E é assim que em 1858 é publicada a sua obra
claro o facto de nos encaminharmos, sob uma apa- mais volumosa: De la Justice dans la Révolution et dans

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VÉglise, verdadeiro manifesto de anti-clericalismo fran- analogia com as Teses sobre Feuerbach de Marx, que
cês em que a luta pela separação da Igreja e do Estado, Proudhon é menos realista que Marx, embora
na Terceira República, se virá a inspirar. Socialistas- dê mais relevância à totalidade da acção social; 2) a
-radicais, socialistas, e mais recentemente, comunistas, moral transpersonalista, «imersa na sociedade» e reve-
resumindo, todos os laicos franceses, conscientemente lando-a; 3) a vinculação à justiça social, simultanea-
ou não, se inspiraram e continuam a inspirar-se nesta mente objectiva e subjectiva; 4) o lugar atribuído na
obra. realidade social às «forças colectivas» por um lado, à
A ideia central de Proudhon é que é preciso escolher «razão colectiva» por outro e também, à justiça com-
entre Deus e a Justiça. O «Primeiro Estudo» é um hino binada com um ideal afectivo, assim como ao direito
à justiça, que Proudhon coloca não só no centro das que servem de intermediários entre as duas plata-
relações económicas e jurídicas, mas também no centro formas (paliers) mencionadas.
da moral e até da realidade social. O «Segundo Es- A obra é retirada passados alguns dias sobre a
tudo» trata das pessoas; o «Terceiro», dos bens; o data da publicação, e, a 2 de Junho de 1858, Proudhon
«Quarto», do Estado; o «Quinto», da educação; o é condenado, por ultrages à religião e à moral, a três
«Sexto», do trabalho; o «Sétimo», das ideias; o «Oi- anos de prisão e a quatro mil francos de multa. Com
tavo», da consciência e da liberdade; o «Nono», do base na experiência precedente, (1849-1852), exila-se
progresso e da decadência; o «Décimo» e «Décimo para evitar a prisão e refugia-se na Bélgica sob o nome
Primeiro», do amor e do casamento; o «Décimo Se- de Duforte, professor de matemática. Ficará na Bél-
gundo», da sanção moral; Proudhon desenvolve neste gica até ao Outono de 1862, e morre em França alguns
trabalho uma moral laica autónoma, baseada no tra- anos mais tarde (Janeiro de 1865).
balho, e que é não só independente da religião, Bastam os títulos dos doze «Estudos» para mos-
mas está em oposição a ela, quer dizer, uma moral trar que esta obra constitui uma verdadeira enciclopédia
«anti-teísta», segundo o termo do próprio autor. do pensamento proudhoniano, que encerra uma filo-
As características desta obra são as seguintes: sofia, uma sociologia, uma moral e uma concepção
1) a tendência pragmatista, a orientação no sentido do direito. As apreciações a este livro são divergentes.
de uma filosofia da acção que retoma o mito de Pro- Renouvier, que no entanto era favorável a determinadas
meteu, evocado nas Contradições Económicas («A ideia, ideias de Proudhon, criticou esta obra muito severa-
com as suas categorias, nasce da acção e deve voltar mente. Herzen, seu admirador, ficou bastante chocado
à acção, sob pena de enfraquecimento do agente»), com ela. Marx apenas se lhe refere no Capital para
por fim a apologia do instrumento de trabalho (Sexto afirmar que é a menos conseguida das obras de Prou-
Estudo). N o conjunto, podemos constatar uma certa dhon; mas não é certo que a tenha lido atentamente.

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Cournot, por sua vez, mostrou-se menos radical, mais uleia capital, simultaneamente objectiva e subjectiva,
disponível. Mais recentemente, Gui Grand considerou-a real e formal, da natureza e da humanidade, de espe-
a obra capital de Proudhon. Pessoalmente, hesitaria culação e de sentimento, de lógica e de arte, de política
em partilhar sem reservas esta opinião. Quer em rela- c de economia, razão prática e razão pura, que rege
ção à filosofia, à sociologia, aos estudos políticos ou ao mesmo tempo o mundo da criação e o mundo da
à moral de Proudhon, esta obra não está, apesar da filosofia e sobre a qual estes constroem uma e outra?
sua riqueza, suficientemente condensada e falta-lhe É a Ideia do Direito, a Justiça» (vol. I p. 215). A Jus-
força. A o lê-la, o leitor tem de fazer uma selecção pois tiça «é o ponto de transição entre o sensível e o inteli-
trata-se de um texto unicamente polémico e enci- gível, o real e o ideal, as noções da metafísica e as
clopédico cujas conclusões políticas ou até práticas percepções da experiência», (vol. I , p. 217). «A justiça
nem sempre são postas em relevo. reside na humanidade, é progressiva e indecifrável na
O que nos irá interessar aqui é Proudhon enquanto humanidade porque é da humanidade (vol. I , p. 324).
doutrinador social e político sobretudo, e também, É o produto do movimento da realidade social que
enquanto sociólogo. Para a análise, escolheremos por- é um esforço real.
tanto o «Estudo IV» sobre o Estado, o «EstudoVI» É a justiça que procura a conciliação entre o
sobre o Trabalho e o «Estudo IX» sobre o Progresso e indivíduo e o «todo social», ambos igualmente reais;
a Decadência, tentando extrair deles o que têm de que procura realizar o equilíbrio entre os valores
positivo. colectivos e os valores individuais, ambos igualmente
O «Sexto Estudo», consagrado ao trabalho, for- positivos. A justiça supera a oposição entre o subjec-
nece-nos previsões importantes sobre a filosofia e a tivo e o objectivo, entre o facto e a razão, integrando-os
sociologia de Proudhon. Já sublinhámos que Prou- cm conjuntos transpessoais imanentes reais, totalidades
dhon se declarou «ideo-realista» (termo infeliz e am- sociais que estão em movimento de «totalização».
bíguo) para sublinhar a ligação que existe entre o es- Os participantes individuais só podem afirmar-se e
forço colectivo, o trabalho, a sociedade, as regulamenta- impor a sua dignidade enquanto membros indispen-
ções sociais e as ideias, mas que não chegou, nas obras sáveis deste todo real no seu dinamismo irredutível
anteriores, a explicar suficientemente bem o alcance à soma dos seus elementos. O elemento subjectivo da
do seu realismo. O texto que analisamos começa por justiça, o respeito pela dignidade pessoal e pela dos
um estudo sobre «a colocação do problema da justiça». outros, inclusive pela dos grupos, apoia-se antes de
O que quer dizer, para Proudhon, o problema da pro- mais na realidade do conjunto e em seguida na dos
dução das ideias pela realidade social em acção de que outros Eu. Quanto ao elemento objectivo da justiça
a ideia da justiça é um exemplo. «Qual é então essa o choque e o equilíbrio das forças colectivas, supõe

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que estas forças produzam valores que não são apenas será preciso, segundo a justiça, reconstruir peça por
económicos, em particular o da dignidade colectiva peça todo este palácio de cartão» (Nova Ed. p. 259).
c individual. De qualquer modo, se a justiça de que Proudhon
A justiça dá a primazia à consciência colectiva. lala não é individualista, se é produzida pela acção das
«A justiça é maior que o Eu. N ã o vive isolada. Ultra- totalidades sociais reais de que as forças colectivas e
passa a medida do indivíduo. A consequência da cons- a consciência colectiva são apenas dois aspectos que
ciência individual está na consciência colectiva. Pela se interpenetram, não se compreende muito bem como
justiça, cada um de nós se sente simultaneamente pessoa é que o autor lhe pode atribuir um lugar tão prepon-
e colectividade» (Décimo segundo Estudo). Ora, na derante na engrenagem da vida social. ImpÕe-se uma
Misère de la Philosophie, Marx acusa Proudhon de ter explicação que Proudhon procura fornecer no «Es-
ido buscar a sua ideia de justiça às relações jurídicas tudo VI» sobre o Trabalho. É claro que isto não quer
de troca correspondentes ao regime burguês, e renova dizer que o consiga.
esta acusação no Capital a propósito da obra de Prou- O trabalho é a base do que há de humano na
dhon De la justice dans la Révolution et dans VÉglise. sociedade e no homem. Através do trabalho o homem
Acusação por sinal muito mal fundada dado que para manifesta o seu «valor» e «a fatalidade da natureza
Proudhon, a justiça — essencial e primordialmente so- é vencida pela liberdade do homem» (De la Justice,
cial — conduz à superação do individualismo do Direito vol. I I I , p. 17). É pelo trabalho que o homem pode
romano e ao estabelecimento de um direito social tornar-se o senhor da criação. Ora, o trabalho, que
mutualista. é sempre simultaneamente colectivo e individual, é
muito mais que a força colectiva. É esforço e acção;
A justiça social é positiva e dinâmica: «Procura, é o produtor total, tanto das forças colectivas como da
com certeza e amplidão, tudo o que a antiga interpre- mentalidade, das ideias e dos valores. Numa palavra,
tação individualista da justiça apenas permitia». No incarna a fusão de todos estes elementos. O trabalho
«Terceiro Estudo» (consagrado aos Bens), Proudhon produz, pois, não só as forças e os valores económicos,
escreve: «A revolução pedia uma reforma radical; os mas o homem, os grupos, as sociedades, as ideias,
legistas, que definiam a justiça como o pretor, deram- inclusive a de justiça. Concluindo, é a «sociedade em
-nos o Código Napoleão. Tudo está ainda por fazer». Ifito» na sua totalidade, que se produz a si própria
J á na Révolution Sociale demontrée par le Coup d'Etat pelo trabalho.
du Deux Décembre, Proudhon afirmava: «Substituindo «A ideia, com as suas categorias, nasce da acção
por toda a parte o direito relativo e móvel da mutua- e, sob pena de fracasso do agente, deve voltar à acção».
lidade industrial ao direito absoluto da propriedade, I s t o significa que todo o conhecimento dito a priori,

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incluindo a metafísica, surgiu do trabalho e deve servir c de que apesar de tudo não são a cópia pura e sim-
de instrumento ao trabalho, contrariamente ao que ples» (ibid. p. 73). São as primeiras máquinas de indús-
pregam o orgulho filosófico e o espiritualismo religioso, tria... De todos os instrumentos do trabalho humano,
que fazem da ideia uma revelação gratuita, surgida o mais elementar, por consequência (...) o mais uni-
não se sabe como, e de que a indústria é apenas uma versal, é a alavanca, a barra» (ibid. pp. 74-75). Assim,
aplicação» (ibid. p. 69). em Proudhon o pragmatismo torna-se por vezes um
Assim, Proudhon, é o primeiro a defender uma instrumentalismo, como na obra do filósofo ameri-
posição que receberá mais tarde o nome de pragma- cano Dewey. «Pode dizer-se que neste aspecto, a inte-
tismo. «Se a reflexão, e consequentemente, a ideia nasce ligência do trabalhador não está apenas na sua cabeça;
da acção, c não a acção da reflexão, o trabalho tem de está também nas suas mãos (ibid. pp. 96-97). Mas
levar a melhor à especulação, o homem de indústria Proudhon não fica por aqui. É a desalienação do tra-
à filosofia, o que equivale à destruição dos preconceitos balho que está no centro das suas análises.
e do estado social actuais» (ibid. p. 71). «Nestas condi- O aparecimento do maquinismo vem levantar pro-
ções, a actividade surge como a causa primeira do blemas. «Dado que à habilidade manual se substitui
estímulo das ideias, como o Verbo primitivo que a perfeição da maquinaria, as relações entre o homem
ilumina (...) a consciência humana» (ibid. p. 72). «Atra- e a matéria invertem-se: o espírito j á não está no
vés da sua actividade espontânea, o homem age sobre operário, está na máquina; aquilo que deveria consti-
si próprio, estimula (...) a reflexão da sua inteligência tuir o mérito do trabalhador transformou-se no seu
e torna-se o seu próprio Verbo (...). O homem tem embrutecimento» (ibid. p. 91). A relação entre a acção
assim um duplo papel: é senhor, pelos factos e gestos (...) e a ideia só se restabeleceria se «as forças colectivas
que correspondem à expressão das suas ideias; é dis- alienadas cm proveito de alguns exploradores fossem
cípulo pela atenção que presta aos seus actos (...). devolvidas ao trabalho, se o trabalho fosse desalienado
Procurará mesmo estabelecer (a comunicação) entre os através de uma dialéctica contendo várias frases uma
objectos exteriores, no movimento dos quais vê avisos, das quais é a aplicação da justiça ao trabalho, e cuja
chamamentos, sinais (...). Isto abala a filosofia espiri- finalidade é a revolução social.
tualista de alto a baixo e promete fazer do trabalhador, Para Proudhon, o grau de embrutecimento em
servo aviltado da civilização, o autor e o soberano do que caem os que não agem nem trabalham é ainda
pensamento, o árbitro da filosofia» (ibid. p. 73). maior; anuncia a decadência do pensamento burguês
Existe na sociedade «algo de anterior a todos os c a desaparição próxima da própria classe burguesa.
sinais que, desde sempre, têm servido de veículos e «O burguês aprecia o bem, o belo, o justo, o verda-
de instrumentos ao saber; algo que estes sinais imitam deiro, o santo segundo o valor venal dos objectos;

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o que admira nas obras de arte é o que elas custam; Marx. Sabemos quanto o pensamento de Marx foi
o que aprecia na ciência e na filosofia é aquilo que absorvido pelo problema da alienação e da desaliena-
podem render» (ibid. p. 141). «A burguesia está defini- ção da sociedade no seu conjunto, pelo problema da
tivamente condenada; assistimos à sua morte», morte alienação das forças produtivas, das relações de pro-
moral, intelectual e política, à sua queda, de que dução, do trabalho e finalmente da classe proletária.
o regime do Segundo Império é uma manifestação» Aliás este é um dos aspectos da dialéctica de Marx
(ibid., p. 147). que neste curso confrontaremos com a de Proudhon.
Quanto ao segundo ponto, Marx escreve nas Teses
sobre Feuerbach: «O problema de saber se a verdade
objectiva é acessível ao pensamento humano, não é
DÉCIMA PRIMEIRA LIÇÃO um problema teórico, mas prático. Na prática, o
homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade
Vamos continuar a nossa análise do «VI Estudo»: c o poder do seu pensamento». Marx refere-se por
«o trabalho». «A primeira parte da nossa proposição», um lado à prática revolucionária e por outro à das
escreve Proudhon, «está portanto estabelecida: a ideia, forças produtivas, que estão na origem das ideias e da
com as suas categorias, nasce da acção; por outras verificação destas.
palavras, a indústria é mãe da filosofia e das ciências. Proudhon por seu turno visa antes de mais a
Falta-nos demonstrar a segunda: a ideia deve voltar prática do trabalho, alienado e desalienando-se através
para a acção; o que significa que a filosofia e as ciên- do livre esforço. É interessante notar que o pensamento
cias devem, sob pena de degradação da humanidade, de um pretenso idealista como Proudhon e a de um
entrar no campo da indústria» (p. 81). O significado pretenso materialista como Marx coincidem numa dia-
deste texto ultrapassa de longe o da fórmula ambígua léctica pragmático-realista que abarca a sociedade
segundo a qual «toda a filosofia e toda a ciência devem cm acto e a sua propensão, na situação actual, para
ser práticas, técnicas. É o sentido da investigação da I revolução social. Devemos no entanto indicar por
filosofia popular e prática». Quando Proudhon declara onde passa a linha divisória entre os dois pontos de
que a «ideia deve voltar à acção», refere-se à desa- vista. Esta surge do papel que Proudhon atribui à
lienação do trabalho, desalienação que, como dissemos justiça na dialéctica da desalienação do trabalho.
no fim da lição anterior, só pode ser atingida pela A justiça nascida do trabalho degenera através
revolução social. da alienação deste que é a negação da dignidade de
Através destes dois aspectos vemos mais uma vez todos e de cada um. A aplicação da justiça social ao
que o pensamento de Proudhon se funde com o de trabalho não é mais que o regresso da ideia de justiça

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à acção manifestando-se no trabalho donde proveio. dúvida possível. Marx foi muito mais consequente e
Proudhon interroga-se: «O trabalho libertar-se-á ou muito mais clarividente que Proudhon; os conceitos
não?» (p. 96 e seguintes). N ã o duvida que a libertação de «forças produtivas» por um lado, de «praxis social»
do trabalho se faça através da justiça social «se as por outro, acabam com as hesitações que Proudhon
forças colectivas alienadas em proveito de alguns explo- não conseguiu superar, alargando o conteúdo das
radores voltarem para os trabalhadores» (ibid). A jus- obras de civilização (os produtos da «consciência real»,
tiça e a desalienação triunfarão com a revolução so- segundo a expressão de Marx nas obras de juventude).
cial. N o entanto isto não explica a razão por que A divergência aprofunda-se seguidamente pela dis-
Proudhon põe a ideia de justiça acima de outras ideias tinção, introduzida por Marx, de diferentes tipos de
e valores produzidos pela acção, pelo trabalho e pelo alienação, distinção importante mas que o próprio
esforço livre que estão na base de toda a sociedade. Marx não utilizou suficientemente.
Assim, através de um pragmatismo realista, o nosso As nossas reservas quanto à eficácia do pragma-
autor limita o que resta do seu racionalismo embora tismo realista e dialéctico de Proudhon formuladas no
não consiga eliminá-lo completamente. «Estudo VI», sobre o trabalho, encontram uma con-
Esta constatação encontra-se confirmada pela pre- firmação na exposição das suas concepções propria-
ferência que Proudhon dá à justiça em detrimento mente sociológicas desenvolvidas no «Estudo IV» con-
do «ideal» que repousa sobre o sentimento e a imagina- sagrado ao Estado (vol. I I , pp. 159-325) assim como
ção. «A predominância do ideal implica um retrocesso no Estudo V I I sobre as Ideias (vol. I I I , pp. 149-321)
em qualquer sociedade», escreve (vol. I I I , p. 547). onde é colocado o problema da relação entre «a cons-
Quando prevalece sobre a justiça, este «ideal» quer ciência colectiva» e «a razão colectiva».
seja estético ou religioso (e poderíamos acrescentar, Para se reconciliar com o Estado, Proudhon pro-
ou moral, mas Proudhon não distingue a moralidade cura provar que este é, como qualquer outro grupo
da justiça), «provoca a decadência da humanidade». social, um ser real, que possui as suas forças colectivas
Proudhon dá portanto a hegemonia à inteligência e próprias e a sua consciência colectiva, que por inter-
à razão sobre a afectividade. A própria vontade, para médio da justiça e do direito, pode predominar sobre
a qual apela muitas vezes e que considero como ins- as forças mencionadas e conduzi-las. O que é que
piradora da acção do trabalho e até da revolução, não constitui a realidade do poder social? É a força colec-
possui as suas luzes próprias, mas é conduzida pela tiva (...). A força não é apenas atributo dos indivíduos;
inteligência, o que entra em contradição com o seu prag- as colectividades possuem também a sua força pró-
matismo realista segundo o qual as ideias nascem da pria (...). Uma oficina, constituída por operários cujos
acção e voltam à acção. Sobre este ponto não existe trabalhos convergem para um mesmo fim, que é obter

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este ou aquele produto, possui, enquanto oficina ou poder, governo, indicam um verdadeiro ser, pois que
colectividade, um poder que lhe é próprio: a prova o que reúne os dois atributos da existência (...), a alma
disto, é que o produto destes indivíduos assim agrupa- c o corpo, não se pode reduzir ao nada» (p. 254).
dos é muito superior ao que seria a soma dos seus Sendo a realidade da força colectiva do Estado
produtos individuais se cada um deles tivesse traba- indiscutível «o que é preciso considerar é o espírito
lhado independentemente dos outros. Assim, a tripula- que o anima, o seu pensamento, a sua alma, a sua
ção de um navio, uma sociedade em comandita, uma ideia (ibid. p. 170). «É através da ideia que os governos
academia, uma orquestra, um exército, etc. todas estas vivem ou morrem. Se a ideia se tornar verdadeira,
colectividades (...) têm um poder, poder sintético e por mais criticável que seja a origem do Estado, por
consequentemente especial ao grupo, superior em qua- mais defeituosa que a organização deste pareça (...)
lidade e energia à soma das forças elementares que estará ao abrigo de qualquer ataque do exterior e de
o compõem» (vol. 11, p. 258). toda a corrupção no interior» (ibid., p. 170). Ora,
«Portanto, sendo a força colectiva um facto tão «ideia, revelada ou não, dos governos, tem sido até
positivo como a força individual, a primeira perfeita- aqui um preconceito radicalmente oposto à justiça»,
mente distinta da segunda, os seres colectivos são rea- enquanto a ideia de justiça assim como a de revolução
lidades como o são os indivíduos» (ibid). Deste ponto constituem a única justificação possível do Estado.
de vista, o Estado não é «nem diferente dos outros É por isso que através da história o Estado só conduziu
grupos nem menos real que eles». «O Estado resulta à violência, ao abuso do poder, às perversões das
de vários grupos diferentes (...). É uma colectivi- forças colectivas, às alienações.
dade (...) na qual vários grupos concorrem para de-
senvolver uma força nova, que será tanto maior quanto Aqui está o Estado que Proudhon combateu,
mais numerosas forem as funções associadas» (ibid., mesmo quando este Estado adquiria a forma da demo-
p. 258). «Afirmo que a instituição política exprime, cracia política, ou mais exactamente da «democracia
não uma convenção ou um acto de fé, mas uma rea- de privilégios ou jacobina», em que o poder continua
lidade» (ibid., pág. 256). «Esta realidade degenera a ser absoluto. Mas Proudhon não se insurge contra
muitas vezes, mas o Estado é algo a que a humanidade um Estado transformado pela justiça e limitado por
se agarra apesar de todos os males que dele têm vindo» uma economia planificada autónoma que se gira a si
(ibid., p. 256). «Dado que o Estado possui a sua própria segundo os princípios da democracia industrial.
ideia que é a sua consciência, depois a sua forma, «Assim, passa-se com o governo o que se passa
noutros termos, o seu organismo que é o seu corpo, com a propriedade, com a divisão do trabalho e com
somos levados (...) a crer que as palavras: Estado, todas as outras forças económicas: tomado isolada-

26 27
mente, abstraindo do pensamento mais ou menos jurí- tivas e estes poderes, por mais intensos que sejam,
dico que o determina, é estranho ao direito, indiferente â o implicam directamente nem justiça, nem direito,
a qualquer ideia moral, é um instrumento de força. em ideal. «Indiferentes ao bem e ao mal», as forças
Enquanto o governo não for penetrado pela justiça, colectivas, cegas como são, podem declinar, perverter-
continua estabelecido sobre ideias de fatalidade e -se ou alienar-se. É assim que as forças colectivas
de Providência, tende para a arbitrariedade, oscila de económicas são alienadas pelos patrões que exploram
catástrofe cm catástrofe. O Problema consiste pois em, os operários. É também assim que os forças colectivas
após se ter preparado o terreno económico, aplicar políticas são alienadas pelo Estado autoritário que,
a justiça ao Estado e libertá-lo assim da fatalidade e em vez de servir a justiça, está subordinado ao inte-
do arbitrário. Tal é o objectivo da revolução (ibid., resse das classes dominantes, aos proprietários de terras
p. 170). «Qual é então o realismo do Estado?», per- ontem, à burguesia hoje.
gunta Proudhon. E responde: «É o realismo da justiça
e do direito assim como da força colectiva; ambos Mas a realidade social n ã o se reduz unicamente
se encontram unidos aqui, como nos outros grupos, ao jogo das forças colectivas. «O materialismo» dirá
pela formação da «comunidade de consciências» isto é, Proudhon em De Ia Capacite politique des Classes
da «razão colectiva, ou do «espírito colectivo» o que Ouvrières é absurdo no que toca a sociedade», pois
é a mesma coisa. as forças colectivas podem engendrar ideias e valores
que se integram nelas e podem então conduzir essas
Tudo isto nos conduz à concepção geral de Prou-
forças. É este o caso do trabalho colectivo na sua
dhon, sobre a realidade social. Para Proudhon, esta
luta contra a alienação.
apresenta três aspectos principais ou, para aplicar a
nossa terminologia, três camadas (paliers) que são as
seguintes: 2. Estas considerações conduzem-nos ao segundo
aspecto do ser social, intermediário entre as forças
1. O ser social apresenta-se antes de mais sob colectivas e as ideias e valores que dele podem surgir
o aspecto de «forças colectivas» irredutíveis às forças (sobretudo a ideia de justiça). Trata-se da regulamenta-
individuais; as primeiras são «imanentes à sociedade ção pelo direito, direito igualitário e mutualista cor-
como a atracção à matéria». Quando a sociedade, os respondente à justiça social, que se mostra capaz de
grupos particulares, o Estado inclusive, as classes se equilibrar os conflitos tantas vezes engendrados pelas
organizam, as forças colectivas destes grupos tor- forças colectivas. Neste ponto Proudhon pensa muito
nam-se o poder, quer se trate do poder político, eco- exclusivamente como jurista: na engrenagem da rea-
nómico ou social (ib. pp. 260-261). Estas forças colec- lidade social, atribui ao direito um papel demasiado

28 29
importante, sobretudo ao direito social autónomo e dições: a) que as ideias e valores produzidos pela
de preferência espontâneo; sublima-o e opõe-o em acção e mais precisamente pelo trabalho colectivo em
certa medida ao direito da força por um lado, e por processo de desalienação, se afirmem claramente;
outro ao direito individualista nascido do direito ro- b) que a consciência colectiva, que Proudhon identifica
mano tradicional. constantemente à «razão colectiva» consiga impor-se.

Fazendo justiça a Proudhon e para sublinhar todos 3. O terceiro aspecto ou nível da realidade social
os seus méritos, poderíamos talvez substituir o termo compreende portanto as ideias e os valores colectivos
«direito» pelos termos «regulamentações sociais» ou que já referimos e de que não voltaremos a
«controlo social» utilizados pelos sociólogos ameri- tratar.
canos. Trata-se dos modelos, regras, signos, sinais,
símbolos de diferentes espécies, que em qualquer rea-
4. Os aspectos precedentes conduzem-nos à quarta
lidade social se encontram imbricados uns nos outros.
camada (palier) que Proudhon designa por «consciência
Proudhon deve pois ser louvado por ter enriquecido
comum» ou «consciência social» e que erradamente
a realidade social e por ter insistido no facto desta
identifica com «a razão colectiva», «o espírito social»
compreender não só forças colectivas, mas também regu-
ou ainda «a razão pública». Refere-se-lhe ao longo
lamentações sociais surgidas destas forças e também
de todo o livro e mais particularmente no «Sétimo
por ter verificado que estas duas camadas (paliers)
Estudo», consagrado às Ideias. Proudhon preocupa-se
estão em relação dialéctica cuja complexidade pressente.
com «A corrupção da razão pública» pelo absoluto
Embora não as explicitando, encara relações de comple-
e constata que a revolução burguesa tornou-a ima-
mentaridade, de implicação mútua, de ambiguidade,
nente e livre, mas insuficientemente eficaz. Só a revo-
de polarização, de reciprocidades, de perspectivas que
lução social a fará predominar. Além disso, o nosso
não chega a distinguir claramente.
autor insiste na diferença capital existente entre a razão
No entanto Proudhon considera — o que prova colectiva e a razão individual (ib. p. 250). «Esta razão
que não conseguiu superar completamente o seu racio- colectiva não faz deduções; é essencialmente prá-
nalismo inicial — que, quanto mais as regulamentações tica, o que não a impede de se tornar também teórica.
sociais conseguem conduzir as forças colectivas de que É ela que inova e que contribui para a criação, é ela
provêm, mais a justiça social tem possibilidades de que explode nas revoluções e que, no futuro, conduzirá
triunfar numa sociedade ou num grupo. Mas, para ao triunfo da justiça social. Parece-me inútil insistir
que esta situação possa realizar-se, pelo menos parcial- nesta distinção fundamental entre a razão individual
mente, são necessárias, segundo Proudhon, duas con- e a razão colectiva, a primeira essencialmente abso-

30 31
lutista, a segunda antipática a qualquer absolutismo» de que nasceram por intermédio da razão colectiva,
(ibid., p. 253). essencialmente pragmática.
A razão colectiva revela que «a sociedade», ser Proudhon não reconhece à razão colectiva nem
moral por excelência, difere essencialmente dos seres transcendência, nem carácter de «logos», nem possi-
vivos (individuais) cuja lei de existência é a subordi- bilidade de ser captada ou de captar instintivamente.
nação dos órgãos. É por isso que a sociedade repugna Assim, não precisa a maneira como a «razão colectiva»
a qualquer ideia de hierarquia como se verifica na toma consciência das ideias e valores, nascidos na acção
fórmula: todos os homens são iguais pela natureza e mais directamente no trabalho colectivo. O seu
e devem tornar-se iguais do ponto de vista das suas papel clarificador e inovador, a própria diferença entre
condições c dignidade», (p. 265). «Outra é pois a razão os seus conteúdos ou produtos e o esforço colectivo
individual, absolutista que procede por génese e silo- permanecem na sombra. É este o ponto fraco da aná-
gismo e que constantemente, através da subordinação lise de Proudhon, a porta aberta para numerosos mal-
das pessoas, das funções, dos caracteres tende a sin- -entendidos. E tanto mais que os textos de Proudhon
tetizar a sociedade; e outra, a razão colectiva, por contêm por vezes reminiscências daquela «vontade
toda a parte eliminando o absoluto, procedendo inva- geral» de Rousseau e que ele tanto criticou; escreve
riavelmente por equações e negando energicamente Proudhon: «Quando dois ou vários homens têm de
qualquer sistema, relativamente à sociedade que re- pronunciar-se contraditoriamente sobre uma questão,
presenta», (p. 267). resulta da eliminação que são levados a fazer respectiva
«O órgão da razão colectiva é o mesmo que o e reciprocamente da sua subjectividade, isto é, do
da força colectiva; é o grupo trabalhador, instrutor; absoluto que o Eu afirma e representa, uma maneira
a companhia industrial, sábia, artista; as academias, de ver comum que j á não se parece nem no fundo
escolas, municípios; é a Assembleia Nacional, o clube, nem na forma com aquilo que, sem o debate, teria
o júri (p. 270). Em resumo é qualquer grupo parti- sido a maneira de pensar individual destes homens»
cular assim como qualquer classe social, qualquer socie- (ib., p. 261). Assim, muitas vezes «a constituição da
dade global, desde que as circunstâncias se prestem razão colectiva faz-se por equação ou balanço recí-
a isso. Proudhon atribui à razão colectiva uma acção proco dos pensamentos individuais» (ib. p. 265).
simultaneamente pragmática e moralizante (e daí a «Através das suas equações vemos a razão colectiva
célebre fórmula, extraída de uma carta a Cournot: destruir constantemente o sistema formado pela soma
«a moral é uma revelação do colectivo ao homem», das razões particulares; portanto, aquela não é apenas
mas não encontra esta capacidade na razão individual. diferente destas, é-lhes superior» (ib., p. 268). Esta
Pode portanto dizer-se que as ideias regressam à acção posição aproxima-se como vemos da de Durkheim.

32 33
Assim, seria lícito perguntar se a discussão de D É C I M A S E G U N D A LIÇÃO
Proudhon sobre a «razão colectiva» não acaba por
o levar a um impasse. A confusão entre «consciência
Para terminar a nossa exposição das análises de
colectiva» e «razão colectiva», a primazia mal velada
Proudhon, contidas em De la Justice dans la Révo-
concedida a ambas sobre as forças colectivas e as
lution et dans VÉglise, resta-nos analisar o « N o n o
regulamentações sociais que estas produzem, a ausên-
Estudo», intitulado Progrés et Décadence (vol. I I I
cia de precisão quanto às relações entre consciência
pp. 481-648). A finalidade desta parte da obra ultra-
e razão colectivas com as ideias e valores e por fim
passa a sociologia, envolve a doutrina social e política
a falta de uma análise pertinente do nascimento «da
de Proudhon a que dedicaremos esta lição. Renouvier
razão colectiva» da acção, diminuem incontestavel-
e outros filósofos admiraram este «Estudo» conside-
mente a eficácia do pragmatismo realista que Prou-
rando-o como uma das tentativas mais ousadas leva-
dhon procurava promover.
das a cabo para «desfatalizar» aquilo a que nos séculos
X V I I I e X I X se chamava o «progresso humano». Em
Contudo é preciso não perder de vista que Prou- parte, este é também o nosso ponto de vista. Como
dhon é essencialmente um partidário da dialéctica, sublinhámos j á , ao expor Philosophie du Progrés (1852),
antes de mais da dialéctica do movimento da realidade Proudhon rejeita não só a fatalidade, mas qualquer
social. A «consciência colectiva» e a «razão colectiva» desenvolvimento automático, e até qualquer deter-
fazem parte desta dialéctica. Todos os aspectos ou níveis minismo rigoroso na vida social. Guerreia tudo o que
da realidade social inclusive a «razão colectiva» são surja como providência transcendente, necessidade ima-
dialectizados. Deste ponto de vista, a «razão colectiva» nente ou até lei de evolução no movimento da socie-
é apenas um momento da «totalização da vida social. dade. Ao fatalismo, ao autonomismo como ao deter-
É claro que o termo em si é infeliz, tanto mais que não minismo social rigoroso, opõe o princípio do esforço
se sabe exactamente o que Proudhon pretendeu dizer colectivo criador, cuja manifestação mais flagrante é
e se pensou realmente na «razão» no sentido em que o recurso sempre renovado às revoluções e, no futuro,
este termo é geralmente utilizado. É certo, contudo, à revolução social.
que cm sociologia, Proudhon quis chegar a um rela-
tivismo pragmático consequente, mas que nem sempre Começa pois por fazer a crítica das filosofias do
teve os meios para lá chegar e que, além disso, foi progresso, antes mesmo de definir o que há de aceitável
traído pela sua própria terminologia. Reconheçamos neste termo. «É preciso confessar», escreve «que o
ao menos que as suas intenções foram sãs, embora progresso tem sido tão maltratado por aqueles que
não tenha conseguido torná-las efectivas. se fizeram os seus apóstolos oficiais, como anterior-

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mente o foram a liberdade e a justiça» (vol. I l l , pp. 4-34). estas forças. Mas o êxito não está nunca assegurado.
«Para começar, que se entende por progresso? Para Embora se realize, o sucesso pode ser precário e nunca
uns, esta palavra é sinónimo de movimento. Mas o se sabe se em breve vai ser preciso recomeçar de novo.
progresso é mais que movimento e ainda não se provou Assim, do mesmo modo que relativamente à vida bioló-
que uma coisa está em progresso só porque se prova gica, Bergson substitui a ideia de evolução pela de
que essa coisa se move» (ib., p. 484). «evolução criadora», relativamente à vida social, Prou-
Para outros, o progresso «é uma evolução, uma dhon substitui a ideia de progresso pela de um recurso
série ascendente e descendente descrita no tempo, algo constante a revoluções sempre novas.
de orgânico e de completo». «Como se crises determi-
nadas a priori e numa certa ordem pela necessidade Podemos perguntar-nos se, nestas condições, Prou-
da nossa constituição, ou organizadas pela Provi- dhon não ganharia em ter abandonado o termo pro-
dência (supondo que tal predição possa ser válida gresso. Mas também neste aspecto era bem um homem
e se aplique à sociedade) merecessem o nome de pro- do século X I X . Tinha contudo da complexidade deste
gresso» (ib. p. 484). «E sublinha Proudhon», «no estado problema uma consciência muito mais clara não só
em que a discussão hoje se encontra, é realmente que Comte mas que o próprio Marx. Este último,
impossível dizer se há na humanidade avanço, recuo depois de ter ligado e com razão o progresso à luta
ou síaíu quo» (ib. p. 485). de classes (em que se manifesta a liberdade), às suces-
sivas vitórias da burguesia e depois às do proletariado,
Segundo Proudhon, só se pode falar em progresso
embateu num determinismo sociológico que não con-
«mostrando-o liberto de qualquer fatalidade tal como
seguiu analisar suficientemente e cujos graus variados
o livre arbítrio e a justiça». A teoria do progresso
não conseguiu determinar com clareza.
deve «partir da liberdade e da justiça e, daí, estender-se
a todas as faculdades do homem colectivo e individual: Voltando a Proudhon, começa por atacar a ideia
de contrário e pois que o progresso de uma faculdade de progresso industrial ou técnico, glorificado pelo
é compensado pela diminuição de outra, não existe Saint-Simonismo e que conduz à «feudalidade econó-
progresso». O progresso «deve também apresentar um mica». Indigna-se por haver quem tenha ousado consi-
desenvolvimento acelerado, não um movimento evo- derá-lo adversário do progresso técnico, apenas porque
lutivo, parabólico ou concêntrico» (ib., p. 485). se opôs à «feudalidade industrial». Esta constitui de
Em suma, para Proudhon, o progresso social é facto uma regressão, pois conduz à escravatura dos
esforço livre e constantemente para renovar, orien- operários, à alienação do trabalho e do Estado ao
tado no sentido do triunfo da justiça, nascido das Capital e impede o aumento da riqueza e do bem-estar
forças colectivas, como a razão colectiva que dirige da maioria da população (ib. vol. I I I , pp. 489-493).

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mente a natureza e o espírito, e que se possui; capaz
Seguidamente, Proudhon ataca o determinismo
como tal de negar o espírito, de se opor à natureza,
fatalista do filósofo alemão Herder (sobretudo a obra
de a submeter, de a desfazer e de se desfazer a si pró-
deste último Idêes sur la Philosophic de VHistoire) e
pria, numa palavra, capaz de se comandar» (p. 501).
as concepções cíclicas de Vico. «Se estes dois pensadores
O que existe de mais grave nas concepções do orga-
tivessem razão, seria incompreensível que se pudesse
nismo social, predeterminado e necessitado da eterni-
falar em progresso. É a propósito destas teorias que
dade na razão absoluta, é que depois de negarem a
Proudhon escreve a frase que já referi e que volto
liberdade (c portanto o progresso), conduzem (...) à
a citar.» «Confesso que já fui logrado por esta panaceia
tirania e ao quietismo» (p. 502).
fisiológico-política que não resistiu muito tempo ao
exame» (ib. p. 495). «Está portanto esclarecido que segundo as defini-
ções que foram dadas «(pelas teorias criticadas atrás)»,
Critica também Hegel. «Poder-sc-ia pensar», es-
o progresso n ã o só não decorre da nossa liberdade,
creve, «que o movimento das ideias nos trará finalmente
como n ã o é testemunho da nossa virtude. É a marca
o progresso. Engano; as ideias de Hegel não são mais
da nossa servidão» (ib., p. 509). Após uma tal consta-
que a descrição do organismo intelectual que governa
tação, quando se lê a frase de Proudhon, «o que im-
o homem c a natureza, do mesmo modo que a liberdade
porta é saber se o progresso não é uma ilusão», espera-
daquele não é mais que a força cega que conduz este
-se que conclua que mais vale falar apenas em lutas,
organismo» (ib.. p. 500). « N ã o , no sistema de Hegel
em antinomias, em acções livres e criadoras, em revo-
não existe lugar para a liberdade, por isso n ã o existe
luções, e renunciar ao conceito de progresso tantas
progresso (...). Hegel chama liberdade ao movimento
vezes confuso.
orgânico do espírito, dando ao movimento da natureza
o nome de necessidade. No fundo, diz, estes dois movi- Tal não é, porém, a posição de Proudhon que
mentos são idênticos: e assim, segundo o filósofo, a apesar de todas estas hesitações permanece optimista.
mais alta liberdade, a maior independência do homem, Disse-se de Leibnitz que era um «optimista inquieto»
consiste em saber-se determinado pela ideia absoluta. (Leon Brunschvicg). Ainda com mais razão, pode
É como dizer que a mais alta liberdade do cidadão dizer-se de Proudhon que foi um teórico inquieto,
consiste em saber-se governado pelo poder absoluto, muito inquieto e até, por vezes, desesperado pelo pro-
o que deve pôr à vontade os partidários da ditadura gresso. De facto, algumas páginas adiante escreve:
perpétua e do direito divino» (ib., p. 501). «Todos cremos invencível mente no progresso, como
cremos na liberdade e na justiça» (p. 511). «A própria
«Não é assim que concebemos a liberdade. Se-
liberdade, apesar de todas as suas aberrações, só age,
gundo a definição revolucionária, a liberdade é uma
em última análise, só funciona ao serviço da justiça (...).
força de colectividade, que compreende simultânea-

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38
Segundo a noção de justiça e segundo os factos, o pro- o progresso é antes de mais um fenómeno de ordem
gresso não só é possível, como é o estado natural da moral, cujo movimento em seguida se irradia» (p. 512).
humanidade. Donde é necessário concluir que se, Mas, a ordem moral está ligada ao trabalho e à acção
apesar de tudo, o progresso for suspenso, se for trans- colectiva; o progresso apresenta-se mais uma vez como
formado em retrocesso, a causa disso só pode vir de uma ideia pragmática, capaz de inspirar o máximo de
um princípio capaz de violentar ou lograr a cons- esforço, de liberdade, de trabalho, de acção revolu-
ciência (p. 517). Proudhon tenta salvar o progresso cionária.
identiíicando-o ao «caminho da liberdade». «O caminho No Capítulo I V , Proudhon chega a declarar que
da liberdade não pode parar perante organismo algum, «efectivamente não existe uma teoria do progresso,
não pode reconhecer nada de fatal e de superior que pois que o progresso é dado pelo facto de o homem
o obrigue a desviar-se como o piloto perante um obs- possuir a ideia de justiça, (...) por ser inteligente e
táculo. A liberdade desenvolve tudo no nosso ser; livre, e por a sua indústria como a sua ciência ser
acrescenta à qualidade da razão, imaginação e cons- ilimitada. Existe apenas uma teoria (...) do retrocesso»
ciência» (p. 540). (p. 537), nascida da necessidade de explicar a razão
Contudo, apesar desta profissão de fé, Proudhon pela qual a humanidade não utiliza mais vezes e com
não consegue conter o cepticismo. O Capítulo I I I do melhor sucesso, a sua capacidade de fazer revoluções.
« N o n o Estudo» tem como sub-título: Le Progrés est Proudhon explica isto em pormenor no Capítulo I V
la Justification de VHumanité par elle-même, sous VExci- que agora analisamos. «A causa primeira» (da deca-
tation de VIdeal (ib., p. 511). Se o progresso c apenas dência), «o princípio de todos os retrocessos sociais
uma justificação da humanidade por si própria, não reside na separação, mais ou menos fortuita, do que
será então uma espécie de ideologia ou mesmo de o homem possui em si de mais elevado, o justo e o
mito, que inspiraria a acção à maneira como Sorel ideal», (p. 536). «A justiça funda-se na razão, colectiva
concebia a greve geral? Esta hipótese parece ter confir- e individual, o ideal funda-sc na afectividade, no amor,
mação no facto de Proudhon falar de progresso como na imaginação (ib., p. 523). A justiça e o ideal ao
de uma irradiação da consciência, irradiação não só unirem-se num ideal justo ou numa justiça ideal,
mitológica, é claro, mas talvez pragmática. conduzem, por etapas, ao progresso, graças à liberdade.
Assim, porque é que a ideia de progresso nascida Pelo contrário, quando entram em conflito, há retro-
da acção não voltaria à acção sob a forma de pro- cesso, decadência.
jecto ou de plano? N ã o será neste sentido que Prou- Com efeito, «por natureza, o ideal é impotente
dhon escreve: «Se me preocupar mais (...) com as para fornecer (...) a solução dos problemas sociais,
evoluções da natureza e da história (...), afirmo que e, sem a justiça, conduz à idolatria» (p. 546). «O anta-

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gonismo entre a justiça e o ideal manifestou-se sobre- mento da consciência-corrupção ou dissolução da hu-
tudo durante os cinco ou seis séculos que precederam manidade por si própria, manifestada na sucessiva
e se seguiram à pregação de Cristo na Terra; em se- degradação dos costumes, da liberdade, do génio, na
guida, sob a influência do Evangelho, este antagonismo diminuição da coragem, da fé, no empobrecimento das
enfraqueceu; depois, pelos séculos X V c X V I no tempo raças, e t c : é a decadência. Em ambos os casos afirmo
da Renascença e da Reforma, houve recrudescência que a humanidade se aperfeiçoa ou se destrói a si mesma,
do flagelo e hoje sofremos do cansaço dos nossos porque tudo depende exclusivamente da consciência e
padres que estão muito longe de ter compreendido da liberdade, de forma que o movimento, tendo a sua
a Revolução. Mas, (...) passada esta grande crise do base de acção na justiça, a sua força motriz na liberdade,
século X I X , podemos esperar ver a justiça seguir o já não pode conservar nada de fatal» (ib., p. 512).
seu curso sem sofrer nenhum eclipse ao longo dos
O progresso apresenta-se, pois, por vezes, como
séculos vindouros» (pp. 536-537). Nesta passagem,
uma hipótese pragmatista que encoraja a acção colec-
Proudhon torna a mostrar-se claramente optimista.
tiva, por vezes como uma vitória da liberdade ou como
«A doutrina do progresso resume-se, assim, em o triunfo da razão colectiva e da justiça social graças
duas proposições cuja verdade histórica é fácil de às revoluções. Estas três acentuações do progresso
constatar: interpenetram-se, não só quando se tem em conta a
— Toda a sociedade progride pelo trabalho, pela sua origem comum (as forças colectivas sublimadas),
ciência e pelo direito. como quando se toma em consideração a dialéctica
que põe em relevo as sublimações c modificações entre
— Toda a sociedade regride pela preponderância
os diferentes aspectos da sociedade em acto. Apesar
do ideal» (p. 547).
de aparentemente recair novamente no racionalismo, no
Proudhon retoma esta tese noutra passagem, em- Estudo I X Proudhon permanece fiel à sua orientação
bora a formule de maneira diferente: «No primeiro no sentido de um pragmatismo realista dialectizado. No
caso» (o do progresso), trata-se do «aperfeiçoamento fundo, ultrapassa completamente a ideia de progresso,
da humanidade por ela própria — este aperfeiçoamento mas sem se dar conta de a ter abandonado definitiva-
tem como efeito fazer progredir a humanidade indefini- mente. Só insiste nela, para salvaguardar um mínimo de
damente em liberdade e em justiça; desenvolver cada optimismo, mas limita-a a tal ponto que é obrigado
vez mais o poder, as faculdades, os meios desta e a afirmar que as decadências eventuais o interessam
consequentemente, de a elevar acima do que há nela mais que o progresso. Os textos de Proudhon que
de fatal: é nisto (...) que consiste o progresso. «No acabámos de analisar não são, bem entendido, muito
segundo caso» (o da regressão), «refiro-me ao movi- claros. Mas representam uma etapa que prepara a

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rejeição da ideia de progresso pela sociologia contem- de coração e de espírito, não pode deixar de merecer
porânea. o nosso desamor. O antagonismo tem por finalidade
A penetração da liberdade humana nas falhas que a produção de uma ordem sempre superior, de um
se produzem quer entre os determinismos sociais, quer aperfeiçoamento sem limites. Deste ponto de vista, é
ao longo das manifestações destes nos determinismos preciso reconhecer que o trabalho oferece ao anta-
sociológicos propriamente ditos, basta para permitir gonismo um campo de operação muito mais vasto e
aos homens «fazer a história», tendo em conta a estra- fecundo que a guerra» (vol. I , p. 480). Proudhon quer
tégia a adoptar para vencer os obstáculos. prestar homenagem ao espírito guerreiro das lutas
Quase imediatamente após ter escrito De La Justice, sociais, «caluniado pelo espírito industrial». Afirma
Proudhon lança-se na redacção de La Guerre et la que os campos de batalha se transformarão em ofi-
Paix, publicada em 1861, em dois volumes. Este livro cinas e campos e que o heroísmo persistirá sob a forma
pode ser considerado como um esforço de Proudhon de luta de trabalho c de luta de classes, combatendo
para esclarecer a sua posição. Acentua nesta obra o pela desalienação.
seu realismo dialéctico em sociologia, a fim de escla- Sem virilidade a justiça social não pode realizar-
recer certas imprecisões que poderiam ter sido provo- -se. O direito exige força para passar aos factos. É por
cadas pelas indecisões de linguagem na sua obra pre- isso — e aqui está o outro aspecto do problema— que
cedente. Porém, este novo livro provocou escândalo. em La Guerre et la Paix, Proudhon defende a tese
Disse-se que Proudhon tentava reabilitar a guerra. de que o direito da força não deve ser negado, pois
De facto Proudhon esforçou-se por mostrar que, na a força pode ser conduzida pela justiça. Proudhon
vida social, nada se passa sem conflitos, sem lutas, constrói nesta obra toda uma «gama de direitos».
sem antagonismos, sem o recurso à força, de que uma A o nível supremo encontra-se o direito social, caracte-
das manifestações é precisamente a guerra. Mas o rizado de preferência como o «direito económico»
nosso autor mostra que, como o Estado e a propriedade, igualitário da sociedade futura. Segue-se-lhe o «direito
a guerra transforma-se. Depois da industrialização a político» que só merece este nome quando é estabele-
guerra transformou-se em concorrência e em luta de cido de uma forma não-autoritária por um Estado
classes. (Proudhon não previa as guerras coloniais, autenticamente democrático, isto é, inteiramente trans-
e esta é uma das suas lacunas). formado. Mesmo nestas condições, o direito político
«Nestas novas batalhas, não podemos deixar de é apenas um direito intermediário.
dar menos provas de resolução, de abnegação, de des- A o nível inferior encontra-se «o direito da força e
prezo pela morte e dos prazeres dos sentidos. E tudo da guerra» aquele que, do ponto de vista genético,
aquilo que for cobarde, débil, grosseiro, sem valor primeiro apareceu. Se o estabelecimento «do reino do

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direito» e da «soberania do direito económico» pode sào: as forças colectivas, o direito e de uma maneira
pôr fim ao direito de guerra entre as nações, isso não mais geral, as regulamentações sociais (sinais, modelos,
significa que entre os grupos particulares e especialmente regras, símbolos); a justiça e o ideal, ora em luta ora
entre as classes sociais, não deva subsistir um certo conjugados; por fim «a razão colectiva», identificada
direito de guerra. E mesmo depois da revolução social à consciência colectiva.
triunfante e da eliminação do patronato, quando a
I I . Esta realidade social constitui uma totalidade
«democracia industrial», gerindo a economia no regime
ou mais precisamente, está envolvida num movimento
do colectivismo descentralizado, conseguir efectiva-
dialéctico de «totalização». A base desta realidade é
mente limitar a democracia política transformada, po-
o esforço, a acção colectiva, cuja manifestação mais
demos considerar que um dos elementos necessários
rica é o trabalho que implica, todas as dimensões men-
ao equilíbrio destas será precisamente a equivalência
cionadas. É através do trabalho colectivo que as forças
entre as suas forças, portanto um certo direito de guerra
colectivas penetram o conjunto dos níveis da totali-
e de força. O mesmo acontece para os grupos e para as
dade social. Mas esta penetração está ligada às etapas
novas classes sociais que poderiam surgir neste género.
da desalienação do trabalho, o que torna necessário
Para se compreender bem Proudhon, é preciso
revoluções sucessivas.
recordar aqui a sua dialéctica, muito mais complexa
que a simples procura de antinomias irredutíveis. I I I . A espontaneidade colectiva desempenha um
O nosso autor pretendeu realizar o movimento dia- papel essencial, e é nas revoluções que ela melhor se
léctico entre a força e o direito e entre os seus diferentes manifesta. Aliás, sem ela, o trabalho, as forças colec-
géneros. Mas, se entreviu a complexidade e a varia- tivas, as regulamentações sociais, a justiça, a razão
bilidade da situação, simplificou demasiado as suas colectiva, a liberdade colectiva, ligada à vontade, não
poderiam funcionar.
fórmulas, e daí a fraqueza da obra «Guerre et Paix».
Como o conteúdo das duas obras que acabamos IV — Existe em cada sociedade uma multiplicidade
de expor é sobretudo sociológico, tentemos resumir de grupos (groupements) e no regime capitalista sur-
alguns dos pontos que podem ser considerados como gem as classes sociais, o proletariado e a burguesia.
adquiridos ao longo da nossa análise, para os subme- A luta entre estas duas classses tende para a revolução
termos em seguida (no início da nossa próxima confe- social. Esta pode, n ã o s ó desalienar o trabalho, mas
rência) a reflexões críticas. Eis o resumo dos traços transformar as guerras internacionais em batalhas com
essenciais da sociologia de Proudhon. vista a subjugar a natureza.
I . A realidade social é multiforme, pluridimensio- V. O pluralismo sociológico, revelado pela exis-
nal. As suas diferentes camadas (paliers) ou aspectos tência de grupos múltiplos (e por vezes pela de classes

46 47
diferentes) e por conflitos entre o Estado e a sociedade na ambiguidade ora na polarização, ora na recipro-
económica, impõe-se pelos factos. cidade de perspectivas. Esta dialéctica implícita conduz
a experiências sempre renovadas. Quando confrontar-
V I . Desde que o trabalho permaneça alienado,
mos a dialéctica de Proudhon com a de Marx, volta-
não só as forças colectivas, mas o conjunto da tota-
remos a este problema.
lidade social, em todos os seus níveis são dominados
pelas classes possuidoras, em particular pelo patro-
nato industrial e pela alta finança.
V I I . O progresso é a vitória da liberdade colectiva,
ligada à vontade que, graças às revoluções, faz triunfar D É C I M A TERCEIRA L I Ç Ã O
a razão colectiva e a justiça, conjugada com um ideal
afectivo. É também um apelo em favor de novas revo-
luções. N o Progresso nunca existe nada de automá- Das duas obras que analisámos na última lição,
tico, de fatal. A regressão, a decadência, o «retro- ressaltam certas dificuldades com que o pensamento
cesso», tão reais como o progresso, ameaçam de todos de Proudhon se debate sem as conseguir resolver c que
os lados a sociedade, os grupos e as classes sociais. podemos enunciar da seguinte maneira:

V I I I . As ideias, os valores, a justiça, «a razão I . Após ter descoberto as camadas ou aspectos


colectiva» nascida, por sublimação, das forças colec- (eíagements) da realidade social, das «forças colec-
tivas para as conduzir, vêm sobretudo da acção e do tivas» à «razão colectiva», Proudhon parece colocá-los
trabalho em processo de desalienação, e devem voltar numa ordem hierárquica estável segundo a impor-
à acção. Se perdem contacto com esta, degeneram e tância que lhes atribui na realidade social. A «razão
não se realizam na luta, no esforço, no trabalho, na colectiva», e o esforço colectivo livre estariam no cume
criação, nas revoluções, enfim. desta hierarquia, viria em seguida a justiça social con-
I X . A teoria sociológica de Proudhon pode pa- jugada com um ideal afectivo; depois, as outras ideias
recer incompreensível se não nos dermos conta da e valores seguidos pelo direito e pelas regulamentações
profundidade e da complexidade da sua dialéctica, que sociais, por fim, c apesar do facto de todas as camadas
de modo algum se reduz à procura de antinomias (paliers) precedentes provirem delas, temos as «forças
insolúveis que se equilibram. Sem a p ô r claramente colectivas». É evidente que não se trata aqui de uma
em evidência, Proudhon pressente uma dialéctica do hierarquia real, mas de uma escola de valores e que
movimento da realidade social, que ora se manifesta esta é dada como estável, o que é contrário ao prag-
na complementaridade ora na implicação mútua, ora matismo relativista e realista, para que Proudhon tende.

48 49
Neste ponto Proudhon está tanto mais em contradição dhon não tem dúvidas — e este é um dos seus méritos
quando sublinha insistentemente que é precisamente indiscutíveis — de que o pluralismo dos grupos sub-
porque o trabalho humano sempre esteve alienado em sistirá necessariamente na sociedade do futuro. Mas
todas as sociedades que existiram até hoje, que a hierar- não se põe claramente a questão da relação entre a
quia das camadas ou aspectos (paliers) da realidade multiplicidade dos grupos e a das classes na sociedade
social e dos seus valores foi alterada. Os diferentes tipos de amanhã. Aqui reside um dos pontos fracos da sua
de regime capitalista e a degenerescência da classe bur- análise.
guesa dão a esta alteração um relevo particular. A
Embora seja partidário convicto da «revolução
hierarquia que estabelece só seria portanto válida para
social» que relaciona com razão à liberdade e à von-
o tipo de sociedade que a revolução social engendrará.
tade colectivas, que se infiltram nas fendas dos deter-
N ã o seria então mais científico reconhecer as múltiplas
minismos sociais e conseguem dominá-los, Proudhon
variações da hierarquia das camadas (paliers) e estudá-
não indica claramente a maneira como chegar a esta
-las em pormenor?
revolução. Falta-lhe a concretização das vias e meios
I I . As relações das ideias e valores com a razão para a atingir. Só na sua última obra, De la Capacite
colectiva por um lado, com as regulamentações sociais Politique des Classes Ouvrières (1865), podemos encon-
por outro, deveriam ser precisadas, e as variações trar algumas alusões que contudo não chegam para
destas relações acentuadas. A identificação lamentável preencher esta lacuna.
de todas as regulamentações sociais com o direito,
assim como a da justiça conjugada a um ideal afectivo, I V . A própria dialéctica, que Proudhon teve o
com o conjunto dos valores positivos, teria sido evi- mérito de não conceber unicamente como um método,
tada. mas de a atribuir antes de mais ao movimento da
realidade social (cuja complexidade soube captar), não
I I I . Proudhon mostra-se indeciso quanto ao des- contribui para o tornar suficientemente relativista.
tino das classes sociais na sociedade futura. O patro- A sua tendência para aproximar a dialéctica da pro-
nato, a classe burguesa, devem desaparecer. Mas, se- cura de equilíbrios, trai-o neste aspecto. Voltaremos
gundo a sua perspectiva, os trabalhadores da indús- a este problema (cf. as lições X I V e X V ) .
tria e os camponeses formarão duas classes distintas
cujo equilíbrio deverá ser procurado. Ora não seria V. E por fim, Proudhon não chega a distinguir
de prever o aparecimento de novas classes, o que claramente entre o pluralismo social de facto, o plu-
levantaria o problema de um equilíbrio mais com- ralismo social enquanto técnica e o pluralismo enquanto
plexo entre as classes do que Proudhon encara? Prou- ideal social.

50 51
Passa, sem dar por isso, de um pluralismo social estatística só tinha como fim reforçar o pluralismo
de facto, que se pode observar em diferentes graus de
social!
intensidade em qualquer tipo de sociedade, a um plura-
É espantoso que Proudhon não tenha sabido
lismo concebido como fim da revolução social. Além
aplicar a sua própria dialéctica à discussão das vias
disso, não distingue qualquer destes pluralismos de
e meios, sempre essencialmente relativos, para chegar
uma técnica ou de uma estratégia pluralista que pode
à promoção de um pluralismo social igualitário...
servir para fins muito diversos. Tomemos dois exem-
Vamos agora tentar saber se as obras escritas
plos:
por Proudhon na última fase da sua vida trouxeram
Extraímos o primeiro da Grande Revolução Fran- soluções novas às dificuldades que assinalámos.
cesa. Obcecado pela sua prevenção contra os Jaco- No regresso do exílio, Proudhon mostra-se muito
binos, Proudhon não soube compreender que uma preocupado com o problema do federalismo, que opõe
técnica unitária e estatista se tinha revelado indispen- ao da unidade nacional concebida como uma entidade
sável para aniquilar o pluralismo esclerosado das absorvente que acarretaria conflitos com as outras
antigas corporações, pluralismo que só servia para nações. Opõc-se nomeadamente à unidade italiana, o
perpetuar a autocracia e a servidão. Que táctica, que provoca reprovações por parte dos democratas c
além de um nivelamento a partir do cume, poderia cesaristas. Instala-se em Passy, nesse tempo um arrabalde
ser possível neste caso, para fazer triunfar a igualdade afastado e calmo, e tenta lançar um periódico, «La
na organização política? Fédération» mas o ministério do interior recusa-lhe
a autorização.
O segundo exemplo que citaremos é o da famosa Em 1863, um ano após o regresso, Proudhon
experiência do «.New Deal» de Roosevelt. Para libertar publica Du Príncipe Fédératif ou De la Necessite de
os sindicatos operários americanos do domínio desmo- Reconstituer le Parti de la Révolution, obra sobretudo
ralizante das organizações patronais, Roosevelt foi polémica em que empreende a sua auto-defesa contra
levado a reforçar a intervenção do Estado e dos seus os ataques da imprensa. Contudo, Proudhon explica
serviços administrativos na vida económica. Fez do várias vezes ao longo do livro que «a anarquia positiva»
Estado o árbitro entre os sindicatos operários e os só pode realizar-sc no federalismo não só político como
capitalistas. A sua legislação «anti trusts» estava na económico.
mesma linha. Mas esta linha só tinha uma finalidade:
O sistema federativo é para ele a realização dos
tornar independentes os sindicatos operários e assegu-
equilíbrios que procurava «entre a unidade da sociedade
rar-lhes a liberdade de acção, não só contra o patro-
global e a multiplicidade dos grupos particulares, entre
nato, como contra o Estado. Neste caso, a técnica
os grupos e os indivíduos, entre a autoridade e a liber-

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53
dade». «O Século XX», afirma Proudhon, «abrirá a ndade à liberdade», quando o que importa é encontrar
era das federações, em que a humanidade recomeçará equilíbrios entre ambas (pp. 63-64).
um purgatório de mil anos» (Du Príncipe Fédératif, Proudhon não admite porém uma confederação
l.« edição, p. 109). de Estados demasiado vasta, e declara que a ideia de
«Quem diz liberdade diz federação ou não diz nada». «confederação universal» é contraditória. «A Europa
«Quem diz república diz federação ou não diz nada». seria ainda demasiado grande para uma confederação
«Quem diz socialismo diz federação ou não diz nada», única: só poderia formar uma confederação de confede-
(ibid., p. 136). rações» (pp. 88). « U m a confederação deve portanto
ser constituída por grupos locais, de pequena ou média
Proudhon começa a demonstração pelo federalismo envergadura» (ibid. pp. 88 e seguintes). Numa confede-
político. Aliás, n ã o é federalista no verdadeiro sentido ração política, a tendência do poder político para a
da palavra, mas confederalista, sem muitas vezes se perversão e para a anexação é impedida do interior
dar conta da diferença que existe entre os dois regimes. pela própria organização. A confederação é pois, aos
«O que constitui a essência e o carácter do contrato olhos de Proudhon, a melhor forma de governo.
federativo, é que, neste sistema, os contraentes possuem N ã o se tratará de um princípio abstracto, dogmàti-
mais direito, autoridade e propriedade do que o que camente suposto como realizável? Poder-se-ia pensar
abandonam», escreve Proudhon. que sim, a partir da afirmação de Proudhon. «A ideia
de federação é sem dúvida a mais nobre a que o génio
O que seduz no confederalismo político, é a eli-
político se elevou nos nossos dias (p. 106). Proudhon,
minação da razão de Estado, substituída pelo domínio
contudo, da maneira mais realista e mais relativista
do direito, é a limitação do poder central pelos poderes
possível, previne-nos do seguinte facto: «A luta das
particulares e pelos grupos locais. A confederação
classes entre si, o antagonismo dos interesses destas, a
politica e a descentralização dos serviços públicos
forma como estes interesses se aliam determinam o
seriam capazes de transformar o Estado; este deixaria
regime político, consequentemente, a escolha do go-
de ser «dono e senhor» para ser «um senhor entre os
verno, as suas variedades e as suas inúmeras variações»
seus pares», como Proudhon dizia j á numa pequena
(pp. 46-47). «A aristocracia inglesa fez a Magna Carta;
obra anterior intitulada Théorie de Vlmpôt.
Os Puritanos produziram Cromwell. Em França foi
«A realidade é complexa por natureza, o simples
a burguesia que lançou as bases (...) de todas as nossas
não sai do ideal, não chega ao concreto (Du Príncipe
constituições liberais» (p. 50).
Fédératif, p. 38) A organização política não teve este
facto em conta e daí a «perpétua sucessão dos regimes Além disso, observa Proudhon, não sem cepti-
que subordinam a liberdade à autoridade ou a auto- cismo: «todas as combinações políticas e sociais foram

54 55
sucessivamente tentadas, abandonadas, retomadas, mo- cunda, dirige e enriquece, sem lhe impor limitações;
dificadas, mascaradas, esgotadas; e o insucesso sempre torna-se uma vasta companhia anónima, com seiscentos
recompensou o zelo reformador e enganou a esperança mil empregados e seiscentos mil soldados, organizada
dos povos. A bandeira da liberdade tem sempre ser- para fazer tudo, e que, em lugar de vir em auxílio da
vido de capa ao despotismo; as classes privilegiadas Nação, em lugar de servir os cidadãos c as comunas,
sempre se rodearam, no próprio interesse da conserva- os despoja e oprime. A corrupção, a fraude, o vício
ção dos seus privilégios, de instituições liberais c igua- depressa se instalam num sistema destes; ocupado
litárias; os partidos sempre mentiram ao seu programa em manter-sc, em aumentar as suas prerrogativas, em
e a indiferença sempre sucedeu à fé, a corrupção ao multiplicar os seus serviços e o seu orçamento, o
espírito cívico» (ibid., p. 58). poder perde de vista o seu verdadeiro papel, cai na
Proudhon não é portanto um sonhador que se autocracia e no imobilismo; o corpo social sofre, e
deixe hipnotizar por um belo texto constitucional. a Nação (...) começa a declinar» (ibid., pp. 80-81).
Crê que a federação política será a organização que a
Aqui está a razão pela qual Proudhon crê que a
classe proletária escolherá para substituir ao regime
classe operária necessita de federalismo político; este
capitalista um regime socialista. Porque, diz ele, «com-
é um dos meios essenciais para evitar a reabsorção
preendo, admito, reclamo até a intervenção do Estado
da organização económica na organização política.
em todas as criações de utilidade pública; (mas) não
«É necessário ao direito político o contraforte do
vejo qualquer necessidade de que estas permaneçam
direito económico»; por outras palavras, os agrupa-
sob o controlo do Estado após terem sido postas ao
mentos (Groupements) económicos organizados em de-
serviço do público. Em 1848, pedia a intervenção do
mocracia industrial devem limitar o Estado, e não
Estado na fundação de bancos nacionais, de institui-
reforçá-lo. Se «a classe capitalista e a bancocracia»
ções de crédito, de previdência, de seguros, como para
não fossem eliminadas, se «a economia não fosse orga-
os caminhos de ferro; mas nunca me passou pela ca-
nizada em federação industrial-agrícola» (cap. X I ,
beça a ideia de que, realizada a obra de criação, o
pp. 107 e seguintes) a classe operária veria apenas no
Estado passasse para todo o sempre a ser banqueiro,
federalismo político uma decepção e uma degeneres-
segurador, transportador, etc.» (ibid., p. 78)
cência.
Proudhon apela para uma intervenção dialéctica do
Estado. «Quando se fixa nos serviços que ele próprio Se «a feudalidade financeira e industrial tem por
criou e cede à tentação do monopolismo, que é que fim consagrar (...) a decadência (...) das massas, a ser-
acontece? De fundador que era, passa a manobrar vidão económica ou salariato, numa palavra, a desi-
tudo; deixa de ser o génio da colectividade que a fe- gualdade das condições e das fortunas..., a federação

56 57
i. • >I.i i i w l i i s i n . i l , pelo contrário, tende a realizar Apesar de um visível esforço para não trair o seu
onda vez mais a igualdade pela organização da econo- realismo relativista, Proudhon não o consegue intei-
mia c noutras mãos que não nas do Estado (...); pela
ramente:
mutualidade do crédito e dos seguros, (...) pela ga-
rantia do trabalho c da instrução, por uma combi- a) É o proletariado que realizará, bem entendido,
nação dos trabalhos que permita a cada trabalhador o federalismo simultaneamente político e económico.
tornar-se de simples operário manual industrioso e Mas o federalismo surge muitas vezes a Proudhon
artista» e de assalariado, em dono» (ibid., pp. 111-112). como uma espécie de panaceia susceptível de resolver
0 conjunto dos problemas sociais. E, se o proletariado,
«Considerada em si mesma, a ideia de uma federa-
unido ao campesinato, é chamado a realizar o federa-
ção industrial que sirva de complemento e de sanção
à federação politica, recebe a mais flagrante confirma- lismo universal é porque, graças à doutrina Proudho-
ção dos princípios da economia. É a aplicação em niana, detém já, pelo menos virtualmente, essa pa-
mais alta escala dos princípios da mutualidade, de naceia.
divisão do trabalho e de solidariedade económica»
b) Proudhon nem sempre tem cm conta o facto
(p. 113).
de que o federalismo e o confederalismo podem servir
Proudhon termina a primeira parte da obra com fins e interesses opostos e variáveis. Os conservadores,
esta declaração: «Todas as minhas ideias económicas os partidários da escravatura, os chauvinistas, os impe-
elaboradas ao longo de vinte anos, podem resumir-se rialistas hoje camuflados, incluindo os pretensos «euro-
nestas três palavras: federação agrícola-industrial. To- peus» têm usado e abusado destes termos. Os revo-
das as minhas perspectivas políticas se reduzem a uma lucionários e até os simples democratas e os partidários
fórmula semelhante: federação política ou descentra- da paz n ã o detêm o monopólio do federalismo. Com
lização». E como corolário de ambas: «federação pro- efeito, Proudhon não consegue dar as mínimas provas
gressiva». de que o federalismo deverá inelutàvelmente fazer
triunfar o direito e a justiça. Apesar de todos os esforços,
No fim do livro, Proudhon declara que todas as
não evita uma valorização dogmática do federalismo.
ideias políticas foram experimentadas em França, à
excepção do federalismo, que, na nossa época, poderia c) Contudo, é preciso não nos deixarmos influen-
tornar-se no triunfo da justiça, do direito e da paz, ciar pelo facto de que ao contrário do que Proudhon
e coroaria todas as aquisições sucessivas. Ligando-se previra o «federalismo», longe de triunfar no fim do
à revolução, o federalismo asseguraria o triunfo do século X I X e no princípio do século X X , parece estar
«garantismo político-económico» (ibid., pp. 315-322). a perdei campo. Há com efeito movimentos inversos.

58 59
No plano nacional, velhas federações de Estados, como eve em De la Capacite Politique des Classes Ouvrières.
os Estados Unidos, a Alemanha, o Brasil, etc, têm-se ma vez fundado não pode dissolver-se», tanto mais
aproximado cada vez mais da forma unitária. Mas que repousa na atribuição da propriedade dos meios
o princípio da federação, ou pelo menos da confede- de produção simultaneamente ao conjunto da sociedade
ração, parece obcecar as organizações internacionais. económica, a cada região, a cada grupo de trabalhadores,
Noutro domínio, no do movimento operário, o sin- e a cada operário e camponês individualmente. Os indi-
dicalismo adquiriu nitidamente um carácter federal. víduos e os grupos podem pedir o resgate da sua parte,
i i i . i s não a partilha da propriedade federalista que per-
Na nossa época, as tendências mencionadas vol-
manece una e indivisível.
taram a ganhar força. As únicas excepções residem nas
grandes planificações colectivas da U.R.S.S., e nas Encontramos mais precisões sobre este problema
planificações de interesse privado, empreendidas pelos na obra póstuma de Proudhon, La Théorie de la Pro-
trusts e carteis nos Estados Unidos. Mas nos países pricté (1866). Proudhon afirma nesta obra que «a pro-
colectivistas, a situação mudou ou está em vias de priedade é a liberdade»; pronuncia-se «pelo alódio
mudar, nesta segunda metade do século X X . Por um contra o feudo» e rejeita a sua teoria da «propriedade
lado, o federalismo político, acompanhado pela auto- eminente» pertencente à sociedade inteira, assim como
nomia cultural, triunfa definitivamente na U.R.S.S. a sua concepção inicial da possessão pertencente aos
e na Jugoslávia. Por outro lado, nestes países, as pla- grupos de produtores. Proclama que a «possessão
nificações colectivistas orientaram-se na via da descen- tende fatalmente para a unidade, para a concentração,
tralização regional e da autogestão operária. Esta rea- para a sujeição, etc.»
lizou-se plenamente na Jugoslávia. Quanto à U.R.S.S. Perante estas declarações, houve quem pensasse
para cujo caso isto significaria o regresso aos sovictes que Proudhon, à beira da velhice, pretendia rejeitar
de base surgidos espontaneamente no começo da revo- o que sempre exaltara e estava perto de se converter
lução, presentemente encontra-se também atraída por às concepções da propriedade absoluta desenvolvidas
planificações descentralizadas segundo as regiões e pela pelos juristas romanos e pelos autores do Código Civil.
autogestão operária. Estes dois movimentos não podem Mas a análise do texto prova que o problema é outro.
ainda considerar-se realizados, mas quando o estive- Tendo acabado por admitir a continuação da existência
rem, mostrarão que Proudhon teve mais razão do que do Estado transformado depois da revolução social,
muitas vezes se pensa. Proudhon procura contudo limitar a acção deste por
uma força equivalente, como a propriedade alodial fede-
De qualquer maneira, podemos afirmar que o
rada. Assim, o Estado transformado e a propriedade
federalismo económico de Proudhon não é um simples
federada seriam os dois pólos, as instâncias últimas da
mutualismo contratualista, pois como ele próprio cs-

60 61
sociedade socialista futura, que se equilibrariam, mas durante o último ano da sua vida c que pode ser consi-
permaneceriam independentes uma da outra. derada como um testamento de pensador e de mili-
A propriedade socializada, humanizada, tornada tante: De la Capacite Politique des Classes Ouvrières
uma função social, definitivamente submetida à regu- (1865). Foi publicada depois da morte de Proudhon
lamentação interna do direito e à justiça, a propriedade pelo seu secretário, Gustave Chaudey. Constitui uma
expurgada de todos os seus abusos será pois a proprie- crítica duríssima ao «Manifesto dos sessenta» redigido
dade federativa. Trata-se de uma propriedade muito por vários proudhonianos moderados chefiados por
restrita, que depende de equilíbrios complexos reali- Tolain (Este virá a fazer parte da Primeira Interna-
zados entre os co-proprietários, que são simultanea- cional mas não participará na Comuna de 1871).
mente a federação industrial-agricola inteira, cada ramo O «Manifesto dos Sessenta Operários do Sena»
de indústria, cada região, cada grupo de produtores (1864) reclamava «candidaturas» operárias, indepen-
e de consumidores, assim como cada trabalhador indi- dentes de todos os partidos burgueses, às eleições legis-
vidualmente: é uma «co-propriedade em mão comum». lativas». Proudhon interessou-se extremamente por este
Esta propriedade efectivamente socializada muda não acordar da classe operária, mas considerou que no
só de sujeitos, mas de natureza. E é sobre esta proprie- conjunto, o «Manifesto», era não só demasiado mo-
dade em mão comum que Proudhon assenta a federa- derado, mas que chegava a uma falsa conclusão prá-
ção industrial agrícola, que se afirma assim como tica: a da participação de representantes operários numa
bloco indissolúvel, totalidade irredutível às suas partes câmara legislativa durante o Império, o que, segundo
e não como uma relação contratual. Proudhon, não faria senão comprometer a causa pro-
letária. Vai aliás muito mais longe e conclui que, seja
Tal propriedade dos meios de produção é certa- em que regime burguês fôr, a classe operária deve
mente possível. Podemos observar-lhe tendências não boicotar as eleições legislativas, e só se preocupar com
só nos Kolkhoses russos, como nas zadrugas jugos- a sua própria organização com vista a derrubar o
lavas, mas também e cada vez mais na realização das regime capitalista através da revolução social.
planificações colectivistas, descentralizadas e no surgi-
Proudhon permaneceu pois revolucionário até ao
mento da autogestão operária, que tem como finali-
último suspiro. A sua experiência de duas condenações,
dade não só o controlo e a gestão das empresas como
o medo da «censura» e o declínio físico em que se
a participação na elaboração das próprias planificações
sentia c que deveria conduzi-lo à morte, tornaram-no
e na distribuição dos produtos.
prudente na forma de se exprimir e faziam-no tomar a
Para terminar a exposição da doutrina social de precaução de recorrer a subentendidos. Mas o espírito
Proudhon, falta-nos analisar a obra em que trabalhou em que este livro foi redigido é perfeitamente claro.

62 63
Por ,sso se tornou o catecismo do movimento operário Já no «Prólogo» da obra (carta a alguns operários
francês. Na época, foi a obra mais lida nos meios ope-
de Paris e de Ruão) Proudhon precisa que «convém
rários. Pe. loutier, Griffuhles e Sorel (os representantes
I H " , i r a r à democracia operária, que, à falta de uma
do sindicalismo revolucionário), alimentaram nela o
suficiente consciência de si e da sua ideia deu os seus
seu pensamento. Parte I I I (fim).
votos a nomes que a não representam, em que condi-
ções um partido entra na vida política» (2. Edição,
a

1924, p. 49). Importa pois procurar uma «democracia


política nova» (p. 50) para obter «a emancipação com-
pleta dos trabalhadores, isto é, a abolição do sala-
DÉCIMA QUARTA LIÇÃO
riato» (p. 70) pois a Revolução de 1789 só foi provei-
tosa para os proprietários e para os capitalistas» e o pro-
N ã o há dúvida de que Proudhon nunca se apro- letariado foi abandonado a si próprio (cf. capítulo I I ) .
ximou tanto do pensamento de Marx como cm De la
«como a burguesia de 89...» a classe operária
Capacite Politique des Classes Ouvrières (1965). Já
«aspira a ser alguém... tudo» (p. 62). No capitalismo
Bouglé sublinhava este facto ( i ) . Nas obras anterioies,
organizado, n ã o existe, segundo Proudhon, nenhuma
Proudhon desenvolvera a ideia da luta de classes e
divergência possível entre os operários das cidades e
previra a vitória do proletariado. Proclamou que «a
os camponeses. A industrialização avançada faz com
burguesia está definitivamente condenada e que assis-
que «a causa dos camponeses seja a mesma dos tra-
timos à sua morte moral». Mas o que nesta obra é
balhadores da indústria; a Marianne dos campos é
novo, é o facto de Proudhon exigir da classe operária
a contrapartida da Social das Cidades» (pp. 68-70).
que tome consciência de si mesma e elabore a sua
Já não é portanto a «classe média» que é a aliada do
própria ideologia, irredutível a qualquer outra, e de
proletariado, mas a classe camponesa. É talvez esta
a exortar a uma acção de carácter político, ou me-
a razão pela qual Proudhon fala das classes operárias,
lhor à tomada do poder político. Porém, para Proudhon
no plural. N ã o fornece mais precisões e neste texto,
— e nisto difere de Marx — a conquista política s ó
parece não ter em conta a relatividade histórica...
poderá triunfar conjugada com a conquista da econo-
mia, organizada pelos próprios trabalhadores. No entanto o seu livro é exclusivamente consa-
grado aos trabalhadores industriais. Reserva ao «De-
senvolvimento da Ideia Operária» a Segunda Parte,
a mais importante do volume (pp. 85-231). «Possuir
p. 302-303 '
Cfr C B ° U g I é ' U Socio,°SÍe de Proudhon. 1911.
capacidade política, é ter consciência de si como mem-

64
65
bro de uma colectividade, afirmar a ideia que daqui O abismo que Proudhon estabelece entre as classes
resulta e prosseguir na realização desta» (p. 90). Ora, é muito mais profundo do que o que Marx e Lenine
sobretudo depois de 1848, «as classes operárias adqui- encararam. Estes, reconheciam que os proletários e
riram consciência de si» e possuem «uma ideia que os camponeses, uma vez vitoriosos, poderiam utilizar
corresponde à consciência que têm de si mesmas, e «tudo que há de válido na classe burguesa», no sentido
que está em perfeito contraste, com a ideia burguesa; em que os intelectuais e técnicos do velho regime ser-
contudo, podemos afirmar que esta ideia ainda só se viriam o novo. Foi o que aconteceu na U.R.S.S. e nas
lhes revelou de uma maneira incompleta, que estas democracias populares.
classes não a levaram ainda às últimas consequências» O desprezo de Proudhon relativamente à classe
(p. 91). Porem, o que sobretudo lhes tem faltado «é a burguesa vai tão longe, que desconhecia a força real
prática geral conforme a uma política apropriada; e desta. Escreve: «Agora, é a plebe trabalhadora que
para provar este facto, temos os seus votos (em favor toma corpo; sente, raciocina, (possui) uma vontade
dos candidatos dos outros partidos), os preconceitos que lhe é própria e começa a desenvolver a sua ideia».
políticos de toda a espécie a que obedecem» (p. 92). «É a classe burguesa quem n ã o pensa; voltou a ser
«Dado que a divisão da sociedade moderna em uma turba, uma massa intolerável... Após ter rolado
duas classes, uma de trabalhadores assalariados, outra de catástrofe política em catástrofe política, após ter
de proprietários-capitalistas, é flagrante, impunha-se atingido a última etapa do vazio moral e político,
uma consequência: a prática da separação» (p. 96). vemos a alta burguesia fundir-se numa massa, que
Dado que a classe burguesa teve o direito de se separar de humano j á só tem o egoísmo» (p. 231). Noutra pas-
do proletariado, porque é que, pergunta Proudhon, sagem, Proudhon escreve: «A burguesia... n ã o tem
não há-de o proletariado separar-se da burguesia? (mais) nada a dizer sobre si própria; parece sem des-
É preciso que se separe dela conscientemente, que cons- tino, sem papei histórico; já n ã o tem pensamento nem
titua um mundo à parte, com a sua ideologia própria, vontade... Ora revolucionária ora conservadora, republi-
com as suas organizações económicas próprias e final- cana ou legitimista... n ã o sabendo j á que sistema é
mente, com a sua própria organização política susceptí- o seu, que governo prefere, pedindo ao poder apenas
vel de se substituir ao Estado burguês. Para evitar as o que este lhe aproveita, apoiando-o só pelo medo do
perseguições policiais cuja ameaça constante pairava desconhecido e pela manutenção dos seus privilégios,
durante o Império, Proudhon proclama o separa- já n ã o é uma classe poderosa em número, pelo trabalho
tismo absoluto da classe operária, sem levar as coisas e pelo génio, que quer e que pensa, que produz e que
até à agravação do antagonismo de classes e à violên- comanda; é uma minoria que trafica, que especula,
cia (p. 237). Neste ponto n ã o podemos ter dúvidas. que agiota, uma canalha» (p. 100).

66 67
E Proudhon conclui: «quer a burguesia o saiba técnicos, contra-mestre. a revolução está muito perto.
ou não, o seu papel terminou; não poderá ir longe, e Nem Proudhon nem Marx entreviram claramente os
não pode renascer» (p. 101). Esta conclusão é sem trusts c carteis, a tecnocracia que lhes corresponde,
dúvida muito revolucionária mas comove pelo seu 0 I-Atado simultaneamente fortificado e degenerado de-
optimismo exagerado que esbarra nos próprios factos, 1 ido ao domínio daqueles, (çfr. contudo, a terceira parte
pois nunca a burguesia tinha tido tanta consciência «l«> livro de Proudhon e o meu comentário nesta l i -
do seu poder, da sua força, e do seu papel decisivo ção).
como nesta época do surgimento do capitalismo orga- Apesar da aparência do contrário, Proudhon acaba
nizado de que o Império de Luís Bonaparte fora o por revelar-se mais revolucionário que Marx. O «re-
promotor e a classe burguesa a grande vitoriosa. Mas, formismo» de Proudhon não é mais que um mito
o que é ainda mais espantoso é que, neste ponto, Prou- devido às precauções de linguagem a que um regime
dhon entra em contradição flagrante com as suas pró- que tanto fez sofrer o obrigava. Qualquer dos dois
prias constatações sobre a feudalidade industrial, finan- grandes doutrinadores previam, a curto prazo, o re-
ceira e mercantil, de que tantas vezes fala em De la bentar de uma revolução social, mas interpretavam-na
Capacite Politique des Classes Ouvrières. Se a classe de maneiras diferentes. Entre a espada e a parede,
burguesa pôde formar uma «feudalidade» é porque perante questões e situações concretas, era Marx que
se encontrava fortemente organizada e sabia o que contemporizava enquanto os Proudhonianos se mos-
queria! travam intransigentes. Veremos este aspecto mais con-
Proudhon n ã o parece dar-se conta desta inconse- cretamente quando estudarmos a Primeira Internacio-
quência. Inteiramente voltado para o futuro, parece nal e a Comuna de Paris (cf. a 17.* Lição).
n ã o ver claramente os imensos obstáculos que se Segundo Proudhon, as classes operárias devem
levantam na realidade presente. De uma penada, reduz simultaneamente libertar a sua força e afirmar «a sua
a força e a vontade de combate da classe burguesa. nova concepção do direito». Só podem fazê-lo, tor-
Oia, na época em que Proudhon redigia a sua obra, nando-se independentes, não apenas da burguesia, mas
a potência do adversário era maior que nunca! Nesta do Estado que é dominado pela burguesia. Devem
perspectiva, devemos reconhecer que Proudhon se mos- portanto possuir organizações económicas próprias:
tra utopista! No entanto, é preciso admitir também «as companhias operárias», e um partido político.
que Marx quase não evita a mesma ilusão ao decla- Proudhon alude à federação industrial agrícola de
rar que, na fase do capitalismo organizado, caracte- que as companhias operárias seriam as primeiras cé-
rizada pelo facto de os patrões «terem perdido a sua lulas e a um partido operário independente. Preconiza
função social» e serem substituídos pelos directores, uma «reorganização da indústria sob a jurisdição de

68 69
todos os que a compõem» (p. .23) e uma democracia «A base do direito federativo (...) é o direito econó-
política inteiramente nova. mico». O antigo direito era negativo, a sua função era
Devemos aliás atribuir um duplo sentido ao termo impedir, mais do que permitir. O novo direito criado
«companhias operárias»: são ao mesmo tempo coope- pela classe proletária será «essencialmente positivo:
rativas de produção e sindicatos. Mas mais tarde, na o seu fim é conceder, com firmeza e amplidão, tudo
ideologia do sindicalismo revolucionário, estas duas o que o antigo direito permitia apenas» (221). «Consti-
concepções serão separadas uma da outra. Além disso, tuída, a federação industrial-agrícola j á não poderá
Proudhon afasta-se desta ideologia na medida em que dissolver-se... que não nos acusem pois de fomen-
n ã o se dá conta da importância do «direito de coliga- tarmos o individualismo» (p. 222).
ção, isto é, do direito de greve. Esta limitação deve-se
Do capítulo V ao capítulo X I I (pp. 127-185) da
sem dúvida à sua concepção utópica da pretensa fra-
Segunda parte da obra, Proudhon trata do problema
queza da burguesia, t ã o contrária à realidade do capita-
do «sistema» de mutualidade. Pretende demonstrar
lismo organizado.
que o sistema que preconiza não releva dos contratos
Enquanto desenvolve pormenorizadamente em que
individuais, mas do «federalismo económico» conce-
consiste «a ideia operária», torna a expor toda a sua
bido como um todo. A solução residiria numa interpe-
doutrina. Comete aliás o mesmo erro que Marx. Qual-
netração das mutualidades (capítulo X I I I , pp. 185-
quer deles confunde a sua própria doutrina, que é
-196) que tenderia a alargar-se c conduziria à «proprie-
apenas um esforço entre tantos outros para justificar
dade federativa» e à «democracia industrial», o que
a ideologia do proletariado, com esta ideologia, sempre
pressupõe uma revolução social vitoriosa. Então e s ó
muito mais complexa e flutuante que a dos doutrina-
então, se poderá conceber a existência de um Estado
dores. Porque esta ideologia está submetida às trans-
político federalista e democrático, limitado nas suas
formações imprevisíveis das conjunturas e das estru-
funções, transformado na sua natureza e equilibrado
turas. Além do mais, n ã o se identifica à psicologia
pela democracia económica, (capítulos X I V e X V ,
colectiva da classe operária, cuja tonalidade e medida
pp. 197-222).
de espontaneidade flutuam com uma intensidade par-
ticular. Por outro lado, ao evocar «a limitação do Estado
Segundo Proudhon, uma das missões da classe pelos grupos» (p. 286), Proudhon encara também, para
operária é promover «o direito económico, limitando a época pré-revolucionária, a limitação do Estado pelas
o direito político». Assim, o que caracteriza (este classes operárias em situação de «separação» e pelas
direito económico) é o facto de ser simultaneamente comunas locais que, após a revolução social, se torna-
um direito estrito e de alta sociabilidade» (p. 181). rão inteiramente livres (pp. 281-293).

70 71
Proudhon consagra a terceira e última parte do mesma oposição que a burguesia (p. 243). «Que a
livro ao exame dos obstáculos que se opõem à revo- classe operária, se se toma a sério (...), dê as coisas
lução social e que esta deverá vencer. Designa-os sob por definidas: antes de mais, tem de rebentar com o
o termo de «incompatibilidades políticas» (pp. 234- jogo da tutela» (p. 249).
399). Incompatibilidades com quem? Com as classes Nas últimas obras Proudhon revcla-se mais dou-
operárias, evidentemente. As incompatibilidades são trinador social que sociólogo, mas um doutrinador
«a grande indústria (capitalista), as grandes compa- muito mais realista do que se poderá pensar. Conta com
nhias, os grandes interesses, a grande especulação, a a «força colectiva do proletariado», com a decompo-
grande cultura, a grande propriedade; o que se pode sição interna da feudalidade industrial, com a decom-
resumir nesta fórmula: a feudalidade capitalista — in- posição da classe burguesa (e aqui está o seu erro),
dustrial — mercantil — proprietária livre» (pp. 363- com o descontentamento crescente do proletariado, com
-365). E ainda: «Existe uma coligação entre os grandes a intensificação da consciência de classe deste, e com
proprietários, grandes capitalistas, grandes industriais, o desenvolvimento da sua capacidade política. Tam-
grandes funcionários, grandes exploradores, armadores bém tende para o realismo na forma como encara a
e agiotas da Europa e do Globo» (p. 368). Nesta espécie sociedade futura, nascida da revolução social. Assim,
de pressentimento dos trusts internacionais voltamos conta com «a produtividade da federação industrial-
a encontrar um Proudhon subitamente muito mais -agrícola», suscitada pela autogestão dos trabalha-
realista que nas tiradas sobre a decomposição e a fra- dores e pela alegria do trabalho desalienado. Entrevê
queza da burguesia! que na nova sociedade surgirão problemas múltiplos
Contudo, estabelece u m fio condutor entre estas c que a procura dos equilíbrios deverá ser sempre
afirmações, ao escrever: «A burguesia, cega pela anar- renovada. O seu humanismo prometeico não está ligado
quia mercantil» que domina por meio da «feudalidade a um determinismo social rigoroso cujas ruturas e
industrial», «ignora o direito económico do proleta- falhas numerosas pressente. Conta portanto com o
riado», direito esse que ela considera uma utopia esforço colectivo, livre e criador para dominar os
(pp. 228-229). Esta será uma das causas da sua perdição. determinismos, para os utilizar na desalienação do
A «separação», a cisão entre a classe proletária e a homem c da sociedade.
classe burguesa, a criação espontânea pelo proletariado
das suas instituições c do seu direito próprios, anun-
ciam o fim próximo do capitalismo (p. 242). Conduzida
por princípios políticos e económicos opostos aos da
burguesia, a classe operária não pode pertencer à

72 73
QUARTA PARTE
A D I A L É C T I C A DE P R O U D H O N
C O N F R O N T A D A C O M A DE M A R X

O melhor meio para resumirmos as nossas análises


da doutrina de Proudhon nas relações desta com a
de Marx, parece-nos consistir na confrontação das
concepções da dialéctica destes dois autores.
Na exposição das duas dialécticas, não poderemos
IVitar algumas repetições. ( ) Mas vamos esforçar-nos
1

por as reduzir e por introduzir elementos novos.


Como j á sublinhámos, Proudhon é extremamente
hostil à dialéctica hegeliana. Critica-a não só no fundo
como nas aplicações. Claramente formulada nas obras
de maturidade, apenas toda a obra de Proudhon está
de facto impregnada desta hostilidade. Vejamos o que
escreve a este respeito: «A antinomia não se resolve;

( i ) Fiz a mesma análise mas mais pormenorizadamente


no meu livro Dialectique et Sociohgie. Paris, Flammarion, 1962,
pp. 96-156, contudo no que se refere a Proudhon introduzi aqui
algumas rectificações e correcções.
N. T. — Esta obra de G. Gurvitch foi publicada em por-
tuguês por Publicações Dom Quixote (colecção Universidade
Moderna) sob o titulo «Dialéctica e Sociologia».

77
é nisto que reside o vício fundamental de toda a filosofia se, devido a esta faceta da sua filosofia, Hegel
hegeliana. Os dois termos que compõem a antinomia nservou um único partidário na Alemanha. Mas
oscilam, quer entre si, quer entre outros termos anti- MKO dizer que falar assim... é desonrar a filosofia»
nómicos; o que conduz a novos resultados» (De la Guerre et Paix, 1861).
Justice, vol. I V , p. 148). «Os termos antinómicos não À dialéctica hegeliana, Proudhon opõe outra, a
se resolvem, como os pólos opostos de uma pilha ua. Esta n ã o é apenas uma dialéctica antinómica,
eléctrica não se destroem. O problema não está em en- gativa, antitética, que rejeite qualquer síntese; é um
contrar a fusão deles que seria a sua morte, mas o seu élodo dialéctico que se propõe procurar a diversi-
equilíbrio sempre instável, variável segundo o próprio em todos os seus pormenores. Ora a diversidade
desenvolvimento da sociedade» (Théorie de la Pro- todos os seus pormenores só pode ser captada pela
prieté, p. 52). «O equilíbrio instável entre os dois xperiência. Neste sentido, o método dialéctico de
termos, não nasce de um terceiro, mas da sua acção Proudhon aproxima-se do empirismo dialéctico; como
recíproca». Numa palavra, «a fórmula hegeliana só Já sublinhámos, o método dialéctico de Proudhon
é uma tríade por prazer ou erro do Mestre, que vê conduz a uma experiência sempre renovada, lança-se
três termos onde só existem dois e que não viu que num pluralismo que neste autor é sempre mais rea-
a antinomia não se resolve, mas que implica quer uma lista. Por etapas e com uma clareza crescente Proudhon
oscilação quer um antagonismo, os únicos susceptíveis faz notar que o movimento dialéctico começa por ser
de equilíbrios. Deste ponto de vista, todo o sistema o movimento da própria realidade social e só depois
de Hegel deveria ser refeito» (De la Justice, vol. I , um método para seguir as sinuosidades deste movi-
pp. 28-29). mento. Tem cada vez mais consciência de que as com-
A síntese de Hegel, «suprimindo» e mantendo plementaridades, as implicações mútuas e as recipro-
simultaneamente a tese e a antítese (aufheben: eis o cidades, as implicações mútuas e as reciprocidades de
erro dos tradutores utilizados por Proudhon que escre- perspectivas são tão reais como as polarizações e tão
vem também «absorvendo») é governamental. É, acres- indispensáveis como processos dialécticos, como o
centa Proudhon com muito mais subtileza, «anterior estabelecimento de antinomias. Mas o empirismo e o
e superior aos termos que une.» É ela, escreve, que realismo dialécticos de Proudhon têm limites. É que,
conduz Hegel «à prepotência do Estado» e «ao resta- através da sua dialéctica, procura «a reconciliação uni-
belecimento da autoridade» (La Pornocratie, Obras versal pela contradição universal» e esta reconciliação
póstumas). «Hegel chegava com Hobbes ao absolu- efectua-se através de equilíbrios. Apesar do reconheci-
tismo governamental, à omnipotência do Estado, à mento, da sua instabilidade e da implicação de esforços
subalternização dos indivíduos e dos grupos. Pergunto- sempre novos, as antinomias vão-se completando e

78 7V
equilibrando, por vezes demasiado facilmente, enco- Esta tese encontra-se desenvolvida com mais pre-
brindo amiúde, pela sua inflacção, os outros movimentos cisAo em La Création de VOrdre dans UHumanité.
e processos dialécticos. Nessa obra, Proudhon fala da «intuição das diversi-
Assim, apesar de todos os pressentimentos que dades e das totalizações na sua divisão. «Estas diver-
Proudhon tem da extrema complexidade do movi- «idades e estas «totalizações» (o último termo foi
mento dialéctico próprio à realidade social e da plura- recentemente retomado por Sartre que parece desconhe-
lidade dos processos dialécticos necessários para a ccr-lhc a origem), são irredutíveis. «Existe uma inde-
estudar, na sua variedade e diversidade, não evita o pendência das diversas ordens de séries e a impossi-
seguinte erro: a sua dialéctica cai por vezes num plura- bilidade de uma ciência universal... Impõe-se a multi-
lismo de tal maneira bem ordenado, bem integrado, |.IK idade dos pontos de vista» como na realidade social
bem equilibrado que se admite que essa integração »c impõe a multiplicidade dos grupos e a pluralidade
e esse equilíbrio tenham sido pré-concebidos. dos conjuntos sociais em que estes estão integrados.
«Resolver a diversidade actual numa identidade, é
ubandonar a questão», o que fizeram Schelling e Hegel.
A procura das diversidades e a integração destas
cm totalidades em que se equilibrem, poderia evocar
DÉCIMA QUINTA LIÇÃO 0 pan-harmonismo de Leibniz, cuja dialéctica se reduzia
ao estudo da «unidade numa variedade tão vasta quanto
Logo na primeira obra que escreve, De la Célé- possível.» De facto, Krause e Ahrens (de quem Da-
bration du Dimanche, Proudhon declara que o seu mé- 1 i m o n , um amigo de Proudhon foi discípulo) concebiam
todo consiste em «Procurar equilíbrios na diversidade», 0 método dialéctico como uma «via ascendente de
que este método se propõe pôr a nu todas as diversi- análise que termina por um conhecimento de totali-
dades efectivas e, após ter desenvolvido mais esta des- dades das variedades.» Mas Proudhon que conhece
crição, estudar a possibilidade de integrar estas diver- bem Leibniz e muitas vezes o cita, toma todas as pre-
sidades em conjuntos, em totalidades, também múl- cauções necessárias, tanto em La Création de VOrdre
tiplas, mas em que pudessem equilibrar-se as diver- como em De la Justice dans la Révolution et dans
sidades do mesmo tipo. Isto conduz por um lado VÉglise, para opôr a sua dialéctica, que concebe simul-
a totalidades não hierárquicas, donde é excluída qual- taneamente como movimento da realidade social e
quer «subalternização dos elementos componentes» e, como método, a todo e qualquer harmonismo. Pro-
por outro, a uma pluralidade de totalidades entre as testa contra a ideia leibniziana de uma ordem trans-
quais podem igualmente ser procurados equilíbrios. undente e contra a ideia optimista de uma harmonia

80 SI
pré-estabelecida entre mónadas irredutíveis. «A ordem», i.Miio com a propriedade o que acontece com o Estado:
ou mais exactamente, a coerência na multiplicidade «iiiarados fora de um quadro social preciso, são apenas
dos conjuntos, só se realiza graças a esforços penosos abstracções perniciosas que prejudicam o homem, os
da humanidade e através das antinomias de grupos •/tipos, as classes e as sociedades e os conduzem
e de classes. U m dos principais aspectos dessa luta ii alienações; encarados como elementos relativos e
prometeica consiste no facto de «a marcha da socie- móveis, no seio de um conjunto social em movimento,
dade se medir sobre o desenvolvimento da indústria cncontram-se em perpétua transformação e podem
e sobre o aperfeiçoamento dos instrumentos» (p. 242). modilicar-se inteiramente e participar em equilíbrios
Segundo as observações de Proudhon em De la Jus- imprevistos.
tice, o que falta a Leibniz não é apenas a pluralidade Um outro aspecto do movimento dialéctico pró-
efectiva dos conjuntos e a marca humana que estes prio à realidade social é o das forças colectivas. Estas
possuem, são igualmente as antinomias insolúveis, as forças colectivas são irredutíveis às forças individuais
únicas que podem conduzir à verdadeira irredutibili- assim como à soma destas últimas, pois os esforços
dade e a um pluralismo consequente. interpenetrados num grupo, numa classe ou numa
A dialéctica proudhoniana precisa-se melhor nos K ilude produzem forças centuplicadas. Ora, estas
dois volumes das Contradictions Economiques (1846). torças colectivas podem tornar-se destruidoras, opres-
Proudhon começa por se esforçar para tornar esta dia- sivas e ameaçar a existência da própria sociedade e
léctica tão realista quanto possível. O método das sobretudo a força criadora desta. Só pela afirmação
antinomias deve ser aplicado não só às doutrinas e do elemento antinómico constituído pela «razão colec-
às ideias, mas ainda com muito mais cabimento às tiva», que dirige as forças colectivas e luta contra os
realidades sociais que as engendram e que estão elas abusos destas, estas forças se tornam forças produtivas
próprias em movimento dialéctico, o que se verifica I criadoras. Mas a própria razão colectiva, desligada
sobretudo nas suas manifestações económicas. Já no das forças colectivas, não passa de uma quimera ainda
Premier Mémoire sur la Propriété, Proudhon insistia mais perigosa que a razão individual. Além disso
na impossibilidade de se compreender a vida econó- cstabelece-se uma dialéctica entre a «razão colectiva»
mica sem se seguir o movimento dialéctico real desta. c as ideias e ideais colectivos (assim como entre a
Recordemos as fórmulas de Proudhon: «A proprie- < .msciência colectiva» e a «razão colectiva», facto de
dade é o produto espontâneo da sociedade e a disso- que Proudhon não se dá conta). É o movimento dia-
lução da sociedade... A propriedade é o preço do léctico entre as forças colectivas, a razão colectiva, as
trabalho e a negação do trabalho... A propriedade é ideias e os ideais colectivos, as suas interpenetrações
a liberdade, a propriedade é o roubo». Acontece por- | lutas constantemente renovadas, o seu processo de

82 83
«totalização» enfim, que constituem a trama efectiva c dos seus funcionários (burocratas). As antinomias
da realidade social, cuja dialéctica não se reduz, de próprias ao trabalho n ã o podem ser inteiramente resol-
modo algum, apenas às antinomias. vidas, mas a resolução social pode tirar-lhes o que
A dialéctica entre forças colectivas, razão colectiva, lém de particularmente intolerável, instituindo a auto-
ideias e ideais colectivos realiza-se no esforço colectivo gestão operária, fundamento da democracia industrial
produtivo e criador que se manifesta particularmente destinada a, de uma forma descentralizada, planificar
no trabalho e no movimento deste para a desalienação. u economia e, assim, a limitar o Estado completamente
O mito de Prometeu, a que Proudhon recorre insisten- transformado.
temente, n ã o só em Les Contradictions Economiques O movimento dialéctico real da sociedade, da
como cm De la Justice, aplica-se essencialmente à economia e do trabalho exige um método, n ã o só
dialéctica do trabalho que é, segundo as circunstâncias, para estudar estas realidades em todas as suas sinuo-
a maior alegria e o maior dos sofrimentos; porque sidades, mas também para combater os erros doutri-
o trabalho é simultaneamente o instrumento da liber- nais que são comuns ao individualismo da economia
tação do homem e a ameaça constante da servidão política clássica e ao estatismo económico. Os extre-
deste. É por isso imensamente doloroso que o esforço mos tocam-se, observa Proudhon. O individualismo e
de Prometeu seja o símbolo do trabalho. N o trabalho, 0 estatismo acabam por chegar aos mesmos resultados
o homem é demiurgo. « O trabalho, análogo à actividade 1 partem das mesmas premissas. O estatismo hegeliano
criadora, é a emissão do espírito..., é o grande triunfo e o estatismo comunista (Proudhon refere-se, como
da liberdade». Por outro lado, o trabalho torna-se sabemos, aos partidários «da comunidade dos bens»
pena sem limites quando é inteiramente escravizado do seu tempo) dissolvem a sociedade no Estado, fa-
e alienado. zendo desaparecer a diversidade numa unidade trans-
A alienação ameaça constantemente o trabalho. cendente, a pluralidade dos grupos, na centralização.
Esta ameaça é tanto mais pesada quanto o homem Assim, acabamos por ver apenas nas comunidades
«morre devido ao trabalho», porque «trabalhar é sociais um indivíduo em ponto grande. Só se distinguem
ganhar a vida», c a alegria que o trabalho procura do individualismo porque aumentam o tamanho do
nunca é inteiramente pura. A dialéctica inerente ao individuo. Dado que a vontade do Estado substitui
trabalho torna-se trágica quando «a organização do os laços sociais, o estatismo económico ê apenas um
trabalho» é imposta de cima aos trabalhadores, quer super individualismo.
através da vontade de proprietários ociosos (feudais e A mesma demonstração é válida para o indivi-
padres), quer pela de patrões privados e pelas coliga- dualismo. Este esquece que «fora da sociedade, o homem
ções destes (feudalidade industrial) ou pela do Estado é uma matéria explorável, um instrumento, por vezes

84 85
um móvel incómodo e inútil, mas não uma pessoa». Podemos acusar as análises de Proudhon por
Assim, o individualismo, «pronto a tudo sacrificar à lerem um carácter demasiado rígido, demasiado abs-
pessoa, mata-a de facto e chega aos mesmos resultados tracto. Nem sempre precisa bem em que quadros so-
que o estatismo», que é a condenação irrevogável de ciais concretos o problema da estatização da economia
ambos. Só a dialéctica, revelando a incapacidade dos »c coloca, problema esse que pode ter sentidos dife-
dois adversários para captar as totalidades sociais rentes, e em certos casos, representar apenas uma
reais, consegue fazer ressaltar este facto. É também etapa. Por outro lado, as análises de Proudhon carecem
ela que torna manifesto «que a negação sistemática por vezes da dimensão histórica. Por exemplo, o capita-
da propriedade foi concebida sob a influência directa lismo de Estado, a tecnocracia e o comunismo não
do preconceito da propriedade e (que) é a proprie- são diferenciados, o que provocou a observação irri-
dade que está na base de todas as teorias comunistas». tada de Marx em que este diz que «Proudhon só vê
Recordemos as fórmulas de Proudhon que j á citámos: nas relações sociais reais princípios, categorias». No
«O proprietário-Estado não tem alma nem coração. que respeita a discussão das diferentes doutrinas con-
É um ser fantasmagórico, inflexível, que age dentro luia em Contradictions Economiques, esta crítica só é
do círculo da sua ideia como a mó esmaga o grão no exacta parcialmente, mas é totalmente injusta no que
seu movimento». «E o monopólio elevado à segunda nc refere ao conjunto do pensamento de Proudhon.
potência.» «Não se remedeia a raiva fazendo com que liste concebe a dialéctica n ã o só como movimento real
todos mordam... Também não é tornando-se proprie- d l sociedade mas como método. E melhor, como j á
dade do Estado que a propriedade se torna social». sabemos não reduz a dialéctica às antinomias, mas
Lutando contra estas concepções erradas, a dialéctica entrevê igualmente as complementaridades, as impli-
revela a identidade dos termos seguintes: propriedade cações mútuas e as reciprocidades de perspec-
absoluta, poder ilimitado, ditadura. O estatismo eco- tivas.
nómico é a glorificação da policia». A nossa interpretação confirma-se em De la Jus-
Resumindo, o método dialéctico não serve apenas tice... (1858) e em Guerre et Paix (1861). A primeira
para revelar a ligação entre as antinomias e assim, a <l< «tas duas obras pode levar a temer que Proudhon
diversidade das totalidades sociais reais e a dos ele- lenha abandonado a dialéctica em favor de um racio-
mentos que nelas estão integrados. Permite igualmente nalismo da Justiça. Temor perfeitamente injustificado;
revelar algumas ilusões, isto é, mostrar que existem aliás, é precisamente nesta obra que como j á vimos
contradições que são apenas aparentes e não reais, a dialéctica de Proudhon se orienta não só no sentido
como por exemplo a oposição entre individualismo e de um realismo e de um empirismo mais aprofundados,
estatismo. assim como na via da superação da redução da dia-

86 87
léctica às antinomias. Muito antes de Marx, Proudhon É também em De la Justice... que Proudhon mais
relaciona a dialéctica com a prática social e liga-a ao claramente expõe a complexidade do movimento dia-
pragmatismo, não como doutrina, mas enquanto mani- léctico real em que forças colectivas, acção, trabalho,
festação da vida social quotidiana. É a prática do tra- direito, regulamentações sociais, justiça, ideias e ideais,
balho e a prática revolucionária, que afinal se revelam razão colectiva se encontram num processo de inter-
como sendo o centro do movimento dialéctico real, p.-mi rações variadas, que passam pela complementa-
e suscitam a interpretação da dialéctica enquanto mé- ridade, pela implicação mútua, pela polarização em
todo que conduz a experiências sempre renovadas. antinomias e pela reciprocidade de perspectivas; um
A dialéctica proudhoniana prova que, na realidade estudo desta ordem exige a aplicação dos processos
social, a liberdade e o determinismo social se interpe- • n-spondentes do método dialéctico. Se acrescentar-
netram, se completam, se implicam e se polarizam de mos que a tese pragmatista de Proudhon segundo a
diversas maneiras. As mais concretas manifestações da qual a ideia nasce da acção e deve voltar à acção, à
liberdade colectiva como da liberdade individual são tal ta do que degenera, está concebida de uma forma
as revoltas e as revoluções, que podem triunfar ou dialéctica, damo-nos conta da riqueza de perspectivas
fracassar, mas que em qualquer das hipóteses, não que Proudhon abriu embora nem sempre se tenha
têm nada a ver com o progresso automático e não prosseguido, ou sequer tido consciência de todas as
oferecem a mínima segurança contra possibilidades de • onsequências que daí poderiam advir.
decadência e de degenerescência. O movimento dia- A orientação da dialéctica proudhoniana para o
léctico entre a liberdade e o determinismo na realidade realismo e para a experiência recebe uma confirmação
social, revela que esta não pode existir sem as acções, cm La Guerre et la Paix (1861). Segundo Proudhon,
os esforços, as lutas incessantes que continuamente a guerra não seria mais que o termo genérico que
rompem os equilíbrios (inclusive os equilíbrios racio- designa tudo o que é luta, acção, virilidade, sem o que
nais inventados por Proudhon). Seja como for, Marx a vida social é impossível, como são impossíveis em
faz mal por ver em Proudhon «um cavaleiro do livre particular a revolução e o trabalho. Nas diferentes
arbítrio» abstracto, quando afinal Proudhon procura formas do regime capitalista, a guerra (ou luta de
precisamente estudar o funcionamento da liberdade classes) é simultaneamente externa e interna. No re-
humana na realidade social. O que é verdade é que gime de «democracia industrial» ela adquire o carácter
a sua dialéctica o conduz a destacar as limitações do de tensões e de equilíbrios entre o Estado e a demo-
determinismo sociológico com muito mais ênfase do cracia industrial planificando a economia de uma forma
que o faz Marx, em que aliás o determinismo é bem descentralizada. O mesmo acontece entre as empresas
menos rigoroso do que habitualmente se pensa. c as profissões que mesmo no regime do colectivismo

88 89
descentralizado se encontram em competição de produ- definitivamente termo à servidão humana, é o federa-
tividade. A guerra muda de carácter, mas n ã o desa- lismo, que significa igualmente a finalidade da dia-
parece. léctica, não só enquanto movimento real da sociedade
Porém, embora mantendo estas posições em Le como enquanto método. Este federalismo político é
Príncipe Fédératif (1863) e na obra póstuma La Pro- concebido simultaneamente como federalismo político
priêtê, Proudhon não resiste à tentação de utilizar a que equilibra o Estado do interior, e como federalismo
sua dialéctica para chegar a equilíbrios racionais, mais económico que reforça a unidade da sociedade plani-
estabilizados, correspondentes ao seu ideal social. ficada, sendo esta fundada numa propriedade federa-
Insiste mais uma vez, é verdade, sobre o facto de que h/ada que pertence simultaneamente ao conjunto da
o «mundo social e o mundo moral... repousam numa sociedade económica, a cada região, a cada empresa,
pluralidade de elementos irredutíveis...» Melhor ainda, e a cada trabalhador. I assim que as antinomias em
sublinha a constatação de que o método dialéctico, busca do seu equilíbrio acabam sempre por predo-
na variedade dos seus processos, é chamado a seguir minar sobre as complementaridades, as implicações
as sinuosidades das tensões entre os grupos, as pro- mútuas e as reciprocidades de perspectiva.
fissões, as comunas livres e sobretudo entre o Estado Experimcnta-se uma certa inquietação e alguma
e a sociedade económica, mesmo quando esta toma o perplexidade perante esta conclusão da dialéctica prou-
carácter de uma democracia industrial, e do colecti- dhoniana, cujo movimento complexo se encontra amea-
vismo descentralizado depois da revolução social. çado pelos equilíbrios que nem sempre evitam uma certa
O «choque de poderes de que se pode abusar» perma- estabilização racionalizada no federalismo. Mas, para
nece portanto válido para um Estado transformado sermos justos para com Proudhon, é necessário reconhe-
e para uma propriedade federativa atribuída a uma cer que se esta orientação dogmática da sua dialéctica
organização económica planificada autónoma, depois existe, ela é apenas uma característica secundária e
da desaparição do patronato. Se quisermos evitar nova que a dialéctica dos diversos aspectos da realidade
servidão, é preciso opôr um conjunto ao outro. A liber- social, da propriedade, da liberdade e do determi-
dade religiosa só pôde ser adquirida graças a uma nismo, das revoluções, da luta de classes, (sem o que
pluralidade de Igrejas que vieram limitar o Estado. a democracia industrial não pode triunfar) todas estas
E, para Proudhon, o caminho a tomar para combater, dialécticas estão presentes em todas as obras de Prou-
na sociedade de amanhã, as tendências para o esta- dhon da primeira à última De la Capacite Politique
tismo económico por um lado, para a anarquia eco- • I- | ('lasses Ouvrières. Nesta obra Proudhon apela para
nómica por outro, é o mesmo. energia revolucionária c para força criadora destas
Segundo Proudhon, a única solução para pôr classes para a construção de uma democracia indus-

90 91
trial. Estes múltiplos movimentos dialécticos estão bas- K \ ( . I u ç õ e s lhe parece impossível. Ora, parece-nos legí-
tante afastados dos «equilíbrios» mais ou menos arti- timo perguntar se uma dialéctica pode ser ascendente,
ficiais, e correspondem melhor aos dramas efectivos (iii que se pressuponha, prévia e independentemente
que se desenrolam na realidade social. tl<- qualquer dialéctica, uma escala de valores estável,
i.il como a da liberdade colectiva, que predomine sobre
»i determinismo. Por outras palavras, as pressuposi-
*
ções dogmáticas serão inevitáveis antes do recurso à
dialéctica?
Do ponto de vista do método, uma dialéctica
Falta-nos agora resumir as nossas críticas da dia- • li cquentemente negativa só pode ser um ordálio
léctica proudhoniana. | | permanente depuração dos conceitos, que conduza
1) Temos de constatar antes de mais que apesar .i i xtinção destes e a esforços sempre renovados para
do carácter negativo que apresenta, esta dialéctica com- P<mirar nas profundezas do real. Neste sentido, a
plexa e autêntica é uma dialéctica ascendente. E é-o no dialéctica só pode conduzir a novas experiências. Quer
sentido em que abre uma via que, segundo Proudhon, > trate do movimento dialéctico real, ou do método
conduz à possibilidade de realizar um ideal social dialéctico, n ã o é por meio da dialéctica que se pode
preciso: libertar o homem, os grupos e a sociedade chegar a uma vida social melhor. A dialéctica só pode
inteira das suas servidões e, na medida do possível, servir para mostrar as falhas do determinismo, e do
desalienar o trabalho graças ao estabelecimento de determinismo sociológico em particular, falhas essas
uma estrutura pluralista e federalista, em que a demo- .pie oferecem à liberdade humana a ocasião de penetrar
cracia política e a democracia industrial se limitem e n.i realidade social. Mas segundo a orientação e as
se completem, e em que a Justiça e o Direito triunfem «iKimstâncias, a liberdade tanto pode servir o bem
sobre o poder e sobre todas as outras regulamentações («imo o mal.
sociais. Segundo o próprio Proudhon, esta dialéctica 2) Em segundo lugar, a dialéctica proudhoniana,
não faz senão abrir o caminho à intervenção da liber- é apologética. É a apologia dos equilíbrios, «da oscila-
dade humana criadora e implica o risco de lutas renhi- ção» das antinomias, da integração destas em con-
das, de revoluções que podem fracassar e degenerar. IMIIIOS n ã o hierárquicos, da equivalência das forças
Só podemos admirar Proudhon por estas reservas rea- < olivtivas, dos valores transpessoais e pessoais, da liber-
listas mas temos de constatar que apesar de todos os Iftde dos indivíduos, e dos grupos, dos diferentes géne-
esforços n ã o evita o escolho da dialéctica ascendente i " de federalismo, da co-propriedade federalista ao
sem a qual a intervenção da liberdade colectiva e das M u n o tempo colectiva e individual, da democracia

92 93
industrial e política. Ora, todos estes elementos reais, lares, mutuamente implicados ou levados à recipro-
todos estes princípios morais e jurídicos e todas estas cidade de perspectivas, mais do que contrários ou, e
técnicas de organização (que podem ser válidas para sobretudo, antinómicos.
estruturas ou conjunturas sociais) n ã o são o resultado
Como j á indicámos, em determinadas fases do
de uma análise dialéctica imparcial, destinada a demolir
cupitalismo, o maquinismo e a concorrência por exem-
todos os dogmatismos e a relativizar todos os dados,
plo, não são contraditórios, mas complementares. Do
todos os princípios e todas as técnicas. São aceites
mesmo modo, o Estado e a sociedade económica tanto
por Proudhon antes de toda a dialéctica. Muitas vezes,
podem polarizar-sc como completar-se, implicar-se mu-
esta serve apenas para os expor, para os tornar explí-
tuamente como entrar em reciprocidade de perspec-
citos e para os justificar. É assim que, apesar do esforço
tivas. As forças colectivas e a consciência colectiva só
que faz para tornar a sua dialéctica tão complexa,
slo contraditórias enquanto o trabalho n ã o começar
relativista e diversificada como a realidade social em
u desalienar-se. Os restantes aspectos da realidade
todas as suas sinuosidades, n ã o evita o escolho do
social tendem de preferência para relações de impli-
demasiado bem equilibrado, do demasiado bem orga-
cação mútua, de ambiguidade, de complementaridade
nizado, do demasiado bem integrado, pois que pré-
ou de reciprocidade de perspectivas. O poder e o d i -
-concebido. Na dialéctica proudhoniana, a luta deses-
reito são muito mais vezes contrários do que contraditó-
perada entre o apologético e o empírico acaba com a
rios e podem achar-se em relações de implicação mútua.
vitória, embora precária, do apologético.
O mesmo acontece, e ainda com mais evidência, com
3) A terceira e última crítica que fazemos a Prou- o determinismo social e com a liberdade humana,
dhon diz respeito à inflacção das antinomias, nascida que comportam numerosos graus e em que diversos
n ã o só da confusão entre contraditórios e contrários cambiantes dialécticos são sempre possíveis.
como da confusão entre antinomia e tensão. Esta
inflacção é tanto mais flagrante quanto o próprio Prou- A inflacção das antinomias e as suas polarizações
dhon dá a perceber a multiplicidade dos momentos representam um sério obstáculo ao triunfo das visões
e processos dialécticos. Quando opõe, como antinó- mais profundas de Proudhon. Este pluralista não soube
micos, a sociedade e a propriedade privada, o maqui- levar até ao fim as suas próprias alusões à multiplicidade
nismo e a concorrência, o Estado e a sociedade econó- dos aspectos do movimento dialéctico real e dos processos
mica, as forças colectivas e a razão colectiva, a Justiça (lidleeticos necessários para lhes seguir os meandros.
e o Ideal, o poder e o direito, a liberdade humana e Assim, a dialéctica de Proudhon acha-se por vezes
o determinismo social, encaminha-se no sentido da estranhamente desarmada para penetrar nas profun-
polarização de elementos que podem ser complemen- dezas da realidade social, e em particular na dimensão

94 95
histórica desta. É nisto que residem os limites da dia- itiuia por um lado com as viragens da história, por
léctica proudhoniana. outro com as crises revolucionárias. Realizam-se em
A doutrina social de Proudhon exerceu contudo esforços colectivos que criam c recriam o homem e
grande influência na Primeira Internacional, na Comuna .i sociedade, readaptam as relações sociais às forças
de 1871, por intermédio do sindicalismo revolucionário, produtivas e manifestam-se na luta de classes. À seme-
no movimento sindical francês do começo do século X X . lhança de Proudhon, Marx não evita, como veremos,
Aqui está a prova de que a sua dialéctica tem méritos nem a dialéctica ascendente, nem a inflacção das anti-
incontestáveis e de que, apesar de algumas inconse- núas. Mas, graças ao constante recurso à colabora-
quências, foi muito mais realista do que muitas vezes o entre sociologia e história, permanece mais pró-
se pode pensar. ximo da realidade social que Proudhon. Daí as expres-
E antes de estudarmos, na nossa conclusão, alguns »õcs de Marx, aliás ambíguas e infelizes: «historio-
aspectos da influência real do pensamento de Prou- > i ília de base materialista», «materialismo prático»,
dhon no movimento operário e em particular, na ou «novo materialismo». Engels agravou ainda mais
Comuna de 1871, gostaríamos de lembrar brevemente » erro, através das suas fórmulas ainda mais falsas
em que é que a dialéctica de Marx se distingue da de «materialismo dialéctico» e de «materialismo eco-
de Proudhon e como é que, em certos aspectos, elas nómico». Mas, embora mantendo a dialéctica no con-
se completam. creto, o historicismo sociológico de Marx corre por
vezes o risco de comprometer esta dialéctica; na medida
cm que ela n ã o escapa à tentação de ir do saber his-
Rfcrico à filosofia da história e de atribuir às classes
Iodais em luta «destinos históricos» próximos dos que
D É C I M A SEXTA L I Ç Ã O el atribuia às nações e aos Estados.
Vamos tentar expor a dialéctica de Marx ( ) tão 2

A D I A L É C T I C A DE K A R L M A R X brevemente quanto possível, para a submeter seguida-


mente a uma apreciação crítica.
Embora na sua dialéctica, Marx não renuncie às
sínteses, e embora a ligação da dialéctica com o plu-
ralismo social esteja ausente das suas considerações,
revela-se menos dogmático que Proudhon, pois mani- (*) Existe uma exposição mais pormenorizada da dialéc-
festa um sentido histórico mais arguto. Com efeito, tica de Marx na minha obra Dialéctique et Sociologie, Paris, 1962,
Pl>. 118-152 («Dialéctica e sociologia», Publicações Dom Quixote,
as sínteses dialécticas de Marx identificam-se de prefe- Lisboa 1971).

96 97
Porém sob este duplo aspecto da dialéctica conce-
1. O primeiro mérito da dialéctica de Marx, é o
bida como movimento real e como método, Marx
de se pretender anti-dogmática e procurar excluir qual-
aproxima-se, tanto como Proudhon, do empirismo dia-
quer posição filosófica prévia, espiritualismo ou mate-
léctico conducente a uma experiência sempre renovada
rialismo, racionalismo, cepticismo ou, e até moralismo.
das sinuosidades, das viragens imprevisíveis e inespe-
Marx escreve que, «na prática social, o materialismo
radas da realidade social. As «sínteses dialécticas»
e o espiritualismo perdem a sua oposição». A dialéctica
que Marx evoca são de preferência os resultados dos
de Marx esforça-se por fazer ressaltar bem o que é
esforços, invenções, criações de vontade humana, colec-
relativo, transitório, variável, enfim, susceptível de se
tiva c individual, que se exprimem através das lutas
alterar. De uma forma ainda mais clara que a de Prou-
c conflitos entre as classes e os grupos, através das
dhon, a dialéctica de Marx quer-se inteiramente rea-
tensões entre as forças produtivas e as relações de
lista, o que a não impede de incluir na realidade o
•fodução (na condição de estas sínteses não se trans-
esforço, a acção, as significações, a «consciência real»,
i"imarem numa visão escatológica do futuro).
as obras de civilização, as ideologias a até a liber-
dade.
2) Chegamos assim ao segundo elemento positivo
O realismo dialéctico de Marx implica uma dupla
da dialéctica de Marx: a concentração exclusiva desta
orientação j á fortemente pressentida por Proudhon.
na realidade social, em particular na realidade histó-
Antes de mais, o movimento dialéctico é um movi-
rica, no humano colectivo como no individual. Prou-
mento real que caracteriza a realidade social inteira,
dhon, que se propusera o mesmo objectivo, não con-
os fenómenos sociais totais assim como as expressões
seguiu integrar inteiramente a dialéctica das ideias e
destes. Mas este realismo dialéctico representa simulta-
das doutrinas no movimento da realidade social. Pelo
neamente um método para se tomar consciência do movi-
contrário, Marx insistiu de tal maneira nesta integra-
mento social real, para o estudar e seguir as suas sinuo-
ção que houve quem o acusasse de apenas ver, nas
sidades. Assim, a dialéctica torna-se igualmente um
obras de civilização, nas ideias e nas doutrinas, projec-
método de investigação, e é lícito perguntar se Marx
ções, epifenómenos da realidade social ou ideologias,
reflectiu suficientemente no facto de que as próprias
lista não era contudo a intenção de Marx. Neste ponto
relações entre a dialéctica como movimento real e a dia-
Marx aproxima-se talvez de Saint-Simon, que conside-
léctica como método devem igualmente ser dialecti-
rava as obras, as ideias e os valores como partes inte-
zadas, isto é, que entre elas, tanto pode existir corres-
grantes dos fenómenos sociais totais e dos actos totais
pondência (complementaridade, implicação mútua, reci-
que os produzem. Marx admite que as próprias ideo-
procidade de perspectivas) como desfasagem (ambigui-
logias estão envolvidas num movimento dialéctico, o
dade e polarização).

99
98
que, dando-lhes uma relativa eficácia na realidade
social, lhes confere uma parte de veracidade.
g) A dialéctica do movimento histórico vem rema-
3. O terceiro elemento positivo da dialéctica de tar o edifício. Esta tem tendência a englobar todas as
Marx e segundo pensamos, o mais importante, é a outras, mas provoca contudo no próprio Marx uma
descoberta de que o movimento dialéctico real comporta ilialéctica entre sociologia e saber histórico ou ciência
uma multiplicidade de orientações possíveis, observá- da história.
veis na realidade social. Marx nem sempre diferenciou claramente estes
Podemos distinguir sete: innliipios movimentos dialécticos, tanto mais que a
dialéctica histórica é para ele a síntese de todas as
a) Antes de mais, a dialéctica das sínteses revo-
nutras. Forneceu no entanto indicações suficientes para
lucionárias.
nos permitir constatar que a maioria destas dialécticas
b) Seguidamente, a dialéctica entre as forças pro- não são inteiramente convertíveis.
dutivas, as relações de produção, as tomadas de cons-
Apesar disso, há um ponto importante que Marx
ciência, as obras de civilização e as ideologias, dialéc-
n.i<> considerou e esta omissão enfraquece o que des-
tica que, segundo a nossa terminologia, podemos de-
• o i w i u ou melhor, pressentiu. Se o movimento dialéc-
signar como a dialéctica das camadas em profundidade
tico real pode encaminhar-se em diversas direcções,
(paliers) da realidade social.
nflo será necessário recorrer a diferentes processos dia-
c) Em terceiro lugar, a dialéctica das classes so- lécticos para as estudar e seguir na sua variação?
ciais e da luta destas, das transformações do seu papel, I claro que os movimentos dialécticos reais são ante-
do seu número c das suas divisões internas. I I O U S às vias e meios que permitem descobri-los e
d) Depois, a dialéctica das alienações, que adqui- «-..miá-los; porém, seria inadmissível reduzir a um só
rem diferentes formas e sentidos e são particularmente i o d o s os processos operatórios utilizáveis pelo método

profundas em regime capitalista. dialéctico: o da antinomia ou da polarização entre os


contraditórios, que em princípio se faz acompanhar
e) Chegamos à dialéctica da vida económica em
l»cla unificação destes ou pela sua «superação» em
geral e da economia capitalista em particular.
sínteses.
f) U m dos aspectos desta, é a dialéctica entre
Se, por exemplo, para estudar a dialéctica das revo-
as sociedades enquanto totalidades, e as suas econo-
luções se impõe o processo de polarização, pelo contrá-
mias enquanto sectores destas totalidades, o que pode
n o . para estudar a dialéctica dos aspectos da realidade
igualmente conduzir a uma dialéctica entre ciência
Iodai, os processos mais indicados são o estabeleci-
económica e sociologia.
mento de relações de complementaridade, de implica-
• 0 mútua, de ambiguidade e de reciprocidade de
100
101
a perda de si próprio; c) e por fim, a «desrealiza-
perspectivas. Do mesmo modo, a dialéctica das classes
çflo, (5) exigem para o estudo dos seus movimentos,
sociais, na medida em que não são apenas duas classes
0 recurso ao processo dialéctico de polarização.
que estão em causa, mas várias (o que é muitas vezes
A variedade dos processos dialécticos impõe-se
o caso nas análises concretas de Marx, em que ele
igualmente para o estudo das relações entre economia
menciona cinco ou seis classes e inúmera «fracções» no
1 estrutura social. O próprio Marx o reconhece impli-
interior daquelas) requer a aplicação, paralelamente
. ilamente, ele que tem tendência para exagerar a impli-
à polarização, do estabelecimento em relação dialéc-
cação mútua e até a reciprocidade de perspectivas
tica de complementaridade ou de ambiguidade. Este
entre ambas.
último processo, sobretudo, é manifestamente neces-
sário para o estudo de fracções de classes susceptíveis *
de constituir novas classes. Só os processos dialécticos * *
envolvendo reciprocidade de perspectivas e implica-
ção mútua são excluídos aqui, na medida em que o
carácter próprio de uma classe é o de ser irredutível Assim, as constatações que acabámos de fazer
a qualquer outra. Neste aspecto, Proudhon sentiu me- obre a distância que existe entre a descoberta de Marx
lhor que Marx a pluralidade dos processos dialécticos. de uma multiplicidade de movimentos dialécticos exis-
Os diferentes sentidos que o conceito de alienação tentes na realidade social e a sua admissão de princípio
adquire em Marx, e que diversos movimentos dialéc- de um só processo operatório para os estudar, dis-
ticos reais envolvem deveriam implicar igualmente uma tância que o conduz, como Hegel e Proudhon, a uma
multiplicação dos processos dialécticos. Assim, as verdadeira inflacção de antinomias, permitem-nos pre-
«alienações» que em si não têm nada de negativo tais cisar as falhas da sua dialéctica.
como: a) a objectivação; b) a autonomia do social:
c) a estruturação deste; d) por fim a organização 1. O primeiro erro essencial da dialéctica de Marx
deste, na condição de ser democrática, pode muito (como aliás da de Proudhon) é o facto de não ter
mais, para o estudo das suas transformações, processos aprofundado suficientemente o problema da relação
como, o estabelecimento de relações de implicação entre a dialéctica enquanto movimento real da huma-
mútua ou de reciprocidade de perspectivas com a
espontaneidade do fenómeno social total subjacente,
do que um recurso ao processo de polarização. Por (3) Cf. a propósito do conceito de alienação em Marx a
outro lado, as alienações negativas tais como: a) a minha obra, Vocation Acluelle de La Sociologie, 2.» ed., P.U.F.,
sujeição às organizações de dominação; b) & projecção 1963, pp. 253-321.

103
102
nidade, da sociedade e da realidade histórica, e os 3. Chegamos ao terceiro erro próprio à dialéc-
processos dialécticos que permitem estudá-las. Ora, tica de Marx, o dc ser, não só uma dialéctica ascendente,
como j á indicámos, esta relação é em si dialéctica. mas também apologética. É a apologia da segunda fase
Embora Marx tenha aludido à distinção entre dia- do comunismo, a apologia da sociedade sem classes,
léctica como movimento real e dialéctica como método a apologia da desaparição do Estado, a apologia da
de investigação, não foi suficientemente esclarecedor a desaparição de todos os constrangimentos, de todos
este respeito. os obstáculos, a apologia da harmonia perfeita sobre
a terra. É a apologia do fim da história: A dialéctica
2. O segundo erro da dialéctica de Marx, ainda realista de Marx termina pois por uma escatologia
mais grave que o primeiro, e que está aliás na origem cm que a mensagem profética da salvação e o fim da
deste, é o facto de a sua dialéctica permanecer uma história se unem. Será preciso insistir no facto de que
dialéctica ascendente, como todas as dialécticas que a dialéctica ascendente e apologética de Marx, apesar
a precederam. de todo o realismo manifestado por este autor ao longo
Se para Platão a dialéctica é um método que per- da sua obra só serve afinal para provar o que previa-
mite chegar à intuição das ideias eternas, se para os mente já estava implícito, isto é, que o ideal terrestre
representantes da teologia negativa ela é um ordálio edificado pelo proletariado não tardará a realizar-se?
preparatório à intuição mística, se para Fichte e para Deste ponto de vista, a dialéctica de Proudhon é
Proudhon ela é um esforço da Sociedade e da Huma- mais realista que a de Marx, pois na sua procura dos
nidade (idêntico à acção moral de Prometeu) que conduz equilíbrios variados entre as antinomias, mesmo na
à criação pelo trabalho, em Marx e apesar do realismo sociedade futura, pressupõe sempre uma instabilidade
mais rigoroso deste, a dialéctica continua a ser a mar- desta, isto é, novos problemas a resolver, problemas
cha da humanidade ultrajada para a salvação definitiva. aliás imprevisíveis. Portanto, a dialéctica de Proudhon
Embora menos moralizante que as de Fichte e de e a de Marx, como as suas respectivas contribuições
Proudhon, a dialéctica ascendente de Marx conduz cm todos os domínios, completam-sc mais do que se
porém muito mais ao sonho dc um paraíso terrestre, l «Hitradizem.
em que todas as dificuldades e tensões próprias à
vida social estariam para sempre ultrapassadas. Graças
à dialéctica histórica, a dialéctica ascendente de Marx
é uma marcha triunfal através das revoluções, para
uma Humanidade enfim desalienada de todas as ser-
vidões e reconciliada consigo própria.

104 105
A I N F L U Ê N C I A DE P R O U D H O N E DE M A R X
NO MOVIMENTO OPERÁRIO REAL

D É C I M A SÉTIMA LIÇÀO

Para terminar este curso, vamos confrontar a


influencia de Proudhon e de Marx no movimento
operário real.
Proudhonianos e marxistas afrontaram-se pela pri-
meira vez na Primeira Internacional dos Trabalhadores,
cuja existência foi aliás breve. Concebida aquando
do encontro de operários delegados de diferentes países
na Exposição Internacional de Londres em 1862, a
Associação Internacional foi fundada oficialmente em
1865 e dissolvida em 1872, ao fim de sete anos de
existência. A primeira reunião da Associação Interna-
cional teve lugar em Genebra em 1866. A declaração
inaugural foi redigida por Marx, mas este teve em
Kmta as posições dos representantes franceses que eram
todos proudhonianos moderados e tinham como repre-
sentante o operário Tolain. A secção francesa organi-
zou-se no princípio de 1865. Começou por ser dirigida
por Tolain, Fribourg e Limousin. Os dois primeiros

109
tinham assinado o «manifesto dos sessenta» que foi extremismo. Deste ponto de vista, a evolução de Varlin
condenado por Proudhon em De la Capacite Politique é muito significativa. As ideias de Proudhon, de Blanqui
des Classes Ouvrières, devido à sua extrema moderação. e de Bakounine combinam-se no seu espírito, mas
Entre os outros membros dirigentes, que se juntaram continua afastado do marxismo. No congresso de
aos fundadores, é preciso citar Benoit Malon e sobre- Bruxelas (1868) e de Bale (1869), Marx conta ainda
tudo Varlin que será um dos membros mais influentes com muito poucos partidários. Contudo, todos os
da Comuna e uma das vítimas mais corajosas da liqui- delegados estão de acordo sobre o princípio da colec-
dação sangrenta da Comuna pelos Versalheses no tivização dos meios de produção.
fim do mês de Maio de 1871. Foi Varlin que contri-
Nesta época, só havia em França dois marxistas:
buiu essencialmente para a viragem à esquerda da
Paul Lafargue, o genro de Marx e Léo Trankel. Lafar-
secção francesa da Internacional. Embora Marx se
gue não pôde tomar parte na comuna de Paris porque
corresponda com Varlin e lhe dê provas de estima,
vivia em Bordéus. Mas veio passar uns dias a Paris
o alinhamento à esquerda da secção francesa da Inter-
para tomar contacto com a Comuna, o que lhe valeu
nacional funda-se mais na síntese do pensamento de
uma condenação severa a que só pôde escapar pelo
Proudhon com o anarquismo revolucionário de Ba-
exílio que só terminou depois da amnistia de 1880.
kounine. O primeiro congresso da Internacional decorre
A sua missão tinha como finalidade organizar em Bor-
em Genebra de 3 a 18 de Setembro de 1866. É domi-
déus, como foi tentado em muitas outras grandes
nado pelos proudhonianos, sustentados pelos parti-
cidades francesas, comunas análogas à de Paris. Em
dários de Bakounine. N ã o tendo podido participar no
Saint-Étienne e em Lião foram feitas tentativas que
Congresso, Marx orienta os seus partidários no sentido
falharam. Quanto ao outro marxista, o húngaro Fraen-
de «não criarem divergências» e de insistirem na reivin-
kel, viria a ter um papel importante na Comuna de
dicação do dia de 8 horas e na liberdade sindical, o que
Paris.
deveria ter a aprovação de todos. Também no Congresso
Durante os dois anos que precederam a Comuna
de Lausana (1867), os proudhonianos, que se tornam
e que marcam o apogeu da Primeira Internacional
aliás cada vez mais revolucionários, continuam a pre-
cm França, os proudhonianos, após terem descoberto
dominar, apoiados pelos partidários de Bakounine.
o carácter revolucionário do proudhonismo e compreen-
A partir de 1867 e até à Comuna (1871), a crise dido finalmente a posição efectiva de Proudhon, pro-
económica engendra uma série de greves. Marx, que curam o momento propício para organizar a revolução
vem a França clandestinamente em 1869, constata que social e a revolução política; afirmam-se então como
o movimento operário ultrapassa os proudhonianos. os dirigentes autênticos do movimento operário. O Go-
De facto, este movimento condu-los cada vez mais ao verno imperial por duas vezes processa a Secção Fran-

110
111
cesa da Internacional. Os seus dirigentes são conde-
A Secção Francesa da Internacional com o Comité
nados a penas de prisão, mas a Secção, duas vezes
Republicano dos vinte bairros de Paris (Setembro
dissolvida, por duas vezes consegue reconstituir-se.
de 1870 — Maio de 1871), influenciado pela Secção
Nesta altura, e sobretudo depois da queda do Império,
e apoiado pelos guardas republicanos em revolta, foram
imposta pela revolta operária de 4 de Setembro de 1870,
as principais forças organizadas da Comuna, apoiada
a Secção Francesa da Internacional conta nas suas
essencialmente nos operários de Paris. Contudo, a
fileiras com mais de 300 000 aderentes operários.
causa principal da Comuna reside numa conjuntura
Porém, não se pode afirmar, com os adversários histórica única: O arco de Paris pelo exército alemão
da Comuna e também com certos historiadores influen- que se encontrava às portas da capital desde 19 de Se-
ciados por eles, que a Internacional Operária foi a prin- tembro de 1870, a falta de víveres e a injustiça flagrante
cipal causa da Comuna. A propaganda oficial dos da repartição destes, o armistício com a Alemanha
Versalheses com Thiers à cabeça, apresentava a comuna aceite a 28 de Janeiro de 1871 em condições inauditas,
de Paris com uma intriga tramada no estrangeiro por o carácter ultra-reaccionário da Constituinte de Ver-
aventureiros residentes em Londres. Ora, nada é mais salhes e por fim a política directamente provocadora
certo que o seguinte facto: desde 4 de Setembro de 1870, de Thiers, Jules Favre e Jules Ferry relativamente à
o Comité Central da Internacional reunido em Londres, classe operária, foram os verdadeiros factores da ex-
e em particular Karl Marx aconselhavam os operários plosão social que foi a Comuna de Paris.
franceses a tomar precaução contra uma «insurreição
Nestas condições, não é surpreendente que a
prematura». O levantamento de 31 de Outubro de 1870,
Comuna tenha durado apenas setenta e três dias: de
em que os operários e a guarda nacional invadem a
18 de Março a 28 de Maio de 1871. Deveríamos até
sala de sessões do Governo da Defesa Nacional no
espantar-nos de todas as medidas que a Comuna teve
Hotel de Ville, só aumenta as apreensões de Marx
tempo de tomar no curto espaço de tempo que viveu.
e de Engels. Consideram que a classe operária fran-
Estas medidas, assim como a própria existência da
cesa não está madura para uma revolução social.
Comuna — primeiro exemplo do início de uma revo-
Marx só aceitou a Comuna de Paris depois de cia
lução social — tiveram repercussões imensas no movi-
ter sido instituída e, ao dedicar-lhe a sua primeira
mento operário e nos seus adversários no mundo
apologia, não tocou sequer no facto de a maioria dos
inteiro. O próprio Lenine meditou muito sobre a
membros da Comuna serem Proudhonianos e blan-
Comuna.
quistas. Todas as medidas administrativas, econó-
micas e políticas tomadas pela Comuna se inspiravam E mais: esta primeira tentativa de organização
de Proudhon. do poder proletário, desempenhou o papel de um
verdadeiro mito no sentido soreliano de chamamento

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à acção. A tal ponto que Lenine, numa discussão cada comuna retira (ao poder) todo o carácter repres-
pública em que os seus partidários como os seus adver- sivo. O que é que nós pedimos? A organização do
sários lhes perguntavam se o governo dos sovietes crédito, do comércio e da associação a fim de asse-
poderia durar muito tempo, respondeu em substância gurar aos trabalhadores o valor integral do seu tra-
que não podia ainda responder, mas que pelo menos, balho». O tom proudhoniano deste Manifesto não
quanto mais durasse, mais contribuiria para criar um escapa a ninguém. Depois de 229 000 parisienses te-
mito — que, ao lado da Comuna e talvez mais ainda rem votado (sobre 488 500 inscritos; muita gente tinha
que a Comuna se gravaria para sempre na memória abandonado Paris), a Comuna instalou-se, a 28 de
da classe proletária do mundo inteiro. Março. O discurso inaugural é pronunciado por um
velho amigo de Proudhon, Beslay, que virá a ser dele-
Nestas condições, é particularmente interessante
gado da Comuna ao Banco de França. Entre os eleitos
analisar o espírito da Comuna e as medidas através
(70 membros), contam-se 25 operários, dos quais
das quais tentou pô-lo em prática. A 18 de Março, o
13 são membros da Internacional, os restantes membros
Comité Central da Guarda Nacional decide e consegue
são intelectuais entre os quais se encontram Charles
levar os canhões para a colina de Montmartre a fim
Longuet — futuro genro de Karl Marx, o pintor Cour-
de se defender contra os Versalheses e Alemães. A 19
bet, os escritores Jules Valles, Clémeni, Grousset, etc,
de Março anuncia para 26 as eleições para o Conselho
que passam a fazer parte da Comuna aquando das
Municipal da cidade de Paris e encarrega da organi-
eleições complementares de 16 de Abril. Artesãos, em-
zação destas eleições o Comité dos vinte bairros. A o
pregados e pequenos comerciantes constituem o resto
mesmo tempo, são nomeados delegados para os dife-
desta Assembleia bastante heterogénea.
rentes serviços ministeriais, militares e administrativos:
Varlin e Jourde nas Finanças, Eude na Guerra, Vaillant «A declaração do povo francês lida a 19 de Abril
no Interior, etc. Assim se constituiu e começou a reu- no Hotel de Ville e aprovada por unanimidade pela
nir-se no Hotel de Ville, a primeira célula do Comité Comuna, foi redigida por dois proudhonianos notórios,
Executivo provisório da Comuna. Pierre Denis e Delescluse. O conteúdo desta declaração
coincide totalmente com as ideias de Proudhon: «Auto-
A 23 de Março, três dias antes das eleições, o nomia absoluta da Comuna estendida a todas as loca-
Comité Central no seu Manifesto expõe claramente lidades de França e tendo apenas por limites o direito
os fins que o animam: realizar uma revolução comunal, de intervenção igual para todas as outras comunas
base da revolução social. Lemos: «Reivindicámos a aderentes ao contrato, cuja associação deve assegurar
emancipação dos trabalhadores e a delegação comunal a unidade francesa». Federalismo total portanto, e
é a garantia dessa emancipação... A autonomia de daí o nome de «federados» dado a todos os partidários

114 115
As medidas económicas tomadas pela Comuna
da Comuna, e direito dos eleitores de revogarem os
obedecem ao mesmo espírito e às mesmas circunstân-
seus representantes. De uma maneira mais geral, a
cias. A Comuna suprime temporariamente todas as
finalidade da Comuna é «pôr termo ao velho mundo
rendas para de futuro poder nivelá-las. Devolve gratui-
governamental e liberal, ao militarismo, ao funciona-
tamente a todos os interessados os objectos empenhados
rismo, à exploração, à escravatura dos monopólios, aos
e reembolsa todos aqueles cujos objectos empenhados
privilégios a que o proletariado deve a sua servidão, à
já tenham sido vendidos. Decreta uma moratória geral
pátria, às suas infelicidades e desastres.» Pior as coisas
de três anos para todas as dívidas. Tenta organizar o
correm, mais a Comuna radicaliza as suas fórmulas e
crédito gratuito tão querido a Proudhon. Proibe todas
medidas. «Tendo a revolução como finalidade fazer
as multas e todos os descontos nos salários infligidos
desaparecer o próprio poder, comporta a abolição
aos operários nas fábricas. Confisca todas as empresas
do Estado e de qualquer organismo de que este seja
industriais privadas abandonadas pelos respectivos pa-
a incarnação suprema»; de entre as fórmulas extraímos
trões. Nomeia representantes ao Banco de França,
o texto que acabámos de transcrever porque é exemplo
mas não ousa ir até ao confisco dos fundos; hesita
de uma síntese entre o proudhonismo e o marxismo.
até Maio, algumas semanas antes do seu fim, o que
Quanto às medidas tomadas pela Comuna, é preciso
foi um erro. Tanto quanto possível, procura desen-
distinguir as iniciativas novas e as medidas de auto-
volver a assistência pública e democratizá-la. Proibe
defesa.
o trabalho nocturno, mesmo nas padarias e favorece
As iniciativas novas são todas determinadas pela
as câmaras sindicais. Taxa e controla os preços de
hostilidade à burocracia, ao funcionarismo, ao exér-
todos os bens de consumo.
cito permanente, ao ensino confessional, a qualquer
subvenção aos cultos religiosos. A Comuna considera
os funcionários, mesmo os que ocupam os mais altos Uma das grandes preocupações da Comuna e tal-
cargos, como delegados temporários, cujos salários não vez aquela que melhor conseguiu objectivar, foi a reor-
devem ultrapassar o de um operário qualificado. ganização do ensino. Vaillant, delegado da Instrução
Contrariamente ao que se passaria na U.R.S.S. após Pública, convoca os pais dos alunos das escolas pri-
a revolução, a Comuna tende, na medida do possível, márias para estudar com eles as reformas a empreen-
a nivelar todos os salários. Havia aqui uma parcela der. Suprime-se o ensino religioso. Organizam-se escolas
de utopia. Contudo, na sua apologia da Comuna con- de ensino técnico e profissional. Proclama-se o prin-
tida na terceira declaração à Associação Internacional cípio de gratuitidade para todos os graus de ensino.
dos Trabalhadores, que constitui A Guerra Civil em A Federação dos artistas é encarregada de gerir todos
França, Marx aprova esta tendência sem reservas. os teatros. A Biblioteca Nacional é reorganizada e

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passa a ser aberta a todos; Elie Reclus é investido no quatro dias antes da queda da Comuna, criou a lenda
cargo de director. sustentada mais tarde pelo marxismo oficial, de que
Todas estas medidas são apoiadas pelos «clubes os proudhonianos mais ortodoxos tinham sido hostis
populares» que pressionam a Comuna a tomar me- à Comuna. Isto é verdadeiramente falso, pois como
didas de socialização mais radicais. Foram provavel- sabemos alguns dos amigos mais íntimos de Proudhon,
mente estes clubes, assim como as violências exercidas como Beslay, Deslecluse e Denis foram membros da
pelos versalheses, que, ou fusilavam todos os parti- Comuna e desempenharam até funções no governo
dários da comuna (communards) que apanhavam ou que ela instituiu. Aliás, em La Verité sur la Comune.
guardavam alguns como reféns que sofriam o mesmo Beslay faz a apologia dos proudhonianos.
destino ou se achavam sob esta ameaça terrível, que A quem me perguntasse: se fosse vivo, Proudhon
conduziram a comuna a tomar uma medida que veio teria participado na Comuna — o que tendo em conta
a revclar-se nefasta: a organização de uma Comissão a sua idade teria sido perfeitamente possível, pois
de Salvação Pública que, sob a inspiração de blan- falecido com 56 anos em Janeiro de 1865, na altura
quistas jacobinos cometeu erros graves. Apesar de ter da Comuna Proudhon teria apenas 61 anos — respon-
sido reorganizada a 9 de Maio, menos de três semanas deria, evidentemente, que me é impossível afirmar quais
antes da queda da Comuna, não se evitaram massacres poderiam ter sido as suas reacções directas. No en-
colectivos e arbitrários. A Comuna propôs ao governo de tanto, se tivermos em conta a conduta ultra-revolucio-
Versalhes uma troca de reféns entre os quais se encon- nária de Proudhon na Constituinte de 1848 se relermos
trava o Arcebispo de Paris. Thiers recusou a troca e em De la Capacite Politique des Classes Ouvrières — o
64 prisioneiros foram fusilados em Paris antes da apelo à separação total entre estas classes e a bur-
queda da Comuna. Entre as vítimas encontrava-se guesia, e a previsão demasiado optimista da desapari-
Chaudey, o antigo secretário de Proudhon que ficara ção eminente desta última — a hipótese da participa-
na capital, mas não tinha participado na insurreição. ção de Proudhon na Comuna apresenta-se extremamente
Não que lhe fosse hostil, mas desaprovara o levanta- provável. Se tivesse participado na Comuna, teria sido
mento dos guardas nacionais em Outubro de 1870 o seu chefe. Todas as medidas tomadas pela Comuna
e por esta razão era mal visto pelos membros da se fundam nas ideias de Proudhon, excepto a Comissão
Comuna. Foi preso por um comissário bastante sus- de Salvação Pública que se deve à influência blanquista.
peito que se apossou das suas economias, o que pro- Não há dúvidas de que Proudhon teria combatido o
vocou a demissão do delegado da Comuna à perfei- blanquismo com todas as forças. E é provável que o
tura da Polícia, Rigault Chaudey foi apenas uma seu prestígio contribuísse para limitar e reduzir esta
vítima das circunstâncias. Mas a execução deste, tendência. Proudhon teria então morrido corajosa-

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mente, fusilado pelos versalheses, como o foram os tem por chefes Vaillante e Allemane, o Parti Ouvrier
restantes partidários da Comuna (communards) e o Possibiliste que representava também a facção prou-
seu corpo seria inumado com o de tantas outras víti- dhoniana moderada. Brousse é o primeiro a propor
mas, em frente do «Muro dos Federados», no cemitério uma síntese entre as concepções de Proudhon e as de
de Père-Lachaise, em Paris. Se isto tivesse aconte- Marx. Encontra-a numa autonomia dos serviços pú-
cido, as doutrinas de Proudhon teriam tido um eco blicos descentralizados, graças à qual os meios de pro-
maior e exercido uma influência mais profunda do que dução atribuídos ao Estado proletário seriam efecti-
têm exercido até hoje. vamente geridos pelos interessados. Mas não apro-
funda estas ideias que aliás compromete pelo seu opor-
Gostaria de assinalar um facto curioso. Alguns
tunismo. O sociolista belga Caesar de Paepe primeiro,
anos após a queda da Comuna, primeiro Marx e em
e em seguida Jaurés (que muito contribuiu para a
seguida Engels (este mais em pormenor) pretenderam
unificação do partido socialista francês, Section Fran-
demonstrar que o fracasso da Comuna tinha para
çaise de 1'Internationale Ouvrière (1905) donde o termo
sempre enterrado o proudhonismo, reconhecendo assim
actual S.F.I.O.) desenvolveram uma síntese mais pro-
implicitamente a influência predominante de Proudhon
funda de Proudhon e de Marx, síntese a que nos refe-
na Comuna. Mas não foram bons profetas. Porque
riremos antes do fim deste curso.
o pensamento de Proudhon ressuscitou com a nova
força que o movimento operário adquiriu em França Assinalemos desde já que é sobretudo no movi-
depois de 1880, sobretudo a partir do desenvolvimento mento sindical que é preciso procurar o ressurgimento
do sindicalismo, nomeadamente do sindicalismo revo- da influência proudhoniana. Depois de a lei de 1884
lucionário. (sob a iniciativa do governo de Waldeck — Rousseau)
ter reconhecido a legalidade dos sindicatos é fundada
Para terminar, estudaremos os diversos aspectos em 1895, a Confédération Générale du Travail. Simul-
desta influência. taneamente, constata-se um rápido desenvolvimento
Depois do esmagamento da Comuna, milhares de da Fédération des Bourses du Travail fundada sob a
fusilados (100 000), de presos, de emigrados — e apesar impulsão de Pelloutier em 1893. As duas organizações,
da interdição legal de qualquer associação operária igualmente influenciadas pelo proudhonismo fazem
(tornada ineficaz depois da amnistia de 1880) o movi- (ontudo concorrência uma à outra durante quase
mento operário em França não quebra. Existem três dez anos. Se a Fédération des Bourses du Travail se
partidos operários: Parti Ouvrier François, chefiado inspira no proudhonismo revolucionário combinado
pelos marxistas Paul Catargue e Jules Guesdes, Parti com a influência de Bakounine (e daí a expressão
Socialiste Révolutionnaire de tendência blanquista que unarco-sindicalismo) a C.G.T. é inclinada a um prou-

120 121
dhonismo moderado. A união das duas organizações proudhonianos moderados e prefaciada por Bouglé)
faz-se no congresso de Montpellier em 1902. que descrevendo os esforços realizados em Inglaterra
É desta altura que data o sindicalismo revolucio- e na Alemanha para se organizar legalmente a repre-
nar io. que domina a C.G.T. durante doze anos, para sentação operária nas fábricas, falava da «ressurreição
se desagregar no começo da primeira guerra mundial de Proudhon» e da «época da sua vingança». Porém,
em 1914, deixando contudo marcas profundas não só estes autores, como aliás os sobreviventes do dindica-
em França como no estrangeiro. O sindicalismo revo- lismo revolucionário, esqueciam a influência de Prou-
lucionário é simultaneamente um movimento operário dhon na constituição da autogestão operária de base
real que se manifesta espectacularmente em França no início da Revolução Soviética, influência que de-
e uma doutrina que se pretende original e o é em parte; veria prolongar-se até muito mais tarde pelo desenvolvi-
é uma modificação do proudhonismo de esquerda adap- mento da autogestão operária na Jugoslávia a partir
tado às circunstâncias. de 1950.
O sindicalismo revolucionário adopta uma «carta» Mas voltemos à doutrina do sindicalismo revolu-
no Congresso de Amiens (1906). A carta de Amiens cionário em França. É preciso não confundir a doutrina
em que se recusa todo e qualquer contacto com a elaborada, no fogo dos combates, pelos dirigentes efec-
burguesia, com o Estado e até com os partidos polí- tivos deste movimento e as doutrinas de Sorcl e Berth,
ticos, em que se prega a acção directa, a greve geral doutrinários intelectuais que se baseavam nos aconte-
e uma revolução permanente nas fábricas e no país; cimentos. Os dirigentes do sindicalismo revolucionário
esta carta é votada por 830 vozes contra 8. O seu autor retiveram sobretudo de Proudhon a ideia de que «a
chama-sc Griffhules, secretário geral da C.G.T.; foi fábrica deve substituir o governo» e que a democracia
o maior chefe do sindicalismo revolucionário como industrial deve ser instituída pelos próprios operários.
movimento real. Lembro-me de uma conversa que tive Mas, para a realizar acrescentaram, é necessário uma
com um amigo íntimo de Griffhules em 1925, quando «acção directa» exterior a qualquer forma legal, acção
comecei a redigir a minha tese de Doutoramento de que só pode ser exercida pelos sindicatos e pelas células
Estado, VIdée d'un Droit Social em que o pensamento destes nas fábricas. O principal meio é a greve: as
de Proudhon tem um papel importante. Dizia-me o greves parciais e a greve geral. É nisto que o sindica-
meu intelocutor: «Sabe que sem o sindicalismo revo- lismo revolucionário se distingue essencialmente de
lucionário, Proudhon estaria esquecido do grande Proudhon. embora o evoque. As células sindicais nas
público e dos meios operários». Isto é parcialmente lá bricas e nas empresas que estes autores identificam
verdade, embora em 1920 tenha sido publicada uma erradamente com os conselhos operários de controlo
obra colectiva, Proudhon et notre temps (escrita por e pestão, parecem-lhes ser a base da sociedade futura.

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Por outro lado, confiam nas «minorias activas» capazes os partidários de Guesdes tornava-se o chefe incon-
de tomar a iniciativa não só da «revolução final» como testado do Parti Socialiste Unifié (1905-1914). Embora
da «revolução permanente», quotidiana. Esta ideia não desagrave a acção directa pregada pelo sindicalismo
diria nada a Proudhon. A esta orientação do sindica- revolucionário, reconhece o fundamento da indepen-
lismo revolucionário, acrescenta-se um anti-militarismo dência do sindicalismo relativamente aos partidos polí-
ferrenho, a recusa em termos violentos do exército per- ticos e o papel dos sindicatos e das células destes, não
manente, seja ele qual for e um pacifismo radical que só no regime capitalista, mas também como base da
foi abalado pelos acontecimentos de 1914. autogestão industrial na sociedade do futuro.
Sorel nas Réfléxions sur la Violence (1908) e Berth Talvez sob a influência do socialista belga, Caesar
em Les Méfaits des Intelleetuels (1914) acrescentaram de Paepe, cujas sugestões aprofundou, Jaurés volta-se
à doutrina do sindicalismo revolucionário a ideia do para Proudhon sobretudo para os seus primeiros escri-
Mito apelando para a acção e representando uma tos sobre a propriedade. Tenta realizar uma síntese
espécie dc síntese entre certas ideias de Proudhon c de entre Marx e Proudhon, propondo que a propriedade
Bergson. Esta ideia de importância do M i t o viria a dos meios de produção seja atribuída a um Estado
exercer certa influência em Lenine. Outra ideia acres- colectivista mas que a propriedade efectiva e a gestão
centada à doutrina do sindicalismo revolucionário foi destes meios de produção seja dada aos operários.
a prevenção contra os intelectuais, tão querida a Berth, Pronuncia-se pois por um colectivismo descentralizado,
que não teve repercussões em França, mas foi utilizada fundado na autogestão operária, embora não pronuncie
no início da revolução russa, para em seguida ser este termo. Compreender-se-á agora melhor porquê
condenada... Leon Jouhaux, então Secretário Geral da C.G.T., disse
Sublinhemos, para terminar as nossas reflexões no discurso que pronunciou no funeral de Jaurés,
sobre o sindicalismo revolucionário em França e sobre vítima de um odioso atentado em vésperas da guerra
a influência parcial que Proudhon exerceu neste movi- de 1914, que o sindicalismo revolucionário só se afas-
mento, que enquanto movimento real, a sua impor- tava de Jaurés pelos meios e não pelos fins.
tância não se mede pelo número de aderentes à C.G.T. Encontramos alguns aspectos de proudhonismo
da época (apenas 5 ";, das massas trabalhadoras) mas (muito conhecidos, na Rússia) na organização do par-
pelo dos participantes nas greves: 9 500 000 em 1906, tido socialista revolucionário russo que se dirigia sobre-
4 800 000 em 1910, por exemplo. tudo aos camponeses; a sua ala de extrema esquerda
Na época em que em França o sindicalismo revo- não só apoiou inteiramente a revolução soviética, mas
lucionário se desenvolvia de uma forma espectacular, participou no primeiro governo dos sovietes. Ora, a
Jean Jaurés, apesar da luta que desencadeava contra influência combinada do sindicalismo revolucionário e

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125
do proudhonismo em geral, desempenhou um papel muito actual, cem anos volvidos após a morte de
considerável na formação dos sovietes de base que após Proudhon, a actualidade do pensamento deste impôe-se
a Revolução de Outubro tomaram o poder nas fábricas a Leste como a Oeste. Esta parece-me ser a maior
e nas empresas, onde realizaram a autogestão operária. homenagem que podemos prestar-lhe.
Algumas ideias de Proudhon estavam patentes no Se- Enquanto sociólogo e doutrinador social, Proudhon
gundo Programa do partido comunista adoptado em não é apenas um traço de união importante e indis-
M a r ç o de 1918 e até cm discursos de Lenine contra pensável entre Saint-Simon e Marx, sem o qual Marx
o governo provisório de Kerensky, em 1917. Concreta- não seria possível. É muito mais que isso. Os pensa-
mente, Lenine proclamava num destes discursos: «Não mentos de Proudhon e de Marx completam-sc e corri-
há colectivização e planificação sem autogestão ope- gem-se mutuamente. Nunca se excluem, mesmo quando
rária de base». Mas durante a guerra civil, os sovietes se contradizem. As diversas tentativas de síntese têm
de base foram suprimidos sob a instância conjugada falhado até aqui, por não se terem elevado ao nível
de Staline e dc Trotzky. O Décimo Congresso do Par- destes dois irmãos inimigos. Mas ainda não houve
tido Comunista (Maio 1921) condenava a oposição ope- quem pronunciasse a última palavra. Esta síntese está
rária de Chlapnivcov que exigia o restabelecimento da muito mais adiantada na realidade dos factos do que
autogestão, anatematizada então como «desvio anar- na teoria. Tenho a certeza de que uma nova concepção
quista pequeno-burguês»... o que visava directamente superando ao mesmo tempo Proudhon e Marx, a fim
o proudhonismo. Foi preciso esperar pelo vigésimo de os unir, não tardará a ser formulada.
Congresso do Partido Comunista (1961) para que se
voltasse a falar em «autogestão das massas» c para
que se desenhassem os sinais de uma evolução, aliás
lenta para a autogestão operária. Vemos que a ideia
proudhoniana de uma democracia industrial-agrícola é F I M
tenaz. Se na U.R.S.S. hoje, ela está apenas implantada
nos Kolkhoses, domina, sem que o governo a mencione
na organização da Indústria Jugoslava desde 1950.
No Ocidente o tenebroso perigo da tecnocracia
ao serviço dos trusts e dos carteis privados nacionais
ou internacionais, tecnocracia digo, que assegura o
domínio destes últimos sobre o Estado e a administra-
ção deste, torna o problema da autogestão operária

126
ÍNDICE

II V O L U M E
Pág.

Terceira parte: As obras de Proudhon de 1853 até à sua


morte 9

Quarta Parte: A dialéctica de Proudhon confrontada com


a de Marx 77

Conclusão: A influência de Proudhon e de Marx no movi-


mento operário real 109
Composto • I m p r e s s o
para a

EDITORIAL PRESENÇA
na

M A F R A

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