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Recebido em 25/08/2015,

Aceito em 19/022016.
O fenômeno recente da imigração de haitianos para o
Brasil: o caso de uma agroindústria
DOI: 10.14521/P2237-
5163.2016.0010.0004
Eliane Salete FilippimA, Caroline SjlenderB, Luiza Helena DalpiazC
Palavras-chave: Imigração;
O artigo se insere no contexto dos crescentes movimentos populacionais impulsiona-
Haitianos; Trabalho
dos por mudanças no cenário internacional. O objetivo geral de pesquisa foi descrever
e analisar a presença de imigrantes haitianos em uma agroindústria do Sul do Brasil.
Keywords: Immigration;
Inscrita na abordagem de pesquisa qualitativa, a investigação fez uso do estudo de
Haitians; Work
caso. A coleta de dados se deu pela análise de documentos, entrevistas e observação
de campo. Nos resultados observou-se que existem grandes desafios a enfrentar para
uma efetiva ação de acolhimento e integração destes trabalhadores haitianos, dentre
eles cita-se a carência de capacitação específica para a gestão da diversidade. Em
Rua Paulo Germano Lie-
relação ao seu trabalho na empresa A, os haitianos declaram-se satisfeitos, contu-
dke, 272, Bairro Flor da
do, foram captados indícios de tensões na relação deles com a empresa pesquisada.
Serra, Joaçaba (SC), CEP:
Entre eles, a dificuldade de comunicação, o sofrimento devido a ambientes frios, a
89.600.000
tendência dos haitianos a permanecer em seu grupo nos intervalos do trabalho e a
falta de políticas públicas claras de acolhimento. Desta forma, o estudo do fenômeno
A
Doutora em Engenharia
da imigração de haitianos no campo organizacional é complexo e atual, demandando
de Produção pela Unvier-
debates sob novos prismas e de maneira interdisciplinar.
sidade Federal de Santa
Catarina.
eliane.filippim@unoesc. The recent phenomenon of Haitians’ immigration to Brazil: the
edu.br case of an agribusiness
B
Bacharel em Administra- This article is inserted in the context of the growing population movements motivated
ção pela Universidade do by changes in the international scenario. The general aim of this research was to des-
Oeste de Santa Catarina. cribe and analyze the presence of Haitian immigrants in agribusiness in the Southern
carolinejlender90@gmail. of Brazil. This research has a qualitative approach, and a case study was developed.
com The data was collected by document analysis, interviews and field observation. As a
result, it was observed that there are great challenges to face for an effective action in
C
Doutora em Ciências da receiving and integrating these Haitian workers. Among them, it is possible to name
Educação pela Université the lack of specific training for managing diversity. Regarding their work in company
Paris 8. A, the Haitians state to be satisfied, however, some stress evidence was noticed in
luiza.dalpiaz@unoesc. their relation with the company surveyed. Among them, difficulty of communication,
edu.br suffering in cold environments, Haitians’ tendency of staying in their groups during
work breaks, and lack of clear host public policies. This way, the study of Haitians’
immigration in the organizational field is complex and current, demanding discussions
over new perspectives and in an interdisciplinary way.

Os trabalhadores haitianos em 2014 se consoli- dores haitianos em uma agroindústria localizada no


daram como a principal nacionalidade no mercado Sul do Brasil (Empresa A). Esta empresa foi escolhida,
de trabalho formal, superando nacionalidades clássi- pois além de empregar imigrantes haitianos, é repre-
cas da imigração no Brasil, como os portugueses, por sentativa do sistema agroindustrial, especialmente no
exemplo, (OBMigra, 2015a). Diante deste fenômeno da setor de aves e suínos, no que se refere à forma interna
imigração de haitianos para o Brasil recentemente in- de organização do trabalho. A coleta de dados se deu
tensificado, este estudo teve como objetivo geral des- por meio de entrevistas, observação e análise de do-
crever e analisar a presença de imigrantes haitianos cumentos e pesquisa foi norteada teve como objetivo
em agroindústria do Sul do Brasil. Visando atender descrever e analisar a presença de imigrantes haitia-
este objetivo, foi realizada uma pesquisa de aborda- nos em agroindústria do Sul do Brasil.
gem qualitativa, efetivada pela estratégia do estudo de
caso. O estudo teve como lócus a presença de trabalha-

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Justificativa a presença dos haitianos em organizações brasileiras,


podem contribuir para ampliar a compreensão deste
De acordo com Relatório do OBMigra (2015a), en- fenômeno.
tre os anos 2010 e 2014 o ingresso de trabalhadores
imigrantes no mercado de trabalho formal brasileiro Imigração de haitianos para o sul do Bra-
registrou um crescimento de 126,01%. Sendo a varia- sil
ção de 2011/2010 de 15,52%, de 2012/2011 de 19,04%, de
2013/2012 de 26,82% e de 2014/2013 de 29,60%. As Uni- Fantazzini (2005) define migrante como aquele
dades da Federação que mais empregaram imigran- que deixa seu país de origem e ingressa em outro com
tes no mercado formal pertencem às regiões Sudeste o objetivo de nele se estabelecer temporária ou perma-
e Sul do Brasil, porém os estados do Sul registraram nentemente, geralmente movido por condição social
os maiores incrementos de trabalhadores imigrantes. ou econômica. Para o autor, as migrações são os movi-
Ainda de acordo com o Relatório, as ocupações que mentos de pessoas dentro do próprio país, chamadas
tiveram maior número de contratações de trabalha- de migrações internas, ou de um país a outro, denomi-
dores imigrantes no ano 2014 foram Alimentador de nadas de migrações internacionais. O ato de emigrar é
linha de produção, Servente de obras, Magarefe, Aba- sair para um país diferente ou outro estado dentro do
tedor e Faxineiro. mesmo país. O autor enfatiza que imigração é exata-
Desde 2013, os haitianos passaram a ser a na- mente o contrário, pois é o ato de adentrar em um país
cionalidade com maior presença no trabalho formal ou estado estrangeiro.
brasileiro. Na região Sul, Santa Catarina foi o estado Existem diversas razões para a circulação de pes-
que mais admitiu trabalhadores haitianos, sendo que soas, como desastres naturais, adversidades econômi-
apenas em 2014 admitiu 3.708 (OBMigra, 2015b). Dada cas, guerras ou violação aos direitos humanos. Para
à intensificação da presença de imigrantes haitianos muitos, tentar a vida em outro país ou região, pode
em organizações brasileiras, torna-se relevante estu- representar uma alternativa para recomeçar a própria
dar este fenômeno atual, sobretudo no que se refere ao existência. Os governos entendem os movimentos mi-
ambiente organizacional, pois a dinâmica do tema da gratórios como um problema, sendo que a saída das
diversidade requer que os gestores de pessoas tenham pessoas é um desestímulo ao crescimento populacio-
acesso a novas formas de trabalhar essas diferenças nal e a entrada de um número grande de estrangeiros
(PEREIRA, et al, 2012). pode significar um desequilíbrio na oferta de emprego
A questão é complexa e relevante, pois não se tra- e competição com os trabalhadores do país (FANTAZ-
ta de trabalhadores que migraram apenas por vontade ZINI, 2005).
própria, mas sim foram impelidos por eventos críticos Neste sentido Zamberlam et al. (2009) sintetizam
em seu país de origem. Devastado por um terremoto a situação psicológica de um migrante como: o desgas-
em 2010, o Haiti teve aproximadamente 200 mil mor- te permanente que nasce do desafio da ambientação
tos e milhares de desabrigados. Dados de 2013 indicam e por estar vivendo em situação de risco; experiência
haver então 347 mil pessoas ainda morando em habi- do isolamento, do abandono e do medo inconsciente
tações provisórias no Haiti (RFI, 2013). Em um cenário do fracasso, pela ameaça do sonho converter-se em
de economia devastada, violência e situação política pesadelo; stress por longas jornadas de trabalho e pre-
crítica, o processo de migração foi o caminho encon- ocupação exacerbada na busca de ganhos imediatos;
trado por milhares de haitianos. A porta de entrada ritmo de vida fixado no ganho que desorganiza o des-
para o Brasil se dá pelos estados do Acre e Amazonas, canso e o lazer; perda de vínculos afetivos e de prin-
onde, não raro, ficam aguardando o visto de entrada cípios ético-religiosos; frequente desagregação fami-
em condições precárias. Após serem registrados, eles liar; fragmentação ou perda da identidade, caindo no
se deslocam para diversas regiões do país, sendo con- anonimato; perda de referência geográfica e histórica;
tratados por diferentes organizações, como é o caso da dificuldade na administração da saudade; vergonha de
agroindústria lócus deste estudo. Este fenômeno sus- reconhecer o eventual fracasso e desgaste pela preo-
citou a pesquisa que deu base a este manuscrito que cupação na defesa dos elementos culturais do país de
contem - na linha do que recomenda Moraes (2013) - origem, com a ameaça de perda da sua identidade.
uma reflexão sobre o problema das formas de acolhi- O processo migratório sempre existiu entre os
mento desta população no Brasil, bem como quanto povos, sendo considerada por muitos autores como
aos reflexos econômicos e sociais deste processo. uma das principias problemáticas atualidade, visto
Em estudo realizado por Zeni e Filippim (2014), que muitos imigrantes vivem em condições de exclu-
no caso dos haitianos, observa-se a tênue presença do são: sem documentos, educação, direito à reivindica-
Estado, uma quase omissão no que diz respeito à atu- ção, ao trabalho e à saúde (ZAMBERLAM et al., 2009).
ação direta da administração pública (local/regional/ Relacionada a esta questão está à situação de grandes
nacional), de modo a minimizar os impactos decorren- contingentes de refugiados, um desafio para o mundo
tes da adaptação dos imigrantes, além de assegurar, contemporâneo.
por meio de programas públicos, a sua inserção plena Os aspectos dos movimentos migratórios estão
neste contexto regional. Neste sentido, estudos sobre ligados às condições de legalização dos países, sendo

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que a mobilidade humana depende da legislação, das cos consagrados nos instrumentos internacionais de
facilidades e dificuldades do migrante chegar ao país direitos humanos ratificados pela maioria dos países,
de destino e ainda quanto a sua permanência. tais como, não serem discriminados devido à sua et-
nia, nacionalidade ou religião (FANTAZZINI, 2005).
O Haiti como ponto de partida: crise humanitária Quando os haitianos chegam ao Brasil fazem o
e mobilidade humana registro e protocolo da Carteira de Identidade de es-
trangeiro na unidade de imigração da Polícia Federal.
O Haiti possui características marcantes da re- Em sequência o haitiano poderá, por meio do Minis-
gião Oeste da África, sendo influenciado pelos nativos tério do Trabalho (MTE), fazer a Carteira de Trabalho e
de seu território, pelo colonialismo espanhol e também Previdência Social (MTE, 2013). De posse destes docu-
pela França, país que o colonizou. As raízes africanas mentos, eles já estão aptos para trabalhar em qualquer
representam a maior parte na constituição da cultu- entidade empregadora no país.
ra haitiana, principalmente na música, na dança, nas Conforme estimativas, a maior parte dos haitia-
artes plásticas, na religião e nas práticas do vudu. Da nos teria ingressado ao território brasileiro pelos esta-
França herdou principalmente o vocabulário, incor- dos do Acre e Amazonas. Grande parte destes imigran-
porado ao créole (ALEXIS, 1970). O país foi declarado tes gasta seu dinheiro na viagem que, normalmente,
independente da França em 1804, entretanto sua his- passa pele República Dominicana, Panamá, Equador e
tória é marcada por 130 anos de escravidão, 30 anos de Peru, até a chegada ao Brasil e, posteriormente, a re-
ditadura, 22 mudanças de governo até os anos de 1915, gião de trabalho (TÉLEMÁQUE, 2012).
ocupações militares dos norte americanos até 1934 e Télemáque (2012) relata que diante da realidade
apresenta um longo histórico de violência, repressão, migratória de haitianos, o governo brasileiro realizou
abusos de direitos humanos, falência de medidas polí- regularização de muitos deles, concedendo visto de
ticas e diplomáticas (TÉLÉMAQUE, 2012). permanência por razões humanitárias. Este visto vale
Agravando todas as dificuldades políticas, sociais pelo prazo de cinco anos, somente podendo ser reno-
e econômicas, em 2010 o Haiti sofreu um terremoto vado pela prova de situação laboral. Diante de críticas
de grau 7,3 na escala Richter, sendo que seu epicentro pela falta de uma política migratória, visando controle
foi na capital do país, Porto Príncipe. Cerca de 200 mil do fluxo, o Conselho Nacional de Imigração, por meio
pessoas morreram, 500 mil ficaram feridas, milhares da resolução nº 97/2012, restringiu em 2012, o núme-
de desabrigadas e houve a destruição da infraestrutu- ro de vistos aos imigrantes haitianos para 1,2 mil por
ra do país. Apesar da ajuda humanitária, instaurou-se ano. Enfim, esta questão está longe de ser efetivamente
no país uma grave crise social, seguida de violência tratada em muitos aspectos, entre eles no âmbito das
criminal, epidemia de cólera e falta de serviços de sa- políticas públicas, no ordenamento legal e no que se
neamento básico. refere à gestão de pessoas.
A população, marcada com a perda de parentes e O percurso dos haitianos até o Brasil é arriscado,
amigos até hoje passa por sofrimentos e necessidades sendo que as áreas por onde entram são conhecidas
de toda ordem. Diante da problemática pós-terremoto como tríplice fronteira. No Acre é pelo Brasil, Peru e
o país não tem conseguido prover emprego suficien- Bolívia, já no Amazonas pelo Brasil, Peru e Colômbia.
te e adequado aos seus habitantes, sendo a busca por Nos dois lugares entram geralmente por pontes que
emprego e por uma vida melhor o principal motivo ligam os países, salvo casos de travessias de barcos.
apontado pelos haitianos entrevistados para a vinda Entre o Haiti e o Brasil, o trecho percorrido é o seguinte:
ao Brasil. Sendo assim, muitos haitianos deixaram seu de ônibus ou de avião para a República Dominicana,
país de origem, seus familiares e amigos e partiram em voo direto para o Panamá de lá até o Equador; ônibus
uma jornada, amiúde arriscada e repleta de incertezas, para o Peru e cruzam o país até a fronteira com o Brasil,
no intuito de lograr sobrevivência para eles mesmos e onde entram a pé na maioria das vezes (COTINGUIBA
para os seus familiares. E PIMENTEL, 2013).
A rota mais utilizada pelos haitianos ilegais é pas-
O Brasil como destino: terra de acolhida sando pela República Dominicana, Panamá, Equador,
Peru e por fim no Acre pela a cidade de Assis Brasil.
No Brasil, como qualquer trabalhador nacional, Para realizarem esta viagem, os haitianos se deparam
os estrangeiros possuem direito a condições dignas de com os custos cobrados por atravessadores. Quando
saúde, moradia e educação. Neste sentido, o Ministério chegam ao Brasil, na cidade de Brasiléia, procuram
do Trabalho e Emprego (2013) enfatiza que “a consti- abrigo e informações para protocolar seu pedido de re-
tuição brasileira garante aos brasileiros e aos estran- fúgio no país. As situações da entrada dos imigrantes
geiros residentes no país o direito à vida, à liberdade, haitianos no Acre têm tomado proporções catastrófi-
à igualdade, à segurança e à propriedade”. Desta for- cas, suas condições de estadia no refúgio são consi-
ma, os imigrantes são sujeitos de direitos e devem ser deradas desumanas. Conforme relatório da Conectas
respeitados em qualquer lugar, tendo direito de habitar de Direitos Humanos (2014) “[...] os haitianos passam
livremente e ter preservada sua cultura, língua, reli- a noite empilhados uns sobre os outros, sob um calor
gião ou etnia. São cidadãos que tem direitos específi- escaldante [...] quase todos com os que conversamos se

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queixam de dor abdominal e diarreia”. tinha contato com a equipe de gestão de Recursos da
Ao se dirigiram a Polícia Federal do Acre com empresa. Considera-se que o acesso às pessoas a se-
seus documentos, os haitianos fazem seu pedido de rem ouvidas, bem como aos dados documentais foram
refúgio no país. Em relação a este processo, a Polícia essenciais para a efetivação da pesquisa.
Federal toma um depoimento e eles preenchem um O caso da presença de imigrantes haitianos em
questionário e o pedido é emitido para Brasília para o ambiente organizacional foi, portanto, observado
CONARE (Comitê Nacional de Refugiados), órgão res- numa empresa de grande porte, do setor agroindus-
ponsável em deferir ou indeferir os pedidos. Após a es- trial, voltada para a produção de alimentos, com várias
pera da documentação, os haitianos ganham o chama- unidades no Brasil e exterior. Esta empresa, aqui de-
do protocolo com validade de seis meses e estão aptos nominada Empresa A, possui uma unidade industrial
para fazerem suas carteiras de trabalho e buscarem em cidade na qual se efetivou o estudo de caso e conta
emprego. com aproximadamente 5.000 trabalhadores.
A coleta de dados para o estudo de caso se deu
Procedimentos metodológicos por meio da realização de entrevistas semi-estrutura-
das realizadas com: um agente da Polícia Federal que
Esta pesquisa se caracteriza por uma abordagem atua na região; três recrutadores do setor de Recursos
qualitativa. Para Strauss e Corbin (2008) as pesquisas Humanos da Empresa A; quatro supervisores de pro-
qualitativas são pertinentes para abordar a vida das dução de aves da Empresa (local onde trabalham mui-
pessoas, experiências vividas, comportamentos, emo- tos dos haitianos contratados) e com dez trabalhado-
ções, sentimentos, funcionamento organizacional, res haitianos que atuavam no momento da pesquisa,
movimentos sociais, fenômenos culturais e interação na Empresa A.
entre nações tratam de fenômeno social complexo. Cinco entrevistas com haitianos foram realizadas
Este estudo foi também de natureza descritiva e ex- na própria Empresa A e cinco delas realizadas nas ca-
ploratória, por envolver uma problemática ainda em sas deles, o que favoreceu a observação das suas con-
curso e com pouco conhecimento sistematizado até o dições de vida. Observa-se que em cinco entrevistas
momento. com haitianos houve o auxílio de um tradutor para aju-
Um dos delineamentos mais utilizados para in- dar na comunicação entre pesquisadoras e haitianos.
vestigação de fenômenos sociais complexos é o estu- As outras cinco entrevistas foram realizadas sem tra-
do de caso, pois facilita a retenção de características dutor, pois os entrevistados haitianos compreendiam
significativas dos eventos da vida real. O estudo é con- e falavam a língua portuguesa. Nas entrevistas foram
siderado um estudo de caso único, pois trata da pre- exploradas características do perfil dos haitianos, sua
sença de imigrantes haitianos numa agroindústria do chegada e adaptação no Brasil, sua inserção na região
Sul do Brasil, visando o entendimento deste fenômeno e na Empresa A.
com compreensão limitada ao seu contexto. A Empre- As entrevistas com os gestores, recrutadores e su-
sa A foi escolhida como foco do estudo de caso uma pervisores foram feitas na Empresa A e o enfoque foi
vez que se tratava, à época da coleta de dados, da maior na percepção destes sujeitos sobre a presença de hai-
empregadora de trabalhadores haitianos do município tianos nesta organização. A entrevista com o membro
no qual está inserida. Também foi eleita pelo critério da Polícia Federal foi realizada na agência da Polícia
de acessibilidade, pois uma das pesquisadoras man- Federal, tendo foco em aspectos legais e na vivência de

Quadro 1 – Categorias e descritores

Categorias Descritores
A chegada: demandas, riscos e possibilidades - condições na chegada - procedimentos administrativos
- perfil da população migrante - processos organizacionais
O trabalho: gestão da diversidade e ambiente - condições materiais do trabalho - competências técnicas
organizacional - relações hierárquicas - formação profissional
- sociabilidade no trabalho - questões de gênero
- formas para comunicação
A vida pessoal, familiar e comunitária: vulne- - questões familiares e afetivas - auxílios da empresa
rabilidade social - organização da vida cotidiana - auxílios da comunidade
- condições de vulnerabilidade social: - formas de assistência social
situação econômica; habitação, saúde, - formas de preconceito
educação - atividades de lazer
- auxílios entre membros da própria co- - atividades religiosas
munidade imigrante - perspectivas do futuro

Fonte: As autoras (2014)

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situações envolvendo estes estrangeiros. de com a documentação. Conforme explicou o R1 “[...]


A observação tanto nos locais de moradia dos a gente não sabia nada, nós fomos à Polícia Federal
haitianos, quanto na unidade da Empresa, foi realizada pra entender qual é o contexto e o que era obrigatório”.
mediante autorização dos envolvidos e feita de forma Contou ainda que a empresa não tinha, na época, uma
assistemática ou não estruturada. Para garantir a con- norma que orientasse e permitisse a contratação de
fidencialidade dos entrevistados, foram estabelecidos estrangeiros.
os seguintes códigos: P1 = Policial Federal; R1; R2; R3 Um dos primeiros haitianos contratados, o H7,
= Recrutadores da Empresa A; S1; S2; S3; S4 = Super- percebeu essa dificuldade inicial: “não é igual ao que
visores da Empresa A que supervisionam o trabalho você vê agora: eles chegam e já trabalham bem rápido;
dos haitianos; H1; H2; H3; H4; H5; H6; H7; H8; H9; H10 = eu demorei um mês para trabalhar”. O número de con-
Haitianos. As entrevistas foram gravadas após a auto- tratados haitianos avnçou rápido sendo que até maio
rização explícita dos sujeitos e transcritas na íntegra. de 2014 a Empresa já possuia 146 haitianos em seu
De posse dos dados coletadas por meio da en- quadro de funcionários.
trevista, da observação e de documentos, sobretudo O processo de atração, seleção e contratação
coletados na Empresa, eles foram tratados por meio de acontece da mesma forma para estrangeiros e bra-
análise interpretativa, tendo como norteador a questão sileiros. Durante a observação realizada na Empresa
central de pesquisa, os objetivos do estudo e os ele- A, constatou-se que ao chegar ao setor de Recursos
mentos levantados na revisão de literatura. A análise Humanos, o haitiano é tratado como qualquer outro
dos resultados foi orientada pelas categorias expostos candidato: ele entrega sua documentação (carteira
no Quadro 1. Estas categorias surgiram a posteriori, ou de trabalho, CPF, protocolo e passaporte); recebe uma
seja, as pesquisadoras procuraram que elas emergis- palestra de reconhecimento que é realizada por um
sem dos próprios dados coletados. haitiano que trabalha no setor como tradutor. Recebe
também as primeiras informações sobre a Empresa
Trabalho em agroindústria e vida de tra- A: vagas, horários, salários, benefícios, entre outras. É
balhador imigrante realizada uma entrevista com o haitiano e avaliado o
seu perfil. Tendo parecer favorável do analista da Em-
A chegada: demandas, riscos e possibilidades presa A, o haitiano é encaminhado para área de traba-
lho. Os principais aspectos do perfil demográfico dos
A escolha dos haitianos pela região parece estar haitianos contratados na Empresa A estão elencados
diretamente ligada com as oportunidades de trabalho na Tabela 1.
que a cidade e região proporcionam. De acordo com os
haitianos ouvidos para este este estudo, empregadores Tabela 1 – Síntese de informações dos haitianos contratados
vão buscá-los no Acre, sendo que a Empresa pesquisa- na Empresa A
da não realiza esta prática. Por meio das entrevistas,
percebeu-se que a decisão pela cidade acontece princi- Haitianos contratados na Empresa A
palmente quando os haitianos já possuem conhecido
ou parente nela. O percurso dos haitianos de Brasiléia Homens 104
do Acre até o local da empresa é feito, normalmente, Contratados Mulheres 42
de ônibus passando pelos estados de Rondônia, Mato Total 146
Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná.
Aves – Peru 76
Partiu dos próprios haitianos a procura pelo em-
prego na Empresa A, por observarem que a empresa Área Aves – Frango 67
buscava e divulgava a contratação de novos trabalha- Industrializados 3
dores. No início de 2012, segundo o entrevistado R3, a Ensino fundamental incompleto 68
Empresa A passou pela falta de trabalhadores e che-
Ensino fundamental completo 12
gou a discutir internamente a possibilidade de buscar
trabalhadores no Acre, conforme R3 relata: “[...] tive a Escolaridade Ensino médio completo 5
oportunidade de conhecer a realidade deles no Acre. Ensino médio incompleto 59
Foi um momento em que a empresa decidiu aguardar, Superior Incompleto 2
não trazê-los desta forma, mas abrir suas portas”. Con-
Entre 19 e 21 anos 3
ta ainda, que muitos haitianos deste primeiro contato
acabaram procurando a Empresa A posteriormente e Entre 21 e 29 anos 69
foram contratados. Faixa etária Entre 30 e 39 anos 61
As primeiras admissões na empresa ocorreram Entre 40 e 49 anos 10
em maio de 2012, com haitianos que já estavam há al-
Acima de 50 anos 3
gum tempo trabalhando na região e procuraram a Em-
presa A para uma oportunidade de trabalho diferente Fonte: As autoras (2014)
daquela que vinham atuando. Fica evidenciado nas
entrevistas com o R1 e o R3 que existia uma dificulda-

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A maioria dos haitianos entrevistados não per- uma dificuldade maior de adaptação, pois o ritmo é
cebeu maiores dificuldades no processo de seleção e maior, diferente de uma área de pendura e de evice-
contratação. Relataram a presença de outro haitiano ração; então existe um ritmo menor, mas constante”.
auxiliando na comunicação e, apenas o H8, enfatizou Para S4 a adaptação leva mais tempo pela questão
que compreendeu pouco a sistemática da Empresa da língua: “eles não entendem o que você está falan-
A quando de sua admissão, ficando com dúvidas em do, então você tem que repetir mais, acompanhar
relação ao salário. mais, pra que eles consigam pegar a demanda do
Quando questionados sobre a percepção do trabalho”.
trabalho com pessoas de diferentes culturas, o S1
declarou: “quando fui convidado para trabalhar em O trabalho: gestão da diversidade e ambiente
uma supervisão aonde tem um número maior de
pessoas de outro país, tive certo medo por não co- organizacional
nhecer a cultura deles, mas hoje percebo que isso
era só medo”. Os dados coletados apontam que não O trabalho, concebido como forma pela qual o
houve preparação específica para o trabalho com homem interage e transforma o seu meio, assegu-
haitianos. Conforme o S1: “as pessoas foram vindo e rando sua sobrevivência e estabelecendo relações
nós fomos se adaptando com elas e, diante das di- interpessoais, reforça sua identidade e o seu senso
ficuldades delas, a gente procura entender e buscar de contribuição (PEPE, 2007). Shermerhorn, Hunt e
ajuda para resolver”. S4 contou que a sua foi uma das Osborn (1999, p. 58) afirmam que: “[...] a diversidade
primeiras supervisões a receber haitianos. Revelou da força de trabalho é a presença de características
que o principal foco, no começo, foi em preparar as humanas individuais que tornam uma pessoa dife-
equipes para entender que viriam pessoas de cultura rente da outra”.
e línguas diferentes. Para o S2 seria oportuno a Em- A diversidade de força de trabalho assume
presa A oferecer um treinamento específico sobre inúmeras variações, entre outras: trabalhadores de
as relações de trabalho com haitianos para os novos várias etnias, de diferentes gerações, com habilida-
gestores. des físicas e psicológicas distintas e com diferentes
Em relação a adaptação, o S1 relata que os hai- orientações sexuais. Visualizando a diversidade em
tianos se adaptaram bem com o setor no qual estão termos de sentimentos e pensamentos distintos, as
inseridos, pois este setor possui uma temperatura diferenças individuais de personalidade e cultura
ambiente. Enfatiza que “O problema é tirar desta moldam as preferências por recompensas, estilos
área e levar para uma área fria [do frigorífico], pois de comunicação, reações dos líderes, estilos de ne-
eles têm maiores dificuldades em trabalhar nelas”. gociação, e muitos outros aspectos do comporta-
Este fato também foi apontado por S3 “[...] eles pos- mento das organizações gerando novas demandas
suem maior fragilidade em trabalhar em áreas frias, para a área de gestão de pessoas (ROBBINS; JUDGE;
tem que ter o tempo deles”. Os haitianos H4 e H1 SOBRAL, 2010). Nesta linha, observa-se que o desafio
também informam esta dificuldade de adaptação ao encontra-se em administrar esta diversidade, res-
frio, sendo que H1 explicou: “No Haiti é quente e aqui peitando as perspectivas e contribuições individu-
frio. Quando comecei a trabalhar não estava acos- ais e promovendo um senso geral de visão e identi-
tumada com o frio, achei estranho”. O entrevistado dade também em relação à organização.
refere-se ao ambiente interno do frigorífico que, em De acordo com Pereira et al. (2012), a gestão da
alguns setores, chega a 10ºC, conforme foi apurado diversidade vem sendo cada vez mais discutida na
na observação. literatura brasileira e define ações decorrentes dela
Em relação à conduta dos haitianos no traba- como ações de Responsabilidade Social Corporati-
lho, o S1 revelou que acredita que eles preferem ficar va, sendo que tais ações podem ser utilizadas pelas
mais em seu grupo: “[...] a gente tenta mesclar eles na empresas como um elo que as aproximam dos seus
atividade, mas parou para o intervalo eles acabam consumidores e lhes conferem imagem positiva.
se juntando de novo”. Este mesmo aspecto foi cita- Para Fleury (2000) o principal objetivo da gestão da
do pelo S2 “[...] a gente busca dividir eles em outras diversidade cultural é administrar as relações de tra-
atividades que não tenham só haitianos, justamente balho e a composição interna da força de trabalho, a
pra criar esse relacionamento”. fim de atrair e reter os melhores talentos dentre os
Em sua grande maioria os haitianos da empre- chamados grupos de minoria. Contudo, alertam Iri-
sa estudada são homens. O H10 explicou que no Hai- garay e Vergara (2011), que, quando a contratação de
ti a maioria das mulheres não trabalha fora de casa, minorias tornou-se inevitável, os administradores
pois é papel do homem o sustento. Segundo haitia- nela investiram, visando minimizar ou mesmo evi-
nos entrevistados a adaptação às atividades de tra- tar eventuais conflitos.
balho ocorreu sem maiores dificuldades. Neste tema, Considerando que a cultura está ligada aos es-
o R1disse: “Percebo que o haitiano tem uma agilida- tilos de vida, a maneira como um indivíduo vive e o
de manual menor, um ritmo menor; tem mais força. seu pertencimento a uma dada coletividade (MATTA,
Então nas atividades, por exemplo, de corte eles têm 1999), as pessoas que participam de um processo de

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transição cultural, como é o caso dos imigrantes hai- haitianos disseram que não percebem muitas dife-
tianos, estão sujeitas a experiências diversas: desde renças. Apontaram apenas que no Haiti o trabalho
o choque cultural, a adaptação entre outras formas era informal ou autônomo, sendo que na Empresa A
de aculturação. E ainda, a possibilidade de regresso todos estão registrados junto ao Ministério do Tra-
ao país de origem, de acordo com Vedana e Silveira balho brasileiro. Sob este mesmo tópico, o H8 abor-
(2010). da ainda que “aqui a pessoa entra num emprego e
O processo de interação entre diferentes cul- trabalha até não querer mais, e lá tem companhia
turas no ambiente organizacional é definido como que pega para trabalhar um mês, e que não tem mais
interculturalidade e se dá pela movimentação de serviço”. Para o H6 “a única diferença do Brasil é que
pessoas que trabalham atravessando limites inter- é um país grande, a gente tem mais vontade de avan-
nacionais em busca de oportunidades (CRAIDE, AB- çar”.
DALA e BRITO, 2010). Conforme afirmam Zamberlam Por outro lado, observaram-se as dificuldades
et al. (2009), num ambiente onde se misturam pesso- de comunicação desde o primeiro momento em que
as, línguas e costumes, há também lugar para a cria- o haitiano pisa na Empresa A para o preenchimento
ção de novas relações humanas. Agregado à cultura da ficha de candidato. A língua original destes imi-
de origem/nacionalidade de cada pessoa está tam- grantes é o crioulo, sendo que muitos falam ainda o
bém o processo de absorção da cultura organizacio- francês, mas mal compreendem a língua portugue-
nal que, não raro, faz com que os trabalhadores re- sa.
cebam as características da cultura da organização, O R2 explicou que na organização não existe
independente se gostarem dela ou não (ROBBINS; uma função como tradutor, mas que alguns haitia-
JUDGE; SOBRAL, 2010). Programas de orientação, nos realizam este trabalho voluntário. Observou ain-
socialização e indução, como os chamados treina- da que é necessário treinar este tradutor e que “os
mentos e desenvolvimento de habilidades, reforçam supervisores precisam se sentir donos do pacote,
esta aculturação do trabalhador, como citam Davel e daquele trabalho com os estrangeiros e não somente
Vergara (2012). chamar o tradutor”. Este mesmo fato é apontado por
Neste sentido aponta Fleury (1987) que o con- S2 ao enfatizar a existência de certa dependência
junto de valores e crenças dos membros influencia de outra pessoa para passar e receber informações,
na forma de ser da organização. Para Souto e Gar- referindo-se que o auxílio do tradutor traz “uma pre-
cia (2009), a aceitação da cultura organizacional está ocupação muito grande pra nós gestores: será que
fortemente ligada ao comprometimento do membro realmente aquilo que você está falando está sendo
com a organização e à assimilação e internalização falado pra pessoa interessada da mesma forma e na
dos valores da empresa. mesma intensidade?” Uma das ações realizadas pela
Quando indivíduos são inseridos em novas cul- organização para combater esta dificuldade de co-
turas, elas podem parecer incompreensíveis para municação foi a relação com o SESI (Serviço Social
eles, podendo ocorrer até rejeição por parte das orga- da Indústria) para o oferecimento gratuito de turmas
nizações destes trabalhadores, caso não apresentem de língua portuguesa para os haitianos.
o comportamento desejado (SOUTO e GARCIA, 2009). Ainda em relação às relações de trabalho, ob-
Este é um dos aspectos a ser considerado quando servou-se que o envolvimento das lideranças e ges-
empresas brasileiras recorrem a trabalhadores de tores faz com que a adaptação dos haitianos seja
outros países e ainda mais aqueles vindos de situ- mais rápida. O R2 disse que “às vezes tem que se
ação de extrema vulnerabilidade como é o caso dos parar com paciência e tentar compreender o que ele
imigrantes haitianos. está falando e isso é muito importante em um gestor,
Neste sentido as contratações dos haitianos a paciência de parar e conversar; entender o que está
são uma via de mão dupla, eles precisam da opor- acontecendo com ele”.
tunidade e a empresa precisa de trabalhadores para Em se tratando da aceitação dos haitianos por
manter sua produtividade. Este fato é apontado por parte dos trabalhadores brasileiros, o S1 declarou
R1: “a gestão de pessoas de culturas diferentes neste que “No geral a aceitação é bem tranquila, assim
momento é inevitável”, para ela existe uma dificul- como o relacionamento deles”. Este mesmo fato foi
dade pela questão regional, visto que no território no apontado por S4: “eu vejo que o nível de aceitação
qual se situa a Empresa há características da coloni- é muito bom, os brasileiros até acham engraçada a
zação ítalo-germânica por vezes resistente à cultura língua, querem aprender a falar algumas palavras,
de outras etnias. acaba sendo uma forma de fazerem amizade”. So-
Em relação aos índices de rotatividade e absen- bre a relação com os haitianos sob sua supervisão,
teísmo, o R2 contou que caíram depois da contrata- comentou que quando assumiu a área, os haitianos
ção dos haitianos. E o S1 apontou: “na minha super- estavam acostumados com a outra supervisora e a
visão hoje, se eu tirar todos os haitianos não consigo chamavam de mãe “no início tinham 40, 45 haitia-
trabalhar”. nos lá e eu senti certa resistência deles”, porém dis-
Quando instigados a comparar as característi- se que hoje já percebe uma aproximação dos mes-
cas do trabalho no Haiti com o trabalho no Brasil, os mos. Observa-se novamente a influência das marcas

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culturais que estes haitianos trazem como a neces- Os gestores da Empresa A do setor de RH têm
sidade de pertença e proteção, identificando as rela- preocupações com o futuro dos haitianos. O R1 re-
ções de trabalho com relações afetivas e familiares. velou que “[...] o que mais me preocupa é a condição
Relacionando o conceito de Zamberlam et al. (2009) social, no sentido de aumento de doenças e a condi-
“toda mudança nasce de um sonho ou de uma ne- ção das crianças, dos filhos destes estrangeiros”. O
cessidade e sempre é acompanhada por uma quebra problema visualizado pelo entrevistado está na falta
efetiva de laços com o ambiente familiar e social em de vagas nas creches e na demanda por atendimen-
que a pessoa se criou”. to em postos de saúde públicos.
Quanto à gestão dos conflitos, o S3 relatou Sobre as condições de saúde, no período da
“quando tem algum conflito trato como são tratados observação realizada na residência de haitianos,
os outros, só, muitas vezes, chamo o tradutor”. Este constatou-se que os haitianos se sentem inseguros.
mesmo método é apontado por S2 “a gente trata todos A insegurança foi captada em diversos momentos
com igualdade, existe a diferença da cultura, mas o durante a pesquisa. É possível que as diferenças cul-
tratamento que a gente dá é o mesmo”. O R2 explicou turais e a vulnerabilidade social destes imigrantes
que já presenciou situações de conflitos, principal- agravem um quadro que por si só qualquer estran-
mente entre as haitianas. O S2 relatou casos de bri- geiro enfrenta fora de seu país de origem. Outro fator
gas entre haitianas, por motivos como ciúmes. Para gerador de ansiedade é que a pesquisa de campo de-
o S1 há uma cultura de submissão das haitianas aos monstrou que ainda não existe assistência pública
seus maridos. Na percepção dele, “o homem é muito local aos haitianos. Muitos contam com a ajuda de
dominador e para elas isso é normal”, compartilha igrejas, vizinhos, da Cruz Vermelha e da solidarieda-
ainda que vivenciou situações em que o marido veio de da população.
solicitar para a esposa trocar de turno, alegando que No que se refere à percepção da presença dos
o relacionamento dela com as outras haitianas não haitianos, os estrangeiros entrevistados declararam
estava bom. que estão sendo bem recebidos e aceitos na comuni-
dade local. O H1 relatou “depois que cheguei ao Brasil
A vida pessoal, familiar e comunitária: vulne- não passei mais fome”. Já o H3 declarou que apesar
rabilidade social de ter se sentido muito bem quando chegou à cidade,
ao decidir se mudar para outro bairro procurou uma
Para o entrevistado S3 a saudade e distância da casa e “o dono falou que não alugava para haitianos
família são fatores para pedidos de desligamento. O ou pessoas estranhas”.
S1 lembrou casos de desligamento onde o haitiano Quanto a esta presença dos haitianos na comu-
trabalhou apenas um dia e voltou para o Rio de Ja- nidade, o S2 revelou que não percebe preconceito
neiro e ainda outro em que seu funcionário ficou do- visível, mas sim uma desconfiança sobre a perma-
ente e optou por voltar para o Haiti para realizar um nência dos haitianos, sobre o seu comportamento no
tratamento. Em se tratando das condições de vida Brasil. Neste mesmo tema o S1 expôs: “já fui muito
dos haitianos no Brasil, observa-se que geralmente questionado, inclusive pela minha família; geral-
chegam apenas com a roupa do corpo e precisam, mente quem questiona fica pensando que são pes-
além do emprego, orientação para lidar com as di- soas violentas, brabas, ruins de trabalhar, mas não é
ficuldades de encontrar moradia, para comprar mó- isso, é uma visão de pessoas que não tem contato”.
veis e outras questões do cotidiano. Segundo relatos, O H1 disse que acredita que seu trabalho na Em-
a maioria chega à cidade e pede abrigo na casa de presa A é importante, porque precisa de uma vida
algum conhecido, amigo ou parente. Em sua grande melhor, mas que às vezes as pessoas desanimam,
maioria, alugam casas e moram agrupados, pois não principalmente quando passam da experiência e
possuem condições econômicas de se sustentar so- não existe uma melhoria salarial. Neste sentido o
zinhos. H6 expôs: “[...] a gente fica com dúvidas sobre salário,
Nas visitas de observação realizadas em cinco porque a gente tem dívidas, paga aluguel, é difícil,
residências de haitianos trabalhadores da Empresa mas a gente tem que aceitar, ninguém pode fazer
A em março de 2014, notou-se que as moradias são nada”. No relato de H2, o mesmo demonstra possuir
muito simples e alugadas pelos haitianos, apenas o sonho de ficar no país, porém quando questionado
uma delas continha um aparelho televisor; a maioria sobre sua família responde “se mudar a vida, vou tra-
dos móveis, conforme relatado pelos haitianos, são zer pra cá, se não, quero voltar”, neste sentido o H9
usados que adquiriram comprando aos poucos ou entende que “em todo trabalho a gente tem que ficar
por meio de doações. Neste sentido S4 explica que a para crescer”.
empresa ainda auxilia, mas bem menos do que nas Em relação ao futuro, o H5 revelou que não sabe
primeiras contratações: “hoje o número que vem é como será mais para frente, refere-se que não sobra
menor e eles já vem através dos colegas que traba- nada de seu salário para mandar para sua filha que
lham aqui, então os próprios funcionários já dão o está no Haiti, observou ainda que “[...] o custo de vida
primeiro suporte”. aqui é mais caro que lá, tem muita coisa pra pagar,

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água, luz, casa e a comida é muito cara”. Neste sen- ção destes trabalhadores é realizado sem maiores
tido, o H3 também comentou que o aluguel é muito dificuldades. Entendem os entrevistados da Empre-
caro e pensa em ir para outros países. Já o H1 de- sa A, que isto se deve ao comprometimento e pró-
clarou que se mais para frente não tiver um futuro -atividade das lideranças e das equipes. Entretanto
melhor, volta para o Haiti. observou-se que existe a carência de capacitação es-
Portanto, o fenômeno da imigração de haitia- pecífica para a gestão da diversidade, especialmente
nos para o Brasil é um tema desafiador, que deman- em relação a este grupo de trabalhadores haitianos.
da estudos interdisciplinares, a revisão de políticas Os entrevistados haitianos, em relação ao seu
públicas, uma gestão efetiva da diversidade e ações trabalho na Empresa A, demonstraram-se satisfei-
de acolhimento por parte do conjunto de atores en- tos. É difícil aos pesquisadores concluir se eles de
volvidos: os governos, as organizações, a sociedade e fato estão satisfeitos ou se as suas falas foram in-
os próprios haitianos. fluenciadas pela sua condição de imigrantes [pra-
ticamente refugiados econômicos] ou pela sua an-
Considerações finais siedade constatada para melhorar suas condições
de renda para ajudar os familiares que ainda estão
Embora os movimentos populacionais sejam no Haiti. Alguns indícios de tensões a trabalhar
um fenômeno tão antigo quanto a existência da hu- apareceram na análise dos dados: a dificuldade de
manidade, observa-se intensificação do fluxo migra- comunicação; o sofrimento com ambientes frios; a
tório na última década, devido a problemas econô- tendência dos haitianos a permanecer em seu gru-
micos, sociais, culturais e a catástrofes ambientais po nos intervalos do trabalho; a habilidade maior em
como a observada no Haiti. Conjugado ao desejo de força e menor em destreza percebida pelos supervi-
haitianos de buscar renda em outros países, empre- sores entre outros.
sas brasileiras também passaram a buscar imigran- Uma das marcas culturais do país de origem
tes como força de trabalho. observada no estudo foi que os haitianos tendem a
Contudo, ao receberem trabalhadores de origem estender seus laços familiares para dentro da Em-
haitiana, se deparam com desafios na gestão desta presa A idealizando suas chefias na figura de “pais” e
diversidade. Dentre estes desafios, a pesquisa apon- “mães” e, é possível, esperando encontrar o ambien-
tou que está a questão da comunicação, visto que te acolhedor de uma família. As empresas sulistas,
muitos haitianos não dominam a língua portuguesa comumente, tem um ambiente profissional amisto-
e os empregadores, por sua vez, não dominam as lín- so, mas são regidas por normas e padrões que reque-
guas conhecidas pelos haitianos, conforme foi pos- rem certo grau de impessoalidade. Este é um aspec-
sível constatar na observação feita para este estudo. to que pode suscitar estudos futuros nesta mesma
No caso da agroindústria observada, é preciso temática.
considerar que mesmo que exista uma política or- O estudo de caso na Empresa A, permitiu visu-
ganizacional de tratar todos os trabalhadores como alizar que os imigrantes haitianos assumem altos
iguais, o que está adequado do ponto da legalidade, riscos quando deixam seu país. Buscam oportunida-
faz-se necessário estabelecer uma política de aco- des de sobrevivência e de crescimento e precisam
lhimento e de gestão da diversidade específica para ser acolhidos pelo Brasil de forma consequente, res-
os haitianos, pois sofreram e sofrem condições de paldada em programas e projetos efetivos. Diante
extrema vulnerabilidade em seu país de origem, tra- deste desafio, percebe-se que o estudo do fenômeno
zendo consigo demandas culturais e expectativas de migração de haitianos no campo organizacional
que certamente são diferentes daquelas dos traba- é complexo e atual, demandando ser debatido sob
lhadores nacionais e nascidos na região Oeste cata- novos prismas gerando maior valorizado maior co-
rinense. nhecimento que permitam um tratamento adequado
As dificuldades da trajetória, os riscos do per- desta questão, tanto na região do estudo, quanto no
curso, as condições de vida sub-humanas quando Brasil.
estiveram no refúgio em Brasiléia (AC) até sua che- O estudo apresenta as limitações pertinentes
gada à Empresa A, relatadas neste estudo, fazem ao próprio método do estudo de caso, qual seja a im-
crer que este fenômeno requer um novo olhar para a possibilidade de extrapolação, a partir da realidade
área de gestão de pessoas. A Empresa A, foco do es- específica estudada, para generalizações em contex-
tudo de caso, tem buscado desenvolver alternativas tos ampliados.
para a adaptação destes trabalhadores na unidade Embora os haitianos entrevistados se esforcem
estudada, contudo parece que a problemática exige para demonstrar seu contentamento com a Empresa
o trabalho integrado com outros agentes públicos e A, com a região e, principalmente, com o país que os
privados. acolheu, é possível vislumbrar que este tema ainda
No que se refere à gestão dos haitianos na demandará muita reflexão para a comunidade cien-
agroindústria observada, os entrevistados relataram tífica, para os gestores organizacionais, para agentes
que o processo de recrutamento, seleção e acultura- públicos e especialmente, para os próprios haitia-

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