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Providência, paciência e soberania

Por vezes nos perguntamos se Deus nos ouve, se ele está nos
observando e ao mesmo tempo agindo, nos cuidando e guiando. A resposta bíblica e teológica
é que Deus controla absolutamente tudo, tanto coisas boas e coisas más. A história da
humanidade foi esculpida por Deus antes da fundação do mundo (Ef 1.4), destarte, não sendo
um Deus que deixa sua criação a mercê de suas próprias regras (deísmo), mantém seu controle
sobre tudo e todos, a “história não é feita por homens, apenas desenrolada por eles” (Bavinck),
esse controle é chamado de providência, algo tão incrível e maravilhoso que não há crença ou
religião no mundo que possa se assemelhar ao verdadeiro evangelho.

A etimologia da palavra, advém de “providentia”, significando


provisão, consideração antecipada e previsão, inicialmente, explica Bavinck, que a
interpretação teológica, dizia respeito tão somente ao “plano de ordenação das coisas para um
fim”, ou seja, interpretava-se como decreto divino. Esse plano de ordenação das coisas,
deveria ser distindo da execução ao longo do tempo, chamando-se essa execução de
“governo”. “Nesse sentido, a providência é um plano, decreto ou padrão de Deus em termos do
qual ele sustenta e governa todas as coisas no tempo”. Logo mais tarde, a palavra começou ser
usada para referir à atividade divina de preservação e governo.

Para Berkhof (Pg. 183), providência pode ser definida como


“permanente exercício a energia divina, pelo qual o Criador preserva todas as Suas criaturas,
opera em tudo que se passa no mundo e dirige todas as coisas para o seu determinado fim”.
Por conseguinte, Lutero refutando Erasmo de Roterdão, na obra “De Servo Arbítrio” traduzido
como “Nascido Escravo”, expõe que “aqui, então, está algo fundamentalmente necessário e
salutar para um cristão, saber que Deus não sabe nada de antemão casualmente, mas Ele
prevê, propõe-Se e faz todas as coisas por meio de Sua vontade imutável, eterna e infalível.
(pg. 28).” Ao explicar a presciência divina, Lutero organiza seu argumento em núcleos dos
quais compõem o substantivo maior, a providência, assim explicando que Deus não apenas
cria, mas governa, seu trabalho não é somente de início, mas também de meio de fim, ele é o
alfa e o ômega.

O controle direto de Deus, em sua criação, tanto no tempo quanto no


espaço, não pode ser desvinculado do cristianismo, isso seria equivalente a tornar-se um ateu,
assim leciona o teólogo americano William S. Plumer, que “Negar a providência é tão
verdadeiramente ateu como negar a existência de Deus. Aquele que não vê, nem ouve, nem
sabe, nem se preocupa, nem ajuda, nem salva, não é Deus de forma alguma. Nenhum homem
de mente reta poderia adorar um ser assim.” Para ele “A providência é o cuidado de Deus para
com as Suas criaturas. As obras de providência de Deus são a Sua santíssima, sábia e poderosa
preservação e governo de todas as Suas criaturas e de todas as suas ações.”

A Bíblia contém diversos textos que expõe a atividade operante de


Deus, João 5,17 traz: “Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”;
Ele está cuidando de sua criação, conservando e governando, até mesmo “os cabelos da vossa
cabeça estão todos contatos.“ (Lc. 12.7). Ele sustenta todas as “coisas pela palavra do seu
poder” (Hb 1.3), é nEle que “tudo subsiste” (Cl 1.17).
Destarte, o fato do “problema do mal” bater em nossa porta, pode
nos desafiar e desafiar nossa fé nEle, ou seja, por vezes questionamos a Deus pelo mal causado
por aqueles que prosperam.

Habacuque era um profeta que escreveu o livro que leva seu nome
no Antigo Testamento, tendo vivido e assistido a deterioração espiritual do povo da aliança,
além da conquista progressiva do reinado de Nabucodonosor sob as nações e povos daquele
tempo, o povo de Deus estava naquele momento, cerca de 600 a.C. sob o domínio babilônico e
portanto, fadado a sofrer como nunca antes.

O profeta Habacuque era um homem fervoroso e continha uma


paixão ardente pelo soberano Deus, ato contínuo, ao ver seu povo passar por impetuoso
sofrimento, exclama seu desespero, em um dos textos mais angustiosos já vistos:

2 Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-


te-ei: Violência! E não salvarás? 3 Por que me mostras a iniquidade e
me fazes ver a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante
de mim; há contendas, e o litígio se suscita. 4 Por esta causa, a lei se
afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o
justo, a justiça é torcida.Hc 1.2–4.

E continua em sua intercessão:

12 Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu


Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste
aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. 13 Tu
és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não
podes contemplar; por que, pois, toleras os que procedem
perfidamente e te calas quando o perverso devora aquele que é mais
justo do que ele? 14 Por que fazes os homens como os peixes do mar,
como os répteis, que não têm quem os governe? 15 A todos levanta o
inimigo com o anzol, pesca-os de arrastão e os ajunta na sua rede
varredoura; por isso, ele se alegra e se regozija. 16 Por isso, oferece
sacrifício à sua rede e queima incenso à sua varredoura; porque por
elas enriqueceu a sua porção, e tem gordura a sua comida. 17 Acaso,
continuará, por isso, esvaziando a sua rede e matando sem piedade
os povos? Hc 1.12–17.

O mal existe, deriva da natureza humana (Rm 1.18-23) e em Deus


não se pode achar mal algum (1 Jo 1.5), como governador e mantenedor de tudo o que existe,
Ele permite, conforme sua boa e justa vontade decretiva, que o mal exista, para que sua
vontade seja revelada até mesmo dentre os males que nos assolam.

Aquele que constrói uma canoa, é dono da mesma, podendo a usar


ou a quebrar, conforme sua vontade. Deus age conforme sua justa e imutável vontade,
preordenando nossa história antes mesmo da fundação do mundo (Ef. 1.4-5), nós, pobres e
frágeis, nos desesperamos quando somos colocados a grande prova. Uma doença, uma
tragédia, uma nação inteira dizimada e perguntamos, “por que Deus?”
Habacuque se desesperou como fazemos diversas vezes, mal
lembramos, que os momentos de dificuldade e provação, são os melhores períodos para se
aproximar do grande e maravilhoso criador do universo, qual nos salvou para sua maravilhosa
luz (1 Pe 2.9).

Há um elemento, que nesse contexto de sofrimento e provação,


expõe a nossa maturidade espiritual, bem como nossa devoção e confiança em Deus: a
paciência. É interessante o que William S. Plumer escreve sobre a paciência, exatamente nesse
contexto de sofrimento e provação, ele comenta que

“Em relação a Deus, ela é resignada e diz: "Suportarei a indignação


do Senhor". Para com as pessoas cristãs, que justamente nos repreendem, ela é mansa, e diz:
"Que o justo me fira". Para com as pessoas perversas e irracionais, que gostam de ver os
outros aflitos, diz: "Não te alegres contra mim, ó meu inimigo." Em relação às provações sob as
quais somos chamados a sofrer, não é inquieto e rebelde, mas sim dá-lhes um bom
acolhimento. Sob provocação, é gentil e não se ressente. Abençoa e não amaldiçoa. Suporta
insultos e injúrias sem malícia. É "paciente para com todos os homens". Sob aflição, é calmo e
submisso. Não usará medidas iníquas para aliviar até mesmo grandes aflições. É "paciente na
tribulação" - mesmo nos sofrimentos mais extremos. Nas demoras, fica quieto e não se queixa.
Gosta de deixar tudo nas mãos do Pai”.

Citando Charnock, o Autor em supra expõe, "Em relação a Deus, a


paciência é uma submissão à sua soberania." Um período de doença grave por exemplo, pode
ser de grande valia para uma aproximação genuína, uma entrega total e verdadeira, uma
aproximação tão poderosa que dificilmente poderia ser presenciada numa vida sem
tribulações. Plumer expõe: “Ainda vive um homem que diz ter visto quatro dias muito felizes.
Plumer expõe Um foi o dia da sua conversão; outro foi o dia do seu casamento; os outros dois
foram dias passados numa cama doente longe de casa”.

Grandes homens de Deus, encontraram seu conforto no Senhor, ao


passarem por grandes tribulações, as escrituras contém grande diversidade de conteúdo sobre
esse tema, mas e os maus?

Deus, em sua resposta a Habacuque, deixa explícito que seu juízo


viria sobre aqueles que praticam o mal, no tempo determinado por Ele (Hc 2.3), ou seja, deixa
claro que “Eis o soberbo! Sua alma não é reta nele; mas o justo viverá pela sua fé (Hc 24.), há
dois caminhos, as ações do soberbo, do que pratica o mal, que como se estivesse embriagado
com o vinho (v. 5), qual o engana em suas ações, o levará para a condenação e para “seu
caminho fatal” e a do justo, este viverá exclusivamente por sua fé (v. 4), e será levado à
salvação, por fim, aos lugares celestiais (Ef. 2.6-8).

Deus é quem governa a história, nEle subsiste todas as coisas (Cl


1.17), ele é o Rei da glória, e a ele pertence a terra e tudo o que existe, assim escreveu Davi,
em Salmos 24:

1 Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém,


o mundo e os que nele habitam.
2 Fundou-a ele sobre os mares
e sobre as correntes a estabeleceu.
3 Quem subirá ao monte do SENHOR?
Quem há de permanecer no seu santo lugar?
4 O que é limpo de mãos e puro de coração,
que não entrega a sua alma à falsidade,
nem jura dolosamente.
5 Este obterá do SENHOR a bênção
e a justiça do Deus da sua salvação.
6 Tal é a geração dos que o buscam,
dos que buscam a face do Deus de Jacó.
7 Levantai, ó portas, as vossas cabeças;
levantai-vos, ó portais eternos,
para que entre o Rei da Glória.
8 Quem é o Rei da Glória?
O SENHOR, forte e poderoso,
o SENHOR, poderoso nas batalhas.
9 Levantai, ó portas, as vossas cabeças;
levantai-vos, ó portais eternos,
para que entre o Rei da Glória.
10 Quem é esse Rei da Glória?
O SENHOR dos Exércitos,
ele é o Rei da Glória.

Vivemos em uma sociedade acostumada a pensar em democracia ou


anarquia, mas o governo de nosso universo se assemelha a uma monarquia, sendo Deus o
único Rei de tudo o que existe, ele controla o Legislativo, Executivo e Judiciário, o universo
cumpre as ordens do seu querer.
Concluímos que Deus age ativamente, decretivamente e
preordenadamente através do tempo e espaço, conforme seus atributos, realizando sua obra
segundo seu querer (Fl 2.13) e para sua glória, sustentando tudo o que existe pela “expressão
exata do seu ser” (Hb 1.3).

Referências:

Almeida Revista e Atualizada (Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,


1993).
BAVINCK, H. Dogmática Reformada: Deus e a criação. Tradução de
Valter Graciano Martins. 2. ed. São José dos Campos: Cultura Cristã, 2019. 736 p. ISBN 978-
8576224624.

BERKHOF, L. Teologia Sistemática. São José dos Campos: Cultura


Cristã, 2019. 720 p. ISBN 978-8576224624.

LUTERO, Martinho. Nascido Escravo. Tradução de Editora Fiel. 1. ed.


São José dos Campos: Editora Fiel, 2022. 104 p. ISBN 978-8599145302.

PLUMER, William S. Providência. Disponível em <


https://www.apuritansmind.com/arminianism/providence-by-william-s-plumer-1802-1880/>
acesso em 27.11.2023.

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