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LEONARDO LOPES
O CASO ALTHUSSER
Articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal
São Paulo
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
LEONARDO LOPES
O CASO ALTHUSSER
Articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal
São Paulo
2015
LOPES, L. O caso Althusser: articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal.
Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Psicologia Social.
Aprovado
em:_______________________________
BANCA EXAMINADORA:
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___________________________________
AGRADECIMENTOS
Porque como disse, diria, diz Chaplin, “cada pessoa que passa em nossa vida, passa
sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra; cada pessoa que
passa em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si e leva
um pouco de nós – essa é a mais bela responsabilidade da vida”. A cada responsável por
esse trabalho:
Sandra Letícia Berta, pela escuta, contribuição marcante e participação tão singular
neste trabalho, na minha formação de analista. Pela abertura à Outra língua, por
suscitar em mim a inquietação que pulsa, “como en el muro la hiedra, y va brotando,
brotando...”.
Oswaldo Henrique Duek Marques, pelo acolhimento no campo da norma, por encarar a
seriedade de meu trabalho com muita juventude. Por ratificar que a formação é
permanente e constante, dia após dia.
Flávia Arantes Hime, quem me iniciou na atividade de pesquisa. Por ser uma fiel
admiradora, pelo espaço especial que me foi reservado em sua família, em seu coração.
Berenice Pompilio, por ter me conduzido, e ainda hoje, pelas delícias da língua francesa,
pelas ruas enigmáticas de Paris, pelas idiossincrasias humanas, com rigor, exigência,
mas também com muito amor. Pela parceria cotidiana.
Regina Fabbrini, essa grande mulher que me apresentou Lacan e que participou
diretamente da escuta de Althusser, e que desde lá dos primórdios procurou colocar em
relevo a voz tão singular e particular que pertence a cada um de nós. Por todo o afeto.
Ana Laura Prates Pacheco, Antonio Quinet e Conrado Ramos, pela paixão que
transmitem nesse caminho irreversível que é a psicanálise, paixão que me causa.
RESUMO
ABSTRACT
This research weaves articulation possibilities between the psychoanalytic field and the
criminal law, using the case of the philosopher Louis Althusser, while a paradigm of
tragic dimension of the not imputable. There for, it is used as an methodology the
analyze of his autobiographical memories, written on "The Future Lasts Forever"
(1990), five years after strangled his wife and get declared irresponsible because of a
melancholic psychosis. The place of the psychotic in legal discourse calls
psychoanalytic knowledge for the discussion of responsibility, which is present in the
work of Jacques Lacan, since the beginning of his teaching, when he looked for an
dissociation between the term "mental offender" from psychiatry, such as specific
clinical operators, as" passage to the act" as well. In addition, terms common to
psychoanalysis and the criminal speech, such as law, crime and guilt, assume different
meanings in each field, a scenario that leads research in two means. First, the psychosis
approach, as language structure produced by foreclosure of the significant in the Name-
of-Father, and Althusser´s melancholy, as a permanent mourning from the emptiness
left by Verwerfung. Second, the conception of homicidal crime as a passage to the act
and therefore act caused by guilt feeling and whose inevitable consequence
accountability. We conclude, therefore, that there is a hiatus between the law subject
from the of subject of the unconscious, among legal responsibility and individual
responsibility, but that does not prevent its dialogue. The subject is always responsible
for his position in the structure, and the incidence of the law by criminal summons may
open the possibility for stabilization. In this sense, the crime committed by Althusser
was not a motivated act, but a solution against suicide law, which reveals the very
melancholy unconscious structure, and that by no means could have stopped him from
answering legally.
Key words: Psychoanalysis, Criminal Law, Althusser, passage to the act, liability penal,
responsibility.
LOPES, Leonardo. Althusser: des articulations possibles entre la psychanalyse et le
droit pénal. 2015. Mémoire du Master. Programme d´Études Supérieures en Psychologie
Sociale. Pontificale Université Catholique de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2015.
RÉSUMÉ
Cette recherche tient comme but : tisser des possibilités d´articulation entre le champ
psychanalytique et celui du droit pénal, à partir du cas Althusser, tandis que un paradigme
de la dimension tragique des non-imputables. Pour ça, il a pris comme méthodolo gie
l´analyse de l´autobiographie, L´avenir dure longtemps (1990), écrit cinq ans après
qu´Althusser a eu étranglé sa femme et qu´il a eu déclaré non imputable en raison de la
mélancolie. La place du psychotique dans le discours juridique convoque le savoir
psychanalytique au travers de la thématique de la responsabilité, laquelle c´est présente
chez-Lacan depuis le début de son enseignement. Lacan cherche « de-spsiquiatrizar » le
fou criminel et des opérateurs cliniques spécifiques, comme le passage à l´acte. En outre,
il y a des concepts communs à la psychanalyse et au droit pénal, comme loi, crime, et
culpabilité, qui gagnent des significations très divers chez chaque champ, scène qui
conduit la recherche en deux parcours. En premier, la notion de psychose comme une
structure linguistique effet de la forclusion du signifiant du Nom-du-Père, e de la
mélancolie d´Althusser comme un deuil permanent par le vide laissé par la Verwerfung.
En deuxième, la notion du crime homicide comme un passage à l´acte et donc, un acte
causé par pour le sentiment de culpabilité et qu´il y a comme conséquence l´inévitab le
responsabilité. La conclusion : il y a une béance entre les hypothèses du sujet du droit et
du sujet de l´inconscient, entre responsabilité juridique et responsabilité singulière, mais
ça n´empêche pas une articulation. Le sujet est toujours responsable pour sa position chez-
structure et l´incidence de la loi, au travers de la convocation pénale, elle peut permettre
la possibilité de stabilisation. Alors, le crime qu´Althusser a commis ce n´est pas un acte
immotivé, mais en fait une solution contre le délire suicide, qui révèle la structure
inconsciente de la mélancolie et qui n´aurait pas pour autant empêché Althusser de
répondre juridiquement.
da procura um encontro”
Fernando Sabino
SUMÁRIO
Apresentação....................................................................................................................1
Partindo de Clérambault.............................................................................................18
A subversão de Lacan..................................................................................................20
Lembranças encobridoras...........................................................................................26
Jacques Althusser........................................................................................................35
O campo de prisioneiros..............................................................................................44
Hélène.........................................................................................................................48
A relação especular.....................................................................................................70
Verwerfung..................................................................................................................84
A dimensão temporal no conceito de foraclusão.........................................................88
Tipicidade e antijuricidade.......................................................................................105
Culpabilidade............................................................................................................106
Os nomes do pai........................................................................................................119
O caso Aimée.............................................................................................................124
O delírio suicida.......................................................................................................166
Considerações Finais...................................................................................................178
Referências Bibliográficas..........................................................................................185
ANEXO.........................................................................................................................195
1
APRESENTAÇÃO
Arrisco a dizer que, se Freud parte do sonho histérico como paradigma do sujeito do
psicótico como via régia de acesso ao inconsciente. Tal proposição é indicada pelo
próprio Lacan, posto que a questão da responsabilização do psicótico faz-se tema presente
em seu ensino, desde sua tese de doutorado, onde Aimée é apresentada como caso
Através da tese do inconsciente estruturado como linguagem, Lacan efetua uma torsão
como ato imotivado, mas como um tratamento possível para a invasão avassaladora de
gozo, enquanto última solução para um sujeito que ainda resiste ao desaparecimento.
reconhece que é o caso Aimée, através da discussão com a criminologia, que o conduz ao
cerne da ciência freudiana. Desse modo, a tripla articulação empreendida por Lacan no
com o Outro, e a dimensão do gozo e do objeto a - procura ir além dos impasses com os
pelo ato e à implicação do sujeito nas consequências de tal operação. Temos um campo
da vontade.
2
o campo da psiquiatria e o campo do direito penal. Desse modo, o lugar do doente mental
segurança.
É nesse palco que, nos princípios da clínica, conheci Louis Althusser e por ele fui
Louis Althusser nasceu em 1918 na Argélia. Filho de pais franceses, viveu exilado em
campo de prisioneiros durante toda a Segunda Guerra, até que em 1945 ingressou na
École Normale Supérieure, onde lecionou por mais de trinta anos como professor de
filosofia. Reconhecido como teórico marxista, a partir de obras como Ler “O capital”
Comunista Francês desde 1948 e expoente intelectual dos movimentos de maio de 1968,
além de figura de enorme influência na América Latina. Também teve relação próxima
1 Vocábulo de língua inglesa utilizado por Althusser, ao receber Lacan na École Normale, quando o psicanalista fora
expulso da IPA. O significado, alguém que está de fora, remete à inclusão interna da exclusão e à construção delirante
de Althusser, a partir da experiência de internação no campo de prisioneiros: “ir para fora permanecendo dentro”. Ver
capítulo 12.
3
com a psicanálise, seja na história do movimento psicanalítico (ao acolher Lacan quando
Althusser estrangulou sua esposa, Hélène Rytmann, com a qual mantinha relações desde
1946. O caso foi um escândalo para os intelectuais franceses, ainda abalados com o
suicídio de outro filósofo marxista, Nikos Poulantzas, em 1979. Houve uma tentativa de
abafar o escândalo por parte dos amigos de Althusser, mas a imprensa e os inimigos
Durante o inquérito, Althusser diz não se lembrar das circunstâncias do crime - apenas
que massageava a esposa e que, de repente, quando se deu conta, já a tinha matado. Por
inimputável, de acordo com o artigo 64 do Código Penal Francês da época, e não teve
Sua morte o trouxe novamente aos noticiários, quando foi descoberto em sua casa um
texto escrito em 1985, sob o título de L´avenir dure longtemps (O futuro dura muito
tempo), o qual continha suas memórias. Althusser recorda em sua autobiografia eventos
traumáticos de sua infância, desde a morte do tio (também Louis) durante a guerra, sua
esposa Hélène, socióloga, também comunista, mas malquista pelos membros do partido,
quase dez anos mais velha, e com a qual Althusser teve, aos 30 anos, sua primeira relação
sexual.
sobre as circunstâncias de seu crime. Embora sejam aqui adotados termos como memória
ao nos advertir que não se trata de um diário, mas da retenção dos afetos que marcaram
sua existência, nos quais ele pôde se reconhecer e onde poderão reconhecê-lo, de modo
que, dentre tais afetos, encontram-se formações violentas, as quais ele chamou por
delirante com os familiares, e sobretudo com Hélène, a fim de reivindicar o direito que
juridicamente.
O relato de Althusser nos revela uma trágica condição vivenciada por ele durante anos,
aquela mesma escutada nas análises que tiveram lugar no manicômio: o desaparecimento.
Althusser se utiliza da célebre expressão cunhada por Foucault para designar a loucura,
doente mental, sob essa pedra do silêncio, não é nem morto, que teve um ponto fina l em
sua vida quando enterrado, nem um vivo, pois tem seus direitos civis suspensos - o
desaparecido é como o morto-vivo que a qualquer hora pode reaparecer, e exatamente por
essa condição, gerar um mal-estar na vida pública. Uma “internação perpétua” deveria
“resolver” esse problema, mas mesmo podendo reaparecer (sustentado por uma avaliação
periculosidade.
proposta implicam, antes de mais nada: a) uma demarcação necessária, de um hiato entre
preciso, em relação a termos caros como psicose, lei, crime, culpa e responsabilidade, que
são comuns tanto ao direito quanto à psicanálise, e que assumem significações específicas
A leitura do texto de Althusser nos interessa, portanto, à medida que nos remete ao
homicídio de sua esposa, cena criminosa utilizada como Introdução, passagem ao ato
é preciso explicitar qual ruptura Lacan efetua, quanto à concepção da psicose, quando
delirante, bem como aos personagens que nela fazem série e na determinação inconscie nte
6
relação com o significante. Mesmo sem que isso se realize em uma situação analítica
propriamente dita, assim como Freud se permitiu analisar as memórias de Daniel Paul
Schreber.
Para tanto, nos debruçaremos mais sobre os primeiros anos do ensino de Lacan, referentes
das psicoses. Primeira torsão, que descola o sujeito psicótico do predicativo do louco
Quanto à Parte III: a regra do jogo, trataremos da passagem ao ato: segunda torsão,
o gozo – para tratar da relação entre a lei e crime, culpa e responsabilidade, tanto para o
direito penal, quanto para a psicanálise. Abordaremos ainda a articulação entre supereu,
3Termo que remete às diferentes significações da palavra responsabilidade, dentre as quais, segundo o dicionário
Aurélio de Língua Portuguesa (1999), a ação de responder à uma convocação, uma responsividade.
7
responsabilidade singular, aquela que remete à Outra cena, enquanto efeito do sentime nto
de culpa. Para tanto, retomamos o caso das irmãs Papin, para em seguida apresentarmos
ao ato do melancólico.
Desse modo, entendemos o Direito como produto das relações simbólicas orquestradas
pela interdição do incesto, a castração: é um ordenador de gozo, um pacto que visa barrar
o gozo daquele que pode ocupar o lugar do Outro tirânico, no caso, o Estado. Por tal via,
o direito penal remete à uma lei geral, oposta a lei particular da psicanálise, a lei do desejo,
e de onde podemos tratar de uma articulação possível: ali onde é o limite do Código Penal,
O que Althusser, com seu desejo alucinatório de um “suicídio altruísta”, nos permite
articular? Para a psicanálise, o sujeito é sempre responsável pela sua posição na estrutura,
de modo que a foraclusão do Nome-do-Pai não implica privar o sujeito dos efeitos das
leis humanas – ao contrário, a convocação jurídica pela incidência da lei sobre o ato só
âmbito penal. Se o hospital de custódia não é oferta de tratamento mais viável, tampouco
poderia ser a penitenciária, dispositivo esse hoje marcado por condições funcionais e
estruturais que parecem não considerar ali, no dito criminoso, um sujeito. Então faz-se
necessária uma nova proposta pelo direito penal, na interface da saúde com a justiça.
8
“Pois eu estrangulei minha mulher, que era tudo no mundo para mim, durante uma crise intensa e imprevisível
de confusão mental, em novembro de 1980, ela que me amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de
poder viver, e talvez eu lhe tenha, em minha confusão e em minha inconsciência, ´prestado esse serviço´, do
qual ela não se defendeu, mas do qual ela morreu”. (ALTHUSSER, 19 86, p. 23)
Althusser relata ter conservado intacta a lembrança da cena em que assassina a mulher,
localizando-a em duas noites: aquela da qual saía sem saber qual era e aquela em que ia
De repente, ele está de pé, de roupão, ao pé de sua cama em seu apartamento da École
Normale Supérieure. Era um dia cinzento, domingo, dia 16, nove horas da manhã, e da
esquerda, da alta janela com cortinas vermelhas envelhecidas do período imperial, a luz
roupão – sua bacia repousa sobre a cama, enquanto que suas pernas se estendem pelo
carpete do quarto.
Porém, dessa vez, é a frente de seu pescoço que ele massageia, apoiando seus dois
lentamente, com um polegar para a direita e outro para a esquerda, em diagonal, alcança
antebraços.
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De repente, sente invadir-se pelo terror: os olhos de Hélène e a ponta da língua repousa,
“insólita e serena”, entre os dentes e os lábios. Althusser se levanta, e grita sua conclusão:
Ele sai correndo pelos corredores da École, gritando que a estrangulou. Chega à
enfermaria, puxa dr. Étienne pela gola do roupão, pedindo que o acompanhe com
com o cadáver: as cortinas vermelhas esfarrapadas caem dos dois lados da janela e uma
delas, a da direita, repousa sobre as pernas de Hélène. Diante da cena, Althusser relembra
do amigo Jacques Martin, que se matara no XVIe arrondissement, onde fora encontrado
em seu quarto com uma rosa vermelha sobre o peito – a rosa teria sido uma mensagem
PARTE I
Recorte Clínico
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Na semana que sucedeu o que Althusser chamou de drama, ele foi submetido a três
uma instância pública4 . No entanto, internado por determinação jurídica e já sob a tutela
do Estado, sem dispor de liberdade, nem de seus direitos físicos, denuncia que fora
psiquiátrica, pela qual, é colocado a salvo de fazer dano a si mesmo (pelo suicídio) e à
sua liberdade, Althusser perde o que chama de “personalidade jurídica”, sendo necessário
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Aqui friso do autor acompanha aquele de Althusser, com o intuito de demarcar a especificidade do significante público
em seu caso, bem como de seus deslizamentos, de publicidade, publicar, publicamente, até púbico, publicamente e
pudico, pudicamente, na construção da interpretação delirante.
12
que certas funções sejam delegadas a um tutor, de acordo com determinação de uma
assassino. Aquele que é reconhecido culpado perante um tribunal do júri, recebe como
punição a condenação de uma pena limitada em um tempo: dois anos ou mais, por
exemplo, e mesmo em casos de prisão perpétua, a pena pode ser reduzida com o decorrer
do tempo. Cumprindo a pena privativa de liberdade, o sujeito “paga uma dívida com a
“... conquanto que se saiba ou se devesse saber que em princípio todo estado agudo
é transitório [...] na maioria das vezes, se não sempre, os médicos são um tanto
incapazes, mesmo para os casos agudos, de fixar um prazo, ainda que aproximativ o ,
para um diagnóstico de cura. Melhor, o “diagnóstico” inicialmente feito não pára de
variar, pois em psiquiatria só há diagnóstico evolutivo: só a evolução do estado do
paciente permite fixá-lo, portanto modificá-lo. E, com o diagnóstico, evidentemente
fixar e modificar o tratamento e as perspectivas de prognóstico”. (ALTHUSSER, 19 86,
p. 28)
Quem é então o doente mental? Sob a pedra sepulcral do silêncio, ele é um morto para
quem o visita. Questão: quem visita um doente mental num hospital de custódia? Como
não está realmente morto, pois sua morte não foi declarada, ele se torna progressivame nte
jurídico. Tanto para o Código Penal Francês quanto para o Código Penal Brasile iro,
enfermidade mental não impede a autodefesa, pois caberá ao juiz avaliar, através da fala
do acusado ou de laudo pericial, se seu conteúdo poderá ou não ser considerado como
elemento considerável na defesa do réu. Nesse sentido, é o juiz quem impronunc ia,
Althusser nos apresenta, em suas memórias, a acusação de que fora silenc iado
encontrava logo após do homicídio de Hélène. Ele questiona então o critério dessa
Partindo de Foucault, de sua obra magistral sobre a loucura, Althusser assim se define
por essa condição, em sua passagem por Sainte-Anne, e após a desinternação, como um
desaparecido, um que ainda não fora enterrado – “ora, diferentemente de um modo, cujo
falecimento põe um ponto final na vida de um indivíduo, que é enterrado debaixo da terra
de uma sepultura, um desaparecido faz com que a opinião corra o risco singular de poder
(como hoje no meu caso) vê-lo reaparecer à vista de todos” (ALTHUSSER, 1990, p. 29).
O desaparecido é sempre uma ameaça, mesmo que, ao reaparecer, seu retorno esteja
ancorado no discurso médico. A relação entre autor e crime pode reacender pois o crime
não passou pelo crivo de um julgamento público, onde um assassino teria a possiblidade
reconhecida por lei de dar explicações públicas, de contar com uma defesa pública, e com
os recursos públicos, posto que, tal como considerava Beccaria (2014), “o direito é a
instituição da publicidade”.
O que se revela para o público, para Althusser? Que foi cometido um crime, como a
de se pronunciar determinada e pelo juiz. Vejamos que para Althusser opinião pública e
público não são a mesma coisa: a opinião pública se refere a uma ideologia dominante,
e penais.
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trechos, de excetos do texto que o paciente diz, mas sim as pequenas singularidades que
Schejtman (2012), um “bom corte” é aquele que revela uma estrutura a partir de detalhes
dos mais sutis, que podem passar desapercebidos, de modo que uma extensa biografia do
Porém, o detalhe não pode ser conduzido como uma arbitrariedade. Trata-se de uma
através de uma escrita. Se aqui nos muniremos da autobiografia de Althusser, não o será
a partir de um caráter quantitativo de dados, mas por aquilo que a clínica psicanalítica
consiste, ou seja, o detalhe pelo qual o sujeito associa e que circunscreve uma relação
descrição é metonímica, pois soma um elemento ao outro para que se reconstitua o todo
que se situa à margem do que é observado, o que permanece fora e discorda do conjunto
(Schejtman, 2012).
estruturalista, como no caso de Clérambault, com quem Lacan não se deteve em debater
alucinatórias.
como uma linguagem, sustenta-se pela letra freudiana, enquanto referência principa l,
posto que, exatamente no cerne do seminário das psicoses, está o movime nto
freudiana, já que sua teoria referente a essa estrutura não avança muito além do campo
caso, fica apenas na ordem da alusão. No entanto, percebe-se desde o caso Schreber um
como de sua relação com o eu, a partir de 1907, ao se interessar pela paranóia e pela
publicada em 1903. Assim como Lacan com Joyce, Freud jamais teve um encontro com
Schreber, de modo que a interpretação das angústias persecutórias e de seus delírios são
futuro dura muito tempo”, de 1990, a partir de duas maneiras diversas, e entrelaçadas, de
se abordar a psicose.
Uma dimensão diacrônica, aquela efetuada por Lacan a partir do historial de Schreber
a uma abordagem da psicose como doença mental, todas as passagens de O futuro dura
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muito tempo que sustentam uma tentativa de construção clínica são citadas literalme nte,
texto de 1985, cuja redação está intrinsecamente ligada ao evento de novembro de 1980,
como a relação com a irmã e o falecimento do avô são omitidos nesse precioso material,
não por acaso, o que pode explicar algumas lacunas sobre certos acontecimentos.
Questões como a relação da melancolia com sua construção teórica e o lugar da escrita
nos efeitos de estabilização ficarão para um outro momento, e por isso serão lançadas
como indagação nas considerações finais. Nesse sentido, há trabalhos extremame nte
Vale notar que há em ANEXO I dados autobiográficos que podem auxiliar na precisão
Partindo de Clérambault
uma estrutura clínica, aponta para fenômenos específicos de uma experiência. Para
Mazzuca (2012), no campo das psicoses, seu uso diagnóstico se faz fundamental em casos
ainda não desencadeados ou naqueles em que não está claro que se trata de uma psicose.
(BERCHERIE, 2009).
neutros: não são acompanhados por afetos de hostilidade, mas por um estado eufórico.
Segundo, eles não são sensoriais, o que não quer dizer sensitivo – excluem sensações
sinestésicas, ou seja, que a voz escutada na alucinação não se refere aos órgãos dos
sentidos, não é auditiva. Terceiro, são anedéicos: não possuem um significado que os
explique.
seja, que possuem uma origem mecânica, subconsciente, uma causa orgânica. Segundo
Bercherie (2009), para a escola de psiquiatria clássica, aquilo cuja causa não se refira a
um substrato consciente não poderá ter outra explicação a não ser um processo orgânico,
de caráter anatômico.
funcionamento da linguagem, para dizer que nem sempre o que é automático apresenta
um caráter orgânico.
A subversão de Lacan
Segundo Godoy (2012), embora Lacan reconheça o valor clínico das contribuições de
Clérambault, ele irá prescindir da causa orgânica; se a psiquiatria clássica irá afirmar que
normal, Lacan irá insistir que não apenas não se trata de um mecanismo comum, como
Primeiro, o modelo da Botânica. Ao observar uma folha, pode-se constatar que suas
nervuras se ligam reproduzindo uma estrutura que é análoga às demais formas que
compõem a planta. Ao percorrer o caule, indo para a raiz, por toda a estrutura da planta,
ramificações da raiz.
Não se trata de uma relação da parte com o todo, tampouco de uma somatória de
corpos são constituídos por anéis que se unem entre si. Além disso, a maioria dos
anelídeos possuem a propriedade de sobrevida, mesmo após terem uma parte do corpo
cortada. Isso nos transmite, assim como o modelo botânico, a idéia do fenômeno
automatismo, ou uma interpretação delirante); no entanto, não basta que seja uma
alucinação ou um delírio, já que a clínica nos mostra que tais fenômenos podem muito
automatismo mental está diretamente associada à idéia do fenômeno psicótico como uma
Mazzuca (2012) nos aponta que essa descrição converge com a transmissão de Lacan,
das alucinações verbais como paradigma da psicose, e por seu valor assensorial, posto
que o essencial não é que as vozes sejam auditivas, mas que sejam verbais – a alucinação
que o inconsciente está a céu aberto, as leis fundamentais da estrutura significante estão
fenômeno elementar. Desse modo, segundo Mazzuca (2012), o que está em jogo no
delírio não é a realidade: essa realidade se faz verbal através dos fenômenos alucinató r ios
e da interpretação, e o psicótico sabe que essa realidade por ele vivenciada não pode
Bologne, próximo a Argel Argélia, ex-colônia francesa. Pierre Berger, seu avô, ao pegá-
lo nos braços, garante: “esse não é como os outros, Louis é um caraparte5 ” – palavras
manteve até março de 1919, pois combatia na frente francesa durante a Grande Guerra.
Nesse período, viveu com a mãe ao lado dos avós maternos, provenientes de Madagascar.
Pierre Berger fez carreira de guarda florestal no Bois de Bologne, Madeleine Nectoux,
sua avó, ficava sozinha por dias, isolada na cabana florestal do parque. Diante de
recorrentes insurgências árabes, Madeleine dormia a noite toda com uma espingarda
sobre os joelhos: “duas balas no cano para minhas duas filhas, e uma terceira ao alcance
da mão para mim”. O relato da avó compõe uma série de lembranças infantis de Althusser,
sob a forma de angústias de morte: “havia assim, em minha cabeça de criança, ameaças
minha própria mãe, de sua morte. Naturalmente, tremi de medo durante muito tempo
optaram pela França em 1871, após a guerra entre Napoleão III e Bismarck, e foram
5
Neologismo criado por Althusser.
24
possuíam idades parecidas, os pais decidiram por casá-los: Louis, o caçula e “mais
educado”, com Lucienne, “a mais preparada”, e Charles, “o mais rebelde”, com Juliette,
“a mais animada”.
Louis e Lucienne mal ficaram noivos e os irmãos foram convocados para lutar na
ao Bois de Bologne, anuncia que o avião de Louis fora abatido em combate, e então
propõe a Lucienne “ocupar junto dela o lugar de Louis”. Althusser justifica a escolha do
pai: “afinal, minha mãe era bela, jovem, e desejável, e meu pai amava realmente o irmão
Louis... minha mãe ficou sem dúvida transtornada pelo anúncio da morte de Louis, que
ela amava profundamente, a sua maneira, mas se sentiu atônita e desconcertada pela
inesperada proposta de Charles. Mas, afinal de contas, a coisa ficava em família” (p.41).
novamente para a guerra. Althusser relata a cena de núpcias tal como a fantasia
fundamental do coito parental violento: “parece que minha mãe conservou uma tripla
recordação atroz – a de ter sido violentada em seu corpo pela violência sexual do marido,
a de ver dilapidadas por ele, numa noite de farras, todas as suas economias de solteira...
meu pai decide irrevogavelmente que minha mãe tem de abandonar de imediato seu
trabalho de professora” (p.42). Segundo Althusser, o pai mantivera uma amante, Louise
(gravem este nome), desde os tempos de namoro com a tia Juliette, uma moça pobre a
qual teria abandonado repentinamente às vésperas do casamento, e cujo nome tinha sua
Lucienne é para Althusser uma mãe-mártir, que sangra como uma chaga, uma mãe
sofredora, destinada a uma dor eterna, martirizada dentro de casa pelo próprio marido, e,
portanto, uma masoquista, mas também uma sádica em relação ao tio, pois havia aceitado
25
que seu pai tomasse o lugar de Louis, e em relação ao filho, Althusser, que também havia
recebido esse nome, Louis, e que, por isso, queria sua morte – o Louis que ela amava,
morrera.
Pois então Althusser recebeu ao nascer esse nome, Louis, pelo qual manteve por ao
longo de sua vida, um horror: era muito curto, e na fonética francesa entonava uma só
vogal, além de, como se não bastasse, terminar em um i agudo capaz de feri-lo (tal como
Louis. Oui, um sim contra o qual se revoltava, sim não a seu desejo, mas ao desejo
materno. Louis, esse nome que dizia ele, lui. Pronome de terceira pessoa, lui, um terceiro
anônimo, o sujeito indeterminado que convoca Althusser. Lui, o pronome que faz alusão
ao homem que está às suas costas: lui, c´était Louis (ele, era Louis), o tio a quem a mãe
amava, e não a ele, Althusser. Louis, que se transforma em Louise, a amante. “Esse nome
foi desejado por meu pai, em memória ao irmão Louis, morto no céu de Verdun, mas
sobretudo por minha mãe, em memória daquele Louis que ela amara e não deixou, a vida
inteira, de amar” (p. 42). E Althusser, um sobrenome transmitido por um pai, mas um
sobrenome-de-pai foracluído.
Lembranças encobridoras
Althusser trata de “lembranças encobridoras” que marcaram sua infância, que ele vê
A primeira cena refere-se ao pai. A mãe, com os seios quase descobertos, está com
Althusser nos joelhos, quando a porta da casa florestal se abre, e surge uma silhueta alta
Althusser associa o pai a figura de um imperador romano: marcado pelo sexo e pela
morte, um homem poderoso, sensual que “amava o vinho e as carnes sangrentas com a
mesma força que amava as mulheres” (pg. 48). "... durante a via inteira ele se calou sobre
si mesmo, e eu nunca me atrevi a interrogá-lo, a fazê-lo falar de si. Aliás, teria ele me
respondido? Devo confessar que durante muito tempo odiei meu pai por ele fazer minha
mãe sofrer aquilo que eu vivia como sendo um martírio para ela e, portanto, também para
mim [...] Meu pai ´governava´ assim: sem jamais realmente se fazer ouvir, maneira talvez
de deixar seus colaboradores diante de uma responsabilidade que eles sabiam estar
sancionada, mas não definida explicitamente. Não haviam se esquecido dele, de quem
falavam com uma admiração que beirava a devoção: ninguém era como ele. Um
Quem fora Charles Althusser para Louis Althusser? Um homem autoritário, mas que
por sua origem pobre, tinha sido a única “personalidade” a não entrar no jogo das pessoas
público, mas que para Althusser e a irmã não dizia nada, e que, em vez de liberá-lo em
6 Dixmude era um dirigível alemão, cedido à França como reparação de guerra, mas que acabou se
incendiando e afundando no mar.
27
As noites eram angustiantes para Althusser, que se perturbava com os roncos que o pai
emitia, vividos como “gritos de lobo caçando ou acuado”, dos quais nunca esquecera. A
voz do pai não era perturbadora apenas durante a madrugada: as cenas de refeição são
descritas a partir do confronto entre pai e filho, o qual, para provocar o pai, insistia em
minha mãe, nos abandonara (minha mãe parecia indiferente): partira para sempre? Ia
voltar ou desaparecer para sempre? ” (p. 47). Fautré, neologismo francês criado por
Pai terrível, mas ao mesmo tempo, cúmplice. “Uma vez ou outra levou-me ao estádio,
onde adorava entrar sem pagar... Eu ficava fascinado por sua arte de `passar a perna´...
Mau exemplo que me deixou uma terrível recordação, à entrada de um estádio de tênis.
Meu pai entrou sem pagar, como de costume. Eu, atrás dele, não pude entrar. Deixou- me
sozinho. Mas, mais tarde, eu iria me inspirar seriamente em sua arte de `passar a perna´
(p.48).
assistência técnica, sendo que em duas ocasiões houve troca de tiros, que deixavam
Althusser apavorado, pois eram, em sua certeza, destinados a ele. O episódio dos tiros é
associado à uma passagem escolar, a respeito das Cruzadas: as cidades eram saqueadas,
destruídas, os habitantes mortos pelo corte das espadas, cujo sangue jorrava pelas ruas.
sem qualquer apoio sobre a estaca que penetrava lentamente pelo ânus até dentro de seu
ventre e até seu coração, e só então ele morria, em meio a sofrimentos atrozes. Seu sangue
corria ao longo da estaca e das pernas até o chão. Que horror! Era eu então transpassado
pela estaca (talvez por esse Louis morto que estava atrás de mim) ” (p. 48).
28
imagem de uma virgem de aço munida de alto a baixo de longas pontas finas e duras que
lhe transpassavam lentamente os olhos, o crânio e o coração. Era eu que estava fechado
O pai de Althusser retornara da guerra com uma série de fotos de artilharia: “o víamos
sempre ereto diante de gigantescos canhões”. O pai diante do qual Althusser permanecia
aterrorizado também fora o pai que lhe ensinara a atirar – o que será fundamental para a
construção do delírio suicida. Certa vez, aos 9 anos, fora com o pai ao clube militar onde
deu o primeiro tiro, com um fuzil de guerra; o estrondo do disparo o deixou aterrorizado
ao filho o que ele gostaria de gratificação pela conquista. Prontamente, sem hesitação,
teve sua resposta: uma carabina nove milímetros da indústria de armas Saint-Étienne – a
contragosto da mãe. Desde então, Althusser se tornara excelente no tiro, o qual praticava
Uma vez, decidiu caçar galinhas. “De bastante longe (uns vinte metros) recebi um belo
galo vermelho perto da cerca. Atirar com minha funda e, aterrorizado, vi o galo, atingido
em pleno olho, pular de dor, bater violentamente a cabeça no chão e fugir aos soluços.
Meu coração ficou palpitando durante horas” (p. 49). O terror em matar não consistia
numa inabilidade em acertar o alvo, mas estava vinculada a certeza de que, caso fosse ele
mesmo o alvo, o tiro seria certeiro. O ato de atirar poderia então precipitar o suicídio, o
encobridoras de Althusser, mas de toda sua autobiografia. “Quanto a essa carabina, eis o
os quais conseguia me sair bem. Mas um dia que estávamos numa pequena propriedade,
Les Raves, que meu pai achara por bem comprar numa colina inacessível, percorri os
bosques com minha carabina na mão, à procura de alguma presa volátil. Subitame nte
avistei uma polinha e atirei: ela caiu, eu a procurei, em vão, nas samambaias secas, no
fundo eu estava convencido de ter errado o alvo, ela só caíra por esperteza, para escapar
de mim. Continuei meu caminho e de repente me veio a idéia, sem que eu tivesse refletido
e, com mais razão ainda, sem que eu soubesse por quê, de que, afinal de contas, eu poderia
tentar me matar. Dirigi então o cano da arma contra minha barriga e ia apoiar no gatilho
quando uma espécie de escrúpulo me reteve, nunca soube por quê. Abri então a culatra:
havia uma bala lá dentro. Como podia estar ali? Eu não a tinha enfiado ali. Mais uma vez,
Um pai autoritário tal como um imperador romano, ao mesmo tempo cúmplice, mas
que, em sua função, encontra-se zerificado, tal qual na lembrança da silhueta vazia.
inscreve. Questiona-se Althusser: “Tive eu realmente um pai? Sem dúvida, eu tinha seu
sobrenome e ele estava ali. Mas, em outro sentido: não. Pois jamais ele interferiu em
minha vida para orientá-la, um mínimo que fosse, jamais me iniciou na sua que poderia
ter me servido de introdução, fosse à defesa física, às brigas dos meninos, fosse, mais
tarde, a virilidade” (p. 50). Assim, Althusser sentia-se convocado a ser Louise, a mante
do pai: “..., mas toda vez que eu o deixava, lançava-me, diante de minha mãe silenciosa,
uma simples frase que não exigia comentário nem resposta: Faça-a feliz. Faça-a? ”.
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“Faça-a feliz! ”, o mandato do imperador, que o ordena a fazê-la gozar. Faça-a feliz,
faça ela, a mãe, feliz. “Faça-a”, faça ela, a mulher – faça o papel da mulher, que diante da
na rua Sébastopol. Pegam um atalho, uma rua larga de muros altos, em cuja calçada
direita avistam duas mulheres e um homem. As mulheres brigavam ferozmente entre si,
esforço em intervir. Quando passaram perto do trio, o homem alerta calmame nte :
“cuidado, ela tem um revólver”. Lucienne Berger continuou a caminhar, sem esboçar
advém o seguinte pensamento: “estava claro para mim que eu deveria intervir. Mas eu
era um covarde. Relações singulares deveriam imperar entre minha mãe e eu, minha mãe
Lucienne Berger fora uma linda mulher na juventude, onze anos mais jovem do que
Charles Althusser, com o qual teria se casado muito jovem, ainda adolescente. Durante a
adolescência, quando ainda morava em Argel, tivera uma amiga que se tornou médica,
mas que morrera precocemente por conta de uma tuberculose. Assim como o filho,
nomeado por conta de um tio morto, Lucienne decidiu, tal como descreve Althusser, por
Se Althusser bem se considerava muito especial para a mãe, porque “era a primeira
criança de seu corpo, e um menino, seu orgulho”, sentia-se preterido pelo pai em relação
à irmã, na qual o pai assumia, para ele, um personagem incestuoso, tal como o pai gozador
31
do mito da horda primitiva: “meu pai tinha por minha irmã uma queda que me revoltava,
Althusser era o orgulho de uma mãe sufocante, pelo controle excessivo dos corpos,
pelas fobias e pelos atos invasivos, os quais o deixavam mortificado. Sentia que a mãe o
Invadido, por conta do uso que Lucienne fizera do corpo de Georgette, quando por
exemplo, certa vez, durante o banho da filha, dirige-se a Althusser: “Está vendo? Sua
irmã é um ser frágil, ela é muito mais exposta aos micróbios do que um menino” –
apontando para os genitais da criança – “você só tem dois buracos no corpo, ela tem três”
(pg. 51).
sobretudo pela pouca discrição em relação a sua sexualidade. Como quando da primeira
polução noturna, aos treze anos: sentiu um prazer profundo, uma ardência, seguida por
um sentimento de tranquilidade, sem saber muito bem o que acontecera com seu corpo,
mas que deixou grandes manchas opacas nos lençóis. Já tomando café, é convocado pela
Para Althusser, Lucienne se permitia a vasculhar seus lençóis, suas cuecas, a tocar por
vezes seu sexo, como se a pertencesse: “Eu era assim estuprado e castrado por minha mãe
que, por sua vez, se sentiu estuprada por meu pai. Realmente, não saíamos de um destino
familiar. E que essa obscenidade e esse estupro fossem praticados por minha mãe, que
evidentemente se violentava contra a sua natureza para cumprir o que julgava ser o seu
dever (ao passo que deveria ser meu pai a desempenhar esse papel), finalizava o quadro
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de horror” (p. 53). Uma mulher fóbica, cheia de medos, “principalmente medo do sexo,
perder a integridade problemática de um corpo ainda despedaçado” (p. 52). Uma mártir,
tal como Althusser se vira refletido na imagem da virgem atravessada por estacas,
corporal vivenciada através do corpo materno, espelho que refletia sua imagem enquanto
Sobretudo, uma mãe que o amava como um morto, porque ele recebera ao nascer um
nome, Louis, morto, o qual ela nunca deixou de amar – quem ela amava de fato. Althusser
era um fantasma aos olhos da mãe: “Quando me olhava, provavelmente não era a mim
que ela via, mas, às minhas costas, no infinito de um céu imaginário para sempre marcado
pela morte, um outro, mas esse outro Louis cujo nome eu carregava, mas que eu não era,
esse morto no céu de Verdun e no puro céu de um passado sempre presente. Eu era assim
como que atravessado por seu olhar, eu desaparecia para mim nesse olhar que me
sobrevoava para se juntar na morte longínqua ao rosto de um Louis que não era eu, que
Se a morte era um destino, o desejo de uma mãe fóbica, e que, tal como diz Althusser,
“ diante dela e longe dela eu me sentia sempre arrasado por não existir por mim mesmo
e para mim mesmo”, em dado momento, ela foi substituída, ou mais apropriado, em
contiguidade, a mãe-mártir fora deslocada. Seria Hélène uma nova mãe-mártir? Ou seria
o próprio Althusser? O que teria então impedido a realização desse destino, a própria
Os afetos sentidos são recompostos por Althusser pelo que denomina de lembranças
destino: um pai a ser cobrado pela impossibilidade de intervir diante de uma mãe violenta,
33
pronta a aterrorizar um filho batizado com o significante da morte. “Em meu caso, a morte
era a morte de um homem que minha mãe amava acima de tudo, além de mim. Em seu
`amor´ por mim, alguma coisa me transiu e me marcou desde a primeira infância, fixando
por muito tempo o que deveria ser meu destino. Não se tratava mais de um fantasma, mas
da própria realidade de minha vida. É assim que, para cada um, um fantasma se torna
Estava condenado pela mãe a viver enquanto o outro de um morto, que ainda não
estava morto, posta sua consistência de “palidez” diante do desejo materno. Sob a
ambivalência de amar e se apavorar, Althusser decide então tentar seduzir a mãe para que
ela consentisse sua existência – “essa mãe que eu amava com todo o meu corpo amava
um outro através de minha presença como pessoa, isto é, um ser presente como pessoa
através de minha ausência como pessoa - um ser de quem eu só saberia mais tarde que
estava morto havia muito tempo” (p. 56). Pela interpretação delirante, para seduzir essa
mãe, Althusser deveria se tornar o homem morto que ela amava, ou seja, seduzi- la
Esta foi uma tarefa possível e impossível para Althusser. Impossível, porque era
diante de um espelho, ainda criança, só visualizava uma pessoa magra, mole e muito
Mas também impossível porque era incapaz de corresponder ao que a mãe esperava, e
principalmente, pois havia um desejo de existir por si mesmo. “Pois eu não era esse outro,
no fundo de mim eu não era esse ser tão comportado e tão puro que minha mãe sonhava
que eu fosse. Quanto mais o fui, mais senti, na realidade, as formas, mesmo violentas, de
meu próprio desejo, antes de mais nada essa forma elementar: não viver no elemento nem
no fantasma da morte, mas existir por mim mesmo, sim, simplesmente existir e, em
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primeiro lugar, em meu corpo que minha mãe tanto desprezava, pois tinha horror (como
nada poder fazer contra o desejo da mãe, e de conciliar esse destino com seu próprio
se a brincar com outras crianças, ao seu medo de ser roubado, e ao pavor frequente de
sofrer uma contaminação alimentar, e assim o fez até os vinte e nove anos de idade:
período escolar, pela castidade que perdurou até conhecer Hélène, e principalmente, por
uma carreira literária iniciada já durante o colegial, mas consagrada com seu ingresso na
École Normale Supérieure, quando se tornou tanto o intelectual que, segundo ele,
filósofo reconhecido.
seduzir Lucienne Berger? “Sim e não” – ele reconhece – “sim, porque reconhecendo em
mim a realização de seu desejo, ela estava feliz comigo, e extremamente orgulhosa. Não,
porque nessa sedução eu tinha sempre a impressão de não ser eu, de não existir realmente,
mas de existir apenas pelos artifícios e nos artifícios, justamente nos artifícios da sedução
que são vistos como impostura... e, portanto, de não ter realmente conquistado minha
Jacques Althusser
Em setembro de 1928, aos dez anos, Althusser é enviado para a casa dos avós maternos
Com o avô, Althusser aprendera a semear, plantar e cultivar árvores frutíferas, além
de fabricar estrume com mijo e merda dos habitantes da casa, depositados em uma latrina.
Não sentia angústia de ser abandonado ao lado do avô: ele o ensinava a matar patos e
coelhos de uma maneira que não o horrorizava, com um golpe na nuca do animal, ou com
um corte de foice – ao contrário da avó, que degolava as galinhas lhes enfiando tesouras
pontiagudas na garganta.
estranheza do que não se pode traduzir ou representar, quando a invasão do gozo como
aroma erótico e violento, aqueles ciclamens tímidos e cor-de-rosa, como mais tarde a rosa
feminina do sexo da Simone de Bandol dentro de sua folhagem verde-negra” (p. 62) – ou
vagens escuras, bem compridas e lisas, que a mãe proibira de comer e as quais ele tinha
suas folhas escuras, uma vestimenta que era preciso levantar para descobrir a rosa de
carne “íntima” (p.63) e os aspargos silvestres, “grossos como sexos eretos”, que ele
gostaria de mastigar crus. As frutas ovais de nespereiras japonesas são como testículos :
elas contêm uma dupla de caroços, duros, lisos e brilhantes, que Althusser adorava
acariciar, principalmente quando sua tia Juliette trepava nos galhos para colhê-las, e ele
7
Vila em região acidental e repleta de bosques, para onde os avós se mudaram quando da aposentadoria de Pierre
Berger, na região pobre do M orvan, na Argélia.
36
açucarada das frutas derretendo na boca e soltando a dupla de caroços escorregadios” (p.
62).
Althusser caminhava pelos bosques próximos a casa dos avós, onde podia ter ereções
em meio as árvores e arbustos, e se acariciar sem proibições. “Eu não sabia, então, o que
fazer com meu próprio sexo, mas sentia muito bem que tinha um” (p. 69), ignorânc ia
relatada por Althusser, quando de sua excitação, fascinação, diante de cogumelos cèpes,
brotos prolongados e duros como sexo em ereção. Mesma ignorância que não permitiu
mais do que carícias até os vinte e sete anos, quando, no campo de prisioneiros, Althusser
cascas compridas e tubulares que, de repente, despencavam com muito ruído do alto das
copas e ficavam então penduradas, infinitamente, como braços sem utilidade, ou como
trapos (os trapos com que, mais tarde, eu gostava de me vestir, os traços das grandes
acompanhado da avó, da mãe e da irmã, ele visita a bisavó que vivia isolada em uma
cabana simples em Fours – ela habitava o aposento com uma vaca gorda.
Quando decide passear com a avó, que levara a vaca gorda para pastar, presencia uma
cena que o deixa chocado. Distraído brincando com libélulas, Althusser avista avó, de
repente, em pé mesmo, sem levantar a saia, urinar-se toda. Ele conclui então que ela era
uma mulher que não usava calcinha. “Fiquei atônito: havia, pois, mulheres- homens, sem
vergonha de seu sexo, e que chegavam até a urinar diante de todo mundo, sem nenhuma
37
reserva nem vergonha, e sem tampouco avisar ninguém! Que descoberta.... Embora ela
fosse gentil comigo, tudo ficou confuso: essa mulher seria um homem, e que homem,
dormindo com sua vaca, guardando-a, mijando como um homem na frente de todos mas
sem tirar seu sexo da braguilha, e sem se esconder contra o tronco de uma árvore? Mas
ela também era uma mulher, já que não tinha o sexo de um homem, e era capaz de me
amar, duramente, é verdade, mas com a ternura contida de uma boa mãe...” (p 72).
Durante a época escolar no Morvan, longe dos olhares policiadores da mãe, Althusser
pôde então interagir com os meninos de sua idade. Lembra-se principalmente de Michel
com o qual sempre se recusara a brigar fisicamente, pois jamais entrou em confronto
físico com alguém em sua vida – tinha o mesmo pavor que o sondava, o de ter o seu corpo
como, por exemplo, quando todos os meninos se jogavam sobre um outro, jogando-o no
chão, até que, então dominado, à força, abriam sua calça para colocar seu pênis à mostra.
Os meninos se divertiam com a cena, e Althusser relata que, embora em sua vez tenha
Em 1928, um inverno terrível atingiu o Morvan, e Althusser viveu pela primeira vez,
estabilizadora: “... era para mim a proteção suprema, o retiro na casa quente e abrigada,
que me protegia de qualquer perigo exterior – o mundo exterior sendo, ele mesmo, sob a
mesma neve que o cobria, garantia de paz e segurança – e a certeza absoluta de que sob
essa proteção leve de silêncio e paz nada podia me acontecer de mal. Tanto o lado de fora
Morvan não o chamavam por Louis Althusser, mas pelo nome do avô, Pierre Berger. É
pela lembrança do avô que Althusser reconhece a particularidade dos fatos apresentados
no texto de 1985: “... uma espécie de alucinação de meu intenso desejo. Aliás, faço
personagem avô – uma cena de processamento. Com o avô, Althusser aprendera “tudo”
como depósito de ferramentas e para armazenar cereais, Pierre Berger ensinou ao neto a
semear trigo, centeio, aveia, alfafa, e a moê-los em uma battoère. A “máquina de bater”,
cima expelia a palha e a parte inferior conduzia os grãos a sacos segurados pelos homens.
trigo, de sacos de juta, do suor dos homens, o avô tentava explicar o modo de
funcionamento da máquina para Althusser – “eu estava perto dele quando seu trigo corria
para dentro dos seus sacos: que esplendor e que comunhão diante do milagre do trabalho
e de sua recompensa” (p. 77). Com a chegada do almoço, os trabalhos eram interromp idos
e o cheiro dos homens suados, com um lenço vermelho no pescoço, invadia o local das
refeições, acompanhado dos cuspes, das risadas altas, dos palavrões e das obscenidades
(essas, ao que parece, quando entre homens, não horrorizavam Althusser, pelo contrário,
o entorpeciam).
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Ele podia circular entre os homens, mesmo que nenhum deles lhe dirigisse a palavra
ou lhe fizesse alguma objeção. Ainda era um fantasma, embora diga que se sentisse como
um deles ou que um dia se tornaria um homem como eles. Sucede a refeição, o repouso
verdadeiros homens transpirando suor, carne, vinho e sexo. E eis que me oferecem, cada
debochadas: o garoto vai beber? você é homem ou não é? E eis que jamais na vida tinha
bebido vinho, eis que bebo um pouco e sou aclamado. Depois, o canto renasce. E na
E eis que, após quase um capítulo inteiro descrevendo minuciosamente a cena da festa
da batedura, Althusser confessa: a jacquerie fora um sonho. O que nos interessa não é
tanto a natureza da lembrança, posto que a clínica nos aponta que a alucinação também
“homens verdadeiros”.
A partir de então, contra “o nome de um morto”, passa a pensar em outro nome, que
gostaria de ser chamado por Jacques. O J, um jato de esperma; o a, uma profundeza tal
como Charles, o nome do pai; ques, remetendo a queue (nome vulgar para pênis em
Jacques é o nome em oposição a Louis, o nome de um morto. “Seja como for, desde a
primeira infância fui brindado com o nome de um homem que não deixou de viver de
8
Jacquerie foi uma revolta camponesa que aconteceu no Norte da França, entre maio e julho de 1358, durante a Guerra
dos Cem Anos, em razão do desespero econômico que assolou as camadas mais pobres dos reinos europeus após a
Peste Negra. O nome advém da expressão idiomática francesa, Jacques Bonhomme, que em português equivaleria a
“zé-ninguém”. Em alusão à revolta, passou a denominar uma espécie de canto entoado pelos camponeses, em
comemorações realizadas após a colheita de grãos.
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amor na cabeça de minha mãe: o nome de um morto” (p. 55). É uma revolta camponesa
que recupera o lugar de um pai, no conjunto dos homens, e que abre a possibilidade para
Althusser então com doze anos, faz um amigo na aula de ginástica: Paul, cujos ombros
largos, mãos fortes e robustez chamam sua atenção. A mãe de Althusser permite que ele
frequente a casa de Paul, sobretudo depois que ambos entram para os Escoteiros da
que deveria revolucionar o mundo. Desde então, e mesmo após a partida de Althusser de
Marseille, trocavam cartas de apaixonados. Além disso, Paul defendia Althusser dos
outros garotos, já que tinha “medo de ter o corpo tocado para sempre”, medo de ser morto.
É nos escoteiros que Althusser descreve sua primeira crise depressiva, a partir de três
escoteiros, mas não consegue se impor perante um de seus colegas, que o agredia com
“provocações obscenas”. Por acaso, Paul passa mal durante uma trilha, e precisam se
os abastecia com comida. Durante a noite, Althusser dorme abraçado com Paul e tem uma
teve outra ereção, assim como no dia seguinte, quando Paul adoecera novamente do
intestino.
Paul então se apaixona por uma menina do grupo de escoteiro feminino. O caráter da
relação homoerótica vivenciada por Althusser nos permite evocar o mito de Narciso, o
belo homem que, sem reconhecer como sua a imagem refletida em um lago cristalino,
apaixona-se por esse homem, um duplo. Nesse sentido, pelo que torna evidente no caso
objeto, mas pertence ao núcleo da constituição paranoica do eu. Mais do que uma paixão,
Paul foi por certo tempo o duplo de Althusser, através do qual ele se realiza como sujeito.
“Doravante eu olhava aquela garota” – pela qual Paul se apaixonara – “como se a amasse,
e me entregava intensamente àquele amor por procuração. Eles iriam se casar mais tarde,
durante a guerra, em Luynes, a aldeia do pai de Paul onde tínhamos os dois passado, na
solidão, férias exaltantes... Mas a beleza e o perfil daquela moça haviam me marcado para
o resto da vida; digo bem, e se compreenderá: para o resto da vida” (p. 82).
Durante um verão, em Bandol, Althusser de deixa tomar por uma violenta paixão pela
filha de um amigo de seu pai, Simone, e que, segundo ele descreve, guardava o mesmo
perfil de rosto que o amor de Paul. Um dia, na praia, na ausência de audácia para acariciar
Simone, Althusser lhe joga sobre os seios um punhado de areia, que escorregava até a
região púbica; para se livrar da areia, Simone abria as pernas e sacudia seu maiô, em ato
que permitia a Althusser vislumbrar “um púbis peludo e preto, e, sobretudo, a fenda rosa
declara: “você tem dezoito anos, Simone, dezenove, é impensável, pois é amoral, tendo
em vista a diferença de idade, que aconteça alguma coisa entre vocês. Não era ´decente`!
Richard: “pelas razões que acabo de dizer, ligadas à minha própria imagem de mim e á
da mãe, e além dela, à imagem do tio morto: Louis”, ele afirma, “em realidade,
compreendi que ele representava uma imagem positiva daquela mãe que que eu amava e
que me amava, uma pessoa real com quem eu podia realizar aquela “fusão” espiritual que
se enquadrava no desejo de minha mãe, mas que seu ser “repugnante” me proibia” (p.
84).
Sr.Richard ocupa papel particular, pois fora ele quem convenceu Althusser a se
delirante, “o pai do pai”. Diante do sr. Richard, Althusser poderia ser um filho servil, que
o considerava um bom pai, mas também desempenhava o papel do “pai do pai” – solução
encontrada para sanar o que ele considerava um pai ausente: dar-lhe um pai imaginá r io,
professores, ser “o professor do professor”, não para lhes ensinar de tudo, mas para se
responsabilizar por uma função de autoridade, pela qual pudesse controlar, vigiar e punir
“Pai do pai” o que Althusser denomina de artifício, que para além da imitação da voz,
da letra e dos trejeitos de sr. Richard, possibilitava- lhe o poder de controla-lo, mas
também um lugar onde pudesse existir. “Em suma, uma impostura fundamental, esse
parece ser o que eu não podia ser: essa ausência de corpo não apropriado e, portanto, de
meu sexo. Compreendi então (tão mais tarde!) que, assim, eu apenas usava um artifíc io,
exatamente como um “burlador” usa para entrar num estádio (meu pai), para seduzir meu
professor e ser amado por ele justamente pelo jogo desses artifícios. O que se pode dizer?
43
Que, não tendo uma existência pessoal, uma existência autêntica, duvidando, de mim a
ponto de me acreditar insensível, sentindo-me por causa disso incapaz de manter relações
afetivas com qualquer pessoa, estava reduzido, para existir, a me fazer amar, e para amar
(pois amar comanda ser amado), reduzido portanto a artifícios de sedução e de impostura.
Se Althusser “não existia realmente”, ele só poderia viver enquanto um ser de artifíc io,
um morto que só poderia amar e ser amado a partir dos artifícios e imposturas que tomava
de empréstimo exatamente daqueles pelos quais gostaria de ser amado e os quais tentava
Seu corpo era um vazio com um conjunto de músculos a serem usados para a sedução,
de modo que, através desse amor artificial, poderia ter reconhecida uma existência da qual
sempre duvidara e ter sua angústia aplacada. A angústia invadia porque sempre fracassava
Ser “pai do pai”, embora um delírio bem constituído, fadado ao fracasso. Sendo o “pai
pais e os professores através do artifício de uma imitação tão perfeita, a ponto de poderem
nele se reconhecer, de nele identificarem o próprio reflexo, ele era um duplo. Ele poderia
O campo de prisioneiros
setembro é convocado para a guerra, da qual relata ter tido, desde pequeno, muito medo,
Sanbostel, no Norte da Alemanha, onde passou fome e foi submetido a trabalhos forçados
durante o frio. Como relata Althusser, ele conheceu “homens extraordinários” no campo
de prisioneiros, através dos quais pôde vivenciar uma sexualidade auto-erótica, a partir
tenente Zeghers, Althusser foi transferido para o hospital do campo, onde permaneceu
um número: 70670.
representada junto ás autoridades alemãs, por alguém que fosse eleito pelos companhe iros
produzir benefícios para o autor e para os homens: “com a condição de sabermos o que
queremos e dominarmos todo sentimento de culpa, em suma, de sermos livres” (p. 97).
9Nome dado durante a Segunda Guerra Mundial a campos alemães onde ficavam os prisioneiros de guerra
não-oficiais.
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dos pais e do universo escolar, os quais sempre foram contínuos para ele. Pela primeira
vez, não estaria sob o terrível domínio do “mais assustador de todos os aparelhos
ideológicos de Estado, que é, numa nação onde evidentemente existe o Estado, a família”,
relata Althusser, “por uma mistura atroz de medo, educação, de respeito, de timidez, de
culpabilidade, que me fora inculcada por quem? Por meus próprios pais, presos eles
mesmos e imobilizados como nunca na estrutura ideológica atroz para minha mãe e
também para meu pai, por menos que parecesse, e isso, para quê, então, senão para
inculcar numa criança todos os altos valores que são úteis na sociedade em que ela vive”
como o mais poderoso aparelho ideológico de Estado, como a quarta feriada narcísica da
humanidade (depois de Galileu, Darwin e Freud), pois, sendo a família o lugar genuíno
Ali no cativeiro, Althusser pôde entrar em contato com “homens maduros”, ou seja,
com adultos longe de suas famílias, de múltiplas nacionalidades, com os quais se permitiu
seus detalhes mais íntimos, o que lhe ensinou o que é ser um homem livre (embora ele
faça a ressalva, em seu texto, que considerasse aqueles homens econômica, social, política
e ideologicamente alienados).
“Viver unicamente o presente” permitiu dia após dia, mês após mês, por quase seis
reconhecer que me instalei bastante bem no cativeiro (um verdadeiro conforto, pois uma
verdadeira segurança sob a guarda das sentinelas alemãs e das cercas de arame farpado):
sem nenhuma preocupação com meus pais, e confesso que cheguei até a encontrar, nessa
vida fraterna, entre verdadeiros homens, o meio de suportá-la como vida fácil, feliz, pois
46
submetidos a todas as vexações das chamadas, das revistas, das corveias, tínhamos muita
fome no primeiro e no último ano, mas, como dizer, eu me sentia em segurança, protegido
Não apenas os arames farpados “enlaçavam”, mas a possiblidade de ser “o pai do pai”,
permitiu esse artifício, primeiro com dr. Zeghers e posteriormente com um “homem de
confiança”, Robert Daël, o da sedução. Com Daël, um homem de dois metros de altura,
carinhoso como uma “verdadeira mãe”, e corajoso para enfrentar os alemães, como
e uma “verdadeira mãe”. Ele se enamorou por Robert Daël, seu duplo, e assim
permaneceu até o final da guerra, quando o fizera prometer que jamais casaria, o que não
aconteceu.
que alguém que existia como um morto-vivo para desaparecer em um confiname nto.
Althusser tinha, como diz, “vocação de desaparecido”, e mesmo diante das tentativas de
A cada evasão de prisioneiro, toda a tropa permanecia em alerta durante quase um mês,
de modo que, quase sempre, o prisioneiro era capturado. Althusser acreditava que o meio
mais seguro de ter sucesso na empreitada seria simular uma fuga, para então, passado o
período de alerta, evadir. “ Tratava-se, pois, de desaparecer do campo para fazer crer que
o tínhamos abandonado, antes de fugir quando o alerta passasse. Para isso, bastava não
se evadir, mas desaparecer, ou seja, se esconder no próprio campo (o que não era
impossível) e dar no pé só depois, tempo (três semanas) para que fossem desativadas as
medidas de alerta. Em suma, descobrira o meio de fugir do campo sem sair dele! E,
47
portanto, ficar no cativeiro para dele escapar! Tendo preparado esse plano, não lhe dei
provas, não precisava passar à ação. Mais tarde, frequentemente pensei que essa
“solução” estava dentro de mim de longa data, unindo o medo do perigo e a necessidade
campo, marcado pela fome, o fez estocar, diariamente, uma fatia de pão e de linguiça
preta na cabeceira de seu colchão. No entanto, com o passar do tempo, ele só pode
mulheres. Reservar tal como sua mãe procurava reserva-lo diante de todas as fobias, as
sobretudo a ameaça do estupro. Tal como outras mulheres de sua época, Lucienne Berger
tinha por hábito guardar o dinheiro debaixo da saia, próximo ao genital, recordação essa
Embora Freud tenha nos apontado o caráter metafórico da equivalência fálica entre o
contiguidade entre dinheiro e púbico, esse remetendo ao órgão feminino, através da figura
estupro, e que, para se proteger, precisou reservar o seu dinheiro e seu sexo.
Tal como a mãe, enquanto “pai da mãe”, Althusser, também um mártir, deveria se
reservar, e tal como a mãe o reservara, reservaria Hélène. Reservar as mulheres diante da
angústia de um dia ser abandonado (que sempre o acompanhou), o que o fez, mesmo
casado com Hélène, a se envolver com inúmeras mulheres. Hélène é quem ele reservaria,
então a nova mãe-mártir: mulher dez anos mais velha, com quem perderia sua virgindade.
48
Hélène
momento sentiu-se incumbido de uma missão: “Desde aquele momento fui assaltado por
um desejo e uma oblação exaltantes: salvá-la, ajudá-la a viver! Nunca em toda a nossa
história e até o final desviei-me dessa missão suprema que não cessou de ser minha razão
de viver até o derradeiro momento”, porque naquele momento, Hélène e Althusser eram
“dois seres no auge da solidão e do desespero, que por acaso se encontram cara a cara e
sofrimento, de uma mesma solidão e de uma mesma expectativa desesperada” (p. 108).
Tal como os demais personagens de sua história, pelo que nos remarca Althusser,
Hélène é apresentada a partir das retenções de afetos, das alucinações e das construções
amamentá- la por falta de leite, jamais a pegou no colo; e “sempre a odiou” porque havia
parido uma menina ao invés de um menino. A mulher, em sua função de mãe, é mais uma
vez pavorosa, e Hélène, tal como Althusser, era uma criança-mártir, resistente a sucumbir
aos abusos de uma mãe que nunca pudera amar. Pela interpretação delirante, Hélène e ele
ocupavam a mesma posição frente às mães: “Hélène que como toda criança desejava sua
amada pela mãe e a quem tudo era recusado... teve de se identificar irrevogavelmente com
a pavorosa mulher que a odiava, e também com a imagem atroz que aquela mãe fazia da
filha: detestada porque recusada, escura e selvagem, pequeno animal rebelde impossíve l
de ser domesticado, sempre furiosa e violenta (sua única defesa) ” (p. 109). Para
49
Althusser, Hélène tinha esse fantasma de se tornar uma mulher injusta e cruel, espalhando
desgraça para todos que estivessem à sua volta, sem poder reagir contra isso.
Quanto ao pai, teve câncer, e Hélène, aos onze anos, passou meses tratando-o, pois, “a
Delcroix, com o qual ela mantinha relação de afeto, certo dia, abusou sexualmente de seu
corpo. “Ela ficou cuidando do pai, e foi a ela que o dr. Delcroix pediu, nos derradeiros
momentos de sofrimento do pai, que aplicasse nele a última injeção de altas dores de
morfina. Aquela menina pavorosa tinha pois, como que matado o pai que a amava e que
ela amava" (p.110). Passado um ano, a mesma situação se repetiu: a mãe teve câncer,
Hélène se prestou a cuidar e no último momento, dr. Delcroix receitou a injeção fatal para
ele aplicar. “Aquela menina pavorosa tinha, assim, matado aquela mãe que a detestava”
(p. 110).
Desde o fato, encontra-se uma lacuna nos relatos de Althusser, até a filiação de Hélène,
clandestinidade desde 1939, Hélène perde o contato com todos os membros e se muda
Certo dia, em fevereiro de 1947, Hélène, depois de meses de amizade, toma inicia tiva
e dá um beijo em Althusser que, surpreso, deixa-se tomar pelo desejo de transar com ela.
Eles assim o fazem, mas Althusser é invadido por uma terrível angústia após o ato sexual;
no dia seguinte, telefona para Hélène para avisar que nunca mais faria amor com ela. Algo
nada, mais forte do que todas as minhas resoluções e tentativas de reerguimento moral e
religioso. Os dias passavam e mergulhei nas primícias de uma intensa depressão” (p. 114).
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por “demência precoce”, e pela primeira vez, hospitalizado. Durante a internação, ele
chega à seguinte conclusão, e essa não seria a última vez: se ele estava doente, a culpa
seria de Hélène.
janela de um banheiro, já que não pudera receber visitas, Althusser decidiu que ela deveria
procurar outro médico, Julian Ajuriaguerra. Um dia, ele visita Althusser e conclui que
não se trata demência precoce, mas de uma melancolia gravíssima. Ajuriaguerra e Mâle
cada dois dias. Com o avanço do tratamento, Althusser era invadido por um temor terrível
de morrer, sempre que despertava do que chamou de “pequena morte”; passou a resistir
dormir e decidiu tapar os ouvidos com miolos de pão, até que um dia o grão penetrou o
canal auditivo e ele passou a se queixar de fortes dores no ouvido. Acreditando ser parte
de seus delírios, os psiquiatras não acolheram sua queixa, até que, três semanas depois,
Com uma estabilização do quadro depressivo, meses depois, Althusser tem alta e é
desinternado, em companhia de Hélène. Posteriormente, ele toma ciência por uma amiga
de Hélène que ela saíra grávida da única relação sexual que tiveram. Durante sua
internação, ela fizera um aborto na Inglaterra “para que ele não sofresse o martírio de
nova depressão depois dessa notícia, de tal forma ele havia manifestado horror atroz
Combloux. Quando de sua saída, encontra Hélène, e, hospedados em uma fazenda, fazem,
tal como ele descreve, um amor violento, sem “nenhuma moderação ou angústia ”.
51
Althusser “ se tornara um homem”, mas assim aconteceu porque estava ao lado de “um
homem”. “Eu tinha o incomparável privilégio de amar uma mulher (que me amava) de
imensas qualidades! Não é porque fosse mais velha, e sensivelmente, do que eu – essa
diferença nunca desempenhou nenhum papel entre nós, mas, no caso, sua lucidez, sua
coragem, sua generosidade e sua experiência, tão vasta e múltipla, seu conhecimento do
mundo, dos maiores pintores e escritores da época, suas atividades na resistência, onde
tivera inclusive importantes responsabilidades militares (ela, uma mulher, naquele tempo:
era um homem) ” (p. 120). Perto desse “homem”, oito anos mais velho, ele sentia-se mais
jovem, naturalmente, mas, principalmente, porque esse outro lhe era, ao mesmo tempo,
um pai e uma mãe – “mais velha do que eu, muito mais cheia de experiência de vida,
amava-me como uma mãe ama seu filho, seu milagroso filho, e ao mesmo tempo como
um pai, finalmente um bom pai, posto que simplesmente me iniciava no mundo real, esse
mundo infinito em que jamais pude entrar (salvo, e ainda assim, por efração, salvo no
cativeiro), ela me iniciava, também, pelo desejo que tinha de mim, patético, em meu papel
e na minha virilidade de homem: amava-me como uma mulher ama um homem!” (p.121).
Althusser só se casou com Hélène um ano após o falecimento do pai, o qual nunca a
como queria, ele procurou seduzi-la, tal como fizera com a mãe. Uma mãe “castradora e
estupradora”, mas que diante do marido era concebida como uma mártir, “uma chaga
aberta e viva”, cuja defesa Althusser tomara para si, desde mito cedo, como
Althusser, em uma angústia insuportável até seu regresso, coube a ele esse papel de ser
“homenzinho do lar”. Diminutivo esse utilizado para qualificar a sua incapacidade física
(era magro e pálido) e funcional (não era um “verdadeiro homem”) em assumir esse papel
pelo qual se imbuiu em sua interpretação delirante – se algo faltava em sua virilidade, era
52
Não uma impotência simbólica, mas vivenciada em seu corpo como castração real. “É
minha mãe, posto que ele não se dirigia a mim, mas por trás de mim a um morto, de existir
para mim e para o outro, particularmente para uma outra. Sentia-me como que impotente,
que se tome essa palavra em seu sentido mais amplo: impotente de amar, sem dúvida,
mas também impotente, primeiro em mim mesmo, e antes de tudo em meu próprio corpo.
É como se me tivessem retirado aquilo que poderia constituir minha integridade física e
alguém retira uma parte de você, que definitivamente fará falta à sua integridade pessoal”
(p. 125).
uma tentativa “forçada” de eliminar uma fimose que só viria a lhe fazer sentido anos mais
tarde. Em torno dos dez anos, ele passava boa parte do tempo a puxar a pele excessiva (o
prepúcio) de seu pênis, na “tentativa de despregar a glande”. Não é de se espantar que tal
“corrimentos”, invadia-se pelo pensamento de que havia sido infectado por uma doença
sexualmente transmissível, razão que explicaria sua impossibilidade de ter uma “ereção
completa”, ou seja, acompanhada por ejaculação. Certo dia, a mãe vigilante comunica o
pai e o tranca no banheiro com Althusser: de luzes apagadas, em silêncio, Charles tenta
“despregar” a glande do prepúcio, ao longo de uma hora, mas claro sem nenhum sucesso
Quando da saída do cativeiro, Althusser, repatriado para a casa dos pais, vê-se mais
uma vez invadido por essa “idéia fixa”, por essa certeza, de ter contraído uma doença
53
venérea, a qual poderia impedí- lo do sexo que o definia como homem, acompanhada pela
angústia de alguém “colocar a mão em cima”. “Como se faltasse a meu sexo alguma coisa
para ser um sexo de homem, como se na realidade eu não dispusesse de fato de um sexo
(p. 125).
real do corpo. Ela priva Althusser não apenas de ser um “verdadeiro homem”, mas do que
ele chama de “dom de amar”. Para amar, e em troca ser amado, a plenitude do sujeito não
pode ser ameaçada, e a ausência de contradição do inconsciente está a céu aberto: sujeito
que ama e objeto amado coexistem com o ser pleno – e o razoável é que na plenitude, não
homem pleno? A mãe, que a partir de suas fobias procurou controlar o seu corpo desde
pequeno, porque, tal como ele, era plena e apenas se defendia da castração que poderia
efetuar-se pelo roubo e pelo estupro. “Sim, fui castrado por ela, sobretudo quando
pretendeu me dar meu próprio sexo, gesto atroz que eu recebera como a própria imagem
de meu estupro por ela, como roubo e estupro de meu próprio sexo sobre o qual ela havia,
na realidade, “posto a mão” contra a minha vontade mais profunda, contra meu desejo de
ter um sexo meu, meu e de mais ninguém, que, sobretudo, ó obscenidade suprema, não
fosse dela – e por isso me sentia incapaz de amar, posto que ele fora usurpado, eu havia
sido tocado naquilo que minha vida tinha de mais intenso” (p. 126).
Deitados na cama, Althusser intuía seu desejo: quando ela lhe dizia “diga-me alguma
coisa”, não queria dizer outra coisa a não ser “dê-me tudo”. Dar tudo, dar um amor infinito
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capaz de salvar o outro, essa era a missão de Althusser – salvar Hélène do destino de se
Por ela, ele nutria os mesmos sentimentos ambivalentes que pela mãe, pois havia uma
razão na mãe estupradora que a tornava uma mártir. “Pobre infeliz, fez o que pôde, nada
mais, nada menos, pelo que acreditou ser sua felicidade e a nossa, na realidade por minha
infelicidade, pensando fazer o bem, ou seja, alinhando-se àquilo que lhe haviam ensinado
os calmos terrores de sua própria mãe na solidão das florestas selvagens da Argélia, e
diante da inquietação de seu pai” (p. 127). Uma mãe que violenta, mas que não pode
deixar de ser amada, e que deve ser salva da violência do mundo, tal como a mulher com
a qual Althusser tivera sua primeira relação sexual e que o conduziu à primeira internação.
Jamais tive a impressão de que Hélène tivesse pretendido “pôr a mão em cima” de
mim ou se conduzido comigo como uma espécie de mãe castradora, diz Althusser. No
entanto, sabe-se que a primeira relação sexual fora marcada pela violência, em que Hélène
deslizamento de posições, entre mãe-mártir, mãe estupradora, pai ausente, pai protetor,
Quando no encontro sexual, Hélène poderia ser a mãe que violenta, que abusa do corpo
do outro, e a Althusser caberia a recusa sexual e o silêncio, tal como o pai ausente, ou
então a mãe-mártir. No entanto, ocupar o lugar do pai que se recusa a responder “diga-
Era então o pai que poderia abandoná-lo, e ele, diante de uma mulher pai-mãe, não
55
encontrou outra solução a não ser manter casos extraconjugais: ele não poderia se deitar.
Mais do que um traço perverso, apresentava suas amantes à Hélène, para satisfazer seu
“desejo de não ser abandonado contra sua vontade e de ser protegido de tudo”.
Althusser mantinha assim uma “reserva de mulheres” com as quais sustentava, em sua
“ter idéias” por ele: declarações de amor. Como “detestava ser amado”, as crises
a três semanas.
que não fosse abandonado e que estivesse protegido do mundo, com as sucessivas partidas
“destino” e cair naquilo que eu desejava, realizar minha verdade, não mais existir,
desaparecer do mundo, em suma, ser hospitalizado, mas com essa segunda intenção
abandona para garantir que, pelos cuidados médicos, não fossem ais abandonado, e que,
como uma criança dependente, seria amada ser ter que dar nada em troca, obtendo assim
controle sobre o outro – uma certa teoria da onipotência, trabalhada em análise por
Althusser, e que lhe servira como uma muleta oportuna para se apoiar através de sua
doença. Nesse caso, ele não se diferencia de tantos outros pacientes psiquiátricos, que ao
intensa produção bibliográfica, como no outono de 1965, com a publicação de Por Marx
de Ler “O capital”. “Fui então acometido de um pavor incrível, diante da idéia de que
aqueles textos iam me mostrar totalmente nu ao mais vasto público: totalmente nu, ou
seja, tal como eu era, um ser inteiramente de artifícios e imposturas” (p. 133).
ser o pai do pai, acompanhadas de uma angústia terrível de ser castrado no real do corpo,
ou seja, da amputação: “... o medo de ser abandonado (por Hélène, meu analista ou algum
de meus amigos ou amigas), o medo de ser exposto a uma demanda de amor que sentia
insignificante, sem nenhuma existência a não ser a de seus artifícios e de suas imposturas,
e então todo mundo iria descobrir, às claras e deixando-me confuso, minha condenação
Pouco antes do verão de 1965, Althusser decide interromper a análise, para procurar
hipomaníacos que anunciavam novas crises depressivas, dado que os projetos grandiosos
estavam fadados ao fracasso. As agressões à Hélène iam desde submetê-la como cúmplice
57
qual iria apresentar manuscritos para análise. Ele comparece acompanhado com a
namorada, com a qual, a certa hora da noite, com Hélène, decide caminhar pela praia.
Hélène, que não aprendera a nadar, observa da areia Althusser e a mulher convidada se
puxados pela correnteza, deixando Hélène desesperada. Quando conseguiram nadar com
esforço e retornar à praia, ela já havia sumido e fora encontrada distante dali apavorada,
agressividade: “Você é nojento! Você está morto para mim! Não quero mais vê-lo! Não
aguento mais viver com você! Você é um covarde, um safado, desapareça! ” (p. 141).
filosofia marxista na França, a partir de sua missão de se tornar “o pai do pai” – “os
maiores filósofos nasceram sem pai e viveram na solidão de seu isolamento teórico e no
risco solitário que assumiam diante do mundo. Ora, não tive pai, e brinquei
indefinidamente de ser o “pai do pai” para me dar a ilusão de ter um, na realidade, para
atribuir- me o papel de um pai em relação a mim mesmo, já que todos os pais possíveis
devia, pois, tornar-me também meu próprio pai. E isso só era possível conferindo- me a
função por excelência do pai: a dominação e o controle de toda situação possível” (p.
153).
58
Segundo Althusser (1992), a filosofia é a ciência que abarca tudo e que se debruça
sobre o Todo, visando o seu controle; o Todo inclui o próprio sujeito pensador, ou seja, a
singular. O desejo próprio de Althusser seria esse descolado do destino do desejo materno,
um desejo de morte. Seria esse o estatuto do desejo na psicose: ter o desejo de um desejo
delirante, de ser o pai do pai. No entanto, uma passagem se efetua, via simbólico, no
movimento de retorno ao pai, Marx. Frente à derrocada socialista com Stalin, pelo que
políticas, e ideológicas, lhe eram sagradas. Dentro do Partido Comunista, esta missão se
realizou via construção da teoria dos aparelhos ideológicos, sendo a ideologia a realidade
imaginária de controle.
continuaria a ser o velho pai fundador, sendo função de Althusser pensar em seu lugar o
que ele deveria ter pensado, ou em outras palavras, ele poderia então ocupar o lugar do
pai mítico, e apoiando-se em sua autoridade, poderia exercer uma força singular dentro
do próprio Partido.
O encontro com Marx foi através de um corpo: “... porque me permitiu viver, pela
crítica da ilusão especulativa, uma autêntica relação com a realidade nua e, também, poder
viver doravante essa relação física (de contato, mas especialmente de trabalho sobre a
próprio materialismo” (p. 191). Althusser resolve pela via do marxismo um conflito entre
política.
materno que se reflete e na qual Althusser se vê refletido pelo olhar. “O olho é passivo, à
distância de seu objeto, do qual recebe a imagem, sem ter de trabalhar, sem engajar o
distância do olhar, utilizada nos relatos voyeristas do cativeiro, nas relações platônicas,
era esse recurso de proteção contra o desejo mortífero do Outro, mas também o que de
maneira onipresente e onisciente fazia de Althusser uma criança privada de seu corpo e
O desejo especulativo era o que invadia Althusser pelo pavor de se envolver em brigas
quando garoto e que o impedira de se masturbar até os vinte e sente anos de idade. Um
desejo que instituiu um corpo despedaçado, vazio, cuja sexualidade auto-erótica era
vivenciada por uma exterioridade, através dos odores das flores, das frutas, dos
cogumelos e da putrefação dos animais mortos, bem como do suor dos homens
companhia de meu avô nos trabalhos físicos dos campos e no campo de prisioneiros! Que
se pudesse assim tornar a dispor de seu próprio corpo, e retirar dessa apropriação
60
elementos para pensar livre e intensamente, portanto, pensar com seu corpo, em seu
próprio corpo, por meio de seu corpo, em suma, que o corpo pudesse pensar” (p. 194).
A relação conturbada com Hélène era atravessada por esse conflito, entre o desejo
especulativo, e o desejo prático real, sendo a passagem ao ato esse momento evanescente
do desejo prático real, quando assassiná-la vem a barrar o ideal teórico/desejo materno,
para dar lugar ao sujeito desejante: reconquistar pelo corpo o desejo de ter uma existênc ia
própria.
61
Em 1979, embora Althusser relate que tenha “de fato” compreendido, em sua análise,
que Hélène não queria “pôr a mão em cima dele”, nem ter “idéias sobre ele”, as
dificuldades em dar aulas aumentavam e dedicava boa parte de seu tempo a um projeto
com o qual Althusser objetivava realizar um estudo comparativo entre o movime nto
esôfago, o que passou a prejudicar a deglutição. Após uma endoscopia, foi diagnosticada
uma hérnia do hiato e a recomendação foi cirurgia imediata. Por duas vezes, a operação
fora marcada, mas Althusser desistiu por conta de um pavor angustiante de que a anestesia
médicos, na terceira tentativa – a operação foi bem-sucedida, mas após o efeito de uma
anestesia profunda, acordou tomado por uma angústia insuportável. “Essa anestesia e a
primeira angústia jogaram-me pouco a pouco numa nova “depressão” que, pela primeira
vez, não mais parecia neurótica e “duvidosa”, não declarada, mas uma melancolia aguda
totalmente clássica, cuja gravidade alertou seriamente meu psicanalista: “Pela primeira
vez, a meu conhecimento”, disse-me mais tarde, “você apresenta todos os sinais de uma
suas partidas, invadia-se por certos pensamentos: ela retornava sozinha para casa,
telefonemas, noticiar os amigos a respeito de seu estado, sem que lhe perguntassem sobre
sua “miséria moral”, ou seja, era ela quem não existia mais. Pela primeira vez, Althusser
suicida tornava-se cada vez mais frequente. Instalava-se um quadro catatônico, com
médicos. Embora desde o princípio de seu texto colocasse em dúvida o caráter dos fatos,
ora tal como ocorreram, ora pelo delírio, pela primeira vez, ao longo da obra, Althusser
atrozes pesadelos, que se prolongavam por muito tempo no estado de vigília, e eu “vivia ”
meus sonhos em estado de vigília, ou seja, agia segundo os temas e a lógica de meus
sonhos, tomando a ilusão de meus sonhos por realidade, e era então incapaz de diferenc iar
perseguição suicida. Pensava com intensidade que uns homens desejavam minha morte e
se preparavam para me matar: especialmente um barbudo que devo ter avistado em algum
lugar da clínica, mais que isso, um tribunal estava instalado no quarto ao lado para me
condenar à morte; mais ainda, homens armados com fuzis de luneta iam me matar
condenado à morte e iam irromper em meu quarto de dia ou de noite” (p. 220-221). O
delírio suicida seria uma solução diante da sentença de morte e da ameaça de execução ,
enquanto uma antecipação do desfecho trágico. O suicídio varreria não apenas sua
existência, mas seria preciso apagar todos os vestígios da mesma: destruir todos os seus
Embora o quadro clínico não fosse favorável, após ajustes na medicação e uma
aparente estabilização, Althusser é desinternado. Após dez dias de viagem pelo sul da
lugar para morar e enquanto não aconteceu, impôs um regime de silêncio, em que ficava
fora de casa o dia inteiro e quando acontecia de não sair, isolava-se em seu quarto, para
não encontrar Althusser. Aconteceria o que sempre temeu: Hélène iria abandoná-lo.
se assegurar na certeza, um tanto incerta, de que Hélène jamais o deixaria. Além disso,
embora o delírio suicida se tornasse mais frequente, tal como a resolução de assassiná- la,
inconcebível – é o outro quem quer se matar. Hélène teria tomado uma decisão
irrevogável, declara Althusser: iria se matar, tomando remédios, ou tal como Nikos
Poulantzas, iria se jogar do último andar da torre Montparnasse. “Aí também, surdamente,
eu pensava que ela seria incapaz de se matar. Dizia-me que tínhamos exemplos demais
em nossa vida, e que no fundo, ela gostava muito de mim, me amava com um amor tão
visceral que seria incapaz de passar à ação. Mas ainda aí eu não estava absolutame nte
seguro. O auge ocorreu num dia em que simplesmente me pediu para matá-la, e essa
palavra, impensável e intolerável em seu horror, fez todo o meu ser estremecer
64
longamente. Isso seria para de certo modo me comunicar que ela era de fato incapaz não
Salvo o analista de Althusser com o qual ele e Hélène se encontravam, ao período que
se sucedeu, não se encontravam com mais ninguém, não atendiam ao telefone nem a quem
favoráveis para sua melhora, e seu analista teria recomendado o Vésinet, que poderia
recebê-lo dentro de dois ou três dias. Já seria tarde demais, a resolução do delírio suicida
estava efetuada. “No domingo 16 de novembro às nove horas, tirado de uma noite
pescoço, com a sensação intensa de que meus antebraços estavam muito doloridos:
evidentemente, aquela massagem. Depois compreendi, não sei como, a não ser pela
imobilidade de seus olhos e daquela pobre pontinha de língua entre os dentes e os lábios,
que ela estava morta. Saí então correndo de nosso apartamento, berrando, em direção à
enfermaria onde sabia que encontraria o dr. Étienne. O destino havia se cumprido” (p.
224).
PARTE II
A foraclusão do Nome-do-Pai
66
Em Totem e Tabu (1913), Freud se utiliza do mito da horda primitiva para tratar da
instauração das relações sociais entre os homens, instauração essa efetuada a partir de
uma lei. O mito é uma via do que Freud chamará de Complexo de Édipo, o qual será
retomado por Lacan a partir de uma releitura conduzida pelo conceito de estrutura, forjado
simbólicas, ou seja, são mediadas pela linguagem, de modo que a passagem da natureza
dessa lei, é o momento em que a natureza ultrapassa a si mesma, já que não pertence
(a cultura). Mesmo que apresente graus de variação, está presente em todas as sociedades,
mas também é uma regra que está, ao mesmo tempo, no limite da cultura, na cultura, e
Veremos que Lacan irá articular essa lei com o processo de substituição significante e
dos laços sociais entre os homens. Sobre essa questão, do lugar da lei e do crime, que é o
Nesse momento, cabe salientar que, na passagem da natureza para a cultura, o laço
sanguíneo se ressignifica como aliança, de modo que, nesse novo domínio, é o próprio
67
homem que conquista e reconhece o outro. Saindo da posição de macho que detém o
poder sobre as fêmeas ao seu redor (a mãe, a filha, a irmã), assume o posto de um dentre
tantos homens que tem acesso às outras mulheres. No posto deixado, reconhece-se o papel
de outro homem, o pai, o qual assumiu, por conseguinte, o posto de outro pai. (Levi-
Strauss, 1948).
estabelecem por metonímias e metáforas, produzindo como efeito uma nova significação.
“Não sem razão, o termo Complexo de édipo veio a ser utilizado para denominar
a articulação teórica das proposições e conceitos que, em Psicanálise, constelam a
importância fundamental do desejo inconsciente, da sexualidade, da lei e das fantasias
na vida psíquica dos seres humanos, dado que a tragédia de Sófocles há séculos
emociona e fascina pessoas de tempos, lugares e culturas diferentes, com sua trama
envolvendo desejo incestuoso, interdito e transgressão” (p. 114).
teoria que se diga atomista (que considere o fenômeno psíquico isoladamente, em relação
ao conjunto mental do indivíduo), refutando o que seria uma oposição entre o que é
subjetivo e o que estaria no coletivo. Lacan (1956), define a estrutura como um grupo de
pertencem tais elementos; em outras palavras, o fenômeno psíquico não pode ser
Lacan procura então redefinir o caráter universal do Complexo de Édipo, não pela
realidade objetiva de seus elementos (pai, mãe e criança), mas a partir da posição e da
paterna, o que permite à criança aceder à posição de sujeito desejante. Comparece o Pai
irmão) que se associam ao significante da lei para a criança – “minha mãe não vive em
função de mim!”.
esse Outro como o “tesouro dos significantes” que antecede o sujeito. O significante cinde
69
diante do Real, caracterizando a realidade humana simbólica. No entanto, para que essa
realidade seja estruturada via simbólico, é preciso que o objeto causa do desejo caia pela
da estrutura psicótica.
70
A relação especular
Freud deixa preparado o terreno das posições da trama edípica, sob o qual Lacan irá
“... trata-se sempre de apreender aquilo que, intervindo no exterior em cada etapa,
remaneja retroativamente o que foi iniciado na etapa anterior. Isso, pela simples razão
de que a criança não está só. Não apenas ela não está só devido a seu meio biológico,
mas existe ainda uma esfera muito mais importante, a saber, a esfera legal, a ordem
simbólica. São as particularidades da ordem simbólica, frisei de passagem, que dão, por
exemplo, sua prevalência a este elemento do imaginário que se chama o falo.” (LACA N,
1956, p. 204)
Sendo o falo como significante que baliza a dialética edípica, via ser/não ser e ter/não
significante (pai, mãe, criança, falo) que o sujeito se institui frente à castração.
substituição significante, o significado do desejo da mãe (que pode ser qualquer coisa, x),
dá lugar ao falo. Ou seja, ao longo da dialética edípica, a criança não se percebe como
Ao escrever uma história qualquer, um autor não poderia descrever que lugar, de fato,
cada personagem ocupa dentro de seu enredo. Enquanto autor, ele está na posição de
todos os seus personagens. No caso de um ator, este poderá nos dizer sobre seu
71
personagem, mas pouco saberá sobre os demais e nada poderá falar sobre o efeito de sua
A história original é apenas a do autor: cada vez que for interpretada será uma versão.
Aos poucos se tece um saber, saber esse inconsciente a respeito dessa história, a cada
o falo só ganha lugar como tal nesse saber que se tece em cada ensaio, em cada revivênc ia.
Enquanto na trama edípica, o sujeito imagina que ele ocupa uma posição privilegiada no
desejo da mãe, de modo que a entrada do terceiro o faz pensar que há algo que interessa
à mãe, que ele pode ter, que o pai pode ter, ou que nenhum dos dois tem a posse.
De fato, em termos didáticos, muitos analistas têm localizado o primeiro tempo edípico
como a identificação da criança ao falo materno. Isso não está incorreto, desde que a
dialética fálica não seja reduzida a uma perspectiva desenvolvimentista. Lacan procurou
do eu (1949), ele já assinalava a “passagem pelo espelho” como entrada da criança nas
de um discurso próprio. Desde os primeiros meses de vida, incidem sobre ela (a criança)
nome, na preferência por um dos sexos, pela decoração do quarto do bebê, etc. O que
sugere que a criança nasce com um corpo que não é dela, mas que se refere a uma
produção conjunta dos inconscientes de seus pais, de modo que a conquista de um corpo
marca o corpo que está em sua posse e se constitui como matriz simbólica.
corpo uma descarga motora que se segue a uma grande excitação interna. Todas essas
manifestações serão significadas pelo Outro como algo além de um mero corpo – sempre
que a criança chorar, a mãe toma esse choro como endereçado a ela, em uma posição de
suposto saber (como se ela soubesse a verdade daquela criança). Ao se prontificar a esse
papel, essa mãe adjetiva seu filho: se come demais é guloso, se chora demais é chato, se
não quer dormir é teimoso; a cada apelo a mãe coloca um sentido ou uma palavra que
ainda não existem. Sempre que o Outro entrar com comida, o ninar, ou um carinho, ele
“... quando uma criança grita, existe uma situação total que compreende a mãe, o
grito, a criança. Por conseguinte, estamos aí em plena teoria da comunicação: a criança
chora e a mãe recebe o seu choro como um sinal, um sinal da necessidade. [...] Como
mostra o que Freud valoriza na manifestação da criança, o grito de que se trata não é
considerado como sinal. Trata-se do choro na medida em que ele convoca sua resposta,
73
que faz apelo, se posso dizê-lo, sobre um fundo de resposta. O grito se produz num
estado de coisas onde não apenas a linguagem já está instituída para a criança, mas esta
já está imersa num meio de linguagem, e é a título de par de alternância que ela
compreende e articula seus primeiros balbucios”. (LACAN, 1956, p. 192).
Nessa relação, a mãe não satisfaz apenas as necessidades do bebê, mas incide sobre
ele seu desejo, de modo que tudo o que a mãe significa para a criança é feito de acordo
com sua própria história de desejo. Pela criança, o desejo materno é traduzido através dos
olhares, do jeito de pegar, da entonação da voz, por todos aqueles traços em que ela poderá
reconhecer um lugar e uma imagem referentes a si, o que se constituirá na matriz do eu-
primordial.
mamada. Ao que parece, Freud mais procura exemplificar do que conceituar essa
investiu, libidinizou, usou seu corpo, lhe dando um “a mais” que ficou marcado como
traço mnêmico.
“... se produz a relação com a imagem do outro, que dá ao sujeito a matriz em torno
da qual se organiza para ele o que eu chamaria de sua incompletude vivida: a saber o
fato de que ele está em falta. É com relação a esta imagem, que se apresenta como total,
não apenas preenchedora, mas fonte de júbilo em razão da relação específica do homem
com sua própria imagem, que este realiza que algo pode lhe faltar. É na medida em que
imaginário entra em jogo que, sobre os fundamentos das duas primeiras relações
simbólicas entre o objeto e a mãe da criança, pode aparecer que, tanto à mãe quanto à
ela, algo pode faltar imaginariamente”. (LACAN, 1956, p. 179)
74
Diferente de um animal, que ao amamentar visa aplacar somente a fome de seu filhote,
ao dar o peito, a mãe subverte aquele pedaço de carne – seu bebê. Ao amamenta- lo, a mãe
estimula um prazer na boca, ao limpar seu cocô estimula um prazer anal. Sempre diante
de algo que ela acredita que a criança demanda, ela dá lago a mais – a criança pode nada
O ser pulsional emerge por conta dessa torção no campo da necessidade instintual, de
uma satisfação imediata via um objeto fixo – a pulsão se inscreve no campo do “a mais”,
pulsional, o bebê não busca mais apenas o alimento ou um objeto de sucção, e sim ser
aquele objeto que produz alterações no gozo materno – o falo materno (dá a barriga, dá o
unificada no olhar do Outro, que lhe endereça um lugar; no entanto, a imagem no espelho,
ao mesmo tempo em que se refere ao sujeito, ela não o é: o outro é apreendido tanto como
cópia, quanto como alguém que com ele rivaliza. Segundo Quinet (2009b), isso atribui
está sempre acompanhado pelo outro (a-a´), tal como podemos observar no esquema L:
75
não nos deixa sem a razão disso. A experiência especular conduz o sujeito a viver uma
relação de dependência de outra ordem, não para nutrir ou confortar, mas para dizer quem
ele é – na ausência do Outro, seu corpo se esfacela. Nesse sentido, o sujeito já nasce
“Pois bem, digo que a criança se esboça como assujeito. Trata-se de um assujeito
porque, a princípio, ela se experimenta e se sente como profundamente assujeitada ao
capricho daquele de quem depende, mesmo que esse capricho seja um capricho
articulado”. (LACAN, 1957, p. 195).
Lacan nos diz, em outras palavras, que há a questão do Outro, mas que não está
semelhantes, o eu e o tu.
“A palavra falada os transforma, dando-lhes uma certa justa relação, mas – e é sobre
isso que quero insistir – uma distância que não é recíproca. Com efeito, o eu não está
nunca ali onde ele aparece sob a forma de um significado particular. O eu está sempre
ali na qualidade de presença sustentando o conjunto do discurso, no estilo direto ou no
estilo indireto. O eu é o eu daquele que pronuncia o discurso. Tudo o que se diz tem sob
si um eu que o pronuncia. É no interior dessa enunciação que o tu aparece.” (LACA N,
1956, pg. 310).
ciência freudiana, o sujeito do inconsciente, como isso que conduz o que se fala. No
simples divisão entre consciente e inconsciente. O que parece caro, nesse momento, no
77
que toca a clínica das psicoses, e isso está claro em Althusser, sobretudo naquilo que
nomeia por desejo especulativo, é que sem o velamento fálico, o qual se processa na
encontra-se exposto.
pai?
Nesse sentido, o pai é um operador clínico, designado pelos registros - real, simbólico
e imaginário – que segundo Porge (1997) definem a adoção por Lacan da preposição
No entanto, Nome-do-Pai não é um nome próprio, como possa sugerir o termo, embora
se refira a essa personagem o pai. Temos então uma questão de nomeação: é um nome, e
como já trabalhamos, um nome aponta para uma inscrição geracional, para uma
concomitante, a incidência paterna a partir de duas vias: uma a que demarca sua
evanescência e opacidade, e outra que a articula com a tríade simbólico, imaginário e real.
Porge (1997), nos diz que Lacan nos impõe três questões: a) se o Nome-do-Pai se resume
simbólico e imaginário.
Pode-se observar na tabela que o pai simbólico se encontra excluído, exatamente por
seu caráter de irrepresentabilidade, já que está associado à construção mítica do pai morto,
se encontra na ordem do ser; o pai aparece então, primeiro como o falo rival, e depois
como aquele que possui o falo. Pela relação significante a criança nomeia o desejo mãe
referindo-se ao pai simbólico. Esse que detém o interesse da mãe porta uma lei: não
apenas deseja a mãe, mas esta também está submetida ao seu desejo.
língua, inaugurada pela designação simbólica efetuada pela criança do objeto perdido – é
preciso renunciar, matar a mãe, para então desejá-la na palavra: “Mãe!”. Recalca-se (S1 ),
novo significante (S2 ), o que faz com que o significante anterior seja atravessado pela
subjetiva do pai, do lado do adulto, para então nos seminários seguintes dirigir-se para
quem um pai pode funcionar, a criança. Ambos os pontos de vista são intrínsecos e esta
Na metáfora paterna, o pai é apresentado como portador da lei, mas sobretudo, como
substituição significante é produzido pelo significante fálico, (s). S [1/s] aponta para a
sujeito para um outro significante, e a significação atinge o sujeito, vinda do Outro, como
do pai, a partir de uma resolução neurótica, compreensão para qual Porge (1997) evoca
Canguilhem:
para então instituir uma nova versão – père-version – em relação à norma do desejo
materno. O Édipo é uma resolução possível, uma dentre outras, que em seu núcleo opera
veremos que a incidência do significante sobre o sujeito irá operar a partir de outras
coordenadas.
significante primeiro, S1, já que não se operou o recalque. Sob a ausência do Nome-do-
gozador implacável, já que o psicótico se coloca como o objeto que tampona a falta do
Outro. O psicótico se encontra sob um gozo infinito pois o Outro também goza sem
Uma leitura cuidadosa desse texto, que não é das mais agradáveis, nos permite concluir
uma negação, ou seja, para que algo possa ser negado, é preciso que antes tenha sido
pelo recalque é material desconhecido do sujeito, a ponto de poder ser verbalizado por
Desse modo, para que um conteúdo seja recalcado, Verdrängung, é preciso que o
objeto tenha sido inscrito em termos simbólicos no aparelho. A Behajung seria uma
simbólico.
Operação
Behajung
Verdrängung (recalque)
Verneinung (negação)
objeto da ação, por algum momento, circulou por dentro do aparelho: só podemos
expulsar algo que estava dentro, ou eliminar o que já fora internalizado. Nesse sentido, a
distinção entre a Ausstossung e a Verneinung ainda não é, digamos, muito clara em Freud.
Lacan efetuará um outro tipo de distinção. No seminário de 1956-1957, ele afirma que
as psicoses demonstram que há uma etapa desse processo de simbolização que não foi
finalizada - e ele é preciso -, o que não implica uma “falta de Behajung”, mas que apenas
uma parte da inscrição simbólica não se efetuou. Afirmar, desculpe o trocadilho, que não
houve Behajung, que todo o processo de simbolização fracassou, seria supor que não há
campo psicanalítico.
Desse modo, não se poderia dizer que não há simbolização na psicose, ou que não há
ser atormentado pela linguagem. Para explicitar tal constatação clínica, Lacan conduzirá
a leitura de A negativa por uma outra via: fará uma articulação entre Behajung e
primordial.
Verwerfung
significante).
Pela Verwerfung, o destino do que é expulso é diferente daquilo que é inscrito, mas
essa expulsão não se efetua no simbólico, e, portanto, não retorna no simbólico: trata-se
de uma expulsão do simbólico que retorna no real. O aparelho simbólico do sujeito está
constituído, mas o significante expulso pela Verwerfung retorna no real, o que, à primeira
leitura lacaniana mais radical nos permite supor que, o que Freud nos indica é que há dois
inscrito ou expulso.
não ambas as coisas. Caso seja inscrito no simbólico, teremos a resolução neurótica ou a
perversa; caso seja expulso, teremos a trilha psicótica. Não se pode ser neurótico e
parcial.
Pode-se dizer que Lacan trata da constituição do aparelho psíquico a partir de duas
Segundo Lacan (1963), não há estrutura subjetiva em que o Outro seja consistente,
simbólico – algo sempre fica de fora. É preciso que algo seja expulso, e não é exatamente
um significante.
86
paterna, a qual recobre a perda de objeto por uma significação fálica; a perda de objeto
Isso também não permite dizer que não há desejo na psicose. Não entraremos no mérito
dessa questão, que ainda mobiliza consideravelmente muitos psicanalistas que atuam em
saúde mental. O que vale dizer é que tomaremos como via que há desejo na psicose, mas
ao registro do real, não apenas da ordem do significante, mas também do lado do objeto.
OPERAÇÃO
Behajung Ausstossung
Psicose
(Recalque) (Denegação)
Neurose Perversão
Formações do inconsciente
Verneinung Alucinação
Retorno do Retorno do
recalcado desmentido
SIMBÓLICO REAL
Lacan trabalha com muita dedicação aquilo que ele denominou por face real do
como observamos no que nos diz Althusser, um analista não opera sobre a foraclusão :
nos resta, como formação do inconsciente a céu aberto, os efeitos da expulsão do Nome-
etimológica no alemão arcaico, designava o ato de expulsar algo ou alguém para além
foraclusão não guarda apenas essa referência, mas remete ao campo jurídico, no qual
demarcavam.
Comumente, os leitores de Lacan, dos mais desavisados aos mais experientes, traduzira m
tal processo equiparando-o ao que seria seu equivalente no Código Penal Brasileiro, a
termo preclusão, mas que não se refere ao campo penal, e sim aquele do Direito Civil.
ação, em virtude do decurso de um certo período de tempo, e que pode ser suspensa ou
interrompida de acordo com condições previstas pela lei. Além disso, o Código Penal
89
toma o lugar de futuro pela antecipação de um limite foracluído, “para além do qual será
impossível retornar”.
descrever eventos que poderiam ter acontecido no passado, mas que não ocorreram. Ao
nível do discurso, a foraclusão é uma ação de nomeação que suprime o limite temporal,
Althusser, reafirmando a determinação inconsciente de seu crime. “Se ele tivesse sido
logo internado, não teria matado Hélène” – aqui não se admite nem a condição,
O Código Penal Brasileiro não parte de uma legislação penal, mas retira seu atributo
em virtude do poder conferido aos donatários, a partir das cartas de doação. Havia
generalizada, com pena de morte e outras sanções cruéis baseadas na violência física. A
1830, o imperador sanciona o Código Imperial Criminal, o qual apresentava influênc ias
o que ampliou o lugar da psiquiatria como instância de controle social (PERES e NERY
FILHO, 2002).
que seria facilmente identificável a partir de distúrbios anatômicos; o crime seria uma
tratamento tutelar. Para Garofalo, por exemplo, a periculosidade deveria ser o fundame nto
social.
“Na linha da corrente positiva, defende também a pena indeterminada, com fim
condicionado à regeneração do condenado. Isso porque, se a pena tem por objetivo a
correção do culpado, tal correção não pode ter prazo previamente fixado, consoante a
espécie de delito praticado. A pena, nessa concepção, nada mais é do que o remédio
destinado a propiciar a adaptação do réu à sociedade, e o delito, por via de consequência,
é a falta dessa adaptação, em virtude de uma anormalidade moral do criminoso, que
pode ou não ser incurável” (DUEK MARQUES, 2008, p. 112).
a classe das monomanias é estabelecida por Esquirol, dentro do campo da psiquiatr ia,
§2. Os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o
crime” (Código Imperial Criminal, apud. PERES e NERY FILHO, 2002, P. 337).
loucura, esta ainda era marcada como lugar de desrazão. Diante desse grupo amplo mas
93
distinto, “loucos de todo o gênero”, o poder jurídico ainda não carecia de um saber
científico para assegurar seu controle, de modo que o juiz era a única figura capaz de
criminoso”, orientado por interesses econômicos e pelo art.12 do Código Imperial: “Os
loucos que tiverem cometido crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou
Segundo Peres e Nery Filho (2002), os mais abastados eram destinados à tutela
familiar, enquanto que os “loucos pobres” eram lançados à situação de rua, “oferecendo
perigo” à sociedade; alguns desses indivíduos eram então destinados pela polícia às
quando os alienistas passaram a se opor ao controle estatal via Direito Penal, na tentativa
excessivo do juiz, o qual não estaria totalmente qualificado a avaliar o estado mental do
louco criminoso.
Segundo, ao lado do campo jurídico, houve uma convocação dos psiquiatras para
atuação nos tribunais, no caso dos crimes imotivados. Diante dessa tensão, de um lado o
mental, bem como seu destino institucional (PERES e NERY FILHO, 2002).
crimes imotivados.
atuação do psiquiatra.
“Art.1. Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido qualificado criem,
nem com penas que não estejam previamente estabelecidas.
§3. Os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absoluta mente
incapazes de imputação;
Segundo Foucault (1975), a questão que passa a se impor ao juiz não é mais em relação
ao crime como fato, mas a quem o comete: com a intervenção da medicina psiquiátr ica
ato criminoso e para tanto, são relegados simbolicamente para fora do âmbito penal, ao
campo psiquiátrico.
todos que não tivessem a possiblidade de, via consciência, agir livremente quando na cena
criminosa – por sonambulismo, epilepsia, delírio febril, hipnose e/ou estado de total
embriaguez.
Atribuiu-se ao louco um caráter moral: os loucos são os mais perigosos, inimputáve is,
projetos foram apresentados para alterar o Código Penal, desde a Primeira República, mas
“Art. 1. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal.
sofrido algumas modificações desde então, como por exemplo, a Reforma Penal de 1984
“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardo, era, no momento da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito
do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. (Art. 26, Código de Processo
Penal Brasileiro, 2000, pg.17)
Segundo Peres e Nery Filho (2002), temos então uma contradição no Código, em que,
PARTE III
A Regra do Jogo
98
O vigésimo terceiro capítulo de “O futuro dura muito tempo” é o único a ser nomeado:
juiz. Althusser apresenta uma defesa propriamente dita sobre seu ato, sem, no entanto,
procurar livrar-se da responsabilidade – é sua confissão de que matara Hélène (fato que
nunca negara). O texto é atribuído a um médico amigo do casal, como uma resposta à
pergunta de Althusser que não lhe cessa de não se escrever: “O que afinal aconteceu
naquele domingo 16 de novembro entre mim e Hélène, para se chegar a esse assassinato
que se prolonga ao longo de toda a obra (que sei eu?), permite-nos atribuir as teses de
que Althusser estava em estado de demência: antes e durante o ato, a confusão mental e
poderia apreciar o caráter ilícito do ato, ou seja, de acordo com o Código Penal Francês,
era irresponsável.
físico em nenhum dos cômodos do apartamento e a autópsia não identificou nenhum sinal
Terceira tese, o suicídio por pessoa interposta. Hélène e Althusser estavam sozinhos
no apartamento, ninguém poderia intervir, mas ela não esboçou nenhuma defesa também.
Ele estava desfavorecido, porque o estado de confusão mental também lhe acometia
99
fisicamente, e, com fraqueza física, Hélène poderia contê-lo com um simples tapa. Vendo
a iminente possiblidade da morte, Hélène nada fez e deixou-se matar por Althusser. Ele
teria atendido seus suplícios e realizado seu desejo de acabar com a própria vida, não
apenas a dela, mas também a sua – “suicídio por pessoa interposta” ou “suicídio altruísta ”.
Todas as teses são parcialmente aceitas ou refutadas. Este indicativo que denuncia a
autoria de Althusser, que sei eu?, nos diz que nada de absolutamente seguro se saberá a
respeito da cena do crime. Que sabe Althusser de seu ato cometido? Nada, ou melhor,
quase nada.
Poderia ser exigida de Althusser uma outra conduta? Diante da solicitação de seu
aceitasse o pedido de Hélène? E se uma carta escrita pelo analista, pedindo que Hélène o
procurasse com urgência para tratar da internação imediata tivesse sido entregue no
Hélène tivessem respondido aos telefonemas dos amigos, ou à campainha que tocava? E
Ele se diz:
“O que também se pode dizer é que você, que sem dúvida lhe deu a morte, talvez
querendo apenas massageá-la cuidadosamente, já que não se observou nenhum sinal
exterior de estrangulamento, você gostaria de realizar o seu desejo de morte e,
prestando-lhe o imenso favor de matá-la em seu lugar (pois ela era de fato incapaz de
se matar), teria, ao mesmo tempo, desejado realizar inconscientemente o seu próprio
desejo de auto-destruição, por meio da morte da pessoa que era a que mais acreditava
100
em você, para ficar absolutamente certo de ser apenas essa personagem de artifícios e
de imposturas que sempre o obcecou. A melhor prova que alguém pode se dar de não
existir é, de fato, destruir a si mesmo, destruindo aquela que o ama e, acima de tudo,
acredita na sua existência” (ALTHUSSER, 1986, p. 248).
qualquer interpretação a posteriori, que procure identificar uma causa criminosa, para
definir o que poderia preveni-lo. Haveria nesse sentido um a posteriori factual, a verdade
dos fatos, e um a posteriori da vida psíquica, que Althusser, sabendo muito bem da
A dimensão do crime aqui é Outra: segundo Otoni (2011), pode-se dizer que a relação
convocado a responder por aquilo que de seu modo escapa à regulação da lei, ou seja, que
101
cada sujeito responde em determinada sociedade pela expressão “desse resíduo irredutíve l
De acordo com a lei de introdução ao Código Penal Brasileiro (2012), lei n.3914/41,
“... a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer
isoladamente, quer alternativa ou acumulativamente com a pena de multa;
contravenção, a infração que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de
multa, ou ambas, alternativa ou acumulativamente”.
mesmo que seja uma sanção específica do Direito Penal – essa lei exclui, portanto, os
culpável.
Para o Direito Penal, o crime é uma criação normativa, e para ser considerado como
tal, precisa atender a determinadas categorias. Primeiro, enquanto um ente jurídico, deve
ter o caráter que o caracteriza como uma ação ou conduta. Segundo, essa conduta deve
ser um tipo legal, ou seja, deve estar descrita por um dispositivo legal. Terceiro, o tipo
legal não deve se contrapor a nenhuma outra norma do Código Penal que tenha em relação
a ele um caráter permissivo – antijuricidade. Quarto, a ação típica ilícita deve ser culpável:
o sujeito precisa ter conhecimento da ilicitude da ação, deve ser imputável e sua conduta
Todo tipo penal deve estar previsto pelo Código, de acordo com o bem jurídico que
ele protege e assegura (por exemplo, a vida). Ele será classificado enquanto doloso,
é previsível, mas o agente não se importa com os resultados, temos um tipo penal doloso.
Se não há intenção de atingir o outro, mas o sujeito não consegue evitar o efeito da ação,
trata-se de um tipo culposo. O tipo penal preterdoloso se refere ao agente que possui a
intenção de prejudicar um terceiro, mas não possui a consciência do efeito que a conduta
pode produzir.
culpabilidade. Seu estatuto no Código Penal encontra-se implícito, mas não prescinde de
Uma ação é composta por uma vontade (um comportamento externo que possui conteúdo
psicológico), uma representação mental do estímulo, pela escolha dos meios a se atingir
Toda ação ou conduta, de acordo com o Código Penal, só pode ser típica, ou seja, só
será relevante para o Direito Penal se estiver descrita normativamente. Nesse sentido,
racionalista. Segundo, a que determina a lei anterior ao crime: o ato não preexiste à norma,
“Assim, não existe a ação do “xeque-mate” se antes não houver as regras do jogo
de xadrez; não existe ação de impedimento (na linguagem futebolística), sem que antes
exista uma norma regulamentar que defina o que é impedimento” (Bitencourt, 2011, p.
270).
É a lei que determina o valor cultural do ato, quando o qualifica a partir de critérios, o
que permite, por exemplo, considerar matar como um homicídio, ou seja, se estabelecer
pelo que, de acordo com o Código Penal, descaracteriza uma ação: uma coação física
segundo Correia Junior (2013) um impasse para o Direito Penal: como estabelecer com
comprometimento?
Tipicidade e antijuricidade
um ato que é penalmente relevante. Cada tipo possui uma função particular que congrega
que o qualifica como um ato que viola determinada norma jurídica. A norma diz respeito
exercício. O injusto penal só será considerado crime se for culpável, ou seja, se o sujeito
for imputável.
Culpabilidade
encontra-se o autor e não o ato em si, posto que o que está em jogo é a personalidade do
“Nesse sentido, pune-se alguém por ser determinada pessoa, porque apresenta
determinadas características de personalidade, e não porque fez algo, em última análise.
Essa concepção justificaria, por exemplo, intervenções cada vez mais em desacordo
com a proteção de direitos e garantias individuais, podendo chegar, numa fa se mais
avançada, a um arbítrio mais sutil, modelando, inclusive, a personalidade do indivíduo”
(Bitencourt, 2011, p 402).
se verifica a culpabilidade.
107
ela ganha uma conotação subjetiva, sustentada pela intencionalidade, ou seja, pelos
motivos que levaram o sujeito a agir daquele modo. O desdobramento dessa nova acepção
encontra-se no direito romano, quando se estabelece uma distinção entre culpa e dolo, e
Segundo Vorsatz (2013), com o direito ático uma nova ordem política se estabelece,
essa que substitui uma responsabilidade que implica o sujeito integralmente, por uma
auto-controle exime, cada vez mais, o sujeito de responder por suas ações. Isso atesta um
qual agiu. O sujeito deve ter então conhecimento do injusto penal e poder decidir agir de
inimputabilidade penal.
Não entraremos com afinco na questão da liberdade, o que nos exigiria um exercício
epistemológico intensa, a fim de demarcar como ela se apresenta, tanto para o direito
penal quanto para a psicanálise. Nesse momento, podemos ficar com o pressuposto
Para que um injusto penal seja considerado crime, ou seja culpável, é preciso que o
norma penal.
Para que o injusto penal seja considerado culpável, é necessário que as três categorias
mental, o sistema nervoso, de modo que se o agente for portador de enfermidade mental
Código Penal Brasileiro, em que, o sujeito só será declarado irresponsável se, por conta
fator biológico. Para que o sujeito seja considerado culpável, é preciso tanto o
autocontrole – um sujeito pode atribuir um valor a sua ação, mas não necessariame nte
Nesse sentido, o diálogo entre Direito Penal e Psiquiatria, que tem como consequência
Esse processo reducionista não se restringiu apenas ao diagnóstico das psicoses, mas
A definição do Código Penal é mais abrangente do que a ciência médica entende por
provocados por uma desintegração da personalidade ou por certa evolução deformada dos
estados demenciais.
O pressuposto médico de que a matriz da vida psíquica é orgânica, pelo qual o Código
incompleto, quando a maturação do sistema nervoso não foi finalizada normalme nte,
mental retardado: “os idiotas, os imbecis e os débeis mentais”, que não atingiram a
Nesses termos, podemos observar que o direito penal aponta a lei como determina nte
do crime: o ato é um fato objetivo, categorizável de acordo com termos dos dispositivos
legais. Veremos no capítulo seguinte, ao retomarmos o mito da horda primitiva, que Freud
morto o pai castrador, a fraternidade cria uma lei capaz de ordenar – “não matarás”, “não
tomarás a mãe como mulher”. Estão postos desse modo, os impasses referentes à relação
entre lei e crime, ponto que nos aproxima das temáticas próprias do Direito Penal.
Segundo Pacheco Filho (2014), o mito da horda primitiva é um mito freudiano, que
aponta a verdade estrutural do sujeito humano – o crime a que se refere será reeditado
pelo sujeito de linguagem, através da dialética edípica. Em Totem e Tabu (1913), Freud
nos apresenta um pai tirânico que é ao mesmo tempo temido (autoritário, agente,
castrador) e admirado (pela posição de gozador que ocupa) por seus filhos; certo dia, a
No entanto, o assassinato do pai não garante que um de seus filhos ocupe o mesmo
lugar: cria-se a figura do pai morto sob a sombra de uma figura totêmica. O pai é
horda é antes de tudo do pai, frente ao qual uma fraternidade se une para barrá-lo, cenário
Na mitologia grega, Cronos, castra o pai, Urano, com um golpe de foice, a pedido de
sua mãe, Gaia. Cronos torna-se o senhor dos céus, o pai terrível e castrador, que teme ser
destronado e por isso devora todos os seus filhos, frutos do casamento com sua irmã,
Réia. No entanto, Réia consegue enganar Cronos e esconde o último de seus filhos, Zeus,
113
em uma caverna. Já crescido, Zeus decide vingar-se de seu pai e com a ajuda de
Prudência, filha do titã Oceano, oferece uma poção a Cronos, fazendo-o vomitar todos os
seus irmãos. Zeus assume então o trono, mas não o faz interinamente – guarda para si o
domínio dos céus, e divide seu poder, com os irmãos, Hades (os infernos) e Poseidon (os
oceanos).
Lacan (1963) atenta a esse gozo do líder tirânico, agente da castração, e ao gozo fálico
ordenado pelas relações de fraternidade de seus membros, de modo que todo e qualquer
gozo que seja diferente daquele da tribo é considerado ameaça a esse grupo.
estabelecimento do laço social, de modo que o totem erguido no lugar do pai morto
representa a interdição de que nenhum membro da horda poderia ocupar o lugar do pai,
coletividade pelo ser humano, e regulará as relações sexuais entre os membros da tribo.
(PACHECO FILHO, 2014). Tal como já trabalhamos, essa regra, a interdição do incesto,
Nesse sentido, o totem é um representante, e tal como aponta Lacan em seu ensino, na
do-Pai o significante que representa essa lei. Segundo Pacheco Filho (2014), a lei
simbólica articula os laços entre os membros da tribo, cujos rituais sagrados de adoração
finalizar por conta de sua expulsão da IPA (Association International of Psychoanalis is),
Caravaggio sobre o sacrifício de Isaac. Abraão era casado com Sara, a qual não podia lhe
dar filhos. Portanto, Issac, o filho, é tido como um milagre concedido ao casal, já que Sara
encontrava-se em idade avançada. Por conta disso, Abraão que já tinha filhos com outra
mulher, abandona a família anterior para constituir uma nova família com essa mulher,
mãe de uma benção divina. Por conta disso, Deus decide testar a fé de Abraão, exigindo-
Lacan utiliza-se do mito de Abraão para esmiuçar a relação entre crime e culpa, que
em Freud, pelo mito da horda primitiva, remete às incidências do supereu, bem como nos
“Por amor a Deus, ao Pai, Abraão está disposto a matar seu filho, cumprindo a ordem
dada por Deus. Desta maneira, salva o Pai, fazendo-o existir através do amor ao Pai, do
amor a Deus. Mas este amor ao Pai tem o seu avesso de mandato superegóico, o
mandato desse Deus que deseja que Abraão mate seu filho. Este é o ponto em que
aparece o desejo do Outro, ponto em que aparece o pecado do pai”. (p. 3)
edípica, a partir da primeira identificação com o pai, enquanto que o supereu se refere ao
resto das primeiras escolhas objetais. Observamos, no entanto, que as correntes pós-
questão é que o próprio Freud “parece refutar” tal tipo de interpretação, quando, ao tratar
das demandas culturais de renúncia pulsional em Mal-estar na cultura (1930), nos diz
que tais restrições não fazem outra coisa a não ser fortalecer a crueldade superegóica.
115
responsabilidade, que na verdade o que faz barreira ao gozo não é o supereu, mas o desejo.
Lacan, ao abordar o inconsciente em termos estruturais, nos diz que a renúncia também
é estrutural, posto que a incidência do significante sobre o sujeito produz uma perda de
gozo, a qual tentará ser recuperada em satisfações parciais através dos avatares do objeto
a. Segundo Tendlarz (2007), o supereu exige que o sujeito renuncie à tais recuperações
de gozo, de modo que, a cada renúncia, o gozo retorna ao supereu, como combustível que
A economia de gozo implica tanto a estrutura quanto o coletivo, que nessa perspectiva
não se opõem, não se excluem, e ainda nos permite localizar o direito penal como uma
segundo Koltai (2000), um outro gozo, que não semelhante ao da tribo, remete a uma
condição de falta: o estranho que goza diferente remete ao fato de que não há apenas uma
estranho, posto que é diferente do seu, e se há esse outro gozo, é porque de alguma forma
a tribo goza de menos. “Não matarás” / “Não esposarás sua mãe” se legitima, pois algum
dia existiu ao menos um que desobedeceu a lei, e a infração/transgressão toda vez que
cometida, coloca em xeque o funcionamento do grupo mas nem por isso deixa de
reafirmar a lei.
116
de maneira precisa e extensa por Freud, em Psicologia das Massas e análise do eu”
(1921): um conjunto de indivíduos (os filhos do líder tirânico) coloca um único e mesmo
objeto como ideal (o pai assassinado), identificando-se entre si (os membros de uma
mesma horda) e elegendo, ao mesmo tempo, um objeto externo diverso, sobre o qual recai
toda a destrutividade.
Nesse sentido, o direito penal opera a partir da economia de gozo que fundamenta os
segregação, ou seja, a lógica mesma dos dispositivos jurídicos construídos historicame nte
medida de segurança – uma sanção que não é pena, mas que na prática, “é como se fosse”.
“Por isto o outro é menos frequentemente objeto de amor, a ser valorizado, elogiado,
admirado e recompensado, e muito mais frequentemente objeto de ódio, a ser
subestimado, menosprezado, insultado, segregado, escravizado, espancado, estuprado
ou assassinado. E os traços de diferença pelos quais isto acontece podem ser da mais
variada qualidade... Por isto, lei e ideal mostram-se presentes na constituição do sujeito
humano e dos laços sociais, mas, como afirmei, revelando tanto o melhor quanto o pior
da humanidade”. (PACHECO FILHO, 2014, p. 119).
117
Lacan retoma então os textos ditos “sociais” de Freud para articular gozo e estrutura,
e a possibilidade de interlocução com o direito penal ainda implica o passo a mais dado
por Lacan: é preciso ir além do pai, o que sugere que o Mito da Horda e o Édipo se referem
Vejamos que no caso do Édipo, o que está em questão é o crime do filho: é ele quem
mata o pai e quem goza do corpo da mãe, e que, diante do segredo revelado, fura os
próprios olhos, como aquele que não quer saber nada sobre a determinação inconscie nte.
Estamos diante de uma resolução neurótica, pois o neurótico é esse sujeito que atravessa
como “tesouro” dos significantes, não pode então assegurar o sujeito; diante dessa
insuficiência, a ficção edípica é criada, onde o pai imaginário, o terrível castrador, ocupa
No caso do pai totêmico, a leitura de Lacan implica uma passagem do pai à estrutura.
O pai totêmico já não é um pai morto, mas sim “um pai vivo que goza”. Nesse sentido, o
crime está do lado do pai gozador, a partir de um gozo impossível de ser recuperado, pois
foi com ele perdido no banquete totêmico – a fraternidade de “assassinos” que se funda
No mito da horda primitiva, o crime é do Cronos que devora seus filhos, cujo
assassinato funda uma lei. A psicanálise efetua nesse ponto uma inversão em relação ao
direito penal, já que não é a lei que define o crime, mas são os atos do pai e o parricídio
118
cometido pelos filhos que instauram a proibição do incesto. Tal como abordamos no
“... é na exceção singular que se funda o Nome-do-Pai um a um. O pai nunca será
universal. A função fálica é que é universal, mas tal função precisa estar encarnada em
um pai vivo, num pai que goza”. (TENDLARZ, 2007, p. 8)
paterna é que opera a renúncia pulsional, Lacan procura através de seu ensino ir além da
trama edípica, ao articular função paterna e Nome-do-Pai. Lacan nos faz a observação de
que a lei que se instaura com o assassinato do pai não cria mas legaliza o desejo.
“A lei edipiana (simbólica) é estrutural para Lacan, mas trata-se de uma lei que pode
ser transgredida... É do assassinato do pai que a lei se origina: a lei simboliza a presença
do pai através de sua morte (sua ausência). O pai simbólico somente pode existir como
morto através de seu nome (o nome é o assassinato da coisa, diz Hegel). A
transgressão... anula e, sem cessar, reconstitui a lei, uma lei que se torna menos
“inabalável” (o pai aceita fazer-se matar!) e que se aproxima da “regra” em seu sentido
wittgenstiniano. A lei simbólica não controla tudo, algo lhe escapa...” (LIPPI, 2009, p.
177).
enunciação associa-se à interdição, a esse que diz “não” tanto para a mãe quanto para a
posterior ele exerce uma função permissiva através da identificação. Algo articula lei
Tal definição está expressa no seminário IX, A Identificação (1962), quando diz Lacan
gozo e o interdito, enlaça duas leis distintas: a lei simbólica, o limite do gozo, e a Lei
com a foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito fica à parte da significação fálica, o que nos
faz questionar a relação crime, lei simbólica, Lei, desejo, a partir de um outro estatuto.
pluralização.
Os nomes do pai
Segundo Salum (2014), o pai gozador é uma invenção do sujeito contra a sua
precariedade (do pai), já que o pai também é castrado: o que castra não é o pai, mas o
singularidade do sujeito. No caso do universal, temos o nível da estrutura, pois ela está
120
para todos, mas não pela totalidade, e sim para todos no um a um. Quanto ao singular,
Retomando a metáfora paterna, vemos que o Nome-do-Pai é uma espécie de véu sobre
um vazio (x), ou seja, é o que nomeia o desejo materno e apazigua o gozo. No caso da
neurose, o pai castrador é uma solução imaginária, uma nomeação que se utiliza de
atributos fálicos. Como o Outro não consiste para ninguém, ou o sujeito se utiliza do que
está posto no laço social, ou, sem outra saída, ele inventa algo.
zerificado, o sujeito se situa à parte da significação fálica – ele precisa então inventar a
O sujeito não poderá responder a partir da norma fálica, ou diante de uma lei geral para
todos. Não por acaso, Lacan nomeia o seminário sobre as psicoses a partir de uma
pluralização: a(s) psicose(s). Nesse sentido, segundo Salum (2014), se através da ordem
normatividade. O desdobramento clínico disso não diz respeito apenas às psicoses, mas a
abertura para além da norma fálica, tanto na neurose quanto na perversão também.
Poderíamos dizer que Althusser efetua uma invenção através da escrita autobiográfica?
Talvez não tenhamos tempo para tratar do assunto, pois seria fundamental avançarmos
Nome-do-pai, a qual Lacan efetua no seminário 23, O sinthoma (1976), ao tomar a obra
Podemos nos ater à seguinte questão: a invenção psicótica é o ponto crucial de nossa
jurídico: é preciso um outro tratamento de gozo que inclua a foraclusão. Veremos a seguir
que, se não conduz à solução, a passagem ao ato pode ser uma solução, ainda que extrema.
122
nos aponta que o ato de destruição do outro é a apresentação do que seria a estrutura
fundamental humana, mas que, no entanto, não seria necessariamente criminoso. Trata-
no capítulo 4.
Lacan circunscreverá ainda nesse texto, a passagem ao ato como um tipo de crime. O
termo, passagem ao ato, não é um conceito próprio da psicanálise, mas derivado do campo
indivíduos que teriam cometido homicídios escabrosos, sem uma clara intenção do ato, e
que, por conta disso, trouxeram um grande impasse para o direito penal. Impasse esse
A categoria monomania inclui uma série de atos mórbidos, desde roubos, embriague z,
até homicídios, a partir de definições amplas e vagas, cujo elemento comum será o
portanto, não implica uma vontade de sua parte – a saber, vontade como atividade motora
voluntária.
123
descontrolada, sem intenção, sem sentido algum, ou seja, determinada pelo sistema
nervoso autônomo, ali onde o sujeito não está, em termos orgânicos. Do ponto de vista
estruturalista concebe o sujeito como efeito do significante, e pela qual, não se pode
“... Lacan encara o problema da passagem ao ato em sua face legal, discutindo a
alternativa imputabilidade-inimputabilidade, quer dizer, a questão da responsabilidade
pelos crimes cometidos. Recorda que na história da psiquiatria o interesse pelos
enfermos mentais nasceu da necessidade de ordem jurídica, por parte de Pinel e
Esquirol. A passagem ao ato está no coração do trabalho do “expert” psiquiatra. Mas,
não obstante, a justiça não se interessa mais do que por atos criminosos, isso quer dizer,
por aqueles que constituem infrações a lei. A tarefa dos psiquiatras consiste em
determinar se a enfermidade mental restringe a liberdade moral absoluta suposta para
todo indivíduo 12 ”. (Muñoz, 2009, p. 56).
Nesse sentido, Lacan efetua uma torsão em relação ao termo passagem ao ato, partindo
percorrerá a espinha dorsal de seu ensino. Conceito que conjuga desde a tese de
doutorado, com seu caso princeps, Aimée, o seminário 3 e a tese do inconscie nte
12
“Lacan encara el problema del pasaje al acto en su faz legal, discutiendo la alternativa imputabilidad-inimputabilidad,
es decir, la cuestión de la responsabilidad por los crímenes cometidos. Recuerda que en la historia de la psiquiatria el
interés por los enfermos mentales nació de necesidades de orden jurídico, de la mano de Pinel y Esquirol. El pasaje al
acto está em el corazón del trabajo del experto psiquiatra. Pero, no obstante, la justicia no se interessa más que en los
actos criminales, es decir, en aquellos que constituyen infracciones a la ley. La tarea de los psiquiatras consiste en
determinar si la enfermidad mental restringe la libertad moral absoluta supuesta para todo individuo”.
124
Não nos cabe aqui efetuar um percurso epistemológico da passagem ao ato no ensino
de Lacan – seja por uma face sincrônica, seja diacrônica – mesmo porque estabelecemos
temos belíssimos trabalhos de colegas analistas que se incumbiram dessa tarefa, com
grande competência e honestidade, como Pablo Muñoz, em “La invención lacaniana del
psicose, mais especificamente no que isso pode nos dizer sobre o ato homicida cometido
por Althusser. Cabe então revisitarmos o caso Aimée, para passarmos mais adiante à
O caso Aimée
Aimée, Marguerite Jeanne Anzieu, francesa que tenta matar outra mulher, a qual
encarnava seu ideal de mulher famosa, e, portanto, a representava, é atendida por Lacan
doutorado, é considerado por Lacan, em “De uma questão preliminar...” (1957), como o
Aimée sai da casa de seu pai aos 18 anos de idade, para morar por três meses com um
tio, que não por acaso era casado com sua irmã mais velha. Ali, Aimée fica submetida à
autoridade da irmã, que assumia o lugar de conselheira e lhe dava um certo acolhime nto
Anos depois, quando Aimée já estava casada e tinha um filho, sua irmã se separa e vai
viver com ela. Incapaz de ter um filho por conta de uma histerectomia completa, e diante
cuidados da criança. Ao longo de dois anos que antecedem o crime pela qual fora presa,
um jornalista, na insistência de que ele publicasse seus escritos, pois gostaria de se tornar
uma novelista famosa. Um ano depois, envia para uma editora todo o seu material para
violentamente. Cinco meses depois, começa a entrar em conflito com o marido, até que
um dia o agride com um vaso na cabeça e decide se divorciar e ir embora para Paris com
filho”, e pelo imaginário, “ser uma novelista famosa”, a partir do qual Aimée decide ir
morar sozinha em Paris, e onde a via persecutória se agrava – um mês antes do crime, ela
interpela a atriz em cartaz com a peça “Tout va bien”, Huguette ex-Duflos: “você é a
senhora Z”? A atriz responde que sim, e ao se virar, se depara com Aimée avançando
sobre ela com uma faca, da qual se defende com o braço. Huguette é ferida na mão e
Aimée, após detida, diz que aquela mulher a perseguia e a ameaçava. Já em tratamento
com Lacan, Aimée reconstrói os momentos anteriores ao ato: estava indo para a casa do
ex-marido ver seu filho, mas então, por uma idéia delirante fixa, decide atacar qualquer
estabelece uma continuidade metonímica no delírio, e que representam aquilo que Aimée
gostaria de, mas considerava incapaz de ser: mulheres intelectuais, muito conhecidas, que
posição dominadora.
Com a passagem ao ato, temos como primeiro efeito a queda da construção delirante,
amor, mas diante de uma impossibilidade, recebe todo o ódio – sobretudo, é um reflexo
da própria Aimée, que se auto-castiga. Aimée esfaqueia a si-mesma, mas é somente com
mal irrefreável que a consumia. Isso nos sugere que a passagem ao ato, por si só, não
Nesse sentido, Lacan introduz uma outra temporalidade, posto que a estrutura lógica
que se impõe é a da antecipação. Ele nos aponta que todo ato consiste em três tempos
Por tal, o ato de Aimée não revela nenhuma finalidade que possa ser pré-determinada,
de modo que é a incidência da lei, enquanto barra, que permite esse tipo de trabalho de
ambivalentes de amor (ideal) e ódio (depreciação de si), e a agressão que ela comete se
encarceramento.
Há de se considerar que esse tipo de solução comporta inúmeras questões, que nem
sempre implicam a apropriação por parte do sujeito de seu desejo, conduzindo assim a
efetuada por Lacan reside no efeito significante da passagem ao ato, enquanto um corte
Nas psicoses, o sujeito encontra-se na posição de objeto do Outro, o qual ganha grande
em Althusser, o crime comparece como uma forma do sujeito fugir do domínio desse
Outro gozador, quando ferir consiste numa ação de barrar tal opressão, produzindo como
Segundo Quinet (2006), a passagem ao ato pode ser uma tentativa de cura e a
delirante do Outro perseguidor cai. Agredir o Outro é um ato pelo qual o sujeito procura
Lacan conduzir a passagem ao ato para além dos limites da psiquiatria, tornando- o
No caso Aimée, Lacan aborda a passagem ao ato como um modo de se eliminar uma
sensação insuportável que invade o sujeito: o kakon. O termo é emprestado literalme nte
da psiquiatria de Paul Guiraud, mas também indica que Lacan fora um bom leitor das
imagem do outro, haveria outra coisa – uma relação com um objeto mal e inimaginável,
no sentido de mais além do imaginário, quer dizer real13 ”. (MUÑOZ, 2009, p. 79).
Em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946), Lacan vai propor que as etapas
mais arcaicas da constituição do sujeito se efetuam a partir dessa captura identificató r ia,
pela qual ele (o sujeito) se encontra assujeitado à imagem do outro, e que fica clara e
exposta pelo caso Aimée: construção de um ideal marcado pela agressividade. Desse
relevo o caráter agressivo da reação. Lacan considera que a satisfação dessas pulsões
agressivas não pode ser excluída do conceito de passagem ao ato, mas não é o suficie nte
Lacan fará então uma equivalência entre o kakon e a invasão de gozo insuportá ve l,
foracluído. Kakon será o nome dado para o gozo, na psiquiatria de Guiraud, aquilo que
caracteriza a finalidade da passagem ao ato, ou seja, limitar esse gozo que é identificado
13
Do original em espanhol: “La articulación del extremo arcaísmo de la subjetivación del kakon con la posición
depresiva se logra vía la identificación con el objeto malo. Su importancia es que permite develar la aparente
inmotivación de los crimenes descritos por Guiraud: el sujeto ataca a un outro que encarna su próprio objeto malo
interno. Así, encontramos en esa hipótesis lacaniana una mixtura conceptual entre el estadio del espejo, Hegel, Guiraud
y Klein, que culmina en la articulación del kakon con el objeto malo. Puede leerse el extremo arcaísmo del que habla
Lacan como indicación respecto de que más allá de las identificaciones con la imagen del otro, habría otra cosa – una
rélacion con un objeto malo e inimaginable, en el sentido de más allá de lo imaginário, es decir real”.
131
identificações parentais, associadas à introjeção do pai morto pelo luto elaborado, o que
poderia supor a instância pelo que diz Freud, como “herdeiro do Complexo de Édipo”.
No entanto, Lacan ressalta um outro lado, não associado ao significante, mas ao objeto:
a dimensão pulsional.
Segundo Baima (2011), Lacan irá explorar tal caráter “dúbio” da instância superegóica
por um lado, o das identificações, o supereu está associado ao campo da lei, que ordena
as relações entre os homens, ou seja, o próprio campo linguístico, por outro atua como
um tirano implacável. Nesse sentido, Lacan nos sugere que a lei superegóica ordena, mas
O supereu contém uma vertente simbólica e outra real, uma que remete ao significa nt e
e outra ao gozo, respectivamente. A vertente real que Lacan procura enfatizar é a que
imprime à lei do supereu uma insensatez, a qual conduz à negação da própria lei – o
supereu desqualifica a lei em seu atributo normativo. Quinet (2009) diz que o supere u
14 Do original em espanhol: “Como función es dependiante da la estructura del linguaje y del goce ineliminable que el
uso del languaje comporta. Son los contenidos de sus mandatos los que se llenan con la herencia de los personajes del
Edipo, los Otros del sujeito, pero su poder proviene del lugar estructural que Lacan matematiza A, independiente de
sus encarnaduras”.
132
corresponde ao Outro não-castrado, ao pai gozador da horda primitiva que procura impor
os seus caprichos aos demais membros da tribo, os seus filhos; nesse sentido,
corresponderia ao Outro arcaico, no caso a mãe como matriz identificatória, o Outro que
ainda não contém o Nome-do-Pai, ou seja, que não passou pela barra da castração.
Lacan avançará um pouco mais ainda, ao longo de seu ensino, quando no seminár io
10 tratará do supereu não apenas como um imperativo, mas sobretudo como imperativo
de gozo, tal como um imperativo categórico kantiano. O supereu é o Outro que ordena o
sujeito a gozar, que na passagem ao ato produz como efeito uma desarticulação do
inconsciente e rompe com o laço social. (BAIMA, 2011). Desse modo, Lacan define o
supereu como uma voz ensurdecedora que ordena: “GOZE!”, explicitado por Quinet
(2009):
como um Outro com demandas de gozo cada vez mais altas – o que podemos associar ao
“Faça-a feliz!” é o que escuta Althusser, quando das partidas do pai após os jantares
conflituosos. No entanto, faça-a se desdobra tanto no mandato de faça ela, a mãe, feliz,
quanto faça ela, faça o papel de mulher frente ao pai gozador. O empuxo-a-gozar
133
psicótico e o que ele procura eliminar na passagem ao ato: o kakon superegóico. Com a
formalização do objeto a, Lacan irá apontar que esse mal exteriorizado que o paranoico
localiza no Outro não é exatamente interno, tampouco externo, mas o que Freud deixou
Assim, a passagem ao ato na psicose consiste em uma operação de extração, disso que
por conta da foraclusão não sofreu queda. Se o sujeito psicótico se encontra na posição
de objeto causa do desejo do Outro, essa extração pode se dar pelo suicídio melancólico,
quando a extração se dá no próprio corpo do sujeito, que se lança para tamponar o furo
do Outro que emerge, ou pela agressão paranoica, no caso de Aimée, em que ferir o outro
melancólico, “revestiu” sua passagem ao ato a partir de uma posição paranoica. Seria o
suicídio altruísta de Althusser uma defesa contra o próprio suicídio, enquanto efeito de
uma paranoização efetuada em sua análise, a qual conduziu por mais de 20 anos?
PARTE IV
Responsabilidades
135
Após o desfecho trágico, Althusser foi medicado pelo dr. Etiènne e hospitalizado de
urgência no hospital de Sainte-Anne. É de praxe que o doente mental infrator seja levado
certos jornais viram em Althusser, um argelino, homem famoso, normalien, filóso fo,
marxista e comunista, uma possiblidade de, através de seu crime, resolver pendências
correspondência, a fim de protegê-lo das notícias e/ou informações que poderiam lhe
chegar, de caráter nefasto para seu quadro psicopatológico e para sua estabilização.
analista, esse frequentemente. Passava boa parte do tempo dopado, por conta de uma
136
Em junho de 1981, obteve relativa melhora em seu quadro depressivo, melhora essa
interrompida por duas notícias das quais teve conhecimento. Primeiro, estando em licença
médica da École Normale, teve todos os seus livros e objetos retirados de seu apartamento
“Essa medida me chocou como uma condenação perpétua à reclusão, posto que de
fora, e apesar de meus direitos, “tinham” literalmente, por meio de meu apartamento,
ou seja, de meu corpo, me riscado pura e simplesmente da vida” (ALTHUSSER, 1986,
p. 239).
presídio, já que, internado por decisão do chefe de polícia de Paris, e privado de seus
direitos civis, estando sob a custódia do Estado, poderia ser transferido a qualquer
momento.
tomarem uma decisão definitiva. A equipe médica se recusou a indicar a transferênc ia,
reafirmando que Althusser não era violento nem perigoso, já que sabiam muito bem qual
poderia ser o seu destino trágico em uma instituição como o manicômio judiciário. E
embora ele tenha resistido, a equipe acabou convencendo-o a aceitar a transferência para
teria chegado à seguinte conclusão: o assassinato de Hélène teria sido um “suicídio por
mais do que a pergunta que passou a se fazer, cada vez com maior frequência: “e se eu
a possibilidade do sujeito responder em relação a uma infração por ele cometida. Nesse
sentido, ela não integra o ato, como categoria analítica do crime: se a culpa caracteriza o
reprovação de um agente que não agiu conforme o seu dever - tanto quanto a compreensão
trabalharmos o mito da horda primitiva, apontamos que observamos que para Freud tanto
Lacan.
Para Freud, a culpa é deslocada do campo da categoria para a determinação causal: ela
passagem ao ato, vimos que, na psicose ela comparece no real, a céu aberto: a paranoico
tem a certeza de que a culpa é do Outro, e o melancólico está convicto de que a culpa é
139
dele mesmo. Sendo o sujeito neurótico ou não, a culpa comparece a partir do imperativo
superegóico de gozo, pela economia de gozo, e não como um fenômeno do ponto de vista
da experiência.
que o amor ao pai retorna através do ódio e da obediência, tal como retoma Lacan, ao
supereu, que exige cada vez mais renúncias através do sentimento de culpa como uma
retroação dos laços de obediência ao pai morto. A culpa invade então o sujeito, de maneira
avassaladora, impelindo-o à passagem ao ato, o qual é uma solução para tal mal-estar: a
Buenos Aires (UBA), Miller aponta que “o sentimento de culpa seria a patologia da
sonhos. Miller nos lembra que Freud não desresponsabilizava seus pacientes pelo
conteúdo de seus sonhos, mesmo que o âmbito da cena onírica fosse o inconsciente, e
que alguém deve assumir a responsabilidade por seus sonhos e pelos conteúdos deles.
[...] Nesse contexto, a noção de responsabilidade se identifica com a noção de resposta
e esta, por sua vez, com a noção do sujeito”. (TENDLARZ, 2009, p. 47)
porém, isso não quer dizer que ela (a responsabilidade) não seja inconsciente. Para a
deve ser confundida com sanção penal. Por isso, partir da autobiografia de Althusser
França.
Lacan (1950) nos aponta que as sanções penais se referem ao Outro de cada momento
histórico e de cada sociedade. A resposta singular de cada sujeito em relação a seus atos
responsabilização exige uma convocação a ser efetuada pelo Direito Penal. A culpa
aponta que a determinação inconsciente do ato criminoso não inocenta, mas ao contrário,
impele o sujeito a responder por um desejo, mesmo sem saber sobre sua causa. Nesse
retornará como sentimento de culpa, como uma necessidade de punição, tal como já
responsabilidade no campo do desejo. Então, o sujeito é responsável por seu desejo? Por
sua posição de desejante, e por sua posição de gozo, porque ao se colocar em ato, o sujeito
se assegura por seu desejo, que é inconsciente, e que o move e o causa sem consentime nto,
tornar responsável por isso que lhe é, paradoxalmente, e ao mesmo tempo, mais
estrangeiro e mais íntimo, ele localiza o sujeito em outro campo, que não o da vontade e
favor de um bem comum, mas em descontinuidade com a lei jurídica, mesmo que, como
Labdácidas.
Antígona era filha de Édipo e Jocasta, os quais tiveram mais três filhos: Etéocles,
Ismênia e Polinice. Depois de descobrir que Jocasta era sua mãe, e que havia matado seu
pai, Édipo fura seus olhos e é expulso de Tebas por Polinice e Etéocles. Antígona decide
partir com o pai e o acompanha até sua morte, quando então retorna à Tebas e se depara
Polinice se casa com uma das filhas do rei de Argos e arma um ataque contra Tebas.
O resultado de seu plano é um confronto mortal, do qual nem ele nem Etéocles
142
sobrevivem. O tio deles, Creonte, herda o trono e ordena que Etéocles seja enterrado com
todas as honras, porém determina que o corpo de Polinice seja deixado exposto à
putrefação, como punição por traição. Indignada, Antígona rouba o corpo de Polinice e
ao tentar enterrá-lo com as próprias mãos, é presa. Ismênia tenta demover o tio da idéia,
“... a maldição dos Labdácidas ou, ainda os crimes de Édipo – que a jovem tebana
assume como sua, em seu próprio nome, em vez de cumpri-la às cegas como se fora u m
destino inexorável. Antígona toma lugar – “voluntariamente” – na cadeia geracional
que a determina. Trata-se, portanto, de considerar a heroína trágica a título de paradigma
da relação do sujeito ao desejo e ao ato, não de idealizá-la”. (VORSATZ, 2013, p. 129)
Ao evocar as leis não escritas, Antígona remonta a algo fundante da própria ordem
criação do direito ático, uma nova ordem política se estabeleceu na pólis grega, quando
uma responsabilidade que implicava o sujeito integralmente foi substituída por outra, de
Digamos que esse seja um paradoxo na história do direito penal, posto que, a
dispensou cada vez mais o sujeito de responder pelos seus atos – o que atesta um
A nova ordem se institui com o advento da escrita, fato que se confunde com o próprio
surgimento das cidades-estado gregas. Até tal momento, as leis possuíam um caráter de
143
caráter universal, como uma ficção fixada pelo primeiro código jurídico.
As leis não escritas estavam para além do que pode passar pela simbolização, do que
pode se registrar através da história: isso que não pode ser modificado, revogado,
escrever.
“As leis do céu equivalem às leis do desejo, assim, al ei evocada pela heroína trágica
é homóloga à lei do desejo, que ela afirma como sua. Mutatis Mutandis, o campo dos
deuses também poderia ser considerado um campo que se perde, uma vez que escapa a
toda e qualquer tentativa de positivação. A princesa tebana garante, por intermédio do
seu ato e pagando sua vida, esse campo como lei, determinação que, a rigor, não exist e
fora da perspectiva da responsabilidade – em outras palavras, escolha forçada”.
(VORSATZ, 2013, p. 114)
Primeiro, uma que é atribuída em relação ao ato e não à intenção que o move: a que
convoca Antígona a responder pelo que lhe escapa e que a toma sem sua autorização.
Segundo, uma que diz respeito à intencionalidade, e que segundo Tendlarz (2009), na
história do direito penal se converteu nos qualificadores do tipo penal, dolo e culpa, que
Miller (2008), nos aponta que o termo responsabilidade encontra-se associado à ação
inconsciente.
noz diz que o sujeito não é a causa de seu ato, mas ela (a causa) se encontra exterior a ele,
sendo o sujeito quem toma para si essa causa; a lei do desejo é nesse sentido
normatizar e universalizar.
relação paradoxal entre lei e crime: por um lado, ele é a transgressão da lei jurídica que
procura proteger o bem comum; por outro, a transgressão sustenta a singularidade radical
universalidade: a particularidade de sua lei incide para todos, mas todos a cada um. Ao
mesmo tempo, uma particularidade, pois cada sujeito deve responder à sua maneira à
convocação que essa lei efetua. (LACAN, 1960). Segundo Vorsatz (2013), embora a lei
do desejo se imponha para todo sujeito, a maneira como essa imposição se efetua é a mais
singular possível, de modo que, sendo a cada um, tal lei não permite uma validação a
conflituosa entre o sujeito, a lei do próprio desejo e a lei jurídica que é a própria
pela figura de Creonte. Vale ressaltar que Lacan não aponta a psicanálise como adversária
do direito penal, mas que, ali onde o direito penal incide, que só pode ser pelos a prioris
e pelos laços comuns da fraternidade, algo lhe escapa – a maneira como o sujeito se
lei. Como demonstramos, o conceito de passagem ao ato atesta essa dimensão da lei do
desejo, que só pode se afirmar em ato, impedindo não apenas o direito penal, como
objeto de estudo.
tarefa essa que só ele poderá realizar, mais ninguém. A determinação inconsciente do
aparelho psíquico nos aponta que não se pode mais sustentar uma diferença entre o autor
“... é numa certa relação com a morte, como significante privilegiado do corte
operado pela estrutura da linguagem – que concerne a uma perda constitutiva -, que o
sujeito poderá fazer a experiência, sempre pontual, do desejo”. (VORSATZ, 2013, P.
146)
“Pois eu estrangulei minha mulher, que era tudo no mundo para mim, durante uma
crise intensa e imprevisível de confusão mental, em novembro de 1980, ela que me
amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de poder viver, e talvez eu lhe tenha,
em minha confusão e em minha inconsciência, ´prestado esse serviço´, do qual ela não
se defendeu, mas do qual ela morreu”. (ALTHUSSER, 1986, p. 23)
30, de um homicídio terrível cometido por duas irmãs, Christine e Lea, que chocou a
sociedade francesa.
arrancar os olhos das vítimas. Depois, utilizando utensílios de cozinha, se debruçam sobre
os corpos, esmagando e dilacerando os rostos. Ainda, cortam pedaços das pernas e das
uma, à sua maneira, desencadeia uma psicose. Christine, a mais velha, vai para a prisão,
psicótico. No entanto, o juiz revoga a sentença e ela é internada no asilo de Rennes, onde
patroa e sua filha. Mais do que isso, remetem à relação conflituosa com a mãe, da qual a
lugar de mãe repressora, que na relação entre as irmãs é percebida como um terceiro – no
dia anterior, são repreendidas por utilizarem inadequadamente o ferro de passar e, por
Lea era o duplo de Christine e vice-versa. A patroa fratura a relação imaginária, e com
a filha entram na cadeia da identificação delirante das irmãs Papin. Diante da solução que
estabilização.
“... O mal de que intentam se livrar, seu kakon, trama seu destino e no lugar da saída
tropeçam com o frenesi homicida que as isola, sem retorno, de sua paixão fraternal mortal.
Nesse sentido, podemos apontar diferenças entre a passagem ao ato de Aimée e a das
irmãs Papin. Segundo Allouch (1990), Lacan é categórico em relação ao ato de Aimée:
148
produz, o que não quer dizer que, na agressão à empregada ou ao marido, tenha se
efetuado uma estabilização. A passagem ao ato pode conduzir à estabilização, mas nem
atrelada à primeira. No caso das irmãs Papin, Lea sucumbe ao mutismo, mas isso não
significa que ali não esteja um sujeito, que não há cura possível, e que não haja uma
sanção penal que a levou ao encarceramento, a solução encontrada por Lea é deixar-se
O mutismo foi uma alternativa adotada por Lea, a fim de responder às consequência s
modifica da mesma maneira que no caso Aimée. Em uma há estabilização, enquanto que
em outra não. O que podemos afirmar em termos lacanianos, é que a passagem ao ato de
Lea promoveu uma alteração na economia de gozo, mesmo que de maneira limitada.
149
da psicose.
Outro emergir como o duplo igual e rival, na esquizofrenia o desejo da mãe encontra- se
S2 = “Nome-do-pai” / S1 = significante desejo da mãe / X = qualquer coisa que possa significar o desejo da mãe
S2 . S1 = S2 I / x[ ]
S1 x
I (inconsciente) lembra que S1 foi recalcado em virtude da substituição significante. X, o falo, no sentido de
qualquer coisa que possa preencher a falta materna.
𝑆1
→𝐼
𝑋
significante do desejo da mãe, de modo que sobra ao sujeito a identificação com uma
incógnita, a partir da qual o sujeito não pode constituir tampouco a experiência corporal
primária.
150
X (?)
revelam uma tentativa de cura a outro tipo de organização, da qual não trataremos aqui –
o autismo.
um fantasma percebido através das alucinações - vozes que falam incansavelme nte
boca do sujeito à sua revelia, sem sentido ou por muitas vezes, impregnados de
significação.
descrição minuciosa dos vegetais. Porém, há uma questão particular de tais fenômenos
Em Luto e Melancolia (1915), Freud aponta o luto como uma experiência de dor, que,
apenas cinco anos mais tarde, associará à pulsão de morte. Do ponto de vista econômico,
culpa, o qual Freud atribuirá a origem aos crimes fundantes da ordem cultural: o incesto
no luto neurótico o sujeito se identifica parcialmente com o objeto, e mantém com aquele
que se foi uma separação entre a vida e a morte, na melancolia o sujeito permanece como
caracteriza de maneira suscinta, como uma depressão profunda marcada pelas auto-
de linguagem.
que se faz a partir da identificação à mercê das pulsões parciais, pelos cheiros, pela voz,
lugar do luto, sem que o processo de introjeção seja metaforizado. No caso, Freud
apontará que há na melancolia uma introjeção não metaforizada do pai – luto eterno pelo
pai morto, pelo vazio que fora deixado, vazio da própria existência do sujeito.
ou, em outras palavras, o luto melancólico é pelo pai, não o pai-morto, mas o vazio que
Vejamos então como a questão desse luto impossível de se realizar aparece no caso de
Althusser. Primeiro, a questão da morte imbricada ao desejo familiar, o qual ele nomeia
De certo, temos esse ponto inaugural que é receber o nome do tio, Louis: é o homem
que a mãe amava, mas que morrera. Retomemos a tabela que trata da escanção delirante
153
do nome, que ele efetua, a partir da qual poderemos tratar de alguns fenômenos
elementares da melancolia.
exteriorizado com toda a sua consistência através das exigências superegóicas, o Outro
que ordena, entre o pai e a mãe, nas alucinações: “(faça-a) feliz!”, “agora, meu filho, você
é um homem!”, “você é jovem demais para amar!”. A resposta a esse mandato é eu ouço,
eu gozo, da posição de objeto de desejo do Outro, para ser abusado, violentado, estuprado,
sodomizado.
é o luto por algo que não morreu, e que de algum modo ainda vive sob a forma de um
fantasma assustador. É o Pai da Horda, aquele que diante de Lucienne Berger soube
ocupar junto dela o lugar de Louis, ele o morto, mas que Louis que não o próprio
Althusser que na sombra do tio morto nunca pudera existir? Temos então a dimensão do
pai desarticulada em relações triangulares, sem a dialetização fálica, pois, com o ato de
Primeiro triângulo, é o pai que goza, que come a mãe, o pai lobo que uiva durante a
noite, como um lobo à procura de sua presa. É o que amedronta Althusser durante as
154
noites e que comparece no real, na escuridão do banheiro para despregar a glande do filho;
na escuridão, é o pai que atua a voz materna: quando sai do jantar, ordena a Althusser que
faça sua mãe feliz – faça-a (ela, a mãe, feliz). Althusser é o que a mãe deseja, sendo essa
a face terrível da mãe: a mulher que invade seu quarto, que o proíbe de se enamorar de
Simone, que expõe o púbico de Althusser para o público, a que “coloca a mão em cima”.
Lucienne (a mãe)
Segundo triângulo é o pai estuprador, aquele que rouba, violenta e priva a mãe de
trabalhar. Aqui a mãe assume a face-mártir, com a qual Althusser se identifica na relação
especular, como a “chaga aberta que sangra” e que padece ao empalhamento, o i de Louis
que é escutado como a estaca que pode ferir, tal qual na alucinação das Cruzadas. Nesse
sentido, se Althusser é mártir como a mãe, ele pode assumir seu lugar junto ao pai, não
como a esposa, mas como a mante, Louis(e) – é o objeto de desejo do pai: faça-a feliz,
Pai ao significante fálico, pelas etapas lógicas de ser/não ser e ter/não ter o falo materno,
o sujeito se revela frente à castração: como homem ou mulher. Esse duplo efeito da
leitura do caso Schreber, através do lugar de mulher que o presidente assume em seus
pela construção delirante de que ele deveria, primeiro, ser a mulher-objeto para abuso de
todos os homens; se ele não é o falo materno, e diante de um pai castrador, lhe resta se
identificar a essa posição – a mulher que se empresta como falo ao homem para que possa
reaver o que a mãe deseja. Do lado da mulher, sem acesos ao significante fálico, não
primordial, como o que preenche a falta do Outro, agora encarnado na figura de Deus –
aquele que escolheu Schreber, dentre todos os homens, para ser A MULHER de Deus.
Em seu delírio o presidente se reassume como “Sua majestade, o bebê”. Deus aparece
como o Outro que goza e que, enquanto instancia superegóica, dita a Schreber de maneira
Louis(e) Charles
Lucienne
Althusser ao se ver refletido no espelho não conseguia ver nada mais do que uma “fraca
menininha”, lugar diante da mulher que amava, Hélène: “ela, uma mulher, naquele
tempo: era um homem... perto dela, era uma mulher”. A mesma situação se observa na
156
cena em que presencia a avó materna urinando em pé, “tal como um homem”: sem a
dialetização fálica, fica a questão se ela é um homem ou uma mulher, ou, “eu sou um
Um terceiro momento dessa relação é quando o pai assume o papel de cúmplice, esse
uma estabilização pelo delírio de “ser o pai do pai”. No entanto, é o pai zerificado, a figura
Cúmplice de quem então? Da mãe: a cena da briga entre as mulheres, na qual o homem
“Duas balas no cano para minhas filhas e uma terceira ao alcance da mão para mim”,
mas que já não existe. No desejo especulativo, ela era um nada, um vazio, como ele diz:
“Freud chama essa pessoa que morreu de objeto, mas não se trata do objeto pulsional
(o objeto a). Se essa perda é da ordem de um ideal, o que temos em jogo é u m
significante-mestre que poderia ser sustentado por alguém, ou um significante
idealizado [...] Quando esse significante é perdido – ou a sua sustentação -, ele não pode
mais ficar nesse lugar, e a melancolia é desencadeada, pois o sujeito se vê diante desse
“furo no psiquismo”. (p. 205).
Nesse sentido, o que se perde é um significante que é o ideal de eu, o traço deixado
pelo Outro a partir do qual o sujeito pode se situar frente o que esse Outro deseja, o eu
avassalador.
Segundo Berta (2007), Freud nos aponta três momentos para tratar do processo de
sobre o qual o sujeito possa se sustentar; 2) há a perda de objeto, a partir de uma decepção
o investimento do objeto perdido para um outro ideal. Na melancolia, algo de outra ordem
objeto perdido, como diz Freud, “a sombra do objeto cai sobre o eu”.
aponta que a perda do ideal colocava o filósofo frente a esse lugar de desaparecido,
158
quando assumia o amor de outro, o tio morto, tomando para si as consequências desse
drama que era foracluído – ele era o noivo morto, alguém que fora amado no lugar de
outro e por uma coisa que não era. O lastro do desejo especulativo comparecia, através
desse nome: dar o nome de um morto a um vivo, demandando ao sujeito que ocupe tal
Diante desse desejo de morte, é preciso recriar algo que faça véu, algo que possa
tamponar tal vazio, o da própria existência – essa tampa é o ideal. O primeiro momento
que é uma reconstrução do pai potente totêmico, enquanto uma estabilização pelo
invenção da série ser “pai do pai”, através da impostura, disso que está no lugar de outra
coisa.
o que ensina a semear, a plantar, que perpetua a vida, incluindo Althusser no conjunto
dos homens, onde poderia ser reconhecido dentre “verdadeiros homens”. Segundo
Pommier (1998), o artifício da impostura é uma defesa contra o desejo especulativo que
impedia Althusser de “existir por ele mesmo”, contra o que sentia como da ordem do
abuso e do estupro frente as demandas parentais. Althusser só poderia existir por meio de
com a foraclusão do Nome-do-Pai isso não ocorre. Temos a série de invenções do pai,
ato de se dar um pai imaginário, que ao fim do delírio seria ele próprio, o filho: 1º) Pierre
Berger, o avô que semeia; 2º) Sr. Richard, que podia exercer o papel da mãe que Althusser
amava e que o amava reciprocamente; 3º) Dr. Zeghers e Robert Daël, no campo de
159
4º) Marx, “pensar em seu lugar o que ele deveria ter pensado”. A invenção do pai é uma
onde Althusser é um mártir a salvar a mãe, a irmã e Hélène, a face do objeto a como causa
“Não é esta a solução elegante que propõe com... “Pai do pai”? Não é que se inventa
bruscramente um pai: ele mesmo representa a esse Pai do pai que está inventado, e põe
assim em cena as duas instâncias da paternidade necessárias para fazer cesar as auto -
acusações. Fazaer nascer de um lado e matar de outro: entre o surgimento do pai
inventado e o enterro do pai morto o sujeito assume um risco extremo, o da queda em
abismo quando de certo modo estes dois pais cruzam seu olhar 15 ”. (POMMIER, 1998,
P. 128)
No mito da horda, o pai está morto e assim permanecerá para todo o sempre. No
entanto, no caso da neurose, o pai imaginário comparece como uma invenção sintomática,
quando ganha os atributos daquele que sabe sobre o desejo materno. Na psicose, o pai é
inventado para ser morto, porém com a introjeção total, quando o sujeito se identifica
A incorporação pela imitação, das vozes, dos gestos, da letra, dos cacoetes do pai
inventado, permite à Althusser assumir uma existência, quando se localiza em uma cadeia
15
Do original em espanhol: “No es esta la solución elegante que propone con… “Padre del padre”? No es que se
invente bruscamente un padre: él mismo representa a ese Padre del padre que está inventado, y pone así en escena las
dos instancias de la paternidad necesarias para hacer cesar las autoacusaciones. Hacer nacer de un lado y matar del otro:
entre el surgimiento del padre inventado y el entierro del padre y a muerto el sujeto asume un riesgo extremo, el de la
caída en abismo cuando en cierto modo estos dos padres cruzan sus miradas”. (p. 128)
160
geracional, pois, a imitação efetua uma passagem da figura do professor à figura do pai.
tornar perfeitamente aquele que fora imitado, o melancólico só pode encontrar o mesmo
vazio do qual partiu. Do lugar de sombra de um ideal, o sujeito passa a ser o próprio ideal,
a partir de uma injunção de eu ideal com ideal de eu – ao final, resta um cadáver que é o
próprio sujeito.
“Pois bem, agora que se inventou um novo pai, ainda é preciso resolver,
simultaneamente, o problema do cadáver anterior [...] conjuntamente com ele, u m
bricolagem que comporte os pais, capaz de resolver o problema do pai já morto e ao
mesmo tempo de propulsar sobre a cena um novo pai a se matar. É fácil encontrar o pai
a se matar: é o pai objeto da provocação (por isso, a melancolia se inverte em júbilo e
as auto-acusações se interrompem, pelo menos até sua realização). Mas, onde pode se
encontrar o que já está morto? Pois bem, Althusser mesmo irá cumprir este papel, posto
que o introjetou na fase precedente 16 ”. (POMMIER, 1998, p.128)
produção de conhecimento capaz de dar conta de salvar o marxismo: ser o pai do pai, pai
de Marx, pai dele mesmo, ele mesmo pai, ele mesmo ser salvo. No entanto, o pólo
16 Da versão em espanhol: “Pues bien, ahora que se ha inventado un nuevo padre, aún se precisa resolver,
simultáneamente, el problema del cadáver del anterior! […] conjuntamente con ello un bricolaje que comporte dos
padres, capaz de resolver el problema del padre ya muerto y al mismo tiempo de propulsar sobre la escena un nuevo
padre al que matar. Es fácil comprender dónde se encuentra el padre al que matar: es el padre objeto de la provocación
(mientras, la melancolía se invierte en júbilo y las autoacusaciones se interrumpen, por lo menos hasta su realización).
Pero, dónde puede encontrar-se el que ya está muerto? Pues bien, Althusser mismo va a cumplir este papel puesto que
lo introyectó en fase precedente!”.
161
“só me restava abandonar-me a meu ´destino` e cair naquilo que eu desejava, realizar
minha verdade, não mais existir, desaparecer do mundo e ser hospitalizado... ter a
assistência de todos”.
A perda do ideal, o pai inventado, revela a outra face do objeto a, dejeto do Simbólico,
“Já na melancolia, quando desaparece aquilo que tinha uma função de suplência da
foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito se vê jogado nessa identificação com o objeto,
dejeto, largado pelo Outro: o sujeito se identifica com o objeto a. Há um real não-
simbolizado. Desvela-se a própria estrutura do supereu, que toma a dianteira; o sujeito
é então tratado sadicamente como rebotalho pelo supereu [...] o objeto a em seu status
de rebotalho do Simbólico, o objeto a como o vazio, o furo no Simbólico, o equivalente
à foraclusão do Nome-do-Pai. O sujeito se torna esse oco sem consistência alguma, esse
nada” (p. 209-210)
É na fase melancólica que Hélène entra na cadeia delirante, como o significante que
reconstrói o casal parental. Pela associação metonímica há uma contiguidade “eu e minha
mãe, morte e minha mãe, a morte e meu pai, a morte e eu”, em que Althusser e a morte
achatamento para uma reta que representasse a relação narcísica, entre Althusser e o casal
parental, com Lucienne e Charles ocupando um mesmo lugar. Nesse sentido, a foraclusão
traz consequências para a afiliação, em que pai e mãe estão colados e serão reconstruídos
Hélène é essa mulher que na infância fora capaz de matar os pais, uma mulher terrível
tal como Lucienne Berger que o via como um morto-vivo, e que, portanto, também seria
capaz de matá-lo. Ser “o pai do pai” é uma defesa contra esse “colocar a mão em cima”
ou “ter idéias sobre mim”, que na persecução comparece através do Outro consistente, o
O supereu é essa instância penal, o outro do sujeito, o seu próprio mal: objeto a, que
na fase melancólica, é um nada, é a doença venérea que Althusser acredita ter como
punição para uma sexualidade além do destino familiar. Como o avatar voz, o supereu
acusa Althusser pelos males do mundo, pelos pais assassinados, e por esse crime que
aos episódios melancólicos consistem no desinvestimento radical da libido para uma nova
Temos uma série de internações, que Althusser nomeava como “sair permanecendo
Primeira internação. É o terrível inverno de 1928, quando passa pela primeira vez pela
reserva.
O cativeiro nos aponta o princípio da prática da reserva: poupar o corpo do sexo através
da castidade, que perdurou até os trinta anos, na primeira relação sexual com Hélène;
repentinas e casuais que “colecionava”. Althusser era o objeto causa do desejo materno,
a reserva que Lucienne Berger guardava próximo ao seu sexo, a criança que procurava
poupar da vida através das fobias de limpeza, por exemplo. No entanto, era também objeto
dejeto, que ao final de tanta reserva e preservação tem seu uso anulado por conta da
Causa e dejeto são faces diferentes de um mesmo objeto, objeto a, e a cada giro do
ciclo maníaco-melancólico, uma se evidencia, mas sem prescindir da outra. Ser “pai do
pai” é ser o pai da mãe, é uma forma de controlar as ingerências do Outro cruel, mas é
A definição precisa de passagem ao ato para Lacan é: um artifício que pelo qual o
sujeito procura colocar fim ao empuxe-à-gozar superegóico, que comparece pelo objeto
voz através de acusações travestidas de sentimento de culpa – seja culpando o Outro, seja
pela auto-acusação. O caso Althusser e a retomada do caso Aimée e das irmãs Papin é
ato como um rompimento cronológico, a partir da uma reação agressiva a qual o sujeito
17 Do original em espanhol: “Caracterización ligada a algo que impresiona como el orden del automatismo, lo
automático que se impone a la voluntad del sujeto, concepción mecanicista de la actividad psíquica, vinculada siempre
en psiquiatría al organicismo. Esta impresión de mecanismo y automaticidad se asienta en el carácter irruptivo del
fenómeno. Si nos guiáramos por ella caeríamos en el mismo impasse que situamos en la psiquiatría, pues el pasaje al
acto correspondería a la categoría de automatismo mental”. (p. 92)
165
mesma ordem que o automatismo mental, assim não o faz com a passagem ao ato, pois,
como observamos no caso Aimée, é uma solução que visa a resolução do delírio. Nesse
Com o avanço de seu ensino, Lacan articulará a passagem ao ato aos registros do
Simbólico, Real e Imaginário. Supor uma face simbólica no ato, implica em considerar
que uma ação desse tipo só poderia ocorrer no mundo da cultura: não é nem uma ação
ato é um ato simbólico direcionado para uma resolução, ela implica uma historicidade, o
que a coloca fora do terreno das condutas torpes da psiquiatria. (MUÑOZ, 2009).
que inclui Hélène na cadeia de significantes parentais, que na verdade não está suprimido,
A estrutura temporal da passagem ao ato é então uma urgência de conclusão, tal como
deles é a cena do estádio, quando Althusser entende que os tiros disparados eram
destinados a ele; acompanha esse instante de ver, a alucinação das Cruzadas – sangue
jorrando, corte das espadas e empalhamento, ou seja, há um Louis morto atrás dele, uma
O segundo episódio é a tentativa de suicídio, quando recebe do pai como presente uma
carabina nove milímetros. O pai o ensinara a atirar, e Althusser tinha terror em matar,
porque tinha a certeza que se ele fosse o alvo, não erraria mais e seria certeiro. No bosque,
o clímax desmaia. A primeira vez com Hélène é percebida como um estupro: se diante de
Hélène, que era uma mulher- homem, ele se sentia uma mulher, era ele quem era
penetrado, e não apenas isso, empalado, submetido ao pai imperador, tal como fora
Lucienne Berger, sua mãe. Segue-se mais uma internação, dessa vez nada apaziguadora,
mas desastrosa, cuja culpa foi atribuída à Hélène: “a culpa de tudo era de Hélène”.
cumprido”.
O delírio suicida
Pommier (1998) nos aponta que o encontro entre Althusser e Hélène foi definitivo e
total: a relação sexual o coloca frente ao vazio foraclusivo e, ocupando diferentes papéis,
passagem ao ato acontece. Embora Althusser tenha relegado à Hélène o papel de sua
salvadora por conta do aborto que ela fizera, ela se tornou o principal elemento da
especular, narcísica.
Hélène primeiro assume o traço identificatório materno, seja como aquela que coloca
“as mãos sobre ele”, seja como a mártir que não pode fugir dos abusos do Outro. Depois,
é um personagem da série paterna, mas não como “pai do pai”, e sim como quem pode
rivalizar com Charles - Althusser e Hélène se casam apenas após a morte do pai (dele) –
abandoná-lo. Em terceiro, Hélène é seu duplo, pois é uma mártir como ele, alguém que
ocupa o mesmo lugar a ele destinado na injunção das famílias Berger e Althusser.
Pommier (1998) indica a função de duplo ocupada por Hélène, enquanto prova da
possiblidade da impostura de trair o desejo materno, mas sem deixar de realiza-lo, e que
“Se Althusser considera que Hélène o salvou, é porque duran te a internação ela
havia se apresentado como uma irmã caridosa. Situada no exterior do asilo como está
do Partido, se identifica como a irmã excluída do campo dos homens, ao mesmo tempo
fora e dentro. Representa o que ele mesmo teria feito se houvesse ous ado sair do campo
de concentração. [...] Graças a ela pode preparar um plano de evasão análogo ao que
forjou no stalag. Seja no campo de concentração, no manicômio, no Partido ou na
Universidade, por todas as partes reina a ordem da sociedade dos irmãos varões, ordem
persecutória porque impõe sempre uma excessiva docilidade ao domínio de um pai. [...]
Já antes de sua hospitalização e através de Hélène [...] Althusser via diariamen t e
realizado diante de si o sonho do stalag 18 ”. (p. 178)
18 Do original em espanhol: “Si Althusser considera que Hélène lo salvó, es porque durante la internación ella se
había presentado como una hermana caritativa. Situada en el exterior del asilo como lo está del Partido, se identifica
con la hermana excluida del campo de los hombres, a la vez afuera y adentro. Representa lo que él mismo habría sido
si hubiese osado salir del campo de concentración. […] Gracias a ella puede él preparar un plan de evasión análogo al
que forjó en el stalag. Sea en el campo de concentración, en el manicomio, en el Partido o en la Universidad, por todas
partes reina el orden de la sociedad de los hermanos varones, orden persecutorio porque impone siempre una excesiva
168
(1915), Freud traz sua interpretação da auto-acusação como um fenômeno fundame nta l
na melancolia, quando o sujeito se acusa pela perda do objeto e pelas dores do mundo.
na acusação do Outro, o que nos traz a questão da relação da melancolia com a paranoia.
do velamento fálico, a relação com o outro encontra-se pautada pelo tensioname nto
de vinte anos, Althusser efetuou uma paranoização pela transferência. A solução suicida
A primeira tentativa de suicídio de Althusser teve seu lugar na infância, quando dirige
a espingarda à barriga. O ato não se concretizou por uma razão que é por ele
desconhecida: “algo me deteve, não sei o que nem o porquê”. O mesmo acontece no
episódio quase cinquenta anos mais tarde, quando mata Hélène: diante da decisão que a
esposa havia tomado, abandoná-lo, ele ameaça suicidar-se e assim, de repente, como na
cena da espingarda, ele chega à conclusão de que quem quer se matar é ela.
no luto impossível. Althusser recria a figura do pai no pólo maníaco, que no processo
docilidad al yugo de un padre. […] Y antes de su hospitalización y a través de Hélène […] Althusser veía diariamente
realizado ante sí el sueño del stalag”. (p. 178)
169
Ele resolve o problema do cadáver do pai pois ele mesmo é o pai, ele mesmo deverá
no outro, Hélène: “ela quer se matar”. Na passagem ao ato, de repente Althusser mata
Hélène que na série delirante identificatória assume o personagem parental que quer
colocar as mãos sobre ele e que pode abandoná-lo como um objeto dejeto – “ela quer me
localiza a culpa no Outro, pois ele efetua na escrita delirante o caminho inverso – ela quer
me matar, eu quero me matar, ela quer se matar (ou quer ser morta). O homicídio é então
Para Lacan, toda passagem ao ato possui um aspecto imaginário, um simbólico e outro
reconstrói o casal parental e assume, ao mesmo tempo, o lugar do Outro abusador, o seu
A face simbólica consiste na função desse ato específico. Primeiro, que na verdade o
objeto agredido é um significante que representa o sujeito para outro significante, ou seja,
170
Hélène é o próprio kakon, a invasão de gozo que invade Althusser através do temor de
“pôr a mão sobre mim” e de ser abandonado. Atingindo Hélène ele procura extirpar o mal
aspecto real diz respeito à natureza do mal interno: é o que não cessa de não se inscrever,
psíquico.
Nesse sentido, a passagem ao ato se caracteriza por uma operação real de conteúdo
imaginário com um efeito simbólico. Segundo Quinet (2006), a passagem ao ato não é
construções delirantes como aquela efetuada por Schreber, as quais possuem um processo
de edificação diverso, ao ponto de Lacan defini- la, no seminário sobre a angústia, como
ao ato, posto que na resolução suicida o sujeito encontra-se identificado ao objeto a, tal
como vimos no caso Althusser, que nos episódios maníacos, através do pai do pai, se
ataque ao narcisismo, que consiste em atravessar o Outro que é sua própria imagem para
destino, aquele do desejo especulativo, não mais existir, ser um nada, ser o resto do
mundo, reconhecendo-se como o próprio kakon a partir das auto-acusações que o supereu
indica.
tratamento pelo real que visa eliminar o kakon, o nome do gozo insuportável que invade
nele ser abandonado, provocava terror e angústia em Althusser, que se via impotente de
elaborar um luto, pela perda desse objeto representado por Hélène: remetia ao objeto
Althusser efetua um processo de luto por uma operação que nunca ocorreu – a
metáfora da perda inaugural – e que retorna na perda de Hélène, posto que esta mulher é
pode descolar seu “desejo prático real”. Perdendo a matriz inconsciente de seus
investimentos, ele sente-se impotente para investir no mundo externo, nas relações com
o outro, de modo que, pela experiência do luto melancólico, a perda do objeto amado se
Althusser não iniciou um trabalho de luto com a morte de Hélène, mas deu
própria morte, através do desejo especulativo materno e das mulheres com as quais se
relacionara. Sempre esteve de luto por ele mesmo, e embora tenha sido uma solução
interposta”, enquanto resolução de um delírio que se acelerou pelo encontro total com
essa mulher, aponta para isso que não tem nenhuma condição: de qualquer modo, ele teria
consistia na destruição de toda a realidade, na qual todos os objetos eram seu apêndice:
“... eu queria destruir tudo, meus livros, Hélène, que eu havia matado, meu
analista, mas a fim de ter a absoluta certeza de me destruir, conforme eu fantasiava em
meus projetos de suicida. Unicamente porque no fundo de mim, inconscientemente,
queria a todo custo me destruir, pois, desde sempre, eu não existia. Que melhor prova
de não existir senão chegar à conclusão de se destruir depois de ter destruído todos os
meus chegados, todos os meus apoios, todos os meus recursos”? (Althusser, 1986, p.
243).
destruição de todos os amigos dos quais se afastava, das mulheres que fazia sofrer, e da
mulher ao lado da qual passara trinta anos, a qual assassinou. Althusser encontrou outro
caminho para executar sua própria morte e sua vontade de matar, presente desde a
infância, de modo que o trabalho de luto impossível sobre o outro era uma elaboração de
sua auto-destruição.
174
repete incessantemente.
“E em mim a morte estava inscrita desde o início: a morte daquele Louis, morto
atrás de mim, que o olhar que minha mãe fixava através de mim, condenando -me àquela
morte que ele conhecera nos altos céus de Verdun e que ela não cessava de sentir
compulsivamente em sua alma e na repulsa daquele desejo que eu realizav a
incessantemente” (Althusser, 1986, p. 243).
Através dos artifícios e das imposturas, de ser o “pai do pai” enquanto professor,
acertar o outro para não se acertar, fundamento do projeto suicida, cujo início se dera no
episódio da carabina. Matar-se matando o outro, destruindo a todos para então restar o
próprio Althusser, com seu desejo prático real e as infinitas possibilidades do que resta,
análise com o “verdadeiro analista”. Em 1985, entre março e maio, escreve sobre a
retenção de seus afetos, no entanto não a publica – este seria seu último escrito, pois nunca
mais publicaria. Foi mantida na gaveta até sua morte, em 1990 - a questão da publicidade,
que sempre rodeou seu nome, embora tenha dito que sempre a recusara. Porém, se havia
tribunal, cuja promotoria será o supereu exteriorizado. Nesse Outro tribunal, o sujeito se
auto-acusa através do supereu juiz que deverá puni-lo pelo crime cometido. No caso de
mesma dos três temores descritos por Althusser: ele tinha medo de ser abandonado, de
ser abusado e de ser exposto. Medo de ser exposto pois pela publicidade, o direito como
condenação definitiva. Com o “púbico revelado”, no céu aberto e infinito onde morrera
20 Da versão em espanhol: “La escritura autobiográfica de Althusser no forma parte de aquellas complacientes
rendiciones de cuentas que toman al lector por testigo de una existencia agitada. Alega por la inocencia de un autor al
que se presume culpable, y además culpable de ser una vez más autor. En El porvenir es largo, Althusser tenía algunas
razones para intentar disculparse, pero no fue así en su primera autobiografía, también escrita en el estilo proprio de la
confesión. No porque hable de una existencia poco recomendable, sino porque el filósofo se presenta a sí mismo de
una manera lastimosa, cómica, ridícula, […] Estas modalidades de presentación formalizan en su caso las autocríticas
y autoacusaciones que caracterizan a la melancolía”. (p. 147-148)
176
textos em que apresenta tanto uma teoria própria quanto um retorno à Marx, nos demanda
um trabalho minucioso e detalhado, o que nos conduziria a tratar da relação entre obra,
A questão é que após cada publicação, Althusser via se realizar o temor de ter sua
nudez revelada ao público, e ter exposta a sua impostura. O que se sucedia eram as crises
tudo o que lhe é contíguo e, portanto, prova de seu crime, incluindo sobretudo os livros.
novo pai, a própria solução delirante continha o passaporte para a regressão ao estado
Diante da publicação, Althusser era convocado como sujeito a sustentar seu desejo,
pois as editoras exigiam que ele assinasse o nome-próprio: convoca Louis, o morto- vivo
do desejo especular, e a invenção “pai do pai” através do qual ele reconstrói o ideal, o
Nesse sentido, O futuro dura muito tempo, a própria articulação entre o osso da
psicanálise e o osso do direito penal, é escrito por Althusser sem fim de desculpabilização
personagem principal é o juiz supereu que o acusa desde a descrição da cena criminosa
pela qual fora declarado inimputável – o próprio Althusser que se declara, de antemão,
“Freud descreve a melancolia como um ataque do supereu, desvelando-se esse último como
a pura cultura da pulsão de morte. O supereu pode conseguir “levar o eu à morte, se este não
consegue se defender desse tirano”. Mas como o eu se defenderia do supereu? Ora, com a mania.
Para Freud, a mania não é uma defesa contra a depressão, mas sim contra o supereu. O sujeito
escapa do supereu no processo melancólico virando maníaco. Mas como? Freud diz que para
escapar do supereu o sujeito vai se agarrar a um ideal. Podemos dizer que h á do lado da mania
uma tentativa de se agarrar ao Imaginário, mas também podemos supor que o ideal pode ser um
significante de suplência à foraclusão do Nome-do-Pai”. (QUINET, 2006, p.215-216)
“Tenho sessenta e sete anos, mas finalmente sinto-me, eu que não tive juventude,
pois não fui amado por mim mesmo, sinto-me jovem como nunca, ainda que a história
deva acabar brevemente. Sim, o futuro dura muito tempo” (Althusser, 1986, p. 245).
178
O que é uma articulação? É uma conexão entre dois ou mais ossos, que são
classificadas de acordo com o tipo de tecido que reveste a área de conexão e com o tipo
região de conexão entre duas ou mais estruturas ósseas que não se misturam, mas que se
Diante da indagação de Althusser, do que não cessa de não se escrever: “o que afinal
aconteceu naquele domingo 16 de novembro entre mim e Hélène, para se chegar a esse
direito penal, ali na margem onde a psicanálise pode intervir, onde um analista pode
Isso quer dizer que o campo jurídico e o campo de uma análise não coincidem: se
um lugar para a psiquiatria através das perícias, no terreno de tensões onde o direito
procurou assegurar um status científico, no saber médico, abriu uma frente de trabalho na
saúde mental, em que analista e juiz se encontram por meio das práticas e estratégias de
intervenção.
determinação dos fatos nos processos jurídicos (1906), aponta algumas restrições quanto
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segregação legalizadas.
produz como efeito o sujeito de direitos: aquele ao qual podemos imputar uma
esse direito do qual fora privado, ao ser considerado inimputável por conta de
responsabilização.
que remete a outro sujeito, então o sujeito do inconsciente. O sujeito dividido, efeito do
significante, e que na psicose comparece exposto, a céu aberto, pela foraclusão do Nome-
do-Pai. Se a cena criminosa evoca a Outra cena, o sujeito é evanescente, e não está na
Sujeito cuja determinação inconsciente desloca o crime para a dimensão do ato. Nesse
passagem ao ato, que promove uma mudança no assentamento subjetivo do sujeito que
comete o crime. O que nos conduz ao caso a caso, retomando a afirmação de Lacan em
Entretanto, o Código Penal Brasileiro, assim como qualquer dispositivo legal, concebe
uma lei que seja universal para todo sujeito, mesmo que a ela sejam validadas certas
irresponsáveis.
através das perícias e dos pareceres, definiu um novo campo científico, interdisciplinar,
tratamento marcado por uma série de abusos que perpetuam um tipo de violência que fere
travestidas em medidas de segurança- “um futuro que dura muito tempo”, um futuro que
O sujeito psicótico está no campo da doença mental para o Código Penal: irresponsáve l
pois inimputável e está, portanto, isento de sofrer sanção penal; diante da problemática
intuito é a readaptação individual através de uma “segregação tutelada” pelo Estado, pois
Desse modo, o Direito Penal opera a partir de dispositivos legais que regem o comum,
cultura, nas relações de aliança que organizam o gozo a partir de uma economia libid ina l
padrão, regida pelas coordenadas fálicas, e que, por mais que haja um esforço para atender
proteger políticas identitárias, algo sempre escapa à legislação universal. Seria também
ilusão imaginar que o direito pudesse visar outra coisa que não a normatividade e a
universalidade, sendo esta a sua impossibilidade – o cada um, o caso a caso está para além
Reconhecer tal impossibilidade, no entanto, não nos exime de atentar aos efeitos
Em contrapartida, o discurso analítico opera no caso a caso, no cada um, e seu limite
conceito forjado por Foucault nos cursos do Collège de France (1970-1982), e tomado
por Pablo Muñoz (2009) para caracterizar o direcionamento do ensino de Lacan: des-
psiquiatrizar como subverter os preceitos clínicos psiquiátricos para então reinventá - los
no campo da psicanálise.
e pelo direito penal, mas entende que ela implica o sujeito, sua relação com o Outro e o
objeto a. A psicanálise introduz uma dimensão ética ao crime, como o ato homicida -
suicida de Althusser.
Se a psicose nos aponta a própria condição humana revelada a céu aberto, a passagem
ao ato coloca em jogo a maneira como a responsabilidade está posta para a psicanálise, a
partir de uma epistemologia diversa da jurídica, para além de atributos egóicos como a
desresponsabiliza o sujeito, mas ao contrário, convoca-o a responder pelo que faz e pelo
que diz a partir de sua singularidade, e somente ele poderá fazer isso.
Como um tratamento pelo real, a passagem ao ato é uma solução radical que consiste
na destituição do Outro e na anulação total do sujeito. Muito bem que em muitos casos,
isto não é via de regra. A questão é que essa solução desesperada pode abrir um caminho
seminário 23, O sinthoma (1976) por suplência – mas a passagem ao ato não é suplência.
Ao convocar o sujeito a responder por seu ato, o direito penal oferece a possiblidade
da elaboração da culpa que causa o crime, através da aplicação da sanção penal, o que
produz como efeito a responsabilização. No entanto, isso não significa que o sujeito não
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irá voltar a cometer o mesmo crime, ou outro crime relacionado, nem que isso apaziguará
passagem ao ato pode produzir a cada um. Aí a psicanálise comparece, na zona de limite
prática, para um outro momento, mas sabemos que as engrenagens do sistema penal
controle e segregação. Por isso, nenhuma das duas vias possui um valor terapêutico para
uma clínica das psicoses: nem o manicômio judiciário, nem a penitenciária; nem a medida
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Adotou-se normas da ABNT.
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2013.
ANEXO
*1928: aos dez anos, durante um ano, vive com os avós nos bosques do Morvan. Tentativa
de suicídio/episódio da carabina.
*1938: morre o avô materno, Pierre Berger. Paul, companheiro escoteiro, se apaixona por
uma menina.
Guerra Mundial.
desastrosa.
psiquiátrico de Soisy.
cardíaco fulminante.