Você está na página 1de 208

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

LEONARDO LOPES

O CASO ALTHUSSER
Articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo

2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

LEONARDO LOPES

O CASO ALTHUSSER
Articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia Social, sob a orientação do
Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho.

São Paulo

2015
LOPES, L. O caso Althusser: articulações possíveis entre Psicanálise e Direito Penal.
Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Psicologia Social.

Aprovado

em:_______________________________

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________

___________________________________

___________________________________
AGRADECIMENTOS

Porque como disse, diria, diz Chaplin, “cada pessoa que passa em nossa vida, passa
sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra; cada pessoa que
passa em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si e leva
um pouco de nós – essa é a mais bela responsabilidade da vida”. A cada responsável por
esse trabalho:

Raul Albino Pacheco Filho, o orientador, por suportar, na equivocidade do verbo em


francês “supporter” – apoiar, sustentar – as idéias que brotaram pelo caminho dessa
escrita, lado a lado; por incentivar a participação na transmissão da psicanálise, não de
qualquer maneira, mas a partir da precariedade responsável que pertence a um analista.

Sandra Letícia Berta, pela escuta, contribuição marcante e participação tão singular
neste trabalho, na minha formação de analista. Pela abertura à Outra língua, por
suscitar em mim a inquietação que pulsa, “como en el muro la hiedra, y va brotando,
brotando...”.

Oswaldo Henrique Duek Marques, pelo acolhimento no campo da norma, por encarar a
seriedade de meu trabalho com muita juventude. Por ratificar que a formação é
permanente e constante, dia após dia.

CNPQ, pelo auxílio financeiro que possibilitou o desenvolvimento da pesquisa.

Colegas do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha II, em


especial, Marinha e Zulene.

Colegas do Núcleo de Psicanálise e Sociedade do Programa de Psicologia Social da


PUC-SP, pelas vivências compartilhadas.

Flávia Arantes Hime, quem me iniciou na atividade de pesquisa. Por ser uma fiel
admiradora, pelo espaço especial que me foi reservado em sua família, em seu coração.

Berenice Pompilio, por ter me conduzido, e ainda hoje, pelas delícias da língua francesa,
pelas ruas enigmáticas de Paris, pelas idiossincrasias humanas, com rigor, exigência,
mas também com muito amor. Pela parceria cotidiana.
Regina Fabbrini, essa grande mulher que me apresentou Lacan e que participou
diretamente da escuta de Althusser, e que desde lá dos primórdios procurou colocar em
relevo a voz tão singular e particular que pertence a cada um de nós. Por todo o afeto.

Ana Laura Prates Pacheco, Antonio Quinet e Conrado Ramos, pela paixão que
transmitem nesse caminho irreversível que é a psicanálise, paixão que me causa.

Colegas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, pelo respeito e abertura à


interlocução: Ana Paula Gianesi, Tatiana Assadi, Ana Paula Pires, Silvana Pessoa,
Beatriz Almeida, Beatriz Oliveira, Ivan Ramos Estevão, Clarissa Metzger e Rodrigo
Pinto Pacheco.

Professores da PUC-SP, em especial, Rosane Mantilla e Plínio Maciel Jr.

Amigos: Bruna Baumgartner, Fernanda Zacharewicz, Joana Penteado, Maria Cláudia


Formigoni, Mariana Fulfaro, Mariana Magalhães do Carmo, Marina Chaves, Susy de
Carvalho, Vanessa Chreim e Virgínia Rett Lemos.

Marlene, secretária do programa, por toda a paciência e atenção.

E Dominique Fingermann, por razões únicas.


LOPES, Leonardo. O caso Althusser: articulações possíveis entre psicanálise e direito
penal. 2015. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo,
2015.

RESUMO

A referida pesquisa procura tecer possiblidades de articulação entre o campo psicanalítico


e o do direito penal, partindo do caso do filósofo Louis Althusser enquanto paradigma da
dimensão trágica do inimputável. Para isso, utiliza-se como metodologia a análise de suas
memórias autobiográficas, O futuro dura muito tempo (1990), escritas cinco anos depois
de ter estrangulado sua esposa e ter sido declarado irresponsável por conta de uma psicose
melancólica. O lugar do psicótico no discurso jurídico convoca o saber psicanalítico pela
temática da responsabilização, a qual encontra-se presente na obra de Jacques Lacan
desde os primórdios de seu ensino, quando procura des-psiquiatrizar o dito “louco
infrator” e operadores clínicos específicos, como a passagem ao ato. Além disso, termos
comuns à psicanálise e ao discurso penal, como lei, crime e culpa, assumem significações
diversas em cada campo, cenário que conduz a investigação por duas vias. Primeiro, pela
abordagem da psicose, como estrutura de linguagem efeito da foraclusão do significa nte
do Nome-do-Pai, e da melancolia de Althusser, como um luto permanente pelo vazio
deixado pela Verwerfung. Segundo, pela concepção do crime homicida como uma
passagem ao ato, e, portanto, ato causado pelo sentimento de culpa e que tem como
consequência inevitável a responsabilização. Conclui-se então que há uma hiância entre
os pressupostos do sujeito do direito e do sujeito do inconsciente, entre responsabilidade
jurídica e a responsabilidade singular, mas que não impede articulação. O sujeito é sempre
responsável por sua posição na estrutura, e a incidência da lei através da convocação penal
pode abrir a possiblidade para a estabilização. Nesse sentido, o crime cometido por
Althusser não fora um ato imotivado, mas uma solução contra o delírio suicida, que revela
a própria estrutura inconsciente da melancolia, e que nem por isso poderia tê-lo impedido
de responder juridicamente.

Palavras-chave: Psicanálise, Direito Penal, Althusser, passagem ao ato,


inimputabilidade, responsabilidade.
LOPES, Leonardo. Althusser case: articulation possibilities between the
psychoanalysis and the criminal law. 2015. Master´s thesis. Post-graduate Social
Psychology Program. Pontifical Catholic University of São Paulo (PUC-SP). São Paulo,
2015.

ABSTRACT

This research weaves articulation possibilities between the psychoanalytic field and the
criminal law, using the case of the philosopher Louis Althusser, while a paradigm of
tragic dimension of the not imputable. There for, it is used as an methodology the
analyze of his autobiographical memories, written on "The Future Lasts Forever"
(1990), five years after strangled his wife and get declared irresponsible because of a
melancholic psychosis. The place of the psychotic in legal discourse calls
psychoanalytic knowledge for the discussion of responsibility, which is present in the
work of Jacques Lacan, since the beginning of his teaching, when he looked for an
dissociation between the term "mental offender" from psychiatry, such as specific
clinical operators, as" passage to the act" as well. In addition, terms common to
psychoanalysis and the criminal speech, such as law, crime and guilt, assume different
meanings in each field, a scenario that leads research in two means. First, the psychosis
approach, as language structure produced by foreclosure of the significant in the Name-
of-Father, and Althusser´s melancholy, as a permanent mourning from the emptiness
left by Verwerfung. Second, the conception of homicidal crime as a passage to the act
and therefore act caused by guilt feeling and whose inevitable consequence
accountability. We conclude, therefore, that there is a hiatus between the law subject
from the of subject of the unconscious, among legal responsibility and individual
responsibility, but that does not prevent its dialogue. The subject is always responsible
for his position in the structure, and the incidence of the law by criminal summons may
open the possibility for stabilization. In this sense, the crime committed by Althusser
was not a motivated act, but a solution against suicide law, which reveals the very
melancholy unconscious structure, and that by no means could have stopped him from
answering legally.

Key words: Psychoanalysis, Criminal Law, Althusser, passage to the act, liability penal,
responsibility.
LOPES, Leonardo. Althusser: des articulations possibles entre la psychanalyse et le
droit pénal. 2015. Mémoire du Master. Programme d´Études Supérieures en Psychologie
Sociale. Pontificale Université Catholique de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2015.

RÉSUMÉ

Cette recherche tient comme but : tisser des possibilités d´articulation entre le champ
psychanalytique et celui du droit pénal, à partir du cas Althusser, tandis que un paradigme
de la dimension tragique des non-imputables. Pour ça, il a pris comme méthodolo gie
l´analyse de l´autobiographie, L´avenir dure longtemps (1990), écrit cinq ans après
qu´Althusser a eu étranglé sa femme et qu´il a eu déclaré non imputable en raison de la
mélancolie. La place du psychotique dans le discours juridique convoque le savoir
psychanalytique au travers de la thématique de la responsabilité, laquelle c´est présente
chez-Lacan depuis le début de son enseignement. Lacan cherche « de-spsiquiatrizar » le
fou criminel et des opérateurs cliniques spécifiques, comme le passage à l´acte. En outre,
il y a des concepts communs à la psychanalyse et au droit pénal, comme loi, crime, et
culpabilité, qui gagnent des significations très divers chez chaque champ, scène qui
conduit la recherche en deux parcours. En premier, la notion de psychose comme une
structure linguistique effet de la forclusion du signifiant du Nom-du-Père, e de la
mélancolie d´Althusser comme un deuil permanent par le vide laissé par la Verwerfung.
En deuxième, la notion du crime homicide comme un passage à l´acte et donc, un acte
causé par pour le sentiment de culpabilité et qu´il y a comme conséquence l´inévitab le
responsabilité. La conclusion : il y a une béance entre les hypothèses du sujet du droit et
du sujet de l´inconscient, entre responsabilité juridique et responsabilité singulière, mais
ça n´empêche pas une articulation. Le sujet est toujours responsable pour sa position chez-
structure et l´incidence de la loi, au travers de la convocation pénale, elle peut permettre
la possibilité de stabilisation. Alors, le crime qu´Althusser a commis ce n´est pas un acte
immotivé, mais en fait une solution contre le délire suicide, qui révèle la structure
inconsciente de la mélancolie et qui n´aurait pas pour autant empêché Althusser de
répondre juridiquement.

Mots-clés : Psychanalyse, Droit Pénal, Althusser, passage à l´acte, non-imputabilité,


responsabilité.
“Ele faria da queda um passo de dança,

do medo uma escada,

do sono uma ponte,

da procura um encontro”

Fernando Sabino
SUMÁRIO

Apresentação....................................................................................................................1

Introdução – uma responsabilidade singular.................................................................8

PARTE I. Recorte Clínico.............................................................................................10

Capítulo 1. A clínica do detalhe................................................................................15

Partindo de Clérambault.............................................................................................18

A subversão de Lacan..................................................................................................20

Capítulo 2. Leitura de Caso......................................................................................23

Lembranças encobridoras...........................................................................................26

Mãe-mártir e o princípio do artifício...........................................................................30

Jacques Althusser........................................................................................................35

Ser o pai do pai............................................................................................................40

O campo de prisioneiros..............................................................................................44

Hélène.........................................................................................................................48

Entre desejo especulativo e desejo prático real...........................................................56

Capítulo 3. Os antecedentes do crime......................................................................61

PARTE II. A foraclusão do Nome-do-Pai....................................................................65

Capítulo 4. O que é um pai?......................................................................................70

A relação especular.....................................................................................................70

Dialética fálica e o significante do Nome-do-Pai........................................................77

Capítulo 5. Da foraclusão do Nome-do-Pai..............................................................82

Verwerfung..................................................................................................................84
A dimensão temporal no conceito de foraclusão.........................................................88

Capítulo 6. A concepção de doente mental no Código Penal Brasileiro.................90

PARTE III. A regra do jogo..........................................................................................97

Capítulo 7. A lei determina o jogador....................................................................102

Ação ou conduta penal..............................................................................................103

Tipicidade e antijuricidade.......................................................................................105

Culpabilidade............................................................................................................106

Capítulo 8. Crime e lei para a Psicanálise..............................................................112

Para além do pai.......................................................................................................117

Os nomes do pai........................................................................................................119

Capítulo 9. Passagem ao ato e o caso Aimée...........................................................122

O caso Aimée.............................................................................................................124

Capítulo 10. Supereu e Kakon................................................................................129

PARTE IV. Responsabilidades...................................................................................134

Capítulo 11. Sujeito do direito e sujeito do inconsciente.......................................138

Uma responsabilidade singular................................................................................140

Irmãs Papin: responsabilidade e estabilização........................................................146

Capítulo 12. O luto melancólico.............................................................................149

Althusser e o luto impossível.....................................................................................152

Uma tampa para o vazio...........................................................................................157

Pólo melancólico e o campo de prisioneiros............................................................162

Capítulo 13. A passagem ao ato do melancólico...................................................164

O delírio suicida.......................................................................................................166

A passagem ao ato e o paradigma melancólico.......................................................169


Capítulo 14. O futuro dura muito tempo..............................................................172

Considerações Finais...................................................................................................178

Referências Bibliográficas..........................................................................................185

ANEXO.........................................................................................................................195
1

APRESENTAÇÃO

Arrisco a dizer que, se Freud parte do sonho histérico como paradigma do sujeito do

inconsciente, Lacan, em seu movimento de retorno ao pai, localiza a passagem ao ato do

psicótico como via régia de acesso ao inconsciente. Tal proposição é indicada pelo

próprio Lacan, posto que a questão da responsabilização do psicótico faz-se tema presente

em seu ensino, desde sua tese de doutorado, onde Aimée é apresentada como caso

princeps, até os desdobramentos da formalização do objeto a, no Seminário X, A angústia.

Através da tese do inconsciente estruturado como linguagem, Lacan efetua uma torsão

em termos provenientes do saber psiquiátrico, quando desloca a psicose do campo da

doença mental para o da estrutura de linguagem, e ao abordar a passagem ao ato, não

como ato imotivado, mas como um tratamento possível para a invasão avassaladora de

gozo, enquanto última solução para um sujeito que ainda resiste ao desaparecimento.

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957), Lacan

reconhece que é o caso Aimée, através da discussão com a criminologia, que o conduz ao

cerne da ciência freudiana. Desse modo, a tripla articulação empreendida por Lacan no

termo passagem ao ato – o sujeito e o significante, as relações de alienação/sep aração

com o Outro, e a dimensão do gozo e do objeto a - procura ir além dos impasses com os

quais se defronta o campo médico-legal, a saber: as questões relativas à responsabilização

pelo ato e à implicação do sujeito nas consequências de tal operação. Temos um campo

de tensão, posto que o conceito psicanalítico de responsabilidade difere daquele presente

em termos jurídicos, nos quais encontra-se vinculado às categorias da intencionalidade e

da vontade.
2

Pela prática analítica nas instituições, observa-se, em contrapartida, um modelo de

intervenção penal específico para os “irresponsáveis perigosos” previstos pelo Código

Penal Brasileiro, enquanto resultado de sucessivas discussões ao longo da história, entre

o campo da psiquiatria e o campo do direito penal. Desse modo, o lugar do doente mental

na clínica jurídico-psiquiátrica é sustentado pelos conceitos de inimputabilidade, (ir)

responsabilidade, pela estratégia da periculosidade e pelo dispositivo legal da medida de

segurança.

O discurso do direito penal, constituído pelo desenvolvimento de políticas crimina is,

agregou elementos de uma ciência criminológica de caráter médico, a qual procura

despenalizar o crime através de um certo tratamento do dito “louco delinquente”, em que

a desresponsabilização acaba por destiná-lo à uma existência desumana, de morto-vivo –

o psicótico como um desaparecido.

É nesse palco que, nos princípios da clínica, conheci Louis Althusser e por ele fui

recebido no manicômio judiciário, com o seguinte dizer: “Agora você é um Outsider1 ”.

Quem é Louis Althusser?

Louis Althusser nasceu em 1918 na Argélia. Filho de pais franceses, viveu exilado em

campo de prisioneiros durante toda a Segunda Guerra, até que em 1945 ingressou na

École Normale Supérieure, onde lecionou por mais de trinta anos como professor de

filosofia. Reconhecido como teórico marxista, a partir de obras como Ler “O capital”

(1965), Elementos de autocrítica (1973) e Posições (1976), foi membro do Partido

Comunista Francês desde 1948 e expoente intelectual dos movimentos de maio de 1968,

além de figura de enorme influência na América Latina. Também teve relação próxima

1 Vocábulo de língua inglesa utilizado por Althusser, ao receber Lacan na École Normale, quando o psicanalista fora
expulso da IPA. O significado, alguém que está de fora, remete à inclusão interna da exclusão e à construção delirante
de Althusser, a partir da experiência de internação no campo de prisioneiros: “ir para fora permanecendo dentro”. Ver
capítulo 12.
3

com a psicanálise, seja na história do movimento psicanalítico (ao acolher Lacan quando

de seu rompimento com a Associação Psicanalítica Internacional, em 1963), seja pela

experiência da análise pessoal.

Em novembro de 1980, durante o ato sexual, em um surto psicótico aos 62 anos,

Althusser estrangulou sua esposa, Hélène Rytmann, com a qual mantinha relações desde

1946. O caso foi um escândalo para os intelectuais franceses, ainda abalados com o

suicídio de outro filósofo marxista, Nikos Poulantzas, em 1979. Houve uma tentativa de

abafar o escândalo por parte dos amigos de Althusser, mas a imprensa e os inimigos

políticos do filósofo retrataram e entenderam o crime como o traço de uma personalidade

doentia, responsável por corromper a mente da juventude de sua época.

Durante o inquérito, Althusser diz não se lembrar das circunstâncias do crime - apenas

que massageava a esposa e que, de repente, quando se deu conta, já a tinha matado. Por

conta da gravidade de seu quadro melancólico, sofreu internação direta e compulsória no

Hospital Psiquiátrico de Sainte-Anne, onde permaneceu até 1983. Foi considerado

inimputável, de acordo com o artigo 64 do Código Penal Francês da época, e não teve

julgamento. Ao fim da hospitalização, Althusser desapareceu da cena intelectual francesa:

esquecido, excluído, faleceu em 22 de outubro de 1990, aos 73 anos, em uma clínica

psiquiátrica francesa, em decorrência de insuficiência cardíaca.

Sua morte o trouxe novamente aos noticiários, quando foi descoberto em sua casa um

texto escrito em 1985, sob o título de L´avenir dure longtemps (O futuro dura muito

tempo), o qual continha suas memórias. Althusser recorda em sua autobiografia eventos

traumáticos de sua infância, desde a morte do tio (também Louis) durante a guerra, sua

infância na Argélia, até o exílio em campos de prisioneiros não-oficiais, a filiação ao

Partido Comunista e as sucessivas internações acompanhadas de eletrochoques para o

tratamento de uma psicose melancólica. Figura central em suas memórias, encontra-se a


4

esposa Hélène, socióloga, também comunista, mas malquista pelos membros do partido,

quase dez anos mais velha, e com a qual Althusser teve, aos 30 anos, sua primeira relação

sexual.

Utilizando a escrita em causa própria, Althusser redige suas recordações refletindo

sobre as circunstâncias de seu crime. Embora sejam aqui adotados termos como memória

e autobiografia para caracterizar o estilo do texto de 1985, o próprio Althusser os recusa

ao nos advertir que não se trata de um diário, mas da retenção dos afetos que marcaram

sua existência, nos quais ele pôde se reconhecer e onde poderão reconhecê-lo, de modo

que, dentre tais afetos, encontram-se formações violentas, as quais ele chamou por

Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE).

Sua escrita consiste na reconstrução das representações alucinatórias e da relação

delirante com os familiares, e sobretudo com Hélène, a fim de reivindicar o direito que

lhe fora negado, o procedimento penal clássico do julgamento, e assim se responsabilizar

juridicamente.

O relato de Althusser nos revela uma trágica condição vivenciada por ele durante anos,

aquela mesma escutada nas análises que tiveram lugar no manicômio: o desaparecimento.

Althusser se utiliza da célebre expressão cunhada por Foucault para designar a loucura,

desaparecidos, ao caracterizar sua condição de “morto-vivo” sob a impronúncia2 . O

doente mental, sob essa pedra do silêncio, não é nem morto, que teve um ponto fina l em

sua vida quando enterrado, nem um vivo, pois tem seus direitos civis suspensos - o

desaparecido é como o morto-vivo que a qualquer hora pode reaparecer, e exatamente por

essa condição, gerar um mal-estar na vida pública. Uma “internação perpétua” deveria

“resolver” esse problema, mas mesmo podendo reaparecer (sustentado por uma avaliação

2 Termo que será melhor explicitado adiante.


5

médica), o sujeito desaparecido, o “assassino louco”, tem em sua companhia o lastro da

periculosidade.

A obra autobiográfica de Althusser se apresentou como paradigma, capaz de ilustrar

as problemáticas da atuação como psicanalista em casas de custódia - quando do

questionamento dos hospitais-prisões, da “despenalização” do psicótico pela sua redução

ao lugar de resto social a ser reaproveitado, e sobretudo pela crescente intervenção do

discurso analítico nas instituições do Judiciário.

Porém, a possiblidade de intervenção nas instituições jurídicas envolve um esforço

relacionado com a problemática de investigação: como articular níveis distintos sem

sobrepô-los, sem efetuar reducionismos e pasteurizações? Os primeiros passos dessa

proposta implicam, antes de mais nada: a) uma demarcação necessária, de um hiato entre

o sujeito do direito e o sujeito da psicanálise; b) um exercício epistemológico muito

preciso, em relação a termos caros como psicose, lei, crime, culpa e responsabilidade, que

são comuns tanto ao direito quanto à psicanálise, e que assumem significações específicas

não apenas de campo a campo, mas também dentro de cada campo.

A leitura do texto de Althusser nos interessa, portanto, à medida que nos remete ao

homicídio de sua esposa, cena criminosa utilizada como Introdução, passagem ao ato

que aponta para uma responsabilidade singular. Se há um ponto inconciliável entre o

solo epistemológico do direito penal e a descoberta freudiana do sujeito do inconscie nte,

é preciso explicitar qual ruptura Lacan efetua, quanto à concepção da psicose, quando

circunscreve o inconsciente em uma rede de inteligibilidade linguística, ou seja,

estruturado como uma linguagem.

O recorte do caso, na Parte I, se atém ao lugar ocupado por Hélène na interpretação

delirante, bem como aos personagens que nela fazem série e na determinação inconscie nte
6

do ato homicida. Partimos do que Lacan chamou por “clínica do detalhe”, em

contrapartida à clínica psiquiátrica puramente descritiva. Procuramos identificar

condições precisas da passagem ao ato na estrutura psicótica, e no caso a caso, na

singularidade de Althusser: um tratamento pela palavra, quando justifica e autoriza a

utilização da autobiografia, onde o autor enquanto sujeito revela a singularidade de sua

relação com o significante. Mesmo sem que isso se realize em uma situação analítica

propriamente dita, assim como Freud se permitiu analisar as memórias de Daniel Paul

Schreber.

A Parte II: a foraclusão do Nome-do-Pai aborda as etapas lógicas da constituição do

sujeito, e no caso da psicose, os efeitos da foraclusão desse significante, o Nome-do-Pai.

Para tanto, nos debruçaremos mais sobre os primeiros anos do ensino de Lacan, referentes

ao seminário 3, As psicoses, e à De uma questão preliminar a todo tratamento possível

das psicoses. Primeira torsão, que descola o sujeito psicótico do predicativo do louco

perigoso preconizado pelo Código Penal.

Quanto à Parte III: a regra do jogo, trataremos da passagem ao ato: segunda torsão,

o crime como ato dirigido a uma responsividade3 . Recorreremos ao mito da horda

primitiva – o assassinato do pai, a partir da instauração de relações de aliança que barram

o gozo – para tratar da relação entre a lei e crime, culpa e responsabilidade, tanto para o

direito penal, quanto para a psicanálise. Abordaremos ainda a articulação entre supereu,

objeto a e gozo, partindo da tese de doutorado de Lacan, ao revisitar o caso Aimée, e do

seminário X, A angústia, onde aponta especificidades da passagem ao ato.

A Parte IV: responsabilidades, deixaremos para abordar a distinção entre a

responsabilidade jurídica, alicerçada em conceitos como livre-arbítrio, e a

3Termo que remete às diferentes significações da palavra responsabilidade, dentre as quais, segundo o dicionário
Aurélio de Língua Portuguesa (1999), a ação de responder à uma convocação, uma responsividade.
7

responsabilidade singular, aquela que remete à Outra cena, enquanto efeito do sentime nto

de culpa. Para tanto, retomamos o caso das irmãs Papin, para em seguida apresentarmos

um exercício de formalização do caso Althusser: a questão da melancolia e a passagem

ao ato do melancólico.

Desse modo, entendemos o Direito como produto das relações simbólicas orquestradas

pela interdição do incesto, a castração: é um ordenador de gozo, um pacto que visa barrar

o gozo daquele que pode ocupar o lugar do Outro tirânico, no caso, o Estado. Por tal via,

o direito penal remete à uma lei geral, oposta a lei particular da psicanálise, a lei do desejo,

e de onde podemos tratar de uma articulação possível: ali onde é o limite do Código Penal,

o discurso analítico pode advir no caso a caso.

O que Althusser, com seu desejo alucinatório de um “suicídio altruísta”, nos permite

articular? Para a psicanálise, o sujeito é sempre responsável pela sua posição na estrutura,

de modo que a foraclusão do Nome-do-Pai não implica privar o sujeito dos efeitos das

leis humanas – ao contrário, a convocação jurídica pela incidência da lei sobre o ato só

pode operar a seu favor, ao possibilitar uma estabilização.

Evita-se assim uma leitura digamos ingênua do campo do direito penal, ao

distinguirmos um discurso que é contingente à própria fundação da civilização, daquelas

mazelas observadas no exercício institucional, em relação ao destino do psicótico no

âmbito penal. Se o hospital de custódia não é oferta de tratamento mais viável, tampouco

poderia ser a penitenciária, dispositivo esse hoje marcado por condições funcionais e

estruturais que parecem não considerar ali, no dito criminoso, um sujeito. Então faz-se

necessária uma nova proposta pelo direito penal, na interface da saúde com a justiça.
8

INTRODUÇÃO - Uma responsabilidade singular

“Pois eu estrangulei minha mulher, que era tudo no mundo para mim, durante uma crise intensa e imprevisível

de confusão mental, em novembro de 1980, ela que me amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de

poder viver, e talvez eu lhe tenha, em minha confusão e em minha inconsciência, ´prestado esse serviço´, do

qual ela não se defendeu, mas do qual ela morreu”. (ALTHUSSER, 19 86, p. 23)

Althusser relata ter conservado intacta a lembrança da cena em que assassina a mulher,

localizando-a em duas noites: aquela da qual saía sem saber qual era e aquela em que ia

entrar – “eis a cena do assassinato tal como a vivi”.

De repente, ele está de pé, de roupão, ao pé de sua cama em seu apartamento da École

Normale Supérieure. Era um dia cinzento, domingo, dia 16, nove horas da manhã, e da

esquerda, da alta janela com cortinas vermelhas envelhecidas do período imperial, a luz

vem clarear o pé da cama. Diante de Althusser, Hélène, deitada de frente, também de

roupão – sua bacia repousa sobre a cama, enquanto que suas pernas se estendem pelo

carpete do quarto.

Ajoelhado, debruçado sobre seu corpo, Althusser lhe massageia o pescoço.

Freqüentemente, permitia-se massageá-la em silêncio, a nuca, as costas, os rins, tal como

aprendera a técnica com um colega durante o cativeiro.

Porém, dessa vez, é a frente de seu pescoço que ele massageia, apoiando seus dois

polegares na cavidade de carne que beira a parte superior do esterno, e, deslizando

lentamente, com um polegar para a direita e outro para a esquerda, em diagonal, alcança

as orelhas. Althusser massageia em V, e sente um grande cansaço muscular em seus

antebraços.
9

De repente, sente invadir-se pelo terror: os olhos de Hélène e a ponta da língua repousa,

“insólita e serena”, entre os dentes e os lábios. Althusser se levanta, e grita sua conclusão:

“eu estrangulei Hélène! ”.

Ele sai correndo pelos corredores da École, gritando que a estrangulou. Chega à

enfermaria, puxa dr. Étienne pela gola do roupão, pedindo que o acompanhe com

urgência, ou colocará fogo no estabelecimento. Chegando ao quarto, o médico se depara

com o cadáver: as cortinas vermelhas esfarrapadas caem dos dois lados da janela e uma

delas, a da direita, repousa sobre as pernas de Hélène. Diante da cena, Althusser relembra

do amigo Jacques Martin, que se matara no XVIe arrondissement, onde fora encontrado

em seu quarto com uma rosa vermelha sobre o peito – a rosa teria sido uma mensagem

“silenciosa” para ele e o casal.


10

PARTE I

Recorte Clínico
11

Na semana que sucedeu o que Althusser chamou de drama, ele foi submetido a três

perícias médico-legais, realizadas no hospital Sainte-Anne. Diante do estado de confusão

mental, o próprio Althusser reconhece a impossibilidade de suportar comparecer perante

uma instância pública4 . No entanto, internado por determinação jurídica e já sob a tutela

do Estado, sem dispor de liberdade, nem de seus direitos físicos, denuncia que fora

privado de um direito em virtude de tal estado de não-responsabilidade:

“O estado de responsabilidade abre o caminho para o procedimento clássico:


julgamento perante um tribunal do júri, debate público em que se enfrentam as
intervenções do Ministério Público, que fala em nome dos interesses da sociedade,
testemunhas, advogados da defesa e da acusação que se exprimem publicamente, e o
acusado que apresenta, ele mesmo, sua interpretação pessoal dos fatos”.
(ALTHUSSER, 1986, p. 26)

Privado de “lavar-se de seu crime”, Althusser, então um assassino em estado de

irresponsabilidade jurídico-legal, vê-se destinado prévia e diretamente à internação

psiquiátrica, pela qual, é colocado a salvo de fazer dano a si mesmo (pelo suicídio) e à

sociedade (pela possibilidade de voltar a matar), por tempo indeterminado.

Enquanto assassino, criminoso e doente mental, ou seja, privado de seu juízo e de

sua liberdade, Althusser perde o que chama de “personalidade jurídica”, sendo necessário

4
Aqui friso do autor acompanha aquele de Althusser, com o intuito de demarcar a especificidade do significante público
em seu caso, bem como de seus deslizamentos, de publicidade, publicar, publicamente, até púbico, publicamente e
pudico, pudicamente, na construção da interpretação delirante.
12

que certas funções sejam delegadas a um tutor, de acordo com determinação de uma

autoridade – no caso, é o Estado quem assina e age em seu nome.

Nesse sentido, seria essa a diferença fundamental entre um culpado e o “louco”

assassino. Aquele que é reconhecido culpado perante um tribunal do júri, recebe como

punição a condenação de uma pena limitada em um tempo: dois anos ou mais, por

exemplo, e mesmo em casos de prisão perpétua, a pena pode ser reduzida com o decorrer

do tempo. Cumprindo a pena privativa de liberdade, o sujeito “paga uma dívida com a

sociedade”, o que não acontece com o “louco” assassino.

O doente mental criminoso é internado sem um limite prévio:

“... conquanto que se saiba ou se devesse saber que em princípio todo estado agudo
é transitório [...] na maioria das vezes, se não sempre, os médicos são um tanto
incapazes, mesmo para os casos agudos, de fixar um prazo, ainda que aproximativ o ,
para um diagnóstico de cura. Melhor, o “diagnóstico” inicialmente feito não pára de
variar, pois em psiquiatria só há diagnóstico evolutivo: só a evolução do estado do
paciente permite fixá-lo, portanto modificá-lo. E, com o diagnóstico, evidentemente
fixar e modificar o tratamento e as perspectivas de prognóstico”. (ALTHUSSER, 19 86,
p. 28)

Quem é então o doente mental? Sob a pedra sepulcral do silêncio, ele é um morto para

quem o visita. Questão: quem visita um doente mental num hospital de custódia? Como

não está realmente morto, pois sua morte não foi declarada, ele se torna progressivame nte

um morto-vivo – na verdade, nem morto, nem vivo – sem a possiblidade de aparecer

publicamente por conta do lastro da periculosidade, correndo o risco de se tornar mais o

produto de todas as catástrofes mundiais que se tem conhecimento: um desaparecido, sob

“a pedra sepulcral da impronúncia”.


13

Foucault, em Os Anormais (1975), articula a condição trágica de desaparecimento à

impronúncia, enquanto um silêncio sepulcral, conservando a sua essência enquanto termo

jurídico. Tanto para o Código Penal Francês quanto para o Código Penal Brasile iro,

impronúncia se refere à impossibilidade de um acusado se pronunciar sobre o crime

cometido, ainda na fase de acusação, em virtude de comprovação de insanidade mental.

Segundo Bogado (2013), o simples fato de um acusado apresentar determinada

enfermidade mental não impede a autodefesa, pois caberá ao juiz avaliar, através da fala

do acusado ou de laudo pericial, se seu conteúdo poderá ou não ser considerado como

elemento considerável na defesa do réu. Nesse sentido, é o juiz quem impronunc ia,

prosseguindo-se, no caso da inimputabilidade, uma absolvição sumária.

Althusser nos apresenta, em suas memórias, a acusação de que fora silenc iado

publicamente, em razão de sua enfermidade e do estado de confusão mental em que se

encontrava logo após do homicídio de Hélène. Ele questiona então o critério dessa

avaliação, desse “silenciamento”, a partir do qual fora lançado ao desaparecimento.

Partindo de Foucault, de sua obra magistral sobre a loucura, Althusser assim se define

por essa condição, em sua passagem por Sainte-Anne, e após a desinternação, como um

desaparecido, um que ainda não fora enterrado – “ora, diferentemente de um modo, cujo

falecimento põe um ponto final na vida de um indivíduo, que é enterrado debaixo da terra

de uma sepultura, um desaparecido faz com que a opinião corra o risco singular de poder

(como hoje no meu caso) vê-lo reaparecer à vista de todos” (ALTHUSSER, 1990, p. 29).

O desaparecido é sempre uma ameaça, mesmo que, ao reaparecer, seu retorno esteja

ancorado no discurso médico. A relação entre autor e crime pode reacender pois o crime

não passou pelo crivo de um julgamento público, onde um assassino teria a possiblidade

reconhecida por lei de dar explicações públicas, de contar com uma defesa pública, e com

as acusações públicas de uma promotoria. Para Althusser, o julgamento é esse direito de


14

se explicar publicamente, “em seu nome e em pessoa”: o julgamento assegura ao sujeito

os recursos públicos, posto que, tal como considerava Beccaria (2014), “o direito é a

instituição da publicidade”.

O que se revela para o público, para Althusser? Que foi cometido um crime, como a

vítima do mesmo morreu, e o destino do criminoso : o julgamento ou a impossibilidade

de se pronunciar determinada e pelo juiz. Vejamos que para Althusser opinião pública e

público não são a mesma coisa: a opinião pública se refere a uma ideologia dominante,

de controle, que coloca em cena os princípios norteadores dos dispositivos médico-lega is

e penais.
15

CAPÍTULO 1. A clínica do detalhe

Lacan nos aponta que o fundamental em um caso clínico não é a acumulação de

trechos, de excetos do texto que o paciente diz, mas sim as pequenas singularidades que

dizem respeito a um bom corte que demarque o diagnóstico diferencial. Segundo

Schejtman (2012), um “bom corte” é aquele que revela uma estrutura a partir de detalhes

dos mais sutis, que podem passar desapercebidos, de modo que uma extensa biografia do

paciente é prescindível: a estrutura mesma do sujeito revela-se no corte efetuado (tal

como fez Freud com um sonho, no caso da bela açougueira).

Porém, o detalhe não pode ser conduzido como uma arbitrariedade. Trata-se de uma

clínica fundamentada em um exercício de precisão que se produz a partir do ato analítico,

através de uma escrita. Se aqui nos muniremos da autobiografia de Althusser, não o será

a partir de um caráter quantitativo de dados, mas por aquilo que a clínica psicanalítica

consiste, ou seja, o detalhe pelo qual o sujeito associa e que circunscreve uma relação

entre a estrutura e a especificidade de sua história.

Esse é o estatuto do diagnóstico em psicanálise: ele se realiza a partir do de-talhamento

clínico, o que opõe psicanálise e psiquiatria, estrutura e descrição. Nesse sentido, a

descrição é metonímica, pois soma um elemento ao outro para que se reconstitua o todo

a partir de um conjunto das partes. Em contrapartida, o detalhe consiste exatamente no

que se situa à margem do que é observado, o que permanece fora e discorda do conjunto

(Schejtman, 2012).

Determinados autores da psiquiatria estiveram mais atrelados à uma clínica de

observação e descrição, enquanto outros se aproximaram mais de uma perspectiva


16

estruturalista, como no caso de Clérambault, com quem Lacan não se deteve em debater

a respeito da estrutura psicótica.

No seminário 3, As psicoses (1956), Lacan atribui a Clérambault o conceito de

fenômeno elementar. Segundo Bercherie (2009), Clérambault utiliza o termo fenômeno

elementar para caracterizar o automatismo mental, enquanto forma primeira na psicose,

em oposição ao delírio persecutório, o qual constituiria uma construção intelectua l

secundária. O automatismo mental e o delírio responderiam a duas causalidades distintas :

uma mórbida, de origem orgânica, e outra completamente distinta, inerente à patologia.

Haveriam assim, para Clérambault, duas personalidades distintas nas psicoses

alucinatórias.

“O que Clérambault destacou com o nome de fenômenos elementares da


psicose, o pensamento repetido, contraditado, comandado, que é senão esse discurso
redobrado, retomado em antíteses? Mas, sob pretexto de que há aí uma estruturação,
totalmente formal – e Clérambault tem mil vezes razão em insistir nesse ponto – ele
deduz disso que nos encontramos diante de simples fenômenos mecânicos. É
inteiramente insuficiente. É bem mais fecundo concebê-lo em termos de estrutura
interna da linguagem.” (LACAN, 1956, pg. 284)

Lacan se opõe a esta posição do delírio como formação secundária, questionando a

concepção de personalidades distintas na psicose, ao apontar que um mesmo caráter

estrutural pode se apresentar sob aspectos diferentes.

Sobretudo, a abordagem lacaniana das psicoses, a tese do inconsciente estruturado

como uma linguagem, sustenta-se pela letra freudiana, enquanto referência principa l,

posto que, exatamente no cerne do seminário das psicoses, está o movime nto

empreendido por Lacan em seu ensino: o retorno à Freud.


17

É honesto reconhecermos ser difícil falar a respeito da psicose dentro da obra

freudiana, já que sua teoria referente a essa estrutura não avança muito além do campo

teórico e alguma proposição a respeito do tratamento e da prática analítica, nesse tipo de

caso, fica apenas na ordem da alusão. No entanto, percebe-se desde o caso Schreber um

esforço de Freud em formalizar um mecanismo específico que possa distinguir neurose e

psicose, ao identificar semelhanças importantes entre o conteúdo dos delírios

persecutórios característicos da paranóia e o conteúdo do material recalcado do neurótico.

Concomitante às crescentes discussões e divergências com Jung a respeito da libido, bem

como de sua relação com o eu, a partir de 1907, ao se interessar pela paranóia e pela

esquizofrenia, Freud toma conhecimento da autobiografia de Daniel Paul Schreber,

publicada em 1903. Assim como Lacan com Joyce, Freud jamais teve um encontro com

Schreber, de modo que a interpretação das angústias persecutórias e de seus delírios são

feitas a partir dos escritos autobiográficos do presidente.

O caso do presidente Schreber é, nesse sentido, o texto por excelência da teoria

freudiana a respeito da psicose. Iremos nos utilizar da autobiografia de Althusser, “O

futuro dura muito tempo”, de 1990, a partir de duas maneiras diversas, e entrelaçadas, de

se abordar a psicose.

Uma dimensão diacrônica, aquela efetuada por Lacan a partir do historial de Schreber

no seminário 3, As psicoses, e em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível

da psicose” (1957), pelos fenômenos clínicos, o desencadeamento e suas possiblidades

de estabilização. Uma dimensão sincrônica, por esse mecanismo de formação dos

fenômenos psicóticos, próprio e específico dessa estrutura, a foraclusão, buscada por

Lacan no texto freudiano de 1925, “A negativa” (Schejtman, 2012).

Para tanto, com o intuito de ressaltar a direção clínica estruturalista, em contraposição

a uma abordagem da psicose como doença mental, todas as passagens de O futuro dura
18

muito tempo que sustentam uma tentativa de construção clínica são citadas literalme nte,

indicadas com a respectiva página do original.

A leitura do caso procura relacionar a estrutura da passagem ao ato ao singular da

melancolia de Althusser, enquanto um exercício de formalização. Recorremos apenas ao

texto de 1985, cuja redação está intrinsecamente ligada ao evento de novembro de 1980,

o que, certamente, produzirá um outro efeito na construção do caso. Determinados fatos,

como a relação com a irmã e o falecimento do avô são omitidos nesse precioso material,

não por acaso, o que pode explicar algumas lacunas sobre certos acontecimentos.

Questões como a relação da melancolia com sua construção teórica e o lugar da escrita

nos efeitos de estabilização ficarão para um outro momento, e por isso serão lançadas

como indagação nas considerações finais. Nesse sentido, há trabalhos extremame nte

sérios, impecáveis, como o de Gérard Pommier, em Louis du Néant: la mélancolie

d´Althusser (1998), que poderão aquilatar a leitura desta pesquisa.

Vale notar que há em ANEXO I dados autobiográficos que podem auxiliar na precisão

dos eventos relatados por Althusser.

Partindo de Clérambault

Segundo Bercherie (2009), fenômeno elementar é um conceito que, pela definição de

uma estrutura clínica, aponta para fenômenos específicos de uma experiência. Para

Mazzuca (2012), no campo das psicoses, seu uso diagnóstico se faz fundamental em casos

ainda não desencadeados ou naqueles em que não está claro que se trata de uma psicose.

Lacan utiliza o termo fenômeno elementar para condensar diferentes questões,

referentes às relações existentes entre o delírio e a alucinação. Clérambault irá associá-


19

los ao automatismo mental, enquanto fenômenos primeiros em relação às construções

delirantes, caracterizadores de quadro psicótico alucinatório crônico.

No caso do automatismo mental, compreende as antecipações de pensamento, os

impulsos verbais, os fenômenos psicomotores, que se opõem às alucinações auditivas e

psicomotoras, as quais seriam secundárias aos fenômenos de automatismo mental

(BERCHERIE, 2009).

Pode-se destacar três características fundamentais que definem a causalidade psíquica

do automatismo mental – o caráter mecânico, orgânico. Primeiro que são fenômenos

neutros: não são acompanhados por afetos de hostilidade, mas por um estado eufórico.

Segundo, eles não são sensoriais, o que não quer dizer sensitivo – excluem sensações

sinestésicas, ou seja, que a voz escutada na alucinação não se refere aos órgãos dos

sentidos, não é auditiva. Terceiro, são anedéicos: não possuem um significado que os

explique.

Desse modo, Clérambault une em um único termo, o automatismo, uma quantidade

enorme de fenômenos diversos, mas que possuem em comum um caráter automático, ou

seja, que possuem uma origem mecânica, subconsciente, uma causa orgânica. Segundo

Bercherie (2009), para a escola de psiquiatria clássica, aquilo cuja causa não se refira a

um substrato consciente não poderá ter outra explicação a não ser um processo orgânico,

de caráter anatômico.

Quanto à interpretação delirante, ela seria secundária ao fenômeno elementar. Para

Clérambault, o delírio é uma reação da personalidade que procura se defender ou elaborar

fenômenos intrusivos, como por exemplo, a alucinação. O delírio teria a função de

organizar a vida psíquica, após fenômenos de automatismo mental, que seriam


20

disruptivos em relação à personalidade. Desse modo, o delírio não seria apenas

secundário, como também constituído a partir dos processos psíquicos normais.

No caso da psicanálise, segundo Mazzuca (2012), Freud introduz e desenvolve a noção

de inconsciente sob um ponto de vista tópico, dinâmico e econômico, e Lacan destacará

a concepção freudiana de inconsciente, no qual podemos reconhecer a estrutura e o

funcionamento da linguagem, para dizer que nem sempre o que é automático apresenta

um caráter orgânico.

A subversão de Lacan

Segundo Godoy (2012), embora Lacan reconheça o valor clínico das contribuições de

Clérambault, ele irá prescindir da causa orgânica; se a psiquiatria clássica irá afirmar que

os mecanismos constitutivos do delírio não diferem daqueles que compõem o raciocínio

normal, Lacan irá insistir que não apenas não se trata de um mecanismo comum, como

também não pertencem ao raciocínio normal.

Para demonstrar sua tese, Lacan parte de dois paradigmas curiosos.

Primeiro, o modelo da Botânica. Ao observar uma folha, pode-se constatar que suas

nervuras se ligam reproduzindo uma estrutura que é análoga às demais formas que

compõem a planta. Ao percorrer o caule, indo para a raiz, por toda a estrutura da planta,

perceberemos uma mesma configuração, dentre os pecíolos, os vasos liberolenhosos, e as

ramificações da raiz.

Não se trata de uma relação da parte com o todo, tampouco de uma somatória de

elementos análogos, mas de um tipo de organização complexa onde a mesma estrutura


21

está presente, de diferentes maneiras, em diferentes níveis, em qualquer componente da

planta. (Mazzuca, 2012).

Segundo, o modelo da Zoologia. Observa-se como propriedades dos anelídeos: são

animais achatados, de simetria bilateral, desprovidos de membros e articulações, e cujos

corpos são constituídos por anéis que se unem entre si. Além disso, a maioria dos

anelídeos possuem a propriedade de sobrevida, mesmo após terem uma parte do corpo

cortada. Isso nos transmite, assim como o modelo botânico, a idéia do fenômeno

elementar como um exemplo da estrutura mesma.

Nas psicoses, a foraclusão do significante do Nome-do-Pai produz efeitos muito

particulares, a partir do retorno do foracluído no real. Tais efeitos, no campo do gozo e

do significante, é que permitem o diagnóstico diferencial. Segundo Mazzuca (2012), os

fenômenos na psicose podem ser muito diferentes (uma alucinação, um pequeno

automatismo, ou uma interpretação delirante); no entanto, não basta que seja uma

alucinação ou um delírio, já que a clínica nos mostra que tais fenômenos podem muito

bem acometer sujeitos neuróticos.

Lacan irá associar a interpretação delirante aos fenômenos de perturbação da

percepção, e por conta disso, não diferenciará as alucinações dos fenômenos de

automatismo mental. A crítica de Lacan à Clérambault se dará a partir de três pontos.

Primeiro: Lacan refuta a teoria organicista de Clérambault, na qual a concepção de

automatismo mental está diretamente associada à idéia do fenômeno psicótico como uma

desordem da origem anatômica.

Segundo: o valor clínico dos desenvolvimentos de Clérambault reside na clínica

fenomenológica, pelas características do automatismo - ser neutro, anedéico e assensorial.


22

“Há a esse respeito uma experiência ao alcance de nossa mão, Clérambau lt


percebeu isso. Ele faz alusão em algum lugar ao que se passa quando somos de repente
tomados pela evocação afetiva de um acontecimento de nosso passado difícil de ser
suportado. Quando não se trata de comemoração, mas realmente de ressurgimento do
afeto, quando, recordando-nos de uma cólera, estamos bem perto de uma cólera, quando
,recordando-nos de uma humilhação, revivemos a humilhação, quando, recordando -nos
de uma ruptura de ilusão, sentimos a necessidade de reorganizar nosso equilíbrio e nosso
campo significativo, no sentido em que se fala de campo social – pois bem, é o moment o
mais favorável, nota Clérambault, para a emergência, a que ele chama emergência
puramente automática, de trechos de frase algumas vezes tomados na experiência mais
recente, e que não tem nenhuma espécie de relação significativa com aquilo de que se
trata.” (LACAN, 1957, p. 304)

Mazzuca (2012) nos aponta que essa descrição converge com a transmissão de Lacan,

das alucinações verbais como paradigma da psicose, e por seu valor assensorial, posto

que o essencial não é que as vozes sejam auditivas, mas que sejam verbais – a alucinação

é um fenômeno significante; o mesmo pode-se dizer do caráter anedéico, quando Lacan

aborda o significante como assemântico.

Terceiro: estrutura e fenômeno elementar são equivalentes. O diagnóstico diferenc ia l

só é possível a partir da verificação dos fenômenos elementares, e no caso da psicose, em

que o inconsciente está a céu aberto, as leis fundamentais da estrutura significante estão

explícitas, claramente manifestas no fenômeno elementar.

Se o mecanismo de edificação do delírio é a interpretação, e Lacan a coloca como

fenômeno da ordem da interpretação, então podemos dizer que o delírio também é um

fenômeno elementar. Desse modo, segundo Mazzuca (2012), o que está em jogo no

delírio não é a realidade: essa realidade se faz verbal através dos fenômenos alucinató r ios

e da interpretação, e o psicótico sabe que essa realidade por ele vivenciada não pode

ancorá-lo; a questão é que o psicótico, ao contrário de um neurótico ou um perverso, tem

a certeza de que o verbo se refere fundamentalmente a ele.


23

CAPÍTULO 2. Leitura de caso

Louis Althusser nasceu em 16 de outubro de 1918, na reserva florestal do Bois de

Bologne, próximo a Argel Argélia, ex-colônia francesa. Pierre Berger, seu avô, ao pegá-

lo nos braços, garante: “esse não é como os outros, Louis é um caraparte5 ” – palavras

que, segundo Althusser, o perseguiram por toda a vida.

Durante o parto, o pai de Althusser estava ausente, já há nove meses, e assim se

manteve até março de 1919, pois combatia na frente francesa durante a Grande Guerra.

Nesse período, viveu com a mãe ao lado dos avós maternos, provenientes de Madagascar.

Pierre Berger fez carreira de guarda florestal no Bois de Bologne, Madeleine Nectoux,

sua avó, ficava sozinha por dias, isolada na cabana florestal do parque. Diante de

recorrentes insurgências árabes, Madeleine dormia a noite toda com uma espingarda

sobre os joelhos: “duas balas no cano para minhas duas filhas, e uma terceira ao alcance

da mão para mim”. O relato da avó compõe uma série de lembranças infantis de Althusser,

sob a forma de angústias de morte: “havia assim, em minha cabeça de criança, ameaças

de morte, e, quando minha avó me contava esses episódios dramáticos, tratava-se de

minha própria mãe, de sua morte. Naturalmente, tremi de medo durante muito tempo

(ambivalência), como se eu tivesse desejado inconscientemente essa morte” (p.38).

O sobrenome Althusser é transmitido pelo pai. Os avós paternos, de origem alsaciana,

optaram pela França em 1871, após a guerra entre Napoleão III e Bismarck, e foram

deportados para a Argélia, com os dois filhos: Louis e Charles.

5
Neologismo criado por Althusser.
24

As famílias, os Berger e os Althusser, viam-se freqüentemente, e, como os filhos

possuíam idades parecidas, os pais decidiram por casá-los: Louis, o caçula e “mais

educado”, com Lucienne, “a mais preparada”, e Charles, “o mais rebelde”, com Juliette,

“a mais animada”.

Louis e Lucienne mal ficaram noivos e os irmãos foram convocados para lutar na

guerra: Louis na aviação e Charles na artilharia. Em princípio de 1917, Charles retorna

ao Bois de Bologne, anuncia que o avião de Louis fora abatido em combate, e então

propõe a Lucienne “ocupar junto dela o lugar de Louis”. Althusser justifica a escolha do

pai: “afinal, minha mãe era bela, jovem, e desejável, e meu pai amava realmente o irmão

Louis... minha mãe ficou sem dúvida transtornada pelo anúncio da morte de Louis, que

ela amava profundamente, a sua maneira, mas se sentiu atônita e desconcertada pela

inesperada proposta de Charles. Mas, afinal de contas, a coisa ficava em família” (p.41).

A cerimônia de casamento aconteceu rapidamente, e após alguns dias, Charles partiu

novamente para a guerra. Althusser relata a cena de núpcias tal como a fantasia

fundamental do coito parental violento: “parece que minha mãe conservou uma tripla

recordação atroz – a de ter sido violentada em seu corpo pela violência sexual do marido,

a de ver dilapidadas por ele, numa noite de farras, todas as suas economias de solteira...

meu pai decide irrevogavelmente que minha mãe tem de abandonar de imediato seu

trabalho de professora” (p.42). Segundo Althusser, o pai mantivera uma amante, Louise

(gravem este nome), desde os tempos de namoro com a tia Juliette, uma moça pobre a

qual teria abandonado repentinamente às vésperas do casamento, e cujo nome tinha sua

pronúncia proibida naquela família.

Lucienne é para Althusser uma mãe-mártir, que sangra como uma chaga, uma mãe

sofredora, destinada a uma dor eterna, martirizada dentro de casa pelo próprio marido, e,

portanto, uma masoquista, mas também uma sádica em relação ao tio, pois havia aceitado
25

que seu pai tomasse o lugar de Louis, e em relação ao filho, Althusser, que também havia

recebido esse nome, Louis, e que, por isso, queria sua morte – o Louis que ela amava,

morrera.

Pois então Althusser recebeu ao nascer esse nome, Louis, pelo qual manteve por ao

longo de sua vida, um horror: era muito curto, e na fonética francesa entonava uma só

vogal, além de, como se não bastasse, terminar em um i agudo capaz de feri-lo (tal como

na alucinação da estaca, mais adiante). A história de Althusser se inicia com um trabalho

de escansão de nome e sobrenome.

Louis. Oui, um sim contra o qual se revoltava, sim não a seu desejo, mas ao desejo

materno. Louis, esse nome que dizia ele, lui. Pronome de terceira pessoa, lui, um terceiro

anônimo, o sujeito indeterminado que convoca Althusser. Lui, o pronome que faz alusão

ao homem que está às suas costas: lui, c´était Louis (ele, era Louis), o tio a quem a mãe

amava, e não a ele, Althusser. Louis, que se transforma em Louise, a amante. “Esse nome

foi desejado por meu pai, em memória ao irmão Louis, morto no céu de Verdun, mas

sobretudo por minha mãe, em memória daquele Louis que ela amara e não deixou, a vida

inteira, de amar” (p. 42). E Althusser, um sobrenome transmitido por um pai, mas um

sobrenome-de-pai foracluído.

Nomeação sujeito/ação Designação


Lui ele, o tio morto
Lui ele, o Outro que ordena
Althusser
Louis Oui sim, ao desejo materno
Ouis Eu ouço, eu gozo
Louis(e) A amante do pai
Althusser Sobrenome foracluído
26

Lembranças encobridoras

Althusser trata de “lembranças encobridoras” que marcaram sua infância, que ele vê

ou acredita ver, e que são apresentadas como marcas inaugurais.

A primeira cena refere-se ao pai. A mãe, com os seios quase descobertos, está com

Althusser nos joelhos, quando a porta da casa florestal se abre, e surge uma silhueta alta

e magra, com um longo charuto preto do Dixmude 6 à boca.

Althusser associa o pai a figura de um imperador romano: marcado pelo sexo e pela

morte, um homem poderoso, sensual que “amava o vinho e as carnes sangrentas com a

mesma força que amava as mulheres” (pg. 48). "... durante a via inteira ele se calou sobre

si mesmo, e eu nunca me atrevi a interrogá-lo, a fazê-lo falar de si. Aliás, teria ele me

respondido? Devo confessar que durante muito tempo odiei meu pai por ele fazer minha

mãe sofrer aquilo que eu vivia como sendo um martírio para ela e, portanto, também para

mim [...] Meu pai ´governava´ assim: sem jamais realmente se fazer ouvir, maneira talvez

de deixar seus colaboradores diante de uma responsabilidade que eles sabiam estar

sancionada, mas não definida explicitamente. Não haviam se esquecido dele, de quem

falavam com uma admiração que beirava a devoção: ninguém era como ele. Um

“caraparte” (pg. 45).

Quem fora Charles Althusser para Louis Althusser? Um homem autoritário, mas que

por sua origem pobre, tinha sido a única “personalidade” a não entrar no jogo das pessoas

de elite e das autoridades da época. Um homem de personalidade, que dizia tudo em

público, mas que para Althusser e a irmã não dizia nada, e que, em vez de liberá-lo em

seu desejo, o aterrorizava com seu silêncio – ou com seus uivos.

6 Dixmude era um dirigível alemão, cedido à França como reparação de guerra, mas que acabou se
incendiando e afundando no mar.
27

As noites eram angustiantes para Althusser, que se perturbava com os roncos que o pai

emitia, vividos como “gritos de lobo caçando ou acuado”, dos quais nunca esquecera. A

voz do pai não era perturbadora apenas durante a madrugada: as cenas de refeição são

descritas a partir do confronto entre pai e filho, o qual, para provocar o pai, insistia em

tomar a defesa da “mãe-mártir” – a partida do pai porta afora era acompanhada de

“fautré”, de um desaparecimento pela noite e da angústia de abandono: “ele abandonaria

minha mãe, nos abandonara (minha mãe parecia indiferente): partira para sempre? Ia

voltar ou desaparecer para sempre? ” (p. 47). Fautré, neologismo francês criado por

Althusser, entre faute (mancada), outré (ultrajado) e foutre (foder).

Pai terrível, mas ao mesmo tempo, cúmplice. “Uma vez ou outra levou-me ao estádio,

onde adorava entrar sem pagar... Eu ficava fascinado por sua arte de `passar a perna´...

Mau exemplo que me deixou uma terrível recordação, à entrada de um estádio de tênis.

Meu pai entrou sem pagar, como de costume. Eu, atrás dele, não pude entrar. Deixou- me

sozinho. Mas, mais tarde, eu iria me inspirar seriamente em sua arte de `passar a perna´

(p.48).

Os jogos são descritos por Althusser em clima de tumulto, entre os membros da

assistência técnica, sendo que em duas ocasiões houve troca de tiros, que deixavam

Althusser apavorado, pois eram, em sua certeza, destinados a ele. O episódio dos tiros é

associado à uma passagem escolar, a respeito das Cruzadas: as cidades eram saqueadas,

destruídas, os habitantes mortos pelo corte das espadas, cujo sangue jorrava pelas ruas.

“Empalava-se também grande número de nativos. Eu sempre via um deles, repousando

sem qualquer apoio sobre a estaca que penetrava lentamente pelo ânus até dentro de seu

ventre e até seu coração, e só então ele morria, em meio a sofrimentos atrozes. Seu sangue

corria ao longo da estaca e das pernas até o chão. Que horror! Era eu então transpassado

pela estaca (talvez por esse Louis morto que estava atrás de mim) ” (p. 48).
28

Contígua à lembrança, uma alucinação. “Uma vítima estava trancada dentro da

imagem de uma virgem de aço munida de alto a baixo de longas pontas finas e duras que

lhe transpassavam lentamente os olhos, o crânio e o coração. Era eu que estava fechado

na imagem da virgem de aço. Que maneira atroz de morrer lentamente! Tremia

longamente e sonhava com isso à noite” (p.49).

O pai de Althusser retornara da guerra com uma série de fotos de artilharia: “o víamos

sempre ereto diante de gigantescos canhões”. O pai diante do qual Althusser permanecia

aterrorizado também fora o pai que lhe ensinara a atirar – o que será fundamental para a

construção do delírio suicida. Certa vez, aos 9 anos, fora com o pai ao clube militar onde

deu o primeiro tiro, com um fuzil de guerra; o estrondo do disparo o deixou aterrorizado

e, apesar de não ter acertado o alvo, deixara o pai orgulhoso.

Quando da aprovação no concurso de bolsas para o Liceu, Charles Althusser perguntou

ao filho o que ele gostaria de gratificação pela conquista. Prontamente, sem hesitação,

teve sua resposta: uma carabina nove milímetros da indústria de armas Saint-Étienne – a

contragosto da mãe. Desde então, Althusser se tornara excelente no tiro, o qual praticava

no quintal do avô, em Bois-de-Velle, tentando acertar passarinhos.

Uma vez, decidiu caçar galinhas. “De bastante longe (uns vinte metros) recebi um belo

galo vermelho perto da cerca. Atirar com minha funda e, aterrorizado, vi o galo, atingido

em pleno olho, pular de dor, bater violentamente a cabeça no chão e fugir aos soluços.

Meu coração ficou palpitando durante horas” (p. 49). O terror em matar não consistia

numa inabilidade em acertar o alvo, mas estava vinculada a certeza de que, caso fosse ele

mesmo o alvo, o tiro seria certeiro. O ato de atirar poderia então precipitar o suicídio, o

qual os delírios persecutórios de que todos queriam terão a função de barrar.


29

Então, a carabina nove milímetros desaparece não apenas das lembranças

encobridoras de Althusser, mas de toda sua autobiografia. “Quanto a essa carabina, eis o

que me aconteceu. De início eu só a utilizava para me exercitar em alvos de papelão, com

os quais conseguia me sair bem. Mas um dia que estávamos numa pequena propriedade,

Les Raves, que meu pai achara por bem comprar numa colina inacessível, percorri os

bosques com minha carabina na mão, à procura de alguma presa volátil. Subitame nte

avistei uma polinha e atirei: ela caiu, eu a procurei, em vão, nas samambaias secas, no

fundo eu estava convencido de ter errado o alvo, ela só caíra por esperteza, para escapar

de mim. Continuei meu caminho e de repente me veio a idéia, sem que eu tivesse refletido

e, com mais razão ainda, sem que eu soubesse por quê, de que, afinal de contas, eu poderia

tentar me matar. Dirigi então o cano da arma contra minha barriga e ia apoiar no gatilho

quando uma espécie de escrúpulo me reteve, nunca soube por quê. Abri então a culatra:

havia uma bala lá dentro. Como podia estar ali? Eu não a tinha enfiado ali. Mais uma vez,

tratara-se de morte: mas, dessa vez, diretamente da minha” (p. 50).

Um pai autoritário tal como um imperador romano, ao mesmo tempo cúmplice, mas

que, em sua função, encontra-se zerificado, tal qual na lembrança da silhueta vazia.

Embora Charles Althusser tenha se presentificado, algo da ordem funcional não se

inscreve. Questiona-se Althusser: “Tive eu realmente um pai? Sem dúvida, eu tinha seu

sobrenome e ele estava ali. Mas, em outro sentido: não. Pois jamais ele interferiu em

minha vida para orientá-la, um mínimo que fosse, jamais me iniciou na sua que poderia

ter me servido de introdução, fosse à defesa física, às brigas dos meninos, fosse, mais

tarde, a virilidade” (p. 50). Assim, Althusser sentia-se convocado a ser Louise, a mante

do pai: “..., mas toda vez que eu o deixava, lançava-me, diante de minha mãe silenciosa,

uma simples frase que não exigia comentário nem resposta: Faça-a feliz. Faça-a? ”.
30

“Faça-a feliz! ”, o mandato do imperador, que o ordena a fazê-la gozar. Faça-a feliz,

faça ela, a mãe, feliz. “Faça-a”, faça ela, a mulher – faça o papel da mulher, que diante da

mãe-mártir, casta, virgem, só poderia caber à amante: Louis (e).

Mãe-Mártir e o princípio do artifício

Althusser está em Marseille, saindo com a mãe do apartamento em que moravam

na rua Sébastopol. Pegam um atalho, uma rua larga de muros altos, em cuja calçada

direita avistam duas mulheres e um homem. As mulheres brigavam ferozmente entre si,

agredindo-se fisicamente, enquanto o homem, imóvel, as observava sem esboçar qualquer

esforço em intervir. Quando passaram perto do trio, o homem alerta calmame nte :

“cuidado, ela tem um revólver”. Lucienne Berger continuou a caminhar, sem esboçar

nenhuma preocupação com a cena dramática a qual de presenciar. Diante da reação,

advém o seguinte pensamento: “estava claro para mim que eu deveria intervir. Mas eu

era um covarde. Relações singulares deveriam imperar entre minha mãe e eu, minha mãe

e a morte, meu pai e a morte, eu e a morte” (p. 50).

Lucienne Berger fora uma linda mulher na juventude, onze anos mais jovem do que

Charles Althusser, com o qual teria se casado muito jovem, ainda adolescente. Durante a

adolescência, quando ainda morava em Argel, tivera uma amiga que se tornou médica,

mas que morrera precocemente por conta de uma tuberculose. Assim como o filho,

nomeado por conta de um tio morto, Lucienne decidiu, tal como descreve Althusser, por

“um novo nome de morte”, em homenagem à amiga morta: Georgette.

Se Althusser bem se considerava muito especial para a mãe, porque “era a primeira

criança de seu corpo, e um menino, seu orgulho”, sentia-se preterido pelo pai em relação

à irmã, na qual o pai assumia, para ele, um personagem incestuoso, tal como o pai gozador
31

do mito da horda primitiva: “meu pai tinha por minha irmã uma queda que me revoltava,

eu desconfiava abertamente de suas tentativas incestuosas quando ele a colocava sobre os

joelhos de um medo que modo que me parecia obsceno” (p. 51).

Althusser era o orgulho de uma mãe sufocante, pelo controle excessivo dos corpos,

pelas fobias e pelos atos invasivos, os quais o deixavam mortificado. Sentia que a mãe o

invadia, “estuprava”, “castrava”.

Invadido, por conta do uso que Lucienne fizera do corpo de Georgette, quando por

exemplo, certa vez, durante o banho da filha, dirige-se a Althusser: “Está vendo? Sua

irmã é um ser frágil, ela é muito mais exposta aos micróbios do que um menino” –

apontando para os genitais da criança – “você só tem dois buracos no corpo, ela tem três”

(pg. 51).

“Estuprado e castrado” por conta das bisbilhotices maternas em sua intimidade,

sobretudo pela pouca discrição em relação a sua sexualidade. Como quando da primeira

polução noturna, aos treze anos: sentiu um prazer profundo, uma ardência, seguida por

um sentimento de tranquilidade, sem saber muito bem o que acontecera com seu corpo,

mas que deixou grandes manchas opacas nos lençóis. Já tomando café, é convocado pela

mãe a comparecer ao quarto, onde, estendendo os lençóis e apontando para as manchas,

ela pronuncia: “Agora, meu filho, você é um homem! ”.

Para Althusser, Lucienne se permitia a vasculhar seus lençóis, suas cuecas, a tocar por

vezes seu sexo, como se a pertencesse: “Eu era assim estuprado e castrado por minha mãe

que, por sua vez, se sentiu estuprada por meu pai. Realmente, não saíamos de um destino

familiar. E que essa obscenidade e esse estupro fossem praticados por minha mãe, que

evidentemente se violentava contra a sua natureza para cumprir o que julgava ser o seu

dever (ao passo que deveria ser meu pai a desempenhar esse papel), finalizava o quadro
32

de horror” (p. 53). Uma mulher fóbica, cheia de medos, “principalmente medo do sexo,

do roubo e do estupro, ou seja, medo de ser agredida em sua integridade corporal e de

perder a integridade problemática de um corpo ainda despedaçado” (p. 52). Uma mártir,

tal como Althusser se vira refletido na imagem da virgem atravessada por estacas,

enclausurada para ser exposta em uma redoma de vidro - a angústia do despedaçamento

corporal vivenciada através do corpo materno, espelho que refletia sua imagem enquanto

morto-vivo diante do Outro.

Sobretudo, uma mãe que o amava como um morto, porque ele recebera ao nascer um

nome, Louis, morto, o qual ela nunca deixou de amar – quem ela amava de fato. Althusser

era um fantasma aos olhos da mãe: “Quando me olhava, provavelmente não era a mim

que ela via, mas, às minhas costas, no infinito de um céu imaginário para sempre marcado

pela morte, um outro, mas esse outro Louis cujo nome eu carregava, mas que eu não era,

esse morto no céu de Verdun e no puro céu de um passado sempre presente. Eu era assim

como que atravessado por seu olhar, eu desaparecia para mim nesse olhar que me

sobrevoava para se juntar na morte longínqua ao rosto de um Louis que não era eu, que

jamais seria eu” (p. 54).

Se a morte era um destino, o desejo de uma mãe fóbica, e que, tal como diz Althusser,

“ diante dela e longe dela eu me sentia sempre arrasado por não existir por mim mesmo

e para mim mesmo”, em dado momento, ela foi substituída, ou mais apropriado, em

contiguidade, a mãe-mártir fora deslocada. Seria Hélène uma nova mãe-mártir? Ou seria

o próprio Althusser? O que teria então impedido a realização desse destino, a própria

morte? Althusser realizara seu destino em Hélène?

Os afetos sentidos são recompostos por Althusser pelo que denomina de lembranças

encobridoras, as quais identificará como alucinações, a partir de um traço que se tornou

destino: um pai a ser cobrado pela impossibilidade de intervir diante de uma mãe violenta,
33

pronta a aterrorizar um filho batizado com o significante da morte. “Em meu caso, a morte

era a morte de um homem que minha mãe amava acima de tudo, além de mim. Em seu

`amor´ por mim, alguma coisa me transiu e me marcou desde a primeira infância, fixando

por muito tempo o que deveria ser meu destino. Não se tratava mais de um fantasma, mas

da própria realidade de minha vida. É assim que, para cada um, um fantasma se torna

vida” (p. 54).

Estava condenado pela mãe a viver enquanto o outro de um morto, que ainda não

estava morto, posta sua consistência de “palidez” diante do desejo materno. Sob a

ambivalência de amar e se apavorar, Althusser decide então tentar seduzir a mãe para que

ela consentisse sua existência – “essa mãe que eu amava com todo o meu corpo amava

um outro através de minha presença como pessoa, isto é, um ser presente como pessoa

através de minha ausência como pessoa - um ser de quem eu só saberia mais tarde que

estava morto havia muito tempo” (p. 56). Pela interpretação delirante, para seduzir essa

mãe, Althusser deveria se tornar o homem morto que ela amava, ou seja, seduzi- la

realizando seu desejo!

Esta foi uma tarefa possível e impossível para Althusser. Impossível, porque era

questionável se poderia se tornar um homem, quando nas lembranças de sua imagem

diante de um espelho, ainda criança, só visualizava uma pessoa magra, mole e muito

pálida – não se considerava um menino, mas uma “fraca menininha”.

Mas também impossível porque era incapaz de corresponder ao que a mãe esperava, e

principalmente, pois havia um desejo de existir por si mesmo. “Pois eu não era esse outro,

no fundo de mim eu não era esse ser tão comportado e tão puro que minha mãe sonhava

que eu fosse. Quanto mais o fui, mais senti, na realidade, as formas, mesmo violentas, de

meu próprio desejo, antes de mais nada essa forma elementar: não viver no elemento nem

no fantasma da morte, mas existir por mim mesmo, sim, simplesmente existir e, em
34

primeiro lugar, em meu corpo que minha mãe tanto desprezava, pois tinha horror (como

o Louis que continuava a amar) do corpo” (p. 57).

Então Althusser cresceu, na tentativa de seduzir Lucienne Berger, no sofrimento de

nada poder fazer contra o desejo da mãe, e de conciliar esse destino com seu próprio

desejo por existência. O possível se realizou ao sucumbir às fobias maternas, ao recursar -

se a brincar com outras crianças, ao seu medo de ser roubado, e ao pavor frequente de

sofrer uma contaminação alimentar, e assim o fez até os vinte e nove anos de idade:

mantendo a pureza absoluta.

“Sim, realizei o que minha mãe desejava e esperava eternamente (o inconsciente é

eterno) da pessoa do outro Louis”, declara Althusser, através do bom comportamento no

período escolar, pela castidade que perdurou até conhecer Hélène, e principalmente, por

uma carreira literária iniciada já durante o colegial, mas consagrada com seu ingresso na

École Normale Supérieure, quando se tornou tanto o intelectual que, segundo ele,

recusou-se a “sujar as mãos” com os meios de publicidade, quanto, paradoxalmente, um

filósofo reconhecido.

A tentativa de sedução fora um artifício de existência: teria Althusser conseguido

seduzir Lucienne Berger? “Sim e não” – ele reconhece – “sim, porque reconhecendo em

mim a realização de seu desejo, ela estava feliz comigo, e extremamente orgulhosa. Não,

porque nessa sedução eu tinha sempre a impressão de não ser eu, de não existir realmente,

mas de existir apenas pelos artifícios e nos artifícios, justamente nos artifícios da sedução

que são vistos como impostura... e, portanto, de não ter realmente conquistado minha

mãe, mas de tê-la artificial e artificiosamente seduzido” (p. 58).


35

Jacques Althusser

Em setembro de 1928, aos dez anos, Althusser é enviado para a casa dos avós maternos

em Larochemillay7 , onde permaneceu por um ano, por determinação da mãe, a qual

decidiu afastá-lo da irmã quando esta contraiu escarlatina.

Com o avô, Althusser aprendera a semear, plantar e cultivar árvores frutíferas, além

de fabricar estrume com mijo e merda dos habitantes da casa, depositados em uma latrina.

Não sentia angústia de ser abandonado ao lado do avô: ele o ensinava a matar patos e

coelhos de uma maneira que não o horrorizava, com um golpe na nuca do animal, ou com

um corte de foice – ao contrário da avó, que degolava as galinhas lhes enfiando tesouras

pontiagudas na garganta.

Sem o velamento fálico na descoberta do corpo, modelos não-humanos descrevem a

estranheza do que não se pode traduzir ou representar, quando a invasão do gozo como

uma formação violenta. As flores fabulosas - “aquelas anêmonas, ó aquelas frésias de

aroma erótico e violento, aqueles ciclamens tímidos e cor-de-rosa, como mais tarde a rosa

feminina do sexo da Simone de Bandol dentro de sua folhagem verde-negra” (p. 62) – ou

vagens escuras, bem compridas e lisas, que a mãe proibira de comer e as quais ele tinha

vontade de provar, ou então os ciclamens cor-de-rosa, “sempre escondidos debaixo de

suas folhas escuras, uma vestimenta que era preciso levantar para descobrir a rosa de

carne “íntima” (p.63) e os aspargos silvestres, “grossos como sexos eretos”, que ele

gostaria de mastigar crus. As frutas ovais de nespereiras japonesas são como testículos :

elas contêm uma dupla de caroços, duros, lisos e brilhantes, que Althusser adorava

acariciar, principalmente quando sua tia Juliette trepava nos galhos para colhê-las, e ele

aguardava embaixo, olhando disfarçadamente o forro da saia – “com água suave e

7
Vila em região acidental e repleta de bosques, para onde os avós se mudaram quando da aposentadoria de Pierre
Berger, na região pobre do M orvan, na Argélia.
36

açucarada das frutas derretendo na boca e soltando a dupla de caroços escorregadios” (p.

62).

Althusser caminhava pelos bosques próximos a casa dos avós, onde podia ter ereções

em meio as árvores e arbustos, e se acariciar sem proibições. “Eu não sabia, então, o que

fazer com meu próprio sexo, mas sentia muito bem que tinha um” (p. 69), ignorânc ia

relatada por Althusser, quando de sua excitação, fascinação, diante de cogumelos cèpes,

brotos prolongados e duros como sexo em ereção. Mesma ignorância que não permitiu

mais do que carícias até os vinte e sete anos, quando, no campo de prisioneiros, Althusser

se masturba pela primeira vez e desmaia.

O desfalecimento diante do gozo é como a descamação dos eucaliptos, experiência de

despedaçamento. Masturbar-se e gozar seria insuportável. “Os intermináveis eucaliptos

fascinavam-se muito especialmente: gostava de sentir dentro da mão a escama de suas

cascas compridas e tubulares que, de repente, despencavam com muito ruído do alto das

copas e ficavam então penduradas, infinitamente, como braços sem utilidade, ou como

trapos (os trapos com que, mais tarde, eu gostava de me vestir, os traços das grandes

cortinas vermelhas de meu quarto de dormir da École Normale)” (p.63).

O corpo nu deixava Althusser horrorizado. Durante a estada na casa dos avós,

acompanhado da avó, da mãe e da irmã, ele visita a bisavó que vivia isolada em uma

cabana simples em Fours – ela habitava o aposento com uma vaca gorda.

Quando decide passear com a avó, que levara a vaca gorda para pastar, presencia uma

cena que o deixa chocado. Distraído brincando com libélulas, Althusser avista avó, de

repente, em pé mesmo, sem levantar a saia, urinar-se toda. Ele conclui então que ela era

uma mulher que não usava calcinha. “Fiquei atônito: havia, pois, mulheres- homens, sem

vergonha de seu sexo, e que chegavam até a urinar diante de todo mundo, sem nenhuma
37

reserva nem vergonha, e sem tampouco avisar ninguém! Que descoberta.... Embora ela

fosse gentil comigo, tudo ficou confuso: essa mulher seria um homem, e que homem,

dormindo com sua vaca, guardando-a, mijando como um homem na frente de todos mas

sem tirar seu sexo da braguilha, e sem se esconder contra o tronco de uma árvore? Mas

ela também era uma mulher, já que não tinha o sexo de um homem, e era capaz de me

amar, duramente, é verdade, mas com a ternura contida de uma boa mãe...” (p 72).

Durante a época escolar no Morvan, longe dos olhares policiadores da mãe, Althusser

pôde então interagir com os meninos de sua idade. Lembra-se principalmente de Michel

Perraudin, que morreria posteriormente na guerra, o qual o perseguia incessantement e e

com o qual sempre se recusara a brigar fisicamente, pois jamais entrou em confronto

físico com alguém em sua vida – tinha o mesmo pavor que o sondava, o de ter o seu corpo

machucado. No entanto, certas brincadeiras lhe despertavam sentimentos ambivalen tes,

como, por exemplo, quando todos os meninos se jogavam sobre um outro, jogando-o no

chão, até que, então dominado, à força, abriam sua calça para colocar seu pênis à mostra.

Os meninos se divertiam com a cena, e Althusser relata que, embora em sua vez tenha

sofrido e se debatido, sentiu-se tomado por um estranho prazer.

Em 1928, um inverno terrível atingiu o Morvan, e Althusser viveu pela primeira vez,

concretamente, a experiência de exílio, de asilamento, enquanto apaziguadora e

estabilizadora: “... era para mim a proteção suprema, o retiro na casa quente e abrigada,

que me protegia de qualquer perigo exterior – o mundo exterior sendo, ele mesmo, sob a

mesma neve que o cobria, garantia de paz e segurança – e a certeza absoluta de que sob

essa proteção leve de silêncio e paz nada podia me acontecer de mal. Tanto o lado de fora

como o de dentro estavam garantidos” (p. 76).

A figura do avô era estabilizadora, como uma possiblidade de reconstrução de uma

função a qual o pai teria “falhado em desempenhar”. Sobretudo porque na escola do


38

Morvan não o chamavam por Louis Althusser, mas pelo nome do avô, Pierre Berger. É

pela lembrança do avô que Althusser reconhece a particularidade dos fatos apresentados

no texto de 1985: “... uma espécie de alucinação de meu intenso desejo. Aliás, faço

questão de me ater, ao longo de todas essas associações de lembranças, estritamente aos

fatos: mas as alucinações também são fatos” (p. 78).

Através da alucinação, Althusser inclui-se no conjunto dos homens, conduzido pelo

personagem avô – uma cena de processamento. Com o avô, Althusser aprendera “tudo”

sobre o trabalho no campo. Quando comprou um terreno no Bois-de-Velle, que utiliza va

como depósito de ferramentas e para armazenar cereais, Pierre Berger ensinou ao neto a

semear trigo, centeio, aveia, alfafa, e a moê-los em uma battoère. A “máquina de bater”,

como Althusser a denominava, era a única da região, e todos os fazendeiros vizinhos e

amigos próximos reuniam-se para a festa da “batedura”, ao som ensurdecedor do

trituramento. Althusser participara uma única vez da festa.

O cereal, principalmente o trigo, era introduzido na máquina e triturado: a parte de

cima expelia a palha e a parte inferior conduzia os grãos a sacos segurados pelos homens.

Enquanto o recinto se impregnava por uma mistura de cheiros, de carvão, de óleo, de

trigo, de sacos de juta, do suor dos homens, o avô tentava explicar o modo de

funcionamento da máquina para Althusser – “eu estava perto dele quando seu trigo corria

para dentro dos seus sacos: que esplendor e que comunhão diante do milagre do trabalho

e de sua recompensa” (p. 77). Com a chegada do almoço, os trabalhos eram interromp idos

e o cheiro dos homens suados, com um lenço vermelho no pescoço, invadia o local das

refeições, acompanhado dos cuspes, das risadas altas, dos palavrões e das obscenidades

(essas, ao que parece, quando entre homens, não horrorizavam Althusser, pelo contrário,

o entorpeciam).
39

Ele podia circular entre os homens, mesmo que nenhum deles lhe dirigisse a palavra

ou lhe fizesse alguma objeção. Ainda era um fantasma, embora diga que se sentisse como

um deles ou que um dia se tornaria um homem como eles. Sucede a refeição, o repouso

e uma jacquerie8 : “e eis que subitamente também me vejo, sim, na companhia de

verdadeiros homens transpirando suor, carne, vinho e sexo. E eis que me oferecem, cada

um mais que o outro, um copo cheio de vinho, desafiando-me com brincadeiras

debochadas: o garoto vai beber? você é homem ou não é? E eis que jamais na vida tinha

bebido vinho, eis que bebo um pouco e sou aclamado. Depois, o canto renasce. E na

extremidade da grande mesa meu avô me sorri” (p. 77).

E eis que, após quase um capítulo inteiro descrevendo minuciosamente a cena da festa

da batedura, Althusser confessa: a jacquerie fora um sonho. O que nos interessa não é

tanto a natureza da lembrança, posto que a clínica nos aponta que a alucinação também

pode acometer neuróticos; o detalhe do fenômeno está em seu fundamento e função – a

cena da jacquerie consiste em um retorno, no real, do foracluído o Nome-do-Pai, e na

tentativa de reconstituição delirante de Althusser ao inscrever-se no conjunto dos

“homens verdadeiros”.

A partir de então, contra “o nome de um morto”, passa a pensar em outro nome, que

gostaria de ser chamado por Jacques. O J, um jato de esperma; o a, uma profundeza tal

como Charles, o nome do pai; ques, remetendo a queue (nome vulgar para pênis em

francês); e então Jacques, tal como a jacquerie, a revolta camponesa.

Jacques é o nome em oposição a Louis, o nome de um morto. “Seja como for, desde a

primeira infância fui brindado com o nome de um homem que não deixou de viver de

8
Jacquerie foi uma revolta camponesa que aconteceu no Norte da França, entre maio e julho de 1358, durante a Guerra
dos Cem Anos, em razão do desespero econômico que assolou as camadas mais pobres dos reinos europeus após a
Peste Negra. O nome advém da expressão idiomática francesa, Jacques Bonhomme, que em português equivaleria a
“zé-ninguém”. Em alusão à revolta, passou a denominar uma espécie de canto entoado pelos camponeses, em
comemorações realizadas após a colheita de grãos.
40

amor na cabeça de minha mãe: o nome de um morto” (p. 55). É uma revolta camponesa

que recupera o lugar de um pai, no conjunto dos homens, e que abre a possibilidade para

o que semeia, o esperma que fecunda para a vida.

Ser o pai do pai

Em 1930, Charles Althusser é nomeado representante de um banco em Marseille.

Althusser então com doze anos, faz um amigo na aula de ginástica: Paul, cujos ombros

largos, mãos fortes e robustez chamam sua atenção. A mãe de Althusser permite que ele

frequente a casa de Paul, sobretudo depois que ambos entram para os Escoteiros da

França. Foi “um verdadeiro amor à primeira vista”, ele declara.

Tornaram-se cúmplices, principalmente de um projeto poético, uma revista de poemas

que deveria revolucionar o mundo. Desde então, e mesmo após a partida de Althusser de

Marseille, trocavam cartas de apaixonados. Além disso, Paul defendia Althusser dos

outros garotos, já que tinha “medo de ter o corpo tocado para sempre”, medo de ser morto.

É nos escoteiros que Althusser descreve sua primeira crise depressiva, a partir de três

eventos sucessivos cronologicamente, precedendo a missão a qual se atribuiu, de ser “o

pai do pai”. Primeiro, ele é convocado a assumir um lugar de autoridade no grupo de

escoteiros, mas não consegue se impor perante um de seus colegas, que o agredia com

“provocações obscenas”. Por acaso, Paul passa mal durante uma trilha, e precisam se

abrigar em uma cabana próxima ao acampamento, onde o chefe da patrulha de escoteiros

os abastecia com comida. Durante a noite, Althusser dorme abraçado com Paul e tem uma

ereção; a mesma situação se repetira em outro acampamento, quando, tarde da noite,

precisaram se abrigar em uma casa paroquial, enrolaram-se em cobertores, e Althusser


41

teve outra ereção, assim como no dia seguinte, quando Paul adoecera novamente do

intestino.

Paul então se apaixona por uma menina do grupo de escoteiro feminino. O caráter da

relação homoerótica vivenciada por Althusser nos permite evocar o mito de Narciso, o

belo homem que, sem reconhecer como sua a imagem refletida em um lago cristalino,

apaixona-se por esse homem, um duplo. Nesse sentido, pelo que torna evidente no caso

de Althusser, a homossexualidade não diz respeito, nesse momento, a uma escolha de

objeto, mas pertence ao núcleo da constituição paranoica do eu. Mais do que uma paixão,

Paul foi por certo tempo o duplo de Althusser, através do qual ele se realiza como sujeito.

“Doravante eu olhava aquela garota” – pela qual Paul se apaixonara – “como se a amasse,

e me entregava intensamente àquele amor por procuração. Eles iriam se casar mais tarde,

durante a guerra, em Luynes, a aldeia do pai de Paul onde tínhamos os dois passado, na

solidão, férias exaltantes... Mas a beleza e o perfil daquela moça haviam me marcado para

o resto da vida; digo bem, e se compreenderá: para o resto da vida” (p. 82).

Durante um verão, em Bandol, Althusser de deixa tomar por uma violenta paixão pela

filha de um amigo de seu pai, Simone, e que, segundo ele descreve, guardava o mesmo

perfil de rosto que o amor de Paul. Um dia, na praia, na ausência de audácia para acariciar

Simone, Althusser lhe joga sobre os seios um punhado de areia, que escorregava até a

região púbica; para se livrar da areia, Simone abria as pernas e sacudia seu maiô, em ato

que permitia a Althusser vislumbrar “um púbis peludo e preto, e, sobretudo, a fenda rosa

de um sexo: rosa-ciclâmen” (p. 82). Percebendo as intenções do filho, Lucienne Berger

declara: “você tem dezoito anos, Simone, dezenove, é impensável, pois é amoral, tendo

em vista a diferença de idade, que aconteça alguma coisa entre vocês. Não era ´decente`!

E, de toda maneira, você é jovem demais para amar! ” (p. 82).


42

Enquanto morava em Marseille, Althusser identifica-se com um professor de letras, sr.

Richard: “pelas razões que acabo de dizer, ligadas à minha própria imagem de mim e á

da mãe, e além dela, à imagem do tio morto: Louis”, ele afirma, “em realidade,

compreendi que ele representava uma imagem positiva daquela mãe que que eu amava e

que me amava, uma pessoa real com quem eu podia realizar aquela “fusão” espiritual que

se enquadrava no desejo de minha mãe, mas que seu ser “repugnante” me proibia” (p.

84).

Sr.Richard ocupa papel particular, pois fora ele quem convenceu Althusser a se

preparar para o concurso da École Normale Supérieure, e primeira figura da série

delirante, “o pai do pai”. Diante do sr. Richard, Althusser poderia ser um filho servil, que

o considerava um bom pai, mas também desempenhava o papel do “pai do pai” – solução

encontrada para sanar o que ele considerava um pai ausente: dar-lhe um pai imaginá r io,

ele, o próprio filho.

Paradoxalmente, frente ao pai, ao sr.Richard e aos professores, ele poderia

desempenhar, concomitantemente, função de filho e de pai, o “pai do pai”. No caso dos

professores, ser “o professor do professor”, não para lhes ensinar de tudo, mas para se

responsabilizar por uma função de autoridade, pela qual pudesse controlar, vigiar e punir

o comportamento do próprio pai em relação a ele, à irmã e à mãe.

“Pai do pai” o que Althusser denomina de artifício, que para além da imitação da voz,

da letra e dos trejeitos de sr. Richard, possibilitava- lhe o poder de controla-lo, mas

também um lugar onde pudesse existir. “Em suma, uma impostura fundamental, esse

parece ser o que eu não podia ser: essa ausência de corpo não apropriado e, portanto, de

meu sexo. Compreendi então (tão mais tarde!) que, assim, eu apenas usava um artifíc io,

exatamente como um “burlador” usa para entrar num estádio (meu pai), para seduzir meu

professor e ser amado por ele justamente pelo jogo desses artifícios. O que se pode dizer?
43

Que, não tendo uma existência pessoal, uma existência autêntica, duvidando, de mim a

ponto de me acreditar insensível, sentindo-me por causa disso incapaz de manter relações

afetivas com qualquer pessoa, estava reduzido, para existir, a me fazer amar, e para amar

(pois amar comanda ser amado), reduzido portanto a artifícios de sedução e de impostura.

À sedução pelos desvios dos artifícios, e, definitivamente, à impostura” (p. 84).

Se Althusser “não existia realmente”, ele só poderia viver enquanto um ser de artifíc io,

um morto que só poderia amar e ser amado a partir dos artifícios e imposturas que tomava

de empréstimo exatamente daqueles pelos quais gostaria de ser amado e os quais tentava

amar através da imitação.

Seu corpo era um vazio com um conjunto de músculos a serem usados para a sedução,

de modo que, através desse amor artificial, poderia ter reconhecida uma existência da qual

sempre duvidara e ter sua angústia aplacada. A angústia invadia porque sempre fracassava

em suas tentativas de sedução.

Ser “pai do pai”, embora um delírio bem constituído, fadado ao fracasso. Sendo o “pai

da mãe”, um desdobramento, ele pôde existir por um processo de paranoização, dada a

função especular dessa construção delirante. Porque se Althusser conseguira seduzir os

pais e os professores através do artifício de uma imitação tão perfeita, a ponto de poderem

nele se reconhecer, de nele identificarem o próprio reflexo, ele era um duplo. Ele poderia

se efetivar pelo duplo, realizando projeções inconscientes depositadas sobre ele – as

expectativas e as esperanças de seus pares.


44

O campo de prisioneiros

Em agosto de 1939, Althusser entra para a École Normale Supérieure, mas em

setembro é convocado para a guerra, da qual relata ter tido, desde pequeno, muito medo,

“não tanto de ser morto, mas de ser ferido”.

Em 1940, com a invasão alemã, fora levado para um campo de prisioneiros em

Sanbostel, no Norte da Alemanha, onde passou fome e foi submetido a trabalhos forçados

durante o frio. Como relata Althusser, ele conheceu “homens extraordinários” no campo

de prisioneiros, através dos quais pôde vivenciar uma sexualidade auto-erótica, a partir

de histórias carregadas de erotismo.

Em virtude de um problema nos rins, por decisão do médico francês do campo, o

tenente Zeghers, Althusser foi transferido para o hospital do campo, onde permaneceu

por uma semana e depois encaminhado para um Stammlager9 , o Schleswig – lá recebeu

um número: 70670.

Por conta da Convenção de Genebra de 1929, cada nacionalidade deveria estar

representada junto ás autoridades alemãs, por alguém que fosse eleito pelos companhe iros

prisioneiros. Althusser então conseguiu conservar, ao lado dos “homens de confiança ”,

um certo lugar privilegiado.

O campo de prisioneiros permitiu, afirma Althusser, que ele desenvolvesse uma

particular obsessão pelos artifícios, mas sobretudo que, na prática, os artifícios e os

subterfúgios poderiam ser não necessariamente uma impostura, e, portanto, poderiam

produzir benefícios para o autor e para os homens: “com a condição de sabermos o que

queremos e dominarmos todo sentimento de culpa, em suma, de sermos livres” (p. 97).

9Nome dado durante a Segunda Guerra Mundial a campos alemães onde ficavam os prisioneiros de guerra
não-oficiais.
45

Contraditoriamente, Althusser sentia-se bem na experiência do cativeiro: estava longe

dos pais e do universo escolar, os quais sempre foram contínuos para ele. Pela primeira

vez, não estaria sob o terrível domínio do “mais assustador de todos os aparelhos

ideológicos de Estado, que é, numa nação onde evidentemente existe o Estado, a família”,

relata Althusser, “por uma mistura atroz de medo, educação, de respeito, de timidez, de

culpabilidade, que me fora inculcada por quem? Por meus próprios pais, presos eles

mesmos e imobilizados como nunca na estrutura ideológica atroz para minha mãe e

também para meu pai, por menos que parecesse, e isso, para quê, então, senão para

inculcar numa criança todos os altos valores que são úteis na sociedade em que ela vive”

(p. 97). Althusser considera então, “despretensiosamente”, essa descoberta, a família

como o mais poderoso aparelho ideológico de Estado, como a quarta feriada narcísica da

humanidade (depois de Galileu, Darwin e Freud), pois, sendo a família o lugar genuíno

do sagrado, da religião e do poder, ela seria certamente inaceitável.

Ali no cativeiro, Althusser pôde entrar em contato com “homens maduros”, ou seja,

com adultos longe de suas famílias, de múltiplas nacionalidades, com os quais se permitiu

vivenciar aventuras sexuais – o importante, apenas através dos relatos, da palavra – em

seus detalhes mais íntimos, o que lhe ensinou o que é ser um homem livre (embora ele

faça a ressalva, em seu texto, que considerasse aqueles homens econômica, social, política

e ideologicamente alienados).

“Viver unicamente o presente” permitiu dia após dia, mês após mês, por quase seis

anos, em lugar envolto de cerca farpada, a estabilização. “Mas na realidade devo

reconhecer que me instalei bastante bem no cativeiro (um verdadeiro conforto, pois uma

verdadeira segurança sob a guarda das sentinelas alemãs e das cercas de arame farpado):

sem nenhuma preocupação com meus pais, e confesso que cheguei até a encontrar, nessa

vida fraterna, entre verdadeiros homens, o meio de suportá-la como vida fácil, feliz, pois
46

bem protegida. Estávamos entre os arames farpados, e diante de guardas em armas,

submetidos a todas as vexações das chamadas, das revistas, das corveias, tínhamos muita

fome no primeiro e no último ano, mas, como dizer, eu me sentia em segurança, protegido

contra qualquer perigo pelo próprio cativeiro” (p.100).

Não apenas os arames farpados “enlaçavam”, mas a possiblidade de ser “o pai do pai”,

em que viver pelo presente inviabilizaria a chegada do fracasso. A proteção do campo

permitiu esse artifício, primeiro com dr. Zeghers e posteriormente com um “homem de

confiança”, Robert Daël, o da sedução. Com Daël, um homem de dois metros de altura,

carinhoso como uma “verdadeira mãe”, e corajoso para enfrentar os alemães, como

“verdadeiro homem”, Althusser poderia, protegido, ser um conselheiro, um “pai do pai”

e uma “verdadeira mãe”. Ele se enamorou por Robert Daël, seu duplo, e assim

permaneceu até o final da guerra, quando o fizera prometer que jamais casaria, o que não

aconteceu.

Dessa maneira, atravessou o cativeiro como um desaparecido, e ninguém melhor do

que alguém que existia como um morto-vivo para desaparecer em um confiname nto.

Althusser tinha, como diz, “vocação de desaparecido”, e mesmo diante das tentativas de

fuga de vários prisioneiros, algumas bem-sucedidas, não apresentava vontade de escapar.

A cada evasão de prisioneiro, toda a tropa permanecia em alerta durante quase um mês,

de modo que, quase sempre, o prisioneiro era capturado. Althusser acreditava que o meio

mais seguro de ter sucesso na empreitada seria simular uma fuga, para então, passado o

período de alerta, evadir. “ Tratava-se, pois, de desaparecer do campo para fazer crer que

o tínhamos abandonado, antes de fugir quando o alerta passasse. Para isso, bastava não

se evadir, mas desaparecer, ou seja, se esconder no próprio campo (o que não era

impossível) e dar no pé só depois, tempo (três semanas) para que fossem desativadas as

medidas de alerta. Em suma, descobrira o meio de fugir do campo sem sair dele! E,
47

portanto, ficar no cativeiro para dele escapar! Tendo preparado esse plano, não lhe dei

nenhuma continuidade, muito orgulhoso de ter descoberto a “solução”: como eu dera

provas, não precisava passar à ação. Mais tarde, frequentemente pensei que essa

“solução” estava dentro de mim de longa data, unindo o medo do perigo e a necessidade

absoluta de proteção para ter essa audácia fictícia” (p. 101).

O cativeiro ensinou Althusser a dispor do que chama “reservas”. O primeiro ano de

campo, marcado pela fome, o fez estocar, diariamente, uma fatia de pão e de linguiça

preta na cabeceira de seu colchão. No entanto, com o passar do tempo, ele só pode

encontrar o odor insuportável do apodrecimento, experiência da qual lição nenhuma pôde

tirar: as reservas se diversificaram, com biscoitos, açúcar, o dinheiro, e finalmente as

mulheres. Reservar tal como sua mãe procurava reserva-lo diante de todas as fobias, as

manias de limpeza, as economias das despesas, e principalmente o próprio corpo, contra

sobretudo a ameaça do estupro. Tal como outras mulheres de sua época, Lucienne Berger

tinha por hábito guardar o dinheiro debaixo da saia, próximo ao genital, recordação essa

que Althusser associa a sua prática de reservar.

Embora Freud tenha nos apontado o caráter metafórico da equivalência fálica entre o

produto fecal, o dinheiro e o pênis, aqui a associação é de outra ordem. Há uma

contiguidade entre dinheiro e púbico, esse remetendo ao órgão feminino, através da figura

da mãe-mártir: uma mulher concebida sempre exposta à depredação econômica e ao

estupro, e que, para se proteger, precisou reservar o seu dinheiro e seu sexo.

Tal como a mãe, enquanto “pai da mãe”, Althusser, também um mártir, deveria se

reservar, e tal como a mãe o reservara, reservaria Hélène. Reservar as mulheres diante da

angústia de um dia ser abandonado (que sempre o acompanhou), o que o fez, mesmo

casado com Hélène, a se envolver com inúmeras mulheres. Hélène é quem ele reservaria,

então a nova mãe-mártir: mulher dez anos mais velha, com quem perderia sua virgindade.
48

Hélène

Althusser conhece Hélène em dezembro de 1946, em Paris, e desde o primeiro

momento sentiu-se incumbido de uma missão: “Desde aquele momento fui assaltado por

um desejo e uma oblação exaltantes: salvá-la, ajudá-la a viver! Nunca em toda a nossa

história e até o final desviei-me dessa missão suprema que não cessou de ser minha razão

de viver até o derradeiro momento”, porque naquele momento, Hélène e Althusser eram

“dois seres no auge da solidão e do desespero, que por acaso se encontram cara a cara e

reconhecem um no outro a fraternidade de uma mesma angústia, de um mesmo

sofrimento, de uma mesma solidão e de uma mesma expectativa desesperada” (p. 108).

Tal como os demais personagens de sua história, pelo que nos remarca Althusser,

Hélène é apresentada a partir das retenções de afetos, das alucinações e das construções

delirantes, enquanto duplo estabilizador que reconstrói o casal parental.

De origem judaica, russo-polonesa, Hélène nascera em Paris. A mãe, não pudera

amamentá- la por falta de leite, jamais a pegou no colo; e “sempre a odiou” porque havia

parido uma menina ao invés de um menino. A mulher, em sua função de mãe, é mais uma

vez pavorosa, e Hélène, tal como Althusser, era uma criança-mártir, resistente a sucumbir

aos abusos de uma mãe que nunca pudera amar. Pela interpretação delirante, Hélène e ele

ocupavam a mesma posição frente às mães: “Hélène que como toda criança desejava sua

amada pela mãe e a quem tudo era recusado... teve de se identificar irrevogavelmente com

a pavorosa mulher que a odiava, e também com a imagem atroz que aquela mãe fazia da

filha: detestada porque recusada, escura e selvagem, pequeno animal rebelde impossíve l

de ser domesticado, sempre furiosa e violenta (sua única defesa) ” (p. 109). Para
49

Althusser, Hélène tinha esse fantasma de se tornar uma mulher injusta e cruel, espalhando

desgraça para todos que estivessem à sua volta, sem poder reagir contra isso.

Quanto ao pai, teve câncer, e Hélène, aos onze anos, passou meses tratando-o, pois, “a

mãe jogou toda a responsabilidade em cima da má filha”. O médico de família, dr.

Delcroix, com o qual ela mantinha relação de afeto, certo dia, abusou sexualmente de seu

corpo. “Ela ficou cuidando do pai, e foi a ela que o dr. Delcroix pediu, nos derradeiros

momentos de sofrimento do pai, que aplicasse nele a última injeção de altas dores de

morfina. Aquela menina pavorosa tinha pois, como que matado o pai que a amava e que

ela amava" (p.110). Passado um ano, a mesma situação se repetiu: a mãe teve câncer,

Hélène se prestou a cuidar e no último momento, dr. Delcroix receitou a injeção fatal para

ele aplicar. “Aquela menina pavorosa tinha, assim, matado aquela mãe que a detestava”

(p. 110).

Desde o fato, encontra-se uma lacuna nos relatos de Althusser, até a filiação de Hélène,

nos anos 30, ao Partido Comunista. Com o começo da guerra, e o Partido na

clandestinidade desde 1939, Hélène perde o contato com todos os membros e se muda

para o sul da França, onde, em Nice, por acaso, conhece Lacan.

Certo dia, em fevereiro de 1947, Hélène, depois de meses de amizade, toma inicia tiva

e dá um beijo em Althusser que, surpreso, deixa-se tomar pelo desejo de transar com ela.

Eles assim o fazem, mas Althusser é invadido por uma terrível angústia após o ato sexual;

no dia seguinte, telefona para Hélène para avisar que nunca mais faria amor com ela. Algo

intolerável passou a acometê-lo: “uma repulsa extremamente surda e violenta, quando

nada, mais forte do que todas as minhas resoluções e tentativas de reerguimento moral e

religioso. Os dias passavam e mergulhei nas primícias de uma intensa depressão” (p. 114).
50

Althusser tem um encontro com Pierre Mâle, psiquiatra e psicanalista, é diagnosticado

por “demência precoce”, e pela primeira vez, hospitalizado. Durante a internação, ele

chega à seguinte conclusão, e essa não seria a última vez: se ele estava doente, a culpa

seria de Hélène.

O quadro de Althusser se agravava severamente. Comunicando-se com Hélène pela

janela de um banheiro, já que não pudera receber visitas, Althusser decidiu que ela deveria

procurar outro médico, Julian Ajuriaguerra. Um dia, ele visita Althusser e conclui que

não se trata demência precoce, mas de uma melancolia gravíssima. Ajuriaguerra e Mâle

entram em consenso, e prescrevem vinte e quatro eletrochoques, a serem tomados um a

cada dois dias. Com o avanço do tratamento, Althusser era invadido por um temor terrível

de morrer, sempre que despertava do que chamou de “pequena morte”; passou a resistir

às sessões, em vão, pois o amarravam à cama. As noites tornaram-se insuportáveis para

dormir e decidiu tapar os ouvidos com miolos de pão, até que um dia o grão penetrou o

canal auditivo e ele passou a se queixar de fortes dores no ouvido. Acreditando ser parte

de seus delírios, os psiquiatras não acolheram sua queixa, até que, três semanas depois,

Ajuriaguerra os convenceu a encaminhá- lo a um otorrino.

Com uma estabilização do quadro depressivo, meses depois, Althusser tem alta e é

desinternado, em companhia de Hélène. Posteriormente, ele toma ciência por uma amiga

de Hélène que ela saíra grávida da única relação sexual que tiveram. Durante sua

internação, ela fizera um aborto na Inglaterra “para que ele não sofresse o martírio de

nova depressão depois dessa notícia, de tal forma ele havia manifestado horror atroz

diante do fato de tê-la amado com seu corpo” (p.117).

Após a internação, Althusser passa algum tempo em uma casa de repouso em

Combloux. Quando de sua saída, encontra Hélène, e, hospedados em uma fazenda, fazem,

tal como ele descreve, um amor violento, sem “nenhuma moderação ou angústia ”.
51

Althusser “ se tornara um homem”, mas assim aconteceu porque estava ao lado de “um

homem”. “Eu tinha o incomparável privilégio de amar uma mulher (que me amava) de

imensas qualidades! Não é porque fosse mais velha, e sensivelmente, do que eu – essa

diferença nunca desempenhou nenhum papel entre nós, mas, no caso, sua lucidez, sua

coragem, sua generosidade e sua experiência, tão vasta e múltipla, seu conhecimento do

mundo, dos maiores pintores e escritores da época, suas atividades na resistência, onde

tivera inclusive importantes responsabilidades militares (ela, uma mulher, naquele tempo:

era um homem) ” (p. 120). Perto desse “homem”, oito anos mais velho, ele sentia-se mais

jovem, naturalmente, mas, principalmente, porque esse outro lhe era, ao mesmo tempo,

um pai e uma mãe – “mais velha do que eu, muito mais cheia de experiência de vida,

amava-me como uma mãe ama seu filho, seu milagroso filho, e ao mesmo tempo como

um pai, finalmente um bom pai, posto que simplesmente me iniciava no mundo real, esse

mundo infinito em que jamais pude entrar (salvo, e ainda assim, por efração, salvo no

cativeiro), ela me iniciava, também, pelo desejo que tinha de mim, patético, em meu papel

e na minha virilidade de homem: amava-me como uma mulher ama um homem!” (p.121).

Althusser só se casou com Hélène um ano após o falecimento do pai, o qual nunca a

aceitara. Sentindo-se deslumbrado pela figura de Hélène e a possibilidade de ser amado

como queria, ele procurou seduzi-la, tal como fizera com a mãe. Uma mãe “castradora e

estupradora”, mas que diante do marido era concebida como uma mártir, “uma chaga

aberta e viva”, cuja defesa Althusser tomara para si, desde mito cedo, como

responsabilidade. Diante dos “desaparecimentos” do pai, que os deixava, sobretudo

Althusser, em uma angústia insuportável até seu regresso, coube a ele esse papel de ser

“homenzinho do lar”. Diminutivo esse utilizado para qualificar a sua incapacidade física

(era magro e pálido) e funcional (não era um “verdadeiro homem”) em assumir esse papel

pelo qual se imbuiu em sua interpretação delirante – se algo faltava em sua virilidade, era
52

na verdade uma mulher do lar. Reconstruído o casal parental, a mãe-mártir e o pai

desaparecido, na figura de Hélène, um “homem”, Althusser continuou seu martírio: ser

a mulher do lar, porque a vida inteira sentiu-se um impotente.

Não uma impotência simbólica, mas vivenciada em seu corpo como castração real. “É

que seguramente eu me tornara incapaz, por causa do amor totalmente impessoal de

minha mãe, posto que ele não se dirigia a mim, mas por trás de mim a um morto, de existir

para mim e para o outro, particularmente para uma outra. Sentia-me como que impotente,

que se tome essa palavra em seu sentido mais amplo: impotente de amar, sem dúvida,

mas também impotente, primeiro em mim mesmo, e antes de tudo em meu próprio corpo.

É como se me tivessem retirado aquilo que poderia constituir minha integridade física e

psíquica. Pode-se aqui falar, legitimamente, de amputação, portanto de castração: quando

alguém retira uma parte de você, que definitivamente fará falta à sua integridade pessoal”

(p. 125).

Castração real que se efetuara na infância, quando da primeira polução noturna, e de

uma tentativa “forçada” de eliminar uma fimose que só viria a lhe fazer sentido anos mais

tarde. Em torno dos dez anos, ele passava boa parte do tempo a puxar a pele excessiva (o

prepúcio) de seu pênis, na “tentativa de despregar a glande”. Não é de se espantar que tal

exercício masturbatório produzisse secreção, mas Althusser, ao se deparar com constantes

“corrimentos”, invadia-se pelo pensamento de que havia sido infectado por uma doença

sexualmente transmissível, razão que explicaria sua impossibilidade de ter uma “ereção

completa”, ou seja, acompanhada por ejaculação. Certo dia, a mãe vigilante comunica o

pai e o tranca no banheiro com Althusser: de luzes apagadas, em silêncio, Charles tenta

“despregar” a glande do prepúcio, ao longo de uma hora, mas claro sem nenhum sucesso

Quando da saída do cativeiro, Althusser, repatriado para a casa dos pais, vê-se mais

uma vez invadido por essa “idéia fixa”, por essa certeza, de ter contraído uma doença
53

venérea, a qual poderia impedí- lo do sexo que o definia como homem, acompanhada pela

angústia de alguém “colocar a mão em cima”. “Como se faltasse a meu sexo alguma coisa

para ser um sexo de homem, como se na realidade eu não dispusesse de fato de um sexo

de homem, como se alguém (quem?) me tivesse privado daquilo. Minha mãe

provavelmente que, conforme se recorda, tinha literalmente me “posto a mão em cima”

(p. 125).

Há uma especificidade clínica, na castração vivenciada enquanto uma amputação no

real do corpo. Ela priva Althusser não apenas de ser um “verdadeiro homem”, mas do que

ele chama de “dom de amar”. Para amar, e em troca ser amado, a plenitude do sujeito não

pode ser ameaçada, e a ausência de contradição do inconsciente está a céu aberto: sujeito

que ama e objeto amado coexistem com o ser pleno – e o razoável é que na plenitude, não

há separação entre o que endereça e o endereçado. Quem privara Althusser de ser um

homem pleno? A mãe, que a partir de suas fobias procurou controlar o seu corpo desde

pequeno, porque, tal como ele, era plena e apenas se defendia da castração que poderia

efetuar-se pelo roubo e pelo estupro. “Sim, fui castrado por ela, sobretudo quando

pretendeu me dar meu próprio sexo, gesto atroz que eu recebera como a própria imagem

de meu estupro por ela, como roubo e estupro de meu próprio sexo sobre o qual ela havia,

na realidade, “posto a mão” contra a minha vontade mais profunda, contra meu desejo de

ter um sexo meu, meu e de mais ninguém, que, sobretudo, ó obscenidade suprema, não

fosse dela – e por isso me sentia incapaz de amar, posto que ele fora usurpado, eu havia

sido tocado naquilo que minha vida tinha de mais intenso” (p. 126).

Através de Hélène, o desejo materno de ser amada integralmente era recomposto.

Deitados na cama, Althusser intuía seu desejo: quando ela lhe dizia “diga-me alguma

coisa”, não queria dizer outra coisa a não ser “dê-me tudo”. Dar tudo, dar um amor infinito
54

capaz de salvar o outro, essa era a missão de Althusser – salvar Hélène do destino de se

tornar uma mulher má e uma mãe terrível.

Por ela, ele nutria os mesmos sentimentos ambivalentes que pela mãe, pois havia uma

razão na mãe estupradora que a tornava uma mártir. “Pobre infeliz, fez o que pôde, nada

mais, nada menos, pelo que acreditou ser sua felicidade e a nossa, na realidade por minha

infelicidade, pensando fazer o bem, ou seja, alinhando-se àquilo que lhe haviam ensinado

os calmos terrores de sua própria mãe na solidão das florestas selvagens da Argélia, e

diante da inquietação de seu pai” (p. 127). Uma mãe que violenta, mas que não pode

deixar de ser amada, e que deve ser salva da violência do mundo, tal como a mulher com

a qual Althusser tivera sua primeira relação sexual e que o conduziu à primeira internação.

Jamais tive a impressão de que Hélène tivesse pretendido “pôr a mão em cima” de

mim ou se conduzido comigo como uma espécie de mãe castradora, diz Althusser. No

entanto, sabe-se que a primeira relação sexual fora marcada pela violência, em que Hélène

tomara iniciativa de “pôr a mão em cima”; o relacionamento consistia em um

deslizamento de posições, entre mãe-mártir, mãe estupradora, pai ausente, pai protetor,

que só poderia conduzir ao enlouquecimento que a passagem ao ato encerrou.

Quando no encontro sexual, Hélène poderia ser a mãe que violenta, que abusa do corpo

do outro, e a Althusser caberia a recusa sexual e o silêncio, tal como o pai ausente, ou

então a mãe-mártir. No entanto, ocupar o lugar do pai que se recusa a responder “diga-

me alguma coisa” implica a transformação de Hélène na figura da vítima, na mulher

direita que padece da crueldade masculina.

Era Hélène quem tomava a iniciativa de colocar fim às discussões, recorrentes no

apartamento da École Normale Supérieure, deixando Althusser e batendo a porta ao sair.

Era então o pai que poderia abandoná-lo, e ele, diante de uma mulher pai-mãe, não
55

encontrou outra solução a não ser manter casos extraconjugais: ele não poderia se deitar.

Mais do que um traço perverso, apresentava suas amantes à Hélène, para satisfazer seu

“desejo de não ser abandonado contra sua vontade e de ser protegido de tudo”.

Althusser mantinha assim uma “reserva de mulheres” com as quais sustentava, em sua

maioria, relações platônicas, principalmente pela garantia de que estivessem

geograficamente distantes. Por vezes, algumas dessas mulheres tomavam a inciativa de

“ter idéias” por ele: declarações de amor. Como “detestava ser amado”, as crises

depressivas se tornaram recorrentes, acompanhadas de rápidas hospitalizações, entre duas

a três semanas.

Althusser reconhece que as internações produziam efeito de borda: o hospital garantia

que não fosse abandonado e que estivesse protegido do mundo, com as sucessivas partidas

de Hélène, diante de suas extravagâncias amorosas – “só me restava abandonar-me a meu

“destino” e cair naquilo que eu desejava, realizar minha verdade, não mais existir,

desaparecer do mundo, em suma, ser hospitalizado, mas com essa segunda intenção

perversa de me refugiar na doença em que, então, mais ninguém, iria me abandonar, já

que eu estava oficial e publicamente doente, e exigia e obtinha assim, tiranicamente, a

assistência de todos” (p. 131).

A hospitalização apontava para o refúgio no adoecimento, no qual Althusser se

abandona para garantir que, pelos cuidados médicos, não fossem ais abandonado, e que,

como uma criança dependente, seria amada ser ter que dar nada em troca, obtendo assim

controle sobre o outro – uma certa teoria da onipotência, trabalhada em análise por

Althusser, e que lhe servira como uma muleta oportuna para se apoiar através de sua

doença. Nesse caso, ele não se diferencia de tantos outros pacientes psiquiátricos, que ao

se assegurarem em explicações sintomatológicas, reproduzem discursos que excluem o

sujeito do fenômeno psicopatológico.


56

Os episódios depressivos, acompanhados pelas hospitalizações, eram sucedidos por

quadros hipomaníacos quando da desinternação, os quais consistiam em períodos de

intensa produção bibliográfica, como no outono de 1965, com a publicação de Por Marx

de Ler “O capital”. “Fui então acometido de um pavor incrível, diante da idéia de que

aqueles textos iam me mostrar totalmente nu ao mais vasto público: totalmente nu, ou

seja, tal como eu era, um ser inteiramente de artifícios e imposturas” (p. 133).

O ciclo melancólico consistia numa sucessão de desestabilizações e estabilizações,

entre a interpretação delirante do medo, e a missão hipomaníaca de salvar o marxis mo,

ser o pai do pai, acompanhadas de uma angústia terrível de ser castrado no real do corpo,

ou seja, da amputação: “... o medo de ser abandonado (por Hélène, meu analista ou algum

de meus amigos ou amigas), o medo de ser exposto a uma demanda de amor que sentia

como a ameaça de que me “pusessem a mão em cima”, evidentemente não as minhas, e,

por último, o medo de ser exposto, em público, em minha nudez: a de um homem

insignificante, sem nenhuma existência a não ser a de seus artifícios e de suas imposturas,

e então todo mundo iria descobrir, às claras e deixando-me confuso, minha condenação

definitiva” (p. 131).

Entre desejo especulativo e desejo prático real

Pouco antes do verão de 1965, Althusser decide interromper a análise, para procurar

um “verdadeiro analista”, com o qual passou a se encontrar diariamente.

A compulsão por provocar Hélène se acentuava, sobretudo em virtude dos episódios

hipomaníacos que anunciavam novas crises depressivas, dado que os projetos grandiosos

estavam fadados ao fracasso. As agressões à Hélène iam desde submetê-la como cúmplice
57

de pequenos roubos em lojas, até constrangê-la dando em cima de outras mulheres em

sua presença, sem o menor puder ou discrição.

Certa vez, hospedados em Saint-Tropez, Althusser recebe um amigo de partido, ao

qual iria apresentar manuscritos para análise. Ele comparece acompanhado com a

namorada, com a qual, a certa hora da noite, com Hélène, decide caminhar pela praia.

Hélène, que não aprendera a nadar, observa da areia Althusser e a mulher convidada se

despirem e trocarem carícias no mar. Em determinado momento, desaparecem ao serem

puxados pela correnteza, deixando Hélène desesperada. Quando conseguiram nadar com

esforço e retornar à praia, ela já havia sumido e fora encontrada distante dali apavorada,

em prantos. Althusser tenta contornar a situação, mas Hélène o reprime com

agressividade: “Você é nojento! Você está morto para mim! Não quero mais vê-lo! Não

aguento mais viver com você! Você é um covarde, um safado, desapareça! ” (p. 141).

Concomitante às brigas intensas com Hélène, Althusser tornava-se um expoente da

filosofia marxista na França, a partir de sua missão de se tornar “o pai do pai” – “os

maiores filósofos nasceram sem pai e viveram na solidão de seu isolamento teórico e no

risco solitário que assumiam diante do mundo. Ora, não tive pai, e brinquei

indefinidamente de ser o “pai do pai” para me dar a ilusão de ter um, na realidade, para

atribuir- me o papel de um pai em relação a mim mesmo, já que todos os pais possíveis

ou encontrados não podiam desempenhar esse papel. E eu os rebaixava desdenhosame nte,

submetendo-os a mim, à minha subordinação manifesta” (p. 153) – e de sua relação

particular com a escrita, como acesso a verdade a ao seu domínio – “filosoficamente, eu

devia, pois, tornar-me também meu próprio pai. E isso só era possível conferindo- me a

função por excelência do pai: a dominação e o controle de toda situação possível” (p.

153).
58

Segundo Althusser (1992), a filosofia é a ciência que abarca tudo e que se debruça

sobre o Todo, visando o seu controle; o Todo inclui o próprio sujeito pensador, ou seja, a

filosofia foi um caminho para se obter o controle de si e a realização de um desejo

singular. O desejo próprio de Althusser seria esse descolado do destino do desejo materno,

um desejo de morte. Seria esse o estatuto do desejo na psicose: ter o desejo de um desejo

próprio, que no caso de Althusser, se realiza no assassinato de Hélène?

No campo da filosofia, esse desejo se realizou à primeira vista, na interpretação

delirante, de ser o pai do pai. No entanto, uma passagem se efetua, via simbólico, no

movimento de retorno ao pai, Marx. Frente à derrocada socialista com Stalin, pelo que

chamou de “bobagem de materialismo soviético”, Althusser empreendeu uma via de

redescobrimento de Marx, cujo pensamento e consequências teóricas, filosóficas,

políticas, e ideológicas, lhe eram sagradas. Dentro do Partido Comunista, esta missão se

realizou via construção da teoria dos aparelhos ideológicos, sendo a ideologia a realidade

imaginária de controle.

Althusser se tornou um expoente da filosofia marxista, com a proposta de nova

apresentação de Marx, diante do fracasso do programa socialista soviético. Marx

continuaria a ser o velho pai fundador, sendo função de Althusser pensar em seu lugar o

que ele deveria ter pensado, ou em outras palavras, ele poderia então ocupar o lugar do

pai mítico, e apoiando-se em sua autoridade, poderia exercer uma força singular dentro

do próprio Partido.

O encontro com Marx foi através de um corpo: “... porque me permitiu viver, pela

crítica da ilusão especulativa, uma autêntica relação com a realidade nua e, também, poder

viver doravante essa relação física (de contato, mas especialmente de trabalho sobre a

matéria social ou outra) no próprio pensamento. No marxismo, na teoria marxista,

encontrei um pensamento que levava em conta o primado do corpo ativo e trabalhador


59

sobre a consciência passiva e especulativa, e eu pensava nessa relação como sendo o

próprio materialismo” (p. 191). Althusser resolve pela via do marxismo um conflito entre

um desejo chamado de especulativo, puramente teórico, o ideal de morrer, e um desejo

prático, de contato com a matéria física e de sua transformação em um trabalho ou ação

política.

O desejo especulativo, como o próprio nome diz, remete ao especular, ao desejo

materno que se reflete e na qual Althusser se vê refletido pelo olhar. “O olho é passivo, à

distância de seu objeto, do qual recebe a imagem, sem ter de trabalhar, sem engajar o

corpo em nenhum processo de abordagem, de contato, de manipulação” (p. 189). A

distância do olhar, utilizada nos relatos voyeristas do cativeiro, nas relações platônicas,

era esse recurso de proteção contra o desejo mortífero do Outro, mas também o que de

maneira onipresente e onisciente fazia de Althusser uma criança privada de seu corpo e

do contato com o outro.

O desejo especulativo era o que invadia Althusser pelo pavor de se envolver em brigas

quando garoto e que o impedira de se masturbar até os vinte e sente anos de idade. Um

desejo que instituiu um corpo despedaçado, vazio, cuja sexualidade auto-erótica era

vivenciada por uma exterioridade, através dos odores das flores, das frutas, dos

cogumelos e da putrefação dos animais mortos, bem como do suor dos homens

trabalhando. Em jogo na experiência auto-erótica, o olhar de um corpo emancipado, no e

pelo qual Althusser esforçou-se, desde a prática de exercícios na infância e na

adolescência, para habitar: “... minha própria experiência, a de um corpo despedaçado e

perdido, de um corpo ausente, formado por inteiro de temor e de esperanças gigantescas,

que se recompusera em mim e se revelara no exercício de apropriação de suas forças, em

companhia de meu avô nos trabalhos físicos dos campos e no campo de prisioneiros! Que

se pudesse assim tornar a dispor de seu próprio corpo, e retirar dessa apropriação
60

elementos para pensar livre e intensamente, portanto, pensar com seu corpo, em seu

próprio corpo, por meio de seu corpo, em suma, que o corpo pudesse pensar” (p. 194).

A relação conturbada com Hélène era atravessada por esse conflito, entre o desejo

especulativo, e o desejo prático real, sendo a passagem ao ato esse momento evanescente

do desejo prático real, quando assassiná-la vem a barrar o ideal teórico/desejo materno,

para dar lugar ao sujeito desejante: reconquistar pelo corpo o desejo de ter uma existênc ia

própria.
61

CAPÍTULO 3. Os antecedentes do crime

Em 1979, embora Althusser relate que tenha “de fato” compreendido, em sua análise,

que Hélène não queria “pôr a mão em cima dele”, nem ter “idéias sobre ele”, as

dificuldades em dar aulas aumentavam e dedicava boa parte de seu tempo a um projeto

audacioso. Envolvendo historiadores, sociólogos, políticos, economistas, epistemólo gos

e filósofos, associado à direção da École Normale Supérieure, foi criado o Centro de

Estudos dos Movimentos Populares, de suas Ideologias e Doutrinas Teóricas (CEMPIT),

com o qual Althusser objetivava realizar um estudo comparativo entre o movime nto

operário ocidental, o Islã, a China, o cristianismo e revoluções camponesas (jacqueries?),

de modo que várias conferências foram realizadas.

No entanto, em meados de dezembro, Althusser começou a sofrer severas dores no

esôfago, o que passou a prejudicar a deglutição. Após uma endoscopia, foi diagnosticada

uma hérnia do hiato e a recomendação foi cirurgia imediata. Por duas vezes, a operação

fora marcada, mas Althusser desistiu por conta de um pavor angustiante de que a anestesia

o desorganizasse completamente. Acabou concordando, diante da insistência dos

médicos, na terceira tentativa – a operação foi bem-sucedida, mas após o efeito de uma

anestesia profunda, acordou tomado por uma angústia insuportável. “Essa anestesia e a

primeira angústia jogaram-me pouco a pouco numa nova “depressão” que, pela primeira

vez, não mais parecia neurótica e “duvidosa”, não declarada, mas uma melancolia aguda

totalmente clássica, cuja gravidade alertou seriamente meu psicanalista: “Pela primeira

vez, a meu conhecimento”, disse-me mais tarde, “você apresenta todos os sinais de uma

melancolia clássica aguda e, além disso, grave e inquietante” (p. 218).


62

O estado de Althusser continuou a se agravar e, em junho de 1980, fora transferido

para a clínica Montsouris. Hélène visitava Althusser constantemente, o qual diante de

suas partidas, invadia-se por certos pensamentos: ela retornava sozinha para casa,

angustiada no apartamento vazio da École, lançada à insuportável tarefa de, pelos

telefonemas, noticiar os amigos a respeito de seu estado, sem que lhe perguntassem sobre

sua “miséria moral”, ou seja, era ela quem não existia mais. Pela primeira vez, Althusser

se angustiara com a internação, e projetava suas angústias em seu duplo, Hélène.

As condições médico-hospitalares da clínica Montsouris não corroboravam com um

apaziguamento do quadro depressivo, as medicações não surtiam efeito e a hipótese

suicida tornava-se cada vez mais frequente. Instalava-se um quadro catatônico, com

vômitos incessantes, visão turva e falta de controle urinário, acompanhado de alucinações

reconstruídas por Althusser através de fragmentos de memória e de relatos de amigos e

médicos. Embora desde o princípio de seu texto colocasse em dúvida o caráter dos fatos,

ora tal como ocorreram, ora pelo delírio, pela primeira vez, ao longo da obra, Althusser

trata da alucinação e da persecução propriamente ditas. “… não parava de viver à noite

atrozes pesadelos, que se prolongavam por muito tempo no estado de vigília, e eu “vivia ”

meus sonhos em estado de vigília, ou seja, agia segundo os temas e a lógica de meus

sonhos, tomando a ilusão de meus sonhos por realidade, e era então incapaz de diferenc iar

em estado de vigília minhas alucinações oníricas da simples realidade. Era nessas

condições que eu desenvolvia incessantemente, para quem viesse me visitar, os temas de

perseguição suicida. Pensava com intensidade que uns homens desejavam minha morte e

se preparavam para me matar: especialmente um barbudo que devo ter avistado em algum

lugar da clínica, mais que isso, um tribunal estava instalado no quarto ao lado para me

condenar à morte; mais ainda, homens armados com fuzis de luneta iam me matar

mirando as janelas das habitações defronte; enfim, as Brigadas Vermelhas tinham me


63

condenado à morte e iam irromper em meu quarto de dia ou de noite” (p. 220-221). O

delírio suicida seria uma solução diante da sentença de morte e da ameaça de execução ,

enquanto uma antecipação do desfecho trágico. O suicídio varreria não apenas sua

existência, mas seria preciso apagar todos os vestígios da mesma: destruir todos os seus

livros, seus manuscritos, incendiar a École, e então, matar Hélène.

Embora o quadro clínico não fosse favorável, após ajustes na medicação e uma

aparente estabilização, Althusser é desinternado. Após dez dias de viagem pelo sul da

França, ele e Hélène regressam, e a situação se agrava até a resolução homicida.

Diante do sofrimento intenso, Hélène decide se separar: começou a procurar outro

lugar para morar e enquanto não aconteceu, impôs um regime de silêncio, em que ficava

fora de casa o dia inteiro e quando acontecia de não sair, isolava-se em seu quarto, para

não encontrar Althusser. Aconteceria o que sempre temeu: Hélène iria abandoná-lo.

Embora a angústia de ser abandonado estivesse sempre presente, Althusser procurou

se assegurar na certeza, um tanto incerta, de que Hélène jamais o deixaria. Além disso,

embora o delírio suicida se tornasse mais frequente, tal como a resolução de assassiná- la,

a possibilidade de se matar e de matar o outro, no caso, a pai-mãe, se aproximava do

inconcebível – é o outro quem quer se matar. Hélène teria tomado uma decisão

irrevogável, declara Althusser: iria se matar, tomando remédios, ou tal como Nikos

Poulantzas, iria se jogar do último andar da torre Montparnasse. “Aí também, surdamente,

eu pensava que ela seria incapaz de se matar. Dizia-me que tínhamos exemplos demais

em nossa vida, e que no fundo, ela gostava muito de mim, me amava com um amor tão

visceral que seria incapaz de passar à ação. Mas ainda aí eu não estava absolutame nte

seguro. O auge ocorreu num dia em que simplesmente me pediu para matá-la, e essa

palavra, impensável e intolerável em seu horror, fez todo o meu ser estremecer
64

longamente. Isso seria para de certo modo me comunicar que ela era de fato incapaz não

só de me abandonar, mas de se matar com as próprias mãos? ” (p. 222).

Salvo o analista de Althusser com o qual ele e Hélène se encontravam, ao período que

se sucedeu, não se encontravam com mais ninguém, não atendiam ao telefone nem a quem

batesse à porta. Permaneceram trancados, internados, como em cativeiro, até 15 de

novembro10 , quando Althusser fora se encontrar com o analista. A recomendação foi

precisa: Althusser deveria aceitar ser hospitalizado novamente.

A experiência de Althusser na clínica do Montsouris não apresentara condições

favoráveis para sua melhora, e seu analista teria recomendado o Vésinet, que poderia

recebê-lo dentro de dois ou três dias. Já seria tarde demais, a resolução do delírio suicida

estava efetuada. “No domingo 16 de novembro às nove horas, tirado de uma noite

impenetrável e na qual desde então nunca pude penetrar, encontrei-me ao pé de minha

cama, de roupão, Hélène deitada à minha frente, e eu continuando a lhe massagear o

pescoço, com a sensação intensa de que meus antebraços estavam muito doloridos:

evidentemente, aquela massagem. Depois compreendi, não sei como, a não ser pela

imobilidade de seus olhos e daquela pobre pontinha de língua entre os dentes e os lábios,

que ela estava morta. Saí então correndo de nosso apartamento, berrando, em direção à

enfermaria onde sabia que encontraria o dr. Étienne. O destino havia se cumprido” (p.

224).

10 As datas da última visita ao analista e da decisão da internação não são precisas.


65

PARTE II

A foraclusão do Nome-do-Pai
66

Em Totem e Tabu (1913), Freud se utiliza do mito da horda primitiva para tratar da

instauração das relações sociais entre os homens, instauração essa efetuada a partir de

uma lei. O mito é uma via do que Freud chamará de Complexo de Édipo, o qual será

retomado por Lacan a partir de uma releitura conduzida pelo conceito de estrutura, forjado

por Lévi-Strauss em As estruturas elementares do parentesco (1948).

Segundo Lévi-Strauss (1948), as relações entre os homens se efetuam a partir de trocas

simbólicas, ou seja, são mediadas pela linguagem, de modo que a passagem da natureza

à cultura se dá a partir de uma lei fundante: a interdição do incesto. Sobre a incidênc ia

dessa lei, é o momento em que a natureza ultrapassa a si mesma, já que não pertence

apenas a ordem natural, e tampouco é puramente da ordem da cultura – é o processo

fundamental através do qual se realiza essa passagem.

A interdição do incesto guarda, portanto, algo do universal (da natureza) e do particular

(a cultura). Mesmo que apresente graus de variação, está presente em todas as sociedades,

mas também é uma regra que está, ao mesmo tempo, no limite da cultura, na cultura, e

nesse sentido, ela é a própria cultura, ao regular as relações sexuais e de matrimônio.

Veremos que Lacan irá articular essa lei com o processo de substituição significante e

o Nome-do-Pai, ao tratar da relação do supereu e do parricídio com o estabelecime nto

dos laços sociais entre os homens. Sobre essa questão, do lugar da lei e do crime, que é o

cerne da nossa proposta de interlocução entre a psicanálise e o direito penal, trataremos

no capítulo 8, ao retomarmos o mito da horda primitiva.

Nesse momento, cabe salientar que, na passagem da natureza para a cultura, o laço

sanguíneo se ressignifica como aliança, de modo que, nesse novo domínio, é o próprio
67

homem que conquista e reconhece o outro. Saindo da posição de macho que detém o

poder sobre as fêmeas ao seu redor (a mãe, a filha, a irmã), assume o posto de um dentre

tantos homens que tem acesso às outras mulheres. No posto deixado, reconhece-se o papel

de outro homem, o pai, o qual assumiu, por conseguinte, o posto de outro pai. (Levi-

Strauss, 1948).

Se as relações de aliança não dizem respeito aos laços consanguíneos, é porque

remetem ao campo do significante, à uma estrutura linguística onde as relações se

estabelecem por metonímias e metáforas, produzindo como efeito uma nova significação.

Segundo Pacheco Filho (2014), estamos na própria dinâmica edípica:

“Não sem razão, o termo Complexo de édipo veio a ser utilizado para denominar
a articulação teórica das proposições e conceitos que, em Psicanálise, constelam a
importância fundamental do desejo inconsciente, da sexualidade, da lei e das fantasias
na vida psíquica dos seres humanos, dado que a tragédia de Sófocles há séculos
emociona e fascina pessoas de tempos, lugares e culturas diferentes, com sua trama
envolvendo desejo incestuoso, interdito e transgressão” (p. 114).

Lacan efetua um movimento de retorno à Freud ao longo de seu ensino, evitando o

reducionismo biologizante que recaíra sobre a obra freudiana, sobretudo quanto ao

Complexo de Édipo, e encontrou uma via na proposta de Lévi-Strauss (1958), de que o

inconsciente deve ser abordado a partir do conceito de estrutura.

Estrutura envolve o caráter relacional do psiquismo humano, em oposição a qualquer

teoria que se diga atomista (que considere o fenômeno psíquico isoladamente, em relação

ao conjunto mental do indivíduo), refutando o que seria uma oposição entre o que é

subjetivo e o que estaria no coletivo. Lacan (1956), define a estrutura como um grupo de

elementos que se relacionam entre si, evidenciando especificidades do conjunto ao qual


68

pertencem tais elementos; em outras palavras, o fenômeno psíquico não pode ser

compreendido por si mesmo, a não ser remetido a uma cadeia associativa.

Lacan procura então redefinir o caráter universal do Complexo de Édipo, não pela

realidade objetiva de seus elementos (pai, mãe e criança), mas a partir da posição e da

função ocupadas por cada elemento na estrutura significante do processo, através de

etapas lógicas dialéticas.

“E isto é universal: existe uma relação ordenada entre as regras de parentesco e as


regras de aliança (casamento), cuja chave é evitar o incesto (o casamento com os
cônjuges proibidos). Como se vê, Lévi-Strauss não apenas resgata a proposta freudiana
de universalidade do Complexo de Édipo e do tabu do incesto, como também põe em
evidencia que a linguagem e a função simbólica é que oferecem a chave que os e xplica,
e não a transmissão genética”. (PACHECO FILHO, 2014, p. 120).

Nesses termos, a incidência do significante sobre o sujeito é uma dupla operação,

primeiro de torsão, do mundo do universal da natureza, o campo da necessidade, para o

registro da singularidade, o campo da cultura, do desejo; segundo, de cisão, onde se

estabelece uma falta, cujo representante é o significante fálico.

A dinâmica fálica baliza a dialética edipiana em seus momentos derradeiros, sendo

que é a renúncia definitiva à posição de falo materno, durante o processo da metáfora

paterna, o que permite à criança aceder à posição de sujeito desejante. Comparece o Pai

Símbólico, como conjunto de significantes (o trabalho, o padrasto, o próprio pai, um

irmão) que se associam ao significante da lei para a criança – “minha mãe não vive em

função de mim!”.

O aforismo lacaniano de que “o inconsciente é o discurso do Outro”, implica localizar

esse Outro como o “tesouro dos significantes” que antecede o sujeito. O significante cinde
69

o sujeito e o inscreve numa rede de relações que ordenam a sustentação imaginária do eu

diante do Real, caracterizando a realidade humana simbólica. No entanto, para que essa

realidade seja estruturada via simbólico, é preciso que o objeto causa do desejo caia pela

substituição significante, a partir da inclusão do significante do Nome-do-Pai nesse

Outro. A negação do Outro como barrado, consiste na foraclusão, mecanismo específico

da estrutura psicótica.
70

CAPÍTULO 4. O que é um pai?

A relação especular

Freud deixa preparado o terreno das posições da trama edípica, sob o qual Lacan irá

desenvolver suas considerações.

“... trata-se sempre de apreender aquilo que, intervindo no exterior em cada etapa,
remaneja retroativamente o que foi iniciado na etapa anterior. Isso, pela simples razão
de que a criança não está só. Não apenas ela não está só devido a seu meio biológico,
mas existe ainda uma esfera muito mais importante, a saber, a esfera legal, a ordem
simbólica. São as particularidades da ordem simbólica, frisei de passagem, que dão, por
exemplo, sua prevalência a este elemento do imaginário que se chama o falo.” (LACA N,
1956, p. 204)

Sendo o falo como significante que baliza a dialética edípica, via ser/não ser e ter/não

ter, significante da falta, é no jogo das posições – identificações – em relação a esse

significante (pai, mãe, criança, falo) que o sujeito se institui frente à castração.

O falo, tal como o concebemos, é um objeto imaginário, que se constitui de fato ao

final da metáfora paterna, posto que é um significante do inconsciente. Quando da

substituição significante, o significado do desejo da mãe (que pode ser qualquer coisa, x),

dá lugar ao falo. Ou seja, ao longo da dialética edípica, a criança não se percebe como

falo, mas sim como algo que preenche a falta da mãe.

Ao escrever uma história qualquer, um autor não poderia descrever que lugar, de fato,

cada personagem ocupa dentro de seu enredo. Enquanto autor, ele está na posição de

todos os seus personagens. No caso de um ator, este poderá nos dizer sobre seu
71

personagem, mas pouco saberá sobre os demais e nada poderá falar sobre o efeito de sua

interpretação. Se pensarmos em um mesmo personagem, atores diferentes o interpretarão,

e ao final das contas, personagens diferentes darão cor a história.

A história original é apenas a do autor: cada vez que for interpretada será uma versão.

Aos poucos se tece um saber, saber esse inconsciente a respeito dessa história, a cada

ensaio (em francês, oportunamente, répétition). Na dialética edípica, a história origina l,

o falo só ganha lugar como tal nesse saber que se tece em cada ensaio, em cada revivênc ia.

Enquanto na trama edípica, o sujeito imagina que ele ocupa uma posição privilegiada no

desejo da mãe, de modo que a entrada do terceiro o faz pensar que há algo que interessa

à mãe, que ele pode ter, que o pai pode ter, ou que nenhum dos dois tem a posse.

De fato, em termos didáticos, muitos analistas têm localizado o primeiro tempo edípico

como a identificação da criança ao falo materno. Isso não está incorreto, desde que a

dialética fálica não seja reduzida a uma perspectiva desenvolvimentista. Lacan procurou

precisar tal lógica desde o Estádio do Espelho, como processo fundamental da

constituição do eu e da relação dual. Em O estádio do espelho como formador da função

do eu (1949), ele já assinalava a “passagem pelo espelho” como entrada da criança nas

etapas lógicas da constituição do sujeito.

“Trata-se de que a criança inclua a si mesma na relação como objeto do amor da


mãe. Trata-se de que ela aprenda o seguinte: que ela traz prazer à mãe. Esta é uma das
experiências fundamentais da criança, a de saber se sua presença requer, por menos que
seja, a presença que lhe é necessária, se ela mesma introduz o esclarecimento que faz
com que esta presença esteja ali e a cerque, se ela mesma lhe traz uma satisfação de
amor”. (LACAN, 1956, p. 229).
72

A criança já nasce em um conjunto de significações, em um mundo repleto de valores,

de um discurso próprio. Desde os primeiros meses de vida, incidem sobre ela (a criança)

representações das expectativas inconscientes do couple parental – através da escolha do

nome, na preferência por um dos sexos, pela decoração do quarto do bebê, etc. O que

sugere que a criança nasce com um corpo que não é dela, mas que se refere a uma

produção conjunta dos inconscientes de seus pais, de modo que a conquista de um corpo

próprio, com a formação de um eu primário, se dará através das enunciações de um Outro

primeiro: a mãe, por exemplo.

O Outro primordial investe libidinalmente o bebê, traduzindo para ele o mundo – o

investimento consiste sobretudo em um banho de significantes. A mãe, nessa relação,

marca o corpo que está em sua posse e se constitui como matriz simbólica.

A cada manifestação corporal (choro, grito, incômodo) da criança, haverá em seu

corpo uma descarga motora que se segue a uma grande excitação interna. Todas essas

manifestações serão significadas pelo Outro como algo além de um mero corpo – sempre

que a criança chorar, a mãe toma esse choro como endereçado a ela, em uma posição de

suposto saber (como se ela soubesse a verdade daquela criança). Ao se prontificar a esse

papel, essa mãe adjetiva seu filho: se come demais é guloso, se chora demais é chato, se

não quer dormir é teimoso; a cada apelo a mãe coloca um sentido ou uma palavra que

ainda não existem. Sempre que o Outro entrar com comida, o ninar, ou um carinho, ele

promoverá uma situação de apaziguamento de gozo.

“... quando uma criança grita, existe uma situação total que compreende a mãe, o
grito, a criança. Por conseguinte, estamos aí em plena teoria da comunicação: a criança
chora e a mãe recebe o seu choro como um sinal, um sinal da necessidade. [...] Como
mostra o que Freud valoriza na manifestação da criança, o grito de que se trata não é
considerado como sinal. Trata-se do choro na medida em que ele convoca sua resposta,
73

que faz apelo, se posso dizê-lo, sobre um fundo de resposta. O grito se produz num
estado de coisas onde não apenas a linguagem já está instituída para a criança, mas esta
já está imersa num meio de linguagem, e é a título de par de alternância que ela
compreende e articula seus primeiros balbucios”. (LACAN, 1956, p. 192).

Nessa relação, a mãe não satisfaz apenas as necessidades do bebê, mas incide sobre

ele seu desejo, de modo que tudo o que a mãe significa para a criança é feito de acordo

com sua própria história de desejo. Pela criança, o desejo materno é traduzido através dos

olhares, do jeito de pegar, da entonação da voz, por todos aqueles traços em que ela poderá

reconhecer um lugar e uma imagem referentes a si, o que se constituirá na matriz do eu-

primordial.

Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud trata a experiência de satisfação

primordial do sujeito como uma vivência de gozo pleno, associando-a à primeira

mamada. Ao que parece, Freud mais procura exemplificar do que conceituar essa

experiência em que, em um momento no qual a criança nada demandou, o Outro lhe

investiu, libidinizou, usou seu corpo, lhe dando um “a mais” que ficou marcado como

traço mnêmico.

“... se produz a relação com a imagem do outro, que dá ao sujeito a matriz em torno
da qual se organiza para ele o que eu chamaria de sua incompletude vivida: a saber o
fato de que ele está em falta. É com relação a esta imagem, que se apresenta como total,
não apenas preenchedora, mas fonte de júbilo em razão da relação específica do homem
com sua própria imagem, que este realiza que algo pode lhe faltar. É na medida em que
imaginário entra em jogo que, sobre os fundamentos das duas primeiras relações
simbólicas entre o objeto e a mãe da criança, pode aparecer que, tanto à mãe quanto à
ela, algo pode faltar imaginariamente”. (LACAN, 1956, p. 179)
74

Diferente de um animal, que ao amamentar visa aplacar somente a fome de seu filhote,

ao dar o peito, a mãe subverte aquele pedaço de carne – seu bebê. Ao amamenta- lo, a mãe

estimula um prazer na boca, ao limpar seu cocô estimula um prazer anal. Sempre diante

de algo que ela acredita que a criança demanda, ela dá lago a mais – a criança pode nada

demandar, e receber “tudo além do que precisava”.

O ser pulsional emerge por conta dessa torção no campo da necessidade instintual, de

uma satisfação imediata via um objeto fixo – a pulsão se inscreve no campo do “a mais”,

marcado pelas satisfações parciais (a variabilidade de objeto e de finalidade). Como ser

pulsional, o bebê não busca mais apenas o alimento ou um objeto de sucção, e sim ser

aquele objeto que produz alterações no gozo materno – o falo materno (dá a barriga, dá o

pé, para mãe morder, a qual se enche de risadas e caretas).

Lacan caracteriza o “Estádio do Espelho” como a experiência de identificação

primordial, pela qual a criança se apropria da própria imagem corporal, apreensão de um

eu-primordial, a partir do que o Outro enuncia. O sujeito se vê refletido em uma imagem

unificada no olhar do Outro, que lhe endereça um lugar; no entanto, a imagem no espelho,

ao mesmo tempo em que se refere ao sujeito, ela não o é: o outro é apreendido tanto como

cópia, quanto como alguém que com ele rivaliza. Segundo Quinet (2009b), isso atribui

um caráter paranoico à constituição do eu para o sujeito: o eu é sempre paranoico pois

está sempre acompanhado pelo outro (a-a´), tal como podemos observar no esquema L:
75

Esquema L, de linguagem, que é também um esquema de constituição do eu – e Lacan

não nos deixa sem a razão disso. A experiência especular conduz o sujeito a viver uma

relação de dependência de outra ordem, não para nutrir ou confortar, mas para dizer quem

ele é – na ausência do Outro, seu corpo se esfacela. Nesse sentido, o sujeito já nasce

alienado, imerso na imagem do Outro: imago primária essa indestrutível.

“Pois bem, digo que a criança se esboça como assujeito. Trata-se de um assujeito
porque, a princípio, ela se experimenta e se sente como profundamente assujeitada ao
capricho daquele de quem depende, mesmo que esse capricho seja um capricho
articulado”. (LACAN, 1957, p. 195).

Lacan nos diz, em outras palavras, que há a questão do Outro, mas que não está

desvinculada da matéria do significante. Para isso, ele nos aponta no capítulo XX do

seminário de 1955-1956, um desdobramento do esquema L, a respeito da distinção outro,

com letra minúscula, e Outro absoluto:

“O primeiro, o outro com um a minúsculo, é o outro imaginário, a alteridade em


espelho, que nos faz depender da forma de nosso semelhante. O segundo, o Outro
absoluto, é aquele ao qual nós nos dirigimos para além desse semelhante, aquele que
fomos forçados a admitir para além da relação da miragem, aquele que aceita ou que se
recusa na nossa presença, aquele que na ocasião nos engana, do qual não podemos
jamais saber se ele não nos engana, aquele ao qual sempre nos endereçamos. Sua
existência é tal qual o fato de se endereçar a ele, de ter com ele como que uma
linguagem, é mais importante que tudo o que pode s er uma aposta entre ele e nós.” (pg.
286, 287).
76

O Outro enquanto lugar de constituição de um falasser, onde se edifica o eu que “fala

com aquele que ouve”, distingue-se radicalmente de uma perspectiva existencialista do

outro, enquanto essência.

“Estamos na análise intoxicados desde algum tempo por temas incontestavelmente


vindos do discurso dito existencialista, no qual o outro é o tu, aquele que pode
responder, mas num modo que é aquele de uma simetria, de uma correspondência
completa, o alter-ego, o irmão. Faz-se uma idéia fundamentalmente recíproca da
intersubjetividade. Acrescentem a isso as confusões sentimentais que se inscrevem sob
a rubrica do personalismo, e o livro de Martin Buber sobre o Eu e o Tu – a confusão
será definitiva, e irremediável, a menos que se volta à experiência.” (LACAN, 1956,
pg. 308)

O esquema L nos aponta que a incidência do significante transforma esses dois

semelhantes, o eu e o tu.

“A palavra falada os transforma, dando-lhes uma certa justa relação, mas – e é sobre
isso que quero insistir – uma distância que não é recíproca. Com efeito, o eu não está
nunca ali onde ele aparece sob a forma de um significado particular. O eu está sempre
ali na qualidade de presença sustentando o conjunto do discurso, no estilo direto ou no
estilo indireto. O eu é o eu daquele que pronuncia o discurso. Tudo o que se diz tem sob
si um eu que o pronuncia. É no interior dessa enunciação que o tu aparece.” (LACA N,
1956, pg. 310).

Não me deterei aqui à questão do Je e do moi, a essa distinção entre sujeito da

enunciação e sujeito do enunciado. Uma tentativa de didatismo reduziu o Je ao objeto da

ciência freudiana, o sujeito do inconsciente, como isso que conduz o que se fala. No

entanto, o ensino de Lacan demonstra um desenvolvimento mais complexo do que uma

simples divisão entre consciente e inconsciente. O que parece caro, nesse momento, no
77

que toca a clínica das psicoses, e isso está claro em Althusser, sobretudo naquilo que

nomeia por desejo especulativo, é que sem o velamento fálico, o qual se processa na

encruzilhada da substituição significante, o polo paranóico da constituição do eu

encontra-se exposto.

Dialética fálica e o significante do Nome-do-Pai

Ao retomar a dinâmica edípica, Lacan toma por indagação fundamental: O que é um

pai?

“Essa pergunta é uma maneira de abordar o problema de significante do pai, mas


não nos esqueçamos de que também está em jogo que os sujeitos, ao fim de contas, se
tornam pais. Formular a questão o que é um pai? É algo diverso de ser-se um pai, aceder
à posição paterna. Vamos examinar isso de perto. Se é fato que, para cada homem, o
acesso à posição paterna é uma busca, não é impensável dizer que, finalmente, ninguém
jamais o foi por completo”. (LACAN, 1956, p. 209).

Nesse sentido, o pai é um operador clínico, designado pelos registros - real, simbólico

e imaginário – que segundo Porge (1997) definem a adoção por Lacan da preposição

articular do, no lugar de: Nome-do-Pai se situa no intercruzamento da realidade

simbólica, imaginária e real da procriação.

No entanto, Nome-do-Pai não é um nome próprio, como possa sugerir o termo, embora

se refira a essa personagem o pai. Temos então uma questão de nomeação: é um nome, e

como já trabalhamos, um nome aponta para uma inscrição geracional, para uma

hierarquia social, seja ela coletiva ou individual.


78

No seminário IV, “A relação de objeto” (1957), Lacan introduz, de maneira

concomitante, a incidência paterna a partir de duas vias: uma a que demarca sua

evanescência e opacidade, e outra que a articula com a tríade simbólico, imaginário e real.

Porge (1997), nos diz que Lacan nos impõe três questões: a) se o Nome-do-Pai se resume

à articulação de pai real, imaginário e simbólico; b) se o Nome-do-pai é equivalente a pai

simbólico; c) se é necessário manter o termo Nome-do-Pai distinto dos registros real,

simbólico e imaginário.

De fato, nesse momento de seu ensino, Lacan apresenta o Nome-do-Pai a partir da

ternária simbólico, imaginário e real.

“O que importa é a função na qual intervém, primeiro, o Nome-do-Pai, o único


significante do pai, segundo a fala articulada do pai, e terceiro a lei, considerando que
o pai está numa relação mais ou menos íntima com ela. O essencial é que a mãe funde
o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou seja,
pura e simplesmente a lei como tal. Trata-se do pai, portanto, como Nome-do-Pai,
estreitamente ligado à enunciação da lei, como todo o desenvolvimento da doutrina
freudiana no-lo anuncia e promove. E é nisso que ele é ou não é aceito pela criança
como aquele que priva ou não priva a mãe do objeto de seu desejo”. (Lacan, 1957, p.
197).

Desse modo, o Nome-do-Pai encontra-se articulado às operações de falta -

castração, frustração e privação - as quais congregam os quatro elementos da estrutura

edípica: criança, mãe, pai e falo.

Agente Falta Objeto

Pai Real Castração Simbólica Falo Imaginário


79

Mãe Simbólica Frustração Imaginária Seio Real

Pai Imaginário Privação Real Falo Simbólico

Pode-se observar na tabela que o pai simbólico se encontra excluído, exatamente por

seu caráter de irrepresentabilidade, já que está associado à construção mítica do pai morto,

mas que é conservado no processo de substituição significante, ao se articular com a lei e

o significante da falta, o falo.

A simbolização da lei desse significante (o Nome-do-Pai) se dá por uma substituição

de uma experiência imediata vivenciada pela criança, o que exige um processo de

substituição significante. Em um primeiro momento, a criança, na posição de objeto fálico

se encontra na ordem do ser; o pai aparece então, primeiro como o falo rival, e depois

como aquele que possui o falo. Pela relação significante a criança nomeia o desejo mãe

referindo-se ao pai simbólico. Esse que detém o interesse da mãe porta uma lei: não

apenas deseja a mãe, mas esta também está submetida ao seu desejo.

Aceder a posição de sujeito implica a aquisição da capacidade de operar o código da

língua, inaugurada pela designação simbólica efetuada pela criança do objeto perdido – é

preciso renunciar, matar a mãe, para então desejá-la na palavra: “Mãe!”. Recalca-se (S1 ),

significante do desejo da mãe, assegurando-se uma passagem do registro do real para um

registro simbólico, marcado pela linguagem. Nesse processo metafórico se introduz um

novo significante (S2 ), o que faz com que o significante anterior seja atravessado pela

barra da significação, da separação, e nessa substituição algo decai, fica de fora da

simbolização: o objeto a, causa do desejo.


80

Lacan procura desse modo responder à pergunta apresentada no seminário das

psicoses: o que é um pai? No caso Schreber, ele explora a dimensão da experiênc ia

subjetiva do pai, do lado do adulto, para então nos seminários seguintes dirigir-se para

quem um pai pode funcionar, a criança. Ambos os pontos de vista são intrínsecos e esta

relação encontra-se formalizada na metáfora paterna.

Na metáfora paterna, o pai é apresentado como portador da lei, mas sobretudo, como

uma metáfora. (X), que é o significado do sujeito, é desconhecido e ao final da

substituição significante é produzido pelo significante fálico, (s). S [1/s] aponta para a

relação arbitrária entre significante e significado, em que o significante representa o

sujeito para um outro significante, e a significação atinge o sujeito, vinda do Outro, como

uma mensagem invertida.

A introdução do Nome-do-Pai pela metáfora paterna visa destacar a função normativa

do pai, a partir de uma resolução neurótica, compreensão para qual Porge (1997) evoca

Canguilhem:

“Nós recorreremos ao propósito da tese de G. Canguilhem, segundo a qual o normal


não se confunde com uma média qualquer, mas é remonta às dimensões individuais. O
normal é a capacidade para o organismo de instituir outras normas em outras condições,
de mudar as normas. O normal é de fato uma capacid ade normativa. A saúde é a
81

capacidade de tolerar as infrações à norma habitual, de instituir novas normas em


situações novas”. (p. 37)

O Nome-do-Pai remete a uma normatividade capaz de quebrar o que já está instituído,

para então instituir uma nova versão – père-version – em relação à norma do desejo

materno. O Édipo é uma resolução possível, uma dentre outras, que em seu núcleo opera

a inscrição do Nome-do-Pai, enquanto um significante estruturante. No caso da psicose,

veremos que a incidência do significante sobre o sujeito irá operar a partir de outras

coordenadas.

A foraclusão do Nome-do-Pai pela não-operação da substituição significante faz com

que o sujeito se designe, não metaforicamente, mas metonimicamente em relação ao

significante primeiro, S1, já que não se operou o recalque. Sob a ausência do Nome-do-

Pai, a relação do sujeito com o significante se revela por um discurso desarticulado, em

que o sujeito é operado pela fala e não o contrário.

“A foraclusão do Nome-do-Pai no Outro, colocando todo o conjunto de


significantes do sujeito em causa, tem como efeito os distúrbios de linguagem que
caracterizam a psicose, em que significante e significado aparecem radicalment e
separados. O Outro na psicose não é o lugar da lei simbólica mas se desve la em
sua estrutura de linguagem como o lugar do significante.” (Quinet, 2009b, p.31)

A questão essencial da psicose é justamente sua relação com o significante, pois a

permanência de S1 como significante matriz da identificação, preserva o Outro como

gozador implacável, já que o psicótico se coloca como o objeto que tampona a falta do

Outro. O psicótico se encontra sob um gozo infinito pois o Outro também goza sem

nenhuma barreira, e isso se revela em sua cadeia significante ao falar.


82

CAPÍTULO 5. Da foraclusão do Nome-do-Pai

Para tratar do mecanismo específico de negação frente a inclusão do significante do

Nome-do-Pai no Outro, Lacan articulará o termo foraclusão tanto ao termo Verwerfung,

apresentado por Freud no texto de 1925, A negativa, quanto ao equivalente no direito, a

preclusão (aqui para caracterizar a dimensão da temporalidade na psicose).

Em A negativa (1925), Freud tratará das operações de Behajung/Ausstossung como

experiência mítica da constituição do aparelho psíquico: o que se introduz no sujeito pela

afirmação, Behajung, constitui o dentro, e o que se elimina pela expulsão, Ausstossung,

constitui o fora – afirmação e expulsão primordiais. Posterior a tal operação primordia l,

pode-se operar uma negação – a Verneinung.

Uma leitura cuidadosa desse texto, que não é das mais agradáveis, nos permite concluir

que Behajung/Ausstossung estariam em um nível estruturante, enquanto que a

Verneinung, ao nível do discurso, pertenceria ao que Freud denomina por mecanismos de

defesa. É somente a partir desse movimento, de afirmação-expulsão, que se pode produzir

uma negação, ou seja, para que algo possa ser negado, é preciso que antes tenha sido

afirmado, internalizado pelo aparelho psíquico.

Segundo Schejtman (2012), Freud situará a Verdrängung, o recalque, como

intermediário entre a afirmação/expulsão e a Verneinung: aquilo que está no inconscie nte

pelo recalque é material desconhecido do sujeito, a ponto de poder ser verbalizado por

um ato falho ou um lapso que envolvam uma negação – o retorno do recalcado.

Desse modo, para que um conteúdo seja recalcado, Verdrängung, é preciso que o

objeto tenha sido inscrito em termos simbólicos no aparelho. A Behajung seria uma

operação primordial estruturante de inscrição de significantes, e a Ausstossung de


83

expulsão: concomitantes, de sentidos opostos, mas que dizem respeito ao registro

simbólico.

Operação

Behajung

Behajung: admissão simbólica Ausstossung: expulsão simbólica

Verdrängung (recalque)

Verneinung (negação)

O quadro acima nos permite ainda outro desenvolvimento. Embora Behajung e

Aussotssung sejam operações primeiras, os termos expulsão e eliminação sugerem que o

objeto da ação, por algum momento, circulou por dentro do aparelho: só podemos

expulsar algo que estava dentro, ou eliminar o que já fora internalizado. Nesse sentido, a

distinção entre a Ausstossung e a Verneinung ainda não é, digamos, muito clara em Freud.

Lacan efetuará um outro tipo de distinção. No seminário de 1956-1957, ele afirma que

as psicoses demonstram que há uma etapa desse processo de simbolização que não foi

finalizada - e ele é preciso -, o que não implica uma “falta de Behajung”, mas que apenas

uma parte da inscrição simbólica não se efetuou. Afirmar, desculpe o trocadilho, que não

houve Behajung, que todo o processo de simbolização fracassou, seria supor que não há

sujeito – tal direcionamento clínico excluiria um tratamento possível das psicoses do

campo psicanalítico.

Desse modo, não se poderia dizer que não há simbolização na psicose, ou que não há

simbólico, ou que a ordem significante não incide sobre o sujeito. Se a simbolização

caduca, é porque “algo ficou de fora”, e no caso da psicose, é um significante particular.


84

“Então, é um significante determinado que não é admitido no simbólico, no caso da


psicose. É o Nome-do-Pai, um significante primordial a esta altura no ensino de Lacan,
aquele que não toma a rota da Behajung e não é inscrito no simbólico. Quer dizer,
podemos afirmar que na psicose não há Behajung... do Nome-do-Pai. Mas a Behajung
como tal, como operação de simbolização, ou afirmação primordial, a supomos em todo
ser falante11 ”. (SCHEJTMAN, 2012, p. 23)

Enquanto um ser falante, o psicótico habita a linguagem, e por conta da foraclusão

desse significante específico, o Nome-do-Pai, é o melhor paradigma da condição humana :

o assujeitamento do sujeito ao significante, sobretudo até o ponto de, enquanto falante,

ser atormentado pela linguagem. Para explicitar tal constatação clínica, Lacan conduzirá

a leitura de A negativa por uma outra via: fará uma articulação entre Behajung e

Verwerfung, considerando esta última, em lugar da Ausstossung, como oposta à afirmação

primordial.

Verwerfung

Segundo Rabinovitch (2001), a tradução efetuada por Lacan, de Verwerfung como

foraclusão, é inédita – até o momento era traduzido por “rejeição” – e denomina um

processo operatório entre o Real (uma impossibilidade) e o Simbólico (da ordem

significante).

Pela Verwerfung, o destino do que é expulso é diferente daquilo que é inscrito, mas

essa expulsão não se efetua no simbólico, e, portanto, não retorna no simbólico: trata-se

de uma expulsão do simbólico que retorna no real. O aparelho simbólico do sujeito está

11 Do original em espanhol: “Entonces, es un significante determinado el que no es admitido en lo simbólico en la


psicosis. Es el nombre-del-padre, un significante primordial a esta altura de la enseñanza de Lacan, el que no toma la
ruta de la Behajung y no es inscripto en lo simbólico. Es decir, podemos afirmar que en la psicosis no hay Behajung…
del nombre-del-padre. Pero la Behajung como tal, como operación de simbolización, o afirmación primordial, la
suponemos en todo ser hablante”. (p. 23)
85

constituído, mas o significante expulso pela Verwerfung retorna no real, o que, à primeira

vista, resolve o impasse dos termos expulsão/rejeição.

Behajung e Verwerfung fazem parte da mesma operação constitutiva do sujeito, e uma

leitura lacaniana mais radical nos permite supor que, o que Freud nos indica é que há dois

momentos da Verwerfung, sendo que, ao nível da linguagem, ela não é exclusiva da

psicose. Nesse sentido, Lacan é categórico no capítulo IV do seminário 3: na origem há

Behajung ou Verwerfung, ou seja, um significante não pode ser, ao mesmo tempo,

inscrito ou expulso.

O significante do Nome-do-Pai ou se inscreve no simbólico, ou dele é expulso, mas

não ambas as coisas. Caso seja inscrito no simbólico, teremos a resolução neurótica ou a

perversa; caso seja expulso, teremos a trilha psicótica. Não se pode ser neurótico e

psicótico, e tampouco a inscrição do Nome-do-Pai no Outro pode ser mais ou menos,

parcial.

Pode-se dizer que Lacan trata da constituição do aparelho psíquico a partir de duas

vertentes entrelaçadas. De um lado, a que se refere à inscrição dos significantes que

tornam o sujeito um ser falante. De outro, concomitante, os significantes que não se

inscrevem, ou que são expulsos ou foracluídos. Posteriormente, com a formalização do

objeto a, o conceito de Verwerfung dará mais um giro, quando Lacan tratará da

Ausstossung do objeto a. Qual seria então a diferença entre a Verwerfung e a Ausstossung?

Segundo Lacan (1963), não há estrutura subjetiva em que o Outro seja consistente,

completo, ou que uma Behajung possa inscrever todos os significantes possíveis no

simbólico – algo sempre fica de fora. É preciso que algo seja expulso, e não é exatamente

um significante.
86

Fundamentalmente, a Verwerfung é uma operação sobre significantes: os significa ntes

expulsos do simbólico, particularmente o Nome-do-Pai, que retornam no real. No entanto,

o real não se constitui somente por significantes: o que é da ordem do irrepresentável, do

inapreensível, é essa perda radical de objeto enquanto efeito de um corte. Habitar a

linguagem implica na perda de um objeto, a partir de uma exterioridade íntima do

simbólico. (Schejtman, 2012)

No caso da neurose, há a inscrição do Nome-do-Pai no Outro através da metáfora

paterna, a qual recobre a perda de objeto por uma significação fálica; a perda de objeto

toma caráter simbólico e fornece ao desejo um enquadre normativo fálico. Quanto à

psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai impede sua articulação com o significante fálico,

trazendo consequências para a sustentação do desejo: no inconsciente a céu aberto, a

condição humana encontra-se escancarada – nem tudo é passível de simbolização.

Isso também não permite dizer que não há desejo na psicose. Não entraremos no mérito

dessa questão, que ainda mobiliza consideravelmente muitos psicanalistas que atuam em

saúde mental. O que vale dizer é que tomaremos como via que há desejo na psicose, mas

a partir de outro estatuto, que não o do recalque ou da metáfora paterna.

Temos então a diferença entre a Ausstossung e a Verwerfung. Segundo Schejtman

(2012), se a Verwerfung se refere aos significantes, a Ausstossung remete à uma operação

de extração do objeto, em outra dimensão, a do real, o objeto a; a Ausstossung diz respeito

ao registro do real, não apenas da ordem do significante, mas também do lado do objeto.

OPERAÇÃO

Behajung Ausstossung

(perda originária – objeto a)


87

(afirmação primordial) neurose, psicose, perversão

neurose, psicose, perversão Verwerfung

(expulsão primordial – significantes)

neurose, psicose, perversão

Behajung do Nome-do-Pai Verwerfung do Nome-do-Pai

Verdrängung Verleugnung (Foraclusão)

Psicose
(Recalque) (Denegação)

Neurose Perversão

Formações do inconsciente

Verneinung Alucinação

(negação) (Retorno do foracluído)

Retorno do Retorno do

recalcado desmentido

SIMBÓLICO REAL

Lacan trabalha com muita dedicação aquilo que ele denominou por face real do

significante, no seminário das psicoses, a partir dos fenômenos elementares: os

neologismos, as interpretações delirantes, as alucinações. Isso porque clinicamente, e tal

como observamos no que nos diz Althusser, um analista não opera sobre a foraclusão :

nos resta, como formação do inconsciente a céu aberto, os efeitos da expulsão do Nome-

do-Pai. Nesse sentido, Lacan é categórico: um significante no simbólico não é o mesmo

que um significante no real.


88

A dimensão temporal no conceito de foraclusão

Segundo Rabinovitch (2001), se em Freud o termo Verwerfung, pela origem

etimológica no alemão arcaico, designava o ato de expulsar algo ou alguém para além

dos limites de uma comunidade, de um reino, ou mesmo de um país, em Lacan, o termo

foraclusão não guarda apenas essa referência, mas remete ao campo jurídico, no qual

denomina, concomitantemente, aquilo que ultrapassa os mesmos limites da lei que a

demarcavam.

No Código de Processo Penal Francês, foraclusão indica o que, em determinado

momento, se tornará obsoleto de acordo com o dispositivo legal que o concerne.

Comumente, os leitores de Lacan, dos mais desavisados aos mais experientes, traduzira m

tal processo equiparando-o ao que seria seu equivalente no Código Penal Brasileiro, a

prescrição. Precisamente, isto é um engano.

“Se a regra jurídica da prescrição dá, a posteriori, um limite para a condenação de


um crime já cometido, limite além do qual o crime não será mais condenado, a
foraclusão impõe, antecipadamente, um limite de tempo para aquilo que se trata de dizer
ou contradizer. A prescrição submete-se à uniformidade de uma continuidade temporal
cronológica, mas o “antecipadamente” ditado pela foraclusão indica uma posterioridade
lógica daquilo que sobreveio em primeiro lugar”. (RABINOVITCH, 2001, P. 18)

A foraclusão no Direito Penal Francês equivaleria, em termos jurídicos brasileiros, ao

termo preclusão, mas que não se refere ao campo penal, e sim aquele do Direito Civil.

A prescrição, no campo penal, refere-se à extinção da eficácia da pretensão de uma

ação, em virtude do decurso de um certo período de tempo, e que pode ser suspensa ou

interrompida de acordo com condições previstas pela lei. Além disso, o Código Penal
89

prevê exceções ao efeito da prescrição, a partir de uma ordem especial – depois de

consumada, também pode ser renunciada pelo autor da ação prescrita.

A preclusão consiste na perda de direitos processuais civis. O art.183, do Código de

Processo Civil (2014) a define:

“Art. 183. Decorrido o prazo, extingue-se, independentemente de declaração judicial,


o direito de praticar o ato, ficando salvo, porém, à parte provar que o não realizou por
justa causa”.

Nesses termos, podemos entender a preclusão como a extinção do direito processual

em razão do decurso do prazo. Segundo Rabinovitch (2001), a preclusão pode ser

comparada, no campo gramatical, ao tempo verbal futuro do pretérito, onde o passado

toma o lugar de futuro pela antecipação de um limite foracluído, “para além do qual será

impossível retornar”.

O futuro do pretérito é tanto o tempo condicional, como a modalidade utilizada para

descrever eventos que poderiam ter acontecido no passado, mas que não ocorreram. Ao

nível do discurso, a foraclusão é uma ação de nomeação que suprime o limite temporal,

ao destruir, ao mesmo tempo, o futuro e o passado. No plano estrutural, o “futuro do

pretérito” não admite condição, o que está expresso na tentativa de responsabilização de

Althusser, reafirmando a determinação inconsciente de seu crime. “Se ele tivesse sido

logo internado, não teria matado Hélène” – aqui não se admite nem a condição,

tampouco a negativa: ele teria matado Hélène.


90

CAPÍTULO 6. A concepção de doente mental no Código Penal Brasileiro

O Código Penal Brasileiro não parte de uma legislação penal, mas retira seu atributo

de validade de premissas presentes na Constituição Federal de 1988. Esta é um sistema

nacional de proteção e garantia dos direitos humanos fundamentais, positivados pelo

código jurídico nacional, assegurados, ao menos em tese, por tratados internacionais.

Os princípios reguladores do controle exercido pelo Estado via Código Penal se

sustentam, mais precisamente, no art. 5º da C.F. de 1988, e encontram-se atrelados aos

ideais de liberdade e igualdade, componentes do projeto iluminista disseminado pelas

revoluções burguesas do século XVIII.

O esboço do Código Penal Brasileiro se inicia com o descobrimento, em 1500,

orientado pelo Direito Lusitano, quando vigoravam em Lisboa as ordenações (afonsinas,

manuelinas). No entanto, a colônia pouco se adequava à realidade jurídica portuguesa,

em virtude do poder conferido aos donatários, a partir das cartas de doação. Havia

segundo Bitencourt (2011), um regime despótico:

“... sustentado em um neofeudalismo luso-brasileiro, com pequenos senhores,


independentes entre si, e que, distantes do poder da Coroa, possuíam um ilimitado poder
de julgar e administrar os seus interesses. De certa forma, essa fase colonial brasileira
revivei os períodos mais obscuros, violentos e cruéis da História da Humanidade,
vividos em outros continentes “ (p. 77).

Em 1603, durante as ordenações filipinas, no reinado de Felipe II, a criminalização era

generalizada, com pena de morte e outras sanções cruéis baseadas na violência física. A

primeira Constituição Brasileira só teria lugar em 1824, pela outorga de D. Pedro I. Em


91

1830, o imperador sanciona o Código Imperial Criminal, o qual apresentava influênc ias

de Bentham, Beccaria, e do Código Penal Francês de 1810, dentre outras.

A concepção de doença mental presente no Código Penal atual prescreve um modelo

de intervenção penal, produto dos diálogos e tensões entre o campo da psiquiatria e o

campo jurídico, sustentado pelos conceitos de inimputabilidade e irresponsabilidade.

Desde o período imperial, o saber psiquiátrico esteve comprometido com um projeto

de construção da nação e de manutenção da ordem social, fundamentando-se nas

concepções de degenerescência moral de Morel e da antropologia criminal de Lombroso,

o que ampliou o lugar da psiquiatria como instância de controle social (PERES e NERY

FILHO, 2002).

O positivismo criminológico sucedeu o período clássico do Direito Penal, tendo início

em 1876, com a publicação de L´Uomo Delinquente, de Cesare Lombroso, o qual partia

do pressuposto do atavismo biológico - o criminoso teria uma força instintiva ao crime, o

que seria facilmente identificável a partir de distúrbios anatômicos; o crime seria uma

consequência da intersecção de múltiplas causas, sociológicas, biológicas, antropológicas

e psicológicas. Desse modo, a corrente positivista procurou sustentar o Direito pelos

métodos científicos de outras ciências da época, como a Biologia e a Sociologia,

sobretudo pela influência de Comte e Darwin.

“O criminoso nato de Lombroso seria reconhecido por uma série de estigmas


físicos: assimetria do rosto, dentição anormal, orelhas grandes, olhos defeituosos,
características sexuais invertidas, tatuagens, irregularidades nos dedos e nos mamilos,
etc. Lombroso chegou a acreditar que o criminoso nato era um tipo de subespécie do
homem, com características físicas e mentais, crendo, inclusive, que fosse possível
estabelecer as características pessoais das diferentes espécies de delinquentes: ladrões,
assassinos, tarados sexuais, etc.” (Bitencourt, 2011, p. 88).
92

As contribuições da Escola Penal Positiva fundamentaram conceitos presentes na

dogmática penal atual, como a periculosidade e os dispositivos de medida de segurança e

tratamento tutelar. Para Garofalo, por exemplo, a periculosidade deveria ser o fundame nto

da responsabilidade do criminoso, e a função da pena não deveria ser a correção, mas a

incapacitação do sujeito delinquente, pela pena de morte, ou a sua adaptação ao meio

social.

“Na linha da corrente positiva, defende também a pena indeterminada, com fim
condicionado à regeneração do condenado. Isso porque, se a pena tem por objetivo a
correção do culpado, tal correção não pode ter prazo previamente fixado, consoante a
espécie de delito praticado. A pena, nessa concepção, nada mais é do que o remédio
destinado a propiciar a adaptação do réu à sociedade, e o delito, por via de consequência,
é a falta dessa adaptação, em virtude de uma anormalidade moral do criminoso, que
pode ou não ser incurável” (DUEK MARQUES, 2008, p. 112).

Concomitantemente, tal como abordamos tratamos na parte sobre a passagem ao ato,

a classe das monomanias é estabelecida por Esquirol, dentro do campo da psiquiatr ia,

suscitando uma série de consequências médico-legais que esbarravam no conflito entre

juristas e psiquiatras, a respeito da definição da loucura em termos penais. No Código

Imperial, a categoria das monomanias remetia aos “loucos de todo gênero”:

“Art. 10: ... não se julgarão criminosos:

§2. Os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o
crime” (Código Imperial Criminal, apud. PERES e NERY FILHO, 2002, P. 337).

Embora concepções como as de Pinel e Esquirol ainda conferissem alguma lucidez à

loucura, esta ainda era marcada como lugar de desrazão. Diante desse grupo amplo mas
93

distinto, “loucos de todo o gênero”, o poder jurídico ainda não carecia de um saber

científico para assegurar seu controle, de modo que o juiz era a única figura capaz de

avaliar a loucura do criminoso. Também cabia ao juiz decidir o destino do “louco

criminoso”, orientado por interesses econômicos e pelo art.12 do Código Imperial: “Os

loucos que tiverem cometido crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou

entregues às suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente”.

Segundo Peres e Nery Filho (2002), os mais abastados eram destinados à tutela

familiar, enquanto que os “loucos pobres” eram lançados à situação de rua, “oferecendo

perigo” à sociedade; alguns desses indivíduos eram então destinados pela polícia às

instituições penitenciárias ou de saúde, como a Santa Casa de Misericórdia.

A possibilidade de atuação dos médicos psiquiatras encontrou caminho então em dois

momentos. Primeiro, com a criação da instituição asilar em 1852, no Rio de Janeiro,

quando os alienistas passaram a se opor ao controle estatal via Direito Penal, na tentativa

de ampliar o poder de intervenção médico-social, apresentando como justificativa o poder

excessivo do juiz, o qual não estaria totalmente qualificado a avaliar o estado mental do

louco criminoso.

Segundo, ao lado do campo jurídico, houve uma convocação dos psiquiatras para

atuação nos tribunais, no caso dos crimes imotivados. Diante dessa tensão, de um lado o

impasse no campo do direito, de outro, a pressão da psiquiatria, uma série de modificações

foram efetuadas no Código Penal. No caso do Brasil, essas mudanças ocorrem no

primeiro Código Penal Republicano, com a criação de um “estatuto" jurídico do doente

mental, bem como seu destino institucional (PERES e NERY FILHO, 2002).

O quadro abaixo resume o contexto histórico.


94

Psiquiatria Direito Penal

Demanda Reivindicava um lugar na Procurava resolver, pela

avaliação do doente mental racionalidade e livre-

no campo jurídico. arbítrio, o impasse dos

crimes imotivados.

Atos imotivados O ato imotivado era O ato imotivado está

associado à personalidade do associado à consciência e à

sujeito via doença. liberdade de escolha.

Internação A internação é de ordem A internação deve ser

científica, sustentada pelo decidida pelo juiz criminal,

conceito de periculosidade. juiz civil ou chefe de polícia.

Destino do criminoso O asilo de alienados definia O destino do louco deveria

uma especificidade da ser o asilo de alienados.

atuação do psiquiatra.

Vemos tal estatuto assegurado pelos artigos 1,7, 27 e 29 do Código de 1890.

“Art.1. Ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido qualificado criem,
nem com penas que não estejam previamente estabelecidas.

Art.17. Crime é violação imputável e culposa da lei penal.

Art.27. Não são criminosos:

§3. Os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absoluta mente
incapazes de imputação;

§4. Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência


no ato de cometer o crime.
95

Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão


entregues à sua família, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim
o exigir para a segurança do público”. (Código Penal da República dos Estados Unidos do
Brasil, apud. PERES e NERY FILHO, 2002, p. 338).

Segundo Foucault (1975), a questão que passa a se impor ao juiz não é mais em relação

ao crime como fato, mas a quem o comete: com a intervenção da medicina psiquiátr ica

nos tribunais, houve um deslocamento de objeto no campo jurídico-penal, do crime para

o criminoso. Como os loucos são considerados inimputáveis, perdem a qualificação do

ato criminoso e para tanto, são relegados simbolicamente para fora do âmbito penal, ao

campo psiquiátrico.

Observa-se que o Código de 1890 já apresentava um recorte em relação ao Código

Imperial, quanto ao conceito de “loucos de todo gênero”: tornaram-se irresponsáve is

todos que não tivessem a possiblidade de, via consciência, agir livremente quando na cena

criminosa – por sonambulismo, epilepsia, delírio febril, hipnose e/ou estado de total

embriaguez.

Atribuiu-se ao louco um caráter moral: os loucos são os mais perigosos, inimputáve is,

e a imputabilidade penal deveria ser proporcional ao grau de personalidade. Uma série de

projetos foram apresentados para alterar o Código Penal, desde a Primeira República, mas

a mudança significativa só ocorreu 1940, durante o Estado Novo:

“Art. 1. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal.

Art.22. É isento de pena o agente que, por doença mental, ou desenvolvimento


mental incompleto ou retardado, não possuía ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de
acordo com o entendimento”.
96

Atualmente no Brasil, o Código Penal vigente ainda é o de 1940, e embora tenha

sofrido algumas modificações desde então, como por exemplo, a Reforma Penal de 1984

, no tocante ao que define a possiblidade de responsabilização do sujeito, no entanto, os

pressupostos permanecem os mesmos.

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardo, era, no momento da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito
do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. (Art. 26, Código de Processo
Penal Brasileiro, 2000, pg.17)

Segundo Peres e Nery Filho (2002), temos então uma contradição no Código, em que,

se por um lado, aceita-se o pressuposto do livre-arbítrio, por outro pauta-se em acepções

positivistas que compreendem o crime na loucura como determinado por causas

biológicas que comprometem a escolha e o entendimento. A partir da década de 40, há,

portanto, um movimento de “conciliação” entre o campo jurídico e a psiquiatria, quando

a sustentação da inimputabilidade em critérios organicistas é justificada como tentativa

de evitar excessos por parte do juiz penal.


97

PARTE III

A Regra do Jogo
98

O vigésimo terceiro capítulo de “O futuro dura muito tempo” é o único a ser nomeado:

Impronúncia – como já tratamos, a queixa do filósofo é de que fora impronunciado pelo

juiz. Althusser apresenta uma defesa propriamente dita sobre seu ato, sem, no entanto,

procurar livrar-se da responsabilidade – é sua confissão de que matara Hélène (fato que

nunca negara). O texto é atribuído a um médico amigo do casal, como uma resposta à

pergunta de Althusser que não lhe cessa de não se escrever: “O que afinal aconteceu

naquele domingo 16 de novembro entre mim e Hélène, para se chegar a esse assassinato

monstruoso? ”. No entanto, a estilística e a repetição da marca da Verwerfung/ foraclusão

que se prolonga ao longo de toda a obra (que sei eu?), permite-nos atribuir as teses de

homicídio que se seguem ao próprio Althusser.

Primeira tese, a organicista. Os médicos peritos, no Sainte-Anne, teriam constatado

que Althusser estava em estado de demência: antes e durante o ato, a confusão mental e

o “onirismo” lançaram-no à inconsciência total. Portanto, durante a ação, Althusser não

poderia apreciar o caráter ilícito do ato, ou seja, de acordo com o Código Penal Francês,

era irresponsável.

Segunda tese, a inocência. Os investigadores não constataram vestígios de embate

físico em nenhum dos cômodos do apartamento e a autópsia não identificou nenhum sinal

exterior de estrangulamento no pescoço de Hélène. Causa da morte não-identificada,

insuficiência de provas: Althusser seria inocente.

Terceira tese, o suicídio por pessoa interposta. Hélène e Althusser estavam sozinhos

no apartamento, ninguém poderia intervir, mas ela não esboçou nenhuma defesa também.

Ele estava desfavorecido, porque o estado de confusão mental também lhe acometia
99

fisicamente, e, com fraqueza física, Hélène poderia contê-lo com um simples tapa. Vendo

a iminente possiblidade da morte, Hélène nada fez e deixou-se matar por Althusser. Ele

teria atendido seus suplícios e realizado seu desejo de acabar com a própria vida, não

apenas a dela, mas também a sua – “suicídio por pessoa interposta” ou “suicídio altruísta ”.

Todas as teses são parcialmente aceitas ou refutadas. Este indicativo que denuncia a

autoria de Althusser, que sei eu?, nos diz que nada de absolutamente seguro se saberá a

respeito da cena do crime. Que sabe Althusser de seu ato cometido? Nada, ou melhor,

quase nada.

Poderia ser exigida de Althusser uma outra conduta? Diante da solicitação de seu

analista de ser internado no Vésinet, no dia 15 de novembro, a equipe médica aceita

recebê-lo apenas no dia 17. E se Althusser fosse hospitalizado imediatamente? Hélène

procurara o analista no dia 14 de novembro, solicitando que, caso ele aceitasse a

internação, fosse-lhe concedido um prazo de 3 dias. E se o analista de Althusser não

aceitasse o pedido de Hélène? E se uma carta escrita pelo analista, pedindo que Hélène o

procurasse com urgência para tratar da internação imediata tivesse sido entregue no

apartamento da École no dia 16 de novembro e não no dia seguinte? E se Althusser e

Hélène tivessem respondido aos telefonemas dos amigos, ou à campainha que tocava? E

se tudo isso tivesse acontecido, o crime teria sido prevenido?

Ele se diz:

“O que também se pode dizer é que você, que sem dúvida lhe deu a morte, talvez
querendo apenas massageá-la cuidadosamente, já que não se observou nenhum sinal
exterior de estrangulamento, você gostaria de realizar o seu desejo de morte e,
prestando-lhe o imenso favor de matá-la em seu lugar (pois ela era de fato incapaz de
se matar), teria, ao mesmo tempo, desejado realizar inconscientemente o seu próprio
desejo de auto-destruição, por meio da morte da pessoa que era a que mais acreditava
100

em você, para ficar absolutamente certo de ser apenas essa personagem de artifícios e
de imposturas que sempre o obcecou. A melhor prova que alguém pode se dar de não
existir é, de fato, destruir a si mesmo, destruindo aquela que o ama e, acima de tudo,
acredita na sua existência” (ALTHUSSER, 1986, p. 248).

Althusser questiona, a partir de seu ato criminoso, de sua condição trágica de

inimputável, o estatuto do crime e de seu autor presente no Direito Penal, ao refutar

qualquer interpretação a posteriori, que procure identificar uma causa criminosa, para

definir o que poderia preveni-lo. Haveria nesse sentido um a posteriori factual, a verdade

dos fatos, e um a posteriori da vida psíquica, que Althusser, sabendo muito bem da

experiência de uma psicanálise, evoca: o crime remete à Outra cena.

“O desejo de matar, por exemplo, ou de se destruir e de tudo destruir a seu redor,


vem sempre junto com um imenso desejo de amar e de ser amado apesar de tudo, co m
um imenso desejo de fusão com o outro e, portanto, de salvação do outro. Parece -me,
lendo-o, que isso é exatamente nítido no seu caso. Como então pretender apenas poder
falar da determinação “causal” de um fantasma sem invocar ao mesmo tempo a outra
determinação “causal”, essa da ambivalência, essa que se dá no próprio fantasma como
o desejo radicalmente oposto ao desejo assassino do fantasma, o desejo de vida, de amo r
e de salvação? A verdade é que não se trata então de determinação causal, mas de
surgimento de um sentido ambivalente na unidade dilacerada do desejo” (Althusser,
1986, p. 250).

O “sentido ambivalente” diz respeito a uma causalidade psíquica do ato, e no caso da

passagem ao ato, às determinações inconscientes do homicídio cometido por Althusser.

A dimensão do crime aqui é Outra: segundo Otoni (2011), pode-se dizer que a relação

entre crime e responsabilidade se faz ao considerarmos que o sujeito só poderá ser

convocado a responder por aquilo que de seu modo escapa à regulação da lei, ou seja, que
101

cada sujeito responde em determinada sociedade pela expressão “desse resíduo irredutíve l

do seu ser no seu humano” (p.4).


102

CAPÍTULO 7. A lei determina o jogador

De acordo com a lei de introdução ao Código Penal Brasileiro (2012), lei n.3914/41,

define-se por crime:

“... a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer
isoladamente, quer alternativa ou acumulativamente com a pena de multa;
contravenção, a infração que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de
multa, ou ambas, alternativa ou acumulativamente”.

Segundo Bitencourt (2011), a lei de introdução se limita a caracterizar o crime

distinguindo-o das infrações penais denominadas por contravenção penal, quanto à

natureza da pena aplicável; no entanto, a pena não é elemento constitutivo do crime,

mesmo que seja uma sanção específica do Direito Penal – essa lei exclui, portanto, os

elementos componentes do conceito analítico de crime: ação típica, antijurídica e

culpável.

Para o Direito Penal, o crime é uma criação normativa, e para ser considerado como

tal, precisa atender a determinadas categorias. Primeiro, enquanto um ente jurídico, deve

ter o caráter que o caracteriza como uma ação ou conduta. Segundo, essa conduta deve

ser um tipo legal, ou seja, deve estar descrita por um dispositivo legal. Terceiro, o tipo

legal não deve se contrapor a nenhuma outra norma do Código Penal que tenha em relação

a ele um caráter permissivo – antijuricidade. Quarto, a ação típica ilícita deve ser culpável:

o sujeito precisa ter conhecimento da ilicitude da ação, deve ser imputável e sua conduta

deve ser reprovável.


103

Todo tipo penal deve estar previsto pelo Código, de acordo com o bem jurídico que

ele protege e assegura (por exemplo, a vida). Ele será classificado enquanto doloso,

culposo ou preterdoloso. Quando há a intenção de atingir uma vítima, ou seja, o resultado

é previsível, mas o agente não se importa com os resultados, temos um tipo penal doloso.

Se não há intenção de atingir o outro, mas o sujeito não consegue evitar o efeito da ação,

trata-se de um tipo culposo. O tipo penal preterdoloso se refere ao agente que possui a

intenção de prejudicar um terceiro, mas não possui a consciência do efeito que a conduta

pode produzir.

Ação ou Conduta Penal

Segundo Bitencourt (2011), a ação é o elemento básico do crime, e possui a função de

unir todos os elementos componentes do crime: a tipicidade, a antijuricidade e a

culpabilidade. Seu estatuto no Código Penal encontra-se implícito, mas não prescinde de

seu caráter naturalista: é um comportamento voluntário, consciente e dirigido a um fim.

Uma ação é composta por uma vontade (um comportamento externo que possui conteúdo

psicológico), uma representação mental do estímulo, pela escolha dos meios a se atingir

o objetivo, e pelo movimento corporal implicado na conduta.

“Parte-se, portanto, da consideração de que a conduta é uma condição decisiva,


mas não nos interessam as condutas em geral, nem discutir se houve ou não uma
conduta, mas nos importa tão somente se a conduta in concreto, que examinamos foi
realizada com as características exigidas na lei penal. Em outros termos, é estéril a
discussão sobre um conceito geral de ação válido para todas possíveis formas de ação
humana, porque, em realidade, interessa-nos somente se o agente agiu na forma descrita
na lei penal” (Bitencourt, 2011, p. 270).
104

Toda ação ou conduta, de acordo com o Código Penal, só pode ser típica, ou seja, só

será relevante para o Direito Penal se estiver descrita normativamente. Nesse sentido,

duas concepções emergem pelo conceito de ação típica.

Primeiro, a que confere ao sujeito jurídico um caráter paradoxal: orgânico e

racionalista. Segundo, a que determina a lei anterior ao crime: o ato não preexiste à norma,

porque só é relevante se preconizado pelo Código.

“Assim, não existe a ação do “xeque-mate” se antes não houver as regras do jogo
de xadrez; não existe ação de impedimento (na linguagem futebolística), sem que antes
exista uma norma regulamentar que defina o que é impedimento” (Bitencourt, 2011, p.
270).

É a lei que determina o valor cultural do ato, quando o qualifica a partir de critérios, o

que permite, por exemplo, considerar matar como um homicídio, ou seja, se estabelecer

uma relação com determinado tipo penal.

“Somente se houver a reunião dos elementos exigidos pela norma penal


tipificadora teremos o significado jurídico do que denominamos crime de homicídio ,
roubo, estelionato, etc. Assim, pois, a concepção significativa da ação, que constitui um
dos pressupostos fundamentais desta orientação, sustenta que os fatos humanos somente
podem ser compreendidos por meio das normas, ou seja, o seu significado exist e
somente em virtude das normas, e não é prévio a elas” (Bitencourt, 2011, p. 271).

A concepção racionalista de ato é sustentada pelos móbeis da consciência e da vontade,

no entanto, apresenta um assoalho biológico, ao caracterizá-lo como um movime nto

corporal organizado pela coordenação voluntária do sistema nervoso. O que se confir ma


105

pelo que, de acordo com o Código Penal, descaracteriza uma ação: uma coação física

irresistível, os movimentos corporais reflexos e os estados inconscientes.

O ato corporal reflexo pode desqualificar o autor: é o movimento corporal determinado

por estímulos dirigidos diretamente ao sistema nervoso central, sem a interferência da

vontade – é um ato autônomo, independente da faculdade da consciência. Os estados

inconscientes, como embriaguez e sonambulismo, ou a particularidade de crises

epilépticas, em que o funcionamento das faculdades mentais encontra-se prejudicado, são

segundo Correia Junior (2013) um impasse para o Direito Penal: como estabelecer com

segurança, nesses casos, onde períodos de amnésia são frequentes, o quantum de

comprometimento?

Nesse sentido, a faculdade da consciência e da vontade como pressupostos do sujeito

da razão permanecem vinculadas à causa orgânica, enquanto determinante da relação do

indivíduo com o meio externo e de sua possibilidade de responsividade.

Tipicidade e antijuricidade

“A lei, ao definir crimes, limita-se, frequentemente, a dar uma descrição objetiva


do comportamento proibido, cujo exemplo mais característico é o do homicídio, “matar
alguém”. No entanto, em muitos delitos, o legislador utiliza-se de outros recursos,
doutrinariamente denominados elementos normativos ou subjetivos do tipo que levam
implícito um juízo de valor” (Bitencourt, 2011, p. 304).

Nesse sentido, o tipo representa o conjunto dos elementos de um fato passível de

punição, de acordo com o dispositivo legal, possuindo a função de limitar e individualizar


106

um ato que é penalmente relevante. Cada tipo possui uma função particular que congrega

os elementos qualificadores do que se denomina injusto penal.

O injusto penal é a conduta típica e antijurídica, sendo a antijuricidade o predicativo

que o qualifica como um ato que viola determinada norma jurídica. A norma diz respeito

a interpretação de um dispositivo legal expresso no Código (Penal, Civil, etc.) e em

exercício. O injusto penal só será considerado crime se for culpável, ou seja, se o sujeito

for imputável.

Culpabilidade

A culpabilidade é a relação subjetiva entre um autor e um injusto penal. Em seu núcleo,

encontra-se o autor e não o ato em si, posto que o que está em jogo é a personalidade do

sujeito e a sua conduta social.

“Nesse sentido, pune-se alguém por ser determinada pessoa, porque apresenta
determinadas características de personalidade, e não porque fez algo, em última análise.
Essa concepção justificaria, por exemplo, intervenções cada vez mais em desacordo
com a proteção de direitos e garantias individuais, podendo chegar, numa fa se mais
avançada, a um arbítrio mais sutil, modelando, inclusive, a personalidade do indivíduo”
(Bitencourt, 2011, p 402).

A culpabilidade difere do conceito de responsabilidade e da capacidade de

imputabilidade. A culpabilidade, enquanto categoria analítica do crime, refere-se à

reprovação que se faz a um autor, enquanto que a responsabilidade se relaciona à

aplicação da medida de segurança, no caso do inimputável, e à aplicação da pena, quando

se verifica a culpabilidade.
107

Na concepção do direito arcaico, a responsabilidade era atribuída em relação ao ato e

não a intenção: o sujeito se responsabilizava plenamente. Com o advento do direito ático,

ela ganha uma conotação subjetiva, sustentada pela intencionalidade, ou seja, pelos

motivos que levaram o sujeito a agir daquele modo. O desdobramento dessa nova acepção

encontra-se no direito romano, quando se estabelece uma distinção entre culpa e dolo, e

permanece presente no Código Penal até hoje.

Segundo Vorsatz (2013), com o direito ático uma nova ordem política se estabelece,

essa que substitui uma responsabilidade que implica o sujeito integralmente, por uma

determinada pela fragilidade do caráter subjetivo de capacidades, como a vontade e a

intenção. Esse é um paradoxo da evolução e transformação do direito penal, já que a

progressiva subjetivação da responsabilidade pelas categorias da intencionalidade e do

auto-controle exime, cada vez mais, o sujeito de responder por suas ações. Isso atesta um

deslocamento do direito penal de ato para de autor.

A imputabilidade, base da culpabilidade, é a capacidade de um sujeito se auto-

determinar livremente, ou a propriedade do autor em agir de uma maneira diversa pela

qual agiu. O sujeito deve ter então conhecimento do injusto penal e poder decidir agir de

acordo com as determinações jurídicas, a partir de tal consciência. A categoria da

imputabilidade reafirma o fundamento bio-racionalista de ato para o direito penal, posto

que a capacidade de culpabilidade envolve um aspecto intelectual, a representação, e

outro volitivo, a vontade, de modo que a ausência de qualquer um deles determina a

inimputabilidade penal.

Não entraremos com afinco na questão da liberdade, o que nos exigiria um exercício

epistemológico intensa, a fim de demarcar como ela se apresenta, tanto para o direito

penal quanto para a psicanálise. Nesse momento, podemos ficar com o pressuposto

jurídico de que o homem é um ser livre e racional – o conceito de livre-arbítrio, articula,


108

portanto, culpa, imputabilidade e responsabilidade, e nesse sentido, vai em direção oposta

ao conceito lacaniano de causalidade psíquica.

“Tal concepção de livre-arbítrio será retomada no século XVIII, tendo grande


influência na história do pensamento criminológico em seu aspecto embrionário. Foi a
base da escola clássica de pensadores representados por Beccaria, Carrara e Romagnosi,
que não tinham preocupações etiológicas ao estudar o crime. Tais pensadores, em uma
concepção jusnaturalista, atentavam-se ao estudo do fenômeno crime e não seu autor, o
livre-arbítrio regia o comportamento humano, pois cometer ou não um crime seria uma
decisão exclusivamente pessoal, e tudo deveria se pautar na razão. Tal escola prosperou
na segunda metade do século XVII, com influência do Iluminismo, O crime não seria
um ente de fato, mas sim um ente jurídico. O inimputável seria irresponsável por sua
escolha viciada e prejudicada e assim não teria o livre-arbítrio”. (CORREIA JUNIOR,
2013, P. 34)

Para que um injusto penal seja considerado crime, ou seja culpável, é preciso que o

sujeito seja imputável, que tenha a possiblidade de conhecimento da ilicitude do fato, e

que haja exigibilidade de conduta diversa. No caso da possibilidade de conhecimento da

antijuricidade do tipo, refere-se, segundo Evangelista de Jesus (1988), à comprovação se

o indivíduo tinha consciência da ilicitude do ato, como condição de adequar a ação à

norma penal.

Para que o injusto penal seja considerado culpável, é necessário que as três categorias

componentes do juízo de culpabilidade sejam confirmadas, sobretudo a imputab ilidade.

Caso contrário, o sujeito será considerado inimputável e irresponsável, dada a

impossibilidade da aplicação da pena.

Sobre a inimputabilidade, segundo o art. 26 do Código Penal Brasileiro (2012):


109

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental


incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação, ou da omissão, inteiramente incapaz
de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento” (p. 240-241).

Pode-se considerar três critérios determinantes da inimputabilidade. O psicológico,

que considera o fator intelectual, a capacidade de avaliar a antijuricidade do ato, e o

volitivo, ou a vontade, que é a possibilidade de se autodeterminar a partir do fator

intelectual. O biológico, que atribui a responsabilidade à “normalidade do aparelho

mental, o sistema nervoso, de modo que se o agente for portador de enfermidade mental

ou deficiência mental grave, será declarado irresponsável. E, o biopsicológico, caso do

Código Penal Brasileiro, em que, o sujeito só será declarado irresponsável se, por conta

da doença ou deficiência, no momento do ato ou injusto, era incapaz de conhecimento da

antijuricidade e, portanto, de se autodeterminar (Bitencourt, 2011).

No caso da insanidade, a doença ou deficiência mental deve produzir uma

consequência sobre o sujeito: a alteração deve prejudicar o sujeito quanto à suas

faculdades de discernimento e avaliação das ações, de acordo com a norma jurídica.

“O agente é incapaz de avaliar o que faz, no momento do fato, ou então, em razão


dessas anormalidades psíquicas, é incapaz de autodeterminar-se. Devem reunir-se,
portanto, no caso de anormalidade psíquica, dois aspectos indispensáveis: um aspecto
biológico, que é o da doença em si, da anormalidade propriamente, e um aspecto
psicológico, que é o referente à capacidade de entender ou de autodeterminar-se de
acordo com esse entendimento (Bitencourt, 2011, p. 414)

No entanto, observa-se que o critério biopsicológico não ultrapassa a fronteira

orgânica, já que o caráter médico se verifica pela subordinação do fator psicológico ao


110

fator biológico. Para que o sujeito seja considerado culpável, é preciso tanto o

entendimento como a autodeterminação, porém, o discernimento é pressuposto para o

autocontrole – um sujeito pode atribuir um valor a sua ação, mas não necessariame nte

possui a capacidade de controlar os seus impulsos.

Nesse sentido, o diálogo entre Direito Penal e Psiquiatria, que tem como consequência

a possiblidade de atuação da medicina no campo jurídico, nos dispositivos de controle do

Estado, evoluiu e acompanhou as transformações internas de cada campo. Sobretudo,

aqueles referentes à ciência médica, quando da gradual substituição de uma psiquiatr ia

fenomenológica por outra, nosográfica, o que reduziu os laudos criminais à rótulos, a

números de acordo com os manuais diagnósticos.

Esse processo reducionista não se restringiu apenas ao diagnóstico das psicoses, mas

incluiu certas “categorias neuróticas”:

“Existem determinadas condições psíquicas, como, por exemplo, certas espécies


de neuroses, notadamente neuroses obsessivo-compulsivas, que são consideradas, para
o Direito Penal, doença mental. Nessas neuroses o sujeito tem claramente o senso
valorativo de sua conduta, mas não consegue evitar sua prática, falta ndo-lhe a
capacidade de autodeterminação, em razão desse distúrbio, dessa enfermidade. Se não
tiver essa capacidade, se ela lhe falta inteiramente, no momento da ação, ou seja, no
momento da prática do fato, ele é absolutamente incapaz” (Bitencourt, 2011, p. 417)

A definição do Código Penal é mais abrangente do que a ciência médica entende por

doença mental. No entanto, sustenta-se nos parâmetros científicos da psiquiatria, em

relação às psicoses, que determinam a causa da enfermidade mental na ordem orgânica –

o núcleo da doença mental é a alienação mental (a consciência e a vontade estão

prejudicadas, o que impede o doente mental de deliberar livremente). Segundo


111

Evangelista de Jesus (1988), entende-se por psicoses os estados de alienação mental

provocados por uma desintegração da personalidade ou por certa evolução deformada dos

componentes psíquicos, como a esquizofrenia, manias-depressões, e a paranoia; inclue m-

se ainda no campo da doença mental, perturbações determinadas por processos tóxicos e

estados demenciais.

O pressuposto médico de que a matriz da vida psíquica é orgânica, pelo qual o Código

Penal se assegura, torna-se mais evidente na “categoria” do desenvolvimento mental

incompleto, quando a maturação do sistema nervoso não foi finalizada normalme nte,

como por exemplo, no caso dos surdos-mudos.

“O surdo-mudo, privado do som e da comunicação oral, de regra, fica alijado da


cultura, sem assimilar suas normas, sem a capacidade de avaliar o sentido ético -social
de seus atos. Ante a possiblidade de educar-se, e ajustar-se ao meio social, sua
capacidade de entendimento e de autodeterminação deve ser comprovada em cada caso
particular. Mas, ainda que consiga uma educação, a sua capacidade, que não se limita
exclusivamente à instrução, será inferior à normalidade do cidadão; por isso, a
necessidade do exame conveniente em cada caso concreto” (Bitencourt, 2011, p 418).

A mesma perspectiva organicista se observa quanto àqueles com desenvolvime nto

mental retardado: “os idiotas, os imbecis e os débeis mentais”, que não atingiram a

maturidade psíquica, por deficiência de saúde mental.

Nesses termos, podemos observar que o direito penal aponta a lei como determina nte

do crime: o ato é um fato objetivo, categorizável de acordo com termos dos dispositivos

legais. Veremos no capítulo seguinte, ao retomarmos o mito da horda primitiva, que Freud

e Lacan invertem a relação entre lei e transgressão.


112

CAPÍTULO 8. Crime e lei para a Psicanálise

Freud nos apresenta uma concepção de crime, de maneira consistente, em Totem e

Tabu (1913) e em Mal-estar na cultura (1930): a civilização humana é efeito de crimes

primordiais – o incesto e o parricídio – e o mito da horda primitiva destaca a violênc ia

estrutural presente no assoalho da humanidade. O crime primordial instaura uma lei:

morto o pai castrador, a fraternidade cria uma lei capaz de ordenar – “não matarás”, “não

tomarás a mãe como mulher”. Estão postos desse modo, os impasses referentes à relação

entre lei e crime, ponto que nos aproxima das temáticas próprias do Direito Penal.

Segundo Pacheco Filho (2014), o mito da horda primitiva é um mito freudiano, que

aponta a verdade estrutural do sujeito humano – o crime a que se refere será reeditado

pelo sujeito de linguagem, através da dialética edípica. Em Totem e Tabu (1913), Freud

nos apresenta um pai tirânico que é ao mesmo tempo temido (autoritário, agente,

castrador) e admirado (pela posição de gozador que ocupa) por seus filhos; certo dia, a

fim de deter os abusos do pai, os filhos o assassinam e o devoram em um banquete.

No entanto, o assassinato do pai não garante que um de seus filhos ocupe o mesmo

lugar: cria-se a figura do pai morto sob a sombra de uma figura totêmica. O pai é

assassinado e leva consigo a possibilidade de acesso à uma satisfação plena. O crime da

horda é antes de tudo do pai, frente ao qual uma fraternidade se une para barrá-lo, cenário

que é o mesmo ponto de partida para a construção do panteão mitológico grego.

Na mitologia grega, Cronos, castra o pai, Urano, com um golpe de foice, a pedido de

sua mãe, Gaia. Cronos torna-se o senhor dos céus, o pai terrível e castrador, que teme ser

destronado e por isso devora todos os seus filhos, frutos do casamento com sua irmã,

Réia. No entanto, Réia consegue enganar Cronos e esconde o último de seus filhos, Zeus,
113

em uma caverna. Já crescido, Zeus decide vingar-se de seu pai e com a ajuda de

Prudência, filha do titã Oceano, oferece uma poção a Cronos, fazendo-o vomitar todos os

seus irmãos. Zeus assume então o trono, mas não o faz interinamente – guarda para si o

domínio dos céus, e divide seu poder, com os irmãos, Hades (os infernos) e Poseidon (os

oceanos).

Lacan (1963) atenta a esse gozo do líder tirânico, agente da castração, e ao gozo fálico

de seus filhos submetidos à castração. O pai da horda goza de uma posição de

absolutismo, de plenitude, um gozo inacessível aos filhos; o gozo do restante da tribo é

ordenado pelas relações de fraternidade de seus membros, de modo que todo e qualquer

gozo que seja diferente daquele da tribo é considerado ameaça a esse grupo.

O assassinato do pai é sucedido por um ritual antropofágico que comemora o

estabelecimento do laço social, de modo que o totem erguido no lugar do pai morto

representa a interdição de que nenhum membro da horda poderia ocupar o lugar do pai,

o Outro gozador. A lei que se estabelece é então contingente à consolidação da

coletividade pelo ser humano, e regulará as relações sexuais entre os membros da tribo.

(PACHECO FILHO, 2014). Tal como já trabalhamos, essa regra, a interdição do incesto,

é para Lévi-Strauss a passagem da ordem da natureza para o campo da cultura.

Nesse sentido, o totem é um representante, e tal como aponta Lacan em seu ensino, na

altura do seminário sobre as formações do inconsciente, é o lugar da lei, sendo o Nome-

do-Pai o significante que representa essa lei. Segundo Pacheco Filho (2014), a lei

simbólica articula os laços entre os membros da tribo, cujos rituais sagrados de adoração

acontecem por conta de um sentimento de culpa em relação ao parricídio.

Lacan irá trabalhar a relação entre o Nome-do-Pai e o sentimento de culpa no

seminário dito interrompido, de 1963, “Os Nomes-do-Pai”, o qual fora impedido de


114

finalizar por conta de sua expulsão da IPA (Association International of Psychoanalis is),

evocando o mito cristão de Abraão.

No seminário XIV, Os Nomes-do-Pai (1963), Lacan nos apresenta duas telas de

Caravaggio sobre o sacrifício de Isaac. Abraão era casado com Sara, a qual não podia lhe

dar filhos. Portanto, Issac, o filho, é tido como um milagre concedido ao casal, já que Sara

encontrava-se em idade avançada. Por conta disso, Abraão que já tinha filhos com outra

mulher, abandona a família anterior para constituir uma nova família com essa mulher,

mãe de uma benção divina. Por conta disso, Deus decide testar a fé de Abraão, exigindo-

lhe a vida de Isaac como sacrifício.

Lacan utiliza-se do mito de Abraão para esmiuçar a relação entre crime e culpa, que

em Freud, pelo mito da horda primitiva, remete às incidências do supereu, bem como nos

aponta Tendlarz (2007):

“Por amor a Deus, ao Pai, Abraão está disposto a matar seu filho, cumprindo a ordem
dada por Deus. Desta maneira, salva o Pai, fazendo-o existir através do amor ao Pai, do
amor a Deus. Mas este amor ao Pai tem o seu avesso de mandato superegóico, o
mandato desse Deus que deseja que Abraão mate seu filho. Este é o ponto em que
aparece o desejo do Outro, ponto em que aparece o pecado do pai”. (p. 3)

Freud nos aponta, em O eu e o isso (1923), que o ideal de eu se constitui na dialética

edípica, a partir da primeira identificação com o pai, enquanto que o supereu se refere ao

resto das primeiras escolhas objetais. Observamos, no entanto, que as correntes pós-

freudianas associaram o supereu à função moral, da consciência que limita e pune. A

questão é que o próprio Freud “parece refutar” tal tipo de interpretação, quando, ao tratar

das demandas culturais de renúncia pulsional em Mal-estar na cultura (1930), nos diz

que tais restrições não fazem outra coisa a não ser fortalecer a crueldade superegóica.
115

Nesses termos, Lacan, na releitura de Freud, articulará, como abordaremos no capítulo

X, o supereu à demanda do Outro, como um imperativo de gozo, e o ideal do eu ao campo

do significante. Temos aí um paradoxo, pois o supereu não impede o sujeito de gozar,

mas o impele a gozar cada vez mais e veremos, ao tratarmos da questão da

responsabilidade, que na verdade o que faz barreira ao gozo não é o supereu, mas o desejo.

Lacan, ao abordar o inconsciente em termos estruturais, nos diz que a renúncia também

é estrutural, posto que a incidência do significante sobre o sujeito produz uma perda de

gozo, a qual tentará ser recuperada em satisfações parciais através dos avatares do objeto

a. Segundo Tendlarz (2007), o supereu exige que o sujeito renuncie à tais recuperações

de gozo, de modo que, a cada renúncia, o gozo retorna ao supereu, como combustível que

o fortalece, travestido pelo sentimento de culpa – esse movimento perpétuo de renúncia,

recuperação e consumo de gozo, está na base da cultura.

A economia de gozo implica tanto a estrutura quanto o coletivo, que nessa perspectiva

não se opõem, não se excluem, e ainda nos permite localizar o direito penal como uma

ficção jurídica da ordem da instauração das alianças simbólicas.

Retomando o mito da horda, a experiência de gozo do pai tirano é inacessível, e

segundo Koltai (2000), um outro gozo, que não semelhante ao da tribo, remete a uma

condição de falta: o estranho que goza diferente remete ao fato de que não há apenas uma

maneira de gozar, denunciando o real da castração. Atribui-se um gozo a mais ao

estranho, posto que é diferente do seu, e se há esse outro gozo, é porque de alguma forma

a tribo goza de menos. “Não matarás” / “Não esposarás sua mãe” se legitima, pois algum

dia existiu ao menos um que desobedeceu a lei, e a infração/transgressão toda vez que

cometida, coloca em xeque o funcionamento do grupo mas nem por isso deixa de

reafirmar a lei.
116

Segundo Pacheco Filho (2014), este é o próprio funcionamento do grupo, apresentado

de maneira precisa e extensa por Freud, em Psicologia das Massas e análise do eu”

(1921): um conjunto de indivíduos (os filhos do líder tirânico) coloca um único e mesmo

objeto como ideal (o pai assassinado), identificando-se entre si (os membros de uma

mesma horda) e elegendo, ao mesmo tempo, um objeto externo diverso, sobre o qual recai

toda a destrutividade.

Nesse sentido, o direito penal opera a partir da economia de gozo que fundamenta os

laços sociais, os quais se perpetuam através de mecanismos de limitação, exclusão e

segregação, ou seja, a lógica mesma dos dispositivos jurídicos construídos historicame nte

para aplicar a pena, através da privação de liberdade, ou no caso dos irresponsáveis, a

medida de segurança – uma sanção que não é pena, mas que na prática, “é como se fosse”.

“Por isto o outro é menos frequentemente objeto de amor, a ser valorizado, elogiado,
admirado e recompensado, e muito mais frequentemente objeto de ódio, a ser
subestimado, menosprezado, insultado, segregado, escravizado, espancado, estuprado
ou assassinado. E os traços de diferença pelos quais isto acontece podem ser da mais
variada qualidade... Por isto, lei e ideal mostram-se presentes na constituição do sujeito
humano e dos laços sociais, mas, como afirmei, revelando tanto o melhor quanto o pior
da humanidade”. (PACHECO FILHO, 2014, p. 119).
117

Lacan retoma então os textos ditos “sociais” de Freud para articular gozo e estrutura,

e a possibilidade de interlocução com o direito penal ainda implica o passo a mais dado

por Lacan: é preciso ir além do pai, o que sugere que o Mito da Horda e o Édipo se referem

a operações lógicas relacionadas, mas distintas.

Para além do pai

Vejamos que no caso do Édipo, o que está em questão é o crime do filho: é ele quem

mata o pai e quem goza do corpo da mãe, e que, diante do segredo revelado, fura os

próprios olhos, como aquele que não quer saber nada sobre a determinação inconscie nte.

Estamos diante de uma resolução neurótica, pois o neurótico é esse sujeito que atravessa

a metáfora paterna e diante da castração, recalca.

Segundo Pacheco Filho (2014), a incidência do significante castra o Outro, o qual,

como “tesouro” dos significantes, não pode então assegurar o sujeito; diante dessa

insuficiência, a ficção edípica é criada, onde o pai imaginário, o terrível castrador, ocupa

a função de véu a fim de tamponar a falha do Outro, reconstruindo-o pela completude.

No caso do pai totêmico, a leitura de Lacan implica uma passagem do pai à estrutura.

O pai totêmico já não é um pai morto, mas sim “um pai vivo que goza”. Nesse sentido, o

crime está do lado do pai gozador, a partir de um gozo impossível de ser recuperado, pois

foi com ele perdido no banquete totêmico – a fraternidade de “assassinos” que se funda

não é simplesmente um ato de recuperação de gozo, mas a renovação de uma renúncia,

já que há um gozo que falta e um gozo a ser repartido. (TENDLARZ, 2007)

No mito da horda primitiva, o crime é do Cronos que devora seus filhos, cujo

assassinato funda uma lei. A psicanálise efetua nesse ponto uma inversão em relação ao

direito penal, já que não é a lei que define o crime, mas são os atos do pai e o parricídio
118

cometido pelos filhos que instauram a proibição do incesto. Tal como abordamos no

capítulo sobre as etapas lógicas da constituição do sujeito, a incidência do significa nte

sobre o sujeito fornece um limite à experiência narcísica primordial de gozo, quando a

substituição significante articula o universal do Nome-do-Pai, o pai edípico, ao particular,

a versão do pai para cada um.

“... é na exceção singular que se funda o Nome-do-Pai um a um. O pai nunca será
universal. A função fálica é que é universal, mas tal função precisa estar encarnada em
um pai vivo, num pai que goza”. (TENDLARZ, 2007, p. 8)

Se no mito da horda a lei do pai encontra-se referida ao campo do Outro e a função

paterna é que opera a renúncia pulsional, Lacan procura através de seu ensino ir além da

trama edípica, ao articular função paterna e Nome-do-Pai. Lacan nos faz a observação de

que a lei que se instaura com o assassinato do pai não cria mas legaliza o desejo.

“A lei edipiana (simbólica) é estrutural para Lacan, mas trata-se de uma lei que pode
ser transgredida... É do assassinato do pai que a lei se origina: a lei simboliza a presença
do pai através de sua morte (sua ausência). O pai simbólico somente pode existir como
morto através de seu nome (o nome é o assassinato da coisa, diz Hegel). A
transgressão... anula e, sem cessar, reconstitui a lei, uma lei que se torna menos
“inabalável” (o pai aceita fazer-se matar!) e que se aproxima da “regra” em seu sentido
wittgenstiniano. A lei simbólica não controla tudo, algo lhe escapa...” (LIPPI, 2009, p.
177).

O pai, ocupa um lugar ambíguo na dialética edípica. Se em dado momento sua

enunciação associa-se à interdição, a esse que diz “não” tanto para a mãe quanto para a

criança, sobre a possibilidade de gozarem um do corpo do outro, em um momento


119

posterior ele exerce uma função permissiva através da identificação. Algo articula lei

simbólica e crime: é o desejo.

Tal definição está expressa no seminário IX, A Identificação (1962), quando diz Lacan

que “é do lado de lá da fronteira ultrapassada que o desejo começa”. O desejo enlaça o

gozo e o interdito, enlaça duas leis distintas: a lei simbólica, o limite do gozo, e a Lei

(maiúscula mesmo) do Outro, a que ordena a gozar, o supereu.

“... transgressão e a lei: embora se apresentem como antinômicas, as duas instâncias


estão em conexão. A transgressão não é a negação da lei, porquanto a lei compreende
também sua negação. Al ei não se anula no movimento que leva à sua transgressão.
Transgredir a lei é também confirmá-la”. (LIPPI, 2009, p. 174)

Sobre a ferocidade da Lei, trataremos no capítulo X. Resta-nos a questão das psicoses:

com a foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito fica à parte da significação fálica, o que nos

faz questionar a relação crime, lei simbólica, Lei, desejo, a partir de um outro estatuto.

No entanto, isso não implica prescindir do Nome-do-Pai, mas tratarmos de sua

pluralização.

Os nomes do pai

Segundo Salum (2014), o pai gozador é uma invenção do sujeito contra a sua

precariedade (do pai), já que o pai também é castrado: o que castra não é o pai, mas o

atravessamento do sujeito pelo significante.

Já tratamos que o Nome-do-Pai convoca algo da ordem do universal, mas também da

singularidade do sujeito. No caso do universal, temos o nível da estrutura, pois ela está
120

para todos, mas não pela totalidade, e sim para todos no um a um. Quanto ao singular,

remete à invenção particular de cada um, ou seja, a multiplicidade de nomeações que

podem exercer sua função.

“... ao propor passar do Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai, Lacan pluraliza o nome,


mas não o pai. Embora haja o caso a caso, há uma dimensão do pai que é universal. Não
se pode dispensar o realismo da função paterna, o ponto de impossíve l. Isso é o
universal, do Nome-do-Pai. Há uma tensão entre o universal da função e o particular da
experiência que sujeito tem de um pai”. (SALUM, 2014, p. 5)

Retomando a metáfora paterna, vemos que o Nome-do-Pai é uma espécie de véu sobre

um vazio (x), ou seja, é o que nomeia o desejo materno e apazigua o gozo. No caso da

neurose, o pai castrador é uma solução imaginária, uma nomeação que se utiliza de

atributos fálicos. Como o Outro não consiste para ninguém, ou o sujeito se utiliza do que

está posto no laço social, ou, sem outra saída, ele inventa algo.

Nesse sentido, se na psicose, pela foraclusão o significante do Nome-do-Pai está

zerificado, o sujeito se situa à parte da significação fálica – ele precisa então inventar a

partir da Verwerfung. Se o sujeito está fora da significação fálica, e a ficção jurídica se

constitui a partir dessas coordenadas, como então incluir a foraclusão do Nome-do-Pai?

O sujeito não poderá responder a partir da norma fálica, ou diante de uma lei geral para

todos. Não por acaso, Lacan nomeia o seminário sobre as psicoses a partir de uma

pluralização: a(s) psicose(s). Nesse sentido, segundo Salum (2014), se através da ordem

fálica o direito penal concebe a responsabilidade a partir de uma universalidade, em

contrapartida, a psicanálise procura por soluções singulares encontradas pelo sujeito,

pelas quais ele possa responder ao campo do Outro.


121

No entanto, as soluções que o sujeito inventa nem sempre se associam à

normatividade. O desdobramento clínico disso não diz respeito apenas às psicoses, mas a

abertura para além da norma fálica, tanto na neurose quanto na perversão também.

Poderíamos dizer que Althusser efetua uma invenção através da escrita autobiográfica?

Talvez não tenhamos tempo para tratar do assunto, pois seria fundamental avançarmos

no ensino de Lacan, quanto à questão da nomeação que se articula com a pluralização do

Nome-do-pai, a qual Lacan efetua no seminário 23, O sinthoma (1976), ao tomar a obra

do escritor irlandês James Joyce.

Podemos nos ater à seguinte questão: a invenção psicótica é o ponto crucial de nossa

proposta de articulação entre psicanálise e direito penal, ao apontarmos um furo no campo

jurídico: é preciso um outro tratamento de gozo que inclua a foraclusão. Veremos a seguir

que, se não conduz à solução, a passagem ao ato pode ser uma solução, ainda que extrema.
122

CAPÍTULO 9. Passagem ao ato e o caso Aimée

Em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950), Lacan

nos aponta que o ato de destruição do outro é a apresentação do que seria a estrutura

fundamental humana, mas que, no entanto, não seria necessariamente criminoso. Trata-

se da operação de separação, contra a alienação no Outro especular, tal como abordamos

no capítulo 4.

Lacan circunscreverá ainda nesse texto, a passagem ao ato como um tipo de crime. O

termo, passagem ao ato, não é um conceito próprio da psicanálise, mas derivado do campo

da psiquiatria, onde encontra-se definido como reação agressiva: caracteriza condutas

desviantes e violentas, da ordem da doença mental.

Segundo Bercherie (2009), na psiquiatria, o conceito de passagem ao ato encontra- se

associado à categoria clínica da monomania, da qual Esquirol se utiliza para caracterizar

indivíduos que teriam cometido homicídios escabrosos, sem uma clara intenção do ato, e

que, por conta disso, trouxeram um grande impasse para o direito penal. Impasse esse

que, historicamente, irá assinalar a entrada da psiquiatria no campo jurídico, e

possibilitará uma frente de atuação dos penalistas na saúde mental.

A categoria monomania inclui uma série de atos mórbidos, desde roubos, embriague z,

até homicídios, a partir de definições amplas e vagas, cujo elemento comum será o

impulso agressivo, enquanto sintoma de um quadro desviante e patológico sustentado em

premissas orgânicas e genéticas. O impulso agressivo fugiria ao controle do sujeito e,

portanto, não implica uma vontade de sua parte – a saber, vontade como atividade motora

voluntária.
123

O conceito de monomania associa a passagem ao ato a essa impulsão: é uma ação

descontrolada, sem intenção, sem sentido algum, ou seja, determinada pelo sistema

nervoso autônomo, ali onde o sujeito não está, em termos orgânicos. Do ponto de vista

da psicanálise, Lacan rechaça esse tipo de explicação, quando pela perspectiva

estruturalista concebe o sujeito como efeito do significante, e pela qual, não se pode

excluir a questão da responsabilidade.

“... Lacan encara o problema da passagem ao ato em sua face legal, discutindo a
alternativa imputabilidade-inimputabilidade, quer dizer, a questão da responsabilidade
pelos crimes cometidos. Recorda que na história da psiquiatria o interesse pelos
enfermos mentais nasceu da necessidade de ordem jurídica, por parte de Pinel e
Esquirol. A passagem ao ato está no coração do trabalho do “expert” psiquiatra. Mas,
não obstante, a justiça não se interessa mais do que por atos criminosos, isso quer dizer,
por aqueles que constituem infrações a lei. A tarefa dos psiquiatras consiste em
determinar se a enfermidade mental restringe a liberdade moral absoluta suposta para
todo indivíduo 12 ”. (Muñoz, 2009, p. 56).

Nesse sentido, Lacan efetua uma torsão em relação ao termo passagem ao ato, partindo

da psiquiatria para produzi-lo como conceito clínico próprio da psicanálise, e que

percorrerá a espinha dorsal de seu ensino. Conceito que conjuga desde a tese de

doutorado, com seu caso princeps, Aimée, o seminário 3 e a tese do inconscie nte

estruturado como uma linguagem, passando pela formalização do objeto a, no seminár io

sobre a angústia, até a apresentação do tratamento possível pela suplência no seminár io

23, O sinthoma (1976).

12
“Lacan encara el problema del pasaje al acto en su faz legal, discutiendo la alternativa imputabilidad-inimputabilidad,
es decir, la cuestión de la responsabilidad por los crímenes cometidos. Recuerda que en la historia de la psiquiatria el
interés por los enfermos mentales nació de necesidades de orden jurídico, de la mano de Pinel y Esquirol. El pasaje al
acto está em el corazón del trabajo del experto psiquiatra. Pero, no obstante, la justicia no se interessa más que en los
actos criminales, es decir, en aquellos que constituyen infracciones a la ley. La tarea de los psiquiatras consiste en
determinar si la enfermidad mental restringe la libertad moral absoluta supuesta para todo individuo”.
124

Não nos cabe aqui efetuar um percurso epistemológico da passagem ao ato no ensino

de Lacan – seja por uma face sincrônica, seja diacrônica – mesmo porque estabelecemos

como limite metodológico desta pesquisa o seminário X, A Angústia (1963). No entanto,

temos belíssimos trabalhos de colegas analistas que se incumbiram dessa tarefa, com

grande competência e honestidade, como Pablo Muñoz, em “La invención lacaniana del

passaje al acto: de la psiquiatria al psicoanálisis” (2009).

O que é fundamental para nossa investigação é a questão da passagem ao ato na

psicose, mais especificamente no que isso pode nos dizer sobre o ato homicida cometido

por Althusser. Cabe então revisitarmos o caso Aimée, para passarmos mais adiante à

estrutura da passagem ao ato na melancolia.

O caso Aimée

Aimée, Marguerite Jeanne Anzieu, francesa que tenta matar outra mulher, a qual

encarnava seu ideal de mulher famosa, e, portanto, a representava, é atendida por Lacan

ainda em sua atuação como psiquiatra. Caso paradigmático, apresentado na tese de

doutorado, é considerado por Lacan, em “De uma questão preliminar...” (1957), como o

estudo que o teria conduzido à psicanálise.

Aimée sai da casa de seu pai aos 18 anos de idade, para morar por três meses com um

tio, que não por acaso era casado com sua irmã mais velha. Ali, Aimée fica submetida à

autoridade da irmã, que assumia o lugar de conselheira e lhe dava um certo acolhime nto

afetivo – será o primeiro personagem na série da construção delirante.

Anos depois, quando Aimée já estava casada e tinha um filho, sua irmã se separa e vai

viver com ela. Incapaz de ter um filho por conta de uma histerectomia completa, e diante

do agravamento do quadro paranoide de Aimée, a irmã assume o controle da casa e os


125

cuidados da criança. Ao longo de dois anos que antecedem o crime pela qual fora presa,

fazem série inúmeros atentados, a partir de erotomanias hetero e homossexuais, enquanto

resposta ao seguinte enunciado desencadeador: “querem matar meu filho” – e que se

iniciara na figura da irmã.

Cerca de 18 meses antes da tentativa de homicídio, a polícia a detém após perseguir

um jornalista, na insistência de que ele publicasse seus escritos, pois gostaria de se tornar

uma novelista famosa. Um ano depois, envia para uma editora todo o seu material para

publicação, o qual é recusado – Aimée recebe a notícia pela empregada e a agride

violentamente. Cinco meses depois, começa a entrar em conflito com o marido, até que

um dia o agride com um vaso na cabeça e decide se divorciar e ir embora para Paris com

o filho; a irmã a detém e a demove da idéia.

O delírio de interpretação se constitui pelo pólo significante, “todos ameaçam meu

filho”, e pelo imaginário, “ser uma novelista famosa”, a partir do qual Aimée decide ir

morar sozinha em Paris, e onde a via persecutória se agrava – um mês antes do crime, ela

compra uma faca.

Em 19 de abril de 1931, às 8 da noite, Aimée se dirige ao teatro Saint-Georges. Lá,

interpela a atriz em cartaz com a peça “Tout va bien”, Huguette ex-Duflos: “você é a

senhora Z”? A atriz responde que sim, e ao se virar, se depara com Aimée avançando

sobre ela com uma faca, da qual se defende com o braço. Huguette é ferida na mão e

Aimée, após detida, diz que aquela mulher a perseguia e a ameaçava. Já em tratamento

com Lacan, Aimée reconstrói os momentos anteriores ao ato: estava indo para a casa do

ex-marido ver seu filho, mas então, por uma idéia delirante fixa, decide atacar qualquer

inimigo com o qual cruzasse primeiro. (Allouch, 1990).


126

Segundo Lacan (1932), é a intrusão fraterna que promove a derrocada na interpretação

delirante e conduz Aimée ao ato. Huguette é um dos perseguidores, entre os quais se

estabelece uma continuidade metonímica no delírio, e que representam aquilo que Aimée

gostaria de, mas considerava incapaz de ser: mulheres intelectuais, muito conhecidas, que

dispunham de grande reconhecimento e gozavam de muita liberdade social, em uma

posição dominadora.

“A partir do momento em que Aimée se vê impossibilitada de cuidar de seu filho


devido a sua enfermidade (quando se produz um novo desencadeamento da psicose), a
irmã toma seu lugar, se encarrega de cuidar da criança e a substitui nas tarefas maternas.
Lacan destaca a dominação que essa irmã exerce sobre Aimée. Ela representa, para
Aimée, a imagem do ser que ela é incapaz de realizar”. (Tendlarz, 2013, p. 91)

Com a passagem ao ato, temos como primeiro efeito a queda da construção delirante,

através de uma satisfação de autopunição: aquela atriz representa um ideal, é objeto de

amor, mas diante de uma impossibilidade, recebe todo o ódio – sobretudo, é um reflexo

da própria Aimée, que se auto-castiga. Aimée esfaqueia a si-mesma, mas é somente com

o encarceramento que compreende o que ocorreu e realiza o seu desejo de eliminar um

mal irrefreável que a consumia. Isso nos sugere que a passagem ao ato, por si só, não

oferece possibilidade de cura.

“Se o autocastigo realizado no encarceramento a cura retroativamente, é devido a


“subjetivação do ato – entendendo por tal a retificação do delírio a partir do
questionamento que a paciente faz, uma vez presa, das razões de seu ato. No “après -
coup” da passagem ao ato agressivo, ela se implica nele como sujeito. Explicação da
cura que, por reconhecer sua temporalidade lógica e incluir a dimensão do sujeito, não
se reduz a simples dissipação de um sintoma”. (MUÑOZ, 2009, p. 44).
127

Nesse sentido, Lacan introduz uma outra temporalidade, posto que a estrutura lógica

que se impõe é a da antecipação. Ele nos aponta que todo ato consiste em três tempos

lógicos: instante de ver, tempo de compreender, momento de concluir. No caso de uma

passagem ao ato, há um “curto-circuito” que promove uma rápida passagem do ver à

conclusão, a partir de uma supressão do tempo de compreender.

Por tal, o ato de Aimée não revela nenhuma finalidade que possa ser pré-determinada,

de modo que é a incidência da lei, enquanto barra, que permite esse tipo de trabalho de

elaboração, a partir da responsabilização pelo ato cometido, em outra temporalidade. Tal

como nos aponta Allouch (1990), na realização do desejo de autopunição de Aimée, a

atriz é um protótipo da irmã, assim como todas as demais perseguidoras, figuras

ambivalentes de amor (ideal) e ódio (depreciação de si), e a agressão que ela comete se

dirige na realidade a ela mesma – tempo de compreender a partir da acusação e do

encarceramento.

Há de se considerar que esse tipo de solução comporta inúmeras questões, que nem

sempre implicam a apropriação por parte do sujeito de seu desejo, conduzindo assim a

mudanças subjetivas muitas vezes limitadas. No entanto, a importância da subversão

efetuada por Lacan reside no efeito significante da passagem ao ato, enquanto um corte

preciso que, no après-coup, permite ao sujeito um outro enlace, ao abrir à possibilidade

de uma retificação que o implique em suas consequências.

Nas psicoses, o sujeito encontra-se na posição de objeto do Outro, o qual ganha grande

consistência de autoridade, gozando indiscriminadamente. No caso Aimée, tanto quanto

em Althusser, o crime comparece como uma forma do sujeito fugir do domínio desse

Outro gozador, quando ferir consiste numa ação de barrar tal opressão, produzindo como

efeito uma mudança de posição.


128

Segundo Quinet (2006), a passagem ao ato pode ser uma tentativa de cura e a

possiblidade do psicótico se responsabilizar como sujeito, quando a interpretação

delirante do Outro perseguidor cai. Agredir o Outro é um ato pelo qual o sujeito procura

eliminar o “kakon”, o próprio mal interior que na relação especular encontra- se

exteriorizado e localizado no que seria “a vítima”.


129

CAPÍTULO 10. Supereu e Kakon

A subversão lacaniana do conceito de passagem ao ato encontra-se associada ao

emprego particular efetuado por Lacan a respeito das incidências do supereu. A

articulação do supereu com o Outro e seu papel na constituição do sujeito permitirá a

Lacan conduzir a passagem ao ato para além dos limites da psiquiatria, tornando- o

definitivamente, como aponta Pablo Muñoz, uma invenção lacaniana.

Ao tratar da questão da angústia no seminário 10, Lacan irá enfatizar a face

superegóica imbricada ao Outro precoce, o gozo materno avassalador, e no capítulo

referente a passagem ao ato retomará o conceito de kakon, apresentado no caso Aimée e

no texto de 1946, A agressividade em psicanálise: a subjetivação do mal interno se

mistura à constituição arcaica do supereu.

No caso Aimée, Lacan aborda a passagem ao ato como um modo de se eliminar uma

sensação insuportável que invade o sujeito: o kakon. O termo é emprestado literalme nte

da psiquiatria de Paul Guiraud, mas também indica que Lacan fora um bom leitor das

teorias kleinianas a respeito da construção do objeto.

“A articulação do extremo arcaísmo da subjetivação do kakon com a posição


depressiva se logra via identificação com o objeto mal. Sua importância é que permit e
desvelar a aparente imotivação dos crimes descritos por Guiraud: o sujeito ataca a u m
outro que encarna seu próprio objeto mal interno. Assim, encontramos nessa hipótese
lacaniana uma mistura conceitual entre o estado do espelho... Guiraud e Klein, que
culmina na articulação do kakon com o objeto mal. Pode-se ler o extremo arcaísmo do
qual fala Lacan como indicação a respeito de que, mais além das identificações com a
130

imagem do outro, haveria outra coisa – uma relação com um objeto mal e inimaginável,
no sentido de mais além do imaginário, quer dizer real13 ”. (MUÑOZ, 2009, p. 79).

Em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946), Lacan vai propor que as etapas

mais arcaicas da constituição do sujeito se efetuam a partir dessa captura identificató r ia,

pela qual ele (o sujeito) se encontra assujeitado à imagem do outro, e que fica clara e

exposta pelo caso Aimée: construção de um ideal marcado pela agressividade. Desse

modo, o supereu é localizado por Lacan em um período anterior à apreensão de uma

imago corporal, nesse “mais além do imaginário”.

Segundo Bercherie (1980), a concepção de ato imotivado de Paul Guiraud colocou em

relevo o caráter agressivo da reação. Lacan considera que a satisfação dessas pulsões

agressivas não pode ser excluída do conceito de passagem ao ato, mas não é o suficie nte

para caracterizar a psicose: há uma causalidade superegóica em jogo.

Lacan fará então uma equivalência entre o kakon e a invasão de gozo insuportá ve l,

experiência esta que pertence ao cotidiano da clínica das psicoses – o retorno do

foracluído. Kakon será o nome dado para o gozo, na psiquiatria de Guiraud, aquilo que

caracteriza a finalidade da passagem ao ato, ou seja, limitar esse gozo que é identificado

no Outro, pela exteriorização do mal interno.

Desse modo, Lacan esclarece o mecanismo identificatório da passagem ao ato. A

pessoa que é agredida (representante da enfermidade do sujeito) é na realidade a imagem

13
Do original em espanhol: “La articulación del extremo arcaísmo de la subjetivación del kakon con la posición
depresiva se logra vía la identificación con el objeto malo. Su importancia es que permite develar la aparente
inmotivación de los crimenes descritos por Guiraud: el sujeto ataca a un outro que encarna su próprio objeto malo
interno. Así, encontramos en esa hipótesis lacaniana una mixtura conceptual entre el estadio del espejo, Hegel, Guiraud
y Klein, que culmina en la articulación del kakon con el objeto malo. Puede leerse el extremo arcaísmo del que habla
Lacan como indicación respecto de que más allá de las identificaciones con la imagen del otro, habría otra cosa – una
rélacion con un objeto malo e inimaginable, en el sentido de más allá de lo imaginário, es decir real”.
131

especular invertida daquele que agride, e o mecanismo provocador seria as tendências

autopunitivas ligadas ao supereu (MUÑOZ, 2009).

A atuação do supereu na passagem ao ato revela sua dupla face. De um lado, as

identificações parentais, associadas à introjeção do pai morto pelo luto elaborado, o que

poderia supor a instância pelo que diz Freud, como “herdeiro do Complexo de Édipo”.

No entanto, Lacan ressalta um outro lado, não associado ao significante, mas ao objeto:

a dimensão pulsional.

Segundo Baima (2011), Lacan irá explorar tal caráter “dúbio” da instância superegóica

no seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, onde o definirá como um imperativo: se

por um lado, o das identificações, o supereu está associado ao campo da lei, que ordena

as relações entre os homens, ou seja, o próprio campo linguístico, por outro atua como

um tirano implacável. Nesse sentido, Lacan nos sugere que a lei superegóica ordena, mas

não de maneira dialetizada, e sim de maneira cruel, digamos “absolutista”.

“Como função é dependente da estrutura de linguagem e do gozo ineliminável que o


uso da linguagem comporta. São os conteúdos de seus mandatos que se ligam à herança
dos personagens do Édipo, os Outros do sujeito, mas seu poder provém do lugar estrutural
que Lacan matematiza A, independente do que pode encarnar” 14 . (MUÑOZ, 2009, p. 87)

O supereu contém uma vertente simbólica e outra real, uma que remete ao significa nt e

e outra ao gozo, respectivamente. A vertente real que Lacan procura enfatizar é a que

imprime à lei do supereu uma insensatez, a qual conduz à negação da própria lei – o

supereu desqualifica a lei em seu atributo normativo. Quinet (2009) diz que o supere u

14 Do original em espanhol: “Como función es dependiante da la estructura del linguaje y del goce ineliminable que el
uso del languaje comporta. Son los contenidos de sus mandatos los que se llenan con la herencia de los personajes del
Edipo, los Otros del sujeito, pero su poder proviene del lugar estructural que Lacan matematiza A, independiente de
sus encarnaduras”.
132

corresponde ao Outro não-castrado, ao pai gozador da horda primitiva que procura impor

os seus caprichos aos demais membros da tribo, os seus filhos; nesse sentido,

corresponderia ao Outro arcaico, no caso a mãe como matriz identificatória, o Outro que

ainda não contém o Nome-do-Pai, ou seja, que não passou pela barra da castração.

Lacan avançará um pouco mais ainda, ao longo de seu ensino, quando no seminár io

10 tratará do supereu não apenas como um imperativo, mas sobretudo como imperativo

de gozo, tal como um imperativo categórico kantiano. O supereu é o Outro que ordena o

sujeito a gozar, que na passagem ao ato produz como efeito uma desarticulação do

inconsciente e rompe com o laço social. (BAIMA, 2011). Desse modo, Lacan define o

supereu como uma voz ensurdecedora que ordena: “GOZE!”, explicitado por Quinet

(2009):

“O Outro como lugar do significante pode ser referenciado ao supereu na medida


em que o significante por si só comanda, sendo essencialmente oracular. O supereu é
essencialmente uma instância de comando vocal, comandando através de uma cadeia
de significantes que, insistindo, legifera. O Outro como lugar da lei contém o Nome -
do-Pai e daí instaura uma lei que ordena o mundo do sujeito, legalizando suas relações
pela castração, isto é, a função fálica”. (p.29-30)

No caso da psicose, com a foraclusão do Nome-do-Pai, a face simbólica e a face

real se desarticulam, e esta última, sem o velamento fálico, encontra-se exteriorizada,

como um Outro com demandas de gozo cada vez mais altas – o que podemos associar ao

caráter verbal do fenômeno elementar, explicitado por Lacan.

“Faça-a feliz!” é o que escuta Althusser, quando das partidas do pai após os jantares

conflituosos. No entanto, faça-a se desdobra tanto no mandato de faça ela, a mãe, feliz,

quanto faça ela, faça o papel de mulher frente ao pai gozador. O empuxo-a-gozar
133

superegóico está articulado ao empuxo-a-mulher, o desejo especulativo que mantém, no

ciclo depressivo, Althusser na posição do morto-vivo frente à mãe, Lucienne Berger,

então deslocada metonimicamente na figura de Hélène.

Segundo Muñoz (2009), o empuxe-a-gozar superegóico é justamente o que invade o

psicótico e o que ele procura eliminar na passagem ao ato: o kakon superegóico. Com a

formalização do objeto a, Lacan irá apontar que esse mal exteriorizado que o paranoico

localiza no Outro não é exatamente interno, tampouco externo, mas o que Freud deixou

pistas ao tratar do sentimento de estranheza: o objeto éxtimo, o próprio objeto a.

Assim, a passagem ao ato na psicose consiste em uma operação de extração, disso que

por conta da foraclusão não sofreu queda. Se o sujeito psicótico se encontra na posição

de objeto causa do desejo do Outro, essa extração pode se dar pelo suicídio melancólico,

quando a extração se dá no próprio corpo do sujeito, que se lança para tamponar o furo

do Outro que emerge, ou pela agressão paranoica, no caso de Aimée, em que ferir o outro

consiste em barrar o empuxe-a-gozar superegóico localizado no Outro.

Resta-nos a questão da finalidade estrutural do ato de Althusser, que, embora

melancólico, “revestiu” sua passagem ao ato a partir de uma posição paranoica. Seria o

suicídio altruísta de Althusser uma defesa contra o próprio suicídio, enquanto efeito de

uma paranoização efetuada em sua análise, a qual conduziu por mais de 20 anos?

Tentaremos tratar disso no capítulo seguinte.


134

PARTE IV

Responsabilidades
135

Após o desfecho trágico, Althusser foi medicado pelo dr. Etiènne e hospitalizado de

urgência no hospital de Sainte-Anne. É de praxe que o doente mental infrator seja levado

para um interrogatório preliminar e uma consulta com o psiquiatra do Departamento de

Polícia anexo ao Sainte-Anne. No entanto, dada a urgência e a gravidade de seu estado,

Althusser fora internado diretamente.

A imprensa francesa e estrangeira de um modo geral procurou abafar o caso, porém

certos jornais viram em Althusser, um argelino, homem famoso, normalien, filóso fo,

marxista e comunista, uma possiblidade de, através de seu crime, resolver pendências

com o marxismo, a filosofia, o comunismo, e sobretudo, a École Normale Supérieure.

As manchetes apresentavam desde associações entre marxismo/comunismo/crime, e

filosofia/loucura, até denúncias de privilegismo:

“Althusser escapou graças às “altas proteções de que goza: o establishment da


Universidade e dos intelectuais de todo tipo formaram automaticamente um bloco para
fazer silêncio a seu redor e proteger um deles dos rigores da “regra”, quiçá da lei”
(ALTHUSSER, 1986, p. 226).

A equipe médica proibiu que Althusser recebesse visitas ou qualquer tipo de

correspondência, a fim de protegê-lo das notícias e/ou informações que poderiam lhe

chegar, de caráter nefasto para seu quadro psicopatológico e para sua estabilização.

Encontrava-se apenas com os peritos, cujas conversas em nada se lembrava, e com o

analista, esse frequentemente. Passava boa parte do tempo dopado, por conta de uma
136

combinação terapêutica horrorosa entre medicação e eletrochoques, repetindo

incessantemente: “mas como é possível que eu tenha matado Hélène”?

Em junho de 1981, obteve relativa melhora em seu quadro depressivo, melhora essa

interrompida por duas notícias das quais teve conhecimento. Primeiro, estando em licença

médica da École Normale, teve todos os seus livros e objetos retirados de seu apartamento

da rua d´Ulm, que considerava uma extensão de seu próprio corpo.

“Essa medida me chocou como uma condenação perpétua à reclusão, posto que de
fora, e apesar de meus direitos, “tinham” literalmente, por meio de meu apartamento,
ou seja, de meu corpo, me riscado pura e simplesmente da vida” (ALTHUSSER, 1986,
p. 239).

Segundo, Althusser tomou ciência da possiblidade de que fosse transferido para um

presídio, já que, internado por decisão do chefe de polícia de Paris, e privado de seus

direitos civis, estando sob a custódia do Estado, poderia ser transferido a qualquer

momento.

Os médicos de Sainte-Anne passaram a serem pressionados, por autoridades

administrativas, a emitirem laudo médico favorável à transferência de Althusser para um

hospital de custódia. Nesse momento, ele já tinha se transformado em um “caso”, e as

autoridades jurídicas e policiais viram-se obrigadas pela pressão da opinião pública a

tomarem uma decisão definitiva. A equipe médica se recusou a indicar a transferênc ia,

reafirmando que Althusser não era violento nem perigoso, já que sabiam muito bem qual

poderia ser o seu destino trágico em uma instituição como o manicômio judiciário. E

embora ele tenha resistido, a equipe acabou convencendo-o a aceitar a transferência para

o hospital de Soisy-sur-Seine, evitando o pior, em junho de 1981.


137

Em Soisy, o analista de Althusser visitava-o aos domingos pela manhã; em análise,

teria chegado à seguinte conclusão: o assassinato de Hélène teria sido um “suicídio por

pessoa interposta”. Diante de constantes melhoras, Althusser passava por desinternações,

muito curtas, com o acompanhamento de amigos próximos. No entanto, o medo de ser

abandonado ao ficar sozinho o apavorava e ele era hospitalizado novamente. Em meados

de 1983, com a ajuda de enfermeiros e amigos, efetua a mudança de todos os seus

pertences para um apartamento que havia comprado com Hélène, no XXe

arrondissement. A atividade de organizar os numerosos livros deixava-o aterrorizado, não

mais do que a pergunta que passou a se fazer, cada vez com maior frequência: “e se eu

recomeçar (a estrangular uma mulher) ”?


138

CAPÍTULO 11. Sujeito do direito e sujeito do inconsciente

A responsabilidade, no campo jurídico, encontra-se preconizada pelo Código Penal: é

a possibilidade do sujeito responder em relação a uma infração por ele cometida. Nesse

sentido, ela não integra o ato, como categoria analítica do crime: se a culpa caracteriza o

crime, a responsabilidade é então fundamento da pena.

“Nessa perspectiva, se alguém é considerado responsável por haver cometido u m


crime, pode ser castigado; do contrário, deve receber um tratamento. A criminolo g ia
atua de modo tal que, ao seguir o diagnóstico de enfermidade mental, produz uma
suspensão do estado de direito de um sujeito. A psicanálise, ao contrário, supõe u m
tratamento dirigido um sujeito... a que sempre se considera responsável por seus atos e
capaz de tomar uma posição ante eles, independente de sua enfermidade”.
(TENDLARZ, 2013, P. 59).

Quanto à culpabilidade, em termos jurídicos, se refere, entre outras definições, a

reprovação de um agente que não agiu conforme o seu dever - tanto quanto a compreensão

e a concepção de livre-arbítrio, inclui-se nas funções conscientes do eu. No entanto, ao

trabalharmos o mito da horda primitiva, apontamos que observamos que para Freud tanto

culpa quanto responsabilidade pertencem à dimensão do inconsciente. Cabe então

esmiuçarmos um pouco melhor a diferença entre culpa e responsabilidade, para Freud e

Lacan.

Para Freud, a culpa é deslocada do campo da categoria para a determinação causal: ela

é estrutural, enquanto fundamento do sujeito do inconsciente. Quando tratamos da

passagem ao ato, vimos que, na psicose ela comparece no real, a céu aberto: a paranoico

tem a certeza de que a culpa é do Outro, e o melancólico está convicto de que a culpa é
139

dele mesmo. Sendo o sujeito neurótico ou não, a culpa comparece a partir do imperativo

superegóico de gozo, pela economia de gozo, e não como um fenômeno do ponto de vista

da experiência.

Em Totem e Tabu (1913), o crime primordial está na base do sentimento de culpa, já

que o amor ao pai retorna através do ódio e da obediência, tal como retoma Lacan, ao

associar os sentimentos ambivalentes em relação ao pai ao fundamento do supereu.

Tratamos no capítulo IX que a renúncia de gozo tem como efeito o fortalecimento do

supereu, que exige cada vez mais renúncias através do sentimento de culpa como uma

retroação dos laços de obediência ao pai morto. A culpa invade então o sujeito, de maneira

avassaladora, impelindo-o à passagem ao ato, o qual é uma solução para tal mal-estar: a

culpa não é uma categoria do crime, mas é a sua causa inconsciente.

Qual seria então a distinção entre culpa e responsabilidade para a psicanálise? Em

conferência realizada em 29 de abril de 2008, no Anfiteatro da Faculdade de Direito de

Buenos Aires (UBA), Miller aponta que “o sentimento de culpa seria a patologia da

responsabilidade”, quando retoma a temática da responsabilidade em Freud, a partir dos

sonhos. Miller nos lembra que Freud não desresponsabilizava seus pacientes pelo

conteúdo de seus sonhos, mesmo que o âmbito da cena onírica fosse o inconsciente, e

nesse sentido, se a culpa é uma necessidade estrutural, a responsabilidade é uma

necessidade que advém no laço social. Porque se a culpa causa, a responsabilidade é um

efeito, é aquilo que o autor visa através de uma sanção.

“Isso significa que a responsabilidade, em sentido amplo, é a resposta desse sujeito


ante a culpa estrutural; é o sujeito em si da culpa, embora não seja o ego a instância que
a reconheça. É o sujeito que se deduz das afirmações produzidas pelo fenômeno da
culpa (ou por sua ausência), diante de um fato criminoso. Essa responsabilidade deve
ser diferenciada da que surge a partir da experiência analítica e permite entender por
140

que alguém deve assumir a responsabilidade por seus sonhos e pelos conteúdos deles.
[...] Nesse contexto, a noção de responsabilidade se identifica com a noção de resposta
e esta, por sua vez, com a noção do sujeito”. (TENDLARZ, 2009, p. 47)

Enquanto a culpa é estrutural, a responsabilidade articula o sujeito ao laço social,

porém, isso não quer dizer que ela (a responsabilidade) não seja inconsciente. Para a

psicanálise, a responsabilidade é inconsciente e singular, e nesse sentido, também não

deve ser confundida com sanção penal. Por isso, partir da autobiografia de Althusser

como paradigma da dimensão trágica do inimputável se torna possível - estão articuladas

culpa, do ponto de vista estrutural, e responsabilidade, o singular desse sujeito, mesmo

que o ato homicida se remeta às sanções penais de determinada sociedade, no caso, a

França.

Lacan (1950) nos aponta que as sanções penais se referem ao Outro de cada momento

histórico e de cada sociedade. A resposta singular de cada sujeito em relação a seus atos

depende, desse modo, do discurso do Outro vigente, ou seja, a possibilidade de

responsabilização exige uma convocação a ser efetuada pelo Direito Penal. A culpa

sempre advirá, pois é estrutural, e inevitavelmente, produzirá como efeito a

responsabilização – como se dará a responsividade do sujeito, a ver, porque, para a

psicanálise, a responsabilidade é sempre singular.

Uma responsabilidade singular

Freud, em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho analítico” (1916), nos

aponta que a determinação inconsciente do ato criminoso não inocenta, mas ao contrário,

impele o sujeito a responder por um desejo, mesmo sem saber sobre sua causa. Nesse

sentido, uma desresponsabilização só poderia atuar contra o sofrimento do sujeito, pois


141

retornará como sentimento de culpa, como uma necessidade de punição, tal como já

tratamos no caso Aimée e como podemos observar em Althusser.

Lacan, no seminário VII, A ética da psicanálise (1960), localiza culpa e

responsabilidade em terrenos distintos, mas articulados: culpa no campo do gozo, e a

responsabilidade no campo do desejo. Então, o sujeito é responsável por seu desejo? Por

sua posição de desejante, e por sua posição de gozo, porque ao se colocar em ato, o sujeito

se assegura por seu desejo, que é inconsciente, e que o move e o causa sem consentime nto,

mesmo que o recalque (neurose), o desminta (perversão) ou o foraclua (psicose).

Segundo Vorsatz (2013), se o desejo não pede autorização, convocando o sujeito a se

tornar responsável por isso que lhe é, paradoxalmente, e ao mesmo tempo, mais

estrangeiro e mais íntimo, ele localiza o sujeito em outro campo, que não o da vontade e

da intencionalidade. Quando um desejo se realiza em ato, não o faz necessariamente a

favor de um bem comum, mas em descontinuidade com a lei jurídica, mesmo que, como

transgressão, a confirme no laço social.

Em seu seminário da ética psicanalítica, Lacan retoma o mito do Édipo em outro

momento, a partir da trilogia tebana, quando o papel de Antígona na dinastia dos

Labdácidas.

Antígona era filha de Édipo e Jocasta, os quais tiveram mais três filhos: Etéocles,

Ismênia e Polinice. Depois de descobrir que Jocasta era sua mãe, e que havia matado seu

pai, Édipo fura seus olhos e é expulso de Tebas por Polinice e Etéocles. Antígona decide

partir com o pai e o acompanha até sua morte, quando então retorna à Tebas e se depara

com um conflito entre os irmãos homens, que disputavam o trono.

Polinice se casa com uma das filhas do rei de Argos e arma um ataque contra Tebas.

O resultado de seu plano é um confronto mortal, do qual nem ele nem Etéocles
142

sobrevivem. O tio deles, Creonte, herda o trono e ordena que Etéocles seja enterrado com

todas as honras, porém determina que o corpo de Polinice seja deixado exposto à

putrefação, como punição por traição. Indignada, Antígona rouba o corpo de Polinice e

ao tentar enterrá-lo com as próprias mãos, é presa. Ismênia tenta demover o tio da idéia,

mas ele é irredutível: ordena que Antígona seja enterrada viva.

A tragédia de Antígona consiste em sua decisão de sepultar o corpo de Polinice,

contrariando as determinações jurídicas tebanas e evocando as leis arcaicas, leis divinas.

“... a maldição dos Labdácidas ou, ainda os crimes de Édipo – que a jovem tebana
assume como sua, em seu próprio nome, em vez de cumpri-la às cegas como se fora u m
destino inexorável. Antígona toma lugar – “voluntariamente” – na cadeia geracional
que a determina. Trata-se, portanto, de considerar a heroína trágica a título de paradigma
da relação do sujeito ao desejo e ao ato, não de idealizá-la”. (VORSATZ, 2013, p. 129)

Ao evocar as leis não escritas, Antígona remonta a algo fundante da própria ordem

humana, e que trabalhamos longamente no capítulo 8. Segundo Vorsatz (2013), com a

criação do direito ático, uma nova ordem política se estabeleceu na pólis grega, quando

uma responsabilidade que implicava o sujeito integralmente foi substituída por outra, de

caráter subjetivo, calcada nos pressupostos da vontade e da intenção.

Digamos que esse seja um paradoxo na história do direito penal, posto que, a

subjetivação da responsabilidade por categorias como o auto-controle, por exemplo,

dispensou cada vez mais o sujeito de responder pelos seus atos – o que atesta um

deslocamento do direito de ato para o direito de autor (TENDLARZ, 2009).

A nova ordem se institui com o advento da escrita, fato que se confunde com o próprio

surgimento das cidades-estado gregas. Até tal momento, as leis possuíam um caráter de
143

transmissão oral, e demandavam um posicionamento singular do sujeito, através do ato e

da palavra. Com a escrita, as leis dispensaram a responsabilização de cada um, já que a

garantia estava em um acordo comum – a aliança da fraternidade – que lhes conferia um

caráter universal, como uma ficção fixada pelo primeiro código jurídico.

As leis não escritas estavam para além do que pode passar pela simbolização, do que

pode se registrar através da história: isso que não pode ser modificado, revogado,

negociado, ou em última instância, prescindir do sujeito – o que não cessa de não se

escrever.

“As leis do céu equivalem às leis do desejo, assim, al ei evocada pela heroína trágica
é homóloga à lei do desejo, que ela afirma como sua. Mutatis Mutandis, o campo dos
deuses também poderia ser considerado um campo que se perde, uma vez que escapa a
toda e qualquer tentativa de positivação. A princesa tebana garante, por intermédio do
seu ato e pagando sua vida, esse campo como lei, determinação que, a rigor, não exist e
fora da perspectiva da responsabilidade – em outras palavras, escolha forçada”.
(VORSATZ, 2013, p. 114)

Desse modo, na tragédia de Antígona duas responsabilidades entram em conflito.

Primeiro, uma que é atribuída em relação ao ato e não à intenção que o move: a que

convoca Antígona a responder pelo que lhe escapa e que a toma sem sua autorização.

Segundo, uma que diz respeito à intencionalidade, e que segundo Tendlarz (2009), na

história do direito penal se converteu nos qualificadores do tipo penal, dolo e culpa, que

presumem a presença ou não, da vontade, da consciência – na tragédia, representada por

Creonte, uma responsabilidade política.

Miller (2008), nos aponta que o termo responsabilidade encontra-se associado à ação

de responder; gramaticalmente, é um verbo que convoca o sujeito, e do ponto de vista da

estrutura, o faz a despeito da escolha, demandando um posicionamento que sempre se dá


144

no après-coup, e nesse sentido remete à ética psicanalítica, assentada na injunção

inconsciente.

Digamos que a decisão de Antígona é radical em sua singularidade, e o crime que

comete, enterrar o irmão, transgride a lei tebana sustentada em uma universalidade.

Lacan, em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960),

noz diz que o sujeito não é a causa de seu ato, mas ela (a causa) se encontra exterior a ele,

sendo o sujeito quem toma para si essa causa; a lei do desejo é nesse sentido

irreproduzível, inapreensível, e sempre transgressora em relação ao que procura

normatizar e universalizar.

Como trabalhamos no capítulo 8, a dimensão do desejo para a psicanálise expõe a

relação paradoxal entre lei e crime: por um lado, ele é a transgressão da lei jurídica que

procura proteger o bem comum; por outro, a transgressão sustenta a singularidade radical

do sujeito, que obedece à uma lei única – a lei do desejo.

No entanto, a própria lei do desejo guarda algo de universal e algo do particular. O

Wunsch freudiano, o desejo inconsciente que comanda o sujeito, apresenta uma

universalidade: a particularidade de sua lei incide para todos, mas todos a cada um. Ao

mesmo tempo, uma particularidade, pois cada sujeito deve responder à sua maneira à

convocação que essa lei efetua. (LACAN, 1960). Segundo Vorsatz (2013), embora a lei

do desejo se imponha para todo sujeito, a maneira como essa imposição se efetua é a mais

singular possível, de modo que, sendo a cada um, tal lei não permite uma validação a

partir de uma positividade, tal como acontece com a lei jurídica.

Nesse sentido, Lacan toma a tragédia de Antígona como um paradigma da relação

conflituosa entre o sujeito, a lei do próprio desejo e a lei jurídica que é a própria

coletividade, quando a princesa tebana questiona a legitimidade do direito, representado


145

pela figura de Creonte. Vale ressaltar que Lacan não aponta a psicanálise como adversária

do direito penal, mas que, ali onde o direito penal incide, que só pode ser pelos a prioris

e pelos laços comuns da fraternidade, algo lhe escapa – a maneira como o sujeito se

responsabiliza será sempre singular, e isto que é universal, o cada um.

Embora o comparecimento do sujeito possa comparecer através da sanção penal,

“catalizando” a possiblidade de responsabilização, o caráter positivo e anterior da lei

preconizada pelos dispositivos jurídicos sempre deixará algo de fora do recobrimento da

lei. Como demonstramos, o conceito de passagem ao ato atesta essa dimensão da lei do

desejo, que só pode se afirmar em ato, impedindo não apenas o direito penal, como

também o sujeito, de criar parâmetros suficientemente capazes de apreendê-la como

objeto de estudo.

A incidência do significante produz como efeito um sujeito que é convocado a uma

tarefa essa que só ele poderá realizar, mais ninguém. A determinação inconsciente do

aparelho psíquico nos aponta que não se pode mais sustentar uma diferença entre o autor

e o seu ato, já que a causa do sujeito prescinde da vontade e do livre-arbítrio. No entanto,

nenhum sujeito é inimputável, pois sua responsabilidade é contingente à sua singularidade

radical. Desse modo, o desejo, em última instância, é desejo de morte.

“... é numa certa relação com a morte, como significante privilegiado do corte
operado pela estrutura da linguagem – que concerne a uma perda constitutiva -, que o
sujeito poderá fazer a experiência, sempre pontual, do desejo”. (VORSATZ, 2013, P.
146)

É o que, pela foraclusão do significante do Nome-do- Pai fica exposto, escancarado,

em Althusser – o desejo alucinatório:


146

“Pois eu estrangulei minha mulher, que era tudo no mundo para mim, durante uma
crise intensa e imprevisível de confusão mental, em novembro de 1980, ela que me
amava a ponto de querer apenas morrer, na falta de poder viver, e talvez eu lhe tenha,
em minha confusão e em minha inconsciência, ´prestado esse serviço´, do qual ela não
se defendeu, mas do qual ela morreu”. (ALTHUSSER, 1986, p. 23)

Irmãs Papin: responsabilidade e estabilização

Ainda interessado pelas possibilidades de interlocução entre a psicanálise e a

criminologia, sobretudo depois do caso Aimée, Lacan toma conhecimento, na década de

30, de um homicídio terrível cometido por duas irmãs, Christine e Lea, que chocou a

sociedade francesa.

As irmãs trabalhavam como empregadas domésticas e, um determinado dia,

assassinam violentamente a patroa e sua filha. Primeiro, cada uma se encarrega de

arrancar os olhos das vítimas. Depois, utilizando utensílios de cozinha, se debruçam sobre

os corpos, esmagando e dilacerando os rostos. Ainda, cortam pedaços das pernas e das

nádegas. Cometido o crime, limpam as armas utilizadas, tomam banho e se acomodam

nuas, abraçadas, na cama.

Durante o interrogatório, as irmãs assumem a autoria do crime, e, na avaliação

psiquiátrica não apresentam quadro sintomatológico que se refira a uma psicose. No

entanto, são separadas no encaminhamento que sucede os procedimentos iniciais e cada

uma, à sua maneira, desencadeia uma psicose. Christine, a mais velha, vai para a prisão,

onde começa a apresentar alucinações, descontrole motor e tentativas de arrancar os

próprios olhos. Lea é conduzida a um hospital psiquiátrico e emudece completamente.


147

Christine é condenada à guilhotina, e recebe a condenação realização de seu desejo

psicótico. No entanto, o juiz revoga a sentença e ela é internada no asilo de Rennes, onde

falece um ano depois. Lea é condenada à prisão perpétua.

Os antecedentes da passagem ao ato se referem à relação espelhada entre as irmãs e a

patroa e sua filha. Mais do que isso, remetem à relação conflituosa com a mãe, da qual a

mais jovem procurava se emancipar legalmente já há algum tempo. A patroa assume o

lugar de mãe repressora, que na relação entre as irmãs é percebida como um terceiro – no

dia anterior, são repreendidas por utilizarem inadequadamente o ferro de passar e, por

conta disso, a energia ter sido cortada.

Lea era o duplo de Christine e vice-versa. A patroa fratura a relação imaginária, e com

a filha entram na cadeia da identificação delirante das irmãs Papin. Diante da solução que

visava extrair o objeto a no Outro e barrar a invasão de gozo, a passagem ao ato, a

singularidade de cada um comparece, quanto aos efeitos de responsabilização e

estabilização.

“... O mal de que intentam se livrar, seu kakon, trama seu destino e no lugar da saída
tropeçam com o frenesi homicida que as isola, sem retorno, de sua paixão fraternal mortal.

A incidência da motivação inconsciente – que pode apresentar-se como o imotivado –


não é suficiente para explicar de forma acabada a passagem ao ato homicida. Por meio dos
conceitos de objeto a e extração do gozo, Lacan inclui as coordenadas teóricas que permitem
dar um passo adiante na captação da lógica do ato do psicótico homicida; isso porque a lógica
do significante e a relação do sujeito com o objeto na perspectiva do gozo ocupam o lugar do
imotivado, mas não são substituídos por ele”. (TENDLARZ, 2013, P. 98)

Nesse sentido, podemos apontar diferenças entre a passagem ao ato de Aimée e a das

irmãs Papin. Segundo Allouch (1990), Lacan é categórico em relação ao ato de Aimée:
148

há um imperativo de fazer algo, e no caso da tentativa de homicídio da atriz algo se

produz, o que não quer dizer que, na agressão à empregada ou ao marido, tenha se

efetuado uma estabilização. A passagem ao ato pode conduzir à estabilização, mas nem

sempre, podendo não produzir efeito algum – em Aimée, o encarceramento estabiliza.

No entanto, se a estabilização implica sempre responsabilização, esta não se encontra

atrelada à primeira. No caso das irmãs Papin, Lea sucumbe ao mutismo, mas isso não

significa que ali não esteja um sujeito, que não há cura possível, e que não haja uma

responsabilidade singular. A questão é que, enquanto Aimée se estabiliza através da

sanção penal que a levou ao encarceramento, a solução encontrada por Lea é deixar-se

morrer através da perplexidade. (MUÑOZ, 2009).

O mutismo foi uma alternativa adotada por Lea, a fim de responder às consequência s

da passagem ao ato empreendida; no entanto, o assentamento subjetivo do sujeito não se

modifica da mesma maneira que no caso Aimée. Em uma há estabilização, enquanto que

em outra não. O que podemos afirmar em termos lacanianos, é que a passagem ao ato de

Lea promoveu uma alteração na economia de gozo, mesmo que de maneira limitada.
149

CAPÍTULO 12. O luto melancólico

Antes de tecermos algumas considerações a respeito da melancolia, cabe efetuarmos

uma distinção importante em relação à paranoia e à esquizofrenia, enquanto tipos clínicos

da psicose.

Se na paranóia o desejo materno permanece enquanto um significante ideal, fazendo o

Outro emergir como o duplo igual e rival, na esquizofrenia o desejo da mãe encontra- se

ausente e diante desse vazio o sujeito se esfacela. Na neurose:

S2 = “Nome-do-pai” / S1 = significante desejo da mãe / X = qualquer coisa que possa significar o desejo da mãe

S2 . S1 = S2 I / x[ ]
S1 x

I (inconsciente) lembra que S1 foi recalcado em virtude da substituição significante. X, o falo, no sentido de
qualquer coisa que possa preencher a falta materna.

Na paranóia, há a foraclusão do Nome-do-Pai, mas há uma sustentação via o


significante Ideal (I), já que o desejo da mãe não foi metaforizado:

𝑆1
→𝐼
𝑋

Na esquizofrenia, além da foraclusão do Nome-do-Pai encontra-se ausente o

significante do desejo da mãe, de modo que sobra ao sujeito a identificação com uma

incógnita, a partir da qual o sujeito não pode constituir tampouco a experiência corporal

primária.
150

X (?)

Nesse sentido, em termos freudianos, enquanto que a paranóia se refere a uma

regressão ou fixação no Estádio do Espelho, o ponto da esquizofrenia se encontra em

momento anterior, referente à desorganização corporal, da pura parcialidade pulsional: o

auto-erotismo, assim como aponta Freud na análise do caso Schreber. Se na paranoia, no

caso Aimée, a construção delirante dá assento ao imaginário, na esquizofrenia o real

encontra-se completamente escancarado, e as alucinações e emancipações corporais se

revelam uma tentativa de cura a outro tipo de organização, da qual não trataremos aqui –

o autismo.

“O investimento nas palavras, a alucinação, o delírio e a arte são tentativas


espontâneas de cura promovidas pelo sujeito na esquizofrenia... Mas cura de quê,
se eles são considerados, como diz Freud, a própria doença? São tentativas de cura
do autismo, da radical exclusão do discurso como laço social . O autismo é a
situação em que o esquizofrênico se encontra; fora de qualquer laço, isolado, p ois
seu investimento todo retorna sobre si mesmo, concentrando o próprio gozo em
seu corpo. Todas as manifestações consideradas patológicas do esquizofrênico são
tentativas de estabelecer o vínculo com os outros ou, segundo Freud, com os
objetos.” (Quinet, 2006, p.53)

Ao contrário da paranóia em que o Outro é consistente, na esquizofrenia ele é como

um fantasma percebido através das alucinações - vozes que falam incansavelme nte

através de uma cadeia significante estilhaçada – como se os significantes aparecessem na

boca do sujeito à sua revelia, sem sentido ou por muitas vezes, impregnados de

significação.

No caso da melancolia, não é difícil encontrarmos tanto questões persecutórias,

quando o Outro é extremamente consistente, quanto fenômenos de corpo que atestam o


151

despedaçamento do sujeito frente um reflexo praticamente inexistente. Observamos isso

em Althusser, a partir da cadeia delirante identificatória que se desliza de Lucienne Berger

até Hélène, como as perseguidoras que abusam e violentam, e na relação fragmentada

com a imagem corporal, como um morto-vivo, e na sexualidade auto-erótica através da

descrição minuciosa dos vegetais. Porém, há uma questão particular de tais fenômenos

na melancolia, porque eles se referem a um luto: a dor da existência.

Em Luto e Melancolia (1915), Freud aponta o luto como uma experiência de dor, que,

apenas cinco anos mais tarde, associará à pulsão de morte. Do ponto de vista econômico,

a dor corresponde à submissão do aparelho psíquico à grande excitação diante da perde

de um ideal, no caso um objeto de grande investimento libidinal. Segundo Berta (2007),

a dor do luto consiste em um rompimento no Simbólico a partir de uma invasão de gozo,

em que se perde o que poderia fazer função de véu frente a castração.

A invasão de gozo está associada a incidência do supereu através do sentimento de

culpa, o qual Freud atribuirá a origem aos crimes fundantes da ordem cultural: o incesto

e o parricídio. A economia de gozo sustenta a culpa superegóica, quando, diante da perda

de um ideal, o sujeito se defronta com a impossibilidade, com a castração. No entanto, se

no luto neurótico o sujeito se identifica parcialmente com o objeto, e mantém com aquele

que se foi uma separação entre a vida e a morte, na melancolia o sujeito permanece como

um morto-vivo, tal como se define Althusser – nem morto, nem vivo.

Se no campo da psiquiatria a melancolia se tornou, e esse panorama ainda não se

alterou, categorias nosográficas que não param de se multiplicar, de transtorno bipolar,

lipemania, hipocondria moral à mania-depressão, segundo Quinet (2006), Freud a

caracteriza de maneira suscinta, como uma depressão profunda marcada pelas auto-

acusações, pelas auto-injúrias e pelo desejo de auto-punição, colocando-a em série com a


152

esquizofrenia, a partir de manifestações em comum, como a hipocondria e os distúrbios

de linguagem.

Então, Freud (1913) define a melancolia ao tratar da incorporação do objeto perdido,

que se faz a partir da identificação à mercê das pulsões parciais, pelos cheiros, pela voz,

pelo olhar, por um detalhe; na melancolia, o eu se identifica totalmente com o objeto, o

lugar do luto, sem que o processo de introjeção seja metaforizado. No caso, Freud

apontará que há na melancolia uma introjeção não metaforizada do pai – luto eterno pelo

pai morto, pelo vazio que fora deixado, vazio da própria existência do sujeito.

Quinet (2006), denomina, apropriadamente, a dor do melancólico como uma

hemorragia a escorrer pelo furo que a foraclusão do Nome-do-Pai efetua no simbólico,

ou, em outras palavras, o luto melancólico é pelo pai, não o pai-morto, mas o vazio que

este deixa e que é incorporado, definindo o próprio ser do sujeito – um vazio.

“Ao contrário da negação na neurose – que, dialeticamente, nega afirmando e afirma


negando, e cujo mecanismo de Verneinung é um índice do recalque -, a negação na
melancolia é um índice da foraclusão do Nome-do-Pai: é uma negação da própria
existência do que é negado. Trata-se de uma negação que abole, zerifica. Eles não têm
nome, não têm idade, não nasceram, não têm pai nem mãe”. (QUINET, 2006, p. 194).

Althusser e o luto impossível

Vejamos então como a questão desse luto impossível de se realizar aparece no caso de

Althusser. Primeiro, a questão da morte imbricada ao desejo familiar, o qual ele nomeia

por desejo especulativo.

De certo, temos esse ponto inaugural que é receber o nome do tio, Louis: é o homem

que a mãe amava, mas que morrera. Retomemos a tabela que trata da escanção delirante
153

do nome, que ele efetua, a partir da qual poderemos tratar de alguns fenômenos

elementares da melancolia.

Nomeação sujeito/ação Designação


Lui ele, o tio morto
Lui ele, o Outro que ordena
Althusser
Louis Oui sim, ao desejo materno
Ouis Eu ouço, eu gozo
Louis(e) A amante do pai
Althusser Sobrenome foracluído

Louis, é um sim ao desejo materno, é o significante-mestre (S1) que comparece

exteriorizado com toda a sua consistência através das exigências superegóicas, o Outro

que ordena, entre o pai e a mãe, nas alucinações: “(faça-a) feliz!”, “agora, meu filho, você

é um homem!”, “você é jovem demais para amar!”. A resposta a esse mandato é eu ouço,

eu gozo, da posição de objeto de desejo do Outro, para ser abusado, violentado, estuprado,

sodomizado.

Se o luto melancólico é da ordem da impossibilidade de elaboração de um vazio, então

é o luto por algo que não morreu, e que de algum modo ainda vive sob a forma de um

fantasma assustador. É o Pai da Horda, aquele que diante de Lucienne Berger soube

ocupar junto dela o lugar de Louis, ele o morto, mas que Louis que não o próprio

Althusser que na sombra do tio morto nunca pudera existir? Temos então a dimensão do

pai desarticulada em relações triangulares, sem a dialetização fálica, pois, com o ato de

assumir o lugar do irmão, o pai deixava “tudo em família”.

Primeiro triângulo, é o pai que goza, que come a mãe, o pai lobo que uiva durante a

noite, como um lobo à procura de sua presa. É o que amedronta Althusser durante as
154

noites e que comparece no real, na escuridão do banheiro para despregar a glande do filho;

na escuridão, é o pai que atua a voz materna: quando sai do jantar, ordena a Althusser que

faça sua mãe feliz – faça-a (ela, a mãe, feliz). Althusser é o que a mãe deseja, sendo essa

a face terrível da mãe: a mulher que invade seu quarto, que o proíbe de se enamorar de

Simone, que expõe o púbico de Althusser para o público, a que “coloca a mão em cima”.

Louis Charles (o lobo)

Lucienne (a mãe)

Segundo triângulo é o pai estuprador, aquele que rouba, violenta e priva a mãe de

trabalhar. Aqui a mãe assume a face-mártir, com a qual Althusser se identifica na relação

especular, como a “chaga aberta que sangra” e que padece ao empalhamento, o i de Louis

que é escutado como a estaca que pode ferir, tal qual na alucinação das Cruzadas. Nesse

sentido, se Althusser é mártir como a mãe, ele pode assumir seu lugar junto ao pai, não

como a esposa, mas como a mante, Louis(e) – é o objeto de desejo do pai: faça-a feliz,

faça ela, papel de mulher.

O empuxo-à-mulher está articulado ao empuxo-à-gozar. A articulação do Nome-do-

Pai ao significante fálico, pelas etapas lógicas de ser/não ser e ter/não ter o falo materno,

é no jogo das posições – identificações – em relação ao significante da falta (o falo) que

o sujeito se revela frente à castração: como homem ou mulher. Esse duplo efeito da

castração, a inclusão da falta no Outro e a inscrição do sujeito na partilha sexual, não se


155

opera com a foraclusão do Nome-do-Pai, e o sujeito fica à parte do discurso, à parte da

inscrição no conjunto dos sexos.

O empuxo-à-mulher, característico da estrutura psicótica, nos é apontado por Freud na

leitura do caso Schreber, através do lugar de mulher que o presidente assume em seus

delírios. Ao ser nomeado para o Tribunal de Apelação, a crise de Schreber é sucedida

pela construção delirante de que ele deveria, primeiro, ser a mulher-objeto para abuso de

todos os homens; se ele não é o falo materno, e diante de um pai castrador, lhe resta se

identificar a essa posição – a mulher que se empresta como falo ao homem para que possa

reaver o que a mãe deseja. Do lado da mulher, sem acesos ao significante fálico, não

podendo se perceber como homem, Schreber restaura a experiência de satisfação

primordial, como o que preenche a falta do Outro, agora encarnado na figura de Deus –

aquele que escolheu Schreber, dentre todos os homens, para ser A MULHER de Deus.

Em seu delírio o presidente se reassume como “Sua majestade, o bebê”. Deus aparece

como o Outro que goza e que, enquanto instancia superegóica, dita a Schreber de maneira

terrorífica o que deve ser feito.

Louis(e) Charles

Lucienne

Althusser ao se ver refletido no espelho não conseguia ver nada mais do que uma “fraca

menininha”, lugar diante da mulher que amava, Hélène: “ela, uma mulher, naquele

tempo: era um homem... perto dela, era uma mulher”. A mesma situação se observa na
156

cena em que presencia a avó materna urinando em pé, “tal como um homem”: sem a

dialetização fálica, fica a questão se ela é um homem ou uma mulher, ou, “eu sou um

homem ou sou uma mulher” – mulher-homem, morto-vivo.

Um terceiro momento dessa relação é quando o pai assume o papel de cúmplice, esse

que ensina Althusser a “passar a perna”, primeiro traço da possibilidade de construção de

uma estabilização pelo delírio de “ser o pai do pai”. No entanto, é o pai zerificado, a figura

transparente que adentra a cabana, e de cujo contorno só se pode apreender o charuto da

marca do dirigível que se incendeia e despenca ao mar. É o sobrenome foracluído,

Althusser, a introjeção de um vazio que é o próprio sujeito.

Cúmplice de quem então? Da mãe: a cena da briga entre as mulheres, na qual o homem

nada faz, mas apenas indica “ela tem um revólver”.

Mulher ameaçada Homem

Mulher com o revólver

“Duas balas no cano para minhas filhas e uma terceira ao alcance da mão para mim”,

é o primeiro registro da morte, reeditada na cena da briga. A morte é o significante que

articula a constelação delirante de Althusser, o qual carrega o temor de perder um corpo,

mas que já não existe. No desejo especulativo, ela era um nada, um vazio, como ele diz:

“céu de um passado sempre presente, um céu infinito”, ou seja, a eternidade.


157

Uma tampa para o vazio

Quinet (2006) realça a qualidade do objeto perdido, do qual Freud trabalha no

desencadeamento melancólico, como semelhante ao processo de luto:

“Freud chama essa pessoa que morreu de objeto, mas não se trata do objeto pulsional
(o objeto a). Se essa perda é da ordem de um ideal, o que temos em jogo é u m
significante-mestre que poderia ser sustentado por alguém, ou um significante
idealizado [...] Quando esse significante é perdido – ou a sua sustentação -, ele não pode
mais ficar nesse lugar, e a melancolia é desencadeada, pois o sujeito se vê diante desse
“furo no psiquismo”. (p. 205).

Nesse sentido, o que se perde é um significante que é o ideal de eu, o traço deixado

pelo Outro a partir do qual o sujeito pode se situar frente o que esse Outro deseja, o eu

ideal. O eu ideal, a imagem narcísica, é constituído através do ideal do Outro e com a

perda do significante que o sustenta, e no caso da melancolia, a imagem com a qual o

sujeito se identifica estilhaça, desmorona e advém o empuxe-à-gozar superegóico

avassalador.

Segundo Berta (2007), Freud nos aponta três momentos para tratar do processo de

elaboração do luto: 1) uma escolha amorosa, ou seja, a eleição de um significante ideal

sobre o qual o sujeito possa se sustentar; 2) há a perda de objeto, a partir de uma decepção

ou do desaparecimento do objeto pela morte; 3) o sujeito redireciona sua libido, ao retirar

o investimento do objeto perdido para um outro ideal. Na melancolia, algo de outra ordem

é desencadeado no terceiro momento, o da elaboração, quando ao se identificar com o

objeto perdido, como diz Freud, “a sombra do objeto cai sobre o eu”.

Segundo Pommier (1998), em sua análise singular da melancolia de Althusser, nos

aponta que a perda do ideal colocava o filósofo frente a esse lugar de desaparecido,
158

quando assumia o amor de outro, o tio morto, tomando para si as consequências desse

drama que era foracluído – ele era o noivo morto, alguém que fora amado no lugar de

outro e por uma coisa que não era. O lastro do desejo especulativo comparecia, através

desse nome: dar o nome de um morto a um vivo, demandando ao sujeito que ocupe tal

lugar dando conta desse amor que se dirigia a um cadáver.

Diante desse desejo de morte, é preciso recriar algo que faça véu, algo que possa

tamponar tal vazio, o da própria existência – essa tampa é o ideal. O primeiro momento

da edificação desse ideal, pela interpretação delirante, é a criação de “Jacques Althusser ”,

que é uma reconstrução do pai potente totêmico, enquanto uma estabilização pelo

imaginário. É a cena alucinatória da jacquerie, com Pierre Berger como a primeira

invenção da série ser “pai do pai”, através da impostura, disso que está no lugar de outra

coisa.

Jacques, a invenção althusseriana, é fragmento da jacquerie, e remete à figura do avô:

o que ensina a semear, a plantar, que perpetua a vida, incluindo Althusser no conjunto

dos homens, onde poderia ser reconhecido dentre “verdadeiros homens”. Segundo

Pommier (1998), o artifício da impostura é uma defesa contra o desejo especulativo que

impedia Althusser de “existir por ele mesmo”, contra o que sentia como da ordem do

abuso e do estupro frente as demandas parentais. Althusser só poderia existir por meio de

tais imposturas, e a sucessão de fracassos de cada impostura, alternadas com crises

depressivas, caracteriza o ciclo maníaco-melancólico.

Se na metáfora paterna há uma articulação entre o eu ideal e o ideal de eu, na psicose,

com a foraclusão do Nome-do-Pai isso não ocorre. Temos a série de invenções do pai,

ato de se dar um pai imaginário, que ao fim do delírio seria ele próprio, o filho: 1º) Pierre

Berger, o avô que semeia; 2º) Sr. Richard, que podia exercer o papel da mãe que Althusser

amava e que o amava reciprocamente; 3º) Dr. Zeghers e Robert Daël, no campo de
159

concentração, onde pôde exercer a vocação melancólica de desaparecido (morto-vivo );

4º) Marx, “pensar em seu lugar o que ele deveria ter pensado”. A invenção do pai é uma

proliferação significante, a megalamonia da criação do centro de estudos, o CEMPIT,

onde Althusser é um mártir a salvar a mãe, a irmã e Hélène, a face do objeto a como causa

do desejo. É como o kruppier, objeto agalmático do pôquer, aquele que dá as cartas e se

faz causa do jogo. No entanto, a missão impossível fracassa quando a imitação, o

fundamento do artifício da impostura atinge o seu limite, e o personagem da série paterna

desaparece, evocando o luto permanente.

“Não é esta a solução elegante que propõe com... “Pai do pai”? Não é que se inventa
bruscramente um pai: ele mesmo representa a esse Pai do pai que está inventado, e põe
assim em cena as duas instâncias da paternidade necessárias para fazer cesar as auto -
acusações. Fazaer nascer de um lado e matar de outro: entre o surgimento do pai
inventado e o enterro do pai morto o sujeito assume um risco extremo, o da queda em
abismo quando de certo modo estes dois pais cruzam seu olhar 15 ”. (POMMIER, 1998,
P. 128)

No mito da horda, o pai está morto e assim permanecerá para todo o sempre. No

entanto, no caso da neurose, o pai imaginário comparece como uma invenção sintomática,

quando ganha os atributos daquele que sabe sobre o desejo materno. Na psicose, o pai é

inventado para ser morto, porém com a introjeção total, quando o sujeito se identifica

com o ideal, apresenta-se a problemática do destino de um cadáver.

A incorporação pela imitação, das vozes, dos gestos, da letra, dos cacoetes do pai

inventado, permite à Althusser assumir uma existência, quando se localiza em uma cadeia

15
Do original em espanhol: “No es esta la solución elegante que propone con… “Padre del padre”? No es que se
invente bruscamente un padre: él mismo representa a ese Padre del padre que está inventado, y pone así en escena las
dos instancias de la paternidad necesarias para hacer cesar las autoacusaciones. Hacer nacer de un lado y matar del otro:
entre el surgimiento del padre inventado y el entierro del padre y a muerto el sujeto asume un riesgo extremo, el de la
caída en abismo cuando en cierto modo estos dos padres cruzan sus miradas”. (p. 128)
160

geracional, pois, a imitação efetua uma passagem da figura do professor à figura do pai.

Segundo Pommer (1998), a imitação consiste na incorporação do que o próprio sujeito

inventou, de modo que, ao atravessar o espelho dessa relação narcísica, a ponto de se

tornar perfeitamente aquele que fora imitado, o melancólico só pode encontrar o mesmo

vazio do qual partiu. Do lugar de sombra de um ideal, o sujeito passa a ser o próprio ideal,

a partir de uma injunção de eu ideal com ideal de eu – ao final, resta um cadáver que é o

próprio sujeito.

“Pois bem, agora que se inventou um novo pai, ainda é preciso resolver,
simultaneamente, o problema do cadáver anterior [...] conjuntamente com ele, u m
bricolagem que comporte os pais, capaz de resolver o problema do pai já morto e ao
mesmo tempo de propulsar sobre a cena um novo pai a se matar. É fácil encontrar o pai
a se matar: é o pai objeto da provocação (por isso, a melancolia se inverte em júbilo e
as auto-acusações se interrompem, pelo menos até sua realização). Mas, onde pode se
encontrar o que já está morto? Pois bem, Althusser mesmo irá cumprir este papel, posto
que o introjetou na fase precedente 16 ”. (POMMIER, 1998, p.128)

Concomitante aos episódios maníacos, observa-se um período de intensa produção e

publicação, quando identificado ao objeto agalmático, Althusser se debruça sobre uma

produção de conhecimento capaz de dar conta de salvar o marxismo: ser o pai do pai, pai

de Marx, pai dele mesmo, ele mesmo pai, ele mesmo ser salvo. No entanto, o pólo

maníaco concluído efetuava inevitavelmente um giro ao pólo melancólico: através do

assassinato do pai inventado, que descambava ao suicídio, e pelas publicações.

16 Da versão em espanhol: “Pues bien, ahora que se ha inventado un nuevo padre, aún se precisa resolver,
simultáneamente, el problema del cadáver del anterior! […] conjuntamente con ello un bricolaje que comporte dos
padres, capaz de resolver el problema del padre ya muerto y al mismo tiempo de propulsar sobre la escena un nuevo
padre al que matar. Es fácil comprender dónde se encuentra el padre al que matar: es el padre objeto de la provocación
(mientras, la melancolía se invierte en júbilo y las autoacusaciones se interrumpen, por lo menos hasta su realización).
Pero, dónde puede encontrar-se el que ya está muerto? Pues bien, Althusser mismo va a cumplir este papel puesto que
lo introyectó en fase precedente!”.
161

O pólo melancólico jogava Althusser de frente ao desejo especulativo, pela

pulverização da sua tentativa de existência pela impostura (o desejo prático real). É

concomitante às internações, caracterizadas por Althusser como esse momento em que

“só me restava abandonar-me a meu ´destino` e cair naquilo que eu desejava, realizar

minha verdade, não mais existir, desaparecer do mundo e ser hospitalizado... ter a

assistência de todos”.

A perda do ideal, o pai inventado, revela a outra face do objeto a, dejeto do Simbólico,

tal como nos aponta Quinet (2006):

“Já na melancolia, quando desaparece aquilo que tinha uma função de suplência da
foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito se vê jogado nessa identificação com o objeto,
dejeto, largado pelo Outro: o sujeito se identifica com o objeto a. Há um real não-
simbolizado. Desvela-se a própria estrutura do supereu, que toma a dianteira; o sujeito
é então tratado sadicamente como rebotalho pelo supereu [...] o objeto a em seu status
de rebotalho do Simbólico, o objeto a como o vazio, o furo no Simbólico, o equivalente
à foraclusão do Nome-do-Pai. O sujeito se torna esse oco sem consistência alguma, esse
nada” (p. 209-210)

É na fase melancólica que Hélène entra na cadeia delirante, como o significante que

reconstrói o casal parental. Pela associação metonímica há uma contiguidade “eu e minha

mãe, morte e minha mãe, a morte e meu pai, a morte e eu”, em que Althusser e a morte

são a mesma coisa. Poderíamos pensar como se as relações triangulares sofressem um

achatamento para uma reta que representasse a relação narcísica, entre Althusser e o casal

parental, com Lucienne e Charles ocupando um mesmo lugar. Nesse sentido, a foraclusão

traz consequências para a afiliação, em que pai e mãe estão colados e serão reconstruídos

ao mesmo tempo, posteriormente, na figura de Hélène.


162

Hélène é essa mulher que na infância fora capaz de matar os pais, uma mulher terrível

tal como Lucienne Berger que o via como um morto-vivo, e que, portanto, também seria

capaz de matá-lo. Ser “o pai do pai” é uma defesa contra esse “colocar a mão em cima”

ou “ter idéias sobre mim”, que na persecução comparece através do Outro consistente, o

supereu exteriorizado que acusa.

O supereu é essa instância penal, o outro do sujeito, o seu próprio mal: objeto a, que

na fase melancólica, é um nada, é a doença venérea que Althusser acredita ter como

punição para uma sexualidade além do destino familiar. Como o avatar voz, o supereu

acusa Althusser pelos males do mundo, pelos pais assassinados, e por esse crime que

permitiu sua existência de maneira marginal: a impostura.

Pólo melancólico e o campo de prisioneiros

Observamos através de Althusser o paradoxo melancólico, pois se o episódio maníaco

é uma defesa contra as demandas superegóicas de gozo, inevitavelmente o sujeito tropeça

e se conduz à experiência de antes. No mesmo sentido, as internações que correspondem

aos episódios melancólicos consistem no desinvestimento radical da libido para uma nova

reconstrução na série paterna, como estabilização.

Temos uma série de internações, que Althusser nomeava como “sair permanecendo

dentro”. O episódio melancólico era a preparação da “traição” do desejo materno, mas

sem, no entanto, deixar de cumpri-lo.

Primeira internação. É o terrível inverno de 1928, quando passa pela primeira vez pela

experiência do asilamento como um apaziguamento – “tanto o lado de fora quanto o de

dentro estavam garantidos”. O protótipo da vivência radical do campo de prisioneiros, o


163

Stammlager, em que a técnica da impostura como traição é articulada à conservação pela

reserva.

O cativeiro nos aponta o princípio da prática da reserva: poupar o corpo do sexo através

da castidade, que perdurou até os trinta anos, na primeira relação sexual com Hélène;

alimentos e dinheiro, assim como os livros; reservas com as mulheres, as paixões

repentinas e casuais que “colecionava”. Althusser era o objeto causa do desejo materno,

a reserva que Lucienne Berger guardava próximo ao seu sexo, a criança que procurava

poupar da vida através das fobias de limpeza, por exemplo. No entanto, era também objeto

dejeto, que ao final de tanta reserva e preservação tem seu uso anulado por conta da

putrefação da matéria orgânica – um cadáver.

Causa e dejeto são faces diferentes de um mesmo objeto, objeto a, e a cada giro do

ciclo maníaco-melancólico, uma se evidencia, mas sem prescindir da outra. Ser “pai do

pai” é ser o pai da mãe, é uma forma de controlar as ingerências do Outro cruel, mas é

também responder ao desejo materno de proteção, e uma tentativa de sedução da mãe –

temos então a terceira internação, a entrada na École Normal Supérieur.


164

CAPÍTULO 13. A passagem ao ato do melancólico

A definição precisa de passagem ao ato para Lacan é: um artifício que pelo qual o

sujeito procura colocar fim ao empuxe-à-gozar superegóico, que comparece pelo objeto

voz através de acusações travestidas de sentimento de culpa – seja culpando o Outro, seja

pela auto-acusação. O caso Althusser e a retomada do caso Aimée e das irmãs Papin é

nesse sentido paradigmático.

Talvez o ponto subversivo do conceito lacaniano de passagem ao ato, em relação à

concepção psiquiátrica, seja a introdução de uma nova temporalidade. O automat is mo

mental em Clérambault, como já tratamos, se refere a um tempo linear, e a passagem ao

ato como um rompimento cronológico, a partir da uma reação agressiva a qual o sujeito

não pode controlar.

“Caracterização ligada a algo que impressiona como da ord em do automatismo, o


automático que se impõe à vontade do sujeito, concepção mecanicista da atividade
psíquica, vinculada sempre em psiquiatria ao organicismo. Esta impressão de
mecanismo e automaticidade se assenta no caráter irruptivo do fenômeno. Se nos
guiássemos por ela, cairíamos no mesmo impasse que situamos na psiquiatria, pois a
passagem ao ato corresponderia a categoria de automatismo mental 17 ”. (MUÑOZ, 2009,
P. 92)

Como trabalhamos na primeira parte, Lacan parte do conceito de automatismo ment al

de Clérambault – anedéicos, assensoriais, e com tonalidade afetiva neutra – circunscre ver

o delírio e a alucinação também como fenômenos elementares, e sobretudo, por uma

17 Do original em espanhol: “Caracterización ligada a algo que impresiona como el orden del automatismo, lo
automático que se impone a la voluntad del sujeto, concepción mecanicista de la actividad psíquica, vinculada siempre
en psiquiatría al organicismo. Esta impresión de mecanismo y automaticidad se asienta en el carácter irruptivo del
fenómeno. Si nos guiáramos por ella caeríamos en el mismo impasse que situamos en la psiquiatría, pues el pasaje al
acto correspondería a la categoría de automatismo mental”. (p. 92)
165

concepção estruturalista, enquanto verbais. Se Lacan coloca a interpretação delirante na

mesma ordem que o automatismo mental, assim não o faz com a passagem ao ato, pois,

como observamos no caso Aimée, é uma solução que visa a resolução do delírio. Nesse

sentido, a passagem ao ato é secundária à elaboração delirante.

Com o avanço de seu ensino, Lacan articulará a passagem ao ato aos registros do

Simbólico, Real e Imaginário. Supor uma face simbólica no ato, implica em considerar

que uma ação desse tipo só poderia ocorrer no mundo da cultura: não é nem uma ação

propriamente dita, tampouco uma conduta ou reação, é um tipo de ato. Se a passagem ao

ato é um ato simbólico direcionado para uma resolução, ela implica uma historicidade, o

que a coloca fora do terreno das condutas torpes da psiquiatria. (MUÑOZ, 2009).

Nesses termos, a temporalidade da passagem ao ato é a temporalidade lógica da

resolução delirante, e apresenta a estrutura de qualquer ato, com a diferença da

antecipação efetuada pelo tempo de compreender. No caso de Althusser, o instante de ver

é a invasão da angústia, no episódio melancólico, deflagrado pela cirurgia da esofagite –

a intervenção cirúrgica é um ato no real que afeta o lugar da incorporação do pai

inventado, sobretudo porque remete à função da alimentação no processo de introjeção,

que na psicose não está metaforizada. O tempo de compreender é a interpretação delirante

que inclui Hélène na cadeia de significantes parentais, que na verdade não está suprimido,

mas que antecipa a conclusão homicida e só advém après-coup.

A estrutura temporal da passagem ao ato é então uma urgência de conclusão, tal como

observamos o homicídio de Hélène em cinco episódios diversos, encadeados. O primeiro

deles é a cena do estádio, quando Althusser entende que os tiros disparados eram

destinados a ele; acompanha esse instante de ver, a alucinação das Cruzadas – sangue

jorrando, corte das espadas e empalhamento, ou seja, há um Louis morto atrás dele, uma

estaca/pênis que o atravessa.


166

O segundo episódio é a tentativa de suicídio, quando recebe do pai como presente uma

carabina nove milímetros. O pai o ensinara a atirar, e Althusser tinha terror em matar,

porque tinha a certeza que se ele fosse o alvo, não erraria mais e seria certeiro. No bosque,

advém a idéia de tentar se matar, dirige a carabina ao órgão da digestão, o estômago, e

algo o detém – nunca soube o que nem o porquê.

O terceiro e o quarto tempo dizem respeito às experiências de orgasmo: a primeira

polução noturna e a primeira relação sexual. A ejaculação é como “a pequena morte”,

dado que nunca se masturbara e só o faria no campo de concentração, quando ao alcançar

o clímax desmaia. A primeira vez com Hélène é percebida como um estupro: se diante de

Hélène, que era uma mulher- homem, ele se sentia uma mulher, era ele quem era

penetrado, e não apenas isso, empalado, submetido ao pai imperador, tal como fora

Lucienne Berger, sua mãe. Segue-se mais uma internação, dessa vez nada apaziguadora,

mas desastrosa, cuja culpa foi atribuída à Hélène: “a culpa de tudo era de Hélène”.

Ao quinto episódio, temos “o fósforo” da pólvora que percorre a construção delirante

e os fatos que antecedem o homicídio. A crise no esôfago, a cirurgia e o estado catatônico

do qual nunca se recuperou completamente; a decisão de Hélène de abandoná-lo e então

o delírio suicida. O momento de conclusão é antecipado quando essa construção

historizante é suprimida e só se efetuará na autobiografia – “o destino havia se

cumprido”.

O delírio suicida

Pommier (1998) nos aponta que o encontro entre Althusser e Hélène foi definitivo e

total: a relação sexual o coloca frente ao vazio foraclusivo e, ocupando diferentes papéis,

ela se torna o significante primordial nos episódios melancólicos, momento em que a


167

passagem ao ato acontece. Embora Althusser tenha relegado à Hélène o papel de sua

salvadora por conta do aborto que ela fizera, ela se tornou o principal elemento da

persecução, evidenciando a natureza da relação do psicótico com o outro, que é sempre

especular, narcísica.

Hélène primeiro assume o traço identificatório materno, seja como aquela que coloca

“as mãos sobre ele”, seja como a mártir que não pode fugir dos abusos do Outro. Depois,

é um personagem da série paterna, mas não como “pai do pai”, e sim como quem pode

rivalizar com Charles - Althusser e Hélène se casam apenas após a morte do pai (dele) –

e, portanto, exercer um papel viril e em determinado momento, em sua opacidade, pode

abandoná-lo. Em terceiro, Hélène é seu duplo, pois é uma mártir como ele, alguém que

ocupa o mesmo lugar a ele destinado na injunção das famílias Berger e Althusser.

Pommier (1998) indica a função de duplo ocupada por Hélène, enquanto prova da

possiblidade da impostura de trair o desejo materno, mas sem deixar de realiza-lo, e que

tem seu protótipo na experiência da internação:

“Se Althusser considera que Hélène o salvou, é porque duran te a internação ela
havia se apresentado como uma irmã caridosa. Situada no exterior do asilo como está
do Partido, se identifica como a irmã excluída do campo dos homens, ao mesmo tempo
fora e dentro. Representa o que ele mesmo teria feito se houvesse ous ado sair do campo
de concentração. [...] Graças a ela pode preparar um plano de evasão análogo ao que
forjou no stalag. Seja no campo de concentração, no manicômio, no Partido ou na
Universidade, por todas as partes reina a ordem da sociedade dos irmãos varões, ordem
persecutória porque impõe sempre uma excessiva docilidade ao domínio de um pai. [...]
Já antes de sua hospitalização e através de Hélène [...] Althusser via diariamen t e
realizado diante de si o sonho do stalag 18 ”. (p. 178)

18 Do original em espanhol: “Si Althusser considera que Hélène lo salvó, es porque durante la internación ella se
había presentado como una hermana caritativa. Situada en el exterior del asilo como lo está del Partido, se identifica
con la hermana excluida del campo de los hombres, a la vez afuera y adentro. Representa lo que él mismo habría sido
si hubiese osado salir del campo de concentración. […] Gracias a ella puede él preparar un plan de evasión análogo al
que forjó en el stalag. Sea en el campo de concentración, en el manicomio, en el Partido o en la Universidad, por todas
partes reina el orden de la sociedad de los hermanos varones, orden persecutorio porque impone siempre una excesiva
168

O homicídio de Hélène é a resolução de um delírio suicida. Em Luto e Melancolia

(1915), Freud traz sua interpretação da auto-acusação como um fenômeno fundame nta l

na melancolia, quando o sujeito se acusa pela perda do objeto e pelas dores do mundo.

No entanto, a auto-acusação, através do mecanismo defensivo da projeção, se transforma

na acusação do Outro, o que nos traz a questão da relação da melancolia com a paranoia.

Lacan explicita que a constituição do eu é paranoica, e que, na psicose, com a ausência

do velamento fálico, a relação com o outro encontra-se pautada pelo tensioname nto

paranoico – ou eu ou o Outro. Podemos supor que, dada a experiência analítica de mais

de vinte anos, Althusser efetuou uma paranoização pela transferência. A solução suicida

pode evidenciar tal dimensão relacional da psicose, no entanto, no caso de Althusser, a

auto-acusação, de fato, não ocorre da mesma maneira que na paranoia.

A primeira tentativa de suicídio de Althusser teve seu lugar na infância, quando dirige

a espingarda à barriga. O ato não se concretizou por uma razão que é por ele

desconhecida: “algo me deteve, não sei o que nem o porquê”. O mesmo acontece no

episódio quase cinquenta anos mais tarde, quando mata Hélène: diante da decisão que a

esposa havia tomado, abandoná-lo, ele ameaça suicidar-se e assim, de repente, como na

cena da espingarda, ele chega à conclusão de que quem quer se matar é ela.

Esse é o mecanismo projetivo, o mesmo que Freud descreve no caso do presidente

Schreber, ao tratar da relação persecutória com dr. Flechsig. Na melancolia, o Outro é

também fonte de sentimentos ambivalentes, tanto objeto de amor quanto de hostilidade;

no luto impossível. Althusser recria a figura do pai no pólo maníaco, que no processo

identificatório é introjetado até se tornar o próprio sujeito, quando, ao final desse

atravessamento ele decai no abismo melancólico e a necessidade do suicídio se impõe.

docilidad al yugo de un padre. […] Y antes de su hospitalización y a través de Hélène […] Althusser veía diariamente
realizado ante sí el sueño del stalag”. (p. 178)
169

Ele resolve o problema do cadáver do pai pois ele mesmo é o pai, ele mesmo deverá

morrer para que em seu lugar se recrie o mesmo pai.

Temos o momento de concluir “eu o matei”, que é equivalente a “eu me mato”. No

entanto, o mecanismo de defesa projetivo recria o imperativo, ao jogar o desejo suicida

no outro, Hélène: “ela quer se matar”. Na passagem ao ato, de repente Althusser mata

Hélène que na série delirante identificatória assume o personagem parental que quer

colocar as mãos sobre ele e que pode abandoná-lo como um objeto dejeto – “ela quer me

matar”, ou “ela pode me matar”. A paranoização nos dá a impressão de que Althusser

localiza a culpa no Outro, pois ele efetua na escrita delirante o caminho inverso – ela quer

me matar, eu quero me matar, ela quer se matar (ou quer ser morta). O homicídio é então

uma defesa contra o suicídio, e, portanto, um “suicídio por pessoa interposta”.

“Considerar o suicídio como auto-assassinato significa introduzir a implicação do


sujeito na dimensão pulsional: o sujeito sendo ao mesmo tempo o assassino e o objeto
assassinado, o que indica todo o processo “auto” (selbst) do melancólico. Trata-se de
um suicídio pulsional em que a estrutura da pulsão é desnudada. Não devemos esquecer
que Freud, na segunda tópica, afirmará que o sujeito é originalmente masoquista, e que
o sadismo surge depois, a melancolia como pura cultura da pulsão de morte desvela o
masoquismo primário do sujeito”. (QUINET, 2006, p. 207)

A passagem ao ato e o paradigma melancólico

Para Lacan, toda passagem ao ato possui um aspecto imaginário, um simbólico e outro

real. O aspecto imaginário se refere às figuras imaginárias da agressão: Hélène, que

reconstrói o casal parental e assume, ao mesmo tempo, o lugar do Outro abusador, o seu

duplo e a santa a ser protegida – pai, mãe e Althusser, o morto-vivo.

A face simbólica consiste na função desse ato específico. Primeiro, que na verdade o

objeto agredido é um significante que representa o sujeito para outro significante, ou seja,
170

Hélène é o próprio kakon, a invasão de gozo que invade Althusser através do temor de

“pôr a mão sobre mim” e de ser abandonado. Atingindo Hélène ele procura extirpar o mal

interno, quando conclui o delírio suicida como efeito da auto-acusação superegóica.

Nesse sentido, a passagem ao ato remete à Outra cena, ao sujeito do inconsciente.

Se o caráter simbólico da passagem ao ato consiste na direção para uma solução, o

aspecto real diz respeito à natureza do mal interno: é o que não cessa de não se inscrever,

o foracluído no simbólico que retorna no real. É isso que é insuportável, irrepresentá ve l,

o objeto a, que fica de fora da representação pela estrutura simbólica do aparelho

psíquico.

“Por oposição ao imaginário, o real não é a aparência, a imagem. Tampouco é


simbólico senão um efeito do simbólico. Enquanto que este último se constitui por
oposições como presença e ausência, elementos significantes discretos e diferenciais
que inclui a ideia de que algo sempre pode faltar, o real está por fora das oposições
diferenciais e é pleno [...] Se há diferença no real, é introduzida pelo simbólico. Mas
quando o simbólico apreende algum real, deixa de ser real porque foi integrado no
simbólico [...] Por isso Lacan o articula com a impossibilidade lógica 19 ”. (MUÑOZ,
2009, p. 114).

Nesse sentido, a passagem ao ato se caracteriza por uma operação real de conteúdo

imaginário com um efeito simbólico. Segundo Quinet (2006), a passagem ao ato não é

uma estabilização, mas abre a possiblidade para e nesse ponto se diferencia de

construções delirantes como aquela efetuada por Schreber, as quais possuem um processo

19 Do original em espanhol: “Por oposición a lo imaginario, lo real no es la apariencia, la imagen. Tampoco es


simbólico sino un efecto de lo simbólico. M ientras que este último se constituye por oposiciones como presencia y
ausencia, elementos significantes discretos y diferenciales que incluye la idea de que algo siempre puede faltar, lo real
está por fuera de las oposiciones diferenciales y es pleno […] Si hay diferencia en lo real, es introducida por lo
simbólico. Pero cuando lo simbólico aprehende algún real, deja de ser real porque ha sido integrado en lo simbólico
[…] Por ello Lacan lo articula con la imposibilidad lógica”. (p. 114)
171

de edificação diverso, ao ponto de Lacan defini- la, no seminário sobre a angústia, como

uma possiblidade de tratamento via registro do real.

No mesmo seminário, Lacan ainda apontará a melancolia como modelo da passagem

ao ato, posto que na resolução suicida o sujeito encontra-se identificado ao objeto a, tal

como vimos no caso Althusser, que nos episódios maníacos, através do pai do pai, se

fazia objeto agalmático do Outro, e nas crises melancólicas, ao se entregar ao desejo

especulativo de ser morto-vivo, assumia o lugar de objeto dejeto do Simbólico.

Freud (1915) caracteriza a auto-acusação presente no luto melancólico como um

ataque ao narcisismo, que consiste em atravessar o Outro que é sua própria imagem para

extrair o objeto a. O homicídio de Hélène é o assassinato da própria imagem, quando a

perda do ideal desmantela a construção narcísica do eu. Althusser se abandona ao seu

destino, aquele do desejo especulativo, não mais existir, ser um nada, ser o resto do

mundo, reconhecendo-se como o próprio kakon a partir das auto-acusações que o supereu

indica.

Vemos que tanto no caso Aimée quanto em Althusser, a passagem ao ato é um

tratamento pelo real que visa eliminar o kakon, o nome do gozo insuportável que invade

o sujeito diante do retorno do foracluído. No entanto, a melancolia apresenta uma

particularidade que segundo Munõz (2009), a aponta como paradigma da passagem ao

ato: é a máxima radicalidade do desaparecimento do sujeito, que na queda do objeto a

está com ele identificado. A dimensão trágica de Althusser, o desaparecimento, é

paradigma da exclusão radical do sujeito que se efetua na passagem ao ato.


172

CAPÍTULO 14. O futuro dura muito tempo

A desinternação e a possibilidade de entrar em contato com o mundo externo, e de

nele ser abandonado, provocava terror e angústia em Althusser, que se via impotente de

elaborar um luto, pela perda desse objeto representado por Hélène: remetia ao objeto

primeiro, a mãe amada.

“Como se, perdendo o objeto-objetal que comandava todos os meus investimentos,


perdendo a matriz inconsciente de todos os meus sentimentos, eu perdesse ao mesmo
tempo toda capacidade de investimento nos objetos -objetivos discretos, e ao infinito.
Perdia tudo porque perdera o Tudo de minha vida, e vivia o luto. Esse processo de perda
ao infinito era o trabalho psíquico do luto, o trabalho da perda e sobre a perda do objeto-
objetal inaugural” (ALTHUSSER, 1986, p. 241).

Althusser efetua um processo de luto por uma operação que nunca ocorreu – a

metáfora da perda inaugural – e que retorna na perda de Hélène, posto que esta mulher é

contígua à mãe-mártir/estupradora, a do desejo especulativo, do qual Althusser nunca

pode descolar seu “desejo prático real”. Perdendo a matriz inconsciente de seus

investimentos, ele sente-se impotente para investir no mundo externo, nas relações com

o outro, de modo que, pela experiência do luto melancólico, a perda do objeto amado se

traduz pelo abalo da identificação narcísica:

“... eu me sentia mal em todo o meu corpo: os olhos, os ouvidos, o coração, o


esôfago, o intestino, as pernas, os pés, e que sei eu? Literalmente, perdia meu corpo sob
os ataques de um mal universal que me amputava seu uso: eu tornava a cair, assim, em
meu “corpo despedaçado” (ALTHUSSER, 1986, p. 241).
173

Althusser não iniciou um trabalho de luto com a morte de Hélène, mas deu

prosseguimento a um processo de elaboração que se impôs desde sempre: luto pela

própria morte, através do desejo especulativo materno e das mulheres com as quais se

relacionara. Sempre esteve de luto por ele mesmo, e embora tenha sido uma solução

desesperada, limitada, o assassinato de Hélène pôde fornecer um bordejamento do ciclo

infindável entre a fase depressiva e os episódios hipomaníacos, ou que ele denomina,

respectivamente, de impotência total e onipotência para tudo. O “suicídio por pessoa

interposta”, enquanto resolução de um delírio que se acelerou pelo encontro total com

essa mulher, aponta para isso que não tem nenhuma condição: de qualquer modo, ele teria

matado Hélène, o que quer dizer, ele teria se matado.

Como um crime pode ser a resolução de um delírio suicida? O projeto de Althusse r

consistia na destruição de toda a realidade, na qual todos os objetos eram seu apêndice:

“... eu queria destruir tudo, meus livros, Hélène, que eu havia matado, meu
analista, mas a fim de ter a absoluta certeza de me destruir, conforme eu fantasiava em
meus projetos de suicida. Unicamente porque no fundo de mim, inconscientemente,
queria a todo custo me destruir, pois, desde sempre, eu não existia. Que melhor prova
de não existir senão chegar à conclusão de se destruir depois de ter destruído todos os
meus chegados, todos os meus apoios, todos os meus recursos”? (Althusser, 1986, p.
243).

Desse modo, a autodestruição passava “simbolicamente” como ele diz, pela

destruição de todos os amigos dos quais se afastava, das mulheres que fazia sofrer, e da

mulher ao lado da qual passara trinta anos, a qual assassinou. Althusser encontrou outro

caminho para executar sua própria morte e sua vontade de matar, presente desde a

infância, de modo que o trabalho de luto impossível sobre o outro era uma elaboração de

sua auto-destruição.
174

“Mas afinal o que se passou no assassinato de Hélène? ”, pergunta que Althusser se

repete incessantemente.

“E em mim a morte estava inscrita desde o início: a morte daquele Louis, morto
atrás de mim, que o olhar que minha mãe fixava através de mim, condenando -me àquela
morte que ele conhecera nos altos céus de Verdun e que ela não cessava de sentir
compulsivamente em sua alma e na repulsa daquele desejo que eu realizav a
incessantemente” (Althusser, 1986, p. 243).

Através dos artifícios e das imposturas, de ser o “pai do pai” enquanto professor,

político, e filósofo, ele encontrou um meio de existência, embora não os considerasse

autêntico, verdadeiro ou real. A busca da verdade, de se tornar um homem verdadeiro,

fadava seus projetos ao fracasso, e o polo melancólico apontava para um movimento de

destruição de onde uma outra possiblidade poderia se criar – caos e ordem.

A morte de Hélène é a morte da mãe-mártir/violenta, a defesa contra a própria morte:

acertar o outro para não se acertar, fundamento do projeto suicida, cujo início se dera no

episódio da carabina. Matar-se matando o outro, destruindo a todos para então restar o

próprio Althusser, com seu desejo prático real e as infinitas possibilidades do que resta,

o nada. O tudo que o nada permite, a ausência do tempo.

Althusser é desinternado de Soisy em julho de 1983, dando prosseguimento a sua

análise com o “verdadeiro analista”. Em 1985, entre março e maio, escreve sobre a

retenção de seus afetos, no entanto não a publica – este seria seu último escrito, pois nunca

mais publicaria. Foi mantida na gaveta até sua morte, em 1990 - a questão da publicidade,

que sempre rodeou seu nome, embora tenha dito que sempre a recusara. Porém, se havia

um objetivo claro na escrita da autobiografia – reivindicar um direito do qual fora privado

– porque nunca fora publicada? Porque seria sua condenação definitiva.


175

Na melancolia, o melancólico se considera culpado pelo crime que cometeu, o

assassinato do pai. O homicídio carece de punição e para tanto o sujeito edifica um

tribunal, cuja promotoria será o supereu exteriorizado. Nesse Outro tribunal, o sujeito se

auto-acusa através do supereu juiz que deverá puni-lo pelo crime cometido. No caso de

Althusser, cada parricídio cometido e a traição do desejo materno estarão articulados em

outro crime: ele é um impostor.

A relação contígua entre os significantes pudico, púbico, público e publicidade é a

mesma dos três temores descritos por Althusser: ele tinha medo de ser abandonado, de

ser abusado e de ser exposto. Medo de ser exposto pois pela publicidade, o direito como

instância da publicidade, teria o crime da impostura revelado, julgado e conseguiria uma

condenação definitiva. Com o “púbico revelado”, no céu aberto e infinito onde morrera

Louis e o dirigível se incendiara, a pudicidade do público poderá condenar-lhe através do

juiz cruel, o supereu.

“A escritura autobiográfica de Althusser não toma parte daquelas complacentes


rendições que tomam o leitor como uma testemunha de uma existência atribulada. Alega
pela inocência de um autor que se presume culpado, e sobretudo culpado de ser mais
uma vez autor. Em O futuro dura muito tempo, Althusser teria algumas razões para
intentar desculpar-se, mas não foi assim em sua primeira autobiografia, também escrita
no estilo próprio da confissão. Não porque para de uma existência pouco recomendável,
senão porque o filósofo se apresenta assim mesmo de uma maneira lastimosa, cômica,
ridícula, [...] Estas modalidades de apres entação formalizam em seu caso as autocríticas
e autoacusações que caracterizam a melancolia 20 ”. (POMMIER, 1998, P. 147-148)

20 Da versão em espanhol: “La escritura autobiográfica de Althusser no forma parte de aquellas complacientes
rendiciones de cuentas que toman al lector por testigo de una existencia agitada. Alega por la inocencia de un autor al
que se presume culpable, y además culpable de ser una vez más autor. En El porvenir es largo, Althusser tenía algunas
razones para intentar disculparse, pero no fue así en su primera autobiografía, también escrita en el estilo proprio de la
confesión. No porque hable de una existencia poco recomendable, sino porque el filósofo se presenta a sí mismo de
una manera lastimosa, cómica, ridícula, […] Estas modalidades de presentación formalizan en su caso las autocríticas
y autoacusaciones que caracterizan a la melancolía”. (p. 147-148)
176

É possível assegurar que a escrita no caso de Althusser ocupou um papel importante

no processo de estabilização. Esse papel desempenhado pela autobiografia, ou pelos

textos em que apresenta tanto uma teoria própria quanto um retorno à Marx, nos demanda

um trabalho minucioso e detalhado, o que nos conduziria a tratar da relação entre obra,

autor e estrutura. No entanto, nesse momento esse caminho nos é prescindível.

A questão é que após cada publicação, Althusser via se realizar o temor de ter sua

nudez revelada ao público, e ter exposta a sua impostura. O que se sucedia eram as crises

melancólicas e as internações: não à toa, nos antecedentes do crime, se coloca a destruir

tudo o que lhe é contíguo e, portanto, prova de seu crime, incluindo sobretudo os livros.

Se os livros eram redigidos durante os episódios maníacos, ou seja, de construção de um

novo pai, a própria solução delirante continha o passaporte para a regressão ao estado

melancólico, e todo esforço perdia seu valor.

Diante da publicação, Althusser era convocado como sujeito a sustentar seu desejo,

pois as editoras exigiam que ele assinasse o nome-próprio: convoca Louis, o morto- vivo

do desejo especular, e a invenção “pai do pai” através do qual ele reconstrói o ideal, o

sobrenome foracluído, Althusser. (POMMIER, 1998)

Nesse sentido, O futuro dura muito tempo, a própria articulação entre o osso da

psicanálise e o osso do direito penal, é escrito por Althusser sem fim de desculpabilização

ou de justificação do homicídio que cometera. É o relato de sua tragédia grega, cujo

personagem principal é o juiz supereu que o acusa desde a descrição da cena criminosa

pela qual fora declarado inimputável – o próprio Althusser que se declara, de antemão,

culpado. A autobiografia é ao mesmo tempo o julgamento, o veredicto – ele é culpado –

e a possiblidade de defesa maníaca contra o imperativo superegóico.


177

“Freud descreve a melancolia como um ataque do supereu, desvelando-se esse último como
a pura cultura da pulsão de morte. O supereu pode conseguir “levar o eu à morte, se este não
consegue se defender desse tirano”. Mas como o eu se defenderia do supereu? Ora, com a mania.
Para Freud, a mania não é uma defesa contra a depressão, mas sim contra o supereu. O sujeito
escapa do supereu no processo melancólico virando maníaco. Mas como? Freud diz que para
escapar do supereu o sujeito vai se agarrar a um ideal. Podemos dizer que h á do lado da mania
uma tentativa de se agarrar ao Imaginário, mas também podemos supor que o ideal pode ser um
significante de suplência à foraclusão do Nome-do-Pai”. (QUINET, 2006, p.215-216)

Temos o indicativo de que, sendo culpado, Althusser se condena pelo tribunal do

Outro. No entanto, a escrita do condenado não é apenas o retorno do foracluído na

estrutura, mas também o retorno da foraclusão da foraclusão, ou seja, a foraclusão da

estrutura que acontece no discurso, ao ser declarado irresponsável. Do desaparecimento

estrutural ao ostracismo discursivo.

A verdade fora revelada: esse inconsciente é eterno.

“Tenho sessenta e sete anos, mas finalmente sinto-me, eu que não tive juventude,
pois não fui amado por mim mesmo, sinto-me jovem como nunca, ainda que a história
deva acabar brevemente. Sim, o futuro dura muito tempo” (Althusser, 1986, p. 245).
178

CONSIDERAÇÕES FINAIS - Que destino para Althusser?

O que é uma articulação? É uma conexão entre dois ou mais ossos, que são

classificadas de acordo com o tipo de tecido que reveste a área de conexão e com o tipo

de movimento que elas possibilitam aos ossos conectados. A articulação é na realidade a

região de conexão entre duas ou mais estruturas ósseas que não se misturam, mas que se

encostam em determinado ponto de fricção, de tensão, quando do movimento das partes

do esqueleto humano. É nesse sentido, uma região de limites.

Diante da indagação de Althusser, do que não cessa de não se escrever: “o que afinal

aconteceu naquele domingo 16 de novembro entre mim e Hélène, para se chegar a esse

assassinato monstruoso?”, deparamo-nos com isso que escapa ao dizer: o limite do

direito penal, ali na margem onde a psicanálise pode intervir, onde um analista pode

oferecer uma escuta.

Isso quer dizer que o campo jurídico e o campo de uma análise não coincidem: se

edificam a partir de epistemes distintas. No entanto, ao longo da história, a construção de

um lugar para a psiquiatria através das perícias, no terreno de tensões onde o direito

procurou assegurar um status científico, no saber médico, abriu uma frente de trabalho na

saúde mental, em que analista e juiz se encontram por meio das práticas e estratégias de

intervenção.

Freud teceu em sua invenção, o sujeito do inconsciente, as primeiras articulações por

termos comuns com o direito penal, como responsabilidade, em A Interpretação dos

Sonhos (1900), e crime e lei, em Totem e Tabu (1913). No entanto, em Psicanálise e a

determinação dos fatos nos processos jurídicos (1906), aponta algumas restrições quanto
179

ao papel desempenhado por um analista diante das demandas sociais de controle e

segregação legalizadas.

Isso porque o sujeito do direito não é o mesmo que o da psicanálise, o sujeito do

inconsciente. O sujeito do direito é esse atrelado à um humanismo que procura intercalar

a disposição biológica, a determinação social e as categorias psicológicas. A “pessoa”,

termo encontrado no Código Penal Brasileiro referente ao in-divíduo, é o sujeito do

direito, sustentado nos móbeis subjetivos da vontade, da liberdade e da consciência,

resultado de uma produção histórica expressa no texto jurídico.

O dispositivo legal expressa o sujeito do direito e a intepretação dessa ficção simbólica

produz como efeito o sujeito de direitos: aquele ao qual podemos imputar uma

responsabilidade penal. A queixa reivindicatória de Althusser refere-se, nesses termos, a

esse direito do qual fora privado, ao ser considerado inimputável por conta de

enfermidade mental – direito do procedimento penal clássico, o julgamento, com fins de

responsabilização.

No entanto, ao mesmo tempo, a escrita de Althusser implica um trabalho de elaboração

que remete a outro sujeito, então o sujeito do inconsciente. O sujeito dividido, efeito do

significante, e que na psicose comparece exposto, a céu aberto, pela foraclusão do Nome-

do-Pai. Se a cena criminosa evoca a Outra cena, o sujeito é evanescente, e não está na

evidência de categorias a priori, como a intencionalidade.

Sujeito cuja determinação inconsciente desloca o crime para a dimensão do ato. Nesse

sentido, para a psicanálise, a responsabilidade implica o sujeito em seu ato, remetendo - o

a um desejo inconsciente. Se para o direito penal a culpa é concebida como termo

analítico do crime, a psicanálise a localiza na estrutura, como causa do ato.


180

A responsabilidade aponta para uma responsividade à culpa, objetivada através da

passagem ao ato, que promove uma mudança no assentamento subjetivo do sujeito que

comete o crime. O que nos conduz ao caso a caso, retomando a afirmação de Lacan em

A Ciência e Verdade (1966), de que de nossa posição de sujeito somos sempre

responsáveis, uma responsabilidade que é sempre singular.

Entretanto, o Código Penal Brasileiro, assim como qualquer dispositivo legal, concebe

uma lei que seja universal para todo sujeito, mesmo que a ela sejam validadas certas

exceções. Para a aplicação e o cumprimento das leis, o discurso jurídico se utiliza de

dispositivos institucionais construídos historicamente, como as penitenciárias e os

manicômios judiciários, destinos esses para aqueles, respectivamente, imputáveis e

irresponsáveis.

O estatuto jurídico do psicótico enquanto irresponsável aponta para um deslocamento

do ato criminoso em direção ao seu autor, concomitante à substituição da aplicação da

pena pelo tratamento do louco infrator. O saber psiquiátrico e a intervenção da psicologia,

através das perícias e dos pareceres, definiu um novo campo científico, interdisciplinar,

o da criminologia, que procura identificar as variáveis do ato criminoso naquele que o

empreende, com a finalidade de prever, prevenir e controlar.

Sob o rótulo da periculosidade, o sujeito psicótico infrator é submetido a um tipo de

tratamento marcado por uma série de abusos que perpetuam um tipo de violência que fere

esse princípio fundamental do próprio direito penal, a “dignidade humana”. Essa

violência se traduz nas internações infindáveis e compulsórias, prisões perpétuas

travestidas em medidas de segurança- “um futuro que dura muito tempo”, um futuro que

nunca vem, um passado que não cessa de não se inscrever.


181

O sujeito psicótico está no campo da doença mental para o Código Penal: irresponsáve l

pois inimputável e está, portanto, isento de sofrer sanção penal; diante da problemática

do destino do irresponsável, o Código prevê a medida de segurança, dispositivo que abriu

um campo de atuação para o direito frente a loucura.

“Art.96. As medidas de segurança são:

I. Internação em hospital de custódia e tratamento ou, à falta, em outro estabelecimento


adequado.

II. Sujeição a tratamento ambulatorial.

Art.97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará a sua internação. Se todavia o


fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê -lo a
tratamento ambulatorial. ” (Código Penal Brasileiro, 2012, pg. 212)

Nesse sentido, a medida de segurança se materializa sob a forma de internamento em

hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou tratamento ambulatorial, e cabe ao juiz

determinar o prazo da medida. No entanto, o parágrafo primeiro do art.97 não fixa um

prazo máximo de duração, mas estipula um prazo mínimo, de um a três anos,

caracterizando que “a internação, ou o tratamento ambulatorial será por tempo

indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a

cessação de periculosidade” (p. 252 do Código Penal). O doente mental se apresenta no

campo do Direito, portanto, pela estratégia da periculosidade.

Segundo Bitencourt (2011), a medida de segurança não possui o caráter de sanção

penal. A pena se caracteriza por uma aplicação individualizada e se sustenta pela

imputabilidade, sendo sancionada, de acordo com o Código Penal vigente no Brasil, a

partir do crime enquanto um fato concreto e passado e de maneira proporcional à

gravidade da referida infração. A medida de segurança é aplicada aos irresponsáveis ou


182

semi-irresponsáveis, e toma como fundamento a periculosidade do infrator, e nesse

sentido se relaciona ao futuro, ao visar prevenir a reincidência do ato criminoso; seu

intuito é a readaptação individual através de uma “segregação tutelada” pelo Estado, pois

contém digamos um certo valor terapêutico.

Desse modo, o Direito Penal opera a partir de dispositivos legais que regem o comum,

o todo. Enquanto uma produção simbólica, o direito se situa na própria fundação da

cultura, nas relações de aliança que organizam o gozo a partir de uma economia libid ina l

padrão, regida pelas coordenadas fálicas, e que, por mais que haja um esforço para atender

a particularidades de determinados grupos, como por exemplo, através do que possa

proteger políticas identitárias, algo sempre escapa à legislação universal. Seria também

ilusão imaginar que o direito pudesse visar outra coisa que não a normatividade e a

universalidade, sendo esta a sua impossibilidade – o cada um, o caso a caso está para além

de seu campo de intervenção.

Reconhecer tal impossibilidade, no entanto, não nos exime de atentar aos efeitos

desastrosos que a inimputabilidade e a desresponsabilização operam na subjetividade do

psicótico e em suas possiblidades de reinserção social. Desde o sujeito sucumbir ao estado

de mutismo de Lea Papin, até o tormento da auto-acusação de Althusser e seu ostracismo.

Contra a foraclusão da foraclusão, a incidência do direito penal convoca o sujeito à

responsabilização, como um fim que o sujeito busca através do castigo cometido.

Em contrapartida, o discurso analítico opera no caso a caso, no cada um, e seu limite

esbarra em qualquer prática que normatize o sujeito. No entanto, o ponto de discordância

entre os campos não anula a articulação.

A concepção da passagem ao ato a partir de uma perspectiva estruturalista, relacionada

ao real, imaginário e simbólico, despsiquiatriza o termo, quando o coloca como um ato


183

com uma função e um direcionamento de objetivo resolutivo. “Despsiquiatrizar ”,

conceito forjado por Foucault nos cursos do Collège de France (1970-1982), e tomado

por Pablo Muñoz (2009) para caracterizar o direcionamento do ensino de Lacan: des-

psiquiatrizar como subverter os preceitos clínicos psiquiátricos para então reinventá - los

no campo da psicanálise.

A passagem ao ato não se resume à objetividade da ação, preconizada pela psiquiatr ia

e pelo direito penal, mas entende que ela implica o sujeito, sua relação com o Outro e o

objeto a. A psicanálise introduz uma dimensão ética ao crime, como o ato homicida -

suicida de Althusser.

Se a psicose nos aponta a própria condição humana revelada a céu aberto, a passagem

ao ato coloca em jogo a maneira como a responsabilidade está posta para a psicanálise, a

partir de uma epistemologia diversa da jurídica, para além de atributos egóicos como a

intencionalidade. Para a psicanálise, a determinação inconsciente da passagem ao ato não

desresponsabiliza o sujeito, mas ao contrário, convoca-o a responder pelo que faz e pelo

que diz a partir de sua singularidade, e somente ele poderá fazer isso.

Como um tratamento pelo real, a passagem ao ato é uma solução radical que consiste

na destituição do Outro e na anulação total do sujeito. Muito bem que em muitos casos,

como em Aimée, pode conduzir o sujeito à estabilização ou à resolução delirante, mas

isto não é via de regra. A questão é que essa solução desesperada pode abrir um caminho

possível que conduza o sujeito à estabilização, ou àquilo que Lacan denominou, no

seminário 23, O sinthoma (1976) por suplência – mas a passagem ao ato não é suplência.

Ao convocar o sujeito a responder por seu ato, o direito penal oferece a possiblidade

da elaboração da culpa que causa o crime, através da aplicação da sanção penal, o que

produz como efeito a responsabilização. No entanto, isso não significa que o sujeito não
184

irá voltar a cometer o mesmo crime, ou outro crime relacionado, nem que isso apaziguará

permanentemente o sofrimento. Ficamos com o caso a caso, com os efeitos que a

passagem ao ato pode produzir a cada um. Aí a psicanálise comparece, na zona de limite

da articulação entre os dois campos.

Que destino então para Althusser? Deixemos o impasse institucional, o campo da

prática, para um outro momento, mas sabemos que as engrenagens do sistema penal

brasileiro se encontram enferrujadas, pautadas por dispositivos autoritários arcaicos de

controle e segregação. Por isso, nenhuma das duas vias possui um valor terapêutico para

uma clínica das psicoses: nem o manicômio judiciário, nem a penitenciária; nem a medida

de segurança, nem a pena privativa de liberdade.

Então ali na zona da articulação, o direito penal precisa se reinventar.


185

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 21

ALLOUCH, Jean. (1990). Marguerite, ou l´Aimée de Lacan. Paris : E.P.E.L. Éditions,

1995.

ALTHUSSER, Louis. (1976). Os fatos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ALTHUSSER, Louis. (1986). O futuro dura muito tempo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.

BAIMA MORAIS, Ana Paula. O supereu como estrutural do sujeito e o consumo

como o ideal do Outro na contemporaneidade. 117 p. Dissertação de Mestrado.

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, PUCSP, 2011.

BERCHERIE, Paul. Los fundamentos de la clínica : historia y estrutura del saber


psiquiátrico. Buenos Aires: Manantial, 2009.

BERTA, Sandra Letícia. O exílio: vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político
dos argentinos (1976-1983). 132 p. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Área de Concentração: Psicologia Clínica, Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, USP, 2007.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 16.ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.

21
Adotou-se normas da ABNT.
186

BOGADO CUNHA, André Luiz. (2013). “Réu inimputável pode ser pronunciado?”. In:
Carta Forense. www.cartaforense.com.br. Acessado em: 26/10/2015.

BRASIL. Códigos Penal; Processo Penal e Constituição Federal. 8.ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.

BRASIL. Código de Processo Civil e Constituição Federal. 44. Ed. São Paulo: Saraiva,
2014.

CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na


passagem do século. São Paulo: Edusp.

CLÉRO, Jean-Pierre. Le vocabulaire de Jacques Lacan. Paris : Ellipses Édition, 2002.

CORREIA Jr., Rubens. Prefácio. In: TENDLARZ, Silvia Elena. A quem o assassino

mata? : O serial killer à luz da criminologia e da psicanálise. São Paulo: Editora

Atheneu, 2013.

COTTET, Serge. Criminologie lacanienne. Mental, Revue Internationale de Santé

Mentale et Psychanlayse Appliquée, FEEP, n. 21, p. 17-37, 2008.

DELMANTO, Celso (1991). Código Penal Comentado. São Paulo: Ed. Renovar, 2005.

DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. A Culpabilidade e a Perspectiva ontológica


de Liberdade. Justitia (São Paulo), v. 64, p. 66-71, 2007.
187

___________________. Fundamentos da pena. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

EVANGELISTA DE JESUS, Damásio. (1988). Direito Penal. São Paulo: Saraiva.

_______________, (1900). A Interpretação dos Sonhos. In: Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1996.

FREUD, Sigmund, (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 1996.

_______________, (1916]). Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho


psicanalítico . In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________. (1933 [1932]). Ansiedade e vida pulsional. In: Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1926 [1925]). Inibição, Sintoma e Angústia . In: Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1925h). La négation. In : Résultats, idées, problèmes II. Paris: PUF,


1971.
188

_______________, (1917 [1915]). Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira


das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 1996.

_______________, (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um


caso de paranoia (dementia paranoides). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1923). O Ego e o id. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1930 [1929]). O Mal-Estar na Cultura. In: Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1921). Psicologia de grupo e análise do eu. In: Edição Standard


Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1996.

_______________, (1913 [1912-13]). Totem e Tabu. In: Edição Standard Brasileira


das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 1996.

FERNANDES, Andréa Hortélio. “O caso Aimée e a causalidade psíquica”. In: Ágora, v.


IV, n. 2 jul/dez 2001, 73-87.

FOUCAULT, Michel. (1975). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Editora Vozes:


Rio de Janeiro, 1987.
189

____________, (1972). Histoire de La folie à l’age classique. Paris: Gallimard, 1978.

____________. (1975). Os anormais. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

GODOY, Claudio. La nervadura del significante. In:SCHEJTMAN, Fabián.


Elaboraciones lacanianas sobre la psicoses. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2012.

HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio Básico da Língua


Portuguesa. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1999.

IZCOVICH, Luis. Los paranoicos y el Psicoanálisis. Editorial No Todo: Medellín, 2011.

KOLTAI, Caterina. Política e psicanálise. O estrangeiro. São Paulo: Escuta Ed., 2000.

LACAN, Jacques. (1932). De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la


personnalité. Paris: Éditions du Seuil, 1975.

_______________. (1948). A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 1998.

________________. (1966). Ciência e Verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.

_______________. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In:


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
190

_______________. (1955-1956). De uma questão preliminar a todo tratamento possível


da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

_______________. Fonction et champs de la parole et du langage en psychanalyse.


In: Écrits. Paris: Seuil, 1966.

_______________. (1946). Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

_______________. (1950a). Introdução teórica às funções da psicanálise em


criminologia. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

_______________. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu. In:


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

________________. (1960). A subversão do sujeito e dialética do desejo. In: Escritos.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

_______________. (1954). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

_______________. (1956). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2002.

_______________. (1957). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1995.


191

_______________. (1958). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

________________. (1960). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed.

_________________. (1962). O seminário, livro 9: a identificação. Fórum do Campo

Lacaniano de Recife. Inédito.

_______________. (1963). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2005.

_______________. (1975). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2007.

_______________. (1963). Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

LIPPI, Silvia. Os percursos da transgressão (Lacan e Bataille). In: Ágora (Rio de


Janeiro), vXII, n.2, jul/dez 2009, 173-183.

LUTEREAU, Luciano. La forma especular: fundamentos fenomenológicos de lo


imaginario em Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, 2012.
192

MAZZUCA, Roberto. Fenómenos elementales. In: SCHEJTMAN, Fabián.


Elaboraciones lacanianas sobre la psicoses. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2012.

MILLER, Jacques Alain. Nada é mais humano do que o crime. Buenos Aires, 2008.

MINERBO, Marion; DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Liberdade (possível) e


responsabilidade. Normativa ontológica, ideal ou possível, a noção de liberdade
analisada da perspectiva da Filosofia do Direito e da Psicanálise. Conhecimento Prático
Filosofia, v. 28, p. 47-54, 2011.

MUÑOZ, Pablo D. (2009). La invención lacaniana del pasaje al acto: de la psiquiatría


al psicoanálisis. Buenos Aires: Manantial, 2009.

NETO, Fuad Kyrillos. Efeitos de circulação do discurso em serviços substitutivos de

saúde mental: uma perspectiva psicanalítica. 215p. Tese de Doutorado, Programa de

Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, PUCSP, 2007.

OTONI, Fernanda de Barros-Brisset. Desinserção fundamental e laço social. In: Revista

aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol.VI, n.11, nov.2010/abr.2011.

_______________. Loucura, direito e sociedade: um laço de presunções

ideologicamente justificadas. In: Revista RDisan, São Paulo, vol.12, n.3, p.118-124,

nov.2011/fev.2012.

PACHECO FILHO, Raul Albino. O sujeito e a lei: uma contribuição ao diálogo entre
Psicanálise e Direito. In: Psic.Rev. São Paulo, vol. 23, n. 1, 109-127, 2014.
193

PENTEADO, Jaques de Camargo; DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Nova


Proposta de Aplicação de Medida de Segurança para os Inimputáveis. Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), v. 58, p. 4, 1997.

PERES, Maria Fernanda Tourinho; NERY FILHO, Antônio. A doença mental no direito
penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de
segurança. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(2): 335-55,
maio-ago. 2002.

POMMIER, Gérard. (1998). Louis de la Nada : la melancolía de Althusser. Buenos


Aires : Amorrortu editores, 1999.

PORGE, Erik, (1997). Les noms du père chez Jacques Lacan: ponctuations et
problematiques. Ramonville Saint-Agne: Editions érès, 2006.

QUINET, Antônio. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

________________. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitá r ia,


2009b.

RABINOVITCH, Solal. A foraclusão: presos do lado de fora. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2001.

SALUM, Maria José Gontijo. “Invenção e responsabilidade na psicanálise aplicada ao


judiciário”. In: Opção lacaniana, n. 43. São Paulo: edições Eólia, novembro, 2014.

SCHEJTMAN, Fabián. Elaboraciones lacanianas sobre la psicoses. Buenos Aires:


Grama Ediciones, 2012.
194

SOLLER, Colete. Lacan, l’inconscient réinventé. Paris : Presses Universitaires de


France, 2009.

_______________. O inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2007.

_________________. O inconsciente: que é isso? São Paulo: Annablume, 2012.

STRAUSS, Claude Lévi. (1948). As estruturas elementares do parentesco. 3.ed.

Petrópolis: Vozes Ed., 2003.

______________________. (1958). Anthropologie structurale. Paris: Ed. Plon Pocket,

1997.

TENDLARZ, Silvia Elena. A quem o assassino mata? : O serial killer à luz da

criminologia e da psicanálise. São Paulo: Editora Atheneu, 2013.

____________________. (2007). As incidências na clínica das versões do Nome-do-

Pai (III). Asephallus: Revista eletrônica do Núcleo Sephora, v.2, n. 4, mai-out 2007.

VORSATZ, Ingrid. Antígona e a ética trágica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,

2013.
ANEXO

Dados biográficos de Louis Althusser

*16 de outubro de 1918: Louis Althusser nasce na Argélia.

*1928: aos dez anos, durante um ano, vive com os avós nos bosques do Morvan. Tentativa

de suicídio/episódio da carabina.

*1930: muda-se com a família para Marseille, França.

*1932: ingressa no serviço de escoteiros da França.

*1936-1939: cursa o Lycée (equivalente ao ensino médio no Brasil).

*1938: morre o avô materno, Pierre Berger. Paul, companheiro escoteiro, se apaixona por

uma menina.

*1939: ingressa na École Normale Supérieure.

*1939-1945: vive em cativeiro no campo de prisioneiros não-oficiais durante a Segunda

Guerra Mundial.

*1946: começa a cursar filosofia na École. Conhece Hélène.

*1947: primeira relação sexual, com Hélène. Primeiro desencadeamento e internação

desastrosa.

*1948: forma-se em filosofia pela École.

*1967-1978: período de intensa produção intelectual.

*1975: escreve a primeira autobiografia, Os Fatos.


*1979: em virtude de uma cirurgia gástrica, o quadro alucinatório se intensifica, com o

agravamento do pólo melancólico.

*16 de novembro de 1980: Althusser mata Hélène.

*1980-1983: permanece internado, primeiro em Sainte-Anne, depois no hospital

psiquiátrico de Soisy.

*1983: recebe alta e passa pela desinternação.

*1985: escreve suas memórias autobiográficas, mas não as publica.

*1985-1990: permanece no anonimato, entre crises melancólicas e relativas melhoras.

*22 de outubro de 1990: falece em uma clínica psiquiátrica, em virtude de um ataque

cardíaco fulminante.

*1990: publicação das memórias, O futuro dura muito tempo.

Você também pode gostar