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Literatura

Prof.: Gilson Azevedo


Ficha 01

Do lugar onde a vida é de mentira e dos muitos papeis

Amados irmãos do vasto mar, muito teria o vosso humilde servo a contar para conhecerdes a
verdade sobre a Europa. Para tanto, minha fala precisaria ser tal qual a cachoeira que corre da manhã
à noite e, mesmo assim, não seria possível contar tudo pois a vida do Papalagui assemelha-se à vida do
mar cujo princípio e fim jamais se pode ver com exatidão. A vida do Papalagui tem tantas ondas
quanto o mar, a grande água, e pode ser tempestuosa, movimentada, sorridente, sonhadora. Tal qual
homem algum conseguiria retirar a água do mar com o oco da mão, também não me é possível trazer-
vos o grande mar que é a Europa com a pequenez do meu espírito.
Mas não quero deixar de vos contar, pelo menos, que assim como o mar não existe sem água, assim
não pode haver vida na Europa sem a vida de mentira[...]
O lugar da vida de mentira! Não é fácil explicar-vos como é esse lugar que o Branco chama
cinema; explicar-vos tão claramente que vos seja fácil compreender. Em todas as aldeias da Europa,
existe este lugar misterioso, mais procurado do que a casa do missionário; que faz sonhar até as
crianças e ocupa o seu espírito.
O cinema é uma cabana maior do que a maior cabana de chefe de Upolu; muito maior até.
Escura, mesmo durante o dia, e tão escura que ninguém conhece quem está perto; tão escura que se
fica cego quando se entra e mais cego ainda quando de novo se sai. Por esta cabana as pessoas
arrastam-se ao longo das paredes, às apalpadelas até vir uma moça com um fogo na mão a fim de leva-
los até onde há lugar. Os Papalaguis ficam sentados uns junto dos outros, na escuridão, sem se
enxergarem; e a sala escura fica cheia de gente, todos calados; cada um sentado numa tábua estreita; e
todas as tábuas estão em dispostas na direção de uma mesma parede.
Desta parede, embaixo, digamos assim, de uma garganta profunda, vem um zumbido, um
barulho; e assim que os olhos se acostumam à escuridão, vê-se um Papalagui que, sentado, luta com
um baú, batendo nele com os dedos abertos, batendo numas linguetas brancas e pretas, muitas
linguetas, que o grande baú vai apresentando; e cada lingueta range alto, com vozes diferentes cada
vez que é tocada, de tal forma que produz guinchos selvagens, desordenados, tal qual uma briga na
aldeia.
Este barulho todo é para desviar nossos sentidos, para enfraquece-los, a fim de acreditarmos
no que estávamos vendo e não duvidarmos de que é verdade. Na parede brilha um raio de luz, dando a
impressão de uma lua cheia, onde se veem pessoas, pessoas de verdade, que parecem Papalaguis de
verdade, vestidos como eles, movendo-se, andando para cá e para lá, correndo, rindo, saltando, tal
qual existem em todos os lugares da Europa. É como se fosse a imagem da lua na lagoa, é a lua e não é;
é apenas cópia. [...]
Mas é certo que estes homens na parede são homens de mentira, não são homens de verdade.
Se se pudesse agarrá-los, ver-se-ia que são feitos apenas de luz, que não é possível pegar neles.
Servem somente para mostrar ao Papalagui todos os seu prazeres e pesares, suas tolices e fraquezas.
[...]
Estas imagens sem vida, que não respiram, dão ao Papalagui muito contentamento. Nesta sala
escura, ele pode se iludir com uma vida de mentira, sem sentir vergonha, sem ser visto pelos outros. O
pobre fez-se de rico, o rico faz-se de pobre; o enfermo julga-se sadio, o fraco julga-se forte. Na
escuridão, cada um vive uma vida de mentira, que jamais viveu, nem viverá na realidade.
Entregar-se a esta vida de mentira tornou-se uma verdadeira paixão para o Papalagui. Tão grande, às
vezes, que o faz esquecer de sua vida de verdade. É doentia esta paixão porque o homem saudável não
vive a vida de mentira numa sala escura; vive a vida real, com calor, ao sol claro.

SCHEURMANN, Erich. O Papalagui; comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa,


nos mares do sul. 7. Ed. São Paulo: Marco Zero, s/d. p.79-81. (Fragmento)
Vocabulário
Papalagui: termo utilizado pelos samoanos para designar o homem branco, o estrangeiro.

Exercício
Questão 01
O texto apresenta a fala de um chefe samoano, Tuiávii. A quem ele se dirige?
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a) Localize, no texto, passagens em que se pode identificar a quem se dirige Tuiávii..


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Questão 02
Tuiavii procura descrever, de modo minucioso, algo que viu na Europa. O que está sendo descrito por
ele?
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Questão 03
Um mesmo recurso é utilizado por Tuiávii em suas descrições. Leia.

[...]minha fala precisaria ser tal qual uma cachoeira que corre da manhã à noite e, mesmo
assim, não seria possível contar tudo pois a vida do Papalagui assemelha-se à vida do mar cujo
princípio e fim jamais se pode ver com exatidão.

a) Que recurso é esse? Transcreva os trechos em que o recurso é empregado.


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b) Além deste recurso, um outro também está muito presente na fala do chefe samoano.
Observe o trecho destacado.
[...]não me é possível trazer-vos o grande mar que é a Europa [...]

➢ Que recurso é esse?


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Questão 04
Os dois recursos linguísticos utilizados por Tuiávii são figuras de linguagem. Por que ele recorre com
tanta frequência a essa figura em seu texto?

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