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5.

EUSÉBIO MACÁRIO DE CAMILO CASTELO BRANCO

- Pensar sobre a experiência realista-naturalista de Camilo obriga-nos forçosamente a pensar


a paródia, visto que ele mesmo, desde a primeira hora, a anuncia como paródica.
- Nesta obra, Camilo esboça o projeto dos “romances facetos” (designação sua e que
envolve claramente uma carga pejorativa) com claros objetivos à “Ideia Nova” e ao modelo realista-
naturalista. Sabemos que, neste sentido, a partir da década de setenta, começa a projetar, então, este
ataque à nova escola, o qual se materializa, por exemplo, na obra, aqui, em estudo.
- Tal conceção paródica da nova corrente literária, encontra-se, nesta obra, patente, não só no
texto, propriamente dito, como em paratexto, sendo este constituído por vários elementos,
nomeadamente a Dedicatória (em que Camilo afirma, desde logo, o seu intuito de escrever um
romance naturalista), a Nota Preambular, o Prefácio à Segunda Edição da obra e a Advertência, nos
quais o autor estabelece uma espécie de contrato, assente na paródia, na medida em que “o leitor é
avisado que só poderá compreender inteiramente o texto que vai ler se compartilhar do código com
o autor, se o descodificar como um texto paródico”. (Isabel Pires de Lima) É, ainda, e neste sentido,
importante, destacar, o importante papel desempenhado pelo título e subtítulo:

TÍTULO – EUSÉBIO MACÁRIO


SUBTÍTULO – UMA FAMÍLIA NO TEMPO DO CABRAIS

- Apresenta-se, desde o título e subtítulo, como uma nova série ao modo naturalista, isto é,
parte-se do estudo monográfico de uma família, os Macário, para se alcançar uma visão
globalizante da sociedade da época. Trata-se, portanto, de um projeto que procura, acima de tudo, e
segundo a lição naturalista, apreender a totalidade de um conjunto social, partindo da exposição de
um corte desta mesma realidade, ou seja de uma amostra singular desta mesma realidade (princípio
da cientificidade do naturalismo, pensar em ciências experimentais), dado o facto de ser impossível,
de acordo com o princípio da unidade de ação, narrar, em simultâneo, uma pluralidade destas.
- Note-se, nesta linha de pensamento, os exemplos de Zola, autor do qual Camilo se
distancia, e, também, “Os Maias” de Eça de Queirós, obras nas quais os seus autores, tomando,
como ponto de partida, a descrição da dinâmica e as caraterísticas de um seio familiar, cujos
elementos apresentam um papel de maior relevância na diegese, acabam por realizar uma crítica
severa à sociedade, geralmente de classe média/ burguesa (como é o exemplo das obras referidas).
Por outras palavras, embora o título remeta, indubitavelmente para uma única figura, neste caso,
Eusébio Macário, não será, este, o único elemento em causa, a narração incidirá, também, e por
generalização, na sua família, assim como nos ciclos que esta engloba (uma família – neste caso do
protagonista), e na sociedade portuguesa de meados do século XX (no tempo dos Cabrais).
- No entanto, é fundamental notar um outro pormenor – o título e o subtítulo sugerem,
indubitavelmente para a obra “Les Rougon -Macquart, Histoire Naturelle et Sociale d’une Famille
sous le Second Empire” de um outro escrito naturalista, Emile Zola.

NOTA PREAMBULAR
- Embora, Camilo, na nota preambular, anexada à primeira edição, se distancie
completamente deste modelo, remetendo o leitor, pela negativa, para a sua existência, facto é que a
mera referência e o modo como esta se constrói, legitimam, desde logo, a leitura comparativa e
crítica deste modelo.

“Pede-se à crítica de escada abaixo o favor de não decidir já que o autor plagiou Emílio
Zola. Eusébio Macário não é Rougon Macquart: nem uma família no tempo dos Cabrais é
une famille sous le second empire. Sim, eles, os Cabrais, não são perfeitamente o segundo
império.” (Nota Preambular, página 2)

- Como é possível constatar, o autor distancia-se, completamente, do plágio, aproximando-se, ainda


mais, do “pastiche” (fenómeno de imitação ou adaptação , na medida em que o primeiro fenómeno
referido diferencia-se deste último pela omissão da intenção imitativa ou dos empréstimos
utilizados). Embora tal negação seja irrelevante, facto é que a distância garantida entre as duas
obras, a sua e a de Zola, instala, por si só, um certo clima paródico

NOTA:
O pastiche literário, em temros genéricos, refere-se a obras artísticas criadas pela reunião e
colagem de trabalhos pré-existentes. Trata-se, basicamente, de uma imitação afetada do estilo de um
ou mais autores, uma forma claramente derivativa, capaz de por a tónica na manipulação de
linguagens, contrapondo diversos registos e níveis de língua com finalidade paródica ou
simplesmente estética e lúdica. Ainda, de maneira geral, o pastiche pode ser traduzido como a
escrita “à maneira de”.
Distingue igualmente esta forma do plágio dado que este último se trata da apropriação
indevida de um texto que é apresentado com autoria da pessoa que dele se serve, resumindo-se a um
diálogo ilícito com o texto-fonte.
É apontado como um recurso transtextual, classificando-se como uma forma de hipertexto
uma vez que se trata de um texto que obedece a uma lógica derivacional face a outro que lhe é
anterior (o hipotexto), estabelecendo com o texto matriz relações de imitação.
Ao passo que a paródia estabelece uma base de relação de transformação (cultiva a
diferença) com o texto-fonte, o pastiche adota uma relação de imitação de cariz lúdico (cultiva a
semelhança, nesta obra, legitima, assim a leitura comparativa).
Acrescente-se que outra das condições de pastiche deve ser a familiaridade com o
hipotexto sobre o qual se realiza o pastiche, preferencialmente um texto que seja sobejamente
conhecido por uma comunidade e exemplar a ponto de o pastiche poder ser compreendido
como tal pelo leitor, caso contrário perde-se a eficácia deste recurso.

- Para além disto, ainda na Nota Preambular transcrita, é possível, ainda, destacar, na tentativa de
afastamento do plágio, um certo pendor satírico e irónico, uma vez que o mais conhecido escritor
realista português havia sido acusado de plagiar La Flaute de l’Abbé de Zola, no seu O Crime do
Padre Amaro.
- A ironia decorre, ainda, da escolha do advérbio “perfeitamente” utilizado na aceção afrancesada e
muito ao gosto de Zola de “certamente”.

ADVERTÊNCIA
- São vários os pormenores que nos levam, mais uma vez, a analisar a obra enquanto uma
imitação paródica das obras naturalistas/ coorobora a leitura paródica da obra-modelo
- Em primeiro lugar:
“A História Natural e social de uma família no tempo dos Cabrais dá fôlego para dezassete
volumes”, à maneira das longas séries naturalistas, e o autor acrescenta, ainda, que “já tem
prontos dez volumes para publicidade”, e é, exatemente, neste ponto, que se instaura, mais
uma vez, a inversão paródica, na medida em que o autor afirma, frontalmente que “ trabalha
desde anteontem no encadeamento lógicon e ideológico dos dezassete tomos da sua obra de
reconstrução”.
- Assim, Camilo deita por terra um dos grandes dogmas naturalistas, o da busca obsessiva de
documentação como momento prévio à criação da obra.
- De modo a tornar a paródia ainda mais percetível, destaco os conceituados “dossiers” de
Zola, o qual afirma no prefácio a uma das suas obras ter recolhido documentos durante três anos, de
modo a que fosse possível então publicar o primeiro volume de tal obra.
- Para além disto, podemos notar ainda o exemplo de Eça de Queirós e do seu processo de
criação literária da obra “A Ilustre Casa de Ramires”, cuja história, segundo Helena Cidade Moura,
“levou sete anos a transforma-se no romance”, tendo tido “uma longa gestação, de que ficaram
marcas entre os papéis do escritos: longas listas de vocabulário medieval relativo ao vestuário, a
utensílios, pormenores de castelos medievais(...)”. Embora esta obra de Eça se aproxime, de certa
forma, do romance histórico de inícios de século, é patente o esforço e a procura obsessiva de
documentação e informação.
- Um outro aspeto é a apresentação, numa espécie de enxurrada verbal, dos processos
científicos, típicos do naturalismo, a que o autor ameaça recorrer:
“ o estudo dos meios, a orientação das ideias para a fatalidade geográfica, as incoercíveis
leis fisiológicas e climatéricas do temperamento e da temperatura, o despotismo do sangue,
a ironia dos nervos, a questão das raças, a etologia, a hereditariedade inconsciente dos
aleijões de família, tudo o diabo”
- ao terminar esta enumeração com um “tudo globalizante” e com a exclamação “o diabo!”,
retira ao enunciado e ao pressuposto idioleto cientificizante pressuposto nas obras naturalistas, toda
a seriedade.
- Ainda, na Advertência à obra, o autor acentua a imitação paródica dos modelos
naturalistas, na medida em que expõe de forma insistente a análise cruel dos disfuncionamentos
pessoais e sociais que a corrente em causa privilegia. Assim, como defendido na análise do título e
subtítulo, a ideia de estudo de uma sociedade, neste caso “decadente”, caraterística que legitima a
crítica inerente à obra, Camilo afirma que é necessário “pô-la nua, escrutar-lhe as lepras, lavrar
grandes atas das chagas encintradas, esvurmar as bostelas que cicatrizam em falso, escoriá-las,
muito cautério de frases em brasa”
- Assim, acaba por traçar, simultaneamente, uma das suas armas prediletas no ataque ao
naturalismo, a qual, segundo Prado Coelho se trata da estilização, ou seja a reação por imitação
repetitiva e redundante do estilo da escola naturalista, ao nível do léxico, da sintaxe, da retórica
específica, assente em imagens, ritmos e formas prediletas. Deste modo, tal como se pode
confirmar, na advertência (“ com adjetivos pomposos e advérbios rutilantes”) e no prefácio à
segunda edição (“Ea tua velha escola com uma adjetivação de casta estrangeira, e um profusão de
ciência compreendida”), Camilo reduz, parodicamente, estilo naturalista a uma questão de estilo, de
mera linguagem (“uma paródia bem sucedida à linguagem dos realistas-naturalistas portugueses”)
sendo este completamente parodiado aquando do texto principal.

ASSIM, COMPREENDEMOS QUE, PARA CAMILO, O CERNE DO NATURALISMO RESIDE


NA PINTURA DA SOCIEDADE DECADENTE E DEGENERESCENTE, PARA ALÉM DE
QUESTÕES DE ESTILO, OS TAIS “ADJETIVOS POMPOSOS E ADVÉRBIOS RUTILANTES”,
QUE, SEGUNDO ELE, O CARATERIZARIAM E, SERÁ, POR ISSO, QUE DESENHARÁ A
ESSES NÍVEIS A SUA OBRA, ENQUANTO CARICATURA.

DESTE MODO, A PARÓDIA ESTILÍSTICA AO NATURALISTA PRENDE-SE,


ESSENCIALMENTE, COM:

1. a exagerada acumulação de elementos descritivos e referentes ao campo semântico das pessoas,


objetos e ambientes parodidados/ paródia da descrição pormenorizada , sendo, na caraterização das
personagens, recorrente uma forte linguagem pertencente ao campo fisiológico – descrição do Padre
Justino

2. a captação de um ambiente genérica e exageradamente degradado, atingindo pessoas e coisas,


com recurso a um processos estilístico claramente paródico de certos tiques dos naturalistas e do
próprio estilo impressionista de Eça, dos quais se destacam:
- a nível morfossintático, o uso do imperfeito do indicativo, aquando da descrição dos ambientes, o
sujeito posposto, a acumulação de adjetivos, sendo estes frequentemente utilizados no superlativo
composto, em posições de destaque
- a atenção ao pormenor plástico, à policromia, o gosto impressionista do destaque dado Às
qualidades do objeto, sendo este concretizado, na escrita, através de uma substantivação excessiva
das suas qualidades físicas e o uso recorrente da transposição metafórica – neste sentido, é
importante notar a paródia a um processo habitual de Zola e Eça, que se baseia em fazer entrar a
personagem num espaço e levar o leitor, ao mesmo tempo que ela, a conhecer esse mesmo loca –
será este aspeto que legitimará a excessiva descrição do ambiente

3. Na linha da degenerescência e decadência da sociedade, a descrição e o cultivo insistente do


abjeto:
Camilo parodia um outro fenómeno caraterístico da escrita zoliana, neste caso, a naturalização do
corpo, aliado à descrição fisiológica do mesmo, e as fatalidades impostas pelo ventre, através das
pulsões, por si, emanadas, aproximando-se da crítica, por si, tecida quanto ao projeto de Les
Rougons – Macquart, o qual se trataria, acima de tudo, de uma história “natural”, orgânica,
biológica e carnal, claramente, e, por definição, oposto às teorias e censuras românticas, estas
assentes na idealização do corpo, sobretudo feminino, como se pode compreender, através do
seguinte excerto:
[Padre Justino] “era oriundo de Barroso, onde as mulheres são cabeludos, como cabras, e
têm as pernas grossas, cepudas com borbulhas escarlates como rocas de cerejas, e mostram
nos cotovelos umas durezas como cascas de mariscos. Criara-se nas leiras que escorregam
pelas espáduas dos montes, retouçava-se nos fenos como os lobos fartos, e aos dezoito
anos uivava pelas fêmeas como os fulvos leões hircânicos.”

- Daqui parte também a proeminência dos apetites, do instinto animal, que, biologicamente,
aparentam o homem à besta. Tal é constatável, por exemplo, através das constantes referências a
animais, as bestas da natureza, das quais, o Homem se aproxima, dado os seus instintos e pulsões,
as quais se traduzem, por sua vez, numa força de natureza instintiva e orgânica que o impele a
cumprir uma ação com a finalidade de resolver uma tensão vivida pelo seu organismo, por meio de
um objeto.
- E é, também, neste sentido, aproximando cada vez mais os indivíduos do seu lado animal, que
surge a ideia de ventre, como lugar de todos os apetites vitais, das fomes do prazer, desde a comida
ao sexo. No entanto, se Camilo dá, também tira, e se aparentemente adere a esta naturalização do
organismo humano e ao peso das necessidades carnais, como motivadoras da ação humana, acaba,
também, por fazer a apologia do ventre como o recetor de todas as voragens e a origem de todas as
consequentes excreções e secreções biológicas, acabando por assegurar ao texto um certo pendor
satírico ou carnavalesco, em completa concordância com o objetivo da presente produção literária.
- Tal é constatável, no seguinte excerto, que retrata a reação de Custódia ao jantar, cujos elementos
foram anteriormente enumerados pelo narrador, em casa de Rabaçal, face ao qual esta:

“sentia subirem-lhe das profundezas do seu estômago uns vivos apetites mordentes
daquelas coisas de “nomes pândegos”, dizia; sentia curiosidades de paladar, titilações nas
glândulas salivares que lhe cuspinhavam na boca.”

- Ainda, neste sentido, aproximando o Homem da besta, Camilo reitera a ideia de ventre enquanto
fonte dos desejos sexuais e estabelece, de modo semelhante ao anteriormente referido, um
contraponto, afastando-se, neste aspeto, da imparcialidade pressuposta pela estética naturalista, e
tecendo, consequentemente, intromissões satíricas. Deste modo, visa, não o objeto, como deveria,
mas um alvo exterior a este, o alcance moral e social da sua obra, uma certa desmistificação do
prazer físico.

- AS PERSONAGENS TORNAM-SE CATIVAS DA ANIMALIDADE/ DOS SEUS DESEJOS


CARNAIS E BIOLÓGICOS, DA SUA SENSUALIDADE, AGINDO CONDICIONADAS POR
ESTES – tens de por a fisologia onde colocavas a emoção e a fatalidade, descarte da emoção,
valorização do instinto

Aliás, se a estética naturalista-realista, no seu afã de captar toda a realidade, não desdenha a
captação do sujo e do degradante, Camilo exagerando a tendência no sentido da caricatura grotesca,
apresenta-nos ambientes e personagens carregados de sensualidade.
A maior parte das personagens orientam a sua conduta com vista à desforra das suas inclinações
bestiais: comer, beber e satisfazer os apetites sexuais. Através do retrato de personagens seduzidas
pelo “veneno dos prazeres”, o escritor faz a caricatura parodística do realismo das vísceras e das
pústulas, da decadência cosial patente nas omnipresentes necessidades fisiológicas do corpo e do
sexo.
A decadência moral desta família é admiravelmente representada pela emergência da estética do
abjeto, do baixo material e corporal nas suas manifestações mais grotescas e carnavalescas. Não
será por acaso que nesta continuada comédia, desenvolvida ao longo de duas narrativas, nos
deparamos com repetidas referências às festividades ou a expressivas descrições de estrumeira e
respetivos animais.
No constante apelo à diversão e ao prazer, sobretudo através da comida, da bebida e do sexo, a
sociedade inteira é representada alegoricamente, como um permanente e sórdido Carnaval, uma
orgia onde tudo é permitido, desde a conduta mais aberrante à mais licenciosa. A esperada função
geradora da narrativa realista é preenchida por este demolidor retrato da podridão gerada pela
sociedade cabralista.

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