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Disciplina: TBAT 1

Professor: Dr. Leandro Lima


AULA 03

CAIM E ABEL: DOIS HOMENS, DOIS CULTOS


Gn 4.1-15

Há dois tipos de homens nesse mundo: os que adoram a Deus e os que adoram
a si mesmos. Os primeiros encontraram o sentido da vida no serviço a Deus, os últimos
ainda não o encontraram, pois só sabem servir a si mesmos.
Já dissemos que fomos feitos para a glória de Deus e que experimentamos isso
quando usufruímos o melhor que Deus colocou à nossa disposição. Uma coisa
excepcional que Deus capacitou o ser humano foi do desejo e do entendimento de
que Deus quer ser adorado. E Deus fez mais do que isso, pois desde o início mostrou
o padrão como isso deveria ser feito, e esse padrão tinha tudo a ver com a sua Aliança
e com o único modo como o homem pecador pode ser aceito em sua presença.
Adão e Eva tiveram dois filhos. Quando eles nasceram, Eva reconheceu que
Deus continuava demonstrando sua misericórdia para com eles. O texto do Gênesis
relata: “Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a Caim;
então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do SENHOR. Depois, deu à luz a Abel, seu
irmão. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim, lavrador.” (Gn 4.1-2). Embora Deus tivesse
razões suficientes para não continuar sua história com o ser humano, ele mostrou sua
misericórdia ao buscar o homem perdido no jardim e ao lhe oferecer uma
oportunidade de se reconstruir dos cacos. Deus os vestiu e os enviou para fora do
jardim para cultivar a terra. O nascimento de dois filhos mostrava que Deus
continuava interessado em reescrever a história da humanidade para o bem, ou seja,
sua Aliança continuava. A descrição de que esses dois filhos desenvolveram funções
no mundo (lavrador e pastor de rebanhos) também mostra que Deus continuava
abençoando a humanidade nos campos e nos avanços culturais (Ver Kaiser, 1984, p.
81). Mas quando esses dois filhos retornaram para Deus, a fim de lhe oferecer algo,
ou seja, para continuar o relacionamento com Ele, então, surgiu o primeiro grande
problema.
A Bíblia não nos ensina somente através de exemplos positivos qual é a vida
que Deus idealizou para o ser humano, mas através dos exemplos negativos também,
para que, através do contraste, possamos entender a ideia. Caim é o grande
antagonista da história humana com Deus. Ele é o grande exemplo negativo. Tudo o
que ele foi e fez nos ensina o que o ser humano não deve ser ou fazer, se quiser
agradar a Deus, mas também se quiser ter uma vida significativa. Adão e Eva pecaram,
pois, de certo modo, foram enganados, e finalmente aceitaram as roupas que Deus
havia feito para eles. Caim fez uma opção bem mais consciente para longe de Deus. E
mesmo depois de ter cometido seu terrível erro, insistiu em sua vida de rebeldia. Seu
destino foi vagar errante, pois quebrou a Aliança divina. E assim, ele provou que estava
do lado da descendência da serpente (Gn 3.15)

I. ATENDENDO A UM ANSEIO ÍNTIMO

Cumprindo a um chamado íntimo (e, provavelmente externo e formal


também), Caim e Abel, quando adultos, resolveram trazer a Deus uma oferta. É
provável que eles tivessem sido ensinados por seus pais a fazerem isso. De fato parece
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evidente que eles estivessem atendendo a alguma orientação que seus pais tinham
recebido de Deus e transmitido a eles, pois não temos informação direta de onde eles
receberam esse conhecimento sobre o modo como Deus queria ser adorado. É
provável que, num sentido, eles nem precisassem ser ensinados a fazer isso. Algo
dentro deles já apontava para essa necessidade. O modo, entretanto, de cumprir isso
entendemos que foi prescrito por Deus.
Até esse ponto, podemos dizer que ambos estavam fazendo algo correto em
si mesmo. Estavam realizando uma tarefa essencial para a satisfação de sua existência.
O desejo de adorar a Deus é inato no ser humano. O ser humano não consegue
completar sua existência apenas cuidando dos aspectos sociais e culturais, ele precisa
também satisfazer o aspecto espiritual da sua vida.
O culto é uma resposta obediente ao convite, ou melhor, à própria ordem de
Deus, a qual ele expressou em sua Palavra, bem como em toda a criação, e até mesmo
dentro de cada um dos seres humanos criados, cujos sentimentos mais íntimos
anelam por Deus, e desejam adorá-lo (mesmo que não saibam ou não entendam isso).
Calvino notou que Cícero já havia afirmado: “Não há povo tão bárbaro, não há gente
tão brutal e selvagem, que não tenha arraigada em si a convicção de que há Deus”
(1999, I.3.1). E de fato, o culto, como consequência deste sentimento religioso, é a
atividade humana mais universal, e importante que existe. Esse instinto religioso,
segundo a teologia reformada, deve-se à natureza comum do homem como criação
de Deus, e também pode ser aplicado à adoração, pois não há religião sem forma de
culto. E por isso, embora permeado pelo pecado, tanto em suas obras, quanto em seu
próprio ser, o homem, ainda assim, anela pelo sagrado, pelo eterno, pelo seu Criador.
Como disse Agostinho: “Criaste-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto,
enquanto não repousa em Vós” (1995, I. 1).
Quando o ser humano se recusa a prestar culto a Deus ele está repudiando
uma parte essencial de si mesmo. Mas negar-se a cultuar não é o único modo de
complicar-se. Caim não se negou a adorar a Deus, mas ele o fez de um modo
equivocado. Nesse ponto é crucial entender o que foi que Caim fez de errado.

II. O QUE HÁ DE ERRADO COM A MINHA OFERTA?

O texto sagrado diz: “Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do
fruto da terra uma oferta ao SENHOR. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu
rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR de Abel e de sua oferta; ao passo
que de Caim e de sua oferta não se agradou” (Gn 4.3-5). Esse texto tem muitos
elementos que precisam ser considerados.
Ao longo de toda a história, as pessoas que têm analisado essa passagem têm
se perguntando por que razão Deus não aceitou a oferta de Caim. Ele era um lavrador
e quis agradar a Deus oferecendo algo do seu trabalho. Parecia justo. Mas Deus não
aceitou. Algo na atitude dele deve ter levado Deus a não aceitar sua oferta. Acredito
que, à luz da Bíblia, podemos identificar dois problemas: um de intenção e outro de
método. Sobre o método falaremos no próximo tópico. Agora é preciso falar sobre a
intenção. Deus detectou algo negativo na intenção de Caim. Algo em seu coração não
condizia com a oferta que ele estava fazendo. Podemos deduzir isso pela própria
reação irada de Caim diante da não aceitação de Deus à sua oferta e pelo que Deus
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lhe disse então: “Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? Se
procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o
pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (Gn 4.6-
7). Faltou algo na oferta de Caim antes mesmo de Deus considerar a sua oferta. Faltou
uma atitude íntima de respeito, submissão e, principalmente, de fé.
Kaiser diz que “Deus atribuía mais valor à condição do coração do ofertante do
que à oferta que este trazia” (1984, p. 82), mas como é possível dissociar uma coisa
da outra? Deus não gostou de ambas as coisas. Nem do ofertante, nem da oferta. É
claro que há um problema no coração de Caim, e Deus apontou isso ao dizer que ele
tinha a obrigação de dominar aquele impulso íntimo que o conduzia para uma má
atitude. O problema de Caim é que ele quis agradar a Deus à sua maneira. Ele se sentiu
no direito de fazer as coisas como ele próprio desejava. Pensava que Deus o aceitaria,
porque ele estava fazendo o que era certo. Pensava que Deus devia aceitá-lo como
ele era. O grande problema da oferta de Caim é justamente isso: A oferta era dele.
Deus já havia demonstrado a Adão e Eva que eles não podiam agradá-lo à sua maneira,
que precisavam desistir de suas roupas feitas por suas próprias mãos, e aceitar as
roupas feitas por Deus, mas Caim provavelmente pensava que Deus precisava aceitar
seus esforços e o que ele podia fazer de bom.

III. A RAZÃO DA PREFERÊNCIA DIVINA

O texto diz que Deus se agradou de Abel e de sua oferta. A razão da aceitação
divina só pode ser encontrada no fato de que Abel se uniu “a seus pais na aceitação
das promessas de Yahweh” (Van Groningen, Vol 1, p. 143). Ele manteve o padrão que
Deus já havia revelado. Abel entendeu que havia um caminho a ser seguido
que era o de fé, obediente ao que Deus já havia revelado. Um animal foi morto para
que Deus vestisse Adão e Eva. Esse era o padrão que Deus havia deixado claro.
Abel não quis oferecer obras ao Senhor, mas levou um animalzinho
semelhante àquele que Deus matou para fazer as vestes de peles para seus pais e o
ofereceu ao Senhor. Não havia no coração de Abel uma sensação de que Deus devia
aceitá-lo por suas boas atitudes. Havia no coração de Abel o entendimento de que só
o sacrifício de um inocente poderia torná-lo aceitável diante de Deus. Van Groningen
diz: “À vista do que a revelação posterior nos informa, a respeito de sacrifícios (cf. Lv
1.3,10; 3.1,6.16c), pode se admitir que Abel, por meio do seu sacrifício, deu expressão
à sua consciência da necessidade pela intervenção de Yahweh na sua vida pecaminosa
e expressou sua gratidão” (Vol 1, p. 144). O Novo Testamento realmente diz que o
que Abel ofereceu foi um “mais excelente sacrifício” (Hb 8.4). Portanto, foi realmente
um sacrifício. E o mesmo autor da carta aos Hebreus diz nessa passagem que ele fez
isso “pela fé”. Então por que Abel foi aceito? Porque ofereceu a Deus um sacrifício
pela fé. Ou seja, sua atitude e seu método estavam corretos, até porque eram
indissociáveis. E foi exatamente isso que faltou em Caim. Ele não ofereceu o sacrifício
correto porque não teve fé. Queria ser aceito por suas próprias obras, mas não
percebia que seu procedimento íntimo estava errado.
De certo modo, Caim foi o primeiro homem religioso desse mundo.
Entendendo religião aqui como uma atitude humana de tentar agradar a Deus por si
mesmo e por seus próprios esforços. É a atitude humana de tentar chegar até Deus,
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desconsiderando a revelação divina de que ninguém pode ir até Deus por si mesmo.
A religiosidade de Caim desprezou o meio de graça oferecido por Deus. Ele ofereceu
mecanicamente algo a Deus, sem a fé verdadeira que tornaria aceitável sua oferta e
também sem a oferta apropriada que justificava a fé, pois não era uma oferta de
sangue. Frutos da terra podiam ser oferecidos a Deus, mas não para redimir o pecado,
pois “sem derramamento de sangue, não há remissão” (Hb 9.22). Ele se recusou a
praticar o padrão de fé que Deus já havia revelado para seus pais.
Isso tudo nos mostra que ninguém pode ser aceito por Deus fora de Cristo.
Ninguém deve tentar agradar a Deus por si mesmo, confiando em suas obras ou
esforços. O homem ou o culto que agrada a Deus não é aquele que tem os elementos
do esforço ou da vontade humana, mas que são mediados por Cristo e seu sangue
precioso derramado pelos pecadores. Esse sangue segundo a Bíblia “fala coisas
superiores ao que fala o próprio Abel” (Hb 12.24).

IV. O SEMBLANTE DESCAÍDO DE CAIM

A sequência do texto, que enfatiza as atitudes de Caim, é excepcionalmente


reveladora do caráter do homem que adora a si mesmo. Caim provou que não estava
adorando a Deus, mas a si mesmo ao oferecer orgulhosamente aquilo que tinha
produzido por seu próprio esforço. A partir daí ele só alimentou ressentimentos contra
Deus em seu coração, inveja e acusações contra seu irmão e um sentimento de
autopiedade em relação a si mesmo.
Caim tentou agradar a Deus à sua maneira e, como foi rejeitado, seu semblante
descaiu. Isso prova que ele nunca teve fé. Sempre agiu a partir de seus próprios
méritos. Queria ser reconhecido por si mesmo. O homem que tenta agradar a Deus
por si mesmo só conseguirá viver com um “semblante descaído”. A razão é que ele
está alimentando o mal em seu coração. Está dando espaço para Satanás (o homicida
desde o princípio – João 8.44) lhe dizer o que deveria fazer. Ele não sentiu mais
disposição para domar o animal selvagem que começou a se agigantar à sua porta: o
pecado. Por isso, tinha que encontrar um escape para suas frustrações íntimas.
É interessante que Caim chamou seu irmão Abel para irem ao campo. É
evidente que o texto pretende demonstrar a premeditação da atitude de Caim, o que
o torna ainda mais culpado. Mas o texto também quer demonstrar que Caim estava
descontando sua frustração íntima sobre seu irmão. O caminho dos auto-adoradores
é sempre esse. Alguém terá que pagar pela sua própria infelicidade.
Finalmente, após o assassinato, Deus chamou Caim e lhe pediu contas a
respeito de Abel. Se pensarmos que ele era o primogênito, ele tinha responsabilidades
com o mais novo. Mas ele demonstrou a Deus que não assumia aquela
responsabilidade ao dizer que não era tutor do seu irmão. Quando Deus o amaldiçoou
como uma justa atitude em relação ao derramamento do sangue, mostrando que
Deus é o justo juiz, Caim disse: “É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-
lo” (Gn 4.13). Ou seja, ele só conseguiu ter sentimentos de autopiedade em relação a
si mesmo (Van Groningen, vol 1, p. 144). Não confessou sua culpa, não reconheceu o
seu mal, continuou com seu semblante descaído, lamentando seu infortúnio.
Autopiedade nada mais é do que adorar a si mesmo.
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V. A ALEGRIA DE SERVIR A DEUS

O texto diz que Deus se agradou de Abel e de sua oferta. Agradar a Deus é
respeitar o modelo redentor (sacrifício) e crer no Deus que justifica o homem. O
legalismo de acreditar que obediência cega pode agradar a Deus é um grande
equívoco. Deus se agrada daqueles que se agradam dele e creem em suas promessas.
Deus se agrada dos pecadores que se refugiam humildemente em sua graça e não dos
que acham que têm algo para lhe oferecer. Daqueles que confiam que ele é o
provedor das roupas que os justificam e se alegram por ele ser quem ele é, sem jamais
querer ocupar o seu lugar.
Quando Deus disse para Caim: “Se procederes bem, não é certo que serás
aceito?” (Gn 4.7), Kidner diz que no Hebraico, aceito é literalmente “um exaltar” que
é uma expressão que pode indicar um semblante sorridente contrariamente a um
semblante carrancudo (Ver p. 70). Há alegria em servir a Deus e se alegrar nEle. Deus
não queria obediência cega, queria relacionamento. Deus foi atrás de Adão e Eva no
jardim para restaurar o relacionamento com Ele próprio, pois queria o homem para
realizar grandes coisas. Mas esse relacionamento precisa seguir a rota estabelecida
por Deus. Não é o homem tentando agradar a Deus por seus próprios esforços, mas
confiando na provisão divina e se deleitando nela. Um semblante feliz agrada a Deus.
Mas não é um semblante auto-enganosamente feliz. Não é uma alegria em si mesmo,
por seus méritos, conquistas ou privilégios. É uma alegria humilde de alguém que
depende inteiramente de Deus e que sabe que Deus providenciou tudo o que é
necessário para continuar o relacionamento com ele. Isso é o oposto da religiosidade.
É viver pela graça. É viver pela fé. Isso é adoração.
Adoramos a Deus melhor, quanto mais nos alegramos nele (Ver Piper” [s.d.],
pág. 1). Quanto mais reconhecemos suas provisões para nossa vida e especialmente
sua grande provisão que foi mandar o substituto para morrer em nosso lugar. Estamos
dizendo nesses estudos que Deus, geralmente, segue uma rotina mais ou menos fixa
ao lidar com pessoas na Bíblia. Ele as chama, redime e envia para uma missão. No caso
de Abel isso parece estar interrompido, mas é preciso olhar com mais cuidado. Ele foi
escolhido por Deus, foi redimido e experimentou a alegria da aceitação divina, mas
não pôde ser enviado para uma missão no mundo. A razão é que seu irmão não
permitiu isso, pois o assassinou. Mas não devemos pensar que o propósito de Deus e
de sua Aliança tenha fracassado. Mesmo morto, Abel ainda fala (Hb 11.4). Sua atitude
de fé, sua oferta de sangue, continua falando poderosamente, demonstrando ao
mundo o verdadeiro caminho para se chegar até Deus e desfrutar a plenitude da vida
nEle.

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