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PROGRAMA DE INTEGRIDADE PARA

A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DE INTELIGÊNCIA

Sumário

Durante o governo passado, foram noticiados vários episódios de abuso de poder


no exercício da atividade administrativa de inteligência. Dentre eles, destacou-se a
elaboração, por parte da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça e
Segurança Pública (SEOPI/MJSP), de relatório sigiloso reunindo informações sobre um
grupo de 579 servidores federais e estaduais da área de segurança pública.

Nesse registro oficial, disseminado indiscriminadamente a vários outros órgãos


estatais, cidadãos brasileiros foram observados, classificados e marcados pelas
autoridades como integrantes do “movimento social antifascista”, simplesmente por
exercerem sua liberdade de manifestação e opinião. Três renomados professores
universitários, todos eles críticos à condução política do país, também tiveram seus nomes
vinculados ao “dossiê” que o Supremo Tribunal Federal considerou altamente abusivo,
ao julgar a ADPF n.º 722.

Objetivando contribuir para a prevenção de desvios de finalidade tão


emblemáticos como esse, recomenda-se adotar, como já fazem outros países, parâmetros
mais rigorosos de integridade e conformidade legal da atividade administrativa de
inteligência.

Desde que rigorosamente vinculada aos meios e fins constitucionais, ela pode
desempenhar um papel legítimo como instrumento de salvaguarda da segurança do
Estado e da sociedade, sempre respeitando os direitos fundamentais.

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Apesar de excepcionalmente justificável em razão de seus fins, o relativo sigilo
que vela a atuação dos órgãos de inteligência apresenta alto risco de abuso de poder. Por
tal motivo, justifica-se a adoção de parâmetros especiais e reforçados de integridade
pública, ética e controle de legalidade, como aqueles que esboçamos nas recomendações
a seguir, bem como em sua fundamentação técnica (Anexo e Artigo).

Um programa piloto de compliance poderia ser exemplarmente adotado na


própria DIOPI/SENASP/MJSP, foco do malfadado dossiê ilegal, antes de ser difundido
a todo o Sistema Brasileiro de Inteligência, até como forma de reforçar sua legitimidade,
aos olhos da cidadania democrática.

Recomendações:

• Estruturar um programa de integridade voltado especificamente à atividade


administrativa de inteligência, capaz de identificar e mitigar os altos riscos a ela
inerentes.

• Fortalecer e garantir a autonomia e imparcialidade das Corregedorias do Sistema


Brasileiro de Inteligência (SISBIN). A esse respeito, é possível encontrar, no
direito comparado, exemplos nos quais os corregedores passam por um processo
de seleção e treinamento especial, sendo inclusive impedidos de transitar da
corregedoria para os serviços de inteligência.

• Promover a conscientização e treinamento dos agentes de inteligência quanto às


normas a serem cumpridas, especialmente aquelas relacionadas aos direitos
fundamentais. Isso pode ser exercido pela própria Corregedoria, mas, no caso da
ABIN, também pode ser de competência da Assessoria de Governança e
Conformidade, essa ilustre desconhecida do povo brasileiro. Quanto aos demais
órgãos federais integrantes do SISBIN, é possível pensar em arranjos cooperativos
que garantam que as respectivas corregedorias sejam dotadas das ferramentas de
apuração de falhas nas extremidades da rede.

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• A experiência em compliance preconiza que um bom programa de integridade
pública deve ser constantemente monitorado. Sem um processo de revisões
sistemáticas e periódicas, ele deixaria de acompanhar a realidade da atividade que
pretende conduzir.

• No caso do sistema administrativo de inteligência, por suas peculiaridades


técnicas e posição na política pública de segurança e defesa, acreditamos que o
monitoramento contínuo da conformidade legal só possa ser exercido eficazmente
por autoridades dotadas de garantias institucionais, sem prejuízo do controle
externo da atividade policial legalmente já exercido pelo Ministério Público.

• Ou seja: é preciso monitorar o cumprimento dos parâmetros de integridade, ética


e controle de legalidade da atividade de inteligência, para que não se desvie de
suas finalidades institucionais legítimas e constitucionais.

• A experiência em integridade pública e privada indica que as lideranças da


organização devem dar o tom do padrão ético a ser observado pelos demais
colaboradores, sejam eles servidores ou funcionários. Na atividade de
inteligência, é necessário que a liderança do órgão público que executa a atividade
estabeleça o respeito aos direitos fundamentais e à lei como moldura
intransponível para o seu regular exercício.

• No caso do SISBIN, tendo em vista a miríade de órgãos que compõem o sistema,


é necessário que a alta direção de cada um deles demonstre comprometimento
com a integridade pública na condução da atividade, bem ao contrário da
experiência dos últimos anos.

• Estudar a conveniência e legalidade da criação de canais que permitam reportar


denúncias sérias de forma segura e sob proteção específica, respeitados os direitos
dos denunciados e protocolos para contenção de abusos.

• Revisar atentamente o Código de Ética do Servidor de Inteligência, que veio a


público, pela primeira vez, apenas em 2022.

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Anexo

Notas para um Programa de Integridade da

Atividade Administrativa de Inteligência

-I-

A FINALIDADE LEGÍTIMA DA INTELIGÊNCIA ESTATAL

1. De acordo com a Lei nº 9.883/99, que instituiu o Sistema Brasileiro de


Inteligência (SISBIN), a atividade de inteligência é aquela que “objetiva a obtenção,
análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos
e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação
governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado” (art. 1º,
§2º).

Essa atividade legítima e necessária em um Estado Democrático, que deve ser


exercida dentro das balizas constitucionais e legais, lida com dados sensíveis, é
especializada em técnicas de vigilância e opera sob a regra do sigilo temporário (sem a
qual os conhecimentos por ela produzidos se tornariam ineficazes). Essas características
dos serviços de inteligência fazem com que essa atividade seja especialmente sujeita a
riscos de abusos de poder e desvios de finalidade potencialmente violadores de direitos
fundamentais.

Nos últimos anos, a experiência brasileira foi marcada por episódios nos quais a
atividade de inteligência foi exercida não para proteger o Estado, a sociedade e seus
cidadãos, mas sim para finalidades ilegítimas de grupos particulares de interesse. O mais
ilustrativo deles se deu no Ministério da Justiça, que, por meio de sua Secretaria de
Operações Integradas (SEOPI), elaborou relatório de inteligência no qual eram vigiados
e estigmatizados mais de quinhentos cidadãos, de policiais a professores universitários,
simplesmente por terem se declarado antifascistas em suas redes sociais.

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Ora, a produção e difusão de um dossiê canhestro sobre suposta movimentação
social antifascista, sem qualquer indício de que tenha seriamente exposto a risco a defesa
da sociedade e do Estado, muito pelo contrário, não guarda nenhuma relação com a
atividade de inteligência no âmbito da segurança pública ou da defesa nacional. Não à
toa, a ocorrência de tal ilícito foi duramente reprovada pelo Supremo Tribunal Federal,
que sancionou o desvio de finalidade e assegurou o direito de manifestação política dos
cidadãos abusivamente espionados (ADPF n.º 722).

Policiais e professores brasileiros não podem ser vigiados, classificados,


estigmatizados e expostos por seus pensamentos, palavras e opiniões, sobretudo quando
exercem legitimamente seus direitos de cidadania, para defender a ordem constitucional
democrática.

Inversamente, o que coloca em risco a defesa do Estado e da sociedade é a


violação desses direitos fundamentais pela ação desviante de órgão de segurança posto a
serviço dos interesses particulares do governante de ocasião, que não se confundem com
os valores mais altos da República.

Não há razão legítima de interesse público a justificar o abuso da atividade estatal


de inteligência para agredir direitos fundamentais, cuja realização é a própria razão de ser
da organização política em sociedade. Os fatos julgados pelo Supremo denotam, no
mínimo, despreparo para o exercício democrático do poder público.

Mesmo quando instado a se justificar perante o Supremo Tribunal Federal, o


Ministério da Justiça, à época, não apresentou qualquer esclarecimento crível para a
prática abusiva. Como atestou o Ministro Gilmar Mendes, não foi identificado “de que
forma os indivíduos monitorados representariam riscos para o Estado ou para a
sociedade e nem o real motivo que deu origem à produção de relatórios contendo dados
pessoais, fotografias e endereços nas redes sociais dos integrantes do ‘movimento
antifascista’” (p. 118 do acórdão na ADPF n.º 722).

As violações aos direitos dos cidadãos brasileiros são ainda mais graves em
função da capilaridade do sistema de inteligência: o SISBIN conta, em nível federal, com
a interligação de 48 órgãos públicos. Essa complexa rede se ramifica em terminações
locais, a exemplo, no caso do malfadado “dossiê ilegal”, dos três centros de inteligência
vinculados à SEOPI no Sul, Norte e Nordeste, sem falar nas Superintendências Estaduais
da Agência Brasileira de Inteligência.

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O mau uso da rede integrada de inteligência é altamente reprovável, pois o
potencial de difusão da ilegalidade atinge dimensões exponenciais. Sem controles
constitucionais firmes e fiscalização republicana atenta, práticas ilícitas cultivadas à
sombra encontram ali ambiente propício para infeccionar o organismo todo.

No exemplo ora tomado, sem profilaxia adequada, órgãos de inteligência podem


difundir ilegalidades, sobretudo quando têm por competência regimental promover o
intercâmbio de dados e conhecimentos com os demais órgãos do SISBIN, segundo a regra
de organização do Decreto nº 9.662/20191.

As disposições da Lei n.º 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de


Segurança Pública (SUSP), reforçam essa percepção. O Ministério da Justiça é o ponto
focal, em matéria de segurança pública. Os sistemas federais de informação (SINESP e
SISBIN) são vasos comunicantes2. Por seus dutos subterrâneos fluem informações
compartilhadas. Para o bem, quando atendem a finalidades legais de interesse público, ou
para o mal, quando delas se desviam, como no caso daquele dossiê abusivo condenado
pelo Supremo Tribunal Federal, que tomamos como exemplo emblemático daquilo que
um programa eficiente de compliance e integridade pública podem e devem
desincentivar.

1 Segundo o Regimento Interno do Ministério da Justiça,

Art. 31. À Diretoria de Inteligência compete:


II - planejar, coordenar, integrar, orientar e supervisionar, como agência central do
Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, as atividades de inteligência de segurança
pública em âmbito nacional;
IV - promover, com os órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência, o
intercâmbio de dados e conhecimentos, necessários à tomada de decisões administrativas e
operacionais por parte da Secretaria de Operações Integradas;

2 Segundo a Lei do SUSP,


Art. 10. A integração e a coordenação dos órgãos integrantes do Susp dar-se-ão nos limites
das respectivas competências, por meio de:
IV - compartilhamento de informações, inclusive com o Sistema Brasileiro de Inteligência
(Sisbin);
VI - integração das informações e dos dados de segurança pública por meio do Sinesp.
§ 4º O compartilhamento de informações será feito preferencialmente por meio eletrônico,
com acesso recíproco aos bancos de dados, nos termos estabelecidos pelo Ministério
Extraordinário da Segurança Pública.
Art. 13. O Ministério Extraordinário da Segurança Pública, responsável pela gestão do Susp,
deverá orientar e acompanhar as atividades dos órgãos integrados ao Sistema, além de
promover as seguintes ações:
II - implementar, manter e expandir, observadas as restrições previstas em lei quanto a
sigilo, o Sistema Nacional de Informações e de Gestão de Segurança Pública e Defesa Social;
Art. 14. É de responsabilidade do Ministério Extraordinário da Segurança Pública:
I - disponibilizar sistema padronizado, informatizado e seguro que permita o intercâmbio
de informações entre os integrantes do Susp;

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2. O risco de contaminação sistêmica. Na estrutura capilarizada do SISBIN, e
havendo forte incentivo ao compartilhamento de informações, sem a correspondente
garantia de responsabilidade, o estímulo à vigilância produzido pelo “cérebro do sistema
de inteligência” percorreu ilicitamente uma vasta rede neural, no caso do malfadado
dossiê reprovado pelo STF. A informação ilegítima alcançou grande número de
destinatários, em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos estigmatizados.

Trata-se de censurável inversão de valores, na medida em que o Estado


Constitucional serve justamente para realizar, não para aviltar a dignidade das pessoas.
Segurança, privacidade, intimidade, honra, dados pessoais, liberdades de pensamento,
opinião, expressão e associação: tudo isso foi desprezado no caso que recordamos.

Diante da imperiosa necessidade de jogar luz constitucional sobre esses lugares


propícios ao abuso, desenvolvemos algumas ideias relativas ao aperfeiçoamento dos
mecanismos de controle da integridade pública da atividade administrativa de
inteligência, aproveitando o ensejo para sugerir novas medidas práticas. Como tantos
outros, trata-se de tema bastante incipiente, no atual estágio de desenvolvimento
institucional do país. Um projeto piloto poderia começar, emblematicamente, na própria
DIOPI, antes de ser difundido de forma sistêmica, para reforçar o compromisso do
Estado brasileiro com as condições de legitimidade de sua atuação, no desempenho das
graves responsabilidades que lhes são confiadas.

- II -

INTEGRIDADE PÚBLICA APLICADA À ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA

1. Desde que rigorosamente conformada aos meios e fins constitucionais, a


atividade administrativa de inteligência pode desempenhar um papel legítimo como
instrumento de salvaguarda da segurança do Estado e da sociedade. Para alcançar seus
objetivos de interesse público, admite-se que atue disciplinada por um regime jurídico
especial -, mas nunca à margem ou à sombra da Lei.

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Como dissemos, o condicionamento temporário e excepcional da regra da
publicidade dos atos estatais é um exemplo da especialidade desse serviço estatal.

O relativo sigilo que vela a atuação dos órgãos de inteligência, contudo, apresenta
alto risco de abuso de poder e desvio de finalidade. O caso do dossiê repudiado pelo
Supreo é exemplar desse perigo antidemocrático.

Para controlar eficazmente a legalidade da atividade administrativa de


inteligência, é necessário adotar parâmetros especiais e reforçados de integridade
pública. Tais regras éticas de conduta devem assegurar que a atividade estatal se volte
exclusivamente a finalidades de interesse coletivo, respeitando os direitos fundamentais,
sem o que poderia se degradar.

Mecanismos efetivos de supervisão, correição, fiscalização, controle interno e


externo de legalidade, ética funcional e regulação jurídica do fluxo de informação
sensível são, ao lado da cultura de respeito à regra de direito democrático, condições
indispensáveis para o desempenho ético do serviço de inteligência, de modo a que não
resvale, ele próprio, para a criminalidade. Podemos avançar bastante no aperfeiçomento
de garantias institucionais que reforcem a sua legitimidade.

2. O regime jurídico de direito público é plenamente aplicável a essa atividade


desempenhada por servidores e órgãos integrantes da Administração Pública. Eles não
escapam, nem poderiam escapar, aos deveres funcionais e regras de integridade
impostos, notadamente, pelo Decreto nº 9.203/17 e pela Portaria CGU nº 57/2019, entre
outras regras afins.

De acordo com esses regulamentos, os órgãos e entidades da Administração


Pública Federal devem instituir programa de integridade estruturado em torno dos
seguintes eixos:

(i) comprometimento e apoio da alta administração;


(ii) existência de unidade responsável pela implementação no órgão;
(iii) análise, avaliação e gestão de riscos associados ao tema da integridade; e
(iv) monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.

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Não se trata apenas de exercer um controle administrativo dos meios, mas
também da regularidade dos fins. Não há notícia pública de nenhum programa reforçado
de integridade pública aplicado à atividade de inteligência como um todo, com ênfase
na ética funcional e na boa regulação do uso das informações. Na ausência de medidas
preventivas e de aperfeiçoamento institucional, sobressaem as ações repressivas.

3. Atualmente, o desempenho dessa atividade tem como parâmetros de


integridade apenas princípios abstratos anunciados em documentos esparsos, como a
Doutrina Nacional de Inteligência, de 2016.

Essas são as únicas diretrizes éticas e profissionais que regulam um sistema


altamente capilarizado, que conta com 48 órgãos na esfera federal, para além de 27
Superintendências Estaduais.

No que diz respeito à agência central do SISBIN, existe o Código de Ética do


Servidor da ABIN, com nova versão publicada em 2022. Importa notar que, até a recente
revisão, este código não estava acessível em qualquer site do governo. Diferentemente
das informações sigilosas com as quais lida o serviço de inteligência, em sua atuação
finalística, não havia razão legítima para que um código de ética fosse escondido dos
olhos da cidadania ativa.

Dado o recente sigilo e a incerteza quanto à completude do documento


disponibilizado, parece ainda oportuno revisar o Código de Ética do Servidor da ABIN,
de maneira a garantir que se conforme aos padrões mínimos de um Estado Democrático
de Direito e se associe a parâmetros inequívocos de integridade pública.

4. Em outros países de tradição democrática, tais códigos não são tão genéricos,
e costumam abordar as especificidades da atividade administrativa de inteligência. Não
consta, tampouco, que os programas de controle interno hoje existentes tenham sido a
testes regulares de eficiência, como recomendam as melhores práticas nacionais e
internacionais.

Fato é que os controles internos e externos então em vigor não foram suficientes
para prevenir a fabricação e disseminação do “dossiê” repudiado pelo STF.

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5. O caso do “dossiê” é exemplar do padrão relaxado de conformidade legal da
atividade de inteligência, tal como então praticada. O episódio revelou: (i) que a alta
administração federal só interveio depois que os fatos foram noticiados pela imprensa,
em reação à censura do Supremo, ainda assim de forma constrangida, para negar a sua
gravidade; (ii) a ausência de mapeamento adequado de risco de integridade de atividade
exercida sob sigilo; (iii) a má-gestão do serviço desviado para fins estranhos aos
legítimos interesses da segurança pública, com desperdício de tempo e recursos públicos;
(iii) a apuração interna parece ter sido inócua ou superficial; (iv) inexiste notícia da
adoção de medidas de preventivas capazes de dificultar a ocorrência de novos ilícitos.

Resta clara, portanto, a necessidade de elaborar programa reforçado de


integridade pública que atenda às especificidades da atividade administrativa de
inteligência, conformando-a às balizas do Estado Democrático de Direito, em
cumprimento às normas estruturantes do Decreto nº 9.203/17 e às diretrizes gerais de
integridade preconizadas pela Corregedoria-Geral da União.

As diretrizes fundamentais da regulamentação geral sobre o assunto podem ser


aplicadas às particularidades da atividade de inteligência. É o que procuramos explicar a
seguir, ao examinar, em grandes linhas, como poderia ser feita essa adaptação.

(a) Comprometimento e apoio da alta administração federal

A experiência em integridade pública e privada indica que as lideranças da


organização devem dar o tom do padrão ético a ser observado pelos demais
colaboradores, sejam eles servidores ou funcionários.

Na atividade de inteligência, é necessário que a liderança do órgão público que


executa a atividade estabeleça o respeito aos direitos fundamentais como moldura
intransponível para o seu regular exercício.

No caso do SISBIN, tendo em vista a miríade de órgãos que compõem o sistema,


é necessário que a alta direção de cada um deles demonstre comprometimento com a
integridade pública.

No caso específico da inteligência de segurança pública, é de fundamental


importância que o Ministro de Estado responsável dê o maior exemplo de conformidade
às normas éticas e profissionais.

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(b) Instância responsável pelo acompanhamento, monitoramento e gestão das
ações e medidas de integridade a serem implementadas.

De acordo com a CGU, as unidades de controle interno de cada órgão estatal


devem ser dotadas de autonomia, independência, imparcialidade e recursos materiais,
financeiros e humanos necessários ao desempenho de suas atribuições, de preferência
com acesso ao mais alto nível hierárquico do órgão.

i. No caso do SISBIN, é imprescindível fortalecer e garantir a autonomia e


imparcialidade das Corregedorias. A esse respeito, é possível encontrar, no direito
comparado, exemplos nos quais os corregedores passam por um processo de seleção e
treinamento especial, sendo inclusive impedidos de transitar da corregedoria para os
serviços de inteligência.

ii. Além disso, é relevante que órgãos específicos tratem da prevenção à prática
de ilegalidades ou violações de direitos humanos, por meio de controles internos eficazes.

É necessário promover a conscientização e treinamento dos agentes de


inteligência quanto às normas a serem cumpridas. Isso pode ser exercido pela própria
Corregedoria, mas, no caso da ABIN, também pode ser de competência da Assessoria de
Governança e Conformidade, essa ilustre desconhecida do povo brasileiro.

Quanto aos demais órgãos federais integrantes do SISBIN, é possível pensar em


arranjos cooperativos que garantam que as respectivas corregedorias sejam dotadas das
ferramentas de apuração de falhas nas extremidades da rede, bem como para que as
respectivas instâncias encarregadas da integridade estejam capacitadas a lidar com os
desafios peculiares do serviço de informação.

iii. A alusão, nos documentos oficiais, à “cultura do sigilo” é equívoca e pode dar
margem àquele tipo insidioso de confusão conceitual onde o abuso gosta de se instalar.
A regra do Estado Democrático de Direito é a transparência. A publicidade dos atos
estatais só pode ser condicionada, temporariamente, por um regime especial e altamente
regulado de classificação.

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No caso da DIOPI, uma grande massa de informações de inteligência é
conservada e distribuída, o que demanda tratamento rigoroso de dados. Deve ser possível
auditar os portadores de senhas de acesso aos sistemas de interceptação, se necessário
para apurar eventual prática de desvios.

Por “cultura do sigilo”, portanto, deve-se entender exclusivamente o tratamento


profissional das informações que podem ser legitimamente mantidas sob esse regime
jurídico de condicionamento especial. Jamais que o serviço de informações deve prezar
a atuação nas sombras, sem prestar contas de suas atividades. A “cultura do sigilo” remete
ao profissionalismo, não à clandestinidade. Nunca à falta de controle.

(c) Análise, avaliação e gestão de riscos específicos da atividade

No sistema de inteligência, os riscos de integridade são principalmente aqueles


ligados ao sigilo da atividade, ao desvio de suas finalidades para perseguir interesses
particulares (“aparelhamento”) e à possível violação de regras relacionadas à privacidade
e à proteção de dados pessoais.

Um programa reforçado de integridade voltado à atividade de inteligência precisa


analisar esses riscos e mapear em concreto as vulnerabilidades, para elaborar políticas e
procedimentos preventivos eficazes de mitigação.

i. Dentre essas políticas e procedimentos, a primeira medida esperada é a


elaboração de códigos de ética ou diretrizes de conduta proba, que estabeleçam as bases
para a condução profissional da atividade no sentido da accountability democrática.

A esse respeito, chama atenção que o Código de Ética do Servidor da ABIN tenha
permanecido por tantos anos em segredo da população, tendo se tornado público apenas
após revisão posterior ao caso do dossiê reprovado pelo STF. Dada sua importância, o
novo código deve ser cuidadosamente examinado e, se for o caso, revisado novamente,
de maneira a se assegurar sua efetividade na proteção de garantias constitucionais.

Para além da cúpula, padrões de conduta ética adequados devem ser aplicados ao
SISBIN como um todo. É preciso estabelecer uma abordagem funcional mais uniforme,
voltada à atividade em si, e não tão variável de um órgão a outro.

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As regras de integridade devem operar em todas as ramificações do sistema. É
justamente nas pontas que reside o maior risco de fermentação nociva de ações
clandestinas, bem como de inoperância dos mecanismos preventivos e repressivos de
controle.

O caso emblemático de abuso que estudamos transmitiu um péssimo sinal às


terminações do sistema informativo.

ii. Além disso, dentre as principais medidas de um programa de integridade


apontadas pelos guias de melhores práticas, destacam-se programas de treinamento e
comunicação, de detecção, recepção ou relato de irregularidades e a previsão de medidas
disciplinares para os casos de violação às regras de ética funcional.

(d) Monitoramento contínuo do programa de integridade

A experiência em compliance preconiza que um bom programa de integridade


deve ser constantemente monitorado; sem um processo de revisões sistemáticas e
periódicas, ele deixaria de acompanhar a realidade da atividade que pretende conduzir.

No caso do sistema administrativo de inteligência, por suas peculiaridades


técnicas e posição na política pública de inteligência, acreditamos que o monitoramento
contínuo da conformidade legal só possa ser exercido eficazmente por autoridades
dotadas de garantais institucionais. O controle externo da atividade policial hoje exercido
pelo Ministério Público não dá conta da complexidade do sistema. De qualquer modo, é
preciso monitorar o cumprimento dos parâmetros de integridade na atividade de
inteligência de segurança pública.

O aperfeiçoamento do sistema institucional de controle da atividade de


inteligência está inserido em sua missão constitucional de defender a ordem jurídica e o
regime democrático, sem falar no direito dos cidadãos.

Não se trata de controlar o conteúdo da atividade-fim desempenhada pelos órgãos


competentes, mas de verificar se os órgãos do sistema observam as melhores práticas de
integridade pública que conformam, de maneira geral, toda a Administração Federal, e,
em especial, essa função estatal sensível.

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Considerando que as regras especiais de conformidade legal do serviço de
informações de inteligência sobre segurança pública cabem ao Ministério da Justiça e
Segurança Pública, convém disciplinar, num programa piloto de compliance, que pode
ser depois generalizado, as melhores práticas de exercício do controle interno e auditoria
da conformidade legal da atividade administrativa de inteligência de sua alçada.

- III -

PROVIDÊNCIAS PRÁTICAS

Como vimos, a atividade administrativa de inteligência não pode operar às


sombras, descomprometida com os valores fundantes da democracia constitucional, com
os interesses nacionais e, principalmente, com os direitos fundamentais do cidadão que,
em última instância, ela deve proteger por meio de sua atuação profissional, regrada e
ética.

É necessário edificar um arcabouço de integridade que atenda às melhores


práticas nacionais e internacionais, tal como excogitado nos tópicos anteriores destas
notas.

Saber se existem e, sobretudo, se funcionam adequadamente os programas de


conformidade legal de atividade administrativa que apresenta tantos riscos de derivação
legal é uma tarefa que se impõe a um governo comprometido com o Estado Democrático
de Direito.

Para tanto, a expertise do Ministério Público Federal no controle externo da


efetividade de programas de ética pública e privada pode ser consultada, bem como os
manuais de boas práticas da Controladoria Geral da União, no que elas forem aplicáveis
à atuação especializada dos serviços de informação.

Convém pensar seriamente em desenvolver mecanismos de prevenção de desvios


éticos funcionais, para garantir que a atividade se mantenha estritamente dentro dos
limites legais e orientada para suas finalidades precípuas relacionadas à segurança do
Estado e da sociedade.

Salvo melhor juízo, um programa de integridade e conformidade legal aplicado


à atividade administrativa de inteligência deve garantir, em síntese:

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i. o comprometimento da alta direção dos órgãos integrantes do
SISBIN – com destaque para o Diretor-Geral da ABIN e para o
Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública – com o respeito à
legalidade e os direitos fundamentais, enquanto pressupostos
necessários do exercício dessa atividade profissional;

ii. a existência de órgão dotado de garantias institucionais que vise


não apenas punir, mas principalmente prevenir a ocorrência de
irregularidades, com regras que garantam que seus membros sejam
corretamente selecionados e treinados para as funções especializadas
a serem desempenhadas, sem espírito de corpo condescendente com
desvios e afastada a compreensão antidemocrática da “cultura do
sigilo”;

iii. o mapeamento dos riscos inerentes à inteligência, de forma a


possibilitar a criação de procedimentos e mecanismos capazes de
mitigá-los, entre os quais se encontra a possibilidade de auditar,
segundo o devido processo administrativo, a regularidade dos acessos
aos sistemas tecnológicos de informação e de controlar rigorosamente
quem dispõe legitimamente das senhas para tanto;

iv. o reexame e eventual revisão das normas éticas e de conduta


funcional vigentes, as quais devem se estender a toda atividade de
inteligência, e não apenas a ABIN;

v. a previsão de ações de treinamento e comunicação para capacitar os


agentes de inteligência para a correta condução de sua atividade,
dentro dos estritos limites da Constituição, do Direito Administrativo,
das normas éticas profissionais e, sobretudo, dos direitos
fundamentais assegurados aos cidadãos brasileiros;

vi. o estudo sobre a viabilidade de implementar canais de denúncias que


permitam reportar denúncias sérias de forma segura e sob proteção

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específica, respeitados os direitos fundamentais dos envolvidos e o
devido processo administrativo;

vii. a existência de unidades de controle interno especializadas e


dotadas de garantias de independência funcional, que investiguem as
infrações detectadas e efetivamente apliquem as medidas disciplinares
previstas, bem como as ações remediadoras que previnam a repetição
das irregularidades;

viii. a instituição de arranjos cooperativos que garantam que o programa


seja aplicado de forma sistêmica, a partir de um projeto piloto que
pode ser implementado na DIOPI/SENASP/MJSP;

ix. o monitoramento contínuo do programa de integridade e de


conformidade legal de todos os órgãos integrantes do sistema nacional
de informações de Estado.

Os conhecidos casos de abuso no exercício de atividade tão relevante como a


inteligência, ocorridos em passado relativamente recente, evidenciam a necessidade de
uma resposta institucional rigorosa. A construção de parâmetros legais e regulamentares
que conformem o serviço de informação de Estado, definitivamente, ao contexto
republicano e democrático, é uma política pública meritória. Tal seria a razão de ser de
um programa de integridade pública aplicado à atividade administrativa de inteligência
estatal, elaborado com base nas mais recentes pesquisas acadêmicas.

Com isso, pretende-se preservar a sua legitimidade enquanto instrumento de


proteção do Estado Constitucional, bem como a confiança dos cidadãos de que eles
atuam, verdadeiramente, em benefício do interesse público, respeitando a lei e os direitos
fundamentais.

(***)

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