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A Nossa História Pessoal

Nos meus tempos de juventude havia na antiga Avenida Marginal em Luanda,


entre o Largo do Baleizão e o Morro da Fortaleza, os restos de uma Casa
Grande (um sobrado) muito antiga, talvez construída no Século XVIII (ou
mesmo antes), em parte já em ruínas, que cada vez que passava por ela me
indagava a curiosidade - perguntava a mim próprio quando é que foi
construída? Quem a construiu? Quantas gerações da mesma família (ou de
familias diferentes) viveram nela? Quantas pessoas lá nasceram e morreram?
Viveu nela alguém de relevo na História de Angola? Como teria sido a vida
dessas famílias nesses tempos idos? Quando e porquê que a casa passou a
ser desabitada? - Por momentos a minha mente tentava ir atrás na bruma do
tempo, procurando no nevoeiro da história o saciar da minha curiosidade, o
que, por associação, invariavelmente me levava a pensar na minha história
pessoal e na história da minha família.

Todos nós temos a nossa história pessoal e todos nós temos um sentido nato
de história. Às vezes encontramo-nos a pensar no que tem sido a história da
nossa vida, nos acontecimentos que testemunhámos, ou pelo que passámos
no percurso individual da nossa vida.

Nesse esforço indagamos ainda como é que a história da nossa vida se


relaciona com a história da nossa família e amigos, da nossa vizinhança ou
comunidade, da nossa cidade ou nação, ou mesmo até como ela se relaciona
com o esquema geral de história da humanidade.

Mercê da nossa vivência real e directa de acontecimentos históricos, quando


olhamos para trás apercebemo-nos de que fomos testemunha, participante, ou
mesmo até agente de mudança na evolução geral da história do sociedade em
que vivemos.

Neste processo de análise da nossa história pessoal apercebemo-nos também


como os acontecimentos históricos que testemunhámos moldaram não só a
nossa vida como também a nossa personalidade, e mesmo até a maneira
como vemos o nosso lugar no universo.

Alguns de nós, talvez por razões completamente aleatórias, tivemos a sorte (ou
o azar, dependendo da perspectiva) de ser testemunha em certos
acontecimentos que são tão marcantes para a sociedade em que vivemos, que
eles servem de marcos para a história recente dessas sociedades, e que nos
deixaram uma marca profunda para o resto das nossas vidas.

E alguns, embora em muito menor número, temos a experiência de ter


participado directa e activamente nesses acontecimentos, como agentes ou
mesmo dirigentes de uma vivência social e histórica em permanente mutação.

Contrariamente a qualquer outro valor material, a nossa natureza humana


compele-nos a partilhar com outros a nossa história pessoal, pois sabemos
que quando a morte nos chamar, o livro da nossa vida se fecha e apaga para
sempre, e com ele se dissipa o tesouro do nosso conhecimento e da nossa
experiência pessoal e íntima.

No meu caso pessoal, tenho consciência clara de que vivi momentos históricos
extraordinários, que ficarão na história do mundo como marcos de mudança
fundamentais para as sociedades em que vivi. Como exemplo, relembro
o desmoronar do império colonial português e a independência de Angola.
Estes acontecimentos foram únicos e de impacto profundo para a maioria dos
Portugueses e dos Angolanos. Com eles se escreveu o último capítulo de uma
sociedade em extinção, e com eles se abriu num outro livro, o primeiro capítulo
para uma nova sociedade e nação.

No caso concreto de Angola, quem viveu na Angola Colonial, sabe bem apreciar
as mudanças radicais que tiveram lugar desde a década de cinquenta do
século passado até hoje, e como elas afectaram a vida de todos nós. Assim,
em pouco mais que uma geração, fomos testemunhas de mudanças profundas
nas vivências do passado, algumas das quais nós (a nossa geração) fomos os
últimos a viver um modo de vida que desapareceu para sempre, deixando
apenas em alguns de nós a saudade, e noutros o alívio de saber que esses
tempos passados jamais voltarão.

Assim, sinto que tenho de partilhar com o mundo o que sei e senti numa Angola
que já há muito não existe, pois sei que sou um membro da última geração que
o pode fazer, baseado na minha experiência pessoal e directa. Sei que quem
vier depois de nós e quiser contar a nossa história, se terá que basear no nosso
testemunho directo. Eis assim uma razão fundamental desta minha Viagem
Pela História de Angola.
No longo caminho de aprender história que começou para mim talvez em 1964
nas aulas de História do Quarto Ano dadas pela Dra. Judite Morais, no antigo
Liceu Paulo Dias de Novais em Luanda, até aos dias de hoje, vieram-me muitas
vezes à mente as seguintes perguntas:Porquê História? O que é que despertou
em mim o interesse (quase paixão!) pela história? Perguntas postas não só por
outros a mim, como também por mim próprio.

Desde que me lembro, tive sempre uma curiosidade imensa em indagar as


raízes da nossa vida quotidiana. Porque é que vivemos a vida que vivemos, e
quais foram os factores determinantes em vivermos num mundo de duas
culturas (a africana e a ocidental),culturas que não estavam em completa
sintonia uma com a outra?

Para melhor compreender estas perguntas penso que é necessário partilhar


contigo um pouco da minha vivência pessoal de acontecimentos que vivi e que
penso me vão ajudar nesta Viajem Pela História de Angola a demarcar mais
claramente o contexto de momentos históricos que testemunhei. Peço assim,
que me acompanhes por alguns minutos nesta viagem fantástica e pessoal
desde há mais de 50 anos atrás.

Devo dizer-te de antemão que este troço da Viagem Pela História de Angola é
mais Memória do que é História. É de facto o troço mais pessoal e íntimo desta
Viagem, em que faço referência a pessoas e acontecimentos que foram
importantes para mim. Não pretendendo narrar aqui a minha biografia em
grande detalhe, mas entretanto e em poucas palavras tenho que dizer-te que ...

Tive sorte...

Sorte de ter nascido onde nasci


de ter tido a família que tive
de ter crescido onde cresci
Sorte de ter os amigos que tive

Sorte de ter vivido onde vivi


de ter acreditado no que acreditei
de ter vivido na época em que vivi
Sorte de ter pensado o que pensei

Sorte de ter vivido o que vivi


de ter chorado o que chorei
de ter vivido com quem vivi
Sorte de ter amado quem tanto amei

Sorte que assim guardo para sempre


valendo mais que todo o ouro
Lembra; tudo o que acima disse,
como o meu mais valioso tesouro.

Assim, descrevo a seguir alguns acontecimentos de que fui testemunha ou


períodos que vivi, que não só me marcaram como pessoa, mas que também
acredito foram marcos importantes no percurso da História de Angola nos
últimos cinquenta anos.

2. Anos de Meninice

Lembro-me que, ainda na Vila da Damba (Uíge) em 1958 ou 59, não conseguia
compreender porque é que o nosso criado africano de quem já me não lembro
o seu nome, talvez da minha idade e ainda menino como eu, meu amigo e
companheiro de diabruras sem fim, era "diferente" do meu amigo e vizinho
João Nicolau (branco), também da minha idade e companheiro inseparável de
aventuras?

Lembro-me ainda de uma viagem que fizemos a São Salvador do Congo (hoje
Mbanza Kongo), onde me foi indicado a casa onde vivia o Rei do Congo, o que
me deixou um pouco perplexo, pois apesar de a minha mãe já me ter falado
dele e da sua corte no tempo da chegada dos Portugueses ao Antigo Reino do
Congo, admirei-me que o Rei do Congo vivia numa casa "normal" (casa
construída pelo Estado, em que o estilo era o mesmo do posto de saúde da
Damba), e não num palácio ou uma cubata, e reparei que nunca tinha visto
qualquer referência a ele nos livros de escola. Ao mesmo tempo, essa
experiência original abriu-me a mente à história dos povos africanos em
Angola, que decerto tinham a sua história, mas que por muito tempo se havia
de mostrar como um mistério para mim.

Pensava às vezes que, talvez devido à minha incapacidade de encontrar


resposta a essas perguntas, aceitava a vida como me era oferecida, sem ter
que aprofundar mais o assunto. Contudo, a falta de resposta a perguntas como
essas continuava a "roer-me" até encontrar resposta.

3. Refugiados do Congo Belga

Já em 1959 e 60, assisti à debandada dos europeus do então Congo Belga,


onde tinhamos alguns tios e muitos primos com quem íamos passar férias de
vez em quando, que diariamente passavam com os seus Mercedes
abarrotados de carga pela nossa pacata Vila da Damba em direcção a Luanda.
Para mim não fazia sentido a suspensão doRally Automóvel Leopoldville -
Luanda - Leopoldville (hoje Kinshasa), o maior acontecimento do ano naquelas
pacatas paragens, e muito menos este êxodo de carros e famílias que dia-a-dia
aumentava de volume e intensidade.

Perguntei à minha mãe o que é que estava a acontecer, e ela disse-me então
que era por causa da independência do Congo Belga, e que era uma questão de
tempo até nos acontecer o mesmo aos Portugueses em Angola.

A minha mãe (Maria Helena) nasceu em Leopoldville (hoje Kinshasa, no antigo


Congo Belga, hoje República Democrática do Congo), passou a sua meninice
em Lisboa, e veio para Angola ainda na sua juventude, onde viveu toda a sua
vida, até ir para o Brasil em 1975, onde faleceu em Abril de 2010. Aminha Mãe
foi sempre a pessoa que mais admirei durante toda a minha vida. Apesar das
grandes e muitas vicissitudes que Ela enfrentou na sua vida, Ela nunca deixou
de lutar contra a adversidade e injustiça, e manter sempre o ânimo no momento
presente e a esperança de tempos melhores. Foi dela que herdei o gosto muito
grande que tenho em aprender, em ver a vida como a vejo, e em ser a pessoa
que me esforço ser. Ela falava bem kikongo e tinha uma boa compreensão da
História de Angola em geral e do Antigo Reino do Congo em particular. O seu
Pai (meu Avô, Júlio Pinto Correia) veio de Fratel, Castelo Branco, Beira-Baixa,
Portugal, para África muito novo em 1887 para Boma, Matadi, e Leopoldville no
Antigo Congo Belga, e Maquela do Zombo, Damba e região da Serra da Canda
em Angola, e fez fortuna com a borracha e mais tarde com o café, mas não
sem ter perdido quase toda a sua fortuna devido às graves crises económicas
mundiais de 1918-22 e de 1929-33. O meu avô morreu em Luanda em 1955,
depois de viver quase 70 anos em Angola. A minha avó (Ana Carneiro, que
nunca conheci pois faleceu antes de eu nascer) era mestiça de descendência
africana e era oriunda da região de Cabinda. O meu pai era natural de
Trás-os-Montes (Vinhais, Bragança, Portugal) e foi para Angola em 1941 depois
de terminar o Sétimo Ano no Liceu de Bragança. Como topógrafo, e enquanto
vivemos em Luanda, o meu Pai, passava períodos extensos ausente de casa e
trabalhando no mato (Bom Jesus, Cambambe, Munhango, Saurimo, Cazombo,
Luimbala, Lungué-Bungo, Jamba, e Serra da Leba), durante os quais a minha
Mãe tinha de assumir em casa o duplo papel de Mãe e Pai ao mesmo tempo.

4. Dissidentes Políticos

Mais tarde em 1960, fomos todos para Luanda porque a minha mãe estava de
bebé da minha irmã Ana Paula, que havia de nascer na Maternidade de Luanda
a 14 de Janeiro de 1961, portanto cerca de onze anos mais nova que eu. A
minha irmã Maria Dilar, dois anos mais nova do que eu foi desde sempre a
minha companheira de brincadeiras e diabruras. A minha irmã Maria Ema (dois
anos mais velha que eu) estava nessa altura a estudar num colégio de madres
em Portugal, e o meu irmão Rui Manuel (três anos mais velho que eu) estava
internado no Colégio Brotero no Bairro do Cruzeiro em Luanda. Durante a nossa
estadia em Luanda ficámos em casa de uma amiga de infância da minha Mãe
dos tempos em que ela tinha vivido em Maquela do Zombo, a D. Lena Marreiros
Morais, que morava na Travessa Conde Ficalho, perto da Padaria Lafões e da
famosa Pastelaria Détinha (que bons Pasteis de Nata e Bolas de Berlim!!!.),
entre a antiga Rua Coronel Artur de Paiva e a antiga Avenida dos Combatentes.

Numa conversa depois de jantar foi aí que tive conhecimento daRevolta da


Baixa do Cassange e do uso de bombas Napalm pela Força Aérea
Portuguesa para suprimir a revolta dos trabalhadores da Cotonang, então a
maior companhia envolvida no negócio do algodão em Angola. Soube também
nessa noite muito vagamente da prisão do Cónego Manuel das Neves e mais
alguns membros da resistência angolana, que ao que parece estavam a
conspirar uma revolta.

Ainda quando estávamos em casa da família Morais (o Sr. Alfredo, a D. Lena e


Tommy (António Emídio, filho, da minha idade, e meu grande amigo de infância
e falecido há uns anos), lembro-me que todos em casa acompanhámos de
muito perto através da BBC Radio em ondas curtas todos os dias à noite
o assalto e desvio do paquete "Santa Maria" das Caraíbas para o Brasil levado a
efeito pelo Capitão Henrique Galvão e um grupo revolucionário que se opunha à
ditadura de Salazar.

A família Morais eram amigos da nossa família muito chegados e de longa data.
O Sr. Alfredo e a D. Lena eram conhecidos pela sua oposição ao regime de
Salazar, e a vida em casa em certa medida reflectia a independência, mesmo
até militância que os caracterizava. Na mesma casa residiam também
temporariamente um casal novo com um bébé, o Adolfo Maria e a Lena (as três
esposas eram Helenas: a minha mãe: Lena Ponte, a Lena Morais, e a Lena
Adolfo, e os três maridos eram topógrafos). Não me posso esquecer o que as
nossas mães (a minha e a do Tommy Morais) nos disseram para não
responder a ninguém nunca qualquer pergunta sobre o Adolfo ou a Lena - as
palavras da minha Mãe foram: "Não sei, não vi, não ouvi!" Isso fez-me "macacos
na cabeça" pois não podia perceber porque é que tanto segredo era preciso
para cobrir o Adolfo Maria e a Lena, mas, contudo, sem questionar, segui as
prescrições à risca. Dias mais tarde, quando o Adolfo e a Lena tiveram que
"mudar" para outra casa é que aprendi que a PIDE (Polícia Internacional de
Defesa do Estado, polícia política portuguesa, que eu ainda não sabia o que era)
andava atrás deles.

5. O Ataque de 4 de Fevereiro de 1961

A família Morais tinha um criado (empregado doméstico) de nome Filipe, jovem


africano ainda dos seus dezanove ou vinte anos, que tinha como aposentos um
quarto ao fundo do quintal, e que na noite de 4 de Fevereiro não dormiu em
casa. Aprendi no dia seguinte pelo Filipe, que com muito medo e em segredo
me disse que tinha havido um assalto na noite anterior à cadeia de S. Paulo nos
arredores de Luanda, nos quais tinham sido mortos sete polícias e muitos
assaltantes africanos, membros do MPLA (Movimento Popular de Libertação
de Angola), de quem tinha ouvido falar pela primeira vez.

Dias depois fomos ao funeral dos sete polícias no Cemitério da Estrada de


Catete (antigo Cemitério Novo), onde para meu terror assisti a uma terrível
confusão, com muitos tiros, muitos gritos, pessoas a fugirem para todo o lado,
uns a caírem feridos, outros a tentarem abrigar-se do intenso tiroteio.
Entretanto, tinha-me perdido da D. Lena e do Tommy, ficando paralisado (mais
estarrecido, talvez) durante horas deitado ao lado da campa do meu avô que
tinha ido visitar por uns momentos, até já à tardinha, quando já tudo tinha
acalmado, mas com o cemitério ainda cheio de pessoas aterrorizadas, feridas e
talvez algumas mortas, e um polícia me veio buscar e levou-me para a
esquadra central da Polícia de Segurança Pública (PSP) ao lado da Livraria
Lello, no Largo Pedro Alexandrino da Cunha (Largo dos Correios), na baixa de
Luanda. Mais tarde, por cerca das oito horas da noite a minha mãe e a D. Lena
Morais ansiosas me vieram buscar e levaram para casa. Ainda hoje, quando
relembro esse acontecimento, vem-me à memória o sentimento de terror que
senti nesse fatídico funeral dos sete polícias, e o sentido que esse
acontecimento histórico teve para mim.

6. Os Ataques de 15 de Março de 1961

Mais ou menos duas semanas mais tarde regressámos à Damba, e talvez um


mês mais tarde no dia 15 de Março de 1961 tiveram lugar os assaltos
da UPA (União dos Povos de Angola) à povoação doQuitexe, a outras
povoações, e a muitas fazendas de café no Distrito do Uíge, em que um número
elevado de brancos e trabalhadores (contratados) do Bailundo (Huambo e Bié)
foram mortos pelos revoltosos. Soubemos acerca desses acontecimento ao
princípio da tarde dia desse mesmo dia, e com o meu Pai ainda em Luanda,
lembro-me bem que a minha Mãe resolutamente decidiu em menos de uma
hora e contra a opinião de todos os presentes, desfazer tudo o que tinha em
casa, carregar algumas mobílias em duas camionetes, e partir nessa mesma
noite nas mesmas com destino à Vila do Bungo.

Durante a viagem, já depois da povoação de 31 de Janeiro, um grupo de


guerrilheiros ("terroristas" para uns, "heróis" para outros) de catana na mão
bloquearam a estrada e tentaram parar os camiões em que seguíamos. O
condutor do camião em que eu ia (a minha Mãe, e a minha irmã Dilar, e a minha
irmã Paula de dois meses, iam no outro camião atrás do nosso) disse-me para
me abaixar e abrigar, e decidiu não parar, pôs o pé no acelerador ao fundo e em
velocidade crescente passou pelo grupo que acenavam suas catanas ao
verem-nos passar. Foi tudo muito rápido, e no escuro, que salvo a luz dos faróis
do camião, pouco mais se podia ver senão alguns vultos; mas lembro-me bem
o terror que senti nesse momento.

Talvez uma hora e meia mais tarde chegámos à Vila do Bungo onde não nos
deixaram prosseguir a viagem. Passámos o resto da noite na igreja da vila com
o resto das mulheres e crianças num ambiente caótico e de angústia,
guardados pelos homens da vila, armados e fazendo vigia à volta da igreja,
onde se tinham reunido todos. De manhã, já a 16 de Março, e contra o conselho
de todos, a minha Mãe insistiu em prosseguir a viagem para a Vila do Negage,
onde nos tinha sido dito que uma ponte aérea estava a evacuar mulheres e
crianças para Luanda.

Chegámos ao Negage ao meio-dia, sob uma chuva torrencial, de onde fomos


dirigidos para a Base Aérea No.9 que ainda estava em construção nessa altura.
Sob a chuva torrencial o barro vermelho não nos deixava sequer andar,
contudo, com alguma dificuldade chegámos finalmente à Base Aérea do
Negage, onde fomos encontrar centenas de mulheres e crianças refugiadas
como nós à espera da sua vez para serem evacuados para Luanda. Horas mais
tarde, nesse mesmo dia, fomos evacuados num avião NordAtlas ("Barriga de
Ginguba" da Força Aérea Portuguesa) para Luanda, onde já chegámos à
noitinha e o meu Pai nos esperava.

7. Luanda em 1961

Os primeiros dias em Luanda foram de grande apreensão para mim. Ainda


muito novo para compreender a guerra iniciada pela UPA (União dos Povos de
Angola) com os ataques de 15 de Março, incluindo os ataques ao Lucunga a 17
de Abril e à Damba a 17 e outra vez a 19 de Abril, em que amigos nossos muito
chegados a nós foram torturados e depois barbaramente mortos à catanada, e
em especial o ataque à nossa Roça de Novo Fratel em que os trabalhadores ou
foram mortos ou fugiram para o mato, e os edifícios, máquinas, viaturas,
mobílias, stock de café, e recheio, etc. foram completamente destruídos, e em
que soube que os assaltantes fizeram uma fogueira muito grande com os livros
da biblioteca valiosa do meu avô, foi muito difícil para mim fazer qualquer
senso desta mortandade e destruição. Contudo, no meio de tanta aflição e
tragédia, senti que tivémos sorte, porque fugimos a tempo e não tínhamos
perdido nenhum membro da família.
A maioria dos "deslocados" do Norte, que nessa altura se contavam já por
muitos milhares, tinham sido acomodados em centros de alojamento
temporários e recebia ajuda alimentar, de vestuário e de medicamentos
fornecidos pela Comissão Provincial de Apoio às Populações Deslocadas
(CPAPD - o IARN de outros tempos). Quanto à nossa família, nós ficámos
primeiro em casa de amigos de família (o Sr. Arlindo Cruz, falecido há muito,
irmão ou cunhado (?) dos locutores Alice Cruz ou Carlos Cruz).

Poucos dias mais tarde, os meus pais decidiram alugar um apartamento na


Rua António Enes, junto à Pastelaria Suíça, a caminho do Bairro de São Paulo,
no segundo andar do prédio da Farmácia Confiança, já perto do Bairro Operário,
e dois ou três meses mais tarde uma casa de primeiro andar na mesma Rua
António Enes, mas mais a norte, em frente a um prédio de esquina que dava
acesso ao Bairro Miramar, que a minha mãe e tias tinham herdado do meu avô
que tinha morrido seis anos antes, e de cuja traseira se tinha uma vista geral do
Bairro Operário em Luanda.

Uma vez na nova casa, eu e a minha irmã Dilar passámos a frequentar a Escola
Primária Nº 8, ao fundo da Rua Mouzinho de Albuquerque, rua que ligava o
Mercado de Quinaxixe ao Cemitério do Alto das Cruzes (Cemitério Velho), a
caminho da Casa de Saúde de Luanda e à entrada do Bairro Miramar.
Entretanto, assistimos quase diariamente a inúmeras rusgas de trabalhadores
africanos que viviam no Bairro Operário, ou que simplesmente iam a pé para o
seu trabalho ou regressavam para casa depois de um dia de trabalho ao longo
da Rua António Enes, quase todos os dias, a qualquer hora do dia ou da
noite, levadas a cabo pela polícia ou por grupos armados de vigilantes
brancos que à mínima suspeita, ou mesmo sem qualquer razão,
davam grandes cargas de pancada aos pobres africanosque por ali passavam.

Os nossos amigos, refugiados das áreas afectadas pela guerra("terrorismo"


para a administração portuguesa, "Luta de Libertação Nacional" para os
Angolanos, e"Guerra Colonial" para a oposição ao regime do Estado Novo
português) como nós, que encontravamos frequentemente, contavam-nos
histórias horripilantes do que estava a acontecer no Norte de Angola, de
amigos que foram mortos e do modo como foram mortos ou encontrados, e de
todas as atrocidades que os guerrilheiros da UPA(União dos Povos de Angola)
vinham perpetrando.
Talvez ainda em fins de Abril ou principios de Maio, já não me lembro
exactamente o dia, fomos todos assistir à chegada das primeiras tropas
portuguesas que tinham chegado a Luanda no navio Niassa. Lembro-me bem
do desfile das tropas ao longo da Avenida Marginal, e da festa de recepção que
fizemos a um nosso primo afastado João Graça (que nunca tinha conhecido
antes) que era alferes e que tinha vindo no primeiro contingente de tropas
portuguesas.

8. Anos de Juventude

Em Agosto de 1961, mudámos outra vez de casa, desta vez para a Rua 28 de
Maio, No.9, no Bairro da Maianga, onde haveríamos de viver até 1969, pois eu
tinha sido matriculado no Liceu Paulo Dias de Novais, situado na Cidade Alta ao
lado do antigo Quartel General da Região Militar de Angola, em frente ao jardim
que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque. O liceu tinha nessa altura
sido convertido de liceu feminino em liceu masculino para acomodar o número
crescente de alunos vindos das áreas afectadas pela guerra cujas famílias se
haviam de estabelecer em Luanda, e não retornar às áreas afectadas pela
guerra, já que o novo edifício do Liceu Feminino D. Guiomar de Lencastre se
tinha acabado de construir.

Apesar de ter gostado imenso do liceu (ou talvez por isso mesmo...),reprovei no
primeiro ano, o que não agradou nada aos meus pais. Nos próximos anos fui
crescendo e passando de ano para ano no liceu, e a começar a tomar
consciência da realidade colonial em que vivíamos. Tive bons professores que
despertaram em mim o gosto em aprender, ao mesmo tempo que com os
amigos de Bairro ou de Liceu fazíamos as maiores tropelias, das quais ainda
me lembro em especial do pobre Palhinhas (que vivia só (com 23 gatos!) numa
casa abandonada perto do Cinema Restauração, na Avenida Álvaro Ferreira - do
Hospital), e da Joana Maluca, uma demente muito popular nas ruas de Luanda
desse tempo.

Na Maianga cimentei amizades profundas que, apesar de viver muito longe e


sem convívio e volvidos que são mais de quarenta anos, ainda hoje muito
prezo; como posso esquecer a Fatinha (!) e o Zeca, as manas Manuela e Olga, o
Miúdo Vítor, a Manuela (Fininha) o José Luís Bernardino e a Lídia, o Afonso
Fininho e irmãos, o Jorge Pinho, o Carlos e a Laura Russo, o Frédito, o Vítor
Azevedo, a Emília, os irmãos Dario e Tó Sotto-Maior, a Paula Correia de Oliveira,
o Tomané, o Fernando e a Fernanda Caetano, o Edgar e a Rosário, o Pedrocas,
o Orlando Maio, os manos Brito, a Isabel, o Carlos e a Ana Maria Costa, o Joca
(nosso vizinho), o Morgado, o Anapaz Pereira, o Russo, o Inglês, o Júlio e o Zé
Gebo, o Tiago, o Celso e o Jorge, o Fernando Rosa Rodrigues, os irmãos
Borralho, o Mário Jorge, o Adelino, o Jajão e a Titocas, os irmãos Paixão, e
tantos outros, como os posso esquecer?

No Sporting Clube da Maianga, uma verdadeira escola para todos nós, comecei
por jogar basquetebol (juvenis) por dois anos, mas que por não ser alto e ter
pouca (quase nenhuma...) habilidade para tal, mudei para hoquei em patins (em
júniores, em que a habilidade não era melhor). Como atletas do Clube,
podíamos ir ao cinema sem pagar, o que resultou em ter ido ao cinema pelo
menos duas ou três vezes por semana durante cinco ou seis anos, e o que me
ajudou imenso a melhor perceber o mundo à minha volta. Foi ainda nas
matinées dançantes de domingo à tarde no Sporting da Maianga que a minha
paixão pela Odete Silva me deu a coragem para lhe pedir namoro.

Foi ainda na Maianga que tomei pela primeira vez contacto directo com a
existência de dois mundos que a antiga Avenida António Barroso dividia: o da
cidade para os brancos (Maianga e Alvalade) e o dos muceques para os negros
(Catambor). Contudo, o Sporting da Maianga era o elemento aglutinador desses
dois mundos em que oelemento "raça" não tinha grande significado.

Dos professores que tive no "Paulo Dias", realço o seu primeiro reitor Dr.
António Saraiva de Carvalho, a Dra. Judite Morais, professora de História, a Dra.
Maria Amélia (Matemática), a Drª. Paulina Bento Ribeiro (Francês), e em
especial os Professores Eduardo Zink (de Desenho), Dr. Polidoro de Oliveira
(Português) e do Padre Eduardo André Muaca (Religião e Moral) pois que com
os seus ensinamentos e exemplo exerceram uma grande influência positiva na
minha formação como cidadão e pessoa.

O meu encanto por África cresceu com a leitura ainda cedo da biografia de
Albert Schweitzer e a sua obra no hospital de Lambarené, no Gabão, e de dois
livros muito interessantes de Fernando Laidley "Roteiro Africano" e "Missão em
África" que relataram a primeira viagem de automóvel à volta do continente
africano num Volkswagen "Carochinha", e a única viagem de automóvel ligando
as províncias portuguesas de África, num carro de marca Borgward, que hoje já
não se fabrica. Através dessas obras aprendi que a África era na verdade um
continente muito grande e diverso com regiões e povos muito diferentes.

Por outro lado, o meu interesse pela História de Angola começou com a leitura
da obra de Gastão Sousa Dias "E Julgareis qual Será o Mais Excelente..." que
tínhamos em casa, e dos muitos livros deElaine Sanceau sobre a expansão
portuguesa no mundo, dos quais "Os Portugueses no Brasil" se destacava.
Lembro-me que aos poucos, e à medida que as poupanças me permitiam,
comprei todos os livros da séria completa (a minha primeira colecção
completa!) publicada pela Livraria Civilização, dessa grande mestra em história
da expansão portuguesa no mundo.

Mais perto do caso pessoal da nossa família, lembro-me que vi e re-vi o filme "E
Tudo o Vento Levou" - uma história pungente de romance passado na Guerra
Civil Americana, no fim do regime de escravatura nos Estados Confederados do
Sul, que a minha Mãe se referia com certa frequência, que me impressionou
sobremaneira, e me ajudou a compreender melhor a razão porquê e aceitar que
a nossa famílianão havia de voltar jamais à nossa Roça Novo Fratel, lugar que
tanto amava, nas fraldas da Serra da Canda, entre a Damba e São Salvador, no
coração do Antigo Reino do Congo.

Foi ainda no Liceu Paulo Dias de Novais que soube dodesaparecimento


inexplicado de alguns colegas angolanos de cor, dos quais nunca viemos a
apurar se tinham sido presos pela PIDE, ou se tinham deixado Luanda para se
juntarem aos movimentos de libertação que activamente recrutavam membros
nos liceus de Luanda.

Desde muito cedo os meus pais cultivaram em mim o interesse pela história e
pelo negócio (era um bom jogador de Monopólio), o que talvez
subconscientemente me levou a seguir a Alínea "G" no Sexto e Sétimo anos
(Ciências Económicas e Financeiras), quando mudei para o Liceu Salvador
Correia. Os meus três anos no "Salvador Correia" (reprovei a Matemática e a
Inglês) foram críticos para a minha formação como cidadão. Relembro ainda
que era sagrada para mim a leitura da Revista Notícia todas as semanas, em
especial os escritos de João Charulla de Azevedo (cujo lema era "Projecto o
melhor, espero o pior, e aceito de ânimo igual o que Deus quiser", palavras que
me iriam guiar para o resto da minha vida), e a crónica semanal "A Chuva e o
Bom Tempo" de João Fernandes. Da imprensa diária em Luanda lia com
frequência os jornais matutinos "A Província de Angola" (de maior circulação
em Angola, e que líamos diariamente), e "O Comércio", e os jornais da tarde
"Diário de Luanda"(sob certa influência do governo) e "ABC"(talvez o mais
independente).

Entre os mundos das humanidades e das ciências no liceu Salvador Correia, os


alunos da Alínea "G" tinham certas disciplinas com os cursos de línguas
(românicas e germânicas), ciências histórico-filosóficas e direito, e outras com
os alunos de ciências e arquitectura, o que me permitiu fazer muitas amizades.
No Sexto Ano fui escolhido para fazer parte da turma experimental
deMatemática Moderna no Liceu Salvador Correia - havia outra turma mista no
Liceu D. Guiomar de Lencastre - que muito me ajudou a aprender a trabalhar
melhor com os meus neurónios. Lembro aqui com saudade a figura do Dr.
Vinhas Novais, que como professor da turma despertou em nós o interesse
pela matemática não convencional. Lembro ainda as professoras Drª. Teresa
Velhino(de Inglês) e Drª. Piedade (de alcunha Periquita, de Filosofia). Escrevi
nesse ano o meu primeiro artigo sobre os Jogos Olímpicos modernos que foi
publicado no nosso saudoso jornal "O Estudante", orgão dos alunos do Liceu
Nacional Salvador Correia, que despertou em mim o gosto (mais tarde paixão)
por escrever.

Nesse ano ainda, comecei a ajudar em matérias administrativas no conselho


técnico do Sporting Clube da Maianga, sob a direcção do meu grande amigo e
mentor Sr. Carlos Morais, funcionário dos Caminhos de Ferro de Angola e
membro da direcção do clube, e doSr. Renato dos Santos, pai do membro da
SanzalAngola Renato dos Santos - Béná, que contribui frequentemente para
aquele fórum. O Sr. Renato Santos, que era funcionário dos CTT (Correios,
Telégrafos e Telefones) tinha perdido um braço num acidente ainda cedo na
vida, mas mesmo assim e já não jovem, atravessava a Baía de Luanda a nado,
só com um braço; a quem muito devo a ambos como aprendiz, o que me
permitiu lidar com atletas de todas as categorias sociais, e de me aperceber de
mais perto da diferença entre os dois mundos em que se dividia a sociedade
angolana de então.

Ainda no Sexto Ano do liceu estive em casa doente cerca de dois meses, o que
me deu a oportunidade de ler muitos livros dos meus pais, dos quais destaco
"As Vinhas da Ira" de John Steinbeck, uma obra de um realismo social intenso
que me marcou sobremaneira, baseada na experiência da Grande Depressão
Económica na América nos anos Trinta, e em como uma família de
trabalhadores agrícolas (os Oakies), vítimas de uma exploração atroz, tinha
perdido todos os seus parcos haveres na pradaria de Oklahoma devido à Crise
Económica de 1929, e decidira emigrar para a terra prometida da Califórnia,
mas que nessa jornada ia sendo destruída aos bocados, e com heróica
dificuldade sobreviveu a pobreza e exploração implacável do estado, dos
bancos e dos grandes proprietários da terra na Califórnia de então. Li ainda
todas as Selecções do Reader’s Digest desde que tinham começado a serem
publicadas em língua portuguesa no Brasil (que os meus pais assinavam), li
anos e anos de edições do Almanaque Bertrand que tínhamos em casa, e li e
reli muitas vezes quase todos os artigos do gigante e velho "Dicionário
Universal Lello" que tínhamos herdado do nosso avô.

Deste período de repouso nasceu "oficialmente" o meu interesse por livros e


pela leitura, embora já desde muito jovem gastasse em livros o pouco dinheiro
que com dificuldade amealhava, e o meu fascínio pela história como registo da
experiência de sociedades e mundos passados.

Durante os meus anos no "Salvador Correia", fiz parte da equipa de remo


da Mocidade Portuguesa, da qual era timoneiro, e que me deu a oportunidade
de visitar o Lobito e Moçâmedes várias vezes nos campeonatos provinciais de
remo, nos quais fomos campeões em alguns. Eu sempre gostei muito da praia
e do mar, mas a prática de um desporto náutico nas tardes de fim-de-semana
sob a brisa Baía de Luanda, que eu haveria de conhecer tão bem, foi para mim
uma das actividades das quais guardo as melhores recordações.

9. Cursos de Vida Apostólica

No ano em repeti o Sétimo Ano do liceu tive a sorte de ter sido escolhido a
participar num retiro de cristandade para jovens (os Cursos de Vida Apostólica -
CVA), onde de perto me apercebi do papel que a religião e a ideologia tinham na
formação e controle das sociedades luandense e angolana de então. Aí fiz
grandes amizades que se mantêm até hoje, e aí aprendi o dilema da Igreja
Católica em Angola durante toda a época colonial.

Cedo me entreguei a esse ideal nobre, pois, de facto, os CVA foi um bom
movimento de juventude que fez uma obra notável em Luanda. Talvez pela
minha dedicação ao ideal, dentro de pouco tempo fui escolhido para
"responsável" (dirigente); dois anos mais tarde fui escolhido para substituir o
meu grande amigo Luís Delgado, que por sua vez tinha sucedido ao carismático
Toni Barbosa, no cargo de presidente do movimento. Como tal, tinha encontros
frequentes com o corpo de dirigentes leigos e religiosos (Padre Francisco
Janeiro e Capelão Padre Jorge), em especial com o (então) Bispo Auxiliar de
Luanda D. Eduardo André Muaca, que me ajudou a "abrir mais os olhos" à
situação de injustiça social que a população não-branca de Angola tinha que
enfrentar no seu dia-a-dia. Natural da área Missãodo Lucula, posto de Tando
Zinze, em Cabinda e de raça negra, o Padre André Muaca desde os bancos do
Liceu Paulo Dias de Novais, e mais tarde como bispo na Arquidiocese de
Luanda, teve uma influência extraordinária na minha formação, e guardo dele
as melhores memórias como amigo genuíno, e guardo em especial a memória
da cerimónia inesquecível da sua consagração como bispo a 31 de Maio de
1970, na Igreja de São Paulo em Luanda, já que Dom Eduardo era o primeiro
bispo de raça negra em Angola, desde os tempos do Antigo Reino do Congo, na
primeira metade do Século XVI, em que Dom Henrique, príncipe do Congo, tinha
sido consagrado Bispo de Útica.

Os CVA ofereceram-me a oportunidade de conviver com um grupo muito mais


amplo de amigos, oriundos de todos os quandrantes sociais de Luanda, e de
pensar na melhor maneira de aplicar a minha energia em projectos concretos
de relevância social; assim, envolvi-me em projectos de assistência ao Abrigo
dos Pequeninos (em cooperação com a Associação das Vicentinas de Luanda
(São Vicente de Paula) na antiga Avenida Lisboa - Aeroporto), e do Beiral dos
Velhinhos (na Terra Nova), em que pude constatar ao vivo as necessidades
reais dos desprotegidos pela sorte e esquecidos pela sociedade. Ainda no
domínio social, recordo o bom convívio que a reunião semanal às
Quartas-Feiras, a missa semanal às Terças-Feiras (incialmente na Igreja do
Carmo, e mais tarde na Igreja da Sagrada Família), e a missa no Domingo à
noitinha na Igreja de Jesus, nos ofereciam. Talvez como mais-valia do trabalho
social em que nos empenhámos, ainda nos CVA aprendi a diferença entre fé e
humanismo cristãos de D. Helder da Câmara, Bispo do Recife, abraçando
gradualmente o humanismo cristão já que à medida que mais aprendia e
trabalhava no terreno, a minha fé em Deus (e talvez nos homens) se desvanecia
gradualmente. Decidi então, com grande dificuldade, deixar os CVA e abraçar o
novo mundo que então na universidade se abria para mim. Contudo, apesar
deste afastamento gradual da fé cristã, guardo dos CVA e dos amigos que lá
encontrei as melhores memórias.

10. Universidade de Luanda

Embora os Estudos Gerais Universitários tenham sido fundados em 1962, a


Universidade de Luanda em 1969 oferecia cursos somente em ciências,
engenharia, medicina (em Luanda), agronomia e veterinária (em Nova Lisboa), e
letras e história (em Sá da Bandeira), e era notória a falta em Angola de uma
faculdade de direito e uma de economia. Os alunos que quisessem prosseguir
estudos nesses campos tinham de fazer um exame de aptidão à universidade e
depois seguir para a Metrópole (Portugal - Lisboa, Coimbra ou Porto) a fim de
prosseguir os seus estudos nas universidades portuguesas.

O governo português era naturalmente adverso a esses desejos, e assim


resistiu durante anos em autorizar que esses cursos fossem leccionados nas
colónias. Contudo, em 1969, um grupo de alunos (que nós
chamávamos Comissão Instaladora do Curso de Economia da Universidade de
Luanda) finalistas do Liceu Salvador Correia (do qual eu fazia parte), de
finalistas do Instituto Comercial de Luanda, e um número de alunos militares,
resolveu concentrar energias no sentido de convencer o Governador Geral
Coronel Rebocho Vaz e o Reitor da Universidade de Luanda Professor Doutor
Ivo Soares da necessidade de se criar imediatamente uma faculdade de
economia na Universidade de Luanda.

Para nosso espanto, o nosso pedido foi ouvido, e em Agosto de 1970, o Curso
Superior de Economia foi estabelecido em Luanda (e em Lourenço Marques
(Maputo), Moçambique), e moldado segundo o modelo do Curso Superior de
Economia da Universidade do Porto. Em Agosto fiz o exame de aptidão à
universidade do qual dispensei das provas orais (só três alunos em mais de
cento e cinquenta fizeram essa proeza), e em Outubro atendia já as primeiras
aulas na recém criada Faculdade de Economia, situada num prédio arrendado à
firma Mário Cunha, junto à Faculdade de Ciências, na sublime Avenida
Marginal (Paulo Dias de Novais, de nome oficial de então, e hoje 4 de Fevereiro),
perto da Ermida da Nazaré.

Talvez pelo papel activo que tinha desenvolvido na fundação da Faculdade de


Economia, fui eleito delegado de curso (e re-eleito no segundo ano), o que era
para mim um cargo de grande responsabilidade. Fiz assim o melhor que pude
em compreender, representar, defender e avançar os interesses dos alunos, e
nesse processo tive o privilégio de trabalhar muito perto com o Professor
Doutor Abílio Lima de Carvalho, fundador e director do Curso Superior de
Economia, que aos poucos se ia construindo. O Professor Lima de Carvalho,
recentemente falecido, era um homem justo, uma mente brilhante, um cientista
social de craveira internacional, e um organizador nato. Com ele aprendi muito
e com ele travámos juntos umas poucas batalhas com o Reitor Professor Ivo
Soares e Vice-Reitor Professor Fernando Real e a burocracia da Universidade
das quais o resultado era normalmente positivo para nós, e com ele aprendi
melhor qual o papel que a universidade cabia desenvolver na dinamização
económica e social de Angola. Desde então me apercebi da exploração colonial
e do aparelho de repressão que era preciso para manter esse estado de coisas,
e desde cedo me apercebi que ainda tinha muito que aprender em separar "o
trigo do joio", em chegar à raiz das razões fundamentais de certas decisões do
poder político.

No Terceiro Ano deixei de ser delegado de curso e dediquei-me à obra de


expandir os serviços de alojamento da Universidade, que em três anos do meu
trabalho árduo (e de mais alguns) cresceu em termos de lugares em
residências universitárias de seis alunos inicialmente para mais de duzentos
três anos mais tarde, o que ainda era um número muito aquém das
necessidades dos alunos que vinham do interior para Luanda seguir os seus
estudos superiores. Ainda durante esses três anos, e talvez porque era
estudante de Economia, fui eleito Presidente do Conselho Fiscal do nosso
saudosoCDUA (Centro Desportivo Universitário de Angola). Ainda nesse ano
completei o meu primeiro estudo da Indústria Extractiva em Angola, que
ganhou o primeiro lugar do prémio institucionado pela Secretaria Provincial de
Economia e destinado aos alunos da Faculdade de Economia da Universidade
de Luanda, e fui mais tarde escolhido para colaborar na prestigiosarevista de
actividade económica "Prisma" como assistente de pesquisa. Lembro-me que o
prémio de vinte contos ($20.000) da Secretaria Provincial de Economia era
relativamente grande (para mim, pelo menos como estudante), o que me levou
a comprar uma calculadora científica programável com um display de 12
dígitos, que me custou bom dinheiro.

Durante o terceiro ano (1973/74) estive doente a maior parte do ano. Depois de
muitos testes para encontrar a doença, os médicos apuraram que tinha sido
causada por ter bebido leite que não tinha sido pasteurizado devidamente, e
que tinha sido infectado com a bactéria que causa a brucelose nos animais.
Entretanto, estive internado durante dez dias no pavilhão de doenças
infecto-contagiosas (perto do Teatro Anatómico da UL, da Delegacia de Saúde,
do Hospital dos Malucos, e da Casa Mortuária - que bela companhia...), por ter
sido diagnosticado erradamente com hepatite; dez dias que foram decerto os
mais escuros da minha vida, pois vi todos os dias doentes (companheiros de
infortúnio como eu) a morrerem no maior sofrimento, e em que perguntava
diariamente a mim mesmo quando é que era a minha vez...

Rectificado o engano, mandaram-me para o Hospital Universitário, onde estive


internado por quase dois meses mais. Durante a estadia no hospital, li grande
parte da obra de Karl Marx parte da de Lenin, e a obra completa de Frederic
Nietzsche traduzida em português, e "O Estrangeiro" e "O Mito de Sísifo"
de Albert Camus, que me "transformaram" marcadamente, e que me ensinaram
que afinal a humanidade não tinha sido uma criação divina; mas, com efeito, a
divindade era uma criação humana.

Li ainda nessa altura a preciosa obra "O Processo Histórico", originalmente


publicado em 1938, e da autoria de Juan Clemente Zamora, professor de
ciências políticas das universidades de Havana e Miami, talvez a obra mais
marcante na minha formação em termos das relações entre a história, a
economia política, a religião e a ideologia, a ciência política, no contexto do
quadro geral do desenvolvimento da humanidade.

Ainda no hospital, fiz amizades breves com outros doentes que lá estavam
internados, dos quais destaco um homem de idade avançada (de quem não me
consigo lembrar do nome e a quem assisti à sua morte na presença da sua
esposa e duas filhas), que tinha sido do quadro administrativo superior em
várias províncias ultramarinas e que tinha passado muitos anos em Timor,
como Intendente de Administração Civil, que pelas estórias que me contava
todos os dias à tarde, fiquei encantado com a longínqua e exótica província
ultramarina portuguesa. Encontrei ainda um outro velhote, de nome Belchior,
que me disse sem grandes problemas, que num momento de maldade tinha
trincado e arrancado o nariz à mulher, e o guardou durante três dias no bolso...,
pelo qual merecidamente passou algum tempo na cadeia.
Este encontro com a doença fez-me apreciar mais a vida e até encarar a morte
com certa resignação. Contudo, foi a batalha pela vida dos doentes que ao meu
lado todos os dias via morrer, que me levou a compreender quanto
insignificante, breve e efémera a nossa vida é; e ao mesmo tempo quanto
universal e cheia é a nossa passagem por este mundo.

De volta à Universidade, perto que estava dos centros de decisão, comecei a


compreender melhor como o aparelho político colonial funcionava. Ao mesmo
tempo, comecei a reconhecer com mais facilidade as diferentes correntes de
pensamento e de acção que então actuavam nos "subterrâneos" da nossa
universidade. Não demorou muito até que me havia de meter "até às orelhas"
numa luta aberta e vigorosa de debate de ideias políticas com outras
correntes e grupos, e muito menos tempo em fundarmos a nossa própria
associação - a GEFA (Grupo de Estudos para a Futura Associação), da qual eu
era um dos líderes principais. Contrariamente, ao que a oposição apregoava
nos corredores da Universidade e nas grandes Reuniões Gerais de Alunos
(RGA's),a nossa GEFA era completamente genuína e independente, e não tinha
qualquer ligação partidária com quaisquer dos três movimentos de
libertação (MPLA, FNLA e UNITA), com a facção Chipenda, ou com a Revolta
Activa, e menos ainda com a FUA (Frente de Unidade de Angolana), do
Engenheiro Falcão, de Benguela.

Apesar de ter trabalhado nas férias grandes nos anos anteriores (dois anos na
Proquímica (produtos farmacêuticos), um ano na firma Rocha Monteiro
(equipamento para fotografia, relógios, óptica), e no meu último ano do liceu na
Secretaria de Fazenda do 1° Bairro Fiscal (no rés-do-chão do prédio da Fazenda
na Mutamba, hoje Ministério das Finanças), nos últimos três anos fui passar as
férias grandes (de Junho a Setembro) em Cabinda com os meus Pais.

Cabinda encantou-me desde o primeiro minuto que a vi - a floresta frondosa do


Maiombe, as boas praias, o seu povo franco e aberto, e a presença de muitos
estrangeiros a trabalhar nos poços de petróleo da Cabinda Gulf Oil.
Naturalmente, interessei-me pela sua história, pela sua economia, e pela
sua situação especial no quadro político e administrativo de Angola. Contudo, o
que mais tenho saudade é dos sons de música congolesa pela noite fora das
rebitas situadas nos "povos" (vizinhanças, sanzalas) à volta da cidade. Cabinda
à noite oferecia uma "paisagem" especial, pois os poços de petróleo ao largo
do mar ardiam permanentemente (para queimar o sobreproduto do gás
natural), o que davam uma cor laranja às noites mais claras.

Uma vez em Cabinda, o meu Pai ofereceu-me nessa altura três livros acerca de
Cabinda (No Mundo dos Cabindas, e Filosofia Tradicional dos Cabindas (em
dois volumes), ambos da autoria do Padre José Martins Vaz, e Cabindas -
História, Crença, Usos e Costumes, da autoria do Padre Joaquim Martins, que
me ajudaram a melhor compreender a história e a cultura desse povo tão
especial. Ainda em Cabinda conheci a minha querida amiga Maria João Gomes,
nessa altura estudante finalista do curso de Serviço Social (do Instituto de
Educação e Serviço Social Pio XII em Luanda), que, com outras colegas, estava
empenhada em preparar um trabalho final de curso (Seminário sobre
Planeamento do Desenvolvimento) sobre um esquema de planeamento
regional para o Distrito de Cabinda. Planeamento regional e desenvolvimento
económico foram para mim na Universidade dos temas que mais me
interessaram (eu era um dos melhores alunos nessas cadeiras), de forma que
com grande prazer a ajudei a minha querida amiga Maria João no muito pouco
que podia, a enquadrar o factor económico na estrutura do Seminário.

Com mais tempo em casa dos meus pais durante as férias, li grande parte da
obra de Jorge Amado (o escritor predilecto do meu Pai), que me abriu os olhos
à situação de pobreza crónica do povo do Nordeste Brasileiro, e que me
ensinou a saborear a sua mestria pela palavra escrita, e a sua sabedoria sobre
o universo mágico e tropical da grande mistura que era o Nordeste do Brasil. Da
obra de Jorge Amado, gostei em especial das obras "A Seara Vermelha", "Os
Subterrâneos da Liberdade" I (Os Ásperos Tempos) e II (Agonia da Noite), e III
(A Luz no Túnel), "ABC de Castro Alves", "São Jorge dos Ilhéus" e "Capitães da
Areia". Através de Jorge Amado aprendi a gostar do Brasil e aprendi a influência
que os escravos de Angola tiveram na formação do Brasil, e como os seus
descendentes continuavam a ser explorados pelas classes dominantes. Li
ainda a obra completa de Soeiro Pereira Gomes, que simplesmente adorei, da
qual destaco "Esteiros", escrito "para os filhos dos homens que nunca foram
meninos", um grande mestre do realismo social português da década de
Quarenta (1940's).

É certo que a política associativa universitária em breve substituiu os estudos


como razão principal para eu estar na universidade(?), mas ela também me
proporcionou a oportunidade de ler, escrever e debater muito, muitas vezes
contra forças muito maiores que as nossas. Li assim todos os livros proibidos
pela PIDE que corriam nos "subterrâneos da liberdade" da nossa UL. Não posso
esquecer as discussões acesas que tínhamos durante noites e noites
inteiras com colegas como o Freddie Salles Esteves, Mickey, António Carranca,
Lima Lobo, Freitas Basílio, Manuel Ribeiro, Zé (Agostinho) Neves, Lena Robalo,
Sá Carneiro, Pena Pires, Carlos Moura, Celeste Vilarinho, Xíbias e Alfredo
Franco, e muitos outros dos quais não me lembro mais dos nomes. Dos muitos
colegas amigos que tive na UL, lembro a Manuela Moura, o Carlos Gomes, a
Graça Koch-Fritz, a Maria José Trancoso, a Ita Delgado e o Peter, a Gracinha
Coelho, o Seara de Morais, o João Chabert Ferreira (meu colega desde o
primeiro ano do Liceu Paulo Dias de Novais...), o Jorge Pestana (tambem
amigo de longa data), a Rosário Penha Gonçalves, o Manso Gigante, o Helder
(do Lobito), o Octávio, o Cristo Alves, o Madeira, o Manso Gigante, o Fernando
Quelhas, o (Manuel Gonçalves Francisco) Xico e a Lena Jorge, o Zé Pedro, e de
muitos outros dos quais não me lebro agora dos nomes. Não posso, porém,
deixar de referir aqui e agora a amizade especial e profunda (mais do que
"amizade", reconheci tardiamente...) que nutria pela Lena Vitória Pereira, então
já médica estagiária no Hospital Universitário, e da amizade que ao longo
desses anos mantive com o Manuel Ribeiro (um irmão mais velho para mim) e
a nossa Ventoínha (Manuela Pestana, hoje médica na Portela de Sacavém em
Portugal) que tanto me ajudaram; e do Tónio e Ema Delgado, amigos tão
chegados de tantos anos. Recordo ainda as "noitadas directas" de 24 e mesmo
36 horas seguidas (sem descanso!) a jogar King na Residência Universitária na
Rua Oliveira Barbosa com o Tónio Delgado, o Xíbias, o Guerrita, o China, o
Bolacha, o Vascão, o Óscar (... Ligório da Piedade Álvares Furtado - que nome
tão nobre, nunca hei-de esquecer!), o Peidinhas (Fonseca Santos), e outras
"aves raras" que por lá aterravam regularmente.

Como resultado dessa experiência, e apesar da insistência dos convites


recebidos de todos os quadrantes políticos, decidi não me associar a nenhum
movimento de libertação ou partido político, que nessa altura andavam a
recrutar alunos para seus membros, pois o que aprendi acerca deles me
desencantou um pouco logo desde o princípio; decisão essa que havia de ter
peso mais tarde na minha decisão final de deixar Angola antes da
Independência.

Apesar do papel secundário que a Universidade de Luanda teve na luta ao


poder em Angola após o golpe militar português de 25 de Abril de 1974, não
podemos deixar de reconhecer que ela serviu de campo de treino para muitos
estudantes que mais tarde se associaram a um dos três movimentos de
libertação nacional (o MPLA, a UNITA e a FNLA) e nos quais desenvolveram um
papel de relevo.

11. O Golpe de 25 de Abril de 1974 em Portugal

O golpe militar do 25 de Abril levado a cabo pelo MFA (Movimento das Forças
Armadas) foi uma surpresa para todos em Angola; contudo, não era
completamente inesperado. Era do conhecimento geral as dificuldades que o
governo português enfrentava em continuar uma guerra muito cara em três
frentes distantes e sem apoio popular; sendo assim mais uma questão de
"quando" em vez de "se" havia de acontecer. Embora numa boa posição militar
em Angola, Portugal enfrentava uma derrota eminente na Guiné, e uma guerra
cada mais difícil na forma de uma derrota possível em Moçambique, o que
rendia a presença portuguesa em África como não sustentável no longo curso.

Assim, quando a Revolução dos Cravos desabrochou, obteve imediatamente o


suporte da grande maioria do Povo Português, apesar de ter sido recebida com
certa apreensão nas colónias. Como sabemos, a Revolução de Abril foi uma
revolução genuína, pois substituiu em Portugal a ditadura fascista do Estado
Novo pela democracia parlamentar multi-partidária. Em pouco mais de um ano,
Portugal desfez-se do seu dispositivo militar extenso, de instituições políticas
antiquadas, e desfez-se do seu imenso império ultramarino,voltando-se,
pequeno e pobre, para a Europa, depois de mais de cinco séculos de vocação
ultramarina.

No que respeita a Angola, a Revolução de Abril abriu o caminho para a sua


independência. Não preparada que estava para assumir a independência
política imediatamente, o povo angolano acabou por pagar um preço alto pelo
"presente" que se lhe tinha sido oferecido pelo Movimento das Forças
Armadas(MFA). A sua posição estratégica e as suas riquezas minerais levaram
Angola a transformar-se num peão no xadrez global da Guerra Fria, e como tal,
num gigante teatro de uma guerra fraticida que havia de durar quase trinta
anos, e destruir toda a sua infra-estrutura económica e social deixada pelos
Portugueses, deixando cicatrizes profundas na sua memória nacional.
12. Exército Português

Já com 24 anos, fui chamado a prestar serviço militar obrigatório no Exército


Português, e fiz a minha recruta de oficial miliciano naEscola de Aplicação
Militar em Nova Lisboa (EAMA), de Junho a Setembro de 1974. Entretanto o
meu Pai tinha falecido inesperadamente em Cabinda a 23 de Maio do mesmo
ano. Terminei a minha especialidade de intendência em Luanda, e fui colocado
como Aspirante na divisão de abastecimento de combustíveis da Chefia dos
Serviços de Intendência em Luanda (em frente ao Palácio do Comércio, hoje
Ministério das Relações Exteriores). Em Abril de 1975 fui graduado em Alferes
e transferido para o Comando de Sector de Cabinda para ajudar o Capitão Luz
na substituição do Capitão Júlio Maneta, amigo do meu Pai, que tinha
desertado pouco antes para o Brasil.

A minha experiência militar foi mínima, mas em Cabinda (a cidade onde os


meus pais viveram durante alguns anos, e onde o meu irmão Rui ainda vivia)
tive o privilégio de trabalhar no esforço de construirum exército nacional
angolano unificado a partir dos três exércitos dos movimentos de libertação.
Tarefa impossível, como se pode imaginar. Contudo, lembro-me do afinco com
que me dediquei a esta importante tarefa, e lembro-me também do que aprendi
no lidar do dia-a-dia com um número grande de unidades militares portuguesas
e dos movimentos de libertação então espalhadas pelo distrito.

Saído ainda fresco da universidade, o meu destacamento em Cabinda foi um


embate de choque para mim, pois ter que responder à responsabilidade de
garantir alimentos, medicamentos, tabaco, cerveja e outras bebidas alcoólicas,
caixões e munições a um exército de alguns milhares de homens em
retirada não foi tarefa fácil. Contudo, não tive outra alternativa senão aprender
bem, e aprender depressa.

Como no resto de Angola, os movimentos de libertação estavam em guerra


aberta entre si, e Cabinda não foi excepção. Assim, o papel do Exército
Português em Cabinda entre Julho e Outubro de 1975, resumiu-se a tentar
trazer os movimentos de libertação à mesa de negociações, tentar construir
consenso, tentar evitar conflitos, e recolher corpos de vítimas espalhados pela
cidade e arredores na manhã seguinte a conflitos entre os movimentos na noite
anterior. Não posso esquecer que numa noite em que sabíamos que iam haver
combates nos arredores da cidade, convocamos os representantes dos três
movimentos de libertação para uma maratona de negociações que durou a
noite inteira e quase esvaziou os ricos stocks de whisky e conhaque da mansão
(tinha 14 quartos de dormir!) de convidados da Companhia de Cabinda, mas
que salvou a cidade de mais combates e mortes, contudo não salvando os
dirigentes dos exércitos dos movimentos dos efeitos nefastos de uma
memorável "torcida".

13. O Adeus a Angola

Nos primeiros dias de Setembro de 1975 regressei a Luanda para casar com a
minha Princesa do Huambo (Estela Monteiro), de Nova Lisboa (Huambo), só
tendo que voltar a Cabinda por uns dias, e então regressar definitivamente a
Luanda em meados de Outubro. O nosso casamento foi simples pois a maioria
dos nossos familiares e amigos já não estavam em Luanda, e não havia muito
que comprar em termos de iguarias de festa de casamento. Contudo, a Ivone e
o Ilídio, irmã e cunhado da Estela, tudo fizeram para que tivessemos uma festa
farta e memorável. Entretanto, a minha Mãe e as minhas irmãs Paula e Ema
tinham já partido para Portugal e a minha irmã Dilar e família tinham também já
partido para o Brasil; só o meu irmão Rui teimava em continuar em Cabinda. Os
meus sogros tinham ido também para Portugal, directamente de Nova Lisboa, e
os meus cunhados tinham entretanto ido para o Canadá, pelo que em Angola,
só ficámos eu, o meu cunhado Ilídio, e o meu irmão Rui; eu e o Ilídio em Luanda
e ele em Cabinda.

Desde os grandes combates de Julho de 1975 entre os movimentos de


libertação, Luanda depressa se transformou numa cidade de caixotes. Era
desolador ver uma cidade maravilhosa a esvaziar-se dos seus habitantes, pois
cada dia que passava havia menos gente nas ruas, menos coisas para comprar
(as prateleiras das casas comerciais estavam vazias, os restaurantes estavam
fechados por falta de alimentos), a inflação cada vez mais incontrolável, e mais
caixotes nas ruas ou nos cais à espera de embarque. A ponte aéreaesvaziou
Luanda ainda mais depressa. Por fim, em Setembro a Universidade de Luanda
fechou, e em Outubro Luanda parecia já uma cidade deserta e sem vida.

Entretanto, os combates entre as FAPLA e o ELNA a norte de Luanda (Caxito e


Quifangondo), e entre as forças cubanas e sul-africanas no centro do país,
atingiram uma intensidade nunca vista, o que aumentou a angústia de muitos
que viram na saída do país a sua única solução; assim, muitos angolanos que
não tinham ideias de partir, deram conta de si como parte da multidão que
diariamente deixava Angola com destino a lugar desconhecido e a vida incerta.

E assim amigos,
como muitos,
deixei Angola,
a minha querida pátria,
sem dizer sequer adeus,
na noite escura de 7 de Novembro de 1975.

posted by Helder Ponte | 2:58 da tarde | 21 comments

TERÇA-FEIRA, MAIO 30, 2006


1.1 Dedicatória

Dedico esta Viagem


Pela História de Angola à memória de minha Mãe,Maria Helena, que desde
tenra idade despertou em mim a curiosidade pela leitura e o gosto pelo estudo
da História de Angola.

Dedico-a também à saudosa memória do meu irmão Rui Manuelpela lição de


amor a Angola que me deu.

Cumpre-me ainda registar aqui a minha gratidão a minha


esposaEstela (Princesa do Huambo) e ao nosso filho Marco Alexandre por todo
o suporte, paciência e resignação que ao longo dos anos sempre mostraram
por esta obra solitária.

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