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Todos nós temos a nossa história pessoal e todos nós temos um sentido nato
de história. Às vezes encontramo-nos a pensar no que tem sido a história da
nossa vida, nos acontecimentos que testemunhámos, ou pelo que passámos
no percurso individual da nossa vida.
Alguns de nós, talvez por razões completamente aleatórias, tivemos a sorte (ou
o azar, dependendo da perspectiva) de ser testemunha em certos
acontecimentos que são tão marcantes para a sociedade em que vivemos, que
eles servem de marcos para a história recente dessas sociedades, e que nos
deixaram uma marca profunda para o resto das nossas vidas.
No meu caso pessoal, tenho consciência clara de que vivi momentos históricos
extraordinários, que ficarão na história do mundo como marcos de mudança
fundamentais para as sociedades em que vivi. Como exemplo, relembro
o desmoronar do império colonial português e a independência de Angola.
Estes acontecimentos foram únicos e de impacto profundo para a maioria dos
Portugueses e dos Angolanos. Com eles se escreveu o último capítulo de uma
sociedade em extinção, e com eles se abriu num outro livro, o primeiro capítulo
para uma nova sociedade e nação.
No caso concreto de Angola, quem viveu na Angola Colonial, sabe bem apreciar
as mudanças radicais que tiveram lugar desde a década de cinquenta do
século passado até hoje, e como elas afectaram a vida de todos nós. Assim,
em pouco mais que uma geração, fomos testemunhas de mudanças profundas
nas vivências do passado, algumas das quais nós (a nossa geração) fomos os
últimos a viver um modo de vida que desapareceu para sempre, deixando
apenas em alguns de nós a saudade, e noutros o alívio de saber que esses
tempos passados jamais voltarão.
Assim, sinto que tenho de partilhar com o mundo o que sei e senti numa Angola
que já há muito não existe, pois sei que sou um membro da última geração que
o pode fazer, baseado na minha experiência pessoal e directa. Sei que quem
vier depois de nós e quiser contar a nossa história, se terá que basear no nosso
testemunho directo. Eis assim uma razão fundamental desta minha Viagem
Pela História de Angola.
No longo caminho de aprender história que começou para mim talvez em 1964
nas aulas de História do Quarto Ano dadas pela Dra. Judite Morais, no antigo
Liceu Paulo Dias de Novais em Luanda, até aos dias de hoje, vieram-me muitas
vezes à mente as seguintes perguntas:Porquê História? O que é que despertou
em mim o interesse (quase paixão!) pela história? Perguntas postas não só por
outros a mim, como também por mim próprio.
Devo dizer-te de antemão que este troço da Viagem Pela História de Angola é
mais Memória do que é História. É de facto o troço mais pessoal e íntimo desta
Viagem, em que faço referência a pessoas e acontecimentos que foram
importantes para mim. Não pretendendo narrar aqui a minha biografia em
grande detalhe, mas entretanto e em poucas palavras tenho que dizer-te que ...
Tive sorte...
2. Anos de Meninice
Lembro-me que, ainda na Vila da Damba (Uíge) em 1958 ou 59, não conseguia
compreender porque é que o nosso criado africano de quem já me não lembro
o seu nome, talvez da minha idade e ainda menino como eu, meu amigo e
companheiro de diabruras sem fim, era "diferente" do meu amigo e vizinho
João Nicolau (branco), também da minha idade e companheiro inseparável de
aventuras?
Lembro-me ainda de uma viagem que fizemos a São Salvador do Congo (hoje
Mbanza Kongo), onde me foi indicado a casa onde vivia o Rei do Congo, o que
me deixou um pouco perplexo, pois apesar de a minha mãe já me ter falado
dele e da sua corte no tempo da chegada dos Portugueses ao Antigo Reino do
Congo, admirei-me que o Rei do Congo vivia numa casa "normal" (casa
construída pelo Estado, em que o estilo era o mesmo do posto de saúde da
Damba), e não num palácio ou uma cubata, e reparei que nunca tinha visto
qualquer referência a ele nos livros de escola. Ao mesmo tempo, essa
experiência original abriu-me a mente à história dos povos africanos em
Angola, que decerto tinham a sua história, mas que por muito tempo se havia
de mostrar como um mistério para mim.
Perguntei à minha mãe o que é que estava a acontecer, e ela disse-me então
que era por causa da independência do Congo Belga, e que era uma questão de
tempo até nos acontecer o mesmo aos Portugueses em Angola.
4. Dissidentes Políticos
Mais tarde em 1960, fomos todos para Luanda porque a minha mãe estava de
bebé da minha irmã Ana Paula, que havia de nascer na Maternidade de Luanda
a 14 de Janeiro de 1961, portanto cerca de onze anos mais nova que eu. A
minha irmã Maria Dilar, dois anos mais nova do que eu foi desde sempre a
minha companheira de brincadeiras e diabruras. A minha irmã Maria Ema (dois
anos mais velha que eu) estava nessa altura a estudar num colégio de madres
em Portugal, e o meu irmão Rui Manuel (três anos mais velho que eu) estava
internado no Colégio Brotero no Bairro do Cruzeiro em Luanda. Durante a nossa
estadia em Luanda ficámos em casa de uma amiga de infância da minha Mãe
dos tempos em que ela tinha vivido em Maquela do Zombo, a D. Lena Marreiros
Morais, que morava na Travessa Conde Ficalho, perto da Padaria Lafões e da
famosa Pastelaria Détinha (que bons Pasteis de Nata e Bolas de Berlim!!!.),
entre a antiga Rua Coronel Artur de Paiva e a antiga Avenida dos Combatentes.
A família Morais eram amigos da nossa família muito chegados e de longa data.
O Sr. Alfredo e a D. Lena eram conhecidos pela sua oposição ao regime de
Salazar, e a vida em casa em certa medida reflectia a independência, mesmo
até militância que os caracterizava. Na mesma casa residiam também
temporariamente um casal novo com um bébé, o Adolfo Maria e a Lena (as três
esposas eram Helenas: a minha mãe: Lena Ponte, a Lena Morais, e a Lena
Adolfo, e os três maridos eram topógrafos). Não me posso esquecer o que as
nossas mães (a minha e a do Tommy Morais) nos disseram para não
responder a ninguém nunca qualquer pergunta sobre o Adolfo ou a Lena - as
palavras da minha Mãe foram: "Não sei, não vi, não ouvi!" Isso fez-me "macacos
na cabeça" pois não podia perceber porque é que tanto segredo era preciso
para cobrir o Adolfo Maria e a Lena, mas, contudo, sem questionar, segui as
prescrições à risca. Dias mais tarde, quando o Adolfo e a Lena tiveram que
"mudar" para outra casa é que aprendi que a PIDE (Polícia Internacional de
Defesa do Estado, polícia política portuguesa, que eu ainda não sabia o que era)
andava atrás deles.
Talvez uma hora e meia mais tarde chegámos à Vila do Bungo onde não nos
deixaram prosseguir a viagem. Passámos o resto da noite na igreja da vila com
o resto das mulheres e crianças num ambiente caótico e de angústia,
guardados pelos homens da vila, armados e fazendo vigia à volta da igreja,
onde se tinham reunido todos. De manhã, já a 16 de Março, e contra o conselho
de todos, a minha Mãe insistiu em prosseguir a viagem para a Vila do Negage,
onde nos tinha sido dito que uma ponte aérea estava a evacuar mulheres e
crianças para Luanda.
7. Luanda em 1961
Uma vez na nova casa, eu e a minha irmã Dilar passámos a frequentar a Escola
Primária Nº 8, ao fundo da Rua Mouzinho de Albuquerque, rua que ligava o
Mercado de Quinaxixe ao Cemitério do Alto das Cruzes (Cemitério Velho), a
caminho da Casa de Saúde de Luanda e à entrada do Bairro Miramar.
Entretanto, assistimos quase diariamente a inúmeras rusgas de trabalhadores
africanos que viviam no Bairro Operário, ou que simplesmente iam a pé para o
seu trabalho ou regressavam para casa depois de um dia de trabalho ao longo
da Rua António Enes, quase todos os dias, a qualquer hora do dia ou da
noite, levadas a cabo pela polícia ou por grupos armados de vigilantes
brancos que à mínima suspeita, ou mesmo sem qualquer razão,
davam grandes cargas de pancada aos pobres africanosque por ali passavam.
8. Anos de Juventude
Em Agosto de 1961, mudámos outra vez de casa, desta vez para a Rua 28 de
Maio, No.9, no Bairro da Maianga, onde haveríamos de viver até 1969, pois eu
tinha sido matriculado no Liceu Paulo Dias de Novais, situado na Cidade Alta ao
lado do antigo Quartel General da Região Militar de Angola, em frente ao jardim
que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque. O liceu tinha nessa altura
sido convertido de liceu feminino em liceu masculino para acomodar o número
crescente de alunos vindos das áreas afectadas pela guerra cujas famílias se
haviam de estabelecer em Luanda, e não retornar às áreas afectadas pela
guerra, já que o novo edifício do Liceu Feminino D. Guiomar de Lencastre se
tinha acabado de construir.
Apesar de ter gostado imenso do liceu (ou talvez por isso mesmo...),reprovei no
primeiro ano, o que não agradou nada aos meus pais. Nos próximos anos fui
crescendo e passando de ano para ano no liceu, e a começar a tomar
consciência da realidade colonial em que vivíamos. Tive bons professores que
despertaram em mim o gosto em aprender, ao mesmo tempo que com os
amigos de Bairro ou de Liceu fazíamos as maiores tropelias, das quais ainda
me lembro em especial do pobre Palhinhas (que vivia só (com 23 gatos!) numa
casa abandonada perto do Cinema Restauração, na Avenida Álvaro Ferreira - do
Hospital), e da Joana Maluca, uma demente muito popular nas ruas de Luanda
desse tempo.
No Sporting Clube da Maianga, uma verdadeira escola para todos nós, comecei
por jogar basquetebol (juvenis) por dois anos, mas que por não ser alto e ter
pouca (quase nenhuma...) habilidade para tal, mudei para hoquei em patins (em
júniores, em que a habilidade não era melhor). Como atletas do Clube,
podíamos ir ao cinema sem pagar, o que resultou em ter ido ao cinema pelo
menos duas ou três vezes por semana durante cinco ou seis anos, e o que me
ajudou imenso a melhor perceber o mundo à minha volta. Foi ainda nas
matinées dançantes de domingo à tarde no Sporting da Maianga que a minha
paixão pela Odete Silva me deu a coragem para lhe pedir namoro.
Foi ainda na Maianga que tomei pela primeira vez contacto directo com a
existência de dois mundos que a antiga Avenida António Barroso dividia: o da
cidade para os brancos (Maianga e Alvalade) e o dos muceques para os negros
(Catambor). Contudo, o Sporting da Maianga era o elemento aglutinador desses
dois mundos em que oelemento "raça" não tinha grande significado.
Dos professores que tive no "Paulo Dias", realço o seu primeiro reitor Dr.
António Saraiva de Carvalho, a Dra. Judite Morais, professora de História, a Dra.
Maria Amélia (Matemática), a Drª. Paulina Bento Ribeiro (Francês), e em
especial os Professores Eduardo Zink (de Desenho), Dr. Polidoro de Oliveira
(Português) e do Padre Eduardo André Muaca (Religião e Moral) pois que com
os seus ensinamentos e exemplo exerceram uma grande influência positiva na
minha formação como cidadão e pessoa.
O meu encanto por África cresceu com a leitura ainda cedo da biografia de
Albert Schweitzer e a sua obra no hospital de Lambarené, no Gabão, e de dois
livros muito interessantes de Fernando Laidley "Roteiro Africano" e "Missão em
África" que relataram a primeira viagem de automóvel à volta do continente
africano num Volkswagen "Carochinha", e a única viagem de automóvel ligando
as províncias portuguesas de África, num carro de marca Borgward, que hoje já
não se fabrica. Através dessas obras aprendi que a África era na verdade um
continente muito grande e diverso com regiões e povos muito diferentes.
Por outro lado, o meu interesse pela História de Angola começou com a leitura
da obra de Gastão Sousa Dias "E Julgareis qual Será o Mais Excelente..." que
tínhamos em casa, e dos muitos livros deElaine Sanceau sobre a expansão
portuguesa no mundo, dos quais "Os Portugueses no Brasil" se destacava.
Lembro-me que aos poucos, e à medida que as poupanças me permitiam,
comprei todos os livros da séria completa (a minha primeira colecção
completa!) publicada pela Livraria Civilização, dessa grande mestra em história
da expansão portuguesa no mundo.
Mais perto do caso pessoal da nossa família, lembro-me que vi e re-vi o filme "E
Tudo o Vento Levou" - uma história pungente de romance passado na Guerra
Civil Americana, no fim do regime de escravatura nos Estados Confederados do
Sul, que a minha Mãe se referia com certa frequência, que me impressionou
sobremaneira, e me ajudou a compreender melhor a razão porquê e aceitar que
a nossa famílianão havia de voltar jamais à nossa Roça Novo Fratel, lugar que
tanto amava, nas fraldas da Serra da Canda, entre a Damba e São Salvador, no
coração do Antigo Reino do Congo.
Desde muito cedo os meus pais cultivaram em mim o interesse pela história e
pelo negócio (era um bom jogador de Monopólio), o que talvez
subconscientemente me levou a seguir a Alínea "G" no Sexto e Sétimo anos
(Ciências Económicas e Financeiras), quando mudei para o Liceu Salvador
Correia. Os meus três anos no "Salvador Correia" (reprovei a Matemática e a
Inglês) foram críticos para a minha formação como cidadão. Relembro ainda
que era sagrada para mim a leitura da Revista Notícia todas as semanas, em
especial os escritos de João Charulla de Azevedo (cujo lema era "Projecto o
melhor, espero o pior, e aceito de ânimo igual o que Deus quiser", palavras que
me iriam guiar para o resto da minha vida), e a crónica semanal "A Chuva e o
Bom Tempo" de João Fernandes. Da imprensa diária em Luanda lia com
frequência os jornais matutinos "A Província de Angola" (de maior circulação
em Angola, e que líamos diariamente), e "O Comércio", e os jornais da tarde
"Diário de Luanda"(sob certa influência do governo) e "ABC"(talvez o mais
independente).
Ainda no Sexto Ano do liceu estive em casa doente cerca de dois meses, o que
me deu a oportunidade de ler muitos livros dos meus pais, dos quais destaco
"As Vinhas da Ira" de John Steinbeck, uma obra de um realismo social intenso
que me marcou sobremaneira, baseada na experiência da Grande Depressão
Económica na América nos anos Trinta, e em como uma família de
trabalhadores agrícolas (os Oakies), vítimas de uma exploração atroz, tinha
perdido todos os seus parcos haveres na pradaria de Oklahoma devido à Crise
Económica de 1929, e decidira emigrar para a terra prometida da Califórnia,
mas que nessa jornada ia sendo destruída aos bocados, e com heróica
dificuldade sobreviveu a pobreza e exploração implacável do estado, dos
bancos e dos grandes proprietários da terra na Califórnia de então. Li ainda
todas as Selecções do Reader’s Digest desde que tinham começado a serem
publicadas em língua portuguesa no Brasil (que os meus pais assinavam), li
anos e anos de edições do Almanaque Bertrand que tínhamos em casa, e li e
reli muitas vezes quase todos os artigos do gigante e velho "Dicionário
Universal Lello" que tínhamos herdado do nosso avô.
No ano em repeti o Sétimo Ano do liceu tive a sorte de ter sido escolhido a
participar num retiro de cristandade para jovens (os Cursos de Vida Apostólica -
CVA), onde de perto me apercebi do papel que a religião e a ideologia tinham na
formação e controle das sociedades luandense e angolana de então. Aí fiz
grandes amizades que se mantêm até hoje, e aí aprendi o dilema da Igreja
Católica em Angola durante toda a época colonial.
Cedo me entreguei a esse ideal nobre, pois, de facto, os CVA foi um bom
movimento de juventude que fez uma obra notável em Luanda. Talvez pela
minha dedicação ao ideal, dentro de pouco tempo fui escolhido para
"responsável" (dirigente); dois anos mais tarde fui escolhido para substituir o
meu grande amigo Luís Delgado, que por sua vez tinha sucedido ao carismático
Toni Barbosa, no cargo de presidente do movimento. Como tal, tinha encontros
frequentes com o corpo de dirigentes leigos e religiosos (Padre Francisco
Janeiro e Capelão Padre Jorge), em especial com o (então) Bispo Auxiliar de
Luanda D. Eduardo André Muaca, que me ajudou a "abrir mais os olhos" à
situação de injustiça social que a população não-branca de Angola tinha que
enfrentar no seu dia-a-dia. Natural da área Missãodo Lucula, posto de Tando
Zinze, em Cabinda e de raça negra, o Padre André Muaca desde os bancos do
Liceu Paulo Dias de Novais, e mais tarde como bispo na Arquidiocese de
Luanda, teve uma influência extraordinária na minha formação, e guardo dele
as melhores memórias como amigo genuíno, e guardo em especial a memória
da cerimónia inesquecível da sua consagração como bispo a 31 de Maio de
1970, na Igreja de São Paulo em Luanda, já que Dom Eduardo era o primeiro
bispo de raça negra em Angola, desde os tempos do Antigo Reino do Congo, na
primeira metade do Século XVI, em que Dom Henrique, príncipe do Congo, tinha
sido consagrado Bispo de Útica.
Para nosso espanto, o nosso pedido foi ouvido, e em Agosto de 1970, o Curso
Superior de Economia foi estabelecido em Luanda (e em Lourenço Marques
(Maputo), Moçambique), e moldado segundo o modelo do Curso Superior de
Economia da Universidade do Porto. Em Agosto fiz o exame de aptidão à
universidade do qual dispensei das provas orais (só três alunos em mais de
cento e cinquenta fizeram essa proeza), e em Outubro atendia já as primeiras
aulas na recém criada Faculdade de Economia, situada num prédio arrendado à
firma Mário Cunha, junto à Faculdade de Ciências, na sublime Avenida
Marginal (Paulo Dias de Novais, de nome oficial de então, e hoje 4 de Fevereiro),
perto da Ermida da Nazaré.
Durante o terceiro ano (1973/74) estive doente a maior parte do ano. Depois de
muitos testes para encontrar a doença, os médicos apuraram que tinha sido
causada por ter bebido leite que não tinha sido pasteurizado devidamente, e
que tinha sido infectado com a bactéria que causa a brucelose nos animais.
Entretanto, estive internado durante dez dias no pavilhão de doenças
infecto-contagiosas (perto do Teatro Anatómico da UL, da Delegacia de Saúde,
do Hospital dos Malucos, e da Casa Mortuária - que bela companhia...), por ter
sido diagnosticado erradamente com hepatite; dez dias que foram decerto os
mais escuros da minha vida, pois vi todos os dias doentes (companheiros de
infortúnio como eu) a morrerem no maior sofrimento, e em que perguntava
diariamente a mim mesmo quando é que era a minha vez...
Ainda no hospital, fiz amizades breves com outros doentes que lá estavam
internados, dos quais destaco um homem de idade avançada (de quem não me
consigo lembrar do nome e a quem assisti à sua morte na presença da sua
esposa e duas filhas), que tinha sido do quadro administrativo superior em
várias províncias ultramarinas e que tinha passado muitos anos em Timor,
como Intendente de Administração Civil, que pelas estórias que me contava
todos os dias à tarde, fiquei encantado com a longínqua e exótica província
ultramarina portuguesa. Encontrei ainda um outro velhote, de nome Belchior,
que me disse sem grandes problemas, que num momento de maldade tinha
trincado e arrancado o nariz à mulher, e o guardou durante três dias no bolso...,
pelo qual merecidamente passou algum tempo na cadeia.
Este encontro com a doença fez-me apreciar mais a vida e até encarar a morte
com certa resignação. Contudo, foi a batalha pela vida dos doentes que ao meu
lado todos os dias via morrer, que me levou a compreender quanto
insignificante, breve e efémera a nossa vida é; e ao mesmo tempo quanto
universal e cheia é a nossa passagem por este mundo.
Apesar de ter trabalhado nas férias grandes nos anos anteriores (dois anos na
Proquímica (produtos farmacêuticos), um ano na firma Rocha Monteiro
(equipamento para fotografia, relógios, óptica), e no meu último ano do liceu na
Secretaria de Fazenda do 1° Bairro Fiscal (no rés-do-chão do prédio da Fazenda
na Mutamba, hoje Ministério das Finanças), nos últimos três anos fui passar as
férias grandes (de Junho a Setembro) em Cabinda com os meus Pais.
Uma vez em Cabinda, o meu Pai ofereceu-me nessa altura três livros acerca de
Cabinda (No Mundo dos Cabindas, e Filosofia Tradicional dos Cabindas (em
dois volumes), ambos da autoria do Padre José Martins Vaz, e Cabindas -
História, Crença, Usos e Costumes, da autoria do Padre Joaquim Martins, que
me ajudaram a melhor compreender a história e a cultura desse povo tão
especial. Ainda em Cabinda conheci a minha querida amiga Maria João Gomes,
nessa altura estudante finalista do curso de Serviço Social (do Instituto de
Educação e Serviço Social Pio XII em Luanda), que, com outras colegas, estava
empenhada em preparar um trabalho final de curso (Seminário sobre
Planeamento do Desenvolvimento) sobre um esquema de planeamento
regional para o Distrito de Cabinda. Planeamento regional e desenvolvimento
económico foram para mim na Universidade dos temas que mais me
interessaram (eu era um dos melhores alunos nessas cadeiras), de forma que
com grande prazer a ajudei a minha querida amiga Maria João no muito pouco
que podia, a enquadrar o factor económico na estrutura do Seminário.
Com mais tempo em casa dos meus pais durante as férias, li grande parte da
obra de Jorge Amado (o escritor predilecto do meu Pai), que me abriu os olhos
à situação de pobreza crónica do povo do Nordeste Brasileiro, e que me
ensinou a saborear a sua mestria pela palavra escrita, e a sua sabedoria sobre
o universo mágico e tropical da grande mistura que era o Nordeste do Brasil. Da
obra de Jorge Amado, gostei em especial das obras "A Seara Vermelha", "Os
Subterrâneos da Liberdade" I (Os Ásperos Tempos) e II (Agonia da Noite), e III
(A Luz no Túnel), "ABC de Castro Alves", "São Jorge dos Ilhéus" e "Capitães da
Areia". Através de Jorge Amado aprendi a gostar do Brasil e aprendi a influência
que os escravos de Angola tiveram na formação do Brasil, e como os seus
descendentes continuavam a ser explorados pelas classes dominantes. Li
ainda a obra completa de Soeiro Pereira Gomes, que simplesmente adorei, da
qual destaco "Esteiros", escrito "para os filhos dos homens que nunca foram
meninos", um grande mestre do realismo social português da década de
Quarenta (1940's).
O golpe militar do 25 de Abril levado a cabo pelo MFA (Movimento das Forças
Armadas) foi uma surpresa para todos em Angola; contudo, não era
completamente inesperado. Era do conhecimento geral as dificuldades que o
governo português enfrentava em continuar uma guerra muito cara em três
frentes distantes e sem apoio popular; sendo assim mais uma questão de
"quando" em vez de "se" havia de acontecer. Embora numa boa posição militar
em Angola, Portugal enfrentava uma derrota eminente na Guiné, e uma guerra
cada mais difícil na forma de uma derrota possível em Moçambique, o que
rendia a presença portuguesa em África como não sustentável no longo curso.
Nos primeiros dias de Setembro de 1975 regressei a Luanda para casar com a
minha Princesa do Huambo (Estela Monteiro), de Nova Lisboa (Huambo), só
tendo que voltar a Cabinda por uns dias, e então regressar definitivamente a
Luanda em meados de Outubro. O nosso casamento foi simples pois a maioria
dos nossos familiares e amigos já não estavam em Luanda, e não havia muito
que comprar em termos de iguarias de festa de casamento. Contudo, a Ivone e
o Ilídio, irmã e cunhado da Estela, tudo fizeram para que tivessemos uma festa
farta e memorável. Entretanto, a minha Mãe e as minhas irmãs Paula e Ema
tinham já partido para Portugal e a minha irmã Dilar e família tinham também já
partido para o Brasil; só o meu irmão Rui teimava em continuar em Cabinda. Os
meus sogros tinham ido também para Portugal, directamente de Nova Lisboa, e
os meus cunhados tinham entretanto ido para o Canadá, pelo que em Angola,
só ficámos eu, o meu cunhado Ilídio, e o meu irmão Rui; eu e o Ilídio em Luanda
e ele em Cabinda.
E assim amigos,
como muitos,
deixei Angola,
a minha querida pátria,
sem dizer sequer adeus,
na noite escura de 7 de Novembro de 1975.