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DLC

por
Daniel Lucrédio
Índice

Prólogo 3

Creme de leite 7

A trovadora e o malfeitor 34

O felúpio-das-neves 74

Encontro a cinco 108

Medo da chuva 142

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Prólogo
Caro leitor.

Talvez você tenha caído de paraquedas neste texto e não faça a mínima
ideia do que tem nas mãos (ou na tela de seu computador), e nem tenha
compreendido o título, tão diferente.

Calma, que eu já vou explicar.

Trata-se de uma coletânea de contos escritos em homenagem a cinco


autores que eu admiro muito. Foram escritos para um evento de Natal
promovido por um grupo de pessoas que gostam de se juntar para falar
de literatura e de escrita. Nesse evento, a gente deveria escrever algo
que homenageasse alguém especial. Podia ser poesia, prosa, qualquer
coisa que transmitisse a admiração pela pessoa "presenteada".

Eu sou adepto da prosa e da contação de histórias, por isso resolvi


escrever contos baseados nas obras dos referidos autores. Os contos são
pequenas histórias que se passam no universo das obras, com as
mesmas personagens (com alguns acréscimos, aqui e ali), ou que
emprestam a mesma temática.

E neste momento, você deve estar pensando na palavra "fanfic".

NÃO!

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Eu não gosto de fanfic. Acho que é muito mais válido a gente criar
coisas originais, pois o mundo das ideias está repleto de histórias e
personagens só esperando que alguém as transporte para o mundo
real.

Mas o espírito natalino, além, é claro, da minha grande admiração


pelos autores, me amoleceu um pouco, a ponto de me convencer a tentar
algo parecido com uma fanfic.

Mas não é fanfic, okay? Prefiro chamar de… DLC (DownLoadable


Content). Tá mais na moda, tem relação com o mundo dos games, e
tal. Tá certo que um DLC é algo feito pelo autor original da obra, o que
não é o caso aqui. Então acho melhor chamar este conteúdo de…

DLC
Daniel Lucrédio's ContentTM

Qualquer que seja o nome, espero que se divirta com a leitura. Se


gostar, já fica o convite para conhecer as obras originais. Desnecessário
dizer, já que eu me dei ao trabalho de criar meus contos em cima delas,
mas são obras que eu gosto muito, e recomendo demais!

Agora me dirijo a vocês, autores!

Se sua obra está aqui, é porque me inspirou de alguma forma. Se me


atrevi a criar conteúdo baseado nela, é porque me senti CONECTADO
a ela, verdadeiramente. Pode ter sido a temática, algum personagem, o
universo, qualquer coisa, nem sei dizer com certeza. Só sei que a

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inspiração veio, e isso significa algo. Caso contrário, eu não me sentiria
à vontade para criar, ou melhor, eu nem conseguiria criar nada.

Portanto, começo com um sincero agradecimento. Obrigado por me


proporcionar a oportunidade de conhecer um pouco de suas histórias,
me sinto privilegiado por conseguir criar em cima delas.

Ah, desnecessário dizer, mas eu REALMENTE tive que exercitar toda a


minha versatilidade de escritor aqui. Quem conhece a obra desses cinco
sabe o quão diferentes eles são, e o tamanho do desafio que foi
completar esta coleção. Mas valeu a pena, eu adorei a chance de
navegar em uma diversidade tão grande. Foi um excelente exercício.

A ideia do evento original envolvia um certo suspense. Não era para


dizer logo de cara para quem era o presente, pois a surpresa fazia parte
da brincadeira. Aqui não teve jeito, vocês já sabem que estão sendo
presenteados, pois precisei enviar o texto pessoalmente. Mas vou pelo
menos tentar manter um pouquinho de suspense.

Eu NÃO identifiquei o autor homenageado em cada conto. Isso


significa que vocês vão ter que ler TODOS para descobrir!

Sim, Papai Noel é bonzinho, mas também exige um esforço em troca,


não é?

Mas não se preocupem. Aposto que, com dois ou três parágrafos vocês
serão capazes de identificar sua criação. E aí, já podem pular para o
próximo. Não precisam ter cerimônia.

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Agora, se tiverem a paciência de ler todas, talvez consigam perceber o
elemento comum, algo que as une, e que remete a uma coisa muito
importante para mim. Digamos que é uma espécie de segredinho meu,
ou, para ficar no mundo dos games, um "easter egg" que deixei
escondido…

Mas isso não é tudo! Ao final de cada fanfic DLC, eu faço alguns
comentários sobre as minhas intenções em cada história. Considero
uma espécie de autorresenha. Não é exatamente "auto", pois apesar de
estar resenhando meu próprio texto, o que faço é destacar os aspectos da
SUA obra que me inspiraram. Nesse sentido, são, na verdade, resenhas
das obras de vocês. Considerem como um presentinho extra.

E, é claro, espero que não fiquem chateados comigo. Pode ser que, sem
querer, ao entrar na sua casa literária, eu tenha mexido em algo que
não deveria. Se o fiz, peço desculpas, foi tudo com a melhor das
intenções. É só me falar, e eu coloco tudo de volta no lugar, do jeitinho
que estava!

Feliz Natal e um excelente 2024!

Daniel Lucrédio

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Creme de leite
— Louise! Não corre! — gritou Eleanor, assim que avistou
os cabelos da filha esvoaçando na entrada da casa.

A jovem não escutou. Entrou correndo, empurrando uma


caixa com os quadris e desviando dos móveis improvisados da
casa temporária, sem se preocupar com o precioso conteúdo
da garrafa que carregava nas mãos.

— Para de correr, AGORA! Se você derruba isso,


misericórdia…

— Desculpa, mamãe — a filha reduziu o passo até quase


se transformar em uma tartaruga. Abaixou a cabeça e ergueu
os olhos grandes, implorando para que a mãe desfizesse o
semblante preocupado.

— Tá, também não precisa vir tão devagar. Vem logo, mas
sem correr!

A criança sorriu e se adiantou numa velocidade normal


para um ser humano caminhando com cuidado. Quando
passou ao lado de um caixote de madeira onde o irmão mais
velho estava sentado, teve que pular, pois este tinha erguido o
pé à sua frente.

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— Manh˜e! — choramingou. — O tato quase me fez
tropeçar!

— OLIVER!

O grito cheio de ira lavou o escárnio do rosto dele


imediatamente. Ele abaixou o rosto e colocou as mãos no colo,
como se assim conseguisse formar uma espécie de escudo
capaz de diminuir a potência dos xingamentos da mãe. No
entanto, o rosto dela se desmanchou em tristeza:

— Oliver, meu filho… — Ela fechou os olhos. — Você sabe o


quanto eu precisei implorar para o padeiro me emprestar esse
restinho de creme de leite, não sabe?

O tom calmo e melancólico da mãe o tirou de sua defesa.


Desfez a máscara defensiva, ergueu o rosto e a encarou, com o
olhar cheio de compreensão e arrependimento sincero.

— Eu sei, mãe. Desculpa. Eu tava só brincando com a Lou.

— Se essa garrafa caísse no chão, e-eu…

Quando os lábios da mãe começaram a tremer, Oliver não


aguentou. Levantou-se e foi abraçá-la. Passou os braços
compridos ao redor dos ombros dela e apertou forte. Ela não
era alta, e ele, apesar de ainda ter dezesseis anos, já tinha
espichado até quase alcançar a enorme estatura do pai. Ela
relutou, a princípio, mas logo se rendeu ao carinho do filho.

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— Desculpa, mãe, de verdade.

— Tá muito difícil. T-tá muito difícil, esse bolo vai ajudar


demais. Com o dinheiro da venda, a gente vai ter comida por
uns quinze dias.

— Bem, comida, comida de verdade, não, né, mãe?

Ela ficou séria. Afastou-se. Seu queixo não tremia mais, e


a voz soava resoluta:

— Meu filho… eu estou fazendo tudo que posso. Sei que


comer jiló todo dia não é a melhor coisa do mundo, mas…

— Mãe…

— … eu também não gosto… Seu pai, então, só falta


vomitar na mesa, mas…

— Mãe!

— … tá difícil, a gente já vendeu tudo que tinha pra


vender, e…

— Dona Eleanor!

Ela parou de falar e finalmente prestou atenção no filho.


Ele sorria para ela. Disse, calmamente:

— Se comer jiló é o que precisa pra gente ficar juntos, bora


comer jiló pro resto da vida!

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Eleanor finalmente relaxou. Abraçou o filho mais uma vez
e voltou para a preparação do seu bolo.

Quem não gostou nada da paz que reinou foi a menina:

— Não, mãe! Fica brava com o Óli! Ele quase me derrubou!

— Crianças, vão procurar o que fazer. Eu tenho que


terminar esse bolo. A cobertura tem que ficar perfeita, senão a
dona Lígia não vai querer pagar.

— Mas mãe, o Óli…

— Pode deixar, mãe. Eu olho a pirralha.

— Pirralha é você! — retrucou Louise, irritadíssima.

— Pirralha é você! — imitou Oliver, divertindo-se com a


irritação da irmãzinha.

— Não, pirralha é v…

— Tá, você ganhou. Vem, vamos lá pra fora.

Feliz com sua vitória, Louise deixou que o irmão pegasse


na mãozinha dela e a conduzisse para fora da casa.

Casa era apenas um modo de dizer. Era uma mistura de


barracão de madeira com tenda de pano. Quatro troncos de
árvores foram cortados e transformados em pilares. Madeira
recolhida das ruínas da cidade foi usada como assoalho e teto

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mal acabados, dando ao lugar uma aparência rústica que dava
um mínimo — bem minimalista, diga-se — de conforto. As
paredes eram de pano, e serviam apenas para proteger os
moradores das chuvas e ventos mais fracos. Quando vinha
uma tempestade vigorosa, eles tinham que encaixotar tudo o
que conseguiam e correr para o abrigo para se proteger.
Quando voltavam, quase sempre era necessário reconstruir
tudo a partir do zero.

— Do que a gente vai brincar? — perguntou Louise.

— Você, eu não sei. Eu vou ficar sentado aqui um pouco.


Tô cansado.

— Ah, você tem que brincar comigo! A mamãe mandou!

— Ela mandou a gente procurar o que fazer. Eu… — caiu


sentado em um pedaço de tronco — já encontrei.

— Ah, Óli, não! Brinca comigo, vai! Vamos brincar de


esconde-esconde?

— Tá bom, você se esconde e eu fico aqui.

— Não! Você sempre manda eu me esconder e não vai


procurar!

O choramingo constante da menina contrastava com o


riso debochado do irmão, que se divertia com o diálogo:

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— Nossa, como você é esperta, Lou! Quando foi que
descobriu isso?

— Vai, você se esconde primeiro!

— Vem fazer!

A provocação veio com um olhar sério. Louise


imediatamente respondeu com um sorriso enorme, e correu
para agarrar o irmão com as duas mãos.

— Levanta daí, seu molengão!

— Você me ofendeu! Isso é crime! Sua punição será…


cócegas no sovaco!

Louise deu um grito agudo e saiu correndo e rindo


loucamente. Oliver se levantou e começou a correr atrás dela,
fingindo que não conseguia alcançá-la. Ela tinha sete anos,
quase uma década a menos que ele, e suas perninhas não eram
páreo numa corrida contra o irmão mais velho.

De vez em quando, ela girava o corpo para trás para ver se


seu perseguidor estava perto. Quando fazia isso, ele quase a
pegava, e isso provocava um novo grito e mais risadas.

Numa dessas viradas, Louise não viu para onde estava


correndo e esbarrou em duas enormes pernas que bloqueavam
seu caminho.

— Ai! — Caiu sentada no chão.

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Oliver se aproximou e ficou sério imediatamente.

— Oi, papai — ele disse, em uma voz carregada de um


respeito que se parecia muito com medo.

Os olhos da menina se arregalaram ao ouvir o que o irmão


tinha dito. Ela se ergueu rapidamente e foi ficar ao lado dele,
também dizendo as mesmas palavras, na mesma voz cheia de
respeito/medo:

— Oi, papai.

— Que b-bag… — soluçou o homenzarrão. — Que


b-bagunça é essa?

O ar carregado de vapores alcoólatras castigou o nariz das


crianças. Oliver tentou não gaguejar ao responder:

— Eu estou cuidando da Lou pra mamãe poder trabalhar.

Oliver era alto, mas ainda tinha que olhar para cima para
encarar o progenitor. Ele devia ter quase dois metros de altura,
e sua aparência só não era imponente porque vivia em estado
lastimável. A camisa estava sempre suja de baba misturada
com restos de bebida, e as calças estavam sempre sujas de
urina misturada com restos de bebida. Louise era quem mais
sofria com isso, pois seu narizinho ficava bem perto das áreas
mais fedorentas do pai.

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— Ela tá trabalhando? D-de n-novo? Mas que merda! Dá
licença!

— Papai, por favor. — Oliver segurou na barra da camisa


do pai, já sabendo que se arrependeria disso depois. — É
importante, deixa ela sozinha um pouco.

O pai olhou para a própria camisa como se tivesse ficado


enroscada num espinheiro. O gesto simples foi suficiente para
que Oliver a soltasse. Satisfeito com seu poder, falou:

— Só vou conversar com a sua mãe… A minha esposa…


Posso conversar com a minha esposa?

A ausência de gagueira assustou os irmãos, que se


encolheram instintivamente. Eles sabiam que quando o pai
ficava sério, não demorava para que uma briga acontecesse.
Era bem melhor quando estava gago e zonzo, pois ele logo se
cansava e ia dormir.

— Voltem a brincar, vocês d-dois!

Virou-se de costas e desapareceu na fenda que existia na


parede de pano.

Imediatamente, Louise saiu correndo.

— Lou… — sussurrou Oliver. — Não!

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Ela não escutou, continuou correndo até virar em dos
cantos da casa e desaparecer da vista dele. Oliver não teve
escolha senão segui-la.

Assim que dobrou a esquina, avistou a menina deitada no


chão, arrastando-se em direção a uma abertura sob o tecido
que fazia as vezes de parede da cozinha.

Oliver ficou alguns segundos digladiando-se, sem saber se


obedecia à ordem do pai ou se juntava-se à irmã em sua
curiosidade infantil. A juventude venceu seu tamanhão, e ele
se deitou ao lado de Louise. Ela deu um riso cheio de
cumplicidade para ele, e os dois ficaram quietos, ouvindo em
preocupação.

— Eleanor… — A voz do pai estava bastante alterada. —


Me deixa falar, caramba! Eu só quero conversar, não quero
brigar!

— Eu também não quero brigar, Roger. Aliás, eu não


quero nem brigar, nem conversar! Não tá vendo que eu tô
trabalhando?

— V-você s-só trabalha, mas a gente nunca vê dinheiro


nessa casa!

— Claro que não, você gasta tudo no bar! Enquanto a


gente fica comendo essa merda de jiló todo dia, você come
torresmo e costela de porco! Me dá essa espátula, por favor?

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— Eu passo mal com jiló, você sabe d-disso, El…

— E com pinga, Roger? Não passa mal não?

— Só bebo um p-pouquinho… E outra, pinga é barato, não


vem botar a culpa em mim, não!

— Um pouquinho? Me dá aquela forma… Obrigada. Um


pouquinho você bebia antes! Agora bebe todo santo dia.

— Eu não tenho o que fazer, Eleanor! A oficina foi


destruída, mas mesmo que não fosse… Tá todo mundo sem
emprego nessa merda de cidade! Eu já falei pra gente sair…

— Ssshhhh! — Eleanor abaixou a voz. — Quer que as


crianças ouçam? Fala baixo!

— Eu já falei — ele tentou sussurrar, mas não conseguiu


direito — pra gente sair daqui e ir morar nas docas. Lá tem
emprego pra mim!

— Nas docas? Naquele lugar cheio de marinheiro e puta,


Roger? É lá que você quer criar nossos filhos? Pra ver a Lou
crescer e… e…

— Melhor do que ficar aqui nesse lugar todo fodido!

— Ah, vai dormir, vai! Me passa essa espátula, por favor?

— Não, Eleanor, você não vai m-me mandar d-dormir! A


gente vai conversar como adultos e decidir juntos!

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— Me dá a porra da espátula, Roger?

— Você vai c-conversar direito comigo ou não?

— Não tem o que conversar. Me dá?!

— N-não… para… El… e… anor!

— Me… dá… eu… tenho que terminar o bol…

Um ruído estrondoso explodiu no ar.

Primeiro metal, ricocheteando contra algo duro. Depois


um som abafado, meio molhado.

E silêncio.

Nessa hora, Louise esticou a mão para a frente, enfiando-a


por baixo do pano.

— Lou… — sussurrou Oliver, desesperado. — Não!

Mas ela não obedeceu. Passou o dedo em algo e voltou a


recolher o braço. Sorriu e encheu a boca com o glacê do bolo
que tinha se espalhado no chão.

— El… me desculpe… — Era Roger, choramingando.

— N-não tem mais creme de leite… — A voz de Eleanor


saiu baixinha.

— E-eu vou c-comprar…

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— Não… — Um passo fez o chão tremer. — Tem… —
Outro, agora mais perto. — Mais… — E outro. — CREME DE
LEITE! — O grito da mulher saiu junto com um gemido, fruto
de um enorme esforço muscular.

Nessa hora, o chão tremeu novamente. O corpanzil de


Roger se estatelou no chão da casa. Louise e Oliver se
afastaram bem na hora que ele se segurou na parede de pano.
O tecido rasgou e metade da cabana caiu.

— Corre, Lou! — disse Oliver, antes de ir atrás dela.

Deu uma olhada para trás apenas para ver a mãe ajoelhada
no chão, com as mãos no rosto, desolada, ao lado do bolo e do
marido.

Ambos completamente destruídos.

— O que é puta, Óli?

— Hein?

— A mamãe falou que lá nas pocas tem marinheiro e puta.


Marinheiro eu sei o que é, mas puta, eu não sei.

Oliver encarou a irmã caminhando ao seu lado, e se


derreteu com a carinha curiosa dela.

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— Não é pocas, é docas. É onde os navios e barcos
atracam.

— Ah, tá. Mas e puta?

Oliver respirou fundo, mas tentou não demorar muito


para responder, o que seria um indicativo de que estava
inventando uma baita de uma mentira.

— Sabe quando a gente diz: tô com uma baita fome?


Então, de vez em quando, adultos dizem: tô com uma puta
fome. É isso, um palavrão. É feio, não vai sair falando por aí,
entendeu?

— Ah, tá.

Os irmãos caminhavam pelas ruas da cidade em ruínas. Já


não havia mais fumaça ou fogo, mas a sensação apocalíptica
ainda era muito presente. Cinzas, pedras e tijolos caídos era
tudo o que restava do que antes era uma cidade rica e cheia de
vida.

— A gente não vai achar creme de leite aqui — disse


Louise.

— É, eu sei…

— Mesmo que achasse, ia estar azedo, não ia?

— Ia.

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— E não tem mais em lugar nenhum. Quando eu fui
pegar, o padeiro me falou que não sobrou nada. E se…

— Eu sei, Lou! Só… fica quieta um pouco, tá bem?

Oliver sabia que era impossível achar qualquer coisa


naquele lugar arrasado. O único motivo para ter levado a
irmãzinha ali era porque queria um pouco de silêncio.

A situação não era nada boa. Tinha dado uma espiada na


caixa onde sua mãe guardava as reservas de dinheiro e
encontrou apenas um punhado de notas miúdas e algumas
moedas. Pelo que conseguiu calcular, não daria nem para
comprar a detestável porção diária de jiló. Sem o dinheiro do
bolo, teriam que sair pedindo comida para não passar fome.

O que também não seria uma tarefa nada fácil. Da última


vez, Oliver teve que aguentar um baita sermão do dono da
vendinha, sobre como ele estava sem dinheiro, e que se
continuasse emprestando comida sem receber nada em troca,
ficaria sem ter o que comer também. Foi só depois que a mãe
apareceu com um pequeno colar de pérolas, herança de sua
avó, que ele aceitou rasgar as páginas promissórias e entregar
a sacola de mantimentos para que a família pudesse sobreviver
por mais uma semana.

Oliver chutou uma pedrinha e ficou acompanhando para


ver até onde iria rolar. Parou a poucos metros de distância.

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Louise, que não gostava nada do silêncio, nem do tédio
que vinha com ele, voltou a disparar seus questionamentos
infindáveis:

— Você já foi nas docas, Óli?

— Já. Uma vez, com o papai.

— E é legal lá? Será que vai ter alguma amiga pra mim?

Oliver não respondeu. Não conseguia mentir para a irmã.


Tentou despistar com uma patética conversa fiada:

— Onde é que ficava o mercado, mesmo? Acho que era


naquela esquina ali, não era? — Apontou com o dedo. — Talvez
tenha sobrado alguma coisa embaixo da terra…

— Você é teimosoooo… Eu já te falei pra gente pedir pra


nossa vizinha.

— E você é ainda mais teimosa. Eu já te falei que a mamãe


não gosta dela. Além do mais, por que ela teria creme de leite?
Ela não é cozinheira, nem doceira, nem padeira, nada disso.

— Ela tem um monte de coisa lá. Não custa tentar.

— Esquece, Louise!

— Não, você nunca me escuta!

— Você é criança, não sabe de nada.

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— Eu sei que sou pequena, mas me escuta, Óli, por favor!

— Lou, cala a boca e continua procurando.

— Vamos lá, por favor! Olha só… A gente vai e pergunta.


Vai que ela tem, nunca se sabe. Não custa nada, custa? É só a
gente ir e pedir, educadamente, só isso, Óli. Além disso, o pior
que pode acontecer é a gente receber um "não", mas aí, pelo
menos…

Oliver não soube dizer o motivo da explosão de raiva que o


acometeu naquele momento. Talvez fosse a tagarelice da irmã,
que falava sem pausas e não dava tempo para que ele pudesse
organizar os pensamentos. Ou então talvez fosse o fato de que
ela podia se dar ao luxo de ignorar os fatos básicos da vida,
como a necessidade de comer, por exemplo. Enquanto ele
estava plenamente consciente dos dias terríveis que teriam
pela frente, ela ficava fantasiando ideias que não tinham a
menor conexão com a realidade.

Claro que ela não tinha culpa, pois fazia parte de sua
natureza infantil.

Mas ele também não era obrigado a aguentar o turbilhão


de tristeza e desespero que crescia dentro de seu peito.

— AS DOCAS SÃO HORRÍVEIS!

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O grito que escapou da garganta de Oliver ecoou pelas
ruas desertas e calou a pobre Louise imediatamente. Sem
parar para respirar, ele emendou:

— É um lugar horroroso, sujo, fedido e cheio de bandidos!


Não vai ter nenhuma amiga para brincar com você!

Ele não percebeu as lágrimas se formando nos olhinhos da


irmã, caso contrário não teria continuado:

— E putas são mulheres que se deitam com qualquer um


para conseguir dinheiro!

Foi só depois de alguns segundos que ele percebeu o


estrago causado pelo desabafo amargo. Assim que viu o choro
escorrendo pelo rosto bochechudo de Louise, tentou consertar,
já sabendo que não havia mais volta:

— Desculpa, Lou, eu não queria…

Ela não ouviu. Virou-se de costas e saiu correndo.

Oliver demorou para reagir, o que deu tempo para que a


irmã ganhasse uma distância considerável. Quando
finalmente decidiu se mexer, ela já estava bastante à frente.

— Lou! Lou!

Por alguma razão, ela estava correndo muito mais rápido


do que costumava correr nas brincadeiras. Oliver estava
verdadeiramente tendo dificuldades para alcançá-la.

23
Chegaram ao bosque onde ficava sua casa improvisada,
mas Louise não foi para lá. Continuou seguindo pela trilha
estreita. Oliver tentou acelerar o passo e reduzir a distância,
mas naquele terreno acidentado, o tamanho reduzido da
garota lhe conferia uma improvável vantagem. Depois de
alguns minutos, ele literalmente a perdeu de vista. Por sorte,
sabia para onde ela estava indo.

— Droga, ela vai encher o saco da vizinha!

Tomou o caminho conhecido, que serpenteava entre


árvores cada vez mais altas e escuras, e logo chegou à área
onde a dita cuja morava.

O lugar em nada se parecia com as dezenas de casas


improvisadas que tinham se instalado nas redondezas.
Rodeada por jardins verdes repletos de árvores frutíferas e
hortaliças, erguia-se uma cabana de aspecto peculiar. Paredes
de pedra e acabamentos em madeira envernizada
emolduravam uma infinidade de vasos, enfeites e outros
penduricalhos coloridos.

Finalmente avistou a irmã. Correu para alcançá-la, mas


não conseguiu chegar a tempo de impedi-la de bater na porta.

— Louise! Vamos embora, agora!

Ela não respondeu. Oliver até pensou em arrastá-la à


força, mas a porta se abriu antes que pudesse agir.

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— Pois não? — saudou a estranha vizinha.

— Me desculpe — adiantou-se Oliver, com um sorriso


amarelo no rosto. — Minha irmãzinha aqui… — Tentou puxar
a teimosa pelo braço, mas ela resistiu. — Eu falei para ela não
vir incomodar, mas ela saiu correndo, e… Bem, não importa, já
vamos embora. Vem, Lou!

— Não! — insistiu a pequena — A gente queria te pedir


algo, moça.

— Do que precisam? — perguntou a vizinha, com um


olhar que não trazia nada além de generosidade.

Encorajado por aquele olhar, Oliver resolveu arriscar.


Louise tinha razão, o pior que podia acontecer era receberem
um "não" como resposta. Respirou fundo e falou:

— Sabe, nossa mãe é doceira, e está precisando de creme


de leite para terminar um bolo. Você por acaso não teria um
pouquinho para emprestar?

— Não! — gritou Louise. — Não é isso o que a gente quer!

— Lou? — Oliver sussurrou, entre os dentes.

A garotinha respondeu apertando a mão do irmão com


força. O gesto era um pedido claro e direto. Pedia confiança,
nada mais do que isso.

Sem saber direito o motivo, Oliver assentiu com a cabeça.

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Louise se virou para a dona da casa e falou:

— A gente quer que nosso pai pare de beber!

Oliver soltou o ar, incrédulo.

— Louise! A mamãe pediu pra gente não falar sobre isso


com os outros.

— Ela pode ajudar, Óli!

— Ajudar, como?

A vizinha se intrometeu:

— Posso fazer quase tudo. Desde que paguem um preço


justo! Entrem.

Louise puxou o irmão pela mão, forçando-o a entrar na


casa. Ele resistiu. Deu uma espiada lá dentro, e uma série de
coisas estranhas lhe chamou a atenção, incluindo um gato
preto que ele podia jurar que estava entendendo tudo.

— E-eu não sei… A gente nem te conhece direito…

A jovem vizinha se virou e ergueu as sobrancelhas. Passou


a mão nos cabelos para tirar uma mecha branca do rosto,
apontou os olhos verdes para Oliver e disse:

— Não seja por isso. Muito prazer, meu nome é Maxine.

26
O primeiro conto da minha humilde coletânea de DLCs é para a
talentosíssima Verena, em homenagem à sua obra-prima "Madame
Magee - A Bruxa da Fortuna"! Leitura obrigatória para quem gosta de
fantasia, suspense, aventura, reviravoltas, e de se encantar com uma
história repleta de magia e personagens maravilhosos!
Recomendadíssimo!

Querida Verê, nesta curta história-presente, eu tentei trazer a essência


do que é Madame Magee, pelo menos para mim. E essa essência se
divide em diferentes aspectos.

Uma das melhores coisas de Magee é, sem dúvida, seu talento como
escritora. Eu já disse, e repito: se algum dia você decidir escrever bula
de remédio, será a bula mais divertida e gostosa de se ler! Você consegue
criar frases que surpreendem a cada cantinho, a cada palavra, a cada
pontuação, a cada negrito ou itálico. Tudo é fresco, leve e solto e nos leva
junto em um fluxo maravilhoso de leitura.

Claro que eu nunca conseguiria trazer esse elemento para meu texto. A
única coisa que eu tentei fazer foi escrever pensando na forma com que
você escreve. Não mudou muito meu estilo de escrita, que é muito mais
simplório e direto, mas talvez tenha influenciado um pouco na "vibe" (o
que quer que isso signifique) do conto.

Falando nisso, esse é o segundo aspecto das histórias envolvendo


Magee. A obra tem uma qualidade que mistura leveza, sentimentos

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alegres e coloridos, aquela sensação de estar entrando em um mundo
fantástico, de verdade. As palavras e frases, meio diferentes, esquisitas
(algumas inventadas), aparecem ali, assim como quem não quer nada.
E a gente, leitor, sente que é assim porque aquele é o mundo delas. Nós é
que estamos sendo convidados a entrar naquele mundo e a nos
acostumar com elas. Eu tentei trazer essa leveza e alegria para a
história, que busca trazer as brincadeiras e inocência de crianças de um
jeito natural. Ao descrever os irmãos brincando e interagindo, as
broncas da mãe, preocupada, tentei transmitir um pedacinho de vida
comum, gostosa e corriqueira, e convidar o leitor a se sentir "em casa".

Mas logo a vida real bate à porta, trazendo incertezas, dúvidas e, no


caso, uma terrível verdade. Magee tem isso, mistura leveza com
acontecimentos seríssimos, pesados. Alguns dos trabalhos da bruxa
são triviais, outros têm consequências devastadoras. Os assuntos se
misturam, imitando o que é a realidade, sem deixar de encantar. Meu
conto também tenta incorporar esse aspecto.

Outra coisa que tentei fazer, e aqui é algo que considero uma
contribuição bastante pessoal, é mostrar um ponto de vista diferente.
Eu gosto muito de mostrar como é um personagem "visto de fora", pois
isso traz uma camada de leitura diferente. Enquanto estamos "dentro"
de um personagem, podemos ler seus pensamentos, desejos e reações
mais íntimos. Quando estamos vendo esse mesmo personagem sob a
ótica de outro ponto de vista, podemos ver o EFEITO que ele causa no
mundo ao seu redor.

28
Na obra original de Magee, poucas são as vezes que saímos de dentro
da bruxinha. E quando aconteceu (perdão se minha memória está me
traindo) foi sempre para nos juntarmos a amigos ou conhecidos dela.
Não me lembro de ter lido algo do ponto de vista de um cliente, alguém
que não a conhece. O que é uma pena, pois a gente não teve muita
oportunidade de sentir como é a primeira impressão de quem conhece a
Max pela primeira vez. Tentei fazer isso, humildemente, no meu texto.

Essa primeira impressão me serviu a três propósitos.

Primeiro, eu queria criar um certo suspense, é claro. Eu queria que você


fosse lendo o texto e só percebesse que a história se passa no universo de
Magee lá no finalzinho. De preferência, quando o texto fala nos cabelos
brancos e olhos verdes. Não sei se deu muito certo, afinal é como tentar
esconder a identidade do filho de sua própria mãe. Só de olhar o
cantinho da unha, uma mãe reconhece o filho, e acho que foi assim a
sua experiência. Mas achei divertido tentar, de qualquer forma.

A segunda razão pela qual eu optei por mostrar a Magee sob o ponto de
vista de outros personagens foi que eu JAMAIS poderia ousar escrever
algo que tocasse na personalidade dela. Eu sinceramente acho que
ninguém, exceto você, Verena, é capaz de escrever a Magee. Não dá, não
iria funcionar, simples assim. Acho que sua personalidade se mistura à
dela de um jeito inseparável, se não por vocês serem muito parecidas,
talvez pelo fato de que ela nasceu de algum lugar muito particular aí
dentro da sua cabeça. Não sei se estou viajando, só sei que eu não
ousaria fazer isso. Até mesmo as duas ou três falas do diálogo final eu
escrevi com os dedos tremendo, morrendo de medo de "errar na voz", ou

29
de corromper a personalidade tão particular da Max. Espero não ter
feito nada errado.

Bom, e a terceira razão pela minha escolha narrativa é a mais especial,


eu acho. E é a que vou gastar o maior tempo explicando.

Senta que lá vem textão (ou nem tanto).

Magee, pra mim, é uma mistura de coisas.

Ela é humana, normal, com sentimentos, tristezas, alegrias e desejos,


como todo mundo. Mas também é capaz de realizar magia, e aí ela se
distancia da humanidade, das pessoas "normais".

Enquanto estamos acompanhando as andanças de Max, e a magia


simplesmente acontece, a gente entra na onda, e aquilo que é normal
para ela se torna normal para nós também, leitores.

E aí a gente esquece que… caramba! Ela faz… magia, cara!!!

Então eu quis trazer essa sensação de assombro, sentida por alguém


"normal", ao testemunhar um ato realmente mágico. Fiz isso criando
uma situação insolúvel (e que é tristemente a realidade de muitas
famílias) para pessoas normais, mas algo simples, talvez até trivial,
para uma bruxa de verdade.

Eu queria que o leitor da minha história ficasse perdido nos


pensamentos e na tentativa de achar uma solução. Queria que ele
chegasse à conclusão que, simplesmente… fu0&u!!! Não tem mais como
consertar aquele bolo! Nem aquela família.

30
E aí aparece Max, maravilhosamente mágica! E a gente SABE que ela
vai dar um jeito. Tá, tem a rolagem dos dados, e tal, mas a gente sabe!
Ela sempre dá um jeitinho!

Esse é um primeiro ponto da escolha narrativa, apresentar a magia


como algo mágico! Fora do normal, motivo de assombro de verdade.
Isso não daria pra fazer se estivéssemos dentro da Magee, só de fora,
mesmo.

O segundo ponto (e agora eu percebo que a explicação está meio


confusa com esses "primeiro", "segundo", "terceiro", etc. Mas calma,
aqui estou falando somente da escolha narrativa de usar personagens
que não fazem parte do círculo da Max)...

Voltando, depois da interrupção. O segundo ponto é o da fé, algo


também presente na sua obra. Meus dois protagonistas representam os
dois lados da fé. Oliver é a voz da razão. Acredito que o leitor,
naturalmente, vai se juntar a ele durante a experiência do conto, pois os
fatos que se apresentam nos remetem à realidade em que vivemos. Por
mais que a gente saiba que está lendo uma história de fantasia (quer
dizer, até essa hora, o leitor ainda não sabe, espero eu, que é uma
história de fantasia) a realidade sempre ganha a disputa porque o
leitor se deixa levar pelos fatos.

Oliver sofre porque ele raciocina em cima dos fatos, é calculista,


maduro, e consegue enxergar as consequências dos acontecimentos.

E aí eu criei a Lou, que rapidamente se tornou uma das minhas


personagens favoritas de sempre! Ela representa, de um jeito bastante

31
óbvio, a fé, pura e simples. Ela é uma criança, que são os seres da vida
real que tem isso, de verdade. Basta conversar com uma por alguns
minutos para perceber que uma criança consegue acreditar em algo
com tanta força que aquilo se mistura à sua realidade.

Mas Louise não é uma garotinha completamente ingênua. Afinal de


contas, ela já está vivendo uma situação bastante triste. O texto não
deixa explícito, mas ela perdeu a casa, e está perdendo a figura paterna
para o alcoolismo. Isso traz um amadurecimento precoce. Se fosse
adulta, estaria certamente desesperançada. Mas ela mantém a
esperança de um jeito que só uma criança poderia manter, mesmo
quando toda a razão a leva para outra direção.

A "briga" no final entre os irmãos simboliza essas forças. Lou provoca,


pois ela sabe o que está afligindo o irmão, no fundo. Ela quer o
confronto, ela não está pronta para desistir. E quando a gente acha que
ela está sendo ingênua e bobinha, ela sai correndo. Não sei se ficou
perceptível, mas o fato de que ela consegue correr mais do que ele (antes
não conseguia, pois apenas fingia ser mais lerda) demonstra que ela
estava no controle o tempo todo. Fingia ser lerda para brincar com o
irmão. E agora, quando precisa, ela corre mais rápido. E ela vai até a
bruxa, pois sabe que ali mora a solução para todos os problemas da
família. Certamente já tinha escutado boatos sobre os serviços da
bruxa, algo que nem Oliver (nem a mãe) acreditavam.

Magee, pra mim, representa isso. A união da fé com a realidade. Talvez


não exista magia de verdade. O que vai acontecer com aquela família
destruída, a gente não sabe. Será que Max vai fazer um feitiço que

32
conseguirá trazer Roger de volta? Ou será que eles vão ter que
confrontar o pai com uma boa e velha conversa? Impossível dizer, pois é
preciso esperar os dados serem rolados.

Mas as forças que levaram Lou e Óli até a porta da vizinha são sim
muito humanas, seja em uma obra de ficção ou na vida real. E é essa
força, super presente na sua obra, que meu conto tenta homenagear. Eu
não conseguiria, acho, representar isso sem trazer personagens
adicionais, pois isso tem a ver com o EFEITO que a Max causa nas
pessoas, e não à personalidade interna dela.

É isso, cara bruxinha. Espero que tenha gostado do presente. Se não


gostou, não tem problema, eu sei como a gente pode ser meio possessivo
com a obra da gente. Foi apenas uma tentativa sincera de elogio e
homenagem, além, é claro, de um pedido velado para que você volte
logo a escrever Magee 2!

Feliz Natal e um 2024 cheio de magia!

33
A trovadora e o malfeitor
A animação era grande.

As conversas que ecoavam pelas paredes de pedra da


taverna navegavam para muito além dos assuntos corriqueiros
de uma noite de verão. Ainda havia alguns que preferiam
gastar o verbo gabando-se de sua capacidade de beber
hidromel sem vomitar, ou tecendo comentários safados sobre
o comprimento da saia da mulher do ferreiro. Mas tais
assuntos mundanos não podiam competir com a expectativa
em torno da apresentação que estava prestes a começar. Não
se falava em outra coisa.

Até mesmo os archotes pendurados nos pilares quadrados


que sustentavam o teto baixo do estabelecimento pareciam
tremular suas chamas em um ritmo gingado, como se
estivessem ensaiando os passos de uma coreografia carregada
de movimentos sensuais, em um prelúdio silencioso do
espetáculo musical agendado para aquela noite. Claro que o
fogo não estava dançando de forma espontânea, mas sim
reagindo às lufadas de vento convidadas a entrar pelas grandes
janelas de madeira, que naquela noite estavam abertas em
uma mal sucedida tentativa de refrescar o ar quente que cobria
toda a região.

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— Ei! — gritou o taverneiro de trás do balcão. — Sai já daí,
Phillip, seu moleque desordeiro. Sai do tablado, que os artistas
já estão quase chegando!

— Deixa disso, senhor Monteiro! — retrucou o cliente


mal-educado, com um sorriso bêbado no rosto. — Não tem
ninguém aqui, porque não posso usar pra dançar com a minha
bela flor?

O taverneiro enxugou o suor da testa com um pano


fedorento, afastando o líquido salgado dos olhos. Antes que
pudesse falar qualquer coisa, a moça que estava na frente de
Phillip ergueu a voz:

— Pode deixar, senhor Monteiro, eu cuido desse daqui. —


Ela puxou a manga da camisa surrada do rapaz, derrubando-o
do tablado: — Sai daí, seu verme! Vai atrapalhar o concerto!

Ecos de risadas e palmas saudaram a atitude da mulher e


colocaram um sorriso aliviado no rosto do taverneiro Tiago
Monteiro. Ele aproveitou a pausa para terminar de enxugar a
caneca que tinha nas mãos — usando o mesmo pano com que
tinha acabado de secar o líquido corporal — e percorreu os
olhos pelo salão.

A casa estava cheia. Tinha a ralé de sempre, bêbados que


se achavam donos do lugar. Sempre fazendo fiado e causando
prejuízo, eram os mais barulhentos e chatos. Monteiro só não
os expulsava a pontapés porque, no final das contas, acabavam

35
sendo responsáveis pelo seu pão de cada dia. Mas também
havia rostos desconhecidos, muitos dos quais estavam bem
vestidos, ostentando cores vívidas e chapéus estilosos, um
sinal claro de que tinham dinheiro para gastar.

Dinheiro este que era mais do que necessário. Monteiro


investiu uma boa grana espalhando cartazes pela vila,
anunciando a apresentação do grupo de músicos que
rapidamente se tornava a sensação dos bares e bailes do reino.
Isso sem falar, é claro, no cachê dos artistas. Sabedores de sua
fama ascendente, não cobravam barato. Mas as perspectivas
eram ótimas. Se conseguisse evitar brigas e quebra-quebra, os
lucros seriam suficientes para cobrir os custos e também
financiar umas merecidas férias com sua esposa Helena. Ela
também sonhava com isso, pois servia as mesas com um
sorriso bem mais saliente do que o normal.

— Tiago — disse-lhe a esposa, ao passar pelo balcão —,


abra outro barril. Acabei de tirar as últimas duas canecas do
que está lá.

— Olha, que maravilha! Não me lembro da última vez que


precisei abrir três barris na mesma noite.

— Deve ser a primeira. — Helena ergueu os ombros e


ficou na ponta dos pés, em um quase-salto de alegria. — Eu te
disse que trazê-los era uma boa ideia, não disse?

— Disse. É por isso que eu te amo, mulher!

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Helena ergueu uma das sobrancelhas e puxou o canto da
boca.

— Sei. Eu tive que insistir, velho teimoso! Agora vê se


aprende a me escutar!

Monteiro nem ligou para a bronca. Apenas sorriu e acenou


para a mulher voltar ao serviço. De fato, ele não tinha gostado
da ideia de promover um show de música dentro de sua
taverna. Era caro e poderia gerar confusão. Mas tinha que dar
o braço a torcer. Desta vez Helena acertou em cheio.

Já ia descer ao porão e abrir o terceiro barril quando seu


olhar foi atraído para a porta, mais especificamente para o
homem que tinha acabado de entrar.

Por um breve instante, comemorou. "Mais clientes!" —


disse-lhe, em pensamento, seu "eu" empreendedor. Mas assim
que reconheceu o recém-chegado, uma das pálpebras se
fechou levemente, em um reflexo instintivo e carregado de
incômodo. "É Gwivern! É encrenca!" — respondeu-lhe, em
pensamento, seu outro "eu", aquele responsável pelos maus
presságios e pelos instintos básicos de sobrevivência.

Ao entrar na taverna, o homem chamado Gwivern quase


sentiu a animação contagiante do lugar. Se não tivesse um

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assunto muito mais sério para tratar, iria se sentar em meio a
um grupo de fracotes para ganhar bebidas de graça — além de
altas doses de admiração e puxa-saquismo — em disputas no
braço-de-ferro. Apenas por instinto, mediu com os olhos os
bíceps e tríceps dos exemplares mais recheados de músculos
dali, e concluiu que ninguém seria páreo para ele. E se não
quisessem entrar no esporte, poderia simplesmente provocar
uma briga. Não havia diversão melhor do que quebrar uns
narizes compridos, além de servir para aumentar a
autoconfiança.

Não que precisasse disso. Sua autoconfiança já era


altíssima, fruto de seu porte muscular fora do comum e da
posição de liderança que tinha acabado de conquistar em seu
grupo.

Também não precisava de bebida para se soltar. Mesmo


sóbrio, tinha o costume de dominar qualquer conversa com
seus comentários sagazes e provocações feitas no momento
certo.

Mas, naquela noite, ela estaria ali.

E ela tinha o dom de tirá-lo do prumo. Talvez fosse a única


pessoa capaz de minar suas defesas e varrer as melhores falas
antes que deixassem seus lábios.

— Ei, mulher! — gritou. — Traga vinho!

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Puxou uma cadeira de uma mesa que já estava cheia de
gente e se sentou. Ninguém se incomodou com o intruso. Pelo
contrário, ficaram olhando admirados para sua ousadia —
principalmente as mulheres. Elas sempre se encantavam com
suas atitudes e traços excessivamente masculinos, por mais
rústicos que pudessem parecer aos olhos de uma pessoa
minimamente educada.

— Gwivern — respondeu Helena, ao se aproximar da


mesa. — Não queremos confusão hoje, é uma ocasião especial.

— Helena, querida. Há quanto tempo! — Sorriu para ela.


— Isso é jeito de falar com um cliente antigo?

— Desculpe-me, nesta noite a taverna está cheia, como


pode ver. Quer vinho, é isso? — Estendeu a mão com a palma
virada para cima.

Gwivern sorriu e colocou uma moeda de prata na mão da


garçonete.

— Isso dá pra quantas canecas?

— Três.

— Só isso? Estão querendo ficar ricos numa única noite?

— Eu te disse que hoje era uma ocasião especial, mas você


sabe disso, não sabe? Foi por isso que veio. Para vê-la.

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O homem sorriu ainda mais. Tirou um cartaz do bolso e o
deitou na mesa com um tapa. Copos e canecas reclamaram do
tremor de terra produzido, respingando bebida e exigindo que
seus donos os segurassem firmemente para que não
tombassem.

— Você lê meus pensamentos.

Helena colocou a moeda no bolso e aproximou o nariz do


rosto dele.

— Sem confusão! Está me ouvindo?

— Relaxa! Só vou conversar com ela.

Com as mãos nos quadris e a certeza da dúvida estampada


no rosto, Helena se afastou, alheia ao fato de que os olhos do
homem seguiam o movimento de seus quadris com mais
atenção do que exigiam o respeito e a decência.

Enquanto aguardava sua bebida, Gwivern deu uma boa


olhada ao redor. Helena tinha razão, aquela noite parecia
diferente. Já tinha frequentado a taverna muitas vezes no
passado, e não conseguia lembrar de uma vez em que esteve
tão cheia assim. A vila era medíocre em tamanho, com meia
dúzia de moradores insignificantes e enfadonhos, que juntos
não conseguiriam chegar nem perto da enorme aglomeração
que se fazia presente naquela noite.

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— Você não é daqui, é? — Uma voz aveludada chegou aos
seus ouvidos. Ele não se deu ao trabalho de virar o rosto para
responder.

— Não. Saí desse pântano há muito tempo.

— E por que voltou?

Um discreto tamborilar de dedos chamou a atenção dele


para o cartaz. Era a mão de sua vizinha de mesa, batucando e
apontando, conscientemente ou não, para o anúncio do grupo
musical: "A trovadora e os três bardos".

Gwivern cedeu ao convite velado e concedeu à moça um


virar de pescoço.

Ela era bonita. Morena, de cabelos longos e enrolados,


com pontas que envolviam os ombros desnudos e penetravam
no generoso decote de seu vestido. O sorriso, aberto e cheio de
dentes, exclamava desejo e luxúria. Os olhos, grandes e cheios
de foco, o fitavam com evidente sede de atenção.

Acostumado a esse tipo de reação, o homem não demorou


muito para responder. Voltou a encarar o vazio e disse, seco:

— Não é da sua conta.

O silêncio que o comentário rude provocou não durou o


tempo que desejava, pois a moça respondeu:

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— Você a conhece? Ouvi você falando para a garçonete que
quer falar com ela. Acha mesmo que ela vai atendê-lo?

O rosto de Gwivern reagiu involuntariamente,


endurecendo os músculos ao redor da boca. Decidiu continuar
sem falar, o que apenas serviu para que a tagarelice da mulher
aumentasse:

— Duvido que você consiga falar com ela, é muito


requisitada. Ela é muito talentosa, sua voz parece a de um
anjo. Logo, logo, todos no reino vão conhecer seu nome.

Virou-se para olhar mais uma vez para a insistente mulher


— torcendo para que fosse a última:

— Eu vou falar com ela. Pode ser famosa, mas será sempre
a minha Norma.

— Norma? — O comentário da moça saiu cheio de ironia.

— Esse é o verdadeiro nome dela.

— Que piada! Ouviram isso? O maluco aqui disse que a


trovadora se chama Norma.

Risos circularam a mesa. Gwivern cogitou dar um murro


no tampo de madeira para demandar respeito, mas não queria
provocar confusão — ainda.

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Por sorte, Helena apareceu com sua caneca de vinho.
Pegou-a e virou em poucos segundos, devolvendo-a antes
mesmo que a mulher conseguisse se afastar.

— Traga outra.

A dona da taverna demorou um pouco para recolher o


copo, apenas para desferir um olhar que repetia o aviso para
que se comportasse.

Cada vez mais incomodado, Gwivern soltou um sonoro e


demorado arroto, o que serviu não apenas para expulsar
Helena dali, mas também para calar os risos dos insolentes
comensais.

O tempo foi passando, as conversas aumentando de


volume, assim como os gritos e pedidos para que o show
começasse. Quando Tiago e sua testa ensebada subiram no
tablado, a multidão comemorou. Ele precisou erguer as mãos
e a voz para se fazer ouvir:

— Amigos, ouçam! Ouçam! Finalmente chegou o


momento que todos vocês esperavam. Pela primeira vez na
nossa humilde vila, anuncio a sensação do momento. Por
favor, recebam com entusiasmo todo o talento da trovadora e
os três bardos!

Palmas e vivas preencheram todo o espaço sonoro do


salão. Muitos se levantaram de suas mesas, encobrindo a visão

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de Gwivern, deixando-o com meros vislumbres do que se
passava em cima do tablado: pedaços de instrumentos
musicais e dos braços erguidos dos músicos que acenavam
alegres para seu público.

— Sentem-se! — reclamou. — Diabos, sentem-se, seus


merdas!

Ninguém deu ouvidos, estavam todos excitados demais


para ceder à boa educação. Nem mesmo quando a música
começou eles se sentaram. Todos pulavam e tentavam ver seus
ídolos da melhor forma possível.

A primeira coisa que Gwivern ouviu foram os


instrumentos. Melódicos e carregados de uma rica harmonia,
atraíam pela beleza e simplicidade das notas que produziam.
Juntos, enchiam os ouvidos de graves, médios e agudos, em
uma mistura de timbres de cordas e sopros. O efeito imediato
foi o calar das bocas dos ouvintes, que adotaram o silêncio
para poder apreciar as vibrações sonoras em sua plenitude.

— Merda, quero ver!

Sem outra alternativa, Gwivern se levantou. Seu tamanho


avantajado o colocou meio palmo acima das cabeças,
dando-lhe uma visão perfeita do grupo musical.

Foi aí que ele a viu.

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Cercada pelos seus três companheiros de palco, e
iluminada com especial capricho por uma combinação fortuita
de luz dos archotes, Norma se destacava.

Não eram apenas seus trajes que atraíam os olhares. Em


contraste com as cores marrons e cinzas dos bardos, a
trovadora vestia-se com um azul vívido. Os tons cerúleos da
combinação de blusa e saia ressaltavam a pele clara,
generosamente revelada nos ombros e colo. Também
produziam um realce luminoso no castanho escuro dos
cabelos longos, metade soltos, metade presos em duas tranças
enfeitadas com flores brancas. Colares e pulseiras metálicas
prateadas adornavam sua bela silhueta, pontilhando-a com
reflexos que cintilavam às chamas do ambiente.

Também não era só a sua beleza incomum que a colocava


como o centro das atenções. Os olhos cor de mel figuravam
brilhantes em um rosto que trazia um caráter místico em sua
essência. Ao redor do olhar oblíquo, nariz e sobrancelhas finos
contrastavam com uma boca volumosa, preenchida por lábios
vermelhos e carnudos que hipnotizavam pela simetria
perfeita.

Também não era somente pela voz que Norma enfeitiçava


sua audiência. Seus timbres agudos como os de uma flauta se
intercalavam com notas mais graves que ocasionalmente
deixavam escapar uma discreta rouquidão, forte e doce ao
mesmo tempo, conduzindo almas para perto das emoções que

45
a música evocava. A afinação, perfeita, seguia a precisão dos
movimentos de braços e quadris, que ilustrava a música com
uma dança suave e que não se sobressaía ao conjunto da obra,
mas sim complementava o espetáculo de maneira harmoniosa.

Era tudo isso, junto e misturado, que conferia à artista


uma aura especial, e que dizia às pessoas que ali estava uma
mulher fora de série, digna de ser idolatrada e adorada pelos
desprovidos de talento.

Gwivern se perdeu em admiração por mais tempo que


gostaria. Quando percebeu que era apenas mais um rosto
apaixonado em meio à multidão de panacas abobalhados,
chacoalhou a cabeça com vigor, espalhando a saliva que tinha
se formado em sua boca. Empurrou e esmurrou alguns corpos
até abrir espaço à sua frente. Satisfeito com o novo campo
visual, sentou-se para apreciar o espetáculo. Pegou a taça de
vinho que Helena deixou sobre a mesa e bebeu um gole
generoso.

Segundos depois, o esperado contato aconteceu. Sob


batidas aceleradas do coração, seus olhos se cruzaram com os
de Norma. Mesmo ela estando um pouco longe, e em cima do
tablado, ele conseguiu perceber quando as írises cor de mel da
cantora se demoraram alguns segundos apontadas na direção
dele.

Com um sorriso no rosto, ergueu a caneca e as


sobrancelhas, sinalizando para ela que estava ali. Em resposta,

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ela não fez nenhum gesto de reconhecimento. Não sorriu,
piscou, ou mudou sua postura…

… mas, naquele momento, Norma pulou um verso da


música.

"Gwivern, aqui! Não acredito!"

Norma perdeu a concentração. Seus colegas perceberam,


pois durante meio segundo, os instrumentos se
desencontraram e produziram uma dissonância rítmica e
melódica que apenas os ouvidos dos próprios músicos,
castigados pelos repetidos ensaios, foram capazes de perceber.
A plateia, completamente ignorante ao equívoco cometido pela
cantora, passou pelo incidente como se aquilo fizesse parte do
show.

Assim que a música reencontrou seu compasso, ela deu


uma olhada para o lado, na direção de Dante. O bardo mais
velho era o seu afeto musical mais próximo na banda, e foi
para ele que pediu desculpas silenciosas em forma de um leve
erguer de sobrancelhas e um sorriso discreto. O homem
retribuiu com um aceno de cabeça e um olhar carinhoso.

Norma juntou forças para encarar a plateia novamente.


Concentrou-se em canalizar as notas certas para as cordas

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vocais e em reencontrar-se com o ritmo cadenciado da canção.
Satisfeita com a perfeição técnica, conseguiu ignorar a
presença incômoda pelo restante da música.

Dali em diante, tudo ocorreu normalmente. Os músicos


cantaram, tocaram e emocionaram a plateia, que por sua vez
respondeu em sincronia entusiasmada, com palmas e gritos
que iam crescendo em histeria até culminar com uma explosão
de êxtase no final. Quando Norma começou a entoar os versos
derradeiros da canção mais famosa da banda, e os bardos
passaram a emitir os acordes crescentes que prenunciavam o
encerramento do concerto, o ambiente se transformou. Vozes
se juntaram em uníssono para repetir as palavras decoradas,
fazendo a melodia reverberar entre as paredes e os corações,
criando uma mistura de curtição do momento e tristeza com o
fim iminente.

Mas a plateia não ficaria triste por muito tempo. Depois


que a apresentação acabava, restaria um efeito especial. Era
algo comum nas apresentações do quarteto, sua marca
registrada: quem testemunhava uma apresentação do grupo
dizia permanecer em estado de alegria duradoura, sentindo
uma satisfação diferente que perdurava por muitas noites.

Era quase como se fosse mágica.

Quando o grupo se deu as mãos e agradeceu aos aplausos,


a sensação de dever cumprido que sempre tomava conta de
Norma não foi capaz de dispersar as borboletas que voavam

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em seu estômago. Por um momento, até cogitou fingir uma
dor de cabeça e se trancar no quarto da estalagem até o dia
seguinte. Mas provavelmente não adiantaria nada. Ele não
tinha seguido-a até aquela vila distante para desistir tão fácil
assim. Se desaparecesse, ele simplesmente acamparia em
frente ao quarto até conseguir falar com ela.

Não, era melhor encará-lo logo e descobrir o que ele estava


querendo.

Apesar de ter uma boa ideia do que se tratava.

— Norma Huet! — A voz grossa e claramente alterada


arranhou seus ouvidos. Sorridente, ele se aproximou, com os
braços abertos e o andar confiante de sempre.

— Gwivern! Eu não uso mais esse nome. — Passou a mão


nos cabelos, um pouco encabulada.

Ele chegou bem perto, e ela manteve os braços cruzados,


de propósito. Sabia que ele tentaria beijar sua mão, ou fazer
algo parecido, o que queria evitar de qualquer jeito.

— Me desculpe, é o costume. Passei muito tempo


chamando-a assim, é difícil esquecer.

— Pois eu agradeceria se esquecesse, e não me chamasse


mais assim.

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— Está bem. — A expressão dele se amenizou. — Como
você está, minha pequena?

O apelido carinhoso a desarmou um pouco. Apesar do


pronome possessivo espetar seu orgulho, a memória de uma
época mais feliz aqueceu seu coração. Ela suspirou e deixou
que um sorriso amolecesse seu rosto:

— Estou bem. Como pode ver, as coisas estão dando certo


para mim.

— Estou vendo. Está ficando famosa.

— Sim, estamos! — Fez questão de enfatizar o grupo


inteiro. — Temos concertos agendados para o mês inteiro.

— E uma trovadora famosa aceitaria dividir uma bebida


com um velho amigo por alguns minutos?

O convite pareceu sincero e educado, de modo que ela não


pode recusar.

Os clientes já começavam a deixar o estabelecimento, mas


muitos queriam ficar para interagir com os artistas. Por esse
motivo, os dois se dirigiram até o taverneiro, para quem
Norma pediu a gentileza de preparar uma mesa mais
reservada. Em poucos minutos estavam sentados em uma
mesa perto da cozinha, com duas canecas de vinho como
companhia.

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— Eu queria falar primeiro — disse Norma. — Sei que foi
você quem me procurou, mas tem algo que eu queria tirar do
meu peito.

Gwivern sorriu:

— Eu acho que já sei o que é, e adianto que não precisa…

— Mas eu quero, mesmo assim. — Norma baixou os


olhos. — Desculpa por sumir sem te avisar. Não foi nada legal
de minha parte desaparecer sem dar notícias.

O homem ficou sério.

— Uau! Não era isso que eu estava esperando.

— E o que era?

— Eu achei que você ia me explicar porque foi que me


abandonou. Eu sei que você nunca aprovou o que eu fazia, mas
nunca achei que iria pedir desculpas. Caramba, você não tem
que pedir desculpas, não depois do que eu te fiz.

Ela ergueu os ombros.

— Bem, confesso que fiquei muito chateada, mas depois


fiquei pensando que não custava nada termos conversado uma
última vez. Uma homenagem ao nosso tempo juntos, sabe?

— Sou eu quem tem que pedir desculpas. Quero dizer, eu


era jovem, e bonito, então eu nem tive muita culpa, sabe…

51
O coração de Norma se acelerou. Se aquele era um pedido
de desculpas, era um dos piores que já tinha ouvido.

— Você me traiu, Gwivern! Deitou-se com uma de minhas


melhores amigas! Ser jovem não te dava o direito de ser mau
caráter!

— Ela não era tão amiga sua assim, não acha?

O sorriso debochado e o teor arrogante acabaram com a


predisposição de travar uma conversa amigável com ele.

— O que você quer, Gwivern? Diga logo, estou cansada e


preciso dormir.

— Ei, calma, eu só tô brincando! Eu disse a verdade sobre


o pedido de desculpas. Só quero deixar as coisas certas entre a
gente, nada além disso. Me desculpa?

Norma cruzou os braços, ainda incrédula e sem dizer


nada.

— Eu terminei com ela logo depois. Juro! Foi uma besteira


enorme, não se passa um dia sem que eu não me arrependa!
Você foi uma bênção em minha vida, mas eu te desprezei, não
dei o valor que…

— Está bem! — Falou apenas para calar o choramingo


crescente. — Eu te perdôo, Gwivern, não se preocupe mais

52
com isso. Eu sofri, mas já passou, eu já te esqueci, vamos em
frente, está bem?

Ele sorriu, parecendo genuinamente aliviado.

— Obrigado. Significa muito para mim.

Norma ergueu sua caneca e deu um sorriso acanhado e


esperançoso, mas repleto de dúvidas. Bebeu um gole e
observou seu companheiro fazer o mesmo. Ficaram em
silêncio por alguns instantes.

— Não sabia que você cantava tão bem assim. — Ele


retomou a conversa. — Pelo que me lembro, só cantarolava
baixinho, durante o banho, e era um pouco desafinadinha, até.

— Desafinadinho é o seu rabo!

Os dois riram, mas Norma o fez apenas por educação.


Gwivern estava claramente tentando provocá-la.

— Estou brincando. Eu adorava ouvi-la cantar,


principalmente enquanto estava nua ao meu lado, na cama.

"Acalme-se! Ele só quer te deixar irritada. Continue


sorrindo, termine a bebida e vá embora."

— Sempre gostei de cantar. Aí eu encontrei esse grupo


maravilhoso, começamos a ensaiar, e deu super certo. A gente
criou uma conexão incrível.

53
— Sei. Já se deitou com algum deles? Vi você olhando
bastante para o de cabelos grisalhos, durante o concerto. Não
acha ele meio velho para você?

Norma se levantou.

— Eu não tenho que te dar satisfação. Passar bem,


Gwivern!

— Ei, ei, calma! — Ele colocou a mão no antebraço dela. —


Só estou puxando conversa. Por favor, sente-se. Eu tenho algo
para te falar, é sério. Depois disso, vou embora. Estou
morrendo de sono.

— Está bem. Diga logo, também estou cansada.

Ele suspirou e olhou para os próprios dedos cruzados à


frente.

— A verdade, Norma… ou qualquer que seja seu nome


artístico hoje em dia, sei lá… É que estou precisando de ajuda.
Sabe, eu me cansei daquela vida. Saques, golpes, assaltos… não
estava me fazendo bem.

— Foi por isso que eu te abandonei. A traição foi apenas a


cereja do bolo.

— Eu sei, eu sei. Tanto é que abandonei aquela vida. Hoje


eu sou capitão, olha só.

54
Ele tirou do bolso um broche com uma insígnia, que
Norma reconheceu imediatamente. Era de um grupo de
guerreiros mercenários que eram famosos tanto por sua
habilidade em batalha como por sua lealdade a quem
contratasse seus serviços. E também — e foi isso que lhe
provocou um frio na espinha — havia histórias sinistras
ligadas àquele grupo.

— Sei. E onde eu entro nisso?

— Você sempre disse que tinha vontade de fazer o bem, e


eu quero te oferecer uma vaga ao meu lado. Ajudamos muita
gente, Norma! Outro dia mesmo, nós salvamos uma família de
um grupo de bandidos!

— Salvaram? Ou extorquiram?

O rosto de Gwivern se contorceu imediatamente em um


espanto fingido.

— Não acredite em tudo o que ouve por aí. É muito fácil


cultivar inimigos em nossa posição. Sabe que eles falam
qualquer coisa para nos difamar.

A resposta pronta e recitada com teatralidade impecável


lhe disse tudo o que precisava saber. As histórias de extorsão
eram verdadeiras, assim como as outras, provavelmente.

— Agradeço o convite, Gwivern, mas minha vida agora é


outra. Prefiro gastar meus dias fazendo as pessoas felizes, em

55
um mundo tão cheio de tristezas. Deixo o combate e a luta
armada para pessoas como você, que são muito mais capazes
do que eu.

O elogio pareceu ter surtido um efeito positivo, pois ele


estufou o peito como sempre fazia ao se sentir importante.
Mas ainda havia algo. Ele falou:

— Está certíssima, tem que seguir seu coração… E é por


esse mesmo motivo que eu tenho que te falar o que vou falar a
seguir. Já sei qual é sua resposta, mas eu não posso ir embora
sem tirar esse nó da minha garganta.

— Gwivern, não…

— Por favor, eu preciso…

Ele se levantou e se ajoelhou em frente a ela. Com os olhos


arregalados, ela tapou a boca para não deixar escapar um
suspiro.

— Norma Huet… Desde que você sumiu da minha vida, eu


não sei mais o que é alegria. A verdade é que eu te pedi para se
juntar ao meu grupo, mas não foi apenas por causa de sua
bravura. Eu não consigo mais viver sem você. Sei que pisei na
bola e sei que já não mereço seu amor, mas eu te peço, com
verdadeiro arrependimento no coração… Casa comigo?

Norma respirou fundo e respondeu com a maior


facilidade do mundo:

56
— Não. Sinto muito.

Ele sorriu, parecendo triste, mas aliviado. Levantou-se,


enxugou uma lágrima do rosto e disse:

— Eu já sabia. Mas obrigado por me ouvir. Foi importante


para mim.

— Me desculpe.

— Não se desculpe. Adeus, e continue fazendo todo


mundo feliz, como fez esta noite. Foi realmente mágico!

Ele começou a se afastar. Mas antes, virou o rosto e disse,


com um sorriso carinhoso:

— Você não é nem um pouco desafinada. Sabe disso, não


é?

Ela riu, mas não conseguiu conter uma lágrima repleta de


alívio. Acenou com a mão e o acompanhou enquanto se
afastava.

Nessa hora, duas mulheres se aproximaram. Estavam


aparentemente esperando uma deixa para começar a
tietagem.

— Desculpe incomodar, podemos conversar com você?

— É claro! Sentem-se!

57
Enquanto as duas fãs se acomodavam, Norma deu uma
última olhada para a porta, que tinha acabado de se fechar.

Finalmente, aquele homem horrível iria desaparecer de


sua vida para sempre.

Sentado na cadeira, equilibrando-se nas pernas traseiras,


Gwivern apreciava o serviço concluído. Limpava as unhas com
a ponta da espada, tentando tirar os resquícios de sangue que
tinham se acumulado ali.

Estava calmo. Muito mais calmo do que achou ser capaz


de ficar naquela noite. Principalmente depois de ter seu
pedido negado pela vagabunda.

"Não".

Nunca achou que uma simples palavra pudesse, ao mesmo


tempo, perfurar, rasgar e dilacerar, mas foi isso que sentiu no
peito quando Norma negou se juntar a ele.

"Sinto muito".

Ela sentiria muito, em breve. Quando entrasse pela porta,


ela sentiria todo o peso de sua decisão equivocada. Veria os
seus amados companheiros bardos, mortos e decapitados.
Tinha disposto as cabeças em cima da mesa, bem de frente

58
para a porta, para que fossem a primeira coisa que ela visse
quando entrasse no quarto da estalagem. O de cabelos
grisalhos na frente, é claro. Fez questão de deixar seus olhos
abertos, para que ela pudesse sentir o mesmo tipo de
sentimento ruim que tinha acabado de fazê-lo passar.

Passos.

A maçaneta girou.

Gwivern respirou fundo e vestiu um sorriso calmo no


rosto.

Quando o belo rosto de Norma Huet surgiu pela porta, ele


soltou as palavras que estavam queimadas em sua mente:

— Sinto muito!

A reação dela foi rápida, mas ele a saboreou em todas as


suas nuances.

Primeiro, como previsto, ela demorou para entender o que


tinha acontecido. Uma imagem de três cabeças em cima da
mesa não é processada rapidamente, ainda mais quando há
tanto vermelho competindo pela atenção.

Em seguida, ela ergueu os olhos para encará-lo, e ele fez


questão de fazer o brilho da espada respingada de sangue
refletir a luz dos archotes em seus olhos.

59
Olhos cor de mel, oblíquos e repletos de uma beleza
mística, quase indecifrável.

Que se transformaram aos poucos, assumindo tons


alaranjados e amarelados de um intenso pôr-do-sol.

Depois, ela gritou.

Ergueu os braços, puxou os cabelos.

Cambaleou para a frente, e acariciou os cabelos grisalhos


de uma das cabeças.

Olhou para os lados, para cima, para baixo, em busca de


explicações, em busca de sentido.

Não precisava procurar muito, pois tudo o que ela


procurava estava ali, em sua frente.

E foi o que ela fez. Cravou seus olhos incandescentes, que


agora tinham se transfigurado em chamas fulgurantes, em
Gwivern. Já ciente de seu destino, ele abriu os braços e deixou
a espada cair, apenas esperando. Suspirou e se preparou para a
dor.

E a dor veio.

Com um grito que vinha direto da alma, Norma esticou os


dois braços à frente. Imediatamente, Gwivern sentiu seu corpo
se elevando. Levitou até ficar flutuando a um metro do chão.

60
Em seguida, seus membros começaram a se esticar.
Estalos audíveis denunciavam o rompimento dos ossos e
articulações, além dos músculos sendo estirados além de seus
limites. A vontade de gritar era enorme, mas ele resistiu. Era o
seu golpe final, que completaria a vingança contra aquela que
acabou com sua vida. Uma frase entrecortada conseguiu se
formar em seus lábios:

— I-isso! Mate-me, sua vagabunda! Destrua meu corpo,


assim como destruiu meu coração!

A mulher gritou ainda mais alto. Com uma dose infindável


de angústia e dor, intensificou a magia que estava prestes a
desmembrar o assassino cruel.

E ela gritava:

— N-não, não! Não! NNN-NNÃOO! DESGRAÇADO!!!

O braço direito dele caiu e ficou pendurado apenas pela


pele.

— M-mate-me, Norma! Eu te imploro!

Os dois choravam.

O choro dele era repleto de alegria. Ver sua amada


sofrendo, sabendo que ela jamais encontraria felicidade
novamente longe dele, era a única opção que tinha restado.

61
Também se regozijava com o fato de que ela estava se
entregando ao ódio, empregando a magia de um jeito
completamente deturpado e motivado pelo mais terrível
sentimento que podia ser usado como combustível. O fogo do
uso indevido da magia iria, eventualmente, queimar sua alma,
e ela estaria condenada a vagar pelos corredores do inferno
junto com ele.

Gwivern estava feliz, pois conseguiu atingir seu objetivo.

Podia morrer em paz.

O choro de Norma era um ato cravejado do mais puro


desespero, uma mistura de ódio e tristeza pela certeza de que
sua vida estava terminando ali. Ela o mataria, disso não havia
dúvidas, e depois morreria também. E o pior era que tudo isso
iria acontecer com magia.

Magia que tinha conseguido manter sob controle nos


últimos anos. Era seu dom mais precioso, motivo de orgulho e
vergonha.

Descobriu-o ainda na infância, quando, sem querer,


quebrou o galho de uma árvore onde um gatinho estava preso.
O bichinho caiu de uma altura considerável, mas flutuou no ar
centímetros antes de atingir o chão. Depois saiu correndo, sob

62
o olhar atônito da pequena feiticeira, tremendo de medo, mas
intacto.

Aos poucos, o dom da magia foi se aprimorando, à medida


que a menina crescia e se transformava em mulher. Mas
floresceu de um jeito perigosamente negativo durante o tempo
que compartilhou com Gwivern. Quando despertou a cobiça
do companheiro, que passou a manipulá-la para fazer uso de
sua magia em suas pilantragens, ela achou melhor se afastar
dele. Envergonhada, enterrou sua magia, fazendo-a
adormecer por um tempo. E assim permaneceu, suavemente
escondida, enquanto a ex-feiticeira, arrependida, cultivava sua
carreira de cantora.

E agora, com a força de uma cachoeira represada, e o


ímpeto de uma fera cutucada por ferro em brasa, a magia
voltava com tudo, derramando toda sua força contra aquele ser
desprezível.

Norma comandava-a, implorando que destruísse cada


pedaço de fibra daquele que matou seus amigos. Ela o
desmembraria como se fosse feito de palha, assim como ele fez
com seus queridos companheiros de música.

Mas, nesse momento, algo chamou sua atenção. Norma


encarou os olhos cinzentos de Dante. Mesmo sem vida,
aqueles olhos bondosos conseguiram transmitir uma
mensagem muito clara. Como se fossem notas entoadas em
seu doce alaúde, diziam:

63
"Calma!"

Dante era assim. Com poucas palavras, ou até mesmo sem


falar nada, dizia muito. Um simples vislumbre de seu rosto
sereno era muitas vezes suficiente para que as angústias e
temores que afligiam o coração machucado dela se
aquietassem. Ela adorava olhar para ele. Era mais do que uma
figura paterna. Era um amigo, confidente, um porto seguro
para onde sempre podia navegar.

"Calma".

E ela se acalmou. Abaixou as mãos, devagar.

Gwivern caiu no chão, com um baque.

Norma concentrou-se em respirar. Suspirou. Tentou não


olhar para nada exceto para os olhos de Dante. E assim a
tempestade se desfez, e ela conseguiu recuperar o controle.

— Não! — cuspiu Gwivern. — Mate-me, sua vagabunda!


Eu acabei com seus amigos, cortei a cabeça deles! Você tem
que me matar! Use sua magia em mim, ande!

Ela não deu atenção, pois Gwivern já não tinha mais poder
para nada. Os apelos desesperados do homem não mais
conseguiam inocular veneno em sua mente serena.

Foi com a voz repleta de resolução que Norma sentenciou:

64
— Eu não vou usar minha magia para vingança pessoal. É
isso que queria que eu fizesse, não é?

Gwivern calou-se. Sinal de que tinha acertado na mosca.

Ela continuou:

— Queria que eu corrompesse o dom que recebi, mas eu


não vou fazer isso.

Norma passou a mão nos cabelos ensanguentados de


Dante e se aproximou do homem caído.

— Sabe o que eu vou fazer?

Ele negou com a cabeça, assustado.

— Eu vou me juntar à sua ordem. Vou conseguir a


autoridade que preciso para usar a magia.

Ela se ajoelhou e sussurrou no ouvido dele:

— Mas não para cometer as atrocidades que você comete.


Não, eu vou procurar as pessoas certas, para usar a magia
como ela deve ser usada. Vou honrar o dom que recebi.

Norma se levantou e começou a se afastar.

— N-norma…

65
— E você não vai morrer fácil assim. Na hora certa, vai
pagar pelos seus erros, a começar por esses assassinatos cruéis
que cometeu hoje!

— Norma!!

— Ah, antes que eu me esqueça… Boa sorte tentando ficar


em pé ou usar os braços novamente.

E ela saiu da sala, deixando para trás os gritos


desesperados do assassino cuja vida ela conseguiu poupar.

A estrada era longa e o caminho, cansativo, mas estava


próxima de seu destino. Quando avistou a suntuosa
construção, agradeceu. A perspectiva de tomar um banho e
descansar as pernas judiadas pelas semanas de peregrinação a
animou.

Subiu as escadas lustrosas e bateu na enorme porta de


madeira. Depois de alguns instantes, apareceu um rosto idoso
e bastante solícito:

— Pois não?

— Olá, eu tenho uma reunião com o capitão Rayne.

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— Ah, sim! — O velho sorriu e abriu a porta
completamente. — Deve ser a feiticeira que veio se juntar à
Ordem dos Protetores. O capitão falou que chegaria hoje.
Entre, entre!

— Obrigada.

— Fez boa viagem, espero.

— Sim. Foi cansativa, mas não tive problemas.

— Excelente. Depois de conversar com ele, me procure,


para eu te mostrar seus novos aposentos.

— Eu agradeço por isso. Estou exausta.

— A propósito, qual é o seu nome, feiticeira?

Ela pensou na pergunta.

Por muito tempo, o nome Norma Huet ficou esquecido.


Ela escondeu de todos a alcunha que ganhou ao nascer, pois
tinha medo que seu passado condenável voltasse a
atormentá-la se fosse chamada assim. Foi por isso que adotou
um nome artístico durante seu tempo como trovadora.

E aquele foi o período mais feliz de sua vida. Enquanto


cantava, sentia que estava conseguindo fazer algo
extraordinário. Por alguns breves momentos, a música
conseguia unir as pessoas, fazendo-as se esquecerem dos

67
problemas e das diferenças. Nem mesmo as magias mais
poderosas eram capazes de fazer isso.

E foi naquele momento que ela se decidiu. Iria continuar


com o nome artístico. Mesmo que não o usasse para fazer
música, serviria como um lembrete de sua verdadeira missão
naquele mundo.

Olhou para o velho, deu um sorriso alegre, e respondeu:

— Meu nome é Clara Hart.

E o segundo conto desta coletânea vai para o… Stark! É minha


homenagem à sua obra "Maldição Milenar", que ainda está sendo
escrita, mas que mesmo incompleta já despertou minha admiração.

Minha homenagem é um pouco ousada, caro Stark, muito mais do que


os outros presenteados. Afinal, eu me atrevi a criar uma "origem" para
uma das suas personagens mais marcantes. Por isso, eu
SINCERAMENTE peço que, se de alguma forma meu texto vai contra
a sua criação, ou se ele fere alguma característica da belíssima e
poderosíssima Clara Hart, ignore impiedosamente este texto.

Repetindo, para que fique bem claro: eu sei que fui MUITO atrevido e
estou completamente ciente de que invadi um terreno que talvez não me
pertença, então você está livre para repudiar esta obra em sua
totalidade.

68
Dito isso, também sou obrigado a lembrar que, no final das contas, é só
uma fanfic (que eu estou teimosamente chamando de DLC por pura
pirraça). E nós, fãs, temos total liberdade para fanficar até que o autor
resolva aquela lacuna. Lide com isso!

Além disso, eu tenho uma série de argumentos para demonstrar como


essa "origem" captura a essência de uma das personagens mais F0D@5
que figuram em sua obra. Acompanhe-me!

O rol de personagens principais de "Maldição Milenar" conta com


diferentes participantes: temos a protagonista, Serys, que apresenta
características de força, juventude, inexperiência e impetuosidade. São
traços que nos cativam e nos fazem torcer por ela em sua jornada cheia
de erros e desafios. Temos Rayne, o sério e experiente capitão, figura do
mentor e do líder. Não é infalível, mas tem bastante conhecimento, e é
ponderado, e nos cativa pelo desejo de segurança. Temos Letzer,
salafrário, arrogante, talentosíssimo com a espada e cheio de bravura.
Não chega a ser um anti-herói, pois ele está do lado dos "caras bons", e
cativa pelo nosso desejo e atração pelos "bad boys" (ainda que possa
causar uma certa rejeição em alguns momentos). E temos os vilões,
como a bruxa e mestre Villus. São vilões, típicos, que como costumo
dizer, nós amamos odiar pela sua maldade infindável.

Resta a feiticeira, Clara Hart.

Ela é, digamos, perfeita.

Não é infinitamente poderosa, pois vemos ela sofrendo ferimentos


quase mortais em batalha. Mas enquanto outros personagens

69
apresentam fraquezas morais em algum nível, ela não demonstra
nenhum desvio de caráter ou dúvida em sua conduta. Pelo menos isso é
o que nos mostra seu texto, até agora.

Esse tipo de personagem tem o poder de cativar pela admiração e pelo


desejo da integridade, mas também nos distancia um pouco. Em outras
palavras, nós, meros mortais, cheios de cobiça, inveja, preguiça,
mentiras e outras falhas, temos dificuldade em nos conectar com
alguém tão virtuoso a ponto de não gerar nenhum tipo de
questionamento.

E é aí que eu tento encaixar meu presente para você, caro Stark.

Eu sempre fico pensando, ao ver esse tipo de personagem, que deve


haver um motivo para tal perfeição. Alguma coisa deve ter acontecido
para que aquela pessoa seja tão certinha assim, o tempo todo! E não me
venha com histórias "a la Superman", cuja "falha de caráter" é "se
preocupar demais". Isso não cola, pelo menos não em mim!

E como a fanfic é minha, eu achei que a melhor forma de destacar a


imensa fibra moral dessa mulher foi lhe dar um passado sombrio. Um
erro de julgamento que culminou em uma tragédia tão terrível que ela
ficou com apenas duas opções: entregar-se à perdição da vingança
destrutiva, ou devotar todas as suas energias para tentar reparar os
erros que cometeu. Obviamente, escolhi o segundo caminho, pois é ele
que nos leva à Clara Hart que conhecemos em sua obra.

Só que, mais do que simplesmente prover uma explicação para Clara


ser o que é, o passado tenebroso acrescenta muita força a ela. Enquanto

70
escrevia os parágrafos finais, eu só ficava pensando: que tipo de
provação essa mulher está passando? Quem conseguiria, estando na
pele dela, NÃO explodir e dilacerar o amaldiçoado Gwivern?
(semelhanças a Guiverme são mera coincidência) Que tipo de espírito
iluminado é capaz de perdoar o imperdoável, e esquecer o inesquecível,
e simplesmente seguir em frente, transformando a dor em poder e
magia?

A resposta vinha sempre clara e cristalina: disso daí, só podia sair uma
mulher cuja força moral jamais poderá ser questionada novamente.

Portanto, peço perdão por tê-la retratado assim, e ter emprestado a ela
traços que não constavam na obra original, mas espero ter ao menos
justificado as minhas escolhas.

Ufa, tirando o elefante da sala, me resta falar de outros dois aspectos da


minha homenagem.

A primeira é a música. Eu quis trazer para a Clara uma característica


que aparece em sua obra, que é o fato de que ela sabe cantar. Aí, claro,
como bom fanfiqueiro, extrapolei isso ao infinito, e a transformei em
uma verdadeira diva popstar do mundo de MM. Até o nome dela,
Norma, tem um significado que vai nessa linha. Se não pescou qual é,
dá uma pesquisada e vai descobrir rapidinho quem é a diva da vida
real cujo nome de batismo é Norma.

Mas calma, o fato de que ela nunca alcançou o estrelato mostra que eu
tenho limites, e não estraga o "cânone" do seu universo, kkkkk.

71
Enquanto estava brincando com essa coisa toda da música, me ocorreu
pincelar a história com elementos de magia. Eu fiz essa brincadeira
com o efeito causado pela música, justamente para provocar a questão:
ela estava usando magia para se promover, ou não? Essa pergunta
permeia a leitura em alguns momentos.

E a resposta, caso não tenha ficado clara, é "não"! Qualquer um que


tenha se emocionado com uma música sabe que não. Talento existe
aqui, no mundo real, onde a magia tem outras formas e formatos.
Portanto, não, Clara não "hackeou" seu caminho para o sucesso fazendo
uso indevido da magia.

Além disso, o questionamento que ela faz no final acrescenta uma


camada a mais à minha singela homenagem. Clara não é apenas uma
feiticeira. No universo de MM, eu aposto, existem feiticeiros poderosos,
capazes de usar a magia para o bem, assim como existem aqueles que a
usam para o mal. Clara tem algo a mais, é uma característica
adicional, que a coloca acima da mera feitiçaria. Ao adotar seu nome
artístico como seu nome definitivo, ela está justamente abraçando seu
desejo fundamental, que passará a ser a marca de sua jornada dali em
diante. Ela está dizendo para si mesma e para o mundo: não sou "só"
uma feiticeira. Eu sou alguém que tem uma missão que supera os
limites da magia.

Termino essa minha resenha destacando outra característica da sua


obra que eu tentei trazer para cá, que são as descrições ricas em
adjetivos. Aqui, confesso, eu tentei sair fora do meu estilo e tentar
imitar o seu. Claro que não consegui, mas a tentativa foi bastante

72
divertida. Eu ficava pensando: quantos adjetivos Stark conseguiria
enfiar nessa frase? E eu ia enfiando, cada vez mais, e mais! Considere
minha patética incursão às descrições longas como um elogio ao seu
esforço por se aprimorar nesse sentido.

E é isso, meu caro. Espero que tenha gostado. Termino repetindo, mais
uma vez: se não gostou, não se incomode em dizer. Entendo a minha
ousadia e peço desculpas. Foi apenas um esforço guiado pela
admiração e respeito.

Desejo um Feliz Natal e um 2024 que testemunhe o final da escrita de


MM!

73
O felúpio-das-neves
Um arrepio subiu pela espinha quando seus olhos
pousaram na paisagem desolada. Paredes intermináveis feitas
de pedra cinza se estendiam pelos dois lados do desfiladeiro.
Era difícil enxergar muita coisa lá embaixo, pois nenhuma das
Luas estava em seu apogeu.

"Não acredito que estou voltando para cá!"

As lembranças dos anos que ficou presa ali pareciam


segurar suas pernas no lugar. Precisou se concentrar para
convencer os músculos teimosos a se mexerem.

— Okay, Trisa — disse para si mesma —, agora só precisa


achar um lugar por onde descer.

Era muito mais fácil falar do que fazer. Durante todo o


tempo em que morou no Cânion dos Decadentes, enfrentou
justamente o desafio oposto. Era impossível subir os paredões
íngremes. Pelo mesmo motivo, havia poucos guardas ali. A
própria geografia se encarregava de manter os condenados lá
embaixo.

Por outro lado, a ausência de vigilância iria facilitar seu


trabalho. Bastava encontrar um local menos acidentado e, se
tivesse sorte, com uma inclinação mínima para poder
descansar os braços e as pernas durante a longa descida. Se

74
tudo desse certo, desceria sem ser percebida, iria até o
acampamento, cumpriria sua missão e voltaria incólume.

Se tudo desse certo.

Era um grande "se".

— Sem hesitar! Coragem, Tris!

Falar consigo mesma era a única coisa que conseguia tirar


sua mente da saudade que cortava seu peito. A ausência de
estímulos nos ouvidos fazia com que os gritos em sua cabeça
aumentassem o volume, impedindo seus pensamentos ou, o
que era infinitamente pior, colocando ideias malucas dentro
deles.

Sempre foi assim.

Mas desde que se separou de sua companhia, piorou.

Fazendo o maior silêncio do qual era capaz, aproximou-se


da beira do precipício. Não havia árvores ali perto, o que a fez
sentir-se exposta demais. Olhou para os lados e apurou os
ouvidos.

— Não tem ninguém — concluiu.

O terreno alto não terminava abruptamente no cânion, tal


qual o tampo de uma mesa. Ia ficando mais íngreme e
acidentado à medida que o desfiladeiro começava. Chegaria
uma hora em que não tinha mais como voltar. O problema era

75
que não tinha como saber as condições da descida antes de
efetivamente começá-la.

— Bem, o que não tem remédio, remediado está!

Voltou até onde havia árvores e tirou da mochila a


comprida corda de escalada. Amarrou-a bem forte no tronco
mais grosso que encontrou, certificando-se de acrescentar a
maior quantidade de laços redundantes que conseguia.
Satisfeita com a firmeza, refez o caminho até a o cânion.

Chegou até onde achou que seria seguro e parou.

Sentiu o peso da corda nas mãos. Haveria o suficiente para


chegar até lá embaixo? Só tinha um jeito de descobrir.

Ensaiou o movimento algumas vezes antes de


arremessá-la para a frente. A corda caiu e começou a se esticar.
Tremia e pulava enquanto a ponta ia se desenrolando. Foi
assim durante alguns segundos, até que ficou imóvel.

— Será que enroscou?

Pegou-a com as mãos e deu um puxão. A corda cedeu


facilmente. O peso também parecia correto. A sensação era a
de que tinha se desenrolado completamente, ou perto disso.

— Bem, vamos lá!

Pegou a corda e fez um laço, usando um nó de escalada


que tinha aprendido em algum momento de sua vida — não se

76
lembrava quando. Passou o arco em volta da cintura, virou-se
de costas e começou a descer devagar.

Ia segurando a corda e sentindo seu próprio peso a todo


momento. A cada passo, raspava a sola dos pés na pedra para
se certificar de que não estavam escorregando. O nó garantia
que não cairia, mas um passo em falso poderia jogá-la contra
alguma saliência pontuda, provocando uma ferida grave ou a
quebra de um osso. Se isso acontecesse, seria fim de papo.

Claro, isso se a corda não arrebentasse.

O monólogo perdurou durante toda a descida:

— Não vai me deixar na mão, vai, cordinha? Não… claro


que não… Eu preciso voltar… Não conseguiria voltar a viver lá
embaixo nem um segundo! Acho que eu me mataria… Ah,
Trisa, sua idiota! Se a corda arrebentar, você vai se espatifar…
Está preocupada em voltar? Preocupe-se em não morrer na
descida! Só depois…

Antes que percebesse, já estava descendo em um ângulo de


noventa graus. Olhou para baixo e só viu a escuridão que a
ausência da luz das Luas deixava crescer.

Olhou para cima, e impressionou-se com a enorme


profundidade que já tinha transposto.

— Muito bem, muito bem. Já estou quase lá. Falta pouco!


Falta…

77
Um rugido grave ecoou pelas paredes. A enorme
quantidade de ecos tornava impossível determinar de onde
tinha vindo. Podia ser de uma caverna aberta na parede a
poucos metros dali, mas também podia ser de algum lugar a
quilômetros de distância.

— Será um tilbeckiano? Acho que não, nunca sobreviveria


com a pouca quantidade de água… Acho que é um gul'agúoc!
Oman disse ter visto um, uma vez, mas nunca acreditei nele.
Será?

Trisa não tinha como saber com certeza. De qualquer


forma, significava que estava longe de seu antigo
acampamento, pois não se lembrava de ter ouvido aquele
rugido antes. A não ser que o dono do rugido fosse um
morador recente.

A descida continuou. A escuridão ia se intensificando aos


poucos, mas seus olhos iam se acostumando também. Logo
conseguiu divisar o relevo lá embaixo. Areia, pedras e arbustos
secos, e quase nada além disso.

Um tremor atingiu seu corpo.

— Calma Trisa! Você não vai ficar presa aqui. Não vai
voltar a morar aqui. Vai subir de volta, por essa cordinha aqui,
está ouvindo? Sim!

78
Mencionar a corda fez com que ela percebesse que o peso
abaixo de si estava bastante imperceptível. Estaria a corda
chegando ao fim do seu comprimento?

Olhou para baixo. Era impossível enxergar o final da


corda. Tentou balançar a ponta pendurada, e também não
chegou a nenhuma conclusão decente. Continuar descendo era
a única forma de descobrir.

De repente, o rugido voltou, e a dúvida se transformou em


certeza.

O bicho estava acima dela.

Em algum momento, deve ter passado sem perceber pela


caverna onde ele morava.

— Droga!

Apressou o passo da descida. As mãos começaram a


reclamar da fricção constante. Até então, as luvas que usava
estavam oferecendo proteção suficiente, mas a velocidade
acelerada começou a produzir um atrito que certamente
deixaria bolhas no dia seguinte.

— Estranho! Ainda estou bem alto. Não faz sentido existir


uma caverna aqui em cima. A não ser que…

— CRUAAAAAC!

79
A resposta veio na forma de uma enorme sombra alada
que cobriu o céu escuro acima do cânion.

— Merda! É um maldito figlarm-hernit'opteronte!

A besta dispunha de um par de asas com quatro metros de


envergadura. As garras, quatro no total, serviam
perfeitamente para que se grudasse em qualquer superfície.
Pendurar-se na parede do cânion era um trabalho
relativamente simples para as pontas afiadíssimas de
queratina.

Seu bico pontiagudo ampliava um crocitar alto, como o de


um corvo gigantesco:

— CRUAAAAAC! CRUAAAAC!

— Merda. Rápido, Trisa!

Deixou a corda escorregar entre as mãos, tentando


ignorar o fogo que começou a se formar na pele. Batendo com
os pés desenfreadamente, tentava controlar minimamente a
descida, que agora mais se parecia com uma queda livre.
Evitava os impactos mais bruscos, mas já sentia os joelhos e
cotovelos sendo ralados impiedosamente pela superfície
rugosa.

Avistou algumas reentrâncias na parede, e até cogitou


entrar em uma delas para se esconder, mas seria inútil. O bico
da criatura era perfeito para pescar presas enfiadas em

80
buracos. Mesmo que a vítima conseguisse se enfiar fundo o
suficiente para escapar das primeiras investidas, ela usaria sua
ferramenta bicuda como uma picareta. Tal qual um pica-pau
gigante, era capaz de minerar qualquer tipo de material até
abrir um buraco grande o suficiente para pinçar sua presa sem
dificuldade. Pedras moles não resistiriam por muito tempo.

— Continua, Trisa! Você vai escapar!

Uma vez no bico, a morte era certa.

Se o bicho não estivesse com muita fome, voaria com sua


refeição até um lugar tranquilo. Colocaria-a no chão e a
prenderia com uma de suas garras, não se importando em
perfurar um ou dois órgãos vitais no processo. Em seguida,
usaria o bico como uma tesoura, desmembrando cada pedaço
de osso em busca dos nacos mais macios de carne, para depois
servi-los para a verdadeira boca, situada mais embaixo.

A barriga da enorme ave tinha um estômago que


terminava em uma bocarra cheia de dentes afiados. Era daí
que saía o rugido grave, como o de um enorme leão, ou tigre,
ou urso, ou uma mistura disso tudo.

Agora, se o animal estivesse com fome, a comilança


começava em pleno ar. As poderosas asas eram perfeitamente
capazes de continuar voando enquanto as fortes mandíbulas
iam mastigando a vítima inteira. Ossos, pele, carne, tudo
virava uma massa amorfa que caía no estômago. As presas

81
sortudas entravam nessa fase já mortas. As outras ainda
tinham que passar pelo doloroso processo de afogamento nos
ácidos estomacais.

Trisa estava disposta a não passar por nenhum dos dois


destinos.

Olhou para baixo, e teve a leve impressão de que o fundo


do cânion estava perto.

Olhou para cima, e o terror a dominou por completo.

A mancha alada tinha se afinado, reduzindo a quantidade


de céu que ocultava.

Ela estava mergulhando na direção de Trisa.

— Não!

Mesmo na escuridão, pôde ver quando o bicho abriu o


bico, pois alguns pontilhados de brilho cálido denunciavam a
presença de saliva.

Ele estava a poucos metros de distância.

Por puro instinto, Trisa soltou completamente a corda.


Agora sim estava em queda livre. Balançou os braços e pernas
inutilmente, ignorante ao fato de que não sabia voar. Iria
morrer espatifada.

Mas não ainda.

82
Ao ver o bico se fechando a centímetros de distância,
ainda teve a capacidade de puxar a mão para trás. A criatura
errou o bote, e com isso perdeu seu controle aéreo. Abriu as
asas, fez um desvio e flutuou para longe dali.

— Isso! Agora é só pegar a corda…

Sentiu as fibras passando rapidamente perto de seu braço.


Tentou algumas vezes, uma, duas, três, mas a cada investida, a
corda chicoteava para longe de sua pegada.

Na quarta vez, finalmente, sentiu os dedos agarrarem a


mecha de fibras trançadas.

Mas a alegria durou pouco.

Sem conseguir firmar-se a tempo, sentiu os últimos


metros escorregando pela palma da mão.

Até que a corda chegou ao fim.

Mas a descida, não.

Trisa fechou os olhos, apenas esperando o baque fatal.


Torceu para que a morte fosse rápida e indolor, assim não
precisaria sofrer.

Abriu os olhos.

83
Lá em cima, viu uma linha azul-claro cheia de nuvens, em
meio a paredões de pedra infinitamente altos.

"O céu traçado".

Tinha amanhecido, e Trisa estava de volta ao Cânion dos


Decadentes.

— Não, não, não! — O desespero terminou de despertá-la.


Ergueu-se em um salto. — Não pode ser… a corda? Cadê?

Olhou para todos os lados, em busca da fibra entrelaçada


branca que tinha levado-a até ali embaixo. Depois de alguns
segundos, avistou-a, dezenas de metros acima, tremulando no
vento frio, a ponta balançando de um lado para o outro.

— Não! Não! Não pode ser!

Estudou o terreno, calculou os ângulos e imaginou-se


tentando vencer a inclinação negativa das paredes. Inútil. O
buraco em que estava era praticamente um poço.

— N-não, d-de novo não!

Já tinha passado por aquilo inúmeras vezes. A dura tarefa


de tentar traçar um caminho de escalada sempre terminava
em resultados inalcançáveis. E sempre esbarrava no mesmo
desejo: "precisava ter uma corda amarrada lá em cima".

Agora, tinha uma corda. Só que era curta demais.

84
Trisa dobrou os joelhos e se encolheu. Depois se levantou.
Puxou os cabelos ruivos, esticou as costas e ergueu o pescoço.
Os olhos reviraram, sem saber para onde olhar. Não tinha para
onde olhar.

Não tinha para onde fugir.

Caiu sentada no chão, já cega com as lágrimas que


brotavam em profusão.

Nem gastou muito tempo pensando em como tinha


sobrevivido à queda. A explicação mais provável era a presença
de um sirnanniano ali por perto, que conjurou uma magia
para amortecer sua queda. Mas não viu nenhum durante a
descida.

Ou talvez a queda não tenha sido tão grande assim. O


desespero da fuga do figlarm-hernit'opteronte tinha
certamente dilatado sua percepção de tempo, e talvez ela
tivesse caído em cima de um arbusto, ou algo assim.

Mas não importava como tinha sobrevivido.

O que importava é que ela estava de volta àquele inferno,


mais uma vez sem nenhuma chance de escapar.

Abraçou os joelhos e enfiou a cabeça neles.

E assim permaneceu durante horas.

85
Anoiteceu.

O frio começou a castigar a pele desnuda dos braços e


pescoço.

Mas Trisa não queria se levantar.

Foi apenas quando ouviu um barulho que aceitou espiar.

O que viu a colocou de pé imediatamente.

Era uma figura humanóide, caminhando a poucos passos


dali. Não conseguiu reconhecer direito as formas a ponto de
dizer se era humano ou não. Mas achou ter visto algo familiar
naquela silhueta.

Não quis ficar parada muito tempo, pois a possibilidade


de ser alguém hostil era grande. O cânion não era conhecido
por ser um lugar para se fazer amizades. A perspectiva de ser
caçada e talvez devorada viva pelos famintos moradores
daquele lugar a colocou em movimento. Ela preferia morrer do
que ficar mais um dia ali, isso era verdade, mas, se pudesse
escolher, preferiria uma morte menos dolorosa. Identificou
algumas pedras circundadas por arbustos e foi correndo se
esconder.

86
Apurou os ouvidos e conseguiu discernir a presença do
visitante a poucos metros dali. Ele ou ela caminhava sem
tentar disfarçar o barulho, e estava se afastando. Resolveu
seguir os sons.

Com cuidado, avançou pela escuridão, sempre


mantendo-se a uma distância que considerava ser segura. Seu
alvo continuou a marcha sem se importar, sempre avançando
na mesma direção. Lá em cima, o céu traçado se desenhava em
forma de estrelas pontilhando o azul escuro.

Depois de cerca de uma hora, Trisa perdeu a noção de


onde estava o alvo que perseguia. Continuou caminhando,
agora sozinha e cheia de receio de ser capturada, até chegar a
um lugar que reconheceu imediatamente. A visão familiar que
preencheu seus olhos encheu seu coração com o mais completo
desespero. Era uma espécie de planície que formava um vale
um pouco mais largo do que o restante do desfiladeiro.

Trisa tinha chegado ao seu antigo acampamento, o lugar


que achou ter abandonado para sempre.

Nesse exato momento, como se obedecesse a um roteiro


pré-estabelecido, o céu começou a se iluminar. A borda do
enorme orbe azul se fez visível entre as paredes do cânion,
ofuscando as estrelas e apagando a escuridão celeste. Poucos
minutos depois, Y'zaprūda apareceu em toda a sua glória,
inundando o vale com uma maré anil que transformou o

87
cenário em um espetáculo de cor que era capaz de acalentar
até mesmo o mais angustiado coração.

Mas nem mesmo o belo fenômeno conseguiu desamarrar


o nó que apertava o coração de Trisa.

Sem saber direito o que fazer, ficou ali parada, perdida


entre a beleza cruel da paisagem árida e o peso da situação
terrível em que se enfiou.

Antes tivesse ficado longe dali.

— Por que é que eu resolvi voltar, mesmo?

Foi aí, nesse estalo de pensamento, que as conexões de


raciocínio que tinham sido rompidas pelo desespero se
religaram.

— Droga, é mesmo! Tinha esquecido.

Apertou os olhos e identificou os restos de fogueira no


centro da planície.

Não havia brasa ou fumaça, mas as pedras tinham


capacidade de manter seu calor por bastante tempo. Era um
lugar perfeito para quem estivesse em busca de um lugar
quentinho pra dormir.

Com o coração acelerado, Trisa saiu de seu esconderijo.


Olhando sempre para todos os lados, esgueirou-se por uma
pequena trilha.

88
Não viu ninguém.

Continuou avançando.

Quando estava perto o suficiente, achou ter visto algo.


Manchas meio acinzentadas e meio amareladas diferiam um
pouco do chão terroso.

Deu mais alguns passos, sempre olhando para os lados.

Não tinha ninguém ali.

Estranho.

Mais um passo.

As manchas tinham uma textura mais lisa do que as


pedras. Linhas finas pareciam se juntar como uma trama
uniforme desenhada na mesma direção.

De repente, percebeu um movimento sutil. Uma pequena


protuberância se erguia e abaixava em intervalos regulares.

Trisa deixou um suspiro mais forte escapar, o que


provocou um movimento menos discreto. Uma das manchas
se ergueu, revelando uma cabecinha peluda com duas orelhas
redondas e dois olhinhos pretos e brilhantes.

— Gaby?

89
Depois disso, outra cabecinha surgiu, junto com um novo
par de olhinhos brilhando em sua direção.

— Girvalla! Meus bichinhos!

O casal de ratonges se levantou ao mesmo tempo. Trisa se


ajoelhou a tempo de receber lambidas e fungadas molhadas
em seu rosto, pescoço e orelhas.

— M-meus b-bichinhos! Achei que nunca mais veria


vocês!

A sensação que se seguiu foi a mais deliciosa que já teve


em sua vida, superando de longe aquilo que sua imaginação
era capaz de produzir. Era tudo muito, muito bom: o calor dos
corpinhos apertados junto ao seu; as cócegas dos bigodes
roçando na pele de seu rosto; e a mistura de fofura das
almofadinhas com as pontadas agudas das unhas das patinhas
que perambulavam em cima dela.

— Vocês são tudo o que eu tenho!

Enquanto aproveitava o momento sublime, Trisa não


percebeu a presença se aproximando. Foi apenas quando a voz
embargada chegou aos seus ouvidos que ela se tocou que tinha
alguém ali perto:

— Eu sabia.

90
Levantou-se em um salto e virou a cabeça na direção da
voz.

Era a figura humanóide que tinha visto antes. Agora, sob a


luz de Y'zaprūda, reconheceu-o imediatamente.

Era ele.

O Príncipe dos Ap.

— Krëff?

— Eu sabia que não tinha vindo atrás de mim.

Não podia ser ele. Desapareceu longe dali. Não tinha


como ter ido parar no Cânion dos Decadentes.

— Krëff! Vo-você… está vivo?

— Surpresa?

A voz dele ecoava a mesma tristeza que nublava todo seu


corpo: os ombros caídos, as costas curvadas, e o rosto
enevoado. Os olhos, carregados de amargura, mal conseguiam
encará-la.

— Como foi que veio parar aqui, Krëff?

— Não faz ideia, não é mesmo?

Ele se aproximava devagar. A cada passo que dava, os


sinais de que não estava nada bem ficavam mais nítidos. A

91
boca, aberta em um sorriso cínico, não conseguia desfazer a
má impressão.

— Não! As corujas te levaram, mas ninguém soube dizer


para onde.

— Ao menos tentou descobrir onde eu estava?

Ele parou de se aproximar. Sua postura era um pouco


ameaçadora agora.

— E-eu… n-não… É que… seu pai… — Trisa não estava


conseguindo colocar as ideias em ordem. Estava com
Myimora, antes, e…

— Eu soube o que veio fazer aqui assim que caiu daquela


corda.

— Vo-você me viu caindo?

— Sim. E eu te trouxe para cá. Era onde queria chegar,


não era?

Krëff ainda sorria para ela. Seus quatro olhos a fitavam


profundamente. Era difícil encará-lo, nunca sabia direito em
qual dos olhos deveria focar. Naquele momento, com todas
aquelas perguntas estranhas, era ainda mais perturbador.

— E-era, eu…

— Queria pegar seus… bichinhos… não é?

92
— Sim! Você sabe como eu sofri ao me separar deles.

— Sei. São importantes para você.

— São. — Ela abraçou os ratonges com mais força,


tentando de alguma forma protegê-los da postura agressiva
que começava a tomar conta do amigo.

— E eu? Não sou importante?

— Krëff! Que besteira! Claro que é!

— Mas você só veio atrás dos seus bichos. Em algum


momento pensou em mim?

Trisa não conseguiu responder. De fato, não tinha


pensado nele, mas foi apenas porque achava que ele estava
longe. Sua reação foi abrir a boca sem emitir som algum.

O garnaziano, ainda mais agressivo, continuou:

— Foi porque você achou que eu te abandonei, não é?

— Claro que não!

— Você ficou DEZ anos aqui achando que eu tinha


esquecido de você. Eu te disse que não foi minha culpa, mas
você NUNCA acreditou em mim!

Trisa deu um passo para trás. Ele continuou falando:

93
— EU te salvei, não te salvei? Não foi o suficiente para
acreditar em mim?

— Krëff! Para de falar assim! Está me assustando.

— Oh, desculpe. — O rosto dele assumiu uma expressão


de espanto. — Estou estragando seu reencontro. Vai, pega seus
ratos e vai embora. Pode me deixar aqui sozinho.

Nesse momento, ele se virou de costas e sentou no chão,


encolhido.

Trisa ficou sem saber o que fazer ou falar. Novamente, foi


Krëff quem falou, ainda de costas para ela:

— Me d-desculpa, Triss.

O tom de voz dele tinha mudado, assumindo um timbre


choroso. Seu corpo começou a pular à medida que soluçava
com o choro contido.

— Desculpo!

— Eu não mereço ser salvo. Eu te abandonei.

— Cinzinha…

— Não me chama assim, eu não mereço seu carinho.

Trisa se apiedou do amigo, e colocou a mão em seu ombro.

94
Nessa hora, Krëff se virou, e o horror tomou conta da
humana.

Seu rosto tinha se transformado. Ao invés do tom cinza de


sempre, assumiu uma coloração branca, tingida de azul pela
luz da Lua. A pele se tornou ressecada e murcha, como se não
houvesse mais carne por baixo. A boca estava aberta em um
grito silencioso. E os olhos tinham desaparecido para dar lugar
a quatro orifícios profundos.

— K-krëff! O q-que…

Instintivamente, abraçou os ratonges com um pouco mais


de força. Mas ao invés de pelo macio e calor aconchegante,
encontrou apenas uma casca seca em cima de ossos
quebradiços. Tomada por um horror infinito, ergueu as mãos
em frente aos olhos, apenas para ver um punhado de cinzas
escorrendo pelos dedos.

— Não! Krëff! Não!

— Calma, humana! Acalme-se!

— Não! O que… o que… Krëff? Girvalla! Gabyinn!

— Deite-se! Meu filho não está aqui, nem essas outras


duas pessoas que está chamando.

— O q-quê?

— Está sonhando, humana. Abra os olhos, olhe para mim.

95
Trisa respirou fundo algumas vezes, e então percebeu que
estava de fato com os olhos fechados. Forçou a abri-los, e foi
agraciada pelo rosto sereno do garnaziano à sua frente.
Diferente da visão terrível que tinha acabado de ter do amigo
desfigurado, aquele rosto estava intacto. Pele, carne e olhos em
seu devido estado de integridade.

— O que aconteceu? — Trisa colocou a mão na testa.

— Estava sonhando. Era um pesadelo, pelo jeito.

Ele sorria para ela.

— Nossa. E que pesadelo! Ufa!

— Acho que um chá cairia bem. Quer?

— Quero, obrigada!

Myimora se levantou e foi preparar a bebida.

— Sonhou com meu filho, pelo jeito?

— É… sonhei.

— Quer me contar?

Ela queria, mas não conseguiu. A lembrança do pesadelo


fez seus lábios começarem a tremer imediatamente. Os olhos
se encheram de água e ela irrompeu num choro convulsivo.

96
— O que foi, criança? — Myimora voltou a se aproximar
dela, pousando a mão em seu ombro.

Ela não conseguia responder. Apenas chorava sem parar.


Ao perceber que ela estava perdendo o controle, o patriarca se
afastou e terminou de preparar o chá. Depois voltou com a
caneca quente e a colocou em suas mãos trêmulas.

— Beba. Vai se sentir melhor.

De fato, a bebida ajudou. Depois de alguns goles, ela já se


sentia capaz de falar novamente.

— O-obrigada! Sobre o s-sonho…

— Não precisa falar nada agora. Descanse.

— N-não, eu já estou bem. Quero falar!

— Está bem. Disse que sonhou com Krëff. Algo ruim tinha
acontecido com ele?

— No c-começo, não, ele estava bem. Falou comigo.

— E sobre o que vocês conversaram?

Trisa respirou fundo. Bebeu um gole de chá para tomar


coragem.

97
— Eu tinha voltado ao Cânion dos Decadentes. Eu queria
tentar pegar meus bichinhos de volta, sabe? Eles eram a minha
única companhia lá embaixo.

Myimora sorriu bondosamente:

— Girvalla e Gabyinn! Você os chamou também, no sonho.

— Sim. Eu os encontrei e os abracei. Foi tão gostoso!

— Sei.

— Mas aí o Krëff apareceu, e… bem… — Deu mais um gole.


— Ele me acusou de só pensar nos meus bichinhos e não
pensar nele! E…

O garnaziano ficou em silêncio. Sabia que era hora de


Trisa falar sem ser interrompida.

— E era verdade! No sonho, em nenhum momento eu


pensei nele, só em mim, e nos meus bichinhos! Isso significa
que eu sou e-go-egoííísta!

O choro tomou conta dela novamente.

Myimora esticou o braço e pousou a mão no ombro do


Trisa. Apertou-a com força e chacoalhou algumas vezes. E,
para surpresa total da humana, deu uma gargalhada.

A risada, alta e sonora, fez com que ela parasse de chorar.


Parte dela ficou indignada com aquele total desprezo pelo

98
sofrimento que estava passando, mas outra estava curiosa
demais:

— Senhor… me desculpe perguntar, mas por que está


rindo?

— Ah, humana! Você está muito enganada.

— Por quê?

— Você disse que não pensou nele. E é verdade, não


pensou, mesmo. Você sonhou com ele! E isso é muito mais
significativo.

— Como assim?

— O Krëff do seu sonho não era o meu filho. Não era o seu
amigo. Era você, não percebeu? É claro que você não é egoísta!
Sua mente está tão preocupada com ele que não consegue nem
descansar durante a noite.

Trisa enxugou as lágrimas e bebeu mais um gole de seu


chá.

— É… pensando por esse lado…

— E outra… Bichinhos de estimação são tão importantes


quanto pessoas da família, ainda mais se eles estiveram juntos
com você em um momento tão difícil.

— E-eu s-sinto tanta falta deles!

99
O sorriso de Myimora se apagou um pouco. Aquela era
uma dor impossível de apaziguar. Mas, de alguma forma, ele
conseguiu encontrar um jeito de confortá-la:

— Sabia que o Krëff sempre quis um bichinho de


estimação?

— É? — Trisa ficou muito curiosa, pois o amigo não


parecia sofrer do mesmo apego que ela tinha por seres peludos
e fofinhos.

— Uma vez, quando ele era criança, um filhote de


felúpio-das-neves o seguiu numa trilha, e ele trouxe para casa.
Achou… hahaha… achou que poderia tomar conta… hahaha…

— Qual é a graça, senhor Myimora?

— Nunca viu um felúpio-das-neves adulto? Crescem e


ficam do tamanho de um argnopótamo!

— Sério? Hahaha!

— E eles possuem esporos venenosos nas patas traseiras.


Quando são filhotes, não é suficiente para matar, mas dão uma
coceira… Quando Krëff entrou com o bicho no colo, nem
percebeu, mas suas orelhas estavam redondas e vermelhas
feito tomates!

Trisa agora estava gargalhando, e assim continuou por


bastante tempo. Enquanto ouvia as histórias de Myimora, seu

100
coração foi se acalmando, e as imagens do terrível pesadelo
foram desaparecendo.

Quando fechou os olhos e adormeceu novamente, seu


coração se aqueceu ao ver a imagem do amigo. Krëff estava
ótimo, com seu rosto intacto, e parecendo tão alegre quanto
nas melhores lembranças. Não fazia acusações nem perguntas
sem sentido, apenas sorria para ela.

E ele trazia, aconchegados no colo, Girvalla e Gabyinn.

"Vocês são tudo que tenho!"

E o terceiro conto desta coletânea homenageia o queridíssimo e


talentosíssimo Dan, e sua obra "Ecos de uma Lua Errante". Trata-se de
um livro muito bem escrito, cheio de criaturas fantásticas, um universo
rico e cheio de vida, e uma trama bastante original. Recomendo muito
a leitura.

Caro Dan, em relação à minha homenagem, logo de cara já vou


pedindo desculpas por duas coisas.

A primeira é a minha insistência na história dos ratonges. Eu te falei


sobre esse assunto várias vezes, durante as nossas interações, e como
pôde ver, isso não saiu da minha cabeça. Ainda não engoli muito bem a
forma como o destino separou Trisa de seus fofinhos. É uma das cenas
mais tristes do livro, talvez a mais triste de todas.

101
Deixe-me explicar o motivo: acho que toda pessoa que já teve um
bichinho de estimação já teve um pesadelo onde é obrigado a deixá-lo
para trás. Por exemplo, pode ser um sonho onde a casa está pegando
fogo, e você se vê buscando seu gatinho ou cachorrinho, desesperado, até
acordar suando e descobrir que foi tudo um pesadelo.

Isso é algo muito real, fácil de se conectar. E é muito triste, pois os pets
são, na maioria das vezes, indefesos, precisam da gente. Por esse
motivo, eu acho que a sua cena de despedida dos ratonges atinge em
cheio o coração do leitor.

Claro que tem outras cenas tristes, como a morte de entes queridos, a
morte de personagens importantes, mas sei lá… deixar os bichinhos
pra trás foi algo que me pegou, e foi por isso que eu resolvi retomar o
assunto em minha homenagem.

E caso não tenha percebido, isso é um elogio. Sinal de que sua obra foi
capaz de me emocionar a ponto de deixar esse incômodo preso na
garganta.

Mas claro que eu não quis alterar os acontecimentos, então, fazendo uso
do bom e velho clichê de "era tudo um sonho", eu deixei seu cânone
relativamente intacto.E aí também aproveitei para explorar a ideia do
pesadelo que eu citei ali em cima.

A segunda coisa pela qual eu tenho que pedir desculpas foi a


"brincadeira" que eu fiz com os nomes de algumas criaturas que eu
inventei. Comecei de leve, com um "tilbeckiano", depois arrisquei um
"gul'agúoc". Aí depois eu chutei o balde! Criei o belíssimo nome

102
"figlarm-hernit'opteronte", como uma caricatura escrachada da sua
criatividade com as nomenclaturas. Talvez (só talvez) eu tenha
passado dos limites um pouquinho (só um pouquinho). Mas numa
fanfic a gente tem todo direito de fazer o que quiser, não é mesmo?
Espero que leve a brincadeira numa boa, pois foi feita num espírito
verdadeiramente de elogio. Sua criatividade é ímpar.

Criatividade que eu também tentei trazer para meu conto, na imagem


da figura alada, o monstro com um bico afiado e boca na barriga.
Inventei o bicho mais diferentão que eu conseguia pensar, pois isso é
muito presente em Ecos. Não sei se consegui captar a mesma essência,
talvez eu tenha viajado demais na anatomia, mas como é parte
importante da obra original, senti que precisava tentar criar algo
parecido.

Minha história se passa no Cânion dos Decadentes, que é um cenário


bastante marcante na obra. Eu não sei exatamente o motivo, pois
existem outros cenários fantásticos que você nos apresenta, alguns até
mais "bonitos" do que este. Mas este me marcou bastante, e ganhou a
disputa para figurar no meu conto. Também ajudou o fato de que é o
lugar onde Trisa poderia reencontrar seus bichinhos, tema central que
eu me desafiei a explorar.

Agora gostaria de falar da personagem principal, Trisa. Apesar de não


ser a protagonista de sua história, ela é muitíssimo bem caracterizada.
Ela traz elementos de coadjuvante na sua história, como o
companheirismo, e a pessoa que "puxa assunto" para Krëff falar sobre
si mesmo. Sim, protagonistas são bastante egocêntricos, faz parte de

103
sua razão de ser, e isso não é uma crítica, e sim uma constatação. Mas,
pra mim, a Trisa ganhou um destaque tão grande que eu fiquei com
muita vontade de mergulhar um pouco mais no mundo dela. Essa é
uma das razões para que ela se tornasse a protagonista da minha
história. Eu queria tentar descobrir mais da essência dela, porque ela
não é só a amiga do Krëff. Ela passou um baita de um perrengue (dez
anos no cânion), se tornou uma guerreira temida, se sentiu traída,
depois se juntou ao ex-amigo (que voltou a ser amigo), e conseguiu sua
liberdade. Com certeza ela saiu dessa experiência completamente
transformada em relação ao que era antes.

E eu tentei explorar esses conflitos por meio do sonho/pesadelo, onde


ela reencontra um Krëff magoado por ter sido abandonado.

E aqui eu preciso explorar um pouco mais sobre o que foi que eu tentei
fazer. Myimora, em sua infinita sabedoria e paciência, dá uma
explicação que resume muito bem onde é que a nossa pequena humana
está, em termos de estado mental. Mas eu vou complementar a
explicação.

O Krëff do sonho, na verdade, é uma parte da mente da própria Trisa.


Ela passou um tempo abandonada no Cânion. Ela ficou imaginando
que o amigo a abandonou. Ela ficou sofrendo com um misto de revolta,
solidão, castigo, e toda sorte de dúvidas. Então, quando ela o encontra
no sonho, na verdade, ela está se confrontando com ela mesma. No
fundo, no fundo, ela sabe que culpar Krëff pelos dez anos de solidão foi
injusto, e o sonho foi a maneira que seu subconsciente encontrou de
cobrar isso dela, de tentar reparar.

104
Quando Trisa, no sonho, pensa "só" nos seus bichinhos, e Krëff aparece
cobrando-a pelo abandono, os papéis se invertem. Agora é ela, Trisa,
quem é acusada de abandonar o amigo. E assim como o Krëff da vida
real, a Trisa do sonho de fato não tinha culpa nenhuma. Como ela ia
saber que Krëff tava ali? A cobrança é injusta.

Aí o pesadelo termina com uma imagem aterrorizante. Krëff entra em


"modo caveira" e os bichinhos se esfarelam nas mãos dela. Foi uma
cena que criei para causar impacto, pois isso é muito legal de se fazer,
mas tem uma explicação lógica: mais uma vez, é o subconsciente de
Trisa criando uma forma de carimbar aquela "culpa" na mente dela,
para que ela pudesse finalmente compreender a injustiça que cometeu
ao ficar remoendo a suposta traição do amigo.

Claro, nada disso é explicado, explicitamente, no meu conto. Tá tudo


bem implícito, bem escondido no subtexto. Mas é para isso que servem
os sonhos, tanto na literatura como na vida real, para nos fazer
experimentar sentimentos e emoções que vão além das palavras.

A fala final repete uma que você colocou no seu próprio texto: "vocês são
tudo o que tenho!". Originalmente, ela se referia aos ratonges, apenas.
Aqui, ela incluiu Krëff, simbolizando a transformação causada pelo
sonho.

Com essa brincadeira do sonho/pesadelo escavando medos e


preocupações reais da Trisa, eu acho que ela ganha uma camada muito
mais profunda, enquanto personagem. A gente sempre soube que ela se
preocupa com Krëff, isso é bastante óbvio na obra original. E aqui, eu
tentei fazer com que ela ganhasse um pouco de personalidade própria,

105
mostrando que ela não é "só uma coadjuvante" que existe apenas para
existir ao lado dele. Aliás, é justamente esse o tema das dores que ela
experimenta, aqui.

Falando de personagens, eu também "dei voz" a eles. Na minha


história, Trisa fala sozinha o tempo todo. Além de deixar a narrativa
um pouco mais dinâmica, eu acho que combina com a Trisa do começo
da sua história. Lá ela conversa com os ratonges, então eu acho que esse
é um traço peculiar da personalidade dela. Não sei se isso vai contra a
sua criação, se for, me desculpe.

E no fim, temos Myimora. Ele está com Trisa (até onde sabemos)
depois dos acontecimentos de Ecos, então achei que fazia sentido ele
desempenhar o papel paterno com ela também. O jeito como ele conta
alguns podres de Krëff foi a forma que encontrei para mostrar que ele
pode ser austero, como pai, mas também é, no final das contas, repleto
de amor e admiração pelo filho. O tema do pai que cobra demais é
abordado na sua obra, e é muito satisfatório quando Krëff recebe o
respeito do pai. Acho que você fez isso muito bem, e por esse motivo aqui
eu já parti desse Myimora do final do livro, ao invés do pai brabo do
começo.

Por fim, gostaria de ressaltar a riqueza de imagens que seu mundo


traz. Ao descrever o desfiladeiro, eu não podia deixar de fora uma
tentativa de narrar o nascimento de uma das luas no céu. Escolhi a lua
azul, pois me parece ser a mais bonita, a mais memorável. Até cogitei
colocar as duas, simultaneamente, mas eu fiquei com um pouco de
receio. Seria bem legal, por exemplo, se na sua história ficasse mais

106
claro que as luas nunca se encontram no céu. Não sei se isso pode
acontecer. Aí, na minha história, eu mostraria as duas juntas, e isso
seria um sinal de que é tudo um sonho, que foge da realidade. Mais
uma pista plantada pelo subconsciente de Trisa.

Mas como eu não sei a dinâmica das órbitas, e também não sei se você
planeja algum acontecimento especial associado ao alinhamento das
luas, achei melhor não entrar nesse mérito.

De qualquer forma, sempre que eu me imagino no mundo de Ecos, eu


imagino um céu noturno maravilhoso, cheio de luz, e estrelas, e com
duas luas coloridas flutuando, e eu acho essa imagem fenomenal!

É isso, caro Dan!

Espero que tenha gostado do meu "presente de Natal". Se não gostou,


não tem problema, pode ignorar, como qualquer autor tem direito de
discordar das fanfics. É só escrever a sua própria versão da história e tá
tudo certo.

Ah, e se você gostou do figlarm-hernit'opteronte, pode ficar pra você.


Faz parte do presente!

Feliz Natal e um 2024 repleto de realizações literárias e profissionais!

107
Encontro a cinco
Era noite, e estava frio, por causa da chuva fina que caía.

O restaurante parecia quentinho. Tocava uma música da


qual gostava. Havia uma cadeira esperando-a, em frente a
uma mesa e uma companhia com quem adorava conversar.

Mas mesmo assim, ela decidiu não entrar, pois ainda não
era a hora combinada.

Faltavam cinco minutos para as cinco da tarde, hora


marcada para o encontro.

Agora, quatro.

Três.

"Ora, tanto faz a hora! Acha que isso vai mudar o quê?
Apenas entre, sente-se com sua bunda gorda em frente ao cara
e veja se não coloca tudo a perder!"

"Tá bom…"

Mariana entrou no restaurante antes das cinco.

Não teve dificuldade para reconhecer a camisa


cinza-chumbo — que era a roupa combinada — e os cabelos
loiros de seu par. Caminhou sem pisar em nenhuma risca no

108
chão até ficar ao lado dele. Passou a mão na orelha apenas para
prender os dois fios de cabelo que tinham escapado e deixou
escapar o ar junto com a voz sussurrada:

— Bruno?

— Oi! — O rapaz a olhou, meio assustado, meio


sorridente. — Mariana, é você?

"Óbvio que é você! Ou ele marcou encontro com duas


mulheres no mesmo horário?"

— Sim, sou eu.

— Nossa, você é muito diferente das fotos. Sentaí!

"Sabe o que isso significa, né? Ele te achou feia!"

"É que eu tô usando menos maquiagem, hoje!"

"Sei! Quer acreditar nisso, acredita!"

— Obrigada.

Ela puxou a cadeira e se sentou.

"Ele não me achou feia."

"Achou sim, porque você é feia!"

— E aí? Já veio nesse restaurante antes? — perguntou


Bruno.

109
— Não, nunca.

"Nossa, que resposta idiota!"

"Por quê?"

"Oras, ele vai achar que está usando o encontro só pra


testar o restaurante!"

— Nem eu. Parece maneiro!

— É muito bem avaliado.

"Ele disse que é maneiro, e você respondeu toda formal,


toda arrogante."

"Ah, eu só quis dizer que tinha um motivo para escolher


esse restaurante. Não foi uma boa resposta?"

— … as contas?

"O QUE ELE FALOU?"

"Presta atenção, sua tonta!"

— Desculpe, pode repetir? — perguntou Mariana.

— Eu perguntei se tudo bem se a gente dividir as contas.

"Ih, é pobre!"

— Ah, sim, claro, claro!

110
"Pareceu uma pergunta honesta."

"Pergunta de pobre."

"Gostei como ele foi tão direto assim, sem rodeios. É um


assunto meio tabu…"

— Olha, eu tenho que te falar… — Ele parecia um pouco


envergonhado — Quando disse que parecia diferente das
fotos, eu quis dizer que… você é muito bonita!

"Que mentiroso!"

Mariana enrubesceu.

— Obrigada.

"Você não é bonita, ele só quer te comer!"

— Desculpe se pareço atrevido, mas eu acho que, quando


a gente sente algo, tem que falar, não?

"Que fofo!"

— É, isso é muito legal — respondeu Mariana.

Um silêncio se fez.

"E aí?"

"E aí, o quê?"

111
"Você não vai dizer o mesmo pra ele? Acabou de concordar
que tem que falar. Se não falar que ele é bonito, vai pegar mal!"

— Você também é bonito. — A voz dela saiu baixa.

"Ai, demorei demais, não demorei?"

"Hahahahaha! Demorou!"

"Ai, que merda. Ficou parecendo que eu falei só por


obrigação!"

"Ficou! Hahahaha!"

— Obrigado. — O sorriso de Bruno ao responder foi


bastante sincero.

"Ai, meu Deus!"

"Hahaha… Você é muito tonta, mesmo!"

Mariana sentiu a cara se contorcendo de um jeito


estranho. Tentava sorrir, mas a angústia e a vergonha puxavam
seu rosto para baixo. Olhou para as próprias mãos.

"Ih, que unha suja! Não limpou, não?"

Pegou um guardanapo de papel e tentou tirar um pretinho


sob a unha.

— Vamos pedir? — ela implorou.

112
— Vamos!

Os dois esticaram a mão ao mesmo tempo para pegar o


cardápio, e acabaram se tocando sem querer.

"AI, MEU DEUS!"

— Pode pegar você. — O sorriso que ele deu não tinha um


pingo de embaraço. Duas adoráveis covinhas se formaram do
lado da boca.

"Ele é lindo!"

"Siiiim. Foi por isso que escolhemos ele, não foi?"

"…"

"Não foi?"

"F-foi…"

— Obrigada.

Mariana começou a folhear o cardápio. Imagens


embaralhadas e letras sem sentido dançavam em frente aos
seus olhos.

— E aí? Tá a fim de comer o quê? — Bruno perguntou.

"O que eu peço?"

"Pede uma coisa barata, mas não tão barata."

113
"Mas o quê? O quê?"

"Tanto faz. Lembra do que planejamos!"

"O de trinta? Ou cinquenta? Não é muito? Sessenta?"

"Tem um de trinta e cinco."

Bruno acrescentou:

— Eu acho que tô a fim de comer um risoto, vai bem com


um vinho. Quer dividir um vinho?

"Sim, diz que sim! Vinho ajuda a te soltar!"

— Uhum.

"Peço um risoto também? Quanto custa?"

"Olha aí, tá no cardápio!"

Mariana encarava as páginas sem enxergar. Apenas os


números chegavam ao seu cérebro.

30

35

50

65 (porção adicional +20)

"Porção adicional de quê?"

114
"Pede logo!"

— Eu vou querer esse de trinta e cinco.

"NÃO! O QUE VOCÊ FALOU?"

"O quê? O que foi que eu falei?"

"Você falou só o preço! O que ele vai pensar de você?"

"AI, MEU DEUS!"

Bruno soltou uma gargalhada que colocou de volta as duas


covinhas em seu rosto. Sua barba por fazer, no mesmo tom dos
cabelos claros, era realmente bonita.

"Que prato? Fala o nome do prato, logo!"

— Sabe — Bruno colocou a mão sobre a dela, que estava


apoiada na mesa —, eu também olho os preços primeiro!

Mariana abaixou o cardápio e olhou para a mão dele. Era


quente, suave.

"Que mão bem cuidada!"

Depois olhou para ele. O rosto alegre a desmontou. Era


um olhar cheio de compreensão.

"Oh! Ele também escolhe os pratos pelo preço!"

115
"Tá só querendo te deixar mais à vontade. Ninguém é
idiota de escolher um prato só pelo preço."

"Ele tá querendo me deixar à vontade? Que fofo!"

— Ai, desculpa! — Mariana soltou um riso muito genuíno.


— A grana tá curta, sabe?

— Muito curta! E eu preciso te confessar uma coisa…

— O quê?

"Ih, se prepara, sua feia! Quando eles dizem que querem


confessar algo, é só porque querem inventar alguma mentira
para tirar sua roupa depois! Não esquece do que viemos fazer
aqui, hein?"

"Shhh, deixa eu ouvir!"

— … parecer mais chique!

"Merda, eu não ouvi o que ele falou!"

Mariana sorriu, sem graça, tentando fazer de conta que


tinha compreendido o que não ouviu.

— Ah…

Acenou com a cabeça algumas vezes, com a cara dura feito


cera, congelada no sorriso mais amarelo do mundo.

— Não vai falar nada sobre isso? — Bruno perguntou.

116
"Ih, fudeu!"

"Calma, inventa alguma merda!"

"Não, vou falar a verdade!"

"Não, ele vai te achar maluca, vai ir embora daqui! Inv…"

— Desculpa, eu me distraí por um segundo. Pode repetir?

— Vinho, eu só peço para tentar parecer mais chique.


Acho muito caro e sem graça.

"Ah, ele não gosta de vinho."

"Porra! Quem é que não gosta de vinho?"

"Muita gente."

— Eu também!

"Mentirosa! Você bebe pra caralho!"

— E eu tô dirigindo — disse Bruno. — Acho que vou pedir


um suco, ou refrigerante. Não posso perder mais nenhum
ponto na carteira.

— Tá, tudo bem. Mas acho que eu vou pedir vinho.

— Ué? Acabou de dizer que não gosta.

"Pega no flagra! Hahahahahaha!"

117
"Merda! Mas calma, ainda tem conserto."

— Na verdade, eu gosto sim.

Silêncio.

"E aí, gênia? O que era pra acontecer?"

"S-sei lá! Achei que ia dizer algo pra me fazer sentir


melhor, ou algo do tipo."

"Burra! Burra! Vai colocar tudo a perder!"

— Mari — ele voltou a tocar na mão dela, no dorso —, não


precisa ficar nervosa. A gente se conhece já faz um tempinho.
Conversamos todo dia, sobre quase tudo. E daí que essa é a
primeira vez que nos encontramos pessoalmente? É só um
jantar!

A sensação de familiaridade tomou conta dela.

Ela conhecia Bruno. Era simpático, e muito atencioso.

"É verdade, a gente se conhece."

Ela não apenas o conhecia. Ela o conhecia profundamente.


Trocavam mensagens direto. Falavam sobre tudo. Ele contou
sobre suas namoradas, sobre a família, sobre os amigos…

"Mas ele não te conhece, não é?"

"Shhh!"

118
"Você inventou tudo, só pra atrai-lo!"

"Shhhhhhh!"

"Só para…"

— É, eu não sei o que deu em mim, hoje. Estou meio


cansada, é isso.

— Relaxa! — Ele deu uma piscadela muito charmosa.

Mariana se tocou que ele ainda acariciava as costas da mão


dela.

"Vou arriscar!"

"Isso, garota!"

Ela girou a mão, virando a palma para cima.

"Eca, sua mão tá toda molhada! Ele vai ficar com nojo!"

Bruno apertou a mão dela.

O toque foi maravilhoso.

Por baixo da pele, o sangue dela passou a pulsar, quente e


rápido, transmitindo todo seu nervosismo para ele. Em troca,
ela recebia uma dose improvável de carinho e compreensão.

E ela sorriu.

119
— Bem, acho melhor a gente pedir — disse Bruno, tirando
a mão dali e voltando a segurar o cardápio. — Eu também vou
querer o de trinta e cinco. — Ele piscou para ela mais uma vez
e sorriu, com covinhas e tudo.

Ela se derreteu com as covinhas e tudo.

Baixou os olhos para encarar a mão, solitária e ainda com


a palma virada para cima.

Palma que estava encharcada de sangue.

"Sangue?"

"Sangue!"

"Não era suor? Eu tava suada… e-eu…"

"Sangue! É sangue! O sangue dele!"

Ela puxou a mão cheia de suor e enxugou na saia. Por


sorte, era preta, e não ficaria manchada de…

"Sangue!"

"Não, de suor!"

"Tá… vamos esperar pra ver…"

O coração de Mariana estava saltando.

"Pede o de trinta e cinco, logo!"

120
"Mas eu não sei o que é!"

"Ele tá pedindo, pede o mesmo, pede o mesmo! Diz: quero


o mesmo!"

— Quero o mesmo!

Por sorte, o garçom estava ali, olhando para ela, e assentiu


com a cabeça. E por sorte, Bruno tinha acabado de fazer o
pedido para o garçom, de modo que o pedido dela fez sentido.

— Adoro bife à parmeggiana — disse Bruno. — É bom e


barato.

Por sorte, Mariana também gostava de bife à


parmeggiana.

— Eu também.

"Para de repetir isso, toda hora! Que saco! Você não sabe
falar outra coisa, não?"

"D-desculpa!"

"Fala alguma coisa inteligente!"

— Bruno, deixa eu te falar…

"Deixa? Tem que pedir permissão?"

— Fala, Mari.

121
"Shhh, ele gosta de mim!"

Ela falou:

— Eu tava pensando em largar a faculdade, né?

— Sim, você já me disse. E eu já te disse que é uma ideia


idiota.

"Hum… que papo interessante. Vamos ver o que você tá


planejando!"

— Então… eu desisti.

— Desistiu? Da faculdade? Assim, sem me falar? Mari,


não…

— Não, não… Eu desisti de desistir… de largar, digo.

"Hahahahahaha!"

— Não desistiu da faculdade, então?

"Hahahahahaha!"

— Não, vou continuar… vou continuar cursando!

"Hahahahahaha!"

— Que legal! Que ótimo pra você. É uma decisão


importante, e acho que muito acertada.

122
— Obrigada.

"Hahahaha… Aaaaaiaiai, acabou? Era esse o papo


inteligente?"

"Shhhhh!"

— É comum a gente ter dúvidas, principalmente na


faculdade. Quando eu tava cursando letras…

"Isso, deixa ele falar, assim não tem como você fazer
merda!"

— … tinha professor que não conseguia…

"Só escuta! Só escuta ele falando! Ele é inteligente!"

— … quer dizer, eu tirava minhas notas boas, mas de vez


em quando…

"Escuta, com atenção. Presta atenção nessa boquinha


linda, com covinhas."

— … e eu dei uma parada, lembra? Te falei disso…

"Olha a língua dele mexendo. A língua dele deve ser macia.


Você vai querer experimentar a língua dele, tudo bem, eu
deixo. Pode deixar ele te lamber um pouco."

— … eu tranquei o semestre. Foi uma época difícil, meu


pai tava…

123
"Ele vai estar amarrado, mesmo. Senta em cima dele, e
obriga ele a te lamber."

— B-bruno? — Mariana interrompeu.

— Sim?

— Eu preciso ir no banheiro, rapidinho, me dá licença?

"Ao banheiro."

— Preciso ir ao banheiro.

— Claro, Mari — o semblante dele parecia preocupado.

"O que foi? Volta lá, sua tonta!"

Ela se levantou e começou a caminhar em direção ao


banheiro.

"O que vai fazer no banheiro?"

Mariana não respondeu.

Entrou no banheiro e foi direto até a pia.

Olhou para seu reflexo, e viu apenas uma menina


assustada encarando-a de volta.

"Olá, moça feia!"

"Eu n-não quero!"

124
"Não quer o quê?"

"Você sabe! Eu não vou fazer!"

"Ah, vai sim!"

"Não vou!"

"Sabe que vai."

"P-por f-favor! Eu quero ir pra casa."

"E você vai. Ele vai te levar, e no carro dele."

"C-carro?"

"É, ele falou que tá dirigindo, não prestou atenção? É bom,


que você economiza."

"N-não, eu n-não quero!"

"Vai sim. Ele vai te levar até a sua casa, e aí nós teremos o
encontro de verdade. Só nós quatro."

"Nós q-quatro?"

"É, nós quatro!"

— Eu não vou! — A voz saiu da boca invertida no espelho.

— Vai! — A voz saiu da boca da menina de carne e osso.

— Não!

125
Mariana levantou a mão.

O reflexo nada pôde fazer exceto imitar o gesto.

— Tá vendo? Eu controlo você!

"Não!"

— Não vai falar nada?

"N-não c-consigo!"

— Isso, não consegue, porque eu te controlo. Agora escute


bem o que vai fazer.

"N-não! P-por f-favor, não!"

Se pudesse controlar os próprios músculos, Mariana


estaria em prantos. Mas como não podia, seu rosto estava
impassível.

— Você vai voltar lá, vai continuar sendo a idiota que é,


porque é só isso que sabe fazer. Vai deixar que ele fale o que
quiser falar, e vai fazer de tudo para não demonstrar o quanto
é uma idiota!

"N-não. Ele, não!"

— Sim. Depois vai se insinuar para ele, vai deixar bem


claro que você quer se deitar com ele esta noite. Ele tá
querendo, até uma tonta como você é capaz de perceber isso.

126
"N-não, não, não, ele não! Vamos pegar outro. Ele, não."

— Ele, sim. Agora eu também fiquei com vontade de


experimentar aquela língua. E vamos parar com essa
negatividade toda? Chega de falar não, não, não…

Mariana não conseguiu mais pensar. Era como se um sono


profundo tivesse tomado conta, tirando-lhe toda a vontade de
interagir.

— Ótimo, de boca calada é melhor. Vou parar de falar em


voz alta também, pois o que vem a seguir é muito íntimo.

"Recapitulando… vamos levá-lo para casa, você vai tirar a


roupa dele e amarrá-lo na cama. Mas prenda bem, não vai
fazer cagada igual da outra vez, quando deixou a mão do
infeliz escapar."

Nenhuma resposta.

"Usa aquele nó que você aprendeu."

"Sim."

"Isso! Que bom ouvir uma resposta positiva, pra variar!"

"Sim."

"Depois, você vai… vejamos… da última vez abriu a barriga


do cara com uma tesoura. Foi divertido, mas dessa vez eu
quero algo mais explosivo. Que tal um martelo?"

127
"Pode ser. Eu tenho um martelo na caixa de ferramentas."

"Isso. E onde você vai martelar primeiro? Na cabeça?"

"Não, na cabeça, não."

"Onde?"

Mariana sorriu para ela mesma no espelho.

"Nas bolas!"

"Nas bolas, boa ideia!"

"E eu vou tapar bem a boca dele, para ele não gritar!"

"Isso. Não gosto de gritaria."

"Gosta, sim."

"Ah, você me conhece, não é? Sim, eu gosto."

"E depois?"

"Depois a gente vê. Na hora sempre pinta uma ideia legal."

"Tá bom."

"Agora, volta lá."

"Tá bom."

128
Mariana tirou da bolsa uma pequena esponja de
maquiagem, ajeitou um pouco da base perto do olho e saiu do
banheiro.

O restante da noite decorreu como um filme romântico.

O casal de amigos, quase namorados, riu bastante.

Ele foi inteligente e divertido.

Ela foi muito simpática. Depois da ida ao banheiro, não


hesitou, nem disse nada embaraçoso.

Ele estava lindo, com seu sorriso e suas covinhas.

E ela se fez linda, com seu sorriso provocador e olhares


sedutores.

E o bife à parmeggiana estava, de fato, muito gostoso.

— E agora? — perguntou Bruno, já com a barriga e o ego


cheios.

— Me leva pra casa? — retrucou Mariana.

"Excelente! Excelente!"

— Tem certeza? — Ele deu um sorriso maroto. — No


primeiro encontro?

— Não é nosso primeiro encontro. A gente já se conhece


faz tempo.

129
"Bravo!"

— Eu não quero pressioná-la a fazer nada.

— Não está me pressionando. Eu quero muito.

"Isso!"

Os dois se encararam. Bruno estava transbordando de


desejo.

— Está bem. Garçom! — ele chamou. — A conta, por


favor!

"Vai tentar economizar?"

— Ih… — disse Mariana, fingindo mexer na bolsa. —


Esqueci minha carteira!

— Não esquenta. Dessa vez eu pago, da próxima é você!

"Aí, garota! Que orgulho!"

Depois que ele pagou a conta, o casal caminhou feliz até o


estacionamento.

Bruno abriu a porta do carro para Mariana, que entrou


toda cheia de trejeitos femininos.

"Safada!"

130
O caminho até a casa dela foi repleto de conversas, piadas
e olhares demorados. Certa hora, Mariana deixou a mão
escorregar para a coxa dele.

"Muito bem jogado!"

O carro foi estacionado a duas quadras de distância.

Uma breve caminhada serviu de aperitivo.

Se, no restaurante, era Mariana quem estava nervosa,


agora era a vez de Bruno ficar nervoso. Ele começou a gaguejar
onde normalmente não gaguejava. Quando viu uma gota de
suor escorrendo da testa dele, Mariana disse:

— Relaxa!

Ela estava muito relaxada.

"Está quase!"

Entraram no prédio, que não tinha porteiro, e chamaram


o elevador.

"Dez andares, subida rápida… Só faltam três andares…


Dois, agora… Um… Chegamos!"

O elevador chegou.

Mariana foi na frente, e abriu a porta.

"Rebola essa bunda gorda pra ele ver!"

131
Ela entrou primeiro, balançando os quadris.

Bruno a seguiu, acompanhando o movimento dela com os


olhos.

"Agora, vai. Enlaça ele."

— Vem? — disse Mariana, abrindo os braços.

— Tem certeza, Mari? Eu não quero estragar o que a gente


tem.

— Uhum. — Ela fechou e abriu as mãos duas vezes,


autorizando a aproximação.

Bruno se aproximou.

Ela passou os braços ao redor do pescoço dele, e o olhou,


fundo, nos olhos.

— Você é muito lindo, sabia?

Ele passou os braços ao redor da cintura dela.

— Você é que é linda.

Ela aproximou o rosto.

— Obrigada por ter entrado na minha vida.

— Eu é quem tenho que agradecer, Mari. Você é uma


pessoa maravilhosa.

132
"É nada! Você é podre!"

Ele se aproximou e a beijou.

"Tá, pode experimentar um pouco da língua dele."

O beijo foi maravilhoso. Bruno a levou às lágrimas com


seu toque suave e quente.

"Já deu, agora bora pro quarto amarrar esse cara aí!"

Mariana puxou Bruno mais para perto dela.

"Ô, feiosa! Vamos logo completar esse serviço?"

Ela começou a andar para trás, puxando-o.

"Ei, o quarto não é pra esse lado."

Bruno apertava, abraçava e lambia, com sua língua quente


e macia.

Era tudo muito maravilhoso.

"Ei…"

Ela deu mais um passo para trás, e um vento atingiu seus


cabelos.

"EI! Aqui é a sacada! O que vai fazer na sacada?"

Outro passo colocou o casal bem perto da grade.

133
"Vai jogá-lo? E o nosso plano? E o martelo nas bolas?"

Ela o puxou uma última vez, e se deixou encostar na


grade.

"Não, eu quero ver ele gritando! Quero que você o


machuque!"

Mariana parou o beijo.

— Bruno…

Mariana segurou o rosto dele com as mãos repletas de


carinho e admiração.

— Sim, Mari?

"O que vai fazer?"

— Obrigada por ser essa pessoa maravilhosa!

Bruno sorriu para ela.

Mariana colocou as duas mãos no ombro dele, e deu um


último sorriso.

"Não! Não! NÃO!"

Com um impulso, ela jogou as costas para trás e se deixou


cair no vazio.

"NÃÃÃO! SUA VACA! SUA ESTÚPIDA! SUA…"

134
Enquanto caía, Mariana ainda conseguiu ter um último
vislumbre do homem na sacada. Ele estava com o rosto
assustado, sem entender o que estava acontecendo. Quando a
pancada nas costas esmigalhou todos os seus ossos, ainda
conseguiu contemplar seu belo rosto uma última vez.

Ele não estava sorrindo, mas sorriria novamente, algum


dia. Algum dia, suas covinhas apareceriam de novo,
encantando outro alguém.

A vida foi rapidamente esvaindo-se do corpo de Mariana.

A visão escureceu.

Vermelho-sangue.

"POR QUÊ? Por que fez isso, por… que… fez… iss…"

Tudo preto.

"Ele… não!"

Meu terceiro presente vai para o… adivinha?

Tá difícil, pensa bem…

Olha lá, hein? Não vai errar…

O homenageado é o…

135
Morfeu!

Ufa, se eu não falasse, ninguém iria adivinhar.

Este foi, de longe, o desafio mais desafiador dessa minha coletânea.


Primeiro, porque eu não me lembro de ter lido uma única obra, longa,
do referido autor. Li várias coisas, mas nenhuma em específico me
chamou para a escrita exclusivamente dela. Então acabei não tendo
um universo, nem personagens, para reutilizar e criar.

O segundo desafio foi que nem sempre as obras de Morfeu conversam


comigo. É um estilo muito diferente do meu, tanto como escritor,
quanto como leitor. Confesso que eu quase deixei este conto de fora.
Porém, como já estava escrito, e eu gostei do que foi escrito, acabei
cedendo. E se me veio uma ideia quando pensei no autor, é porque,
ainda que eu me considere distante de sua obra/estilo, meu
subconsciente, em algum nível, discorda de mim.

Não por acaso, é esse o tema que eu tentei abordar no meu pequeno
conto "morfético". Consciente versus subconsciente versus inconsciente.
Mas calma que já falo disso daqui a pouco.

Morfeu, eu considero que você é um analisador de almas. Seus escritos


(na prosa, que é o que eu leio) tem sempre essa característica de colocar
um microscópio para analisar um pedaço, pedacinho ou pedação da
personalidade humana. E você faz isso com seu estilo bastante visual,
detalhado em excesso, que causa repulsa mas que bota uma
sementinha maldita na cabeça do leitor.

136
Você escreve sem um pingo de vergonha ou receio do impacto que causa.
Simplesmente "bota pra fora". Não sei se é assim de verdade, talvez
tenham milhões de ideias enrustidas aí dentro (se tiver, tenho um medo
genuíno delas) mas pra mim é assim que parece.

Em meu conto, não vou dizer que tentei imitar esse estilo. Aliás, eu
certamente não tentaria imitá-lo, pois acho que você tem uma
particularidade muito grande, que o torna inimitável. Mas eu escrevi
pensando nos seus escritos, e aí saiu isso daqui.

Eu acho que o meu conto não tem, no final das contas, muito a ver com
a essência da sua obra. Ele é muito mais meu do que seu, julgo,
principalmente nos diálogos mais simplórios, e o final bastante óbvio e
direto, quase um final feliz. Também não acho que meu conto deixa
uma sementinha muito duradoura ou complexa de se digerir, como
você faz, e nem causa repulsa muito forte.

Mas então, que raios de homenagem é essa? Cadê o conteúdo desse


DLC/fanfic?

Respondo.

Meu conto traz alguns elementos inspirados na sua obra. Um deles é a


violência como parte da natureza humana. O desejo visceral
manifestado em ato. No caso, a protagonista, que mata homens por
prazer.

O segundo elemento inspirado em suas obras é a divisão da


consciência. É quase como se houvesse um demônio vivendo na cabeça

137
da personagem Mariana, uma entidade à parte, que comanda,
denigre, humilha e exalta. Faz parte dela, mas também não faz,
porque são, efetivamente, duas consciências separadas (pelo menos é
isso que eu tento ilustrar). Sua obra, Crisálida, traz um conceito
semelhante, e é a referência mais óbvia aqui, inclusive a cena do
espelho no banheiro, copiada descaradamente (mas que chamarei de
"referência", pois é mais aceitável).

Também faço a referência ao fato de que o demônio tem sede de


destruição, assim como em "Crisálida". Ele não pode evitar, precisa
disso, pois faz parte de sua natureza. Tentei transmitir ao leitor esse
fato inegável através da forma como ele controla a mulher, até mesmo
literalmente, dominando a mão e a fala dela, em certo momento, não
adianta tentar fugir. É uma imagem muito forte, que copiei de você,
mais uma vez, como forma de homenageá-lo.

Meu conto também termina em morte, mas essa é uma das coisas mais
óbvias que se pode afirmar sobre os escritos de Morfeu. Já matei
personagens antes, então não posso dizer que foi somente por
influência sua. Além disso, a morte aqui tem um propósito de sacrifício,
para chegar ao "final feliz", o que difere um pouco do tom
majoritariamente negativo dos destinos das suas personagens. Mas
mortes violentas e Morfeu são indissociáveis, então não tem como eu
deixar de mencionar isso.

Enfim, esses elementos, se não transformam meu conto em algo


essencialmente análogo aos seus escritos, certamente me inspiraram, e
é minha forma sincera de agradecimento. Como disse, eu gostei do

138
texto. Se eu não tivesse escrito com a cabeça em sua obra1, eu acho que
nunca escreveria nada parecido. Então acho que, no fundo, esse conto é
muito mais um presente seu para mim do que o contrário. Valeu!

Também gostaria de comentar alguns pontos sobre a trama e sobre a


história que me veio à mente. A pergunta central que fica, que é quase
uma inconsistência narrativa, é a seguinte: se o demônio é capaz de
dominar completamente a pobre Mariana, como é que ela conseguiu
enganá-lo, no fim? E mais: o demônio está dentro dela (ele É ela), então
como foi que ela conseguiu planejar a fuga sem que ele descobrisse? É só
no finalzinho, quando ela vai se jogar, que ele percebe.

Acho que é perfeitamente válido considerar isso como um "furo" no


roteiro. Não seria errado afirmar que o autor está exigindo do leitor
uma breve suspensão de descrença, em prol do final feliz, para gerar a
pequena surpresa e o "plot twistizinho" que encerra o conto. É verdade,
tudo isso é verdade.

Mas o argumento que eu trago, e cuja essência se traduz no título do


conto (um truque barato para fazer de conta que eu estava consciente
da falha o tempo todo), é: existia uma terceira voz dentro dela o tempo
todo.

Quando o demônio diz que o verdadeiro encontro envolve "nós quatro",


ele está pensando: 1. Ele, demônio; 2. Mari interna, que conversa com o

1
Uma curiosidade aqui: eu escrevi ele com letra branca contra
fundo preto, para entrar na sua "vibe" kkkkkkkk. Mudei a cor apenas
depois de pronto.

139
demônio; 3. Mari externa, que conversa com o mundo; e 4. Bruno, a
vítima.

O que o título sugere é que existe uma outra Mariana, adormecida, ali
dentro, e que é capaz de controlar as rédeas daquela pessoa dividida.
Essa terceira personalidade (ou quarta voz, se contar a que fala para o
mundo), conseguiu se esgueirar pelo porão da mente, e tomar o controle
da segunda personalidade. Isso acontece, de maneira bem sutil, na
cena do banheiro. A partir dali, é a outra que passa a comandar o jogo.
Ela não fica em primeiro plano, é claro. Permanece ali, enganando o
demônio com maestria, até o momento certo de agir.

E o demônio, faminto e movido pelo desejo, não percebe a troca até que
seja tarde demais.

E a energia que despertou essa quinta voz foi…

O amor!

Sim, Morfeu, minha homenagem a você é repleta de amor! É o


elemento que dá poder para destruir a destruição, para negar o
inegável, para transformar o intransformável, e…

Tá, isso foi muito brega. Parei.

É isso, caro Morfeu!

Espero que tenha gostado. Como eu disse, não é nada muito profundo,
nem nada muito elaborado, nem chegou minimamente perto da

140
qualidade da sua escrita, mas foi movido por inspiração e admiração
sinceras.

Nada mais tendo a declarar, concluo desejando um Feliz Natal e um


2024 repleto de amor.

141
Medo da chuva
— Ah, perfeito!

No canto da sala cheia de mofo, avistou o que uma vez


tinha sido uma luxuosa cadeira. Não restou muita coisa,
apenas um pouco do estofado revestido de um tecido
aveludado e macio, e metade de um dos pés.

Aproximou-se, tentando não derrubar o amontoado de


tocos de madeira e partes de móveis que juntou ao longo da
tarde, e se abaixou para pegar o pequeno pedaço de lenha.
Apesar da barriga levemente avantajada, não teve dificuldade.
Já tinha se acostumado ao estado intermediário de gravidez, e
conseguia se mover sem que isso fosse um empecilho. Ao se
levantar, sentiu quando a superfície rústica soltou uma lasca
que penetrou fundo na área próxima ao umbigo.

— Ai! — reclamou para o vazio.

Passou a mão sobre o local e sentiu uma ponta afiada


saindo da pele. Tentaria tirar mais tarde, assim que estivesse
com as mãos livres.

Nesse momento, seus olhos se viraram instintivamente


para um espelho de corpo inteiro pendurado na parede. Além
de quebrado, estava ondulado, o que distorcia um pouco o
reflexo. A luz escassa e azulada do dia que chegava ao fim

142
também não ajudava com os detalhes. Mesmo assim, a
imagem que se formou foi suficiente para enchê-la da mais
profunda tristeza.

Era a imagem de uma mulher alta e de cabelos negros e


longos. A pele alva refletia um pouco do azul da atmosfera
soturna, gerando um contraste com as roupas pretas. As
roupas justas, calça e blusinha sem mangas, destacavam as
curvas de seus quadris e a barriga cheia de uma gravidez que
chegava ao meio-termo. Mas mais do que isso, era a imagem
que lembrava muito a de uma mãe grávida acariciando
gentilmente seu filho não nascido.

Só que ela não estava acariciando um filho, e sim uma


lasca de madeira afiada, pois não havia filho algum ali dentro,
apenas um feto sem vida. Sua barriga era apenas o resquício
de um ato terrível.

E sua gravidez não estava na metade. Já carregava aquele


peso havia mais de uma década.

Desfez a pose, tratou de ajeitar a lenha no colo e saiu


andando rápido.

Desceu as escadas com cuidado, tentando não escorregar


no piso liso e úmido dos degraus. Mesmo quando não estava
chovendo, a umidade estava sempre presente. Por algum
motivo, a água parecia brotar do solo e das paredes, vinda de

143
alguma dimensão paralela e molhada que se sobrepunha
àquela realidade.

Assim que chegou às ruas, percebeu que tinha demorado


demais. Devia ser por volta das três da tarde, e o céu já
começava a escurecer. Por baixo das nuvens espessas, o Sol
avermelhado lutava para acrescentar tons de vermelho e
laranja à tintura azul que dominava tudo. Em breve ele se
esconderia, deixando os habitantes daquele planeta expostos à
escuridão.

Apressou o passo. Não estava longe do lugar onde


costumava passar sozinha as longas noites, mas gastaria uns
vinte minutos caminhando. Por sorte, já tinha coletado raízes
suficientes para preparar a refeição dupla, e não precisaria sair
de novo até a manhã seguinte.

O caminho foi tranquilo. Foi quase um passeio pelas ruas


cinzentas do labirinto urbano densamente recheado de casas e
prédios em ruínas. Repletas de plantas azuis que cresciam nas
rachaduras do asfalto e dos muros, as vias eram
completamente inúteis em seu propósito, pois ali não havia
carros ou outros tipos de veículos de locomoção. Nunca viu
sequer uma bicicleta quebrada que pudesse tentar consertar
para facilitar os trajetos. Caminhar com as próprias pernas
fazia parte do estilo de vida daquele lugar. Não havia forma de
acelerar o tempo ou, pelo menos, sentir o vento no rosto para
experimentar um pouco da sensação de movimento.

144
Era um castigo injusto para quem já tinha sofrido tanto
para chegar até ali.

Pelo menos não encontrou ninguém, amistoso ou hostil, o


que era uma coisa boa. Raramente os encontros com outros
moradores eram ausentes de perigo. A violência era a única
coisa realmente capaz de quebrar a monotonia do lugar, e
muitos acabavam utilizando-a por esse único motivo.

Já estava bastante escuro quando avistou a tela metálica


que fechava o quintal da casa abandonada. Olhou para os lados
para certificar-se que não tinha ninguém olhando. Levantou
um canto da trama, tentando não se ferir nas pontas vivas do
arame enferrujado, e se esgueirou para dentro. Cruzou o
terreno lamacento e abriu a porta que levava ao porão. Entrou
e tratou de fechar a trava atrás de si. Ficou alguns segundos em
silêncio, tentando ouvir qualquer barulho. Não ouviu nada, o
que era um bom sinal. Ninguém tinha seguido-a. Estava
segura por mais uma noite.

Foi até o canto do cômodo sem divisões e deixou cair a


lenha. Estava completamente escuro, mas não havia a menor
chance de tropeçar ou esbarrar em algo. Depois de anos
vivendo ali, conhecia tudo como a palma de sua mão.

Em seguida, ajoelhou-se e tateou a madeira até encontrar


um pedaço mais seco, tentando não se espetar em mais
nenhuma lasca. Separou-o e foi logo tentar acendê-lo com dois
pedaços de pau secos que mantinha separados para esse

145
propósito. Tinha aprendido a produzir fogo esfregando-os um
contra o outro. Não era fácil, mas a prática tinha levado à
consistência.

A perspectiva de ter uma luz para acalentá-la durante


parte da noite a animou enquanto realizava os movimentos
repetitivos e cansativos. Sem contar que poderia cozinhar e
amolecer um pouco as duras raízes que serviam como único
alimento daquele local abandonado. Ela não ligava de comê-las
cruas, mas era bom variar de vez em quando. Além disso,
talvez ele gostasse de experimentar um cozido.

O fogo demorou a pegar, mas quando acendeu, começou a


consumir a lenha rapidamente. A fumaça não tardou a subir,
fruto da umidade sendo expulsa das fibras da madeira. Subia
pelas paredes e penetrava nas inúmeras fendas que havia no
teto. Não era muita fumaça, portanto não precisava se
preocupar em ter sua localização delatada. A casa vazia de dois
andares servia muito bem para dissipá-la e ocultar a presença
humana no subterrâneo.

Juntou o restante da lenha em uma pilha e foi preparar o


cozido.

Não que houvesse muito o que preparar. Sem temperos ou


qualquer tipo de condimento, tudo o que podia fazer era
juntar as raízes na água, misturar um pouco das folhas e
musgo para modificar um pouquinho o gosto e esperar.

146
A luz ajudou-a a localizar as raízes estocadas em uma
prateleira perto da parede, assim como uma panela velha,
cheia de sujeira incrustada. Jogou as raízes na panela, depois
foi pegar um pouco de água de uma garrafa de vidro onde
coletava chuva. Estava suja, mas como iria ferver, não
importava muito. Porém, na ânsia de começar logo o preparo,
não calculou direito os movimentos e acabou derrubando a
garrafa no chão.

— Não!

A garrafa não quebrou, pois era feita de vidro grosso, mas


tombou de modo a derramar quase todo o conteúdo para fora.
O que sobrou não seria suficiente para cozinhar todas as
raízes. Até daria para esquentar um pouco para si mesma, mas
certamente não teria o que compartilhar com ele.

— Amilia, sua burra! Merda… Merda! E agora?

Mordia os nós dos dedos e dava pequenos socos na testa


enquanto caminhava de um lado para o outro, pensando no
que fazer. O fogo já começava a ficar mais forte. Se a panela
com os ingredientes não estivesse sobre ele em dez ou quinze
minutos, não restaria tempo para uma cocção completa.

Uma ideia se formou em sua mente. Havia um parque ali


perto. De vez em quando, um pouco de água da chuva ficava
acumulada em uma fonte de pedra. Porém, fazia tempo que

147
não chovia, e a chance de voltar com as mãos abanando era
grande.

Além disso, era perigoso. Sempre havia a chance de


encontrar algum maluco andando por aí. Ou pior, poderia
esbarrar naqueles que, enjoados da monotonia da vida sem
graça e do gosto amargo das raízes secas, tinham aderido a um
cardápio mais variado e emocionante. Aqueles que nutriam
gosto pela adrenalina da caçada em busca da única variedade
de carne que existia por ali.

Carne humana.

Sair era arriscado demais.

Mas sua mente a traiu, forçando-a a pensar nele mais uma


vez.

A verdade é que passou o dia todo pensando nele.


Enquanto coletava as raízes e a lenha, ficava imaginando como
ele reagiria ao vê-la chegando com um cozido. Riria, é claro.
Ele tinha um sorriso bobo, que custava a compartilhar com o
mundo, mas que a encantou desde a primeira vez que o viu.

Depois de provar o primeiro pedaço, ele a olharia,


surpreso, ergueria as sobrancelhas e diria alguma bobagem,
como: "Essa é a melhor gororoba que já comi na minha vida!"

E eles ririam juntos.

148
Os olhares se cruzariam por um breve instante, para em
seguida serem recolhidos ao nada.

Haveria um silêncio estranho. Desconfortável, mas


gostoso. Significativo.

E talvez ele pedisse para segurar na mão dela…

Observou as chamas mais um pouco. Elas cresciam, junto


com a certeza de que só havia uma coisa a ser feita.

Foi até a porta, destravou-a e saiu de seu esconderijo.

— Isso! — exclamou baixinho para si mesma, assim que o


som grave de um trovão ecoou nas paredes dos prédios e
chegou aos seus ouvidos.

Olhou para cima, na esperança de ver as nuvens refletindo


relâmpagos, o que seria sinal de que uma chuva se
aproximava. A visita à fonte na praça tinha sido infrutífera, e a
garrafa vazia seguia à espera de algo para saciar sua sede. Uma
chuvinha cairia como uma luva.

Não estava totalmente escuro. Quase nunca ficava


totalmente escuro naquele lugar. Não por causa da Lua.
Diferente da Terra, não havia um satélite natural orbitando

149
aquele planeta. O brilho cálido que iluminava as noites vinha
do orbe que vagava no céu.

O olho de Deus.

Por sorte, não estava ali por perto naquele momento.

Um brilho branco, muito mais forte do que o olho, clareou


os céus de repente. Segundos depois, um estalo forte fez tudo
tremer.

Amilia sorriu. Dois minutos depois, o fenômeno elétrico


se repetiu, e grossas gotas começaram a pingar, logo
transformando-se em uma chuva pesada. Colocou as duas
mãos em concha ao redor da boca da garrafa e começou a
coleta.

Logo viu-se encharcada da cabeça aos pés. Os cabelos


grudaram no rosto. As roupas, no corpo. Por dentro, foi
preenchida por uma sensação de alívio. Em casa, o fogo devia
estar chegando ao seu ponto máximo. Em poucos minutos
estaria de volta ao aconchego do lar, pronta para começar o
preparo da tão esperada refeição.

Quando o peso do líquido sob suas mãos lhe informou que


o conteúdo da garrafa já estava na metade, ela se tocou que
não precisava ficar parada.

— Que burra, Amilia! Vamos andando e enchendo, né?

150
Caminhou o mais rápido que conseguia, tomando cuidado
para não derrubar a garrafa e tentando manter as mãos
abertas para captar o máximo de água possível.

Depois de um tempo, a chuva diminuiu um pouco, mas a


garrafa já estava com muito mais conteúdo do que precisava.
Segurou-a pelo gargalo e acelerou o passo.

Ainda estava meio longe de casa quando ouviu uma voz


vinda do alto:

— … eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da


chuva…

Era uma canção. Já tinha ouvido-a antes, assim como a


voz que a entoava na direção do céu noturno. Amilia parou e
prendeu a respiração para ouvir melhor:

— … pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar…

Era a voz de Chester. Fazia-se ouvir, sonora, mesmo em


meio ao tamborilar das gotas que salpicavam o chão e ao uivo
do vento que assolava os ouvidos. Ele tinha uma bela voz, que
Amilia aprendeu a amar, assim como seu sorriso.

Olhou para cima, em busca do rapaz. Ele devia estar


perto.

— … aprendi o segredo, o segredo, o segredo da vida…

151
Um relâmpago piscou, revelando a sua figura contra o céu
nublado. Estava no topo de um sobrado, com as pernas
penduradas para fora da laje arruinada. Balançava-as como
uma criança num parquinho, enquanto cantava a plenos
pulmões. Amilia não conseguiu evitar que um sorriso tomasse
conta de seus lábios.

E nem que seu coração se acelerasse a ponto de saltar para


fora da boca.

Olhou para a garrafa cheia em suas mãos e pensou no que


fazer. Seu plano era visitá-lo somente no dia seguinte.
Deixaria as raízes cozinhando o máximo de tempo possível,
durante a noite, e as esquentaria perto da hora do almoço,
para que pudessem compartilhar uma refeição quentinha e
tranquila sob a luz do dia. Mas a expectativa de se juntar a ele
ali mesmo, naquele exato momento, a excitou. Não precisaria
esperar muito para ver aquele sorriso brilhando para ela.

Daria tempo de correr para casa e preparar o cozido antes


que ele se cansasse de seu canto sob a chuva?

A resposta teria que esperar. Pois um novo relâmpago


revelou uma cena terrível a poucos metros dali.

Saindo de uma casa a cerca de dois quarteirões de


distância, apareceu um grupo de pessoas cambaleando e se
apoiando nas paredes. Eram sete ou oito, e estavam todos
completamente nus. Andavam tropeçando, caindo. Tinham

152
pouco controle sobre suas pernas. Pareciam embriagados,
sedentos por alguma coisa.

Ou famintos por carne humana.

Não dava para ouvir o que estavam conversando, mas eles


entraram na casa seguinte, o que tornou bastante óbvio o que
estavam fazendo. Estavam vasculhando as casas em busca de
uma vítima.

E estavam vindo na direção de Chester e Amilia.

Olhou para cima, desesperada. O cantor não tinha


percebido nada.

Olhou para a frente. O grupo tinha terminado sua busca


atual e já estava entrando na casa seguinte.

Faltavam quatro casas para que encontrassem Chester.

Amilia precisava agir rápido, e assim o fez. Esperou que o


grupo estivesse todo dentro da próxima casa e foi em sua
direção, mas dando a volta por uma rua paralela. Correu, na
maior velocidade que conseguia imprimir, sem se importar
com o maldito feto morto chacoalhando em sua barriga.
Depois de dois quarteirões, surgiu do outro lado do grupo a
tempo de vê-los saindo da casa recém-inspecionada. Respirou
fundo e gritou, tentando não deixar que a tremedeira da voz
passasse às pernas:

153
— Ei! Estão com f-fome?

Os rostos abobalhados dos canibais se viraram


imediatamente para ela. Depois entreolharam-se, trocaram
sorrisos e acenos de cabeça, e começaram a se aproximar.

— Q-quem vai querer me comer primeiro?

Ninguém respondeu verbalmente, mas uma loira enorme


apressou o passo, colocando-se à frente dos demais. Ela
ergueu o rosto e empertigou o peito, fazendo seus seios
volumosos se destacarem no corpo obeso. Todos os outros
abaixaram a cabeça, em um claro sinal de submissão.

— É você a líder, então? — Amilia murmurou.

Quando o grupo estava a três metros de distância, parou


de andar. A loira, que ficou um pouco à frente, perguntou,
confirmando assim a sua posição de liderança:

— Está grávida?

Amilia passou a mão livre na barriga. Ergueu a blusa


molhada e deu dois tapinhas na pele. Sentiu a farpa que ainda
estava enfiada ali.

— Sim. Já comeu um bebê? É cheio de água aqui dentro,


quer experimentar para ver se é suculento?

A mulher arregalou os olhos e abriu a boca. Havia muito


líquido escorrendo pelos lábios e queixo. Se era água da chuva

154
ou saliva, Amilia não soube dizer, mas era óbvio que sofria com
uma fome que nunca havia sentido antes. Um desejo animal,
visceral, repleto de novidade, que tomou conta de todos os
seus sentidos, ao ponto de — assim torcia Amilia — nublar seu
julgamento.

Funcionou. A loira se jogou para a frente. Seus olhos não


enxergavam nada além da barriga de Amilia. Os braços
esticados e a boca aberta faziam-na parecer uma criança
prestes a pegar um prato de brigadeiro.

Então Amilia se mexeu.

Virou-se nos calcanhares e disparou a toda velocidade, em


uma fuga alucinada. Os canibais, desajeitados, tinham
dificuldade em segui-la. Sua nudez incluía os pés. Descalços,
não conseguiam se firmar direito no asfalto molhado,
escorregando constantemente. O desespero para provar uma
carne tenra e macia também prejudicava seu autocontrole, e
eles tropeçaram nas próprias pernas. Não demorou para que
Amilia abrisse uma boa vantagem.

Porém, assim que virou uma esquina e se deparou com


uma ampla avenida, paralisou imediatamente. O ar fugiu de
seus pulmões e a vista se escureceu.

A chuva parou como num passe de mágica, e o céu


nublado se abriu, como se um furacão tivesse sido conjurado
naquele exato instante, produzindo ventos que varreram as

155
nuvens de uma determinada porção da abóbada celeste. No
centro do vazio que se formou, um enorme olho se
materializou.

— Amiliaaaa…

A voz era grave e aguda ao mesmo tempo, incomodando


os ouvidos com os sibilos altos e fazendo o peito tremer com as
vibrações graves.

Também não tinha uma origem muito bem definida.


Vinha de dentro, arrepiando os pelos da nuca e soprando nos
ouvidos, mas também vinha de fora, ecoando pelas casas e
fazendo as nuvens se afastarem ainda mais.

O brilho daquele olho era etéreo, mas real. Branco,


esfumaçado e intenso, exceto na íris e na pupila, que
misturavam azul, cinza e preto em dois círculos concêntricos.

Círculos que apontavam diretamente para Amilia.

Ela caiu sentada, empurrada por forças imaginárias


compostas de medo e de terror. Nem ouviu o barulho da
garrafa se quebrando. Tentou se afastar, empurrando o chão
com as mãos e os pés, mas estava escorregadio. Não conseguia
se erguer, não conseguia se arrastar. Seus músculos não
respondiam direito.

Enquanto isso, o olho a perfurava, impiedoso. Penetrava


em sua mente, desnudando todos seus pensamentos.

156
Congelava sua pele com uma frieza dura. Amilia podia jurar
que suas roupas tinham desaparecido instantaneamente, pois
se sentia tão nua quanto os canibais que a perseguiam.

De repente, sentiu a nuca bater em algo macio. Era a


barriga da líder dos canibais. Tinham finalmente alcançado-a.

E o horror tomou conta da situação.

De um lado, o olho de Deus. O ser terrível que aprisionou


todos naquele lugar de crueldade infinita a derretia aos poucos
com a força de seu olhar.

Do outro, os canibais, que em breve arrancariam sua pele


e carne, sem se importar se ainda estava viva.

Entre dentes e olhar, Amilia se entregou ao desespero.


Incapaz de decidir qual dos destinos era menos insuportável,
simplesmente se encolheu. Abraçou os joelhos e enfiou a
cabeça entre eles, chorando e lamentando o triste fim de mais
uma de suas vidas miseráveis.

No entanto, o tempo não passou como esperava. Não


sentiu as mãos famintas agarrando-a e despindo-a, nem
dentadas carnívoras rasgando seu ventre, e nem dedos
impiedosos arrancando o feto de dentro dele.

Também não sentiu a cólera divina arrebatando sua alma


e deixando sua mente em estado de torpor constante. Não

157
sentiu todo seu corpo evaporando à medida que Deus a
mantinha sob seu foco.

Ergueu a cabeça e arriscou um olhar.

Os canibais ainda estavam ali, mas estavam paralisados.


Olhavam fixos para o céu, hipnotizados pela visão do olho.

Nesse instante, Amilia sentiu uma lufada de esperança e


ar fresco enchendo seus pulmões, quando finalmente viu a
garrafa quebrada ali do lado. Sem perder tempo, agarrou-a
pelo gargalo, levantou-se e a enfiou no pescoço gordo da líder
dos canibais. A mulherona caiu imediatamente. Tentou
segurar o sangue ali dentro, mas o líquido teimou em escapar.
Entre gargarejos e tosses molhadas, a loira lutou para respirar
por mais alguns segundos, mas finalmente parou de se mexer.

O restante do grupo, atônito, alternava os olhares entre


sua líder morta, a grávida ofegante e o orbe celeste.

Amilia não quis descobrir quanto tempo duraria a


confusão coletiva e saiu correndo de volta para o lugar de onde
tinha vindo. Depois de virar algumas esquinas, o silêncio
sepulcral deu lugar à chuva de antes, e ela soube que tinha
escapado.

Respirou uma, duas, três vezes.

Seu coração desacelerou. A pele esfriou sob as gotas de


chuva e a respiração voltou ao normal.

158
Cruzou os braços para se proteger um pouco do frio e
caminhou, cansada, pelas ruas da cidade fantasma.

Quando chegou perto do lugar onde Chester cantava,


olhou para cima. Ele não estava mais lá. A tristeza por ter
perdido a oportunidade de encontrá-lo se misturou ao alívio
por ter salvado sua vida. Ela continuou seu caminho, de cabeça
baixa, querendo mais do que nunca se sentar perto do fogo e
afastar a adrenalina da noite tempestuosa.

— Amy?

O que parecia impossível minutos atrás aconteceu. Um


sorriso sincero e amplo tomou conta dos lábios de Amilia. Ela
se virou e o viu. A figura baixa e sorridente a encarava sob a
moldura da porta do sobrado.

— Tchê! Oi.

— O que está fazendo aqui?

A ausência da garrafa de água em suas mãos a lembrou


dos planos frustrados.

— Eu saí pra pegar um pouco de água, mas minha garrafa


quebrou.

— Que pena. Não tá com frio? Tá toda molhada.

— Você também! — sorriu, desafiadora.

159
— Ah é… eu tava…

— … cantando. Eu ouvi.

— Ouviu? — Ele pareceu ficar envergonhado.

— Achei bonito — apressou-se em dizer. — Que música


era? Falava sobre o medo da chuva.

— Ah, sim. É do Raul. Não conhece?

— O artista, sim. Mas essa eu não conhecia — mentiu. —


Sobre o que é?

Chester colocou as mãos nos bolsos e se aproximou,


olhando para baixo e caminhando desleixadamente. Ele era
bem mais baixo do que ela, e quando ergueu os olhos para
encará-la parecia haver uma angústia profunda dentro de si.

— A música fala da tristeza que vem quando se ama. Tem


um verso que diz isso: "ninguém nesse mundo é feliz tendo
amado uma vez".

Uma sombra percorreu o rosto dele nesse momento.


Amilia quase conseguiu enxergar a penumbra que preencheu o
espaço entre eles.

— Que triste. Me fala mais, que outros versos tem?

160
— É tudo na mesma toada, de tristeza. O meu favorito é
um assim: "Aprendi o segredo da vida vendo as pedras que
choram sozinhas no mesmo lugar".

Amilia pensou um pouco. Já conhecia esses versos, mas


sua leitura era menos pessimista. Arriscou compartilhar sua
interpretação, ciente de que era fruto de uma ingenuidade
tola:

— Ah, esse aí pode significar outra coisa.

— O quê?

— Que quando a gente vê uma pedra chorando sozinha,


tudo o que precisa é sentar do lado dela. Ela é uma pedra, não
pode se mover, então o segredo é ter uma companhia, pra ela
não ficar mais sozinha.

— Hum… não sei, nunca tinha pensado por esse lado.

— Então, se pensar desse jeito, a música fala de esperança.


A esperança de encontrar um amor…

Amilia deu um pequeno passo em direção a Chester. Ele


não percebeu. Ainda estava compenetrado, tentando
compreender aquela interpretação, que era nova para ele.

Ela descruzou os braços e começou a brincar com os dedos


da mão. Chester olhava para os próprios pés, ainda com as

161
mãos no bolso. Assim que ele as tirasse dali, ela poderia
estender sua mão em direção a ele e…

— Não… não pode ser isso — disse Chester.

— Não? — Amilia cruzou os braços novamente e deu um


pequeno passo para trás. Chester não percebeu.

Nem tirou as mãos do bolso.

— Não, porque tem outro verso que diz: "quando eu jurei


meu amor eu traí a mim mesmo". Isso significa que, antes de
amar outra pessoa, precisamos amar a nós mesmos. Pensa
bem, Amy. A gente só está aqui nesse planeta dos suicidas
porque não conseguimos nos amar, não é? A gente acabou se
traindo, como diz a música, e por isso estamos fadados a
sofrer até a eternidade.

Ele ergueu os olhos para encará-la.

— Você se ama, Amy?

Ela ergueu os ombros e apertou ainda mais os braços


contra o corpo.

— Não sei. Você?

Chester respondeu:

— Não.

162
Um silêncio se ergueu entre os dois como um muro
intransponível.

— É, sei lá… — ela disse, com um sorriso fingido no rosto.


— É só uma música boba, mesmo.

Virou-se e começou a caminhar. Se continuasse ali, ele a


veria chorando. Não queria que a visse assim.

— Onde vai, Amy?

— Estou cansada — disse, sem olhar para trás. — Preciso


dormir um pouco. — Torceu para que a fungada que deu para
conter uma lágrima fujona passasse despercebida.

— Ah, tá. Até mais.

— Até.

A chuva parou.

O caminho até sua casa foi tranquilo.

Ergueu a tela metálica, atravessou o quintal lamacento e


abriu o porão.

Apurou os ouvidos e não ouviu nada. Ninguém tinha


vindo atrás dela. Nem Deus, nem canibais.

163
E nem Chester.

Trancou a porta e se reencontrou com a escuridão. O fogo


tinha se apagado completamente. Não havia nem mesmo uma
fumacinha para lembrá-la de que um dia tinha existido.

Passou a mão na barriga. A lasca de madeira espetou seu


dedo, lembrando-a de que ainda estava lá.

Amilia estava com fome, mas não deu vontade de comer


as raízes cruas. Não naquela noite, quando a expectativa de
um pouquinho de calor e comida cozida tinham enchido seu
coração de esperança.

Por um bom tempo, Amilia não conseguiria mastigar o


alimento duro sem se lembrar das pedras que choram
sozinhas no mesmo lugar.

Deitou-se no chão frio e chorou até que a exaustão


finalmente secou suas lágrimas e permitiu que seus olhos se
fechassem um pouquinho.

Amilia finalmente adormeceu.

E por algumas horas, seu coração despedaçado conseguiu


bater livre da dor e do sofrimento.

164
E o último conto, que encerra essa coletânea peculiar, é a minha singela
homenagem ao livro "O Túmulo dos Ingratos", de autoria de
Gui(lhe/ve)rme Almeida Pereira. Já deixo aqui o convite, para quem
não conhece a obra, que o faça! Prepare-se para uma jornada sem
igual. Os elementos fantásticos que eu trouxe aqui são apenas uma
pequena porção da riqueza criativa que permeia o manuscrito
original. Vale muito a pena, e não só para saber o que foi que o destino
reservou para Amy e Tchê.

Mas vamos lá, a uma breve "explicação" sobre meu conto. A partir de
agora me dirijo a você, caro Guiverme.

Minha homenagem pode ser dividida em alguns aspectos.

Primeiro, eu tentei trazer um pouco da atmosfera que existe na obra


original. O livro traz uma sensação peculiar quando nós "estamos" no
planeta conhecido como Túmulo dos Ingratos. A história se passa em
alguns lugares diferentes, mas nas cenas no Túmulo, existe uma
sensação esquisita, de desolação, de eternidade, e de vigilância. Eu
acho que poderia comparar com o filme "Matrix". Sempre que os
personagens do filme estão lá dentro, as lentes assumem um tom
esverdeado. E o fato de a gente saber que ali é um ambiente controlado
(por máquinas, no filme), torna tudo muito perturbador. É essa a
sensação que eu senti ao ler o seu livro. Estar no Túmulo é estar num
lugar artificial, feito para controlar, para torturar a alma, para vigiar,
e o livro transmite isso com seus elementos "visuais". Pra mim, a cor
azul domina tudo (em contraste com o verde de Matrix). Tentei trazer
um pouquinho dessa atmosfera com as descrições, além — é claro — do

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olho de Necro flutuando no céu. O terror que Amilia sente ao vê-lo, e
que a derruba, literalmente, no chão, é um resumo de tudo isso que eu
falei. Na época em que a história se passa, eu acho que ela não sabia do
que se tratava, portanto achava que era Deus, o que torna tudo ainda
pior, já que, em tese, Deus era para trazer conforto aos aflitos. E é
justamente o oposto que acontece, e isso aumenta a sensação de solidão
e abandono.

Um segundo aspecto que busquei explorar no texto é o contraste. Você é


um autor de contrastes. Em poucos parágrafos, consegue levar o leitor
de uma conversa sobre namoro para um pensamento existencial ou um
diálogo profundo. Páginas depois, é uma batalha monumental e
sangrenta, intercalada com pensamentos super intimistas. Na cena
seguinte, vemos deuses que comandam universos arquitetando planos
celestiais, para terminar com o protagonista tomando banho de mar.
Claro que isso faz parte do seu estilo próprio, e eu tenho certeza que não
consegui chegar nem perto (me considero muito mais descolorido e
plano ao fluir as ideias), mas tentei combinar as duas coisas.
Começamos e terminamos o conto com uma Amy sonhando com um
amor adolescente, mas o recheio ficou repleto de fuga, terror e conversas
profundas. Pelo menos foi isso que tentei fazer.

A próxima coisa é a música. A sua obra é recheada de referências


musicais, e eu não podia deixar de tentar incluir esse elemento em
minha homenagem. A música escolhida foi a que dá título ao conto, de
autoria do grande Raulzito. Não sei se é do seu agrado, mas é uma
música que eu particularmente adoro. E como você mesmo botou uma

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referência ao Barão Vermelho, achei que não tinha muita distância ao
Raul (é tudo Rock Nacional anos 70-80), então fui em frente.

No conto, a música serve como base para o motivo pelo qual Amilia e
Chester não chegaram a namorar quando se conheceram. Isso é
mencionado na obra original, mas não é explicado. Tomei a liberdade
de fazê-lo aqui, espero que me perdoe a intromissão.

Na música do Raul, é possível ter diferentes interpretações. Amilia vê a


música com esperança. Ela tenta ver união e comunhão, pois é isso que
ela mais deseja em sua vida. Depois de ter sofrido com o abuso, tudo o
que ela quer é alguém para segurar na mão dela sem que isso
signifique um ato sexual, ou uma agressão física e psicológica. O gesto
adolescente, quase infantil, é mencionado na obra original, e eu trouxe
para cá, dando um destaque todo especial. Pode parecer um gesto bobo
e infantil, mas a gente não pode esquecer que Amilia foi tirada de sua
vida e de sua alegria ainda muito jovem. Eu acho que querer segurar
na mão de alguém é uma tentativa de rebobinar o tempo, uma
esperança de recomeço, e resume esplendidamente a história de vida
dessa menina. Palmas para você por resumir tudo tão bem, na forma
de um pedido tão bobinho.

Já Chester enxerga a música com seu olhar repleto de remorso. Ele só


consegue enxergar os versos de tristeza e arrependimento, pois isso
reflete sua história. Ele se arrepende do que fez porque, diferente de
Amilia, não havia nada verdadeiramente trágico em sua vida. A vida
era normal, ele tinha casa, pais, violão, notebook… Não quero diminuir
a dor de uma família ausente, um pai austero e uma juventude

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desmotivada, não é isso. Mas não existe um evento traumático que o
empurrou para seu destino cruel. Foi algo que ele mesmo (em sua
cabeça) escolheu fazer, e isso só aumenta seu sentimento de remorso.

Claro, nenhuma dessas interpretações casa muito bem com a


verdadeira intenção de Raul Seixas, que era, entre outras coisas, fazer
apologia à poligamia e ao amor livre. Mas a genialidade tem dessas
coisas e possibilita que as interpretações extrapolem o intuito original
da obra. Grande Raulzito, não é à toa que é idolatrado até hoje!

Mas voltando, aqui eu quis brincar com essas interpretações opostas


para ilustrar o sentimento de cada um. Amy quer namorar Tchê. Ele
não está pronto, ainda. Ela percebe isso e se afasta.

Triste. Mas real.

Por último, eu quis trazer para a obra um lado não visto de Amilia. Eu
talvez tenha dito, em alguma das minhas resenhas, que Amilia era
"um saco de batatas inútil". Não me lembro direito, mas
aparentemente eu poderia ter tido um pouco mais de tato no feedback.
Pois bem, aqui eu tento me redimir. No final das contas, com a obra
completa, principalmente a trajetória final dela como mãe, mudou
completamente minha visão. E eu quis demonstrar que, por mais que a
minha impressão dela fosse a de uma menina inofensiva e passiva, ela
tinha sim seus momentos de bravura, apenas não apareceram na
história original. E pensando bem, isso é bastante óbvio! Como ela
teria sobrevivido num planeta como aquele se não fosse assim?

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É mais ou menos por isso que eu trouxe uma história onde Amy salva a
vida de Tchê. Ele nunca soube disso, é claro, pois ela não é de ficar se
gabando das proezas que faz. Mas ela o fez, de seu jeitinho delicado e
feminino, repleto de força e determinação.

Sem falar que ela rasgou o pescoço de uma canibal!

Sim, Chester, você deve (uma de suas vidas, pelo menos) à sua amada
Amilia.

É isso, caro verme. Espero que tenha gostado da minha homenagem.


Peço perdão se eu mexi onde não devia, mas foi tudo motivado por uma
admiração genuína por sua obra e seus personagens. Se não gostou,
fique à vontade para deletar tudo, sem dó!

Um Feliz Natal e um 2024 repleto de novas histórias!

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