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por
Daniel Lucrédio
Índice
Prólogo 3
Creme de leite 7
A trovadora e o malfeitor 34
O felúpio-das-neves 74
2
Prólogo
Caro leitor.
Talvez você tenha caído de paraquedas neste texto e não faça a mínima
ideia do que tem nas mãos (ou na tela de seu computador), e nem tenha
compreendido o título, tão diferente.
NÃO!
3
Eu não gosto de fanfic. Acho que é muito mais válido a gente criar
coisas originais, pois o mundo das ideias está repleto de histórias e
personagens só esperando que alguém as transporte para o mundo
real.
DLC
Daniel Lucrédio's ContentTM
4
inspiração veio, e isso significa algo. Caso contrário, eu não me sentiria
à vontade para criar, ou melhor, eu nem conseguiria criar nada.
Mas não se preocupem. Aposto que, com dois ou três parágrafos vocês
serão capazes de identificar sua criação. E aí, já podem pular para o
próximo. Não precisam ter cerimônia.
5
Agora, se tiverem a paciência de ler todas, talvez consigam perceber o
elemento comum, algo que as une, e que remete a uma coisa muito
importante para mim. Digamos que é uma espécie de segredinho meu,
ou, para ficar no mundo dos games, um "easter egg" que deixei
escondido…
Mas isso não é tudo! Ao final de cada fanfic DLC, eu faço alguns
comentários sobre as minhas intenções em cada história. Considero
uma espécie de autorresenha. Não é exatamente "auto", pois apesar de
estar resenhando meu próprio texto, o que faço é destacar os aspectos da
SUA obra que me inspiraram. Nesse sentido, são, na verdade, resenhas
das obras de vocês. Considerem como um presentinho extra.
E, é claro, espero que não fiquem chateados comigo. Pode ser que, sem
querer, ao entrar na sua casa literária, eu tenha mexido em algo que
não deveria. Se o fiz, peço desculpas, foi tudo com a melhor das
intenções. É só me falar, e eu coloco tudo de volta no lugar, do jeitinho
que estava!
Daniel Lucrédio
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Creme de leite
— Louise! Não corre! — gritou Eleanor, assim que avistou
os cabelos da filha esvoaçando na entrada da casa.
— Tá, também não precisa vir tão devagar. Vem logo, mas
sem correr!
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— Manh˜e! — choramingou. — O tato quase me fez
tropeçar!
— OLIVER!
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— Desculpa, mãe, de verdade.
— Mãe…
— Mãe!
— Dona Eleanor!
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Eleanor finalmente relaxou. Abraçou o filho mais uma vez
e voltou para a preparação do seu bolo.
— Não, pirralha é v…
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mal acabados, dando ao lugar uma aparência rústica que dava
um mínimo — bem minimalista, diga-se — de conforto. As
paredes eram de pano, e serviam apenas para proteger os
moradores das chuvas e ventos mais fracos. Quando vinha
uma tempestade vigorosa, eles tinham que encaixotar tudo o
que conseguiam e correr para o abrigo para se proteger.
Quando voltavam, quase sempre era necessário reconstruir
tudo a partir do zero.
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— Nossa, como você é esperta, Lou! Quando foi que
descobriu isso?
— Vem fazer!
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Oliver se aproximou e ficou sério imediatamente.
— Oi, papai.
Oliver era alto, mas ainda tinha que olhar para cima para
encarar o progenitor. Ele devia ter quase dois metros de altura,
e sua aparência só não era imponente porque vivia em estado
lastimável. A camisa estava sempre suja de baba misturada
com restos de bebida, e as calças estavam sempre sujas de
urina misturada com restos de bebida. Louise era quem mais
sofria com isso, pois seu narizinho ficava bem perto das áreas
mais fedorentas do pai.
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— Ela tá trabalhando? D-de n-novo? Mas que merda! Dá
licença!
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Ela não escutou, continuou correndo até virar em dos
cantos da casa e desaparecer da vista dele. Oliver não teve
escolha senão segui-la.
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— Eu passo mal com jiló, você sabe d-disso, El…
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— Me dá a porra da espátula, Roger?
E silêncio.
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— Não… — Um passo fez o chão tremer. — Tem… —
Outro, agora mais perto. — Mais… — E outro. — CREME DE
LEITE! — O grito da mulher saiu junto com um gemido, fruto
de um enorme esforço muscular.
Deu uma olhada para trás apenas para ver a mãe ajoelhada
no chão, com as mãos no rosto, desolada, ao lado do bolo e do
marido.
— Hein?
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— Não é pocas, é docas. É onde os navios e barcos
atracam.
— Ah, tá.
— É, eu sei…
— Ia.
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— E não tem mais em lugar nenhum. Quando eu fui
pegar, o padeiro me falou que não sobrou nada. E se…
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Louise, que não gostava nada do silêncio, nem do tédio
que vinha com ele, voltou a disparar seus questionamentos
infindáveis:
— E é legal lá? Será que vai ter alguma amiga pra mim?
— Esquece, Louise!
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— Eu sei que sou pequena, mas me escuta, Óli, por favor!
Claro que ela não tinha culpa, pois fazia parte de sua
natureza infantil.
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O grito que escapou da garganta de Oliver ecoou pelas
ruas desertas e calou a pobre Louise imediatamente. Sem
parar para respirar, ele emendou:
— Lou! Lou!
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Chegaram ao bosque onde ficava sua casa improvisada,
mas Louise não foi para lá. Continuou seguindo pela trilha
estreita. Oliver tentou acelerar o passo e reduzir a distância,
mas naquele terreno acidentado, o tamanho reduzido da
garota lhe conferia uma improvável vantagem. Depois de
alguns minutos, ele literalmente a perdeu de vista. Por sorte,
sabia para onde ela estava indo.
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— Pois não? — saudou a estranha vizinha.
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Louise se virou para a dona da casa e falou:
— Ajudar, como?
A vizinha se intrometeu:
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O primeiro conto da minha humilde coletânea de DLCs é para a
talentosíssima Verena, em homenagem à sua obra-prima "Madame
Magee - A Bruxa da Fortuna"! Leitura obrigatória para quem gosta de
fantasia, suspense, aventura, reviravoltas, e de se encantar com uma
história repleta de magia e personagens maravilhosos!
Recomendadíssimo!
Uma das melhores coisas de Magee é, sem dúvida, seu talento como
escritora. Eu já disse, e repito: se algum dia você decidir escrever bula
de remédio, será a bula mais divertida e gostosa de se ler! Você consegue
criar frases que surpreendem a cada cantinho, a cada palavra, a cada
pontuação, a cada negrito ou itálico. Tudo é fresco, leve e solto e nos leva
junto em um fluxo maravilhoso de leitura.
Claro que eu nunca conseguiria trazer esse elemento para meu texto. A
única coisa que eu tentei fazer foi escrever pensando na forma com que
você escreve. Não mudou muito meu estilo de escrita, que é muito mais
simplório e direto, mas talvez tenha influenciado um pouco na "vibe" (o
que quer que isso signifique) do conto.
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alegres e coloridos, aquela sensação de estar entrando em um mundo
fantástico, de verdade. As palavras e frases, meio diferentes, esquisitas
(algumas inventadas), aparecem ali, assim como quem não quer nada.
E a gente, leitor, sente que é assim porque aquele é o mundo delas. Nós é
que estamos sendo convidados a entrar naquele mundo e a nos
acostumar com elas. Eu tentei trazer essa leveza e alegria para a
história, que busca trazer as brincadeiras e inocência de crianças de um
jeito natural. Ao descrever os irmãos brincando e interagindo, as
broncas da mãe, preocupada, tentei transmitir um pedacinho de vida
comum, gostosa e corriqueira, e convidar o leitor a se sentir "em casa".
Outra coisa que tentei fazer, e aqui é algo que considero uma
contribuição bastante pessoal, é mostrar um ponto de vista diferente.
Eu gosto muito de mostrar como é um personagem "visto de fora", pois
isso traz uma camada de leitura diferente. Enquanto estamos "dentro"
de um personagem, podemos ler seus pensamentos, desejos e reações
mais íntimos. Quando estamos vendo esse mesmo personagem sob a
ótica de outro ponto de vista, podemos ver o EFEITO que ele causa no
mundo ao seu redor.
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Na obra original de Magee, poucas são as vezes que saímos de dentro
da bruxinha. E quando aconteceu (perdão se minha memória está me
traindo) foi sempre para nos juntarmos a amigos ou conhecidos dela.
Não me lembro de ter lido algo do ponto de vista de um cliente, alguém
que não a conhece. O que é uma pena, pois a gente não teve muita
oportunidade de sentir como é a primeira impressão de quem conhece a
Max pela primeira vez. Tentei fazer isso, humildemente, no meu texto.
A segunda razão pela qual eu optei por mostrar a Magee sob o ponto de
vista de outros personagens foi que eu JAMAIS poderia ousar escrever
algo que tocasse na personalidade dela. Eu sinceramente acho que
ninguém, exceto você, Verena, é capaz de escrever a Magee. Não dá, não
iria funcionar, simples assim. Acho que sua personalidade se mistura à
dela de um jeito inseparável, se não por vocês serem muito parecidas,
talvez pelo fato de que ela nasceu de algum lugar muito particular aí
dentro da sua cabeça. Não sei se estou viajando, só sei que eu não
ousaria fazer isso. Até mesmo as duas ou três falas do diálogo final eu
escrevi com os dedos tremendo, morrendo de medo de "errar na voz", ou
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de corromper a personalidade tão particular da Max. Espero não ter
feito nada errado.
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E aí aparece Max, maravilhosamente mágica! E a gente SABE que ela
vai dar um jeito. Tá, tem a rolagem dos dados, e tal, mas a gente sabe!
Ela sempre dá um jeitinho!
31
óbvio, a fé, pura e simples. Ela é uma criança, que são os seres da vida
real que tem isso, de verdade. Basta conversar com uma por alguns
minutos para perceber que uma criança consegue acreditar em algo
com tanta força que aquilo se mistura à sua realidade.
32
conseguirá trazer Roger de volta? Ou será que eles vão ter que
confrontar o pai com uma boa e velha conversa? Impossível dizer, pois é
preciso esperar os dados serem rolados.
Mas as forças que levaram Lou e Óli até a porta da vizinha são sim
muito humanas, seja em uma obra de ficção ou na vida real. E é essa
força, super presente na sua obra, que meu conto tenta homenagear. Eu
não conseguiria, acho, representar isso sem trazer personagens
adicionais, pois isso tem a ver com o EFEITO que a Max causa nas
pessoas, e não à personalidade interna dela.
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A trovadora e o malfeitor
A animação era grande.
34
— Ei! — gritou o taverneiro de trás do balcão. — Sai já daí,
Phillip, seu moleque desordeiro. Sai do tablado, que os artistas
já estão quase chegando!
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sendo responsáveis pelo seu pão de cada dia. Mas também
havia rostos desconhecidos, muitos dos quais estavam bem
vestidos, ostentando cores vívidas e chapéus estilosos, um
sinal claro de que tinham dinheiro para gastar.
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Helena ergueu uma das sobrancelhas e puxou o canto da
boca.
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assunto muito mais sério para tratar, iria se sentar em meio a
um grupo de fracotes para ganhar bebidas de graça — além de
altas doses de admiração e puxa-saquismo — em disputas no
braço-de-ferro. Apenas por instinto, mediu com os olhos os
bíceps e tríceps dos exemplares mais recheados de músculos
dali, e concluiu que ninguém seria páreo para ele. E se não
quisessem entrar no esporte, poderia simplesmente provocar
uma briga. Não havia diversão melhor do que quebrar uns
narizes compridos, além de servir para aumentar a
autoconfiança.
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Puxou uma cadeira de uma mesa que já estava cheia de
gente e se sentou. Ninguém se incomodou com o intruso. Pelo
contrário, ficaram olhando admirados para sua ousadia —
principalmente as mulheres. Elas sempre se encantavam com
suas atitudes e traços excessivamente masculinos, por mais
rústicos que pudessem parecer aos olhos de uma pessoa
minimamente educada.
— Três.
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O homem sorriu ainda mais. Tirou um cartaz do bolso e o
deitou na mesa com um tapa. Copos e canecas reclamaram do
tremor de terra produzido, respingando bebida e exigindo que
seus donos os segurassem firmemente para que não
tombassem.
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— Você não é daqui, é? — Uma voz aveludada chegou aos
seus ouvidos. Ele não se deu ao trabalho de virar o rosto para
responder.
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— Você a conhece? Ouvi você falando para a garçonete que
quer falar com ela. Acha mesmo que ela vai atendê-lo?
— Eu vou falar com ela. Pode ser famosa, mas será sempre
a minha Norma.
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Por sorte, Helena apareceu com sua caneca de vinho.
Pegou-a e virou em poucos segundos, devolvendo-a antes
mesmo que a mulher conseguisse se afastar.
— Traga outra.
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de Gwivern, deixando-o com meros vislumbres do que se
passava em cima do tablado: pedaços de instrumentos
musicais e dos braços erguidos dos músicos que acenavam
alegres para seu público.
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Cercada pelos seus três companheiros de palco, e
iluminada com especial capricho por uma combinação fortuita
de luz dos archotes, Norma se destacava.
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a música evocava. A afinação, perfeita, seguia a precisão dos
movimentos de braços e quadris, que ilustrava a música com
uma dança suave e que não se sobressaía ao conjunto da obra,
mas sim complementava o espetáculo de maneira harmoniosa.
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ela não fez nenhum gesto de reconhecimento. Não sorriu,
piscou, ou mudou sua postura…
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vocais e em reencontrar-se com o ritmo cadenciado da canção.
Satisfeita com a perfeição técnica, conseguiu ignorar a
presença incômoda pelo restante da música.
48
em seu estômago. Por um momento, até cogitou fingir uma
dor de cabeça e se trancar no quarto da estalagem até o dia
seguinte. Mas provavelmente não adiantaria nada. Ele não
tinha seguido-a até aquela vila distante para desistir tão fácil
assim. Se desaparecesse, ele simplesmente acamparia em
frente ao quarto até conseguir falar com ela.
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— Está bem. — A expressão dele se amenizou. — Como
você está, minha pequena?
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— Eu queria falar primeiro — disse Norma. — Sei que foi
você quem me procurou, mas tem algo que eu queria tirar do
meu peito.
Gwivern sorriu:
— E o que era?
51
O coração de Norma se acelerou. Se aquele era um pedido
de desculpas, era um dos piores que já tinha ouvido.
52
com isso. Eu sofri, mas já passou, eu já te esqueci, vamos em
frente, está bem?
53
— Sei. Já se deitou com algum deles? Vi você olhando
bastante para o de cabelos grisalhos, durante o concerto. Não
acha ele meio velho para você?
Norma se levantou.
54
Ele tirou do bolso um broche com uma insígnia, que
Norma reconheceu imediatamente. Era de um grupo de
guerreiros mercenários que eram famosos tanto por sua
habilidade em batalha como por sua lealdade a quem
contratasse seus serviços. E também — e foi isso que lhe
provocou um frio na espinha — havia histórias sinistras
ligadas àquele grupo.
— Salvaram? Ou extorquiram?
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um mundo tão cheio de tristezas. Deixo o combate e a luta
armada para pessoas como você, que são muito mais capazes
do que eu.
— Gwivern, não…
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— Não. Sinto muito.
— Me desculpe.
— É claro! Sentem-se!
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Enquanto as duas fãs se acomodavam, Norma deu uma
última olhada para a porta, que tinha acabado de se fechar.
"Não".
"Sinto muito".
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para a porta, para que fossem a primeira coisa que ela visse
quando entrasse no quarto da estalagem. O de cabelos
grisalhos na frente, é claro. Fez questão de deixar seus olhos
abertos, para que ela pudesse sentir o mesmo tipo de
sentimento ruim que tinha acabado de fazê-lo passar.
Passos.
A maçaneta girou.
— Sinto muito!
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Olhos cor de mel, oblíquos e repletos de uma beleza
mística, quase indecifrável.
E a dor veio.
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Em seguida, seus membros começaram a se esticar.
Estalos audíveis denunciavam o rompimento dos ossos e
articulações, além dos músculos sendo estirados além de seus
limites. A vontade de gritar era enorme, mas ele resistiu. Era o
seu golpe final, que completaria a vingança contra aquela que
acabou com sua vida. Uma frase entrecortada conseguiu se
formar em seus lábios:
E ela gritava:
Os dois choravam.
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Também se regozijava com o fato de que ela estava se
entregando ao ódio, empregando a magia de um jeito
completamente deturpado e motivado pelo mais terrível
sentimento que podia ser usado como combustível. O fogo do
uso indevido da magia iria, eventualmente, queimar sua alma,
e ela estaria condenada a vagar pelos corredores do inferno
junto com ele.
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o olhar atônito da pequena feiticeira, tremendo de medo, mas
intacto.
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"Calma!"
"Calma".
Ela não deu atenção, pois Gwivern já não tinha mais poder
para nada. Os apelos desesperados do homem não mais
conseguiam inocular veneno em sua mente serena.
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— Eu não vou usar minha magia para vingança pessoal. É
isso que queria que eu fizesse, não é?
Ela continuou:
— N-norma…
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— E você não vai morrer fácil assim. Na hora certa, vai
pagar pelos seus erros, a começar por esses assassinatos cruéis
que cometeu hoje!
— Norma!!
— Pois não?
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— Ah, sim! — O velho sorriu e abriu a porta
completamente. — Deve ser a feiticeira que veio se juntar à
Ordem dos Protetores. O capitão falou que chegaria hoje.
Entre, entre!
— Obrigada.
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problemas e das diferenças. Nem mesmo as magias mais
poderosas eram capazes de fazer isso.
Repetindo, para que fique bem claro: eu sei que fui MUITO atrevido e
estou completamente ciente de que invadi um terreno que talvez não me
pertença, então você está livre para repudiar esta obra em sua
totalidade.
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Dito isso, também sou obrigado a lembrar que, no final das contas, é só
uma fanfic (que eu estou teimosamente chamando de DLC por pura
pirraça). E nós, fãs, temos total liberdade para fanficar até que o autor
resolva aquela lacuna. Lide com isso!
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apresentam fraquezas morais em algum nível, ela não demonstra
nenhum desvio de caráter ou dúvida em sua conduta. Pelo menos isso é
o que nos mostra seu texto, até agora.
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escrevia os parágrafos finais, eu só ficava pensando: que tipo de
provação essa mulher está passando? Quem conseguiria, estando na
pele dela, NÃO explodir e dilacerar o amaldiçoado Gwivern?
(semelhanças a Guiverme são mera coincidência) Que tipo de espírito
iluminado é capaz de perdoar o imperdoável, e esquecer o inesquecível,
e simplesmente seguir em frente, transformando a dor em poder e
magia?
A resposta vinha sempre clara e cristalina: disso daí, só podia sair uma
mulher cuja força moral jamais poderá ser questionada novamente.
Portanto, peço perdão por tê-la retratado assim, e ter emprestado a ela
traços que não constavam na obra original, mas espero ter ao menos
justificado as minhas escolhas.
Mas calma, o fato de que ela nunca alcançou o estrelato mostra que eu
tenho limites, e não estraga o "cânone" do seu universo, kkkkk.
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Enquanto estava brincando com essa coisa toda da música, me ocorreu
pincelar a história com elementos de magia. Eu fiz essa brincadeira
com o efeito causado pela música, justamente para provocar a questão:
ela estava usando magia para se promover, ou não? Essa pergunta
permeia a leitura em alguns momentos.
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divertida. Eu ficava pensando: quantos adjetivos Stark conseguiria
enfiar nessa frase? E eu ia enfiando, cada vez mais, e mais! Considere
minha patética incursão às descrições longas como um elogio ao seu
esforço por se aprimorar nesse sentido.
E é isso, meu caro. Espero que tenha gostado. Termino repetindo, mais
uma vez: se não gostou, não se incomode em dizer. Entendo a minha
ousadia e peço desculpas. Foi apenas um esforço guiado pela
admiração e respeito.
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O felúpio-das-neves
Um arrepio subiu pela espinha quando seus olhos
pousaram na paisagem desolada. Paredes intermináveis feitas
de pedra cinza se estendiam pelos dois lados do desfiladeiro.
Era difícil enxergar muita coisa lá embaixo, pois nenhuma das
Luas estava em seu apogeu.
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tudo desse certo, desceria sem ser percebida, iria até o
acampamento, cumpriria sua missão e voltaria incólume.
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que não tinha como saber as condições da descida antes de
efetivamente começá-la.
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lembrava quando. Passou o arco em volta da cintura, virou-se
de costas e começou a descer devagar.
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Um rugido grave ecoou pelas paredes. A enorme
quantidade de ecos tornava impossível determinar de onde
tinha vindo. Podia ser de uma caverna aberta na parede a
poucos metros dali, mas também podia ser de algum lugar a
quilômetros de distância.
— Calma Trisa! Você não vai ficar presa aqui. Não vai
voltar a morar aqui. Vai subir de volta, por essa cordinha aqui,
está ouvindo? Sim!
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Mencionar a corda fez com que ela percebesse que o peso
abaixo de si estava bastante imperceptível. Estaria a corda
chegando ao fim do seu comprimento?
— Droga!
— CRUAAAAAC!
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A resposta veio na forma de uma enorme sombra alada
que cobriu o céu escuro acima do cânion.
— CRUAAAAAC! CRUAAAAC!
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buracos. Mesmo que a vítima conseguisse se enfiar fundo o
suficiente para escapar das primeiras investidas, ela usaria sua
ferramenta bicuda como uma picareta. Tal qual um pica-pau
gigante, era capaz de minerar qualquer tipo de material até
abrir um buraco grande o suficiente para pinçar sua presa sem
dificuldade. Pedras moles não resistiriam por muito tempo.
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sortudas entravam nessa fase já mortas. As outras ainda
tinham que passar pelo doloroso processo de afogamento nos
ácidos estomacais.
— Não!
82
Ao ver o bico se fechando a centímetros de distância,
ainda teve a capacidade de puxar a mão para trás. A criatura
errou o bote, e com isso perdeu seu controle aéreo. Abriu as
asas, fez um desvio e flutuou para longe dali.
Abriu os olhos.
83
Lá em cima, viu uma linha azul-claro cheia de nuvens, em
meio a paredões de pedra infinitamente altos.
84
Trisa dobrou os joelhos e se encolheu. Depois se levantou.
Puxou os cabelos ruivos, esticou as costas e ergueu o pescoço.
Os olhos reviraram, sem saber para onde olhar. Não tinha para
onde olhar.
85
Anoiteceu.
86
Apurou os ouvidos e conseguiu discernir a presença do
visitante a poucos metros dali. Ele ou ela caminhava sem
tentar disfarçar o barulho, e estava se afastando. Resolveu
seguir os sons.
87
cenário em um espetáculo de cor que era capaz de acalentar
até mesmo o mais angustiado coração.
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Não viu ninguém.
Continuou avançando.
Estranho.
Mais um passo.
— Gaby?
89
Depois disso, outra cabecinha surgiu, junto com um novo
par de olhinhos brilhando em sua direção.
— Eu sabia.
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Levantou-se em um salto e virou a cabeça na direção da
voz.
Era ele.
— Krëff?
— Surpresa?
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boca, aberta em um sorriso cínico, não conseguia desfazer a
má impressão.
— E-era, eu…
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— Sim! Você sabe como eu sofri ao me separar deles.
93
— EU te salvei, não te salvei? Não foi o suficiente para
acreditar em mim?
— Me d-desculpa, Triss.
— Desculpo!
— Cinzinha…
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Nessa hora, Krëff se virou, e o horror tomou conta da
humana.
— K-krëff! O q-que…
— O q-quê?
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Trisa respirou fundo algumas vezes, e então percebeu que
estava de fato com os olhos fechados. Forçou a abri-los, e foi
agraciada pelo rosto sereno do garnaziano à sua frente.
Diferente da visão terrível que tinha acabado de ter do amigo
desfigurado, aquele rosto estava intacto. Pele, carne e olhos em
seu devido estado de integridade.
— Quero, obrigada!
— É… sonhei.
— Quer me contar?
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— O que foi, criança? — Myimora voltou a se aproximar
dela, pousando a mão em seu ombro.
— Está bem. Disse que sonhou com Krëff. Algo ruim tinha
acontecido com ele?
97
— Eu tinha voltado ao Cânion dos Decadentes. Eu queria
tentar pegar meus bichinhos de volta, sabe? Eles eram a minha
única companhia lá embaixo.
— Sei.
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sofrimento que estava passando, mas outra estava curiosa
demais:
— Por quê?
— Como assim?
— O Krëff do seu sonho não era o meu filho. Não era o seu
amigo. Era você, não percebeu? É claro que você não é egoísta!
Sua mente está tão preocupada com ele que não consegue nem
descansar durante a noite.
99
O sorriso de Myimora se apagou um pouco. Aquela era
uma dor impossível de apaziguar. Mas, de alguma forma, ele
conseguiu encontrar um jeito de confortá-la:
— Sério? Hahaha!
100
coração foi se acalmando, e as imagens do terrível pesadelo
foram desaparecendo.
101
Deixe-me explicar o motivo: acho que toda pessoa que já teve um
bichinho de estimação já teve um pesadelo onde é obrigado a deixá-lo
para trás. Por exemplo, pode ser um sonho onde a casa está pegando
fogo, e você se vê buscando seu gatinho ou cachorrinho, desesperado, até
acordar suando e descobrir que foi tudo um pesadelo.
Isso é algo muito real, fácil de se conectar. E é muito triste, pois os pets
são, na maioria das vezes, indefesos, precisam da gente. Por esse
motivo, eu acho que a sua cena de despedida dos ratonges atinge em
cheio o coração do leitor.
Claro que tem outras cenas tristes, como a morte de entes queridos, a
morte de personagens importantes, mas sei lá… deixar os bichinhos
pra trás foi algo que me pegou, e foi por isso que eu resolvi retomar o
assunto em minha homenagem.
E caso não tenha percebido, isso é um elogio. Sinal de que sua obra foi
capaz de me emocionar a ponto de deixar esse incômodo preso na
garganta.
Mas claro que eu não quis alterar os acontecimentos, então, fazendo uso
do bom e velho clichê de "era tudo um sonho", eu deixei seu cânone
relativamente intacto.E aí também aproveitei para explorar a ideia do
pesadelo que eu citei ali em cima.
102
"figlarm-hernit'opteronte", como uma caricatura escrachada da sua
criatividade com as nomenclaturas. Talvez (só talvez) eu tenha
passado dos limites um pouquinho (só um pouquinho). Mas numa
fanfic a gente tem todo direito de fazer o que quiser, não é mesmo?
Espero que leve a brincadeira numa boa, pois foi feita num espírito
verdadeiramente de elogio. Sua criatividade é ímpar.
103
sua razão de ser, e isso não é uma crítica, e sim uma constatação. Mas,
pra mim, a Trisa ganhou um destaque tão grande que eu fiquei com
muita vontade de mergulhar um pouco mais no mundo dela. Essa é
uma das razões para que ela se tornasse a protagonista da minha
história. Eu queria tentar descobrir mais da essência dela, porque ela
não é só a amiga do Krëff. Ela passou um baita de um perrengue (dez
anos no cânion), se tornou uma guerreira temida, se sentiu traída,
depois se juntou ao ex-amigo (que voltou a ser amigo), e conseguiu sua
liberdade. Com certeza ela saiu dessa experiência completamente
transformada em relação ao que era antes.
E aqui eu preciso explorar um pouco mais sobre o que foi que eu tentei
fazer. Myimora, em sua infinita sabedoria e paciência, dá uma
explicação que resume muito bem onde é que a nossa pequena humana
está, em termos de estado mental. Mas eu vou complementar a
explicação.
104
Quando Trisa, no sonho, pensa "só" nos seus bichinhos, e Krëff aparece
cobrando-a pelo abandono, os papéis se invertem. Agora é ela, Trisa,
quem é acusada de abandonar o amigo. E assim como o Krëff da vida
real, a Trisa do sonho de fato não tinha culpa nenhuma. Como ela ia
saber que Krëff tava ali? A cobrança é injusta.
A fala final repete uma que você colocou no seu próprio texto: "vocês são
tudo o que tenho!". Originalmente, ela se referia aos ratonges, apenas.
Aqui, ela incluiu Krëff, simbolizando a transformação causada pelo
sonho.
105
mostrando que ela não é "só uma coadjuvante" que existe apenas para
existir ao lado dele. Aliás, é justamente esse o tema das dores que ela
experimenta, aqui.
E no fim, temos Myimora. Ele está com Trisa (até onde sabemos)
depois dos acontecimentos de Ecos, então achei que fazia sentido ele
desempenhar o papel paterno com ela também. O jeito como ele conta
alguns podres de Krëff foi a forma que encontrei para mostrar que ele
pode ser austero, como pai, mas também é, no final das contas, repleto
de amor e admiração pelo filho. O tema do pai que cobra demais é
abordado na sua obra, e é muito satisfatório quando Krëff recebe o
respeito do pai. Acho que você fez isso muito bem, e por esse motivo aqui
eu já parti desse Myimora do final do livro, ao invés do pai brabo do
começo.
106
claro que as luas nunca se encontram no céu. Não sei se isso pode
acontecer. Aí, na minha história, eu mostraria as duas juntas, e isso
seria um sinal de que é tudo um sonho, que foge da realidade. Mais
uma pista plantada pelo subconsciente de Trisa.
Mas como eu não sei a dinâmica das órbitas, e também não sei se você
planeja algum acontecimento especial associado ao alinhamento das
luas, achei melhor não entrar nesse mérito.
107
Encontro a cinco
Era noite, e estava frio, por causa da chuva fina que caía.
Mas mesmo assim, ela decidiu não entrar, pois ainda não
era a hora combinada.
Agora, quatro.
Três.
"Ora, tanto faz a hora! Acha que isso vai mudar o quê?
Apenas entre, sente-se com sua bunda gorda em frente ao cara
e veja se não coloca tudo a perder!"
"Tá bom…"
108
chão até ficar ao lado dele. Passou a mão na orelha apenas para
prender os dois fios de cabelo que tinham escapado e deixou
escapar o ar junto com a voz sussurrada:
— Bruno?
— Obrigada.
109
— Não, nunca.
"Por quê?"
— … as contas?
"Ih, é pobre!"
110
"Pareceu uma pergunta honesta."
"Pergunta de pobre."
"Que mentiroso!"
Mariana enrubesceu.
— Obrigada.
"Que fofo!"
Um silêncio se fez.
"E aí?"
111
"Você não vai dizer o mesmo pra ele? Acabou de concordar
que tem que falar. Se não falar que ele é bonito, vai pegar mal!"
"Hahahahaha! Demorou!"
"Ficou! Hahahaha!"
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— Vamos!
"Ele é lindo!"
"…"
"Não foi?"
"F-foi…"
— Obrigada.
113
"Mas o quê? O quê?"
Bruno acrescentou:
— Uhum.
30
35
50
114
"Pede logo!"
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"Tá só querendo te deixar mais à vontade. Ninguém é
idiota de escolher um prato só pelo preço."
— O quê?
— Ah…
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"Ih, fudeu!"
"Muita gente."
— Eu também!
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"Merda! Mas calma, ainda tem conserto."
Silêncio.
"Shhh!"
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"Você inventou tudo, só pra atrai-lo!"
"Shhhhhhh!"
"Só para…"
"Vou arriscar!"
"Isso, garota!"
"Eca, sua mão tá toda molhada! Ele vai ficar com nojo!"
E ela sorriu.
119
— Bem, acho melhor a gente pedir — disse Bruno, tirando
a mão dali e voltando a segurar o cardápio. — Eu também vou
querer o de trinta e cinco. — Ele piscou para ela mais uma vez
e sorriu, com covinhas e tudo.
"Sangue?"
"Sangue!"
"Sangue!"
"Não, de suor!"
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"Mas eu não sei o que é!"
— Quero o mesmo!
— Eu também.
"Para de repetir isso, toda hora! Que saco! Você não sabe
falar outra coisa, não?"
"D-desculpa!"
— Fala, Mari.
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"Shhh, ele gosta de mim!"
Ela falou:
— Então… eu desisti.
"Hahahahahaha!"
"Hahahahahaha!"
"Hahahahahaha!"
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— Obrigada.
"Shhhhh!"
"Isso, deixa ele falar, assim não tem como você fazer
merda!"
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"Ele vai estar amarrado, mesmo. Senta em cima dele, e
obriga ele a te lamber."
— Sim?
"Ao banheiro."
— Preciso ir ao banheiro.
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"Não quer o quê?"
"Não vou!"
"C-carro?"
"Vai sim. Ele vai te levar até a sua casa, e aí nós teremos o
encontro de verdade. Só nós quatro."
"Nós q-quatro?"
— Não!
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Mariana levantou a mão.
"Não!"
"N-não c-consigo!"
126
"N-não, não, não, ele não! Vamos pegar outro. Ele, não."
Nenhuma resposta.
"Sim."
"Sim."
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"Pode ser. Eu tenho um martelo na caixa de ferramentas."
"Onde?"
"Nas bolas!"
"E eu vou tapar bem a boca dele, para ele não gritar!"
"Gosta, sim."
"E depois?"
"Tá bom."
"Tá bom."
128
Mariana tirou da bolsa uma pequena esponja de
maquiagem, ajeitou um pouco da base perto do olho e saiu do
banheiro.
"Excelente! Excelente!"
129
"Bravo!"
"Isso!"
"Safada!"
130
O caminho até a casa dela foi repleto de conversas, piadas
e olhares demorados. Certa hora, Mariana deixou a mão
escorregar para a coxa dele.
— Relaxa!
"Está quase!"
O elevador chegou.
131
Ela entrou primeiro, balançando os quadris.
Bruno se aproximou.
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"É nada! Você é podre!"
"Já deu, agora bora pro quarto amarrar esse cara aí!"
"Ei…"
133
"Vai jogá-lo? E o nosso plano? E o martelo nas bolas?"
— Bruno…
— Sim, Mari?
134
Enquanto caía, Mariana ainda conseguiu ter um último
vislumbre do homem na sacada. Ele estava com o rosto
assustado, sem entender o que estava acontecendo. Quando a
pancada nas costas esmigalhou todos os seus ossos, ainda
conseguiu contemplar seu belo rosto uma última vez.
A visão escureceu.
Vermelho-sangue.
"POR QUÊ? Por que fez isso, por… que… fez… iss…"
Tudo preto.
"Ele… não!"
O homenageado é o…
135
Morfeu!
Não por acaso, é esse o tema que eu tentei abordar no meu pequeno
conto "morfético". Consciente versus subconsciente versus inconsciente.
Mas calma que já falo disso daqui a pouco.
136
Você escreve sem um pingo de vergonha ou receio do impacto que causa.
Simplesmente "bota pra fora". Não sei se é assim de verdade, talvez
tenham milhões de ideias enrustidas aí dentro (se tiver, tenho um medo
genuíno delas) mas pra mim é assim que parece.
Em meu conto, não vou dizer que tentei imitar esse estilo. Aliás, eu
certamente não tentaria imitá-lo, pois acho que você tem uma
particularidade muito grande, que o torna inimitável. Mas eu escrevi
pensando nos seus escritos, e aí saiu isso daqui.
Eu acho que o meu conto não tem, no final das contas, muito a ver com
a essência da sua obra. Ele é muito mais meu do que seu, julgo,
principalmente nos diálogos mais simplórios, e o final bastante óbvio e
direto, quase um final feliz. Também não acho que meu conto deixa
uma sementinha muito duradoura ou complexa de se digerir, como
você faz, e nem causa repulsa muito forte.
Respondo.
137
da personagem Mariana, uma entidade à parte, que comanda,
denigre, humilha e exalta. Faz parte dela, mas também não faz,
porque são, efetivamente, duas consciências separadas (pelo menos é
isso que eu tento ilustrar). Sua obra, Crisálida, traz um conceito
semelhante, e é a referência mais óbvia aqui, inclusive a cena do
espelho no banheiro, copiada descaradamente (mas que chamarei de
"referência", pois é mais aceitável).
Meu conto também termina em morte, mas essa é uma das coisas mais
óbvias que se pode afirmar sobre os escritos de Morfeu. Já matei
personagens antes, então não posso dizer que foi somente por
influência sua. Além disso, a morte aqui tem um propósito de sacrifício,
para chegar ao "final feliz", o que difere um pouco do tom
majoritariamente negativo dos destinos das suas personagens. Mas
mortes violentas e Morfeu são indissociáveis, então não tem como eu
deixar de mencionar isso.
138
texto. Se eu não tivesse escrito com a cabeça em sua obra1, eu acho que
nunca escreveria nada parecido. Então acho que, no fundo, esse conto é
muito mais um presente seu para mim do que o contrário. Valeu!
1
Uma curiosidade aqui: eu escrevi ele com letra branca contra
fundo preto, para entrar na sua "vibe" kkkkkkkk. Mudei a cor apenas
depois de pronto.
139
demônio; 3. Mari externa, que conversa com o mundo; e 4. Bruno, a
vítima.
O que o título sugere é que existe uma outra Mariana, adormecida, ali
dentro, e que é capaz de controlar as rédeas daquela pessoa dividida.
Essa terceira personalidade (ou quarta voz, se contar a que fala para o
mundo), conseguiu se esgueirar pelo porão da mente, e tomar o controle
da segunda personalidade. Isso acontece, de maneira bem sutil, na
cena do banheiro. A partir dali, é a outra que passa a comandar o jogo.
Ela não fica em primeiro plano, é claro. Permanece ali, enganando o
demônio com maestria, até o momento certo de agir.
E o demônio, faminto e movido pelo desejo, não percebe a troca até que
seja tarde demais.
O amor!
Espero que tenha gostado. Como eu disse, não é nada muito profundo,
nem nada muito elaborado, nem chegou minimamente perto da
140
qualidade da sua escrita, mas foi movido por inspiração e admiração
sinceras.
141
Medo da chuva
— Ah, perfeito!
142
também não ajudava com os detalhes. Mesmo assim, a
imagem que se formou foi suficiente para enchê-la da mais
profunda tristeza.
143
alguma dimensão paralela e molhada que se sobrepunha
àquela realidade.
144
Era um castigo injusto para quem já tinha sofrido tanto
para chegar até ali.
145
propósito. Tinha aprendido a produzir fogo esfregando-os um
contra o outro. Não era fácil, mas a prática tinha levado à
consistência.
146
A luz ajudou-a a localizar as raízes estocadas em uma
prateleira perto da parede, assim como uma panela velha,
cheia de sujeira incrustada. Jogou as raízes na panela, depois
foi pegar um pouco de água de uma garrafa de vidro onde
coletava chuva. Estava suja, mas como iria ferver, não
importava muito. Porém, na ânsia de começar logo o preparo,
não calculou direito os movimentos e acabou derrubando a
garrafa no chão.
— Não!
147
não chovia, e a chance de voltar com as mãos abanando era
grande.
Carne humana.
148
Os olhares se cruzariam por um breve instante, para em
seguida serem recolhidos ao nada.
149
aquele planeta. O brilho cálido que iluminava as noites vinha
do orbe que vagava no céu.
O olho de Deus.
150
Caminhou o mais rápido que conseguia, tomando cuidado
para não derrubar a garrafa e tentando manter as mãos
abertas para captar o máximo de água possível.
151
Um relâmpago piscou, revelando a sua figura contra o céu
nublado. Estava no topo de um sobrado, com as pernas
penduradas para fora da laje arruinada. Balançava-as como
uma criança num parquinho, enquanto cantava a plenos
pulmões. Amilia não conseguiu evitar que um sorriso tomasse
conta de seus lábios.
152
pouco controle sobre suas pernas. Pareciam embriagados,
sedentos por alguma coisa.
153
— Ei! Estão com f-fome?
— Está grávida?
154
ou saliva, Amilia não soube dizer, mas era óbvio que sofria com
uma fome que nunca havia sentido antes. Um desejo animal,
visceral, repleto de novidade, que tomou conta de todos os
seus sentidos, ao ponto de — assim torcia Amilia — nublar seu
julgamento.
155
nuvens de uma determinada porção da abóbada celeste. No
centro do vazio que se formou, um enorme olho se
materializou.
— Amiliaaaa…
156
Congelava sua pele com uma frieza dura. Amilia podia jurar
que suas roupas tinham desaparecido instantaneamente, pois
se sentia tão nua quanto os canibais que a perseguiam.
157
sentiu todo seu corpo evaporando à medida que Deus a
mantinha sob seu foco.
158
Cruzou os braços para se proteger um pouco do frio e
caminhou, cansada, pelas ruas da cidade fantasma.
— Amy?
— Tchê! Oi.
159
— Ah é… eu tava…
— … cantando. Eu ouvi.
160
— É tudo na mesma toada, de tristeza. O meu favorito é
um assim: "Aprendi o segredo da vida vendo as pedras que
choram sozinhas no mesmo lugar".
— O quê?
161
mãos no bolso. Assim que ele as tirasse dali, ela poderia
estender sua mão em direção a ele e…
Chester respondeu:
— Não.
162
Um silêncio se ergueu entre os dois como um muro
intransponível.
— Até.
A chuva parou.
163
E nem Chester.
164
E o último conto, que encerra essa coletânea peculiar, é a minha singela
homenagem ao livro "O Túmulo dos Ingratos", de autoria de
Gui(lhe/ve)rme Almeida Pereira. Já deixo aqui o convite, para quem
não conhece a obra, que o faça! Prepare-se para uma jornada sem
igual. Os elementos fantásticos que eu trouxe aqui são apenas uma
pequena porção da riqueza criativa que permeia o manuscrito
original. Vale muito a pena, e não só para saber o que foi que o destino
reservou para Amy e Tchê.
Mas vamos lá, a uma breve "explicação" sobre meu conto. A partir de
agora me dirijo a você, caro Guiverme.
165
olho de Necro flutuando no céu. O terror que Amilia sente ao vê-lo, e
que a derruba, literalmente, no chão, é um resumo de tudo isso que eu
falei. Na época em que a história se passa, eu acho que ela não sabia do
que se tratava, portanto achava que era Deus, o que torna tudo ainda
pior, já que, em tese, Deus era para trazer conforto aos aflitos. E é
justamente o oposto que acontece, e isso aumenta a sensação de solidão
e abandono.
166
referência ao Barão Vermelho, achei que não tinha muita distância ao
Raul (é tudo Rock Nacional anos 70-80), então fui em frente.
No conto, a música serve como base para o motivo pelo qual Amilia e
Chester não chegaram a namorar quando se conheceram. Isso é
mencionado na obra original, mas não é explicado. Tomei a liberdade
de fazê-lo aqui, espero que me perdoe a intromissão.
167
desmotivada, não é isso. Mas não existe um evento traumático que o
empurrou para seu destino cruel. Foi algo que ele mesmo (em sua
cabeça) escolheu fazer, e isso só aumenta seu sentimento de remorso.
Por último, eu quis trazer para a obra um lado não visto de Amilia. Eu
talvez tenha dito, em alguma das minhas resenhas, que Amilia era
"um saco de batatas inútil". Não me lembro direito, mas
aparentemente eu poderia ter tido um pouco mais de tato no feedback.
Pois bem, aqui eu tento me redimir. No final das contas, com a obra
completa, principalmente a trajetória final dela como mãe, mudou
completamente minha visão. E eu quis demonstrar que, por mais que a
minha impressão dela fosse a de uma menina inofensiva e passiva, ela
tinha sim seus momentos de bravura, apenas não apareceram na
história original. E pensando bem, isso é bastante óbvio! Como ela
teria sobrevivido num planeta como aquele se não fosse assim?
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É mais ou menos por isso que eu trouxe uma história onde Amy salva a
vida de Tchê. Ele nunca soube disso, é claro, pois ela não é de ficar se
gabando das proezas que faz. Mas ela o fez, de seu jeitinho delicado e
feminino, repleto de força e determinação.
Sim, Chester, você deve (uma de suas vidas, pelo menos) à sua amada
Amilia.
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