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H istó r ic o s

W a rren W. W ie r sb e
C o m e n t á r io B íb lic o
E x p o sit iv o

Antigo Testamento
Volume II —Histórico

W arren W. W iersbe

T r a d u z id o p o r
S u s a n a E. K la sse n

1 * Edição
4 a Impressão

Geográfica
Santo André, SP - Brasil
2009
S u m á r io

J o s u é ....................................................................................07

J uízes....................................................................................89

Rute................................................................................... 172

1 Samuel.............................................................................199

2 Samuel / 1 Crônicas...................................................... 293

1 R eis ................................................................................391

2 Reis / 2 Crônicas........................................................... 491

Esdras................................................................................ 586

N eem ias .............................................................................. 614

E ster ...................................................................................689
2 S am uel e 1 C r ô n ic a s

ESBOÇO ESBOÇO
Tema-chave: O poder de Deus restaura Descendência: a genealogia das doze
Israel como nação tribos - 1 - 9
Versículo-chave: 2 Samuel 22:29-31 Unidade: a nação é reunida - 10 - 16
Dinastia: a aliança de Deus com Davi - 17
I. DAVI UNE O POVO - 1 - 7 Vitória: as fronteiras são expandidas -
1. Um novo rei - 1:1 - 5:5 18 - 21
2. Uma nova capital - 5:6 - 6:23 Eficiência: a nação é organizada - 22 - 29
3. Uma nova dinastia - 7:1-29
I. O MINISTÉRIO NO TEMPLO -
II. DAVI EXPANDE AS FRONTEIRAS 22 - 26; 28:1 - 29:20
- 8:1 - 10:19
1. Derrota os inimigos de Israel - II. O EXÉRCITO - 27
8:1-14; 10:1-19
2. Organiza o reino - 8:15-18 III. O HERDEIRO DO TRONO -
3. Honra Mefibosete - 9:1-13 28 - 29

III. DAVI DESOBEDECE AO SENHOR CONTEÚDO


- 11:1 -2 0 :2 6 1. Davi, o rei de Judá
1. Os pecados de Davi -11:1 - 12:31 (2 Sm 1:1 - 2:7; 1 Cr 10:1-12).......... 295
2. Os pecados de Amnom - 13:1-22 2. Davi observa e espera
3. Os pecados de Absalão - 13:23 - 19:8 (2 Sm 2:8-4:12).............................. 301
4. O retorno de Davi a Jerusalém - 3. Davi, o rei de Israel (2 Sm5 - 6 ;
19:9 - 20:26 1 Cr3:4-8; 11:1-9; 13:5 -16:3)....... 308
4. A dinastia, a bondade e as
IV. DAVI ENCERRA SEU REINADO conquistas de Davi (2 Sm 7 - 10;
- 21:1 - 24:25 1 Cr 17 - 19)........................ 315
1. A demonstração de respeito por Saul - 5. A desobediência, a dissimulação
21:1-14 e a disciplina de Davi
2. A derrota dos filisteus -21:1 5-22 (2 Sm 11 - 12)..................................325
3. O louvor ao Senhor - 22:1 - 23:7 6. Os filhos rebeldes de Davi
4. A honra a seus valentes - 23:8-38 (2 Sm 13 - 14)..................................334
5. A compra de um local para o templo - 7. A fuga de Davipara o deserto
24:1-15 (2 Sm 15:1 -16:14)..........................342
294 2 SAMUEL

8. A vitória doce e amarga de Davi 1 1 . 0 cântico de vitória de Davi


(2 Sm 16:15 - 18:33)........................350 (2 Sm 22; SM 8)................................367
9. O retorno de Davi e dos 12. As memórias e os erros de Davi
problemas (2 Sm 19:1-40)................ 357 (2 Sm 23 - 24; 1 Cr 11:10-41;
10. As novas lutas de Davi 21:1-26)...........................................373
(2 Sm 19:41 - 21:22; 13. O legado de Davi
1 Cr 20:4-8)......................... 362 (1 Cr 22 -29).................................. 382
J no monte Gilboa, onde mataram Saul e três
dos seus filhos (1 Sm 31; 1 Cr 10:1-12). No
dia seguinte, quando Davi voltava para
Ziclague, os filisteus humilhavam Saul ao
D a v i, o R ei de J udá profanar o corpo do rei e de seus filhos, e o
mensageiro amalequita partia para dar a
2 S amuel 1:1 - 2:7 notícia a Davi. O amalequita levou pelo
(V er 1 C rônícas 10: 1- 12) menos três dias para chegar a Ziclague, que
ficava a quase trinta quilômetros do local da
batalha. Assim, no terceiro dia depois de sua
volta a Ziclague, Davi recebeu as notícias
trágicas de que Israel havia sido derrotado e
urante dez anos, Davi foi um exilado
D
de que Saul e três dos seus filhos estavam
com a cabeça a prêmio, fugindo de mortos.1
Saul e esperando o momento em que Deus As Escrituras apresentam três relatos da
o colocaria no trono de Israel. Durante esse morte de Saul e de seus filhos: 1 Samuel 31:1­
período difícil, Davi cresceu em sua fé e em 13, o relato do mensageiro em 2 Samuel
seu caráter piedoso, e Deus o preparou para 1:1-10 e o registro em 1 Crônicas 10:1-14.
o trabalho do qual o havia incumbido. Quan­ De acordo com 1 Crônicas 10:4,5, Saul co­
do o dia da vitória chegou, Davi teve o cui­ meteu suicídio lançando-se sobre sua espa­
dado de não se impor ao povo, uma vez da, mas o mensageiro afirmou que matara
que muitos ainda eram leais à casa de Saul. Saul a fim de salvá-lo de mais sofrimento e
Não podemos deixar de admirar Davi por humilhação. 1 Crônicas 10:14 informa que
sua paciência e sabedoria ao conquistar a foi Deus quem matou Saul por sua rebelião,
afeição e a fidelidade do povo e ao procurar especialmente ao pecar buscando a orien­
unificar uma nação despedaçada usando tação de uma médium. Som ente com
uma abordagem cautelosa. "E ele os apas­ grande dificuldade consegue-se conciliar os
centou consoante a integridade do seu co­ relatos de 1 Samuel 31 e de 1 Crônicas 10
ração e os dirigiu com mãos precavidas" (SI com o relato do mensageiro, de modo que
78:72). o mais provável é que o amalequita estives­
se mentindo.
1. V i n d ic a ç ã o (2 S m 1:1-16) Sem dúvida alguma, o homem havia es­
O Senhor impediu Davi e seus homens de tado no campo de batalha. Enquanto pro­
ajudarem os filisteus em sua batalha contra curava despojos, encontrou o corpo de Saul
Saul e Israel, de modo que Davi voltou para e de seus filhos antes que os filisteus os iden­
Ziclague. Chegando lá, descobriu que os tificassem e tomou as insígnias de realeza
amalequitas haviam invadido a cidade, leva­ de Saul, seu bracelete e a coroa de ouro
do todo o povo e as riquezas e deixado que usava no capacete. Mas, ao contrário
Ziclague arruinada. Em sua providência, do que afirmou o amalequita, não foi ele
Deus conduziu Davi ao acampamento ama- quem matou Saul, pois o rei e seus filhos já
lequita. Davi derrotou o inimigo, libertou as estavam mortos. Ao dizer que o havia feito,
mulheres e as crianças e resgatou todos os o mensageiro perdeu a própria vida.2
bens da cidade, bem como os despojos que Uma das palavras-chave neste capítulo
os amalequitas haviam juntado em seus ata­ é o verbo ca/r, encontrado nos versículos 4,
ques. Voltou, em seguida, para Ziclague e 10, 12, 19 e 27. Quando Saul começou a
esperou notícias do campo de batalha (1 Sm carreira de rei, foi descrito como um homem
29 - 30). alto, que "sobressaía a todo o povo" (1 Sm
Um mensageiro dissimulado (vv. 1-10). 9:2; ver 1 Sm 10:23 e 16:7), mas acabou
Enquanto Davi exterminava os amalequitas, como um rei caído. Caiu estendido por ter­
os filisteus subjugavam Saul e seu exército ra na casa da médium (1 Sm 28:20) e caiu
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no campo de batalha diante do inimigo (1 Sm mensageiro e concluiu que ele merecia


31:4). Davi humilhou-se diante de Deus, e o morrer. Caso o relato dele fosse verdadeiro,
Senhor o exaltou, porém o orgulho e a re­ o homem havia assassinado o rei ungido de
belião de Saul o conduziram a um triste fim. Deus e deveria, portanto, ser morto. Caso
"Aquele, pois, que pensa estar em pé veja seu relato não fosse verdadeiro, o fato de o
que não caia" (1 Co 10:12).3 Saul foi ungido amalequita inventar uma história sobre ter
rei na aurora de um novo dia (1 Sm 9:26, executado o rei revelava seu coração per­
27), mas escolheu caminhar em trevas (28:8) verso. "Por tua própria boca te condenarei"
e desobedecer à vontade de Deus. (Lc 19:22). Os israelitas haviam recebido a
Um acampamento entristecido (vv. 11, ordem de exterminar os amalequitas (Êx
12). O mensageiro amalequita deve ter fica­ 17:8-16; Dt 25:17-19), de modo que, quan­
do espantado e, depois, amedrontado ao ver do Davi ordenou que o mensageiro fosse
Davi e seus homens rasgando as vestes e executado, estava simplesmente obedecen­
pranteando a morte de Saul. Havia pensado do ao Senhor, algo que Saul não havia feito
que todos em Ziclague se alegrariam ao (1 Sm 15).
ouvir a notícia da morte de Saul, sabendo Ao executar o mensageiro, o futuro rei
que isso significava o fim de seus dias peri­ de Israel vindicou Saul e seus filhos e de­
gosos como fugitivos. Provavelmente, espe­ monstrou publicamente que não havia
rava alguma recompensa por ser o portador considerado Saul seu inimigo. Foi um gesto
de uma notícia tão boa, mas é evidente que perigoso, pois Davi e seus homens viviam
não conhecia o coração de Davi. Aos olhos em território filisteu, e o rei filisteu ainda pen­
de Davi, em momento algum Saul havia sido sava que Davi era seu amigo e aliado. Essa
seu inimigo (2 Sm 22:1), e em duas ocasiões, postura de Davi em favor do rei morto de
quando Davi poderia ter matado Saul, dei­ Israel poderia ser considerada um ato de trai­
xou claro que jamais iria ferir o ungido do ção. Porém, o Senhor havia vindicado Davi
Senhor (1 Sm 24:1-7; 26:1-11). e este, por sua vez, havia vindicado Saul e
O mensageiro afirmou que era amale­ não teve medo. Ao ser relatada ao povo de
quita, filho de um estrangeiro que vivia em Israel, a conduta de Davi e de seu acampa­
Israel (2 Sm 1:13). Mas, se estivesse mesmo mento ajudaria a convencer os israelitas de
vivendo na terra de Israel, saberia que o rei que Davi era, de fato, o homem escolhido
dessa nação era o ungido do Senhor. Se um por Deus para ser seu rei.
israelita fiel tivesse encontrado os quatro
corpos, teria procurado escondê-los e 2. Lamentação (2 Sm 1:17-27)
protegê-los dos filisteus, mas os amalequitas A tristeza de Davi pela morte de Saul e de
eram inimigos de Israel, exatamente o povo Jônatas foi sincera, e a fim de ajudar o povo
que Saul deveria ter eliminado (1 Sm 15). É a lembrar-se dos dois, Davi escreveu uma
bem provável que o mensageiro fosse, de elegia comovente em homenagem a eles.
fato, um amalequita, mas que não vivia em Ordenou que seu lamento fosse ensinado e
Israel. Ao que parece, ganhava a vida seguin­ entoado em sua tribo ancestral de Judá e,
do o acampamento filisteu e procurando sem dúvida, o povo de outras tribos tam­
restos de despojos depois das batalhas. Ao bém aprendeu e estimou essas palavras. Os
afirmar ser filho de um estrangeiro que vivia orientais não se envergonham de demons­
em Israel, estava reivindicando certos pri­ trar suas emoções e, com freqüência, seus
vilégios especificados na lei de Moisés, poetas escrevem cânticos para ajudá-los a
privilégios estes que certamente ele não me­ comemorar tanto experiências alegres quan­
recia (Êx 22:21; 23:9; Lv 19:33; 24:22; Dt to dolorosas. Moisés ensinou a Israel um
24:17). cântico sobre a apostasia (Dt 32), e, em vá­
Um julgam ento ju sto (vv. 13-16). rias ocasiões, os profetas escreveram can­
Quando o período de pranto encerrou, no tos fúnebres para anunciar um julgamento
final do dia, Davi continuou interrogando o iminente (Is 14:12ss; Ez 27:1ss; 28:11-19).
2 S A M U E L 1:1 - 2:7 297

Esse lamento ficou conhecido como "O usavam óleo sobre seus escudos de couro
Cântico do Arco" (v. 18)4 e encontrava-se para conservá-los, mas o rei também era o
registrado no Livro dos Justos (Js 10:12, 13), líder de Deus, ungido com óleo. Saul e seus
uma coletânea de poemas e de cânticos que três filhos haviam perdido seus escudos e a
comemorava acontecimentos importantes vida, e seus escudos haviam sido profana­
da história de Israel. O tema principal dessa dos com sangue.
elegia é "Como caíram os valentes!" (vv. 19, Davi exalta Saul e Jônatas (vv. 22, 23).
25, 27), e a ênfase recai sobre a grandeza Esta parte constitui o cerne do cântico, re­
de Saul e de Jônatas mesmo na derrota e na tratando Saul e Jônatas como guerreiros vi­
morte. Davi proclamou sua destreza e bra­ toriosos. As setas de Jônatas acertaram seu
vura bem como sua disposição de entregar alvo, e a espada de Saul "não voltou vazia".6
a vida por seu país. Assim como em Hebreus Foram rápidos como águias (Dt 28:49) e
11,o cântico não traz qualquer registro dos fortes como leões (2 Sm 17:10). Para Davi,
pecados ou dos erros na vida de Saul e de porém, esses homens não foram apenas
Jônatas. excelentes soldados, mas também homens
Davi se dirige ao povo de Israel (vv. 19, de benevolência, amados em vida e na mor­
20). Davi chama o rei morto e seu exército te e leais um ao outro e ao povo. Em sua
de "A tua glória, ó Israel" e de "valentes".5 reunião na casa da médium, Saul ficou
Não demonstraram grande poder ou glória sabendo que ele e seus filhos morreriam na­
na batalha em Gilboa, mas Saul ainda era o quele dia na batalha (1 Sm 28:19) e, no en­
líder escolhido de Deus, e seus soldados ain­ tanto, entrou na peleja determinado a dar o
da eram tropas do Senhor dos Exércitos. máximo de si. Jônatas sabia que o pai havia
Nossa tendência é esquecer que Saul e seus desobedecido a Deus e pecado contra Davi,
homens haviam arriscado a vida a fim de mas, ainda assim, ficou ao lado dele na luta.
lutar e de vencer várias batalhas importan­ Apesar de o exército de Israel ter sido derro­
tes (1 Sm 14:47,48) e que as mulheres tado, Davi queria que o povo se lembrasse
israelitas cantavam: "Saul feriu os seus mi­ da grandeza do rei e de seus filhos.
lhares" (1 Sm 18:7). Davi instou com o povo Davi se dirige às filhas de Jerusalém
que não espalhassem a terrível notícia da (v. 24). Mesmo com suas imperfeições e
derrota de Israel, pois os filisteus cuidariam fracassos, durante seu reinado, Saul trouxe
disso. Gate era a capital da Filístia, onde os estabilidade à nação. As tribos haviam colo­
líderes se alegrariam com sua vitória, e cado de lado sua independência e concor­
Asquelom era o principal centro religioso, rência egoístas e lutavam juntas em prol de
onde o povo daria graças a seus ídolos por melhorias, inclusive em sua situação econô­
ajudar seu exército a derrotar Israel. mica. A combinação de fatores como as vi­
Davi se dirige às montanhas de Gilboa tórias de Saul sobre as nações inimigas, a
(v. 21). Trata-se do local onde a batalha foi maior segurança nas vilas e lavouras e a co­
travada e Saul foi derrotado (2 Sm 1:6; 1 Sm laboração entre as tribos cooperou para
28:4; 31:1). Davi orou para que Deus aban­ aumentar a riqueza de Israel. Ao que pare­
donasse tal lugar e não enviasse chuva nem ce, Davi descreve mulheres abastadas e seus
orvalho aos campos, nem desse colheitas luxos, retratando, talvez, esposas de oficiais
fartas aos lavradores da região, mesmo que do rei que havia visto quando serviu na cor­
isso significasse não haver ofertas de cereais te de Saul. "[Vestir-se] de rica escarlata" é
ao Senhor. Pediu que a criação de Deus se uma expressão conhecida que significa "des­
juntasse a ele em seu pranto pela derrota de frutar grande fortuna".
Israel e pela queda de seu rei. Em sua refe­ Davi fala de Jônatas, seu amigo queri­
rência ao escudo, Davi falava em termos li­ do (vv. 25, 26). É comum, em cânticos fú­
terais, metafóricos ou ambos? Saul carregava nebres, citar o nome do falecido e dirigir-se
um escudo, e o rei de Israel era comparado a ele. A expressão "meu irmão Jônatas" tem
a um escudo (SI 84:9; 89:18). Os guerreiros sentido duplo, pois Davi e Jônatas eram
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cunhados (Davi era casado com Mical, Davi era de Judá,7 de modo que a coisa
irmão de Jônatas) bem como amigos queri­ mais lógica a fazer era ir viver no meio do
dos que haviam feito uma aliança para divi­ próprio povo. Em qual cidade, porém, de­
dir o trono, tendo Davi como rei e Jônatas veria residir? Deus lhe deu permissão para
como segundo no poder (1 Sm 23:16-18). voltar a Judá e lhe disse para habitar em
A idéia de um tom homossexual na forma Hebrom, que ficava a cerca de quarenta
como Davi expressa seu afeto por Jônatas quilômetros de Ziclague. Ao mudar-se para
é uma distorção de suas palavras. Salomão lá, Davi havia voltado para seu povo, mas
descreve o amor entre marido e mulher ainda se encontrava à sombra dos filisteus.
como algo "forte como a morte" (Ct 8:6), e Hebrom era importante para a história de
a amizade entre Davi e Jônatas possuía essa Israel, pois próximo à essa cidade ficava o
mesma força. 1 Samuel 18:1 diz: "A alma local onde Abraão e Sara, Isaque e Rebeca
de Jônatas se ligou com a de Davi; e Jônatas e Jacó e Lia haviam sido sepultados. A cida­
o amou como à sua própria alma". Davi de situava-se dentro da herança de Calebe,
encerrou seu lamento repetindo o refrão um grande homem da história do povo de
comovente - "Como caíram os valentes!" Israel (Js 14:14). Abigail, uma das esposas
- e comparando Saul e Jônatas com armas de Davi, havia sido casada com um calebita,
de guerra perdidas, que não poderiam tor­ e Davi herdara a propriedade dele, que fica­
nar a ser usadas. va próxima ao deserto de Maom (1 Sm 25:2).
Ao compor e ensinar essa elegia, é pos­ E bem provável que Hebrom fosse a cidade
sível que Davi tivesse em mente vários pro­ mais importante da região Sul de Judá, de
pósitos. Em primeiro lugar, homenageou Saul modo que Davi mudou-se para lá com seus
e Jônatas e ensinou o povo a respeitar a homens, e eles foram viver nas cidades me­
monarquia. Uma vez que Saul foi o primei­ nores ao redor de Hebrom. Pela primeira vez
ro rei de Israel, o povo poderia concluir que em dez anos, Davi e seus valentes não eram
todos os reis subseqüentes seguiriam seu mais fugitivos. Seus homens haviam sofrido
mau exemplo, talvez até levando a nação à com ele e logo passariam a reinar com ele
ruína, de modo que Davi procurou forta­ (ver 2 Tm 2:12).
lecer o conceito de monarquia. O cântico Quando Davi assentou-se em Hebrom,
também deixou claro a todos que Davi não seu retorno a Judá foi o sinal para o povo
guardava qualquer rancor de seu sogro e so­ reconhecê-lo como seu líder, de modo que
berano. Por fim, Davi deu um exemplo a ser os anciãos de Judá ungiram Davi novamen­
seguido por todos nós ao oferecer um tri­ te e o proclamaram seu rei (ver 1 Sm
buto carinhoso àqueles que morreram na 16:13).8 Se Abner, capitão de Saul, também
batalha ao proteger sua pátria. tivesse aceitado a vontade de Deus e se
sujeitado a Davi, uma difícil guerra civil te­
3. C oroação (2 Sm 2:1-4a ) ria sido evitada. Porém, a lealdade ao anti­
Davi era o rei de Israel por direito e não podia go regime (Abner era sobrinho de Saul) e o
ficar em Ziclague, uma vez que a cidade desejo de proteger os próprios interesses
encontrava-se em território inimigo. E bem levaram Abner a lutar contra Davi em vez
provável que Aquis, o rei filisteu, acreditasse de segui-lo.
que Davi ainda se achava sob sua autorida­ Enquanto Davi vivia em Ziclague, volun­
de, mas Davi sabia que deveria voltar para tários das tribos de Benjamim, de Gade e
sua terra e começar a reinar sobre o próprio de Manassés haviam se juntado a ele (1 Cr
povo. Davi costumava buscar a vontade de 12:1-22), de modo que, não apenas Davi
Deus quando precisava tomar decisões e o possuía um exército enorme e experiente,
fazia pedindo a Abiatar que consultasse a como também contava com uma ampla re­
estola (1 Sm 23:9-12) ou pedindo a Gade presentação de algumas das outras tribos.
que orasse a Deus, solicitando uma palavra Em breve, Davi conquistaria a lealdade de
de sabedoria (22:5). todo o Israel.
2 S A M U E L 1:1 - 2:7 299

Em sua ascensão ao trono de Israel, Davi sentido noroeste e de atravessar o Jordão


ilustra a carreira de Jesus Cristo, o Filho de até chegar a Bete-Seã, em uma jornada de
Davi. Assim como o pastor Davi, Jesus veio, cerca de quarenta quilômetros, ida e volta.
antes de tudo, em forma de servo humilde e Foi uma missão corajosa, e Davi agradeceu
foi ungido rei longe dos olhos do público. a eles por sua dedicação a Saul e ao reino
Como Davi no exílio, Jesus é Rei nos dias de Israel. Demonstraram "humanidade", e o
de hoje, mas ainda não está reinando no Senhor usaria de "misericórdia e fidelidade"
trono de Davi. Assim como Saul nos tem­ para com eles. Vinte e cinco anos depois,
pos de Davi, hoje em dia, Satanás ainda tem Davi exumou os restos mortais de Saul e de
a liberdade de obstruir a obra do Senhor e seus filhos que morreram com ele e os se­
de opor-se ao povo de Deus. Um dia, Jesus pultou novamente em Benjamim, tribo de
voltará em glória, Satanás será capturado e origem da família de Saul (2 Sm 21:12-14).
Jesus governará em seu reino glorioso (Ap No entanto, Davi usou essa ocasião
19:11 - 20:6). Hoje, o povo de Deus ora como uma oportunidade para convidar os
fielmente: "Venha o teu reino" (Mt 6:10) e homens corajosos de Jabes-Cileade a apoiá-
espera com grande ansiedade a volta de lo. Haviam se mostrado valentes por Saul e
seu Rei. poderiam, portanto, ser valentes por Davi.
Davi estava com trinta anos de idade Alguns guerreiros de Cade já haviam se jun­
quando os anciãos de Judá o proclamaram tado ao exército de Davi enquanto ele se
rei e reinou em Hebrom durante sete anos encontrava em Ziclague (1 Cr 12:8-15), afir­
e meio (2 Sm 2:11). Que grande bênção para mando sua certeza de que ele era o rei
Judá ter um líder tão competente e piedoso! ungido de Deus. Infelizmente, o povo de
Jabes-Cileade não escolheu sujeitar-se a
4. R econhecimento (2 Sm 2:4b-7) Davi, mas sim seguir Abner e Isbosete, filho
Davi era um homem com o coração de um inexpressivo de Saul.
pastor que se preocupava com o seu povo O povo de Jabes-Cileade permitiu que
(ver 2 Sm 24:1 7), e um dos primeiros assun­ sua afeição por Saul o cegasse e não foi
tos dos quais tratou foi a sina de Saul e de capaz de enxergar o plano de Deus para
seus três filhos que morreram com ele. Quan­ sua nação. Tinham um bom motivo, mas
do perguntou aos líderes de Judá sobre o fizeram a escolha errada. Quantas vezes,
sepultamento da família real, estes lhe con­ na história da Igreja, o povo de Deus dei­
taram como os homens de Jabes-Cileade xou que a afeição humana e o reconheci­
haviam arriscado a vida para resgatar os mento prevalecessem sobre a vontade de
quatro corpos, queimar a carne mutilada e Deus! Jesus Cristo é o Rei e merece nossa
decomposta e, depois, sepultar seus ossos submissão, lealdade e obediência. Colocar
em Jabes (1 Sm 31:8-13). O povo de Ja- líderes humanos à frente do Rei ungido de
bes-Cileade se lembrou de como, muitos Deus é criar divisão e fraqueza no meio
anos atrás, Saul havia salvado sua cidade dos seguidores do Senhor e causar inúme­
(1 Sm 11). ros problemas para o povo do Senhor. Nas
Jabes-Cileade ficava do outro lado do rio palavras de Agostinho de Hipona: "Ou Je­
Jordão, na tribo de Cade, e os homens que sus Cristo é Senhor de tudo ou não é Se­
resgataram os corpos tiveram de viajar no nhor de coisa alguma".

1. É interessante que 1 Samuel registra a cena de um mensageiro transmitindo as más notícias da derrota ao sacerdote Eli (1 Sm 4),

e, nessa passagem, um mensageiro transmite ao rei Davi notícias que considera boas. Eli tombou para trás e morreu, porém,

nesse caso, o mensageiro é que foi morto. Em 1 Samuel, a arca foi tomada pelo inimigo, mas posteriormente foi recuperada

por Israel, enquanto aqui os corpos da família real é que foram levados e, mais tarde, recuperados e sepultados.
2. A morte de Saul nos lembra de Apocalipse 3:11: "Venho sem demora. Conserva o que tens, para que ninguém tome a

tua coroa".
300 2 S A M U E L 1:1 - 2:7

3. Saulo de Tarso, um homem cujo nome no original é o mesmo do rei Saul, começou seu ministério ao cair por terra (At 9:4;

22:7; 26:14), mas no final de sua vida, nós o vemos em pé e cheio de ousadia ao lado de seu Senhor (2 Tm 4:16, 17).

4. Algumas versões da Bíblia dão a impressão de que Davi escreveu esse cântico para incentivar os rapazes a aprenderem a usar

o arco, uma idéia que não encontra apoio no texto hebraico. É possível que essa elegia tenha sido chamada de "Cântico do

Arco" em função de uma referência ao arco de Jônatas no versículo 22. Esse nome identificava a melodia usada para entoar

o cântico. Por certo, Davi não estava incentivando os arqueiros a praticar mais porque Saul e Jônatas haviam sido derrotados

na batalha, pois esse cântico exalta a destreza militar dos dois homens.

5. O termo hebraico traduzido por "glória" também pode significar "gazela". Aos olhos de Davi, Saul era como uma gazela

majestosa abatida na montanha.

6. A metáfora da "espada que devora" (i.e., que bebe, consome) é bastante comum no Antigo Testamento (Dt 32:42; 2 Sm 2:26;

11:25; Is 31:8; Jr 12:12). A espada de Saul devorou muito sangue e foi saciada.

7. Tudo indica que, assim como cooperava com Saul e as outras tribos, naquela época, a tribo de Judá também mantinha uma

postura um tanto "separada" (ver 1 Sm 11:8; 15:4; 17:52; 18:16; 30:26).

8. Davi foi ungido três vezes: primeiro em particular por Samuel (1 Sm 16:13), depois publicamente pelos anciãos e pelo povo

de Judá (2 Sm 2:4) e, por fim, também publicamente pela nação toda (5:3).
2 devido tempo, descobriu que Davi era o rei
escolhido por Deus para Israel. Uma vez que
os soldados de Davi já eram comandados
por Joabe, o que seria de Abner quando Davi
D avi O bserva e E s pe r a subisse ao trono? Grande parte daquilo que
Abner fez durante esses sete anos e meio
2 S a m u e l 2 :8 - 4 :1 2 não foi para a glória de Deus nem para o
fortalecimento de Israel, mas sim para de­
fender interesses próprios. Estava cuidando
da pessoa mais importante do mundo: ele
mesmo.
Abner rejeita o reinado de Davi (w. 8­
omo disse Napoleão em seu leito de 11). O povo de Judá obedeceu à vontade
C morte: "Para governar, o importante
não é seguir uma teoria mais ou menos váli­
de Deus e ungiu Davi para reinar sobre eles.
Abner, porém, desobedeceu ao Senhor e
da, mas sim construir com a matéria-prima declarou Isbosete - o único filho de Saul
que se encontra à mão. Aquilo que é ine­ que havia sobrevivido - rei "sobre todo o
vitável deve ser aceito e transformado em Israel". Abner sabia que Davi era o escolhi­
vantagem". Se essa declaração é verdadei­ do de Deus, um líder competente e corajo­
ra, então Davi foi um líder extremamente so, mas deliberadamente se rebelou contra
eficaz nos sete anos e meio que reinou em o Senhor e nomeou Isbosete. Israel havia
Hebrom. Enquanto Joabe comandava o exér­ pedido um rei "como o têm todas as na­
cito de Judá, Davi observava e esperava, ções" (1 Sm 8:5), e, quando um rei morria,
sabendo que um dia o Senhor abriria cami­ as outras nações proclamavam o filho mais
nho para que reinasse sobre todo o Israel. velho do monarca como sucessor. Três dos
Deus havia chamado Davi não apenas para filhos de Saul haviam sido mortos em com­
ser rei, mas também pastor e líder espiritual bate, de modo que Isbosete era o único que
de seu povo. Davi teve de esperar o tempo restava da família real.
de Deus, enquanto suportava pacientemen­ As Escrituras não revelam muita coisa
te as conseqüências das ambições egoístas sobre Isbosete, mas fica claro que não pas­
e das atitudes irresponsáveis de líderes mo­ sou de um governante inexpressivo, mani­
tivados pelo orgulho e pelo ódio. Davi apren­ pulado por Abner (2 Sm 3:11; 4:1). Sem
deu a construir com a matéria-prima que se dúvida, tinha idade suficiente para lutar no
encontrava a sua disposição e a confiar que exército com o pai e os irmãos, mas Saul o
Deus usaria decepções em favor de seu deixou em casa a fim de proteger a monar­
povo. quia. (Talvez também não fosse um bom
soldado.) Tanto Saul quanto Abner sabiam
1. A bner: o proc Lamador do novo que Deus havia tomado a dinastia de Saul
rei (2 Sm 2:8-32) (1 Sm 13:11-14). Ao descobrir que ele e os
O ator principal nessa parte da história é filhos morreriam na batalha, é bem provável
Abner, sobrinho de Saul e comandante de que Saul tenha tomado as medidas cabíveis
seu exército (1 Sm 14:50). Foi Abner que para proclamar seu quarto filho rei de Israel.
levou Davi a Saul depois que Davi matou É possível que Isbosete tenha sido coroado
Golias (1 Sm 17:55-58) e foi junto com ele pelo general, porém jamais foi ungido pelo
que Saul perseguiu Davi durante dez anos Senhor. Em 1 Crônicas 8:33, ele é chamado
(26:5ss). Abner foi censurado e humilhado de Esbaal, que significa "homem do Senhor".
por Davi quando deixou de proteger o rei O termo "baal" quer dizer "senhor" e tam­
(1 Sm 26:13-16) e, portanto, não nutria qual­ bém era o nome de uma divindade cananéia,
quer afeição especial por Davi. O povo de de modo que talvez esse seja o motivo para
Israel honrava Davi acima de Saul e, no a mudança de nome.'
302 2 S A M U E L 2:8 - 4:12

Abner levou Isbosete para Maanaim, do quando o gigante filisteu propôs que um dos
lado leste do Jordão. Nessa cidade levítica soldados de Saul lutasse contra ele (1 Sm
de refúgio, Isbosete estaria seguro (Js 21:38), 17:8-10). No entanto, Abner estava se re­
e ali Abner instituiu a capital para "todo o belando contra Deus, enquanto Davi era o
Israel". No entanto, é bem provável que te­ líder escolhido por Deus!
nha levado pelo menos cinco anos para Essa é a primeira vez que vemos Joabe,
Abner persuadir as tribos (com exceção de sobrinho de Davi e comandante de suas tro­
Judá) a seguir seu novo rei. Isbosete foi co­ pas.2 Os dois exércitos encontraram-se no
roado no início do reinado de sete anos e açude, e doze soldados de Benjamim en­
seis meses de Davi sobre Judá e foi assas­ frentaram doze homens de Judá - e todos
sinado depois de reinar apenas dois anos os vinte e quatro homens foram mortos!
sobre "todo o Israel". Esses foram os dois Naquele dia, o campo de batalha recebeu
últimos anos do reinado de Davi em He­ um novo nome: Campo dos Cumes Afiados
brom. O governo de Isbosete foi curto, e, ou "Campo das Espadas". Joabe e Abner não
de qualquer modo, todos sabiam que, na perderam tempo e colocaram seus homens
verdade, quem estava no comando era em formação para a batalha, e "seguiu-se
Abner. crua peleja naquele dia". Abner foi derrota­
Essa situação tem um tom moderno, pois do nesse dia, prenunciando o que ainda
tanto a esfera religiosa quando a esfera polí­ estava por vir.
tica de nosso tempo são ocupadas pelos Abner mata o sobrinho de Davi (vv. 18­
mesmos três tipos de pessoas. Há os fracos 23). Joabe, Abisai e Asael eram sobrinhos
como Isbosete, que chegam ao poder por­ de Davi, filhos de sua irmã Zeruia (ver 1 Cr
que "têm as costas quentes". Há os fortes e 2:1 3-16).3 Quer por iniciativa própria quer
egoístas como Abner, que sabem manipular por ordem do irmão, Asael foi atrás de Abner,
outros para seu benefício pessoal. Também pois sabia que matar o general inimigo tra­
há mulheres e homens de Deus como Davi, ria confusão e faria todo o exército adversá­
chamados, ungidos e preparados, mas que rio se dispersar. Se foi Joabe quem ordenou
precisam esperar pelo tempo de Deus antes que o jovem Asael, conhecido por sua ligei­
de poder servir. Ao longo de mais de cin­ reza, perseguisse Abner, talvez estivesse
qüenta anos de ministério, vi igrejas e ou­ pensando em seu futuro, pois Abner pode­
tros trabalhos deixarem de lado mulheres e ria ameaçar sua posição de comandante do
homens de Deus e colocarem pessoas sem exército.
qualificação em posições de liderança pelo O registro deixa claro que Abner não ti­
simples fato de serem mais conhecidas ou nha desejo algum de ferir nem matar o ra­
de "terem as costas quentes". paz, mas Asael foi persistente. Primeiro Abner
Abner conseguiu o que queria, mas per­ lhe disse para desviar-se para a direita ou
deu tudo em poucos anos. para a esquerda e tomar o que quisesse de
Abner desafia o exército de Davi (vv. um dos soldados inimigos mortos. Em segui­
12-17). Quando Abner proclamou Isbosete da, advertiu Asael de que, se o matasse, daria
rei, na verdade estava declarando guerra con­ início a uma briga sangrenta entre famílias
tra Davi e sabia disso. Mas, a essa altura, que poderia durar anos. Abner conhecia
Abner contava com o apoio de todas as tri­ Joabe e não tinha vontade alguma de dar
bos, exceto de Judá, e acreditava que pode­ início a um possível conflito familiar que se
ria derrotar Davi na batalha sem qualquer estenderia pelo resto de suas vidas. Já bas­
dificuldade e dominar todo o reino. Certo tava Abner e Joabe serem comandantes ri­
da vitória, Abner propôs uma competição vais. Quando Asael se recusou a desistir da
entre os dois exércitos, a ser realizada no perseguição, Abner usou de astúcia e em­
açude a cerca de trinta e seis quilômetros pregou um dos artifícios mais antigos de
ao norte de Cibeão. Esse desafio não foi batalha: parou de repente e deixou que
muito diferente daquele lançado por Colias, Asael se arrojasse diretamente sobre sua
2 S A M U E L 2:8 - 4:12 303

lança. A extremidade da lança oposta à pon­ de cerca de dois anos, durante os quais ocor­
ta costumava ser afiada, de modo que a reram confrontos ocasionais e não longas
lança pudesse ser cravada no solo, em po­ batalhas subseqüentes. Davi esperava, certo
sição de prontidão (1 Sm 26:7). Asael caiu de que Deus cumpriria suas promessas e que
no chão e morreu.4Sua morte se deu no lhe daria o trono de Israel. O governo de
transcurso da batalha, apesar de tudo indi­ Davi em Hebrom estava indo "de força em
car que Abner não tinha planos nem dese­ força" (SI 84:7), enquanto a aliança das tri­
java matá-lo. bos sob o comando de Isbosete e Abner se
Abner pede uma trégua (vv. 25-32). tornava cada vez mais fraca. Porém, homem
Joabe e Abisai, os dois irmãos de Asael, de­ astuto que era, Abner usava sua posição na
viam estar perto dali, pois continuaram a casa de Saul para fortalecer a própria autori­
perseguição a Abner, decididos, sem dúvi­ dade, pois se preparava para fazer a Davi
da alguma, a vingar o sangue do irmão. Po­ uma oferta irresistível (v. 6).
rém, Abner foi salvo por seus soldados e, Quanto a Davi, sua família também au­
tanto ele quanto os benjamitas, se retiraram mentava (ver ainda 1 Cr 3:1-4); como qual­
para o monte de Amá. Abner sabia que ha­ quer outro monarca do Oriente, o harém
via sido derrotado (vv. 30,31), de modo que do rei ia ficando cada vez maior. Sem dúvi­
pediu uma trégua. Talvez tivesse suspeitado da, Salomão, filho de Davi, iria muito além
que a morte de Asael seria um incentivo para do pai antes dele ou de qualquer rei de Is­
que Joabe e Abisai parassem de lutar e cui­ rael ou de Judá depois dele (1 Rs 11:3).5 Davi
dassem do sepultamento. Tendo em vista se mudara para Hebrom com duas esposas
que Benjamim e Judá eram irmãos, ambos e, a essa altura, contava com seis filhos de
filhos de Jacó, por que deveriam lutar um seis esposas diferentes. A poligamia, que teve
contra o outro? No entanto, o próprio Abner início com Lameque, descendente de Caim
havia começado a batalha, de modo que só (Gn 4:19), era tolerada em Israel, mas proi­
poderia culpar a si mesmo. Homem dado a bida para seus reis (Dt 17:17).
intrigas, Abner tinha em mente um plano que Amnom, o primogênito de Davi, acaba­
lhe daria os dois exércitos sem que precisas­ ria por estuprar sua meia-irmã, Tamar (cap.
se derramar sangue. 13), sendo assassinado por Absalão, irmão
Joabe conhecia o coração de Davi e sa­ de Tamar por parte de pai e mãe, que, por
bia que ele ansiava por união e paz e não sua vez, seria morto na tentativa de usurpar
por divisão e guerra, de modo que tocou a 0 trono de seu pai (caps. 14 - 18). O fato de
trombeta e deteve seus soldados, a fim de Absalão ter parentesco com a realeza por
que cessassem a perseguição ao inimigo. Em parte de mãe pode tê-lo incentivado em sua
seguida, disse a Abner: "Tão certo como vive campanha para assumir o reino. Sem dúvi­
Deus, se não tivesses falado, só amanhã da, o casamento de Davi com Maaca foi
cedo o povo cessaria de perseguir cada um motivado por questões políticas, a fim de
a seu irmão" (v. 27). Abner e seus homens que Davi tivesse um aliado próximo a
caminharam a noite toda de volta para Maa- Isbosete. Quileabe é chamado de Daniel em
naim, e Joabe e seu exército voltaram para 1 Crônicas 3:1. Nos últimos dias de Davi,
Hebrom, parando em Belém, ao longo do quando se encontrava enfermo, Adonias ten­
caminho, para sepultar Asael de modo apro­ taria tomar o trono e seria executado por
priado. Durante a marcha, que se estendeu Salomão (1 Rs 1 - 2). Não temos qualquer
noite adentro, Abisai premeditou um modo informação sobre Sefatias e sua mãe, Abital,
de vingar a morte do irmão. nem sobre Itreão e sua mãe, Eglá. Depois
de mudar a capital para Jerusalém, Davi to­
2. A bner, o negociador mou para si ainda mais esposas e concubinas
(2 Sm 3:1-21) e teve mais onze filhos (2 Sm 5:13-16).
A oração "durou muito tempo a guerra", no Abner deserta para o lado de Davi (w.
versículo 1, indica um estado de hostilidade 6-11). Além de ser um político pragmático,
304 2 S A M U E L 2:8 - 4:12

Abner também era um general sagaz, e seu solicitando que Mical fosse enviada a
princípio fundamental podia ser resumido Hebrom (v. 14).
em: "fique sempre do lado vencedor". • Abner conferenciou com os anciãos
Quando se deu conta de que não havia fu­ de Israel (vv. 17,18).
turo algum para o trono de Isbosete, deci­ • Abner conferenciou com os líderes de
diu transferir sua lealdade para o outro lado, Benjamim (v. 19).
garantindo, assim, a própria segurança e, • Abner e vinte representantes das tribos
possivelmente, salvando vidas. Davi era co­ foram a Hebrom, levando consigo
nhecido por sua benevolência e havia de­ Mical (vv. 15,16, 20).
monstrado uma paciência extraordinária • Abner e Davi entraram num acordo
com a casa de Saul. sobre como seria a transferência do
O texto não diz se Abner teve, de fato, reino; ambos participaram de um ban­
relações com a concubina Rispa, e o gene­ quete e fizeram uma aliança (v. 21).
ral negou tal acontecimento firmemente;
porém, se esse foi o caso, cometeu uma Nos primeiros estágios dessas negociações,
ofensa gravíssima. O harém do rei falecido teria sido perigoso e imprudente Davi e
pertencia a seu sucessor, nesse caso, Isbo- Abner se encontrarem pessoalmente, de
sete (ver 2 Sm 12:8 e 16:15-23). Qualquer modo que dependeram de seus oficiais para
homem que sequer pedisse uma dessas mu­ fazer os contatos necessários. Davi não ti­
lheres estava pedindo para si o reino e, nha motivo para não colaborar com Abner,
portanto, era culpado de traição. Essa foi a uma vez que em momento algum havia es­
causa da morte de Adonias (1 Rs 2:13-25). tado em guerra com ele ou com o rei Saul.
E possível que Abner tenha tomado Rispa Um confronto direto era a única alternativa
com o simples propósito de desencadear para esse tipo de diplomacia, e Davi era um
uma briga com Isbosete e de declarar sua homem pacífico. Por seu casamento com
mudança de partido. Se essa era sua inten­ Mical, Davi passara a fazer parte da família
ção, de fato foi bem-sucedido. É evidente de Saul, de modo que deveria mostrar certo
que o rei não era forte o suficiente para se respeito tanto a Abner quanto a Isbosete.
opor a Abner, o qual havia anunciado sua Além disso, estava decidido a unir as tribos
mudança para o lado de Davi. A expressão o mais rápido possível sem derramamento
"trono de Davi" é usada pela primeira vez desnecessário de sangue. Depois de uma
nas Escrituras no versículo 10 e, com o pas­ espera de sete anos, havia chegado o mo­
sar do tempo, adquire significado messiâ­ mento de Davi agir.
nico (Is 9:6, 7). Por que Davi impôs a volta de Mical
Abner negocia em nome de Davi (vv. como condição para o prosseguimento das
12-21). Esse episódio é um bom exemplo negociações? Em primeiro lugar, ela ainda
do estilo "ir-e-vir" da diplomacia na Anti­ era sua esposa, apesar de Saul tê-la entre­
guidade. gue a outro homem. Dez anos antes, quan­
do haviam se casado, Mical amava Davi
• Abner enviou mensageiros a Davi ofe­ profundamente (1 Sm 18:20), e não temos
recendo colocar todo o Israel sob seu motivo algum para crer que o sentimento
governo (v. 12). não fosse recíproco. Fazia parte da boa di­
• Davi enviou mensageiros a Abner plomacia convidar sua "rainha" a juntar-se a
aceitando sua oferta, desde que, an­ ele, e o fato de ela ser da casa de Saul aju­
tes disso, Abner lhe enviasse Mical, dou a fortalecer os laços de união. Ao rei­
esposa de Davi e irmã de Isbosete vindicar a filha de Saul, Davi também estava
(v. 13). reivindicando todo o reino, e quando Abner
• Abner recomendou a Isbosete que levou Mical a Hebrom, seu gesto foi uma
atendesse o pedido, e Davi também declaração pública de que havia rompido
enviou uma mensagem a Isbosete com a casa de Saul e se aliado a Davi.
2 S A M U E L 2:8 - 4:1 2 305

3. A bner, a vítima (2 S m 3:22-39) nome do rei. Os sentimentos do Salmo 120


Os preparativos para uma transição pacífica podem, sem dúvida, ser aplicados à situa­
pareciam estar em ordem, mas o campo di­ ção de Davi nessa época.
plomático ainda tinha minas escondias e Joabe engana e mata Abner (vv. 26, 27).
prestes a explodir. Isbosete continuava a Joabe acusou Abner de mentiroso (v. 25),
ocupar o trono, e Davi teria de lidar com ele mas ele próprio usou de dissimulação! Com
e com os partidários leais à casa de Saul. freqüência, somos culpados dos mesmos
Abner havia matado Asael, e )oabe aguar­ pecados de que acusamos a outros e "gen­
dava o momento certo de vingar a morte te da mesma laia se conhece". É bem prová­
do irmão. vel que Joabe tenha enviado mensageiros
Joabe censura Davi (w. 22-25). Davi en­ em nome do rei; do contrário, Abner teria
viara Joabe e alguns de seus homens a um sido mais cauteloso. Abner não vira Joabe
ataque para obter os recursos necessários a na casa de Davi, de modo que deve ter su­
fim de ajudar a sustentar o reino. Quando posto que o general de Davi ainda estava
Joabe voltou e ficou sabendo que Davi ha­ longe em sua expedição de ataque. Joabe e
via recebido Abner e lhe oferecido um ban­ seu irmão, Abisai (v. 30), ficaram à espera
quete, não pôde conter sua ira e censurou de Abner e o levaram para uma parte isola­
o rei.6 A idéia central desse parágrafo é que da da porta da cidade, onde o esfaquearam
o general de Saul e o homem que havia sob a quinta costela, o mesmo lugar onde
matado Asael viera e partira dali "em paz" havia cravado sua lança em Asael (2:23).
(2 Sm 3:21, 23), coisa que joabe não conse­ Sob todos os aspectos, a morte de Abner
guia entender. Seu coração ainda sofria com foi um erro. Os dois irmãos sabiam o que o
a perda do irmão, e Joabe não era capaz de rei queria e, no entanto, colocaram delibe­
compreender as decisões políticas de seu radamente seus interesses pessoais antes
rei. É evidente que Joabe também estava daquilo que era importante para o reino.
protegendo seu cargo, assim como Abner Asael havia perseguido Abner no campo
defendia o dele, mas, ao contrário de Davi, de batalha, de modo que sua morte havia
Joabe não punha fé alguma naquilo que sido mais uma baixa decorrente da guerra;
Abner dizia ou fazia. Joabe estava certo de a morte de Abner, por outro lado, foi assas­
que não havia qualquer relação entre a visi­ sinato. Hebrom era uma cidade de refúgio,
ta de Abner e a transferência do reino para um santuário onde alguém acusado de
as mãos de Davi. O general astuto estava homicídio podia receber julgamento justo,
apenas sondando a situação e se preparan­ mas os dois irmãos sequer deram aos anciãos
do para um ataque. de Hebrom a oportunidade de examinar o
O texto não registra uma resposta de caso. Abner matou Asael em autodefesa,
Davi. Joabe nunca fora um indivíduo tratá- mas quando Abisai e Joabe mataram Abner,
vel (3:39), e sua relação de parentesco só foi pura vingança. Abner não teve qualquer
dificultava as coisas. A dinâmica da família chance de se defender. A morte de Asael
de Davi - as muitas esposas e filhos e os ocorreu em plena luz do dia, e todos ao
parentes em cargos de autoridade - criou redor poderiam dar testemunho do que
inúmeros problemas ao rei. O silêncio de havia ocorrido, enquanto Abner foi enga­
Davi não foi uma expressão de consentimen­ nado e levado para a escuridão. Abisai
to, pois não concordava com seu general; acompanhara Davi até o acampamento de
antes, foi um silêncio que demonstrou Saul e presenciara a ocasião em que Davi
autocontrole e profundo desejo de reunificar havia se recusado a matar Saul (1 Sm
a nação. Davi não queria promover a "paz a 26:6ss), de modo que sabia que Davi ja­
qualquer preço", pois era um homem de mais aprovaria o assassinato do general de
integridade, mas não estava disposto a dei­ Saul. Ficamos imaginando se Abner mor­
xar que seu general impetuoso se lançasse reu pensando que Davi estava envolvido
numa campanha de vingança pessoal em na trama para assassiná-lo.
306 2 S A M U E L 2:8 - 4:12

Davi homenageia Abner (vv. 28-39). ser rei, mas sim que era "contido e bondo­
Quando Davi recebeu a notícia da morte so", contrastando com os sobrinhos "for­
de Abner, negou imediatamente qualquer tes". Davi havia experimentado a bondade
envolvimento com o que seus dois sobrinhos de Deus (22:36) e tentou tratar os outros
haviam feito. Chegou a ponto de amaldiçoar como Deus o havia tratado. Sem dúvida,
a casa de Joabe, citando algumas das pra­ foi longe demais nessa abordagem com rela­
gas sobre as quais Moisés havia advertido ção à própria família (18:5,14), mas foi um
na aliança (Dt 28:25-29, 58-62). Davi publi­ homem segundo o coração de Deus (SI
cou um édito real ordenando que Joabe e 103:8-14). Tudo o que lhe restava fazer era
seu exército pranteassem a morte de Abner deixar o julgamento aos cuidados do Se­
e que comparecessem a seu funeral. A ex­ nhor, pois ele nunca falha.
pressão "todo o povo" é usada sete vezes
nos versículos 31-37 e refere-se aos homens 4. ISBOSETE, O FRACASSADO
do exército de Joabe (2:28; 12:29). Davi (2 S m 4:1-12)
lhes ordenou que rasgassem as roupas, ves­ Se Davi considerou-se fraco em decorrên­
tissem panos de saco e chorassem pela cia do comportamento de seus sobrinhos,
morte de um grande homem, e o próprio deveria ter pensado na situação de Isbosete
Davi acompanhou o ataúde até o local do depois da morte de Abner. Pelo menos, Davi
sepultamento. Pelo fato de Joabe e de Abisai era um grande guerreiro e um líder compe­
estarem entre os pranteadores oficiais, é tente, enquanto Isbosete não passava de um
bem provável que muitos do povo nem sou­ fantoche nas mãos de seu general. Agora,
bessem que eles eram os assassinos. Davi seu general estava morto. Os membros das
não os levou a julgamento e, ao que pare­ tribos em seu reino sabiam que a morte de
ce, suas declarações nos versículos 29 e Abner significava o fim do governo de seu
39 foram ditas em particular a seu conse­ rei e, sem dúvida, esperavam uma invasão
lho mais íntimo. Ainda que os dois irmãos imediata de Davi e de seu exército. O povo
não merecessem, Davi esforçou-se ao má­ em geral não sabia das intenções de Davi
ximo para protegê-los. nem de seu encontro recente com Abner.
Assim como fez na ocasião da morte de Foi um dia de angústia para Isbosete e seu
Saul e Jônatas, Davi escreveu uma elegia para povo.
homenagear o general morto (vv. 33, 34, 38). O relato sobre Baaná e Recabe faz lem­
Deixou claro que Abner não havia morrido brar o amalequita em 2 Samuel 1, o homem
em decorrência de alguma insensatez de sua que afirmou ter matado Saul. Esses dois
parte e que, em momento algum de sua homens, oficiais de escalão inferior do exér­
carreira militar, havia sido prisioneiro. Abner cito de Abner, pensaram ser capazes de con­
fora abatido por homens perversos que o seguir recompensas e uma promoção de
haviam enganado. Davi também homena­ Davi caso matassem Isbosete. Mas assim
geou Abner sepultando-o na cidade real de como o amalequita, os dois estavam enga­
Hebrom em vez de levá-lo de volta a Benja­ nados. O único herdeiro do trono de Saul
mim. Posteriormente, Davi disse a seus ser­ que sobrevivera era um menino aleijado de
vos mais próximos que Abner havia sido "um doze anos de idade chamado Mefibosete.
príncipe e grande homem". Além disso, no­ Assim, se Baaná e Recabe matassem o rei,
meou Jaasiel, o filho de Abner, governante o caminho estaria livre para Davi subir ao
sobre a tribo de Benjamim. trono e unir a nação (veremos Mefibosete
O lamento de Davi por si mesmo, no outra vez em 2 Sm 9:1-13; 16:1-4; 19:24-30;
versículo 39, foi ouvido por seu "círculo mais e 21:7, 8).
íntimo" e seleto e constituiu uma expressão Entraram na casa do rei com a desculpa
dos problemas de Davi com a própria famí­ de que tinham ido buscar cereais para seus
lia. A palavra "fraco" não é uma indicação homens e mataram o rei enquanto este se
de que Davi não fosse forte o suficiente para encontrava adormecido e vulnerável. Se o
2 S A M U E L 2:8 - 4:12 307

assassinato de Abner pode ser considerado expô-lo publicamente era a maior de todas
um crime hediondo, esse homicídio foi ain­ as humilhações (Dt 21:22, 23). Davi provi­
da pior, pois o único "crime" de Isbosete denciou para que a cabeça de Isbosete fos­
era ser filho de Saul! Não havia transgredido se sepultada em Hebrom, no sepulcro de
lei alguma e não teve a chance de se de­ Abner, uma vez que os dois eram parentes.
fender. Seus assassinos sequer mostraram Os quatro "reis" sobre os quais Paulo
respeito pelo corpo, uma vez que o decapi­ escreveu em Romanos 5 certamente esta­
taram, a fim de levar a cabeça como prova a vam em ação nessas cenas da vida de Davi.
Davi e de receber sua recompensa. Muito O pecado reinou (5:21) por meio das men­
pior foi os dois assassinos dizerem a Davi tiras de homens que se odiavam e que pro­
que o Senhor o havia vingado! curaram destruir uns aos outros. A morte
A resposta de Davi deixou claro que, em reinou (5:14, 17) com o extermínio de Asael,
momento algum de sua carreira, havia que­ Abner e Isbosete, juntamente com quase
brado o mandamento de Deus assassinan­ quatrocentos soldados abatidos no conflito
do alguém a fim de cumprir seus propósitos no açude de Cibeão. Porém, a graça de
particulares. O Senhor o havia protegido e Deus também reinou (5:21), pois o Senhor
cuidado dele durante os dez anos de exílio protegeu Davi e prevaleceu sobre os peca­
e por mais de sete anos como rei em He­ dos do ser humano, a fim de cumprir seus
brom. Assim como fez na morte de Saul e propósitos divinos. "Onde abundou o peca­
de Abner, Davi deixou bem claro que, de do, superabundou a graça" (5:20). Mas Davi
modo algum, estava envolvido no que havia "[reinou] em vida" (5:17) e deixou que Deus
ocorrido. Teria sido fácil para os inimigos de o controlasse ao enfrentar situações subse­
Davi começarem boatos difamadores de que qüentes de emergência. Davi agiu pelo po­
o rei havia arquitetado as duas mortes a fim der de Deus, que atravessou todas as crises
de abrir caminho ao trono de Israel. com ele e que o ajudou a vencer.
Obedecendo às ordens do rei, os guar­ Em meio aos problemas e tribulações de
das mataram os dois assassinos confessos, hoje, o povo de Deus pode "reinar em vida
cortaram as mãos e os pés dos dois e pen­ por meio de Jesus Cristo" se nos entregar­
duraram seus corpos como prova da justi­ mos a ele, se esperarmos nele e se crermos
ça do rei. Mutilar um corpo desse modo e em suas promessas.

1. O tioavô de Saul também tinha o nome "Baal" (1 Cr 9:36), e Mefibosete, filho de Jônatas, também era chamado de "Meribe-

Baal" (1 Cr 8:34).
2. Joabe era sobrinho de Davi, mas, ao que parece, Davi não exercia muito controle sobre ele (ver 3:39 e 18:5,14). No final do

reinado de Davi, joabe conspirou para tornar Adonias, filho de Davi, sucessor do rei; quando Salomão subiu ao trono,

ordenou que joabe fosse executado por traição (1 Rs 2).


3. D e acordo com 2 Samuel 17:25, Zeruia era meia-irmã de Davi. Se Naás era mãe de Abigail e de Zeruia, então era a segunda
mulher de Jessé. Se Naás era o pai, então teve Abigail e Zeruia e faleceu, e a esposa, cujo nome não é mencionado, casou-se

com Jessé. Quem quer que fosse, Zeruia sem dúvida teve três filhos extraordinários.

4. 1 Crônicas 27:7 diz que Zebadias, filho de Asael, sucedeu o pai no comando de sua divisão.
5. 2 Samuel apresenta um padrão interessante, no qual encontramos uma lista de nomes (de filhos ou oficiais) no final das

seções históricas: 1:1 - 3:5; 3:6 - 5:16; 5:17 - 8:18; 9:1 - 20:26.

6. Essa situação nos lembra da parábola do filho pródigo (Lc 15:11 -32). Abner, o "soldado pródigo", voltava para casa, e Davi lhe
ofereceu um banquete. Joabe, o "irmão mais velho", poderia muito bem ter dito: "fui fiel a você e arrisquei minha vida; e, no

entanto, nunca me ofereceu um banquete!"


3 Davi para ser rei cerca de vinte anos antes e
que era da vontade de Deus que Davi subis­
se ao trono (2 Sm 5:2). A nação precisava
de um pastor, e Davi era esse pastor (SI 78:70­
D a v i , o R ei de Israel 72). Saul havia sido "o rei escolhido pelo
povo", mas não a primeira escolha do Se­
2 Sam uel 5 — 6 nhor, pois Deus o havia dado como julga­
( V e r tam bém 1 C r ô n i c a s 3 :4 - 8 ; mento contra Israel pelo fato de seu povo
querer ser como as outras nações (1 Sm 8;
11 : 1-9 ; 13:5 - 16 : 3 )
Os 13:11). O Senhor amava seu povo e sa­
bia que precisava de um pastor, de modo
que preparou Davi para ser seu rei. Ao con­

2
ue vida mais extraordinária e variada trário de Saul, um benjamita, Davi era da
Davi teve! Quando era pastor, matou tribo real de Judá (Gn 49:10), nascido e cria­
ião e um urso, vitórias que o prepara­ do em Belém. Graças a isso, pôde fundar a
ram para abater o gigante Golias. Davi foi
dinastia que trouxe ao mundo Jesus Cristo,
servo do rei Saul e tornou-se amigo querido o Messias, que também nasceu em Belém.
de Jônatas, filho de Saul. Durante cerca de Os homens reunidos em Hebrom lem­
dez anos, viveu como exilado no deserto braram Davi de que pertencia à nação como
da Judéia, escondendo-se de Saul e apren­ um todo, não apenas à tribo de Judá (2 Sm
dendo a confiar cada vez mais no Senhor. 5:1). No começo da carreira de Davi, o povo
Esperou com paciência que Deus lhe desse reconheceu que a mão de Deus estava so­
o trono prometido, momento que finalmen­ bre ele, pois o Senhor lhe deu sucesso em
te havia chegado. É pela fé e paciência que seus grandes feitos militares. Havia represen­
o povo de Deus recebe a herança das pro­ tantes de todas as tribos na reunião em
messas do Senhor (Hb 6:12), e Davi creu Hebrom, e todos declararam com entusias­
em Deus nas situações mais difíceis. Her­ mo sua lealdade ao novo rei (1 Cr 12:23­
dou um povo dividido, mas, com a ajuda de 40). Um total de 340.800 oficiais e outros
Deus, trouxe união e fez de Israel um reino homens compareceram a essa reunião, to­
forte e poderoso. Estes capítulos descrevem dos leais a Davi. Ficaram com Davi durante
os passos de Davi a fim de unir e fortalecer três dias e celebraram a bondade de Deus a
a nação. seu povo.’
Israel foi fundado como nação na alian­
1. D avi aceitou a coroa ça de Deus com seu povo, conforme expres­
(2 Sm 5:1-5) so na lei de Moisés, especialmente em
O assassinato de Isbosete deixou as onze Deuteronômio 27 - 30 e em Levítico 26. Se
tribos sem rei e sem um herdeiro ao trono o rei e o povo obedecessem à vontade de
de Saul. Abner estava morto, mas havia pre­ Deus, ele os abençoaria e cuidaria deles, mas
parado o caminho para Davi ser proclama­ se desobedecessem e adorassem a falsos
do rei das doze tribos (2 Sm 3:17-21). Na deuses, o Senhor os disciplinaria. Cada novo
seqüência, os líderes de todas as tribos reu­ rei deveria declarar a supremacia e a autori­
niram-se em Hebrom e coroaram Davi como dade da lei de Deus, prometer obedecer a
seu rei. ela e, até mesmo, fazer uma cópia dessa lei
As qualificações para o rei de Israel en­ para seu uso pessoal (Dt 17:18-20). Davi
contravam-se escritas na lei de Moisés em entrou em aliança com o Senhor e com o
Deuteronômio 17:14-20. O primeiro e mais povo, concordando em defender e obede­
importante requisito era ser alguém escolhi­ cer à lei de Deus e reinar no temor do Se­
do pelo Senhor dentre o povo de Israel, um nhor (ver 1 Sm 10:1 7-25; 2 Rs 11:1 7).
rei "que o S enhor , teu Deus, escolher" (17:15, Quando Davi era adolescente, havia
20). O povo sabia que Samuel havia ungido recebido a unção de Samuel em particular
2 SAMUEL 5 - 6 309

(1 Sm 16:13), e os anciãos da tribo de Judá e muçulmanos. Por certo, nascer em Jerusa­


o haviam ungido quando se tornou seu rei lém era uma grande honra (SI 87:4-6).
aos trinta anos de idade (2 Sm 2:4). Nessa O Senhor deve ter guiado Davi de modo
reunião em Hebrom, porém, os anciãos de especial na escolha de Jerusalém para ser
todo Israel ungiram Davi e proclamaram-no sua capital, pois a cidade exerceria papel
seu rei. Davi não era um amador, mas sim estratégico no desdobramento de seu gran­
um guerreiro experiente e um líder compe­ de plano de salvação. Deus havia prometi­
tente que, sem dúvida alguma, possuía a do aos israelitas indicar um lugar para onde
bênção de Deus sobre sua vida e ministé­ poderiam se dirigir a fim de adorar ao Se­
rio. Depois de passar por anos de turbulên­ nhor (Dt 12:1-7), e é bem provável que tenha
cia e de divisão, a nação tinha, finalmente, revelado a Davi que esse lugar era Jerusa­
um rei escolhido por Deus e pelo povo. Deus lém. Posteriormente, Davi adquiriu em Sião
leva tempo para preparar seus líderes, e é a propriedade onde o templo seria cons­
lamentável quando alguém "alcança o su­ truído por seu filho, Salomão (2 Sm 24). A
cesso" antes de estar pronto. Igreja considera a Jerusalém aqui da terra
uma cidade de servidão legalista, mas vê a
2. D avi estabeleceu uma nova capital Jerusalém celestial como símbolo da alian­
(2 Sm 5:6-10; 1 C r 11:4-9) ça da graça em Cristo Jesus (Gl 4:21-31) e o
Abner e Isbosete haviam estabelecido sua lar eterno do povo de Cristo (Hb 12:18-24;
capital em Maanaim (2 Sm 2:8), do outro Ap 21 - 22). Deus colocou seu Rei no trono
lado do rio Jordão, na fronteira entre Gade (SI 2:6) e, um dia, falará em sua ira e julgará
e Manassés, enquanto a capital escolhida os que se opuserem a ele e a sua verdade.
por Davi havia sido Hebrom, na tribo de Os jebuseus que viviam em Jerusalém
Judá. Porém, nenhuma dessas cidades era acreditavam que sua cidadela era invencível
adequada para o novo rei, que procurava e que até cegos e coxos eram capazes de
reunir a nação e começar de novo. Davi defendê-la, declaração jactanciosa que irou
demonstrou sabedoria ao escolher como sua Davi. Ele sabia que o Senhor havia prometi­
capital a cidade de Jerusalém, pertencente do a Moisés que Israel conquistaria todas as
aos jebuseus e localizada na fronteira entre nações de Canaã, inclusive os jebuseus (Êx
Benjamim (a tribo de Saul) e Judá (a tribo de 23:23, 24; Dt 7:1-2; 20:17), de modo que
Davi). Jerusalém não havia pertencido a ne­ planejou seu ataque pela fé. Davi prometeu
nhuma das tribos, de modo que ninguém ao homem que entrasse na cidade e que a
poderia acusar Davi de favoritismo na insti­ subjugasse o comando de seu exército e até
tuição de sua nova capital. mesmo explicou como isso deveria ser fei­
As considerações políticas eram impor­ to: subindo pelo canal de água. Joabe, so­
tantes, mas também em termos de seguran­ brinho de Davi, aceitou o desafio, tomou a
ça e de topografia, Jerusalém era a cidade cidade e tornou-se capitão dos soldados do
ideal para uma capital. Construída sobre um rei. Escavações realizadas no monte Sião
monte rochoso e cercada de três lados por mostram que era difícil, porém não impossí­
vales e montes, a única parte vulnerável da vel, subir por esse canal. Davi ocupou o
cidade era sua face Norte. Ao sul ficava o monte e chamou a parte Sul de "cidade de
vale de Hinom, a leste, o vale do Cedrom e Davi". Nos anos subseqüentes, Davi e seus
a oeste, o vale Tiropeom. "Seu santo monte, sucessores reforçaram o baluarte construin­
belo e sobranceiro, é a alegria de toda a do muralhas.
terra; o monte Sião, para os lados do Norte, A palavra "Milo" (v. 9) significa "plenitu­
a cidade do grande Rei" (SI 48:2). "Desde de" e se refere ao aterro feito com pedras
Sião, excelência de formosura, resplandece na face sul do monte para apoiar mais cons­
Deus" (SI 50:2). O povo de Israel sempre truções e uma muralha. Os arqueólogos de­
amou a cidade de Jerusalém, e, hoje em senterraram uma estrutura escalonada com
dia, ela é reverenciada por judeus, cristãos cerca de quinhentos metros de comprimento
310 2 SAMUEL 5 - 6

e trezentos de largura, que servia de terraço várias esposas para si, mas, ao que parece,
de apoio para outras construções; supõem Davi desconsiderou essa lei, como também
que seja, justamente, "Milo". Tanto Salomão o fez Salomão depois dele (1 Rs 4:26; 11:1­
quanto o rei Ezequias fortificaram essa par­ 4). Pelo menos uma das esposas de Davi
te do monte Sião (1 Rs 9:15, 24; 11:27; 2 Cr era uma princesa (3:3), o que indica que esse
32:5). A bênção de Deus estava sobre Davi, casamento realizou-se em função de uma
permitindo que prosperasse em tudo o que aliança política, e, sem dúvida, houve ou­
se dispunha a fazer por seu povo. tras uniões semelhantes. Essa era uma das
É provável que tenha sido nessa época formas de consolidar as relações diplomáti­
que Davi levou a cabeça de Golias para Je­ cas com outras nações.
rusalém como lembrança da fidelidade de As Escrituras apresentam quatro listas dos
Deus para com seu povo (1 Sm 17:54). filhos de Davi, que nasceram enquanto ele
reinou em Hebrom (2 Sm 3:2-5) e depois
3. D avi fez alianças políticas que se mudou para Jerusalém (5:13-16; 1 Cr
(2 Sm 5:11-16; 1 C r 3:5-9; 14:1-7) 3:1-9; 14:4-7). Sua primeira esposa foi Mical,
Israel era uma nação pequena que se distin­ filha de Saul (1 Sm 18:27), que não teve fi­
guia dos vizinhos por seu relacionamento lhos (2 Sm 6:23). Em Hebrom, Ainoã de
especial de aliança com o verdadeiro Deus Jezreel deu à luz Amnom, o primogênito de
vivo (Nm 23:7-10), e os israelitas foram ad­ Davi (3:2); Abigail, a viúva de Nabal, deu à
vertidos a não fazer com seus vizinhos alian­ luz Quileabe ou Daniel (3:3); da princesa
ças políticas que comprometessem seu Maaca, nasceu Absalão (3:3) e sua irmã,
testemunho. A menos que tenha sido suce­ Tamar (13:1); Hagite deu à luz Adonias (3:4);
dido por um rei de mesmo nome, Hirão pro­ de Abital nasceu Sefatias (3:4); e Eglá deu à
vavelmente iniciava seu reinado sobre Tiro, luz Itreão (3:5). Em Jerusalém, Bate-Seba teve
pois manteve relações amigáveis tanto com quatro filhos com Davi (1 Cr 3:5): Siméia
Davi quanto com Salomão durante os reina­ (ou Samá), Sobabe, Natã e Salomão. Suas
dos de ambos (1 Rs 5). outras esposas, cujos nomes não são men­
E bem possível que o palácio de Davi cionados (1 Cr 3:6-9), deram à luz Ibar, Eli-
tenha sido construído depois de sua campa­ sama, Elifelete (ou Elpelete), Nogá, Nefegue,
nha militar bem-sucedida contra os filisteus Jafia, Elisama, Eliada (ou Beeliada; 1 Cr 14:7)
(1 Rs 5:17-25) e pode ter sido a forma de e Elifelete.2
Hirão reconhecer a ascensão de Davi ao tro­ Davi também gerou filhos com suas
no. Sem dúvida, o rei fenício também apre­ concubinas, de modo que teve uma família
ciou o fato de Davi ter derrotado os filisteus, grande. Não é de se admirar que alguns deles
seus inimigos beligerantes. Do ponto de vis­ tenham se envolvido em diversas intrigas
ta prático, os fenícios precisavam manter um palacianas e causado tristezas profundas ao
bom relacionamento com os israelitas, pois rei. A lei afirmava claramente que o rei não
Israel poderia facilmente bloquear a rota deveria ter muitas esposas, mas tanto Davi
comercial de Tiro e os fenícios dependiam quanto Salomão ignoraram esse preceito, e
dos lavradores israelitas para lhes fornecer os dois pagaram caro por sua desobediên­
alimento (ver At 12:20). Davi interpretou a cia. Tudo indica que algumas das esposas,
gentileza de Hirão como mais uma prova como Maaca, representavam alianças que
de que o Senhor havia, de fato, estabeleci­ Davi havia feito com reis vizinhos a fim de
do seu trono em Israel. ajudar a garantir a segurança de Israel.
As referências ao palácio de Davi e à
sua aliança com Hirão proporcionaram ao 4. D avi derrotou os filisteus
escritor a oportunidade de mencionar a fa­ (2 Sm 5:17-25; 1 C r 14:8-17)
mília de Davi, a "casa" que o Senhor estava Enquanto Davi estava quieto em seu canto,
edificando para ele (SI 127). Deuteronômio em Hebrom, os filisteus pensaram que con­
17:17 proibia que o rei de Israel tomasse tinuava sendo um de seus vassalos, mas
2 SAMUEL 5 - 6 311

quando se tornou rei de todo o Israel, os Senhor lhe deu a vitória. O que foi o estron­
filisteus viram que era seu inimigo e parti­ do no topo das árvores? Apenas o vento?
ram para o ataque. É bem provável que es­ Anjos (SI 104:4)? Deus chegando para con­
ses ataques tenham ocorrido antes de Davi duzir seu povo à vitória? A estratégia funcio­
mudar-se para Jerusalém, pois ele e seus nou, e Davi perseguiu o inimigo desde Geba
homens estavam na "fortaleza" (2 Sm 5:17), até Gezer, uma distância de quase vinte e
uma região no deserto onde ele havia vivi­ cinco quilômetros. Com essa vitória, Israel
do no tempo em que Saul estava decidido a recuperou o território que Saul havia perdi­
matá-lo (1 Sm 22:4; 23:13,14).3 Davi rece­ do em sua última batalha. Em campanhas
beu a notícia da aproximação do exército subseqüentes, Davi também tomou de vol­
filisteu, manobrou seus soldados rapidamen­ ta as cidades que os filisteus haviam tirado
te e encontrou os invasores no vale de de Saul (2 Sm 8:1; 1 Cr 18:1). Davi travou
Refaim, bem próximo a Jerusalém. diversas batalhas com os filisteus, e Deus lhe
Como em outras ocasiões, Davi consul­ deu vitórias seguidas (2 Sm 21:15-22).
tou o Senhor ao planejar seu ataque, prova­ Havia muito tempo, o povo reconhece­
velmente por meio do Urim e do Tumim ou ra que Davi era um guerreiro hábil e valente,
pedindo que o profeta Gade buscasse sa­ e essas duas vitórias trouxeram mais glória a
ber a vontade de Deus. Depois de receber Deus e honra a seu servo. Ao derrotar os
do Senhor a garantia de que ele daria a vitó­ filisteus, Davi mandou uma mensagem aos
ria a Israel, Davi encontrou os filisteus pou­ inimigos de Israel: deveriam ter cuidado com
co mais de três quilômetros a sudoeste de o que faziam a ele e a seu povo.
Jerusalém e forçou-os a recuar. Os inimigos
saíram do campo de batalha com tanta pres­ 5. D avi m u d o u a a r c a d a a lia n ç a de
sa que deixaram seus ídolos para trás, e Davi (2 Sm 6:1-23; 1 C r 13:1-13;
lu g a r
e seus homens queimaram essas imagens. 15:1 - 16:3)4
Os filisteus tinham certeza de que a presen­ A arca da aliança deveria permanecer no
ça de seus deuses lhe garantiria a vitória, Santo dos Santos do tabernáculo, pois sim­
mas estavam enganados. Davi deu toda a bolizava o trono glorioso de Deus (SI 80:1;
glória a Deus e chamou o local de Baal-Pe- 99:1). No entanto, por mais de setenta anos,
razim, que significa "o Senhor que rompe". a arca não ficou no santuário do Senhor em
Alguns comentaristas acreditam que foi Siló. Os filisteus capturaram a arca quando
nessa ocasião que os guerreiros de Gade Eli era juiz (1 Sm 4) e, depois, a devolveram
juntaram-se ao exército de Davi (1 Cr 12:8­ aos israelitas por causa do julgamento que
15) e que, também, três dos "valentes" de o Senhor enviou sobre o povo filisteu. Pri­
Davi romperam as linhas filistéias e conse­ meiro, a arca foi levada a Bete-Semes e, em
guiram a água do poço de Belém para Davi seguida, a Quiriate-Gearim, onde ficou guar­
(2 Sm 23:13-17; 1 Cr 11:15-19). Essa faça­ dada na casa de Abinadabe (1 Sm 5:1 - 7:1).
nha exigiu um bocado de coragem e de fé, Dois sumos sacerdotes - Zadoque e Aime-
e o que esses soldados fizeram foi a respos­ leque (2 Sm 8:17) - ministraram durante o
ta a um desejo do coração de Davi, não a reinado de Davi, e é possível que um deles
uma ordem vinda de sua boca. Foram bus­ servisse no santuário em Siló, depois trans­
car a água porque amavam seu rei e deseja­ ferido para Gibeão (2 Cr 1:1-6), enquanto o
vam lhe agradar. Que exemplo para nós! outro ministrava na corte em Jerusalém. Davi
Os filisteus voltaram a lutar contra Davi, ergueu uma tenda para a arca na Cidade de
e, mais uma vez, Davi buscou a vontade do Davi, mas a mobília do tabernáculo só foi
Senhor. Ao contrário de Josué depois da vi­ transferida para Jerusalém depois que Salo­
tória em Jericó (Js 6 - 7), Davi não partiu do mão terminou a construção do templo (1 Rs
pressuposto de que a mesma estratégia fun­ 8:1-4; 2 Cr 5:1-5).
cionaria novamente. Deus lhe forneceu A primeira tentativa (6:1-11). Por que Da­
outro plano de batalha, ele obedeceu, e o vi queria a arca em Jerusalém? Em primeiro
312 2 SAMUEL 5 - 6

lugar, desejava honrar ao Senhor e lhe dar o peças mais importantes de sua mobília de­
lugar que lhe era devido como Rei de Israel. veriam ser carregadas sobre os ombros dos
No entanto, Davi também nutria em seu levitas, descendentes de Coate (vv. 9-20).
coração o desejo secreto de construir um Quando usaram um carro de boi novo, se­
santuário para o Senhor (ver 2 Sm 7; S1132:1 - guiram o exemplo dos pagãos filisteus (1 Sm
5), e o primeiro passo para isso era levar a 6), não as instruções transmitidas por Moisés
arca à capital. Davi sabia que o Senhor de­ no monte Sinai.
sejava ter um santuário central (Dt 12:5, 11, Temos aqui uma lição bastante clara: a
21; 14:23, 24; 16:2, 6, 11; 26:2) e sua espe­ obra do Senhor deve ser feita à maneira do
rança era que Deus lhe permitisse construir Senhor; do contrário, não terá sua bênção.
esse lugar. O sonho de Davi não se realizou, O fato de todos os líderes de Israel concor­
mas ele comprou o terreno onde o templo darem que fosse usado um carro de boi não
foi construído (2 Sm 24:18ss) e forneceu o legitimizava essa prática. Quando pareceu
projeto, os recursos e os materiais necessá­ que a arca iria cair do carro, Uzá teve a ou­
rios para a construção (1 Cr 28 -29). sadia de segurá-la e morreu. Porém, Deus
Sem dúvida, também havia um motivo havia advertido sobre essa questão na lei de
político para transferir a arca para Jerusalém, Moisés e, por certo, todo israelita conhecia
pois ela simbolizava "uma nação, sob o a lei (Nm 1:51; 4:1 5, 20). Não há evidência
governo de Deus". Davi envolveu todos os alguma de que Abinadabe fosse um levita
líderes mais importantes de Israel no plane­ nem de que seus filhos, Uzá e Aiô, fossem
jamento desse evento e enviou um convite sequer qualificados a ficar perto da arca,
geral aos sacerdotes e levitas, para que fos­ quanto mais tocá-la. Mais que depressa, Davi
sem a Jerusalém. "Reuniu, pois, Davi a todo providenciou para que a arca fosse levada
o Israel, desde Sior do Egito até à entrada à casa de um levita chamado Obede-Edom
de Hamate, para trazer a arca de Deus de (1 Cr 15:18, 21, 24; 16:5; 26:4-8, 15), local
Quiriate-Jearim" (1 Cr 13:5). Hamate marca­ onde ela permaneceu por três meses.
va a fronteira do extremo Norte da terra dada No início de novos períodos da história
por Deus a Israel (Nm 34:8). Davi tinha es­ bíblica, por vezes, Deus manifestava seu jul­
peranças de que as divisões passadas e as gamento de modo a lembrar seu povo de
diferenças entre as tribos fossem esquecidas, que uma coisa não muda: o povo de Deus
enquanto o povo se concentrava no Senhor. deve obedecer à Palavra de Deus. Depois
A presença da arca significava a presença que o tabernáculo foi erguido e que o mi­
de Deus, a qual significava segurança e nistério sacerdotal foi ordenado, Nadabe e
vitória. Abiú, filhos de Arão, morreram por terem
Porém, uma coisa ficou faltando: Davi tentado aproximar-se indevidamente do san­
não consultou o Senhor sobre esse assunto. tuário levando consigo "fogo estranho" (Lv
A mudança da arca para Jerusalém parecia 10). Quando Israel entrou na terra de Canaã
uma idéia sensata, e todos concordaram e começou a conquistá-la, Deus ordenou
com entusiasmo, mas o rei não seguiu seu que Acã fosse executado por desobedecer
costume de pedir que o Senhor o orientas­ e tomar para si despojos de Jericó (Js 6 - 7).
se. Afinal, aquilo que agrada o rei e o povo Nos começos da Igreja do Novo Testamen­
pode não ser, necessariamente, aquilo que to, Ananias e Safira foram mortos por mentir
é agradável a Deus, e se não é agradável ao a Deus e a seu povo (At 5). Aqui, no come­
Senhor, não tem sua bênção. A primeira ten­ ço do reinado de Davi em Jerusalém, Deus
tativa de Davi foi um terrível fracasso, pois lembrou os israelitas de que, ao servi-lo, não
os levitas não levaram a arca sobre os om­ deveriam imitar outras nações, pois necessi­
bros. Deus havia dado instruções específi­ tavam somente da sua Palavra.
cas, por intermédio de Moisés, sobre como A Igreja de hoje precisa dar ouvidos a
o tabernáculo deveria ser erguido, desmon­ essa lembrança e voltar à Palavra de Deus, a
tado e transportado (Nm 4), sendo que as fim de compreender qual é a vontade do
2 SAMUEL 5 - 6 313

Senhor. Não há união ou entusiasmo que a essa altura Davi adorava como rei e sa­
compense a desobediência. Não é possível, cerdote em Jerusalém. A procissão foi acom­
de modo algum, esperar a bênção de Deus panhada por levitas tocando instrumentos
quando sua obra é feita de acordo com pa­ musicais e entoando cânticos de louvor ao
drões humanos e quando se imita o mundo Senhor.
em vez de obedecer à Palavra. Pode ser que A dança de Davi foi pessoal e sincera,
todo o povo aprove o que fazemos, mas e feita diante do Senhor ao celebrar a chega­
quanto à aprovação de Deus? Os padrões da de sua presença na capital. E provável
mundanos, em última análise, terminam em que alguns dos salmos (24, 47, 68, 95, 99,
morte. 105,106,132; ver 1 Cr 16:7-36) reflitam seus
A segunda tentativa (6:12-19). Quando pensamentos e sentimentos nessa ocasião.
Davi ficou sabendo que a presença da arca Na Antiguidade, a dança desempenhava
estava trazendo bênçãos sobre a casa de papel importante tanto nos cultos pagãos
Obede-Edom, desejou que ele próprio e seu quanto na adoração em Israel (SI 149:3) e
povo fossem abençoados. A arca deveria fi­ também na comemoração de ocasiões es­
car na tenda erguida para ela em Jerusalém. peciais como casamentos, reuniões de fa­
Uma vez que 1 e 2 Crônicas foram escritos mília (Lc 15:25) e vitórias militares (Jz 11:34).
do ponto de vista sacerdotal, o relato da se­ Normalmente, eram as mulheres que dan­
gunda tentativa é bem mais completo do que çavam e cantavam diante do Senhor (Êx
o registro de Samuel (1 Cr 15:1 - 16:3). 15:20, 21; 1 Sm 18:6; SI 68:24-26); quando
Dessa vez, Davi estava determinado a reali­ as danças eram realizadas por pessoas de
zar a obra de Deus à maneira de Deus e, ambos os sexos, os homens ficavam separa­
portanto, enviou os levitas à casa de Obede- dos das mulheres. As danças religiosas são
Edom, a cerca de dezesseis quilômetros de mencionadas ou ficam subentendidas ao
Jerusalém, e eles levaram a arca para Jerusa­ longo do Livro de Salmos (26:6, 7; 30:11;
lém sobre os ombros. Para certificar-se de 42:4; 150:4).
que o Senhor não enviaria outro julgamento, O Novo Testamento não apresenta qual­
depois dos seis primeiros passos que deram, quer evidência de que a dança fosse uma
os levitas pararam, e os sacerdotes oferece­ "forma artística de adoração" usada na sina­
ram um boi e um novilho cevado. Quando goga judaica ou na liturgia da Igreja primiti­
o Senhor não irrompeu em julgamento, tive­ va. Os gregos introduziram a dança no culto
ram certeza de que aquilo que estavam fa­ da Igreja depois da era dos apóstolos, mas
zendo era agradável a Deus (1 Cr 17:26).5 essa prática levou a sérios problemas mo­
Quando a procissão chegou à tenda em Je­ rais e acabou sendo proibida. Era difícil para
rusalém, os sacerdotes ofereceram mais ca­ as congregações fazerem distinção entre
torze sacrifícios (1 Cr 15:26). "danças cristãs" e danças realizadas em ho­
Davi dançou com grande entusiasmo em menagem a uma deusa ou deus pagão, de
adoração perante o Senhor, vestindo-se para modo que a Igreja aboliu essa prática, e, pos­
a ocasião com uma estola sacerdotal de linho teriormente, os patriarcas eclesiásticos a
(v. 14). Posteriormente, sua esposa acusou- condenaram.
o de expor-se de modo vergonhoso (v. 20), Quando a arca encontrava-se acomoda­
mas de acordo com 1 Crônicas 15:27, ele da em segurança na tenda, Davi abençoou
também usava um manto real sob a estola. o povo (outro ato sacerdotal) e distribuiu en­
Apesar de não ser da tribo de Levi, Davi atuou tre todos uma porção de pão e carne (ou
tanto como rei quanto como sacerdote - vinho) e um bolo de passas. Mais uma vez,
um retrato de Jesus, o Filho de Davi, que exer­ isso nos traz à memória a imagem do rei-
ce essas duas funções "segundo a ordem sacerdote Melquisedeque, que veio de
de Melquisedeque" (Hb 6:20 - 8:13; S1110). Salém e deu pão e vinho a Abraão (Cn 14:18,
No tempo de Abraão, Melquisedeque era 19). Porém, quando Davi voltou para casa a
rei e sacerdote de Salém (Cn 14:17-24), e fim de abençoar sua família, descobriu que
314 2 SAMUEL 5 - 6

a esposa se envergonhou dele e até mesmo palavras, Davi não precisava do conselho
o desprezou por ter dançado com tanto espiritual da filha carnal de um rei destituído
entusiasmo em público (vv. 16, 20-23). É in­ e desonrado. Talvez Mical não tivesse gos­
teressante observar que, de acordo com o tado daquilo que Davi disse sobre a negli­
texto, Mical viu "o rei Davi" (v. 16), não "seu gência de Saul em relação à arca (1 Cr 13:3).
marido", e que ela é chamada de "filha de Davi amava Mical e a quis de volta quando
Saul" (v. 20), não de "esposa de Davi". Ao se tornou rei (2 Sm 3:12-16), mas o amor
dirigir-se a Davi, Mical usou a terceira pes­ pode ser facilmente magoado quando me­
soa ("Que bela figura fez o rei de Israel"), nos se espera.
não a segunda pessoa, mais íntima, e seu Mical disse que Davi havia se humilha­
discurso foi extremamente sarcástico. Foi do diante do povo, mas Davi respondeu a
uma grande infelicidade o dia tão alegre de essa acusação dizendo que ela seria ainda
celebração de Davi ter encerrado com a re­ mais humilhada e, daquele dia em diante,
cepção cruel e insensível da própria esposa. deixou de lhe conceder seus privilégios con­
Muitas vezes, porém, os servos de Deus jugais. Naquele tempo, não ter filhos era uma
passam rapidamente da montanha da glória grande humilhação para uma esposa, espe­
para o vale das sombras. cialmente se o marido a rejeitava. Porém, a
Não há evidência alguma de que Davi esterilidade de Mical foi uma bênção do
fosse culpado de qualquer das acusações Senhor, pois evitou que a família de Saul
de Mical. Vestiu-se de modo apropriado, não tivesse continuidade em Israel e, assim,
se expôs indevidamente ao povo, e sua dan­ ameaçasse o trono de Davi. Jônatas e Davi
ça foi realizada perante o Senhor, que sabia haviam feito uma aliança de governar em
o que se passava em seu coração. Davi re­ conjunto (1 Sm 23:16-18), mas Deus rejei­
conheceu em Mical o mesmo orgulho e falta tou esse plano ao permitir que Jônatas fosse
de visão espiritual do pai, Saul, cujo único morto em combate. O Senhor desejava que
desejo era obter e manter sua popularida­ a linhagem e o trono de Davi fossem manti­
de. Davi preferiu viver e servir de modo a dos separados de qualquer outra dinastia,
agradar ao Senhor. Lembrou a Mical que o pois a linhagem de Davi chegaria a seu auge
Senhor o havia escolhido para tomar o lugar com o nascimento de Jesus Cristo, o Mes­
do pai dela no trono e de que faria tudo o sias. Esse será o tema do próximo capítulo
que o Senhor o impelisse a fazer. Em outras da história de Davi.

1. Como foi que todo esse povo se reuniu em Hebrom para comer e beber durante três dias sem transtornar a cidade e sua
economia? É possível que 1 Crônicas 13:1 nos dê a resposta, pois, apesar de o cronista apresentar os totais das unidades

militares leais a Davi, talvez apenas os oficiais tenham comparecido à coroação, ou seja, cerca de 3.750 homens. Nem

todos os soldados estavam presentes, mas todos estavam representados e, por meio de seus oficiais, declararam lealdade

ao novo rei.
2. O nome "Elifelete" aparece duas vezes na lista e também é indicado como "Elpeiete".

3. Se o feito corajoso desses três valentes ocorreu nessa época, então Davi encontrava-se na caverna de Adulão (2 Sm 23:13).

4. Alguns estudiosos do Antigo Testamento situam esse evento num período posterior da carreira de Davi, depois de haver
pecado com Bate-Seba e de ter lutado inúmeras batalhas contra o inimigo (2 Sm 8 - 12). Ver D a y , W illiam Crockett.

A Harmony of the Books of Samuel, Kings and Chronides. Baker Book House, 1964.
5. É pouco provável que esses sacrifícios tenham sido oferecidos a cada seis passos enquanto a procissão se dirigia a Jerusalém.

A jornada teria sido extremamente longa e exigido um número enorme de sacrifícios. Uma vez que Davi teve certeza da
aprovação de Deus, a marcha prosseguiu confiantemente.
4 também um pastor que se preocupava com
seu povo. Quando estava descansando, pen­
sava no trabalho que poderia realizar, e ao
ser bem-sucedido, pensava em Deus e em
A D inastia , a B o n d a d e e sua bondade para com ele.
Neste capítulo, o Senhor concedeu uma
as C o n q u ist a s de D avi
revelação a Natã e a Davi que costuma ser
chamada de aliança davídica.1 Essa declara­
2 S am uel 7 - 1 0
ção não apenas teve grande significado para
( V er t a m b é m 1 C r ô n íc a s 1 7 - 1 9 ) Davi em seu tempo, como também é rele­
vante nos dias de hoje para Israel, para a
Igreja e para o mundo em geral.
estes quatro capítulos, vemos o rei Davi O significado da aliança para Davi (w.
N envolvido em quatro atividades impor­
tantes: ele aceita a vontade de Deus (cap.
1-9). Não nos admiramos com o desejo de
Davi de construir uma casa para o Senhor,
7), luta as batalhas de Deus (cap. 8), com­ pois era um homem segundo o coração de
partilha a bondade de Deus (cap. 9) e de­ Deus e ansiava por honrar ao Senhor de to­
fende a honra de Deus (cap. 10). Porém, das as maneiras possíveis. Durante os anos
essas atividades não eram novidade para de exílio, Davi havia feito um voto ao Se­
Davi, pois, mesmo antes de ser coroado rei nhor de que iria construir-lhe um templo (SI
sobre todo Israel, servira ao Senhor e a seu 132:1-5), e o fato de trazer a arca a Jerusa­
povo dessa maneira. Davi não mudou pelo lém foi, certamente, o primeiro passo para o
fato de usar uma coroa e de assentar-se num cumprimento desse voto. Nesse momento,
trono, pois em seu caráter e conduta sem­ Davi sentia-se perturbado, pois vivia numa
pre viveu como rei. Como é triste que, do casa confortável de pedra com painéis de
capítulo 11 em diante, vejamos Davi desobe­ cedro, enquanto o trono de Deus estava
decendo ao Senhor e sofrendo as conse­ numa tenda, e o rei compartilhou sua preo­
qüências dolorosas de seus pecados. Andrew cupação com Natã.
Bonar estava certo quando disse: "Perma­ Essa é a primeira vez que Natã aparece
neçamos tão vigilantes depois da vitória nas Escrituras. Gade havia sido o profeta
quanto antes da batalha". de Davi durante o exílio (1 Sm 22:5) e não
saiu de cena mesmo depois que Davi foi
1. D avi aceitou a vontade de D eus coroado (2 Sm 24:1-18). Na verdade, Gade
(2 Sm 7:1-29; 1 C r 17:1-27) e Natã trabalharam juntos mantendo em dia
O que os reis faziam no mundo antigo quan­ os registros oficiais (1 Cr 29:25, 29) e orga­
do não tinham guerras nas quais lutar? Na- nizando o culto (2 Cr 29:25). Mas, ao que
bucodonosor inspecionou sua cidade e se parece, Natã foi a voz profética de Deus a
vangloriou perguntando: "Não é esta a gran­ Davi durante seu reinado. Foi Natã quem
de Babilônia que eu edifiquei [...]?" (Dn 4:30). confrontou Davi com seu pecado (cap. 12)
Salomão ajuntou riquezas e esposas, rece­ e também quem providenciou para que
beu visitantes estrangeiros e escreveu livros, Salomão fosse coroado rei (1 Rs 1:11 ss).
enquanto Ezequias parece ter supervisiona­ Davi teve quatro filhos com Bate-Seba e deu
do estudiosos que copiaram e conservaram a um deles o nome de Natã (1 Cr 3:1-5).2
as Escrituras (Pv 25:1). Mas, de acordo com Ao instruir Davi a fazer tudo o que estives­
2 Samuel 7:1-3, temos a impressão de que, se em seu coração, Natã não estava afir­
em suas horas vagas, Davi meditou sobre o mando que os desejos de Davi eram, de
Senhor e conversou com Natã, seu capelão fato, a vontade de Deus. Antes, incentivou
particular, sobre formas de melhorar as con­ o rei a ir atrás do que queria e a descobrir
dições espirituais do reino de Israel. Davi o que o Senhor desejava que fizesse. Deus
não foi simplesmente um governante, mas respondeu dando a Natã uma mensagem
316 2 SAMUEL 7 - 1 0

especial ao rei, a qual o profeta transmitiu vir ao mundo. A aliança de Deus com Davi
fielmente. desenvolve-se dessa aliança com Abraão,
Na primeira parte da mensagem, Deus pois se refere à nação, à terra e ao Messias.
lembrou a Davi que, em momento algum, O Senhor começou falando da terra de
havia pedido a qualquer tribo ou líder tribal Israel (v. 10) e prometeu "descanso" a Israel.
que construísse uma casa para ele. Deus O termo "descanso" é parte importante do
havia ordenado que Moisés fizesse um vocabulário profético e se refere a diversas
tabernáculo, onde Deus habitaria, e havia bênçãos relacionadas ao plano de Deus para
se contentado em viajar com seu povo pe­ seu povo. O conceito de "descanso" teve
regrino e em habitar com ele onde quer que início com o descanso de Deus ao comple­
acampasse. Uma vez que Israel estava na tar a criação (Cn 2:1-3), o que serviu de base
terra e tinha paz, não precisava de um para que Israel guardasse o sábado (Êx 20:8­
templo, mas sim de um líder que se preo­ 11). Depois que Deus libertou Israel do Egi­
cupasse com o povo, e, por isso, Deus ha­ to, prometeu lhes dar "descanso" em sua
via chamado Davi para apascentar o povo própria terra (Êx 33:14; Dt 25:19; Js 1:13,
de Israel. Deus esteve com Davi para prote­ 15). Davi estava tão ocupado com suas
ger sua vida e para fazê-lo prosperar em seu guerras que não podia construir o templo
serviço e engrandeceu o nome de Davi. Ape­ (1 Rs 5:1 7),3 mas quando Deus deu des­
sar de seus desejos e de seu voto, Davi não canso a Israel, Salomão construi a casa do
iria construir o templo. O melhor que pode­ Senhor usando o projeto e os materiais que
ria fazer pelo Senhor era continuar pasto­ Deus havia dado a Davi (1 Rs 5:1-4; 8:56;
reando o povo e servindo de exemplo de SI 89:19-23).
vida piedosa. O conceito de "descanso" vai além
Essa declaração deve ter sido uma de­ dessas questões, pois também se refere ao
cepção para Davi, mas ele a aceitou com descanso espiritual que os cristãos têm em
reverência e deu graças ao Senhor por toda Jesus Cristo (Mt 11:28-30; Hb 2:10-18; 4:14­
a sua bondade para com ele. Quando 16). Esse conceito também vislumbra o rei­
Salomão consagrou o templo, explicou que no futuro de Israel e o descanso que o povo
Deus havia aceitado o desejo de Davi no de Deus desfrutará quando Jesus Cristo se
lugar de sua concretização: "Já que desejas­ assentar no trono de Deus (Is 11:1-12; 65:1 7­
te edificar uma casa ao meu nome, bem fi­ 25; Jr 31:1-14; 50:34).
zeste em o resolver em teu coração" (1 Rs Em seguida, o Senhor passou das promes­
8:18; ver 2 Co 8:12). Os servos de Deus sas sobre a terra e a nação para as promessas
devem aprender a aceitar as decepções da sobre o trono e a família de Davi (vv. 11-16).
vida, pois como A. T. Pierson costumava di­ Todo rei se preocupa com o futuro de seu
zer: "As decepções que temos são oportu­ reino, e o Senhor prometeu dar a Davi algo
nidades de Deus". acima e além de qualquer coisa que o rei
O significado da aliança para Israel (vv. pudesse ter imaginado. Davi desejava
10-15). Os propósitos de Deus e seu relacio­ edificar uma casa para Deus (o templo), mas
namento com o povo de Israel são funda­ Deus prometeu edificar uma casa para Davi
mentados em sua aliança com Abraão (Cn - uma dinastia eterna! A palavra "casa" é
12:1-3; 15:1-15). Pela graça, Deus escolheu usada quinze vezes neste capítulo e se refe­
Abraão e prometeu lhe dar uma terra, um re ao palácio de Davi (w. 1, 2), ao templo
grande nome, muitos descendentes e sua (w. 5-7, 13) e à dinastia de Davi, culminan­
bênção e proteção. Também prometeu que do com Jesus Cristo, o Messias (vv. 11, 13,
o mundo todo seria abençoado por inter­ 16, 18-29).
médio da descendência de Abraão, afirma­ Deus anunciou a vinda do Salvador pela
ção que se refere a Jesus Cristo (Cl 3:1-16). primeira vez em Gênesis 3:15, informando
Deus chamou Israel para ser o canal humano que o Salvador seria um ser humano e não
pelo qual seu Filho e sua Palavra poderiam um anjo. De acordo com Gênesis 12:3, ele
2 SAMUEL 7 - 1 0 317

viria de Israel e abençoaria o mundo todo, e a Davi por ter mantido a luz brilhando, a fim
Gênesis 49:10 diz que viria da tribo de Judá. de que o Salvador pudesse vir ao mundo.
Nessa aliança, Deus anunciou a Davi que o Deus disciplinou Israel pelos pecados do
Messias viria por sua família, e a profecia de povo, porém jamais rompeu sua aliança nem
Miquéias 5:2 afirma que ele nasceria em removeu sua misericórdia (2 Sm 7:15; 22:51;
Belém, a Cidade de Davi (ver Mt 2:6). Não 1 Rs 3:6; 2 Cr 6:42; SI 89:28, 33, 49).
é de se admirar que o rei se tenha enchido O significado da aliança para os cristãos
de tanto júbilo ao saber que o Messias seria de hoje (w. 18-29). Observamos anterior­
conhecido como "o Filho de Davi" (Mt 1:1)! mente que a Igreja deve sua existência ao
Nessa seção, o Senhor se refere a Salo­ fato de Deus ter usado a família de Davi para
mão e também ao Salvador, aquele que é trazer ao mundo o Salvador e que há um
"maior do que Salomão" (Mt 12:42). Salo­ futuro para Israel, pois Deus deu a Davi um
mão construiria o templo que Davi desejava trono para sempre. A forma de Davi reagir a
edificar, mas seu reinado teria fim; o Mes­ essa Palavra extraordinária de Deus é um
sias, porém, reinaria eternamente. Davi teria ótimo exemplo a seguir hoje. Ele se humi­
uma casa para sempre (2 Sm 7:25, 29), um lhou diante do Senhor, chamando a si mes­
reino para sempre (v. 16), um trono para mo pelo menos dez vezes de servo de Deus.
sempre (w. 13,16) e glorificaria o nome de Os servos costumavam ficar alertas e à es­
Deus para sempre (v. 26). pera de ordens, mas Davi assentou-se dian­
Tudo isso se cumpriu em Jesus Cristo, o te do Senhor. A aliança que Deus firmou
Filho de Davi (SI 89:34-37; Lc 1:32, 33, 69; com Davi era incondicional; tudo o que Davi
At 2:29-36; 13:22, 23; 2 Tm 2:8), e se ma­ precisava fazer era aceitá-la e deixar que
nifestará quando ele voltar, estabelecer seu Deus cumprisse a parte dele. Assim como
reino prometido e se assentar no trono de uma criança pequena falando com a mãe
Davi. As bênçãos espirituais que Deus con­ ou com o pai amoroso, o rei chamou a si mes­
cedeu a Davi são oferecidas hoje em Jesus mo de "Davi" (v. 20) e derramou seu cora­
a todos os que crerem nele (Is 55:1-3; At 12 ção perante o Senhor.
32-39). Jesus Cristo as cumprirá literalmente Em primeiro lugar, concentrou-se no pre­
no reino futuro prometido a Israel (Is 9:1-7; sente, ao dar louvores pelas misericórdias
11:1-16; 16:5; Jr 33:15-26; Ez 34:23, 24; que Deus havia lhe concedido (vv. 18-21).
37:24, 25; Os 3:5; Zc 12:7, 8).4 O trono de Foi a graça de Deus que conduziu Davi até
Davi chegou ao fim em 586 a.C. com lá, dos apriscos para o trono; depois, Deus
Zedequias, o último rei de Judá, mas a linha­ lhe falou de sua descendência, que se es­
gem de Davi continuou e trouxe ao mundo tenderia a um futuro distante. Nos versículos
Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mt 1:12-25; 18 a 20 e 28 e 29, Davi dirige-se a Deus
Lc 1:26-38, 54, 55: 68-79). como " S enhor Deus", em hebraico, "Jeová
Do ponto de vista humano, a nação de Adonai, o Senhor Soberano" (nos vv. 22 e
Israel teria perecido rapidamente se Deus 25 é usada a designação "Jeová Eloim", o
não tivesse se mantido fiel à sua aliança com Deus de poder). Somente um Deus de gra­
Davi, que foi "a lâmpada de Israel" (2 Sm ça soberana poderia fazer tal aliança e so­
21:17). Por mais que os reis e o povo te­ mente um Deus de poder soberano seria
nham se corrompido, o Senhor preservou capaz de cumpri-la. Davi pergunta se Deus
uma lâmpada para Davi e para Israel (1 Rs se relaciona com todos os seres humanos
11:36; 15:4; 2 Rs 8:19; 2 Cr 21:7; S1132:1 7). dessa maneira (v. 19). De certa forma, a res­
Quer reconheçam quer não, os judeus têm posta é não, pois Deus escolheu a casa de
uma grande dívida para com Davi por seu Davi para trazer seu Filho ao mundo; por
templo, pelos instrumentos e cânticos usa­ outro lado, porém, a resposta é sim, pois
dos no templo, pela organização do minis­ qualquer pecador pode crer em Jesus Cristo
tério do templo e pela proteção de Israel e ser salvo, passando a fazer parte da famí­
das nações inimigas. Hoje, devemos muito lia de Deus. Davi considerou as promessas
318 2 SAMUEL 7 - 1 0

dessa aliança uma "grandeza" (v. 21) em Devemos considerar as atividades mili­
função do amor de Deus e da segurança de tares de Davi à luz das alianças de Deus com
sua Palavra. Israel por meio de Abraão (Gn 12, 15),
Nos versículos 22 a 24, Davi olhou para Moisés (Dt 27 - 30) e do próprio Davi (2 Sm
o passado e viu a graça maravilhosa de Deus 7). O Senhor havia prometido a Israel a terra
para com Israel. O Senhor escolheu Israel que se estendia do rio do Egito até o rio
em lugar das outras nações da Terra e se Eufrates (Gn 15:1 7-21; Dt 1:6-8; 11:24; 1 Rs
revelou a seu povo ao dar as leis no monte 4:20, 21) e usou Davi para ajudar a cumprir
Sinai e ao proferir sua Palavra por intermé­ essa promessa. Durante o reinado de Saul,
dio de seus profetas (ver Dt 4:34; 7:6-8; 9:4, Israel perdera territórios para seus inimigos,
5; Ne 9:10). Deus é Senhor sobre todas as e Davi retomou-os; além disso, expandiu as
nações, mas fez grandes coisas por Israel, fronteiras de Israel e tomou posse de terras
seu povo escolhido. Davi reconheceu a ver­ não conquistadas no tempo de Josué (Js
dade maravilhosa de que Deus havia esco­ 13:1-7). Davi firmou tratados de vassalagem
lhido Israel para ser seu povo para sempre! com a maioria dessas nações e colocou
A terceira parte da oração e louvor de guarnições em suas terras a fim de manter a
Davi (vv. 25-29) voltou-se para o futuro, con­ autoridade de Israel (v. 6). Por ser um ho­
forme a revelação da aliança que o rei havia mem de fé, Davi creu nas promessas de Deus
acabado de receber. Deus proferiu sua Pala­ e agiu em função delas para que seu povo
vra, e Davi creu nela, pedindo ao Senhor fosse abençoado.
que a cumprisse para seu povo. O desejo Porém, as vitórias de Davi também signi­
de Davi era que Israel continuasse como ficaram paz para o povo de Israel, de modo
nação e que o Senhor fosse engrandecido que poderiam viver normalmente, sem a
por intermédio de seu povo. O rei pediu que ameaça constante de seus vizinhos. Israel
sua casa fosse edificada conforme o Senhor tinha uma grande obra a realizar na terra ao
havia prometido (v. 27), mesmo sendo uma servir de testemunho do verdadeiro Deus
decepção para ele saber que não iria edificar vivo e dar ao mundo as Escrituras e o Mes­
uma casa para Deus. O versículo 27 pede: sias. Além disso, as vitórias de Davi resulta­
"venha o teu reino" e o versículo 28: "seja ram em mais riquezas para o tesouro do
feita a tua vontade". Para Davi, bastou sim­ Senhor, fornecendo assim os materiais para
plesmente ouvir as promessas e crer nelas, que Salomão construísse o templo (w. 11­
mas ele também orou pedindo que o Se­ 13; 1 Cr 22). Hoje em dia, a Igreja de Cristo
nhor as cumprisse. não usa armas militares para lutar as bata­
Davi serve de exemplo para nós em sua lhas de Deus (Jo 18:36-38; 2 Co 10:3-6; Ef
humildade, fé e submissão à vontade de 6:14-18), mas podemos empunhar a fé e a
Deus. coragem de Davi e de seus soldados e re­
cuperar para o Senhor territórios perdidos.
2. D avi luta as batalhas do S en h o r Oeste: os filisteus (v. 1) eram inimigos
(2 Sm 8:1-18; 1 C r 18) de longa data dos israelitas e se aproveita­
Este capítulo resume as vitórias do exército vam de toda e qualquer oportunidade para
de Israel sobre seus inimigos, acontecimen­ atacá-los. Em 2 Samuel 21:15-22, são men­
tos que ocorreram mais provavelmente en­ cionadas pelo menos quatro campanhas
tre os capítulos 6 e 7 de 2 Samuel (ver 7:1). diferentes dos filisteus (ver também 1 Cr 20:4­
O Senhor ajudou Davi, Joabe e Abisai a 8), e o texto descreve a morte de vários
conquistar os inimigos de Israel no Oeste gigantes bem como a derrota dos filisteus.
(v. 1), no Leste (v. 2), no Norte (vv. 3-12) e Israel capturou diversas cidades, inclusive
no Sul (vv. 13, 14). Para um relato paralelo, Gate, cidade natal de Golias. Quando era
ver 1 Crônicas 18 - 19. O rei Saul havia jovem, Davi havia matado Golias, mas du­
lutado contra vários desses mesmos inimi­ rante a primeira campanha, não conseguiu
gos (1 Sm 14:47). matar o gigante Isbi-Benobe, sendo que
2 SAMUEL 7 - 1 0 319

Abisai, sobrinho de Davi, precisou salvá-lo com seus inimigos e deles recebeu tributos
(21:15-17). Os homens de Davi aconselharam- (2 Sm 8:6-10).
no a parar de participar pessoalmente das Sul: os edomitas (vv. 12-14). 1 Crônicas
batalhas, e ele deu ouvidos a seu conselho. 18:12, 13 cita os edomitas como inimigos
Bem-aventurado o líder que reconhece suas (ver 1 Rs 11:14b-18), mas é possível que,
fraquezas e que admite a necessidade de nessa época, Edom se encontrasse sob o
mudanças! O nome "Metegue-Amá" (NVI) controle dos sírios e arameus e que estes
quer dizer "as rédeas da metrópole" e pro­ também estivessem envolvidos na batalha.
vavelmente se refere a uma cidade filistéia Ao que parece, enquanto Israel atacava os
importante capturada por Israel; sua locali­ sírios e arameus no Norte, os moabitas os
zação permanece um mistério. "Tomar as atacaram do Sul, mas o Senhor deu a Israel
rédeas" de algo significa assumir o controle uma grande vitória. Apesar de Davi e Joabe
e forçar à submissão. serem os líderes conquistadores nessa ba­
Leste: os moabitas (v. 2) haviam sido talha, foi o Senhor quem recebeu a glória
amigáveis com Davi porque pensaram que quando Davi comemorou a vitória no Salmo
era inimigo de Saul (1 Sm 14:47) e também 60. A expressão "sobre Edom atirarei a minha
porque Davi era aparentado dos moabitas sandália" (60:8) é metafórica e possui senti­
por parte de sua bisavó, Rute (Rt 4:18-22). do duplo: (1) Deus toma posse de Edom co­
Enquanto estava no exílio, Davi chegou até mo seu território; e (2) Deus trata Edom como
a colocar seus pais sob a guarda do rei de um escravo que limpa os sapatos de seu
Moabe (1 Sm 22:3, 4). Na realidade, os Senhor. Exprime a humilhação que Deus fez
moabitas eram parentes dos israelitas pela sobrevir aos edomitas orgulhosos conquis­
parte de Ló, sobrinho de Abraão e pai de tados por Davi.
seu antepassado Moabe (Gn 19:30-38). Pelo Davi também derrotou os amalequitas
fato de os moabitas terem contratado o pro­ (v. 12), incumbência que Saul, seu ante­
feta Balaão para amaldiçoar Israel e de, pos­ cessor, não havia levado a cabo com suces­
teriormente, Balaão ter levado mulheres so (1 Sm 15). Desde os tempos de Moisés,
moabitas a seduzir os homens israelitas (Nm o Senhor declarou guerra a Amaleque (Êx
22 - 25), o Senhor declarou guerra a essa 17:8-12; Nm 14:45; Dt 25:17-19) e Davi
nação, e Davi simplesmente deu continui­ apenas deu continuidade a essa cruzada.
dade a essa cruzada. A maioria dos conquis­ Conforme o Senhor havia prometido (7:9),
tadores teria exterminado todo o exército, Davi foi vitorioso sobre seus inimigos. A fama
mas Davi poupou um em cada três solda­ de Davi cresceu drasticamente em função
dos e impôs um tributo sobre a nação. dessas vitórias (v. 13), e Davi teve o cuidado
Norte: os arameus e sírios (vv. 3-13). de dar a glória a Deus (8:11, 12).
Zobá ficava ao norte de Damasco e fazia A adm inistração em Jerusalém (vv.
parte de uma confederação de nações cha­ 15-18)} Vencer as batalhas é uma coisa, ad­
mada de "os sírios" em algumas versões, mas ministrar os assuntos de uma nação em cres­
cuja tradução mais precisa é "os arameus". cimento é outra bem diferente, e, nesse caso,
No entanto, seus vizinhos - os sírios - tenta­ Davi também mostrou competência. Go­
ram salvá-los, mas também foram derrotados, vernou com justiça e eqüidade e serviu a
de modo que toda a região ao norte do Eufra- todo o povo (v. 15). Davi descreveu um lí­
tes ficou sob o domínio de Davi. Com isso, der desse tipo em 2 Samuel 23:1-7 e o com­
Israel adquiriu instalações militares importan­ parou à aurora e ao sol depois da chuva.
tes e também o controle de valiosas rotas Por certo, Davi representou a aurora de um
de caravanas que passavam por esse territó­ novo dia a Israel depois das trevas do reina­
rio. Israel pôde tributar os comerciantes que do de Saul. Em decorrência disso, Deus usou
passavam por lá e, assim, aumentar sua ren­ Davi para trazer a calmaria depois da tem­
da. Ao derrotar os arameus e os sírios, Davi pestade. Deus ama a eqüidade e a justiça
também criou um relacionamento amigável (SI 33:5) e manifesta ambas ao governar
320 2 SAMUEL 7 - 1 0

sobre seu universo (SI 36:6; 99:4; Is 5:16; Jr guarda pessoal de Davi. No reinado de
9:24; Am 5:24). De fato, Davi foi um homem Salomão, Benaia tornou-se um assessor ines­
segundo o coração de Deus. timável (1 Rs 1:38, 44).
Um bom governante deve nomear su­ Apesar de nem todos os filhos de Davi
bordinados competentes e sábios, e foi o terem se mostrado homens dignos, ele os
que Davi fez. Joabe, sobrinho de Davi, havia colocou para servir como oficiais em seu
matado Abner de modo traiçoeiro (3:27-39), governo. Além de ser bom para eles, era uma
mas Davi o escolheu para ser comandante forma de o rei obter informações sobre o
de seu exército. Sabemos pouca coisa so­ que estava acontecendo no país. O título
bre Josafá e seu cargo no governo de Davi. "ministro" é uma tradução do termo hebraico
É provável que o "cronista" fosse o oficial para "sacerdote". Uma vez que Davi era da
que mantinha os registros e que aconselha­ tribo de Judá, nem ele nem os filhos pode­
va o rei como secretário de Estado. Também riam entrar nos lugares santos do tabernáculo
é possível que fosse o presidente do conse­ e ministrar como sacerdotes, de modo que
lho do rei. A situação em Isaías 36 indica o termo provavelmente quer dizer "conse­
que o secretário/cronista era membro do alto lheiros particulares". Eram homens que ti­
escalão (ver vv. 3, 22). nham acesso ao rei e que o assistiam na
Tanto Zadoque quanto Abimeleque ser­ administração dos assuntos do reino.
viam como sacerdotes, pois a arca encon­
trava-se em Jerusalém e o tabernáculo em 3. D avi c o m p a r t il h o u a b o n d a d e de
Gibeão (1 Cr 16:39ss). Saul ordenou que D eu s (2 Sm 9:1-13)
Doegue matasse o sacerdote Aimeleque "A bondade de Deus" é um dos dois temas
(1 Sm 22:6ss). Abiatar, filho do sacerdote, deste capítulo (w. 1, 3, 7) e significa a mise­
sobreviveu ao massacre de sacerdotes em ricórdia e o favor do Senhor com os que
Nobe e se juntou ao grupo de Davi em não são merecedores. Paulo viu a bondade
Queila (22:20; 23:6). Acompanhou Davi de Deus na vinda de Jesus Cristo, em sua
durante seus anos de exílio e é bem prová­ obra na cruz (Tt 3:1-7 [3:4]; Ef 2:1-9 [2:7]).
vel que tenha tido um filho, ao qual deu o Pelo modo como Davi tratou Mefibosete,
nome de Aimeleque, em homenagem ao avô observamos um retrato da bondade de Deus
martirizado do menino. Quando alcançou com os pecadores. Davi havia prometido
a idade apropriada, o rapaz serviu com o tanto a Saul quanto a Jônatas que não exter­
pai e com Zadoque. Encontramos Zadoque minaria seus descendentes quando se tor­
e Abiatar trabalhando juntos quando a arca nasse rei (1 Sm 20:12-17, 42; 24:21) e, no
foi levada para Jerusalém (2 Sm 15:24, 35) caso de Mefibosete, filho de Jônatas, Davi
e quando Absalão rebelou-se contra Davi não apenas cumpriu sua promessa como
(2 Sm 17:15; 19:11, 12). também foi além de seu dever.
Seraías, o escrivão, também era conhe­ O segundo tema importante desse capí­
cido como Seva (20:25), Sausa (1 Cr 18:16) tulo é a realeza de Davi. O nome "Davi" é
e Sisa (1 Rs 4:3). A referência em 1 Reis in­ usado sozinho seis vezes neste capítulo; em
forma que dois de seus filhos herdaram seu seis ocasiões, ele é chamado de "rei", e
cargo. A escolha mais notável foi Benaia, em um caso, de "rei Davi" (v. 5). Ninguém
comandante da guarda pessoal de Davi e em todo o Israel além de Davi poderia ter
valente guerreiro (2 Sm 23:20-23), que tam­ demonstrado tamanha bondade para com
bém era sacerdote (1 Cr 27:5). No Antigo Mefibosete, pois Davi era o rei. Havia her­
Testamento, não era incomum um sacerdo­ dado tudo o que tinha pertencido ao rei Saul
te tornar-se profeta (Jeremias, Ezequiel), mas (12:8) e poderia dispor de tais coisas como
um sacerdote servir como oficial militar é bem lhe aprouvesse. Sem dúvida, temos aqui
um caso excepcional. Os queretitas e pele- um retrato de Jesus Cristo, o Filho de Davi,
titas eram mercenários estrangeiros excelen­ que por sua morte, ressurreição e ascensão
tes em seu trabalho, os quais constituíam a foi glorificado no trono celestial e, agora,
2 SAMUEL 7 - 1 0 321

pode conceder suas bênçãos espirituais aos e lhe garantiu, no mesmo instante, que não
pecadores necessitados. O nome "Davi" sig­ havia coisa alguma a temer. Em seguida, Davi
nifica "amado", e Jesus é o Filho amado de "adotou" Mefibosete extra-oficialmente ao
Deus (Mt 3:17; 17:5), enviado ao mundo devolver-lhe as terras que o pai, Jônatas, te­
para salvar os pecadores. ria herdado de Saul e, depois, ao convidá-lo
O rei encontra Mefibosete (vv. 1-4). É a viver no palácio e comer à mesa do rei.
importante observar que a motivação de Davi havia comido à mesa de Saul, o que
Davi para procurar Mefibosete não foi a por pouco não lhe custou a vida, mas Mefi­
condição triste de um homem aleijado, mas bosete podia assentar-se à mesa de Davi, e
sim o desejo de Davi de honrar Jônatas, o sua vida seria protegida.
pai desse homem. Davi fez o que fez "por O fato de Davi ter tomado a iniciativa
amor a Jônatas" (1 Sm 20:11-17). Mefibosete de resgatar Mefibosete nos lembra de que
estava com cinco anos de idade quando seu foi Deus quem deu o primeiro passo em nos
pai morreu em combate (2 Sm 4:4) e, por­ buscar e não nós. Estávamos separados de
tanto, a essa altura, estaria com cerca de vin­ Deus e éramos seus inimigos; no entanto,
te e um anos de idade e também tinha um ele nos amou e enviou seu Filho para mor­
filho (2 Sm 9:12). Davi não poderia demons­ rer por nós. "Mas Deus prova seu próprio
trar amor nem bondade a Jônatas, de modo amor para conosco pelo fato de ter Cristo
que procurou um dos parentes do amigo morrido por nós, sendo nós ainda pecado­
ao qual pudesse expressar sua afeição. O res" (Rm 5:8). Para Davi, resgatar e restaurar
mesmo acontece com os filhos de Deus: são Mefibosete custou-lhe apenas as terras de
chamados e salvos, não por merecerem al­ Saul, pelas quais ele nem sequer havia pago.
guma coisa de Deus, mas por amor a Jesus Para que Deus nos restaurasse e aceitasse
Cristo, o Filho de Deus (Ef 1:6; 4:32). Em sua em sua família, foi preciso que Jesus sacrifi­
graça, Deus nos dá aquilo que não merece­ casse sua vida. Nossa herança é muito mais
mos e, em sua misericórdia, ele não dá aquilo do que um pedaço de terra aqui no mundo:
que merecemos. é um lar eterno no céu!
Davi descobriu o paradeiro de Mefibo­ O rei dá riquezas a Mefibosete (w. 9­
sete por meio de Ziba, administrador das 13). Davi incluiu Mefibosete em sua família,
propriedades de Saul. Ziba respondeu às supriu suas necessidades, protegeu-o e per­
perguntas de Davi sobre Mefibosete, mas mitiu que comesse à mesa dele. Não seria
acabou mostrando ser um homem dissimu­ fácil cuidar de um homem adulto, aleijado
lado e mentiu ao rei sobre Mefibosete quan­ de ambos os pés, mas Davi prometeu que o
do Davi fugiu de Absalão (16:1-4) e quando faria. Antes, Mefibosete havia contado com
Davi voltou a Jerusalém (19:17, 24-30). A o serviço de Ziba e de seus quinze filhos,
combinação da impulsividade de Davi com além de mais vinte servos (v. 10), mas, a par­
a falsidade de Ziba custou a Mefibosete tir daquele dia, teria todos os recursos e a
metade de suas propriedades. autoridade do rei de Israel a sua disposição!
O rei chama Mefibosete (vv. 5-8). O que Ziba, seus filhos e servos continuariam tra­
teria passado pela mente desse príncipe alei­ balhando nas terras de Mefibosete e lhe
jado ao ser convocado a se apresentar dian­ dariam os lucros, mas essa receita seria in­
te do rei? Se ele acreditava no que seu avô significante se comparada à riqueza do rei.
havia dito sobre Davi, deve ter ficado com Em quatro ocasiões nesta passagem Davi diz
medo de ser morto; mas se havia dado ouvi­ que Mefibosete "comeria à sua mesa" (vv.
dos às palavras do pai sobre Davi, deve ter 7, 10, 11, 13), o que mostra que o filho de
se alegrado. Alguém teve de ajudar o rapaz Jônatas seria tratado como filho de Davi.
a chegar até o palácio, onde ele se prostrou Mefibosete considerava-se um "cão
diante de Davi - algo difícil para um homem morto" (v. 8), assim como nós também está­
aleijado de ambos os pés - e reconheceu vamos "mortos" em nossos pecados e trans­
sua indignidade. O rei chamou-o pelo nome gressões quando Jesus nos chamou e nos
322 2 SAMUEL 7 - 1 0

deu uma nova vida (Ef 2:1-6). Temos uma em guerra e não em paz. Suas propostas ao
posição mais elevada do que aquela que povo vizinho foram interpretadas incorreta­
Davi deu a Mefibosete, pois nos assentamos mente e Davi teve de defender a própria
no trono com Jesus Cristo e reinamos em honra, bem como a honra do Senhor e de
vida com ele (Rm 5:17). Deus nos dá as ri­ seu povo.
quezas de sua misericórdia e graça (Ef 2:4­ Uma ofensa pública (w. 1-5). A primei­
7) e também as "insondáveis riquezas" em ra vitória militar de Saul foi sobre Naás e o
Cristo (Ef 3:8). Deus supre todas as nossas exército amonita, quando atacaram Jabes-
necessidades, usando para isso não os te­ Gileade (1 Sm 11). Assim como os amonitas,
souros de um rei aqui da terra, mas sim "sua os moabitas eram descendentes de Ló (Gn
riqueza em glória" (Fp 4:19). Mefibosete 19:30ss) e, portanto, parentes dos israelitas.
passou o resto de seus dias na Jerusalém De que maneira Davi desenvolveu uma re­
aqui da terra (2 Sm 9:13), mas os filhos de lação amigável com os amonitas, uma vez
Deus de hoje já são cidadãos da Jerusalém que seu antecessor havia guerreado contra
celestial, onde habitarão para sempre com eles? É provável que isso tenha ocorrido en­
o Senhor (Hb 12:22-24). quanto Davi se encontrava no exílio e quan­
Esse episódio comovente da vida de Davi do parecia estar em guerra com Saul. Ao
ilustra não apenas a experiência espiritual do longo dos anos de sua vida como "foragi­
cristão em Jesus Cristo, mas também nos re­ do", Davi tentou construir uma rede de ami­
vela que Davi foi, de fato, um homem segun­ zades fora de Israel, na esperança de que
do o coração de Deus (1 Sm 13:14; At 13:22). esses contatos lhe fossem úteis quando se
Foi um pastor com especial preocupação tornasse rei. A expressão "usar de bondade"
pelas ovelhas aleijadas de seu rebanho.6 pode ter o significado de "fazer uma alian­
Um último fato a ser observado é que, ça",7de modo que talvez Davi desejasse não
quando alguns dos descendentes de Saul apenas consolar Hanum, mas também fazer
foram escolhidos para serem executados, um tratado com ele.
Davi protegeu Mefibosete da morte (2 Sm Davi enviou uma delegação de oficiais
21:1-11, especialmente o v. 7). Havia outro da corte a Hanum, mas a imaturidade e a
descendente chamado Mefibosete (v. 8), ignorância prevaleceram sobre a sabedoria
mas Davi soube distinguir entre um e ou­ e o bom senso. O novo rei inexperiente deu
tro! A aplicação espiritual para o cristão de ouvidos a seus conselheiros desconfiados e
hoje é evidente: "Agora, pois, já nenhuma tratou os homens de Davi como se fossem
condenação há para os que estão em Cris­ espias. (Anos depois, Roboão, filho de Salo­
to Jesus" (Rm 8:1). "Porque Deus não nos mão, cometeu um erro parecido e seguiu
destinou para a ira, mas para alcançar a sal­ conselhos imprudentes. Ver 1 Rs 12.) Os
vação mediante nosso Senhor Jesus Cristo" amonitas rasparam o rosto dos embaixado­
(1 Ts 5:9). "Quem nele crê não é julgado; o res, deixando apenas um lado da barba
que não crê já está julgado, porquanto não intacto e, depois, cortaram as vestes dos ofi­
crê no nome do unigénito Filho de Deus" ciais até a cintura. Os homens israelitas de­
(Jo 3:18). veriam manter a barba intacta (Lv 19:27;
Mefibosete é um nome difícil de guardar 21:5; Dt 14:1, 2), e mexer com a barba de
e de pronunciar, mas nos lembra de algu­ um homem era um grande insulto. Todos os
mas verdades maravilhosas sobre a "bonda­ israelitas deveriam vestir-se com sobriedade,
de de Deus" demonstrada por nós por meio de modo que o gesto de expor o corpo da­
de Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor. queles homens dessa forma deve ter sido
ainda mais embaraçoso. Esse era o tratamen­
4. O REI DEFENDE A HONRA DE DeUS to reservado a prisioneiros de guerra (Is 20:3,
(2 S m 10:1-19; 1 C r 19:1-19) 4), e, também, removeram algumas das borlas
Mais uma vez, Davi desejava demonstrar bon­ de suas vestes, um símbolo que os identifica­
dade, mas nesse caso sua tentativa acabou va como israelitas (Dt 22:12; Nm 15:37-41).
2 SAMUEL 7 - 1 0 323

A primeira batalha (vv. 6-14). Os mem­ que sua vitória assustou os soldados do Sul,
bros da delegação não teriam dificuldade levando-os a fugir para Rabá, capital forti­
em arranjar outras roupas, mas levaria algum ficada de Amom.
tempo para que a barba voltasse a crescer, A segunda batalha (vv. 15-19). Davi co­
de modo que ficaram em Jericó até que mandou pessoalmente a batalha contra os
tivessem recobrado uma aparência apresen­ sírios9 e, juntamente com o exército de Is­
tável. No entanto, uma nova barba não apa­ rael, conquistou a vitória. Com isso, os sírios
garia antigas ofensas. Quando o rei Hanum tornaram-se estados-vassalos do império
permitiu que seus oficiais maltratassem a de­ cada vez maior de Davi. Joabe mostrou-se
legação, não apenas insultou os homens pes­ prudente, mais uma vez, ao esperar para
soalmente, como também insultou o rei Davi erguer um cerco contra Rabá, esperando
que os havia enviado e a nação que repre­ até a primavera do ano seguinte para reali­
sentavam. Em resumo, foi uma declaração zar um novo ataque (11:1). O general
de guerra. israelita tomou a cidade, e Davi foi encer­
Mas o rei Hanum não estava preparado rar o cerco e receber as honras (12:26-31).
para a guerra, especialmente contra um ge­ Foi enquanto Joabe e seus homens esta­
neral experiente como Joabe e um monarca vam sitiando Rabá que Davi permaneceu
ilustre como Davi, de modo que pagou cem em Jerusalém e cometeu adultério com
talentos de prata (1 Cr 19:6) para contratar Bate-Seba.
soldados do Norte, inclusive sírios e arameus, Sem dúvida, Davi foi um guerreiro que
nações que Davi acabou derrotando (2 Sm lutou as batalhas do Senhor, e Deus esteve
8:12).8 Esses trinta e três mil soldados junta­ com ele e lhe deu vitória. Estendeu o impé­
ram-se ao exército amonita para atacar o rio israelita do rio do Egito, no Sul, até o rio
exército de Israel. Joabe enfrentou dois ini­ Eufrates, no Norte; no Leste, conquistou
migos que procuraram derrotar o exército Edom, Moabe e Amom e, no Norte, derro­
israelita empregando um movimento de tou os arameus e sírios, inclusive Hamate.
torquês, com os sírios e arameus vindo do Pelas dádivas de Deus e com seu auxílio,
Norte e os amonitas vindo do Sul. Joabe agiu Davi tornou-se, sem dúvida alguma, o maior
com prudência e dividiu suas forças, colo­ rei de Israel e sua figura militar mais expres­
cando o irmão Abisai no comando do fron­ siva. Foi abençoado com homens de cora­
te, ao sul, e, pela graça do Senhor, Joabe gem, como Joabe e Abisai, e também com
derrotou de tal modo os soldados do Norte seus "valentes" (2 Sm 23; 1 Cr 11:10-47).

1. O termo "aliança" não é usado em 2 Samuel 7, mas Davi o empregou em 23:5 quando se referiu à revelação que havia
recebido de Natã.

2. A maioria dos estudiosos chegou à conclusão de que Bate-Sua e Bate-Seba eram a mesma mulher. No mundo antigo, não era

incomum uma pessoa ter mais de um nome ou o nome ter mais de uma grafia.
3. De acordo com 1 Crônicas 22:8 e 28:1-3, o fato de Davi ter derramado muito sangue foi outro motivo pelo qual Deus
escolheu Salomão para construir o templo.

4. Em sua aliança com Abraão, Deus lhe prometeu muitos descendentes e, posteriormente, comparou seu número ao pó da

terra (Gn 13:16) e às estrelas do céu (Gn 15:1 *6), indicando um povo terreno e celeste. O s judeus são o povo de Deus aqui
na terra e receberam dele a promessa de um reino terreno, mas todos aqueles que crêem em Cristo são filhos de Abraão

(Gl 3:1-18), pois todos nós fomos salvos pela fé e não pela obediência à lei.

5. Esta é a terceira de quatro "listas oficiais" encontradas em 2 Samuel, sendo que cada uma delas encerra uma divisão principal

do livro: 1:1 - 3:5 (filhos de Davi em Hebrom); 3:6 - 5:16 (filhos de Davi em Jerusalém); 5:17 - 8:18 (oficiais de Davi em

Jerusalém); 9:1 - 20:26 (oficiais de Davi mais tarde em seu reinado).

6. Uma escola de intérpretes acredita que Davi só estava colocando Mefibosete sob "prisão domiciliar" a fim de ter certeza de
que o filho de Jônatas não criaria problemas no reino. Acontecimentos subseqüentes mostram que, na verdade, era Ziba, o

administrador de Mefibosete, que precisava ser vigiado! Além disso, de que modo um jovem aleijado seria capaz de prejudicar
324 2 SAMUEL 7 - 1 0

o maior rei de Israel? Davi convidou Mefibosete a assentar-se com ele à mesa do palácio não para proteger a si mesmo, mas

para demonstrar seu cuidado pelo rapaz, por amor ao pai dele.

7. A bondade (misericórdia) é, por vezes, relacionada à realização de uma aliança (ver Dt 7:9, 12; Js 2:12; 1 Sm 20:8, 14-17;

Dn 9:4).

8. Lembre-se de que 2 Samuel não foi escrito em ordem cronológica e, portanto, versículos como 8:12 são resumos de guerras

que o escritor descreve posteriormente.


9. Numa batalha anterior, Davi quase foi morto por um gigante chamado Isbi-Benobe, sendo salvo pelo sobrinho, Abisai.

Naquela ocasião, os líderes militares aconselharam Davi a não ir mais à guerra (2 Sm 21:15-17), e ele aceitou o conselho.

O objetivo de sua presença na campanha contra a Síria (10:15-19) era cuidar da movimentação das tropas, mas não se

envolver em combate direto.


5 do pecado perdoado trazem consigo triste­
za amarga e profunda.
Estes dois capítulos descrevem sete está­
gios da experiência de Davi. Ao estudar esta
A Desobediência, a passagem, lembremo-nos da admoestação
de Paulo: "Aquele, pois, que pensa estar em
D issim u lação e a
pé veja que não caia" (1 Co 10:12).
D isciplina de D a v i1
1. A co n cepç ã o (2 Sm 11:1-3)
2 Samuel 1 1 - 1 2 A tentação e o pecado de Davi ilustram o
que diz Tiago 1:14, 15: "Cada um é tentado
pela sua própria cobiça, quando esta o atrai
o contrário das biografias promocionais
A
e seduz. Então, a cobiça, depois de haver
e dos textos distribuídos para a impren­ concebido, dá à luz o pecado; e o pecado,
sa, a Bíblia sempre diz a verdade sobre as uma vez consumado, gera a morte". Não é
pessoas. Devemos considerar um estímulo difícil ver como os pecados de Davi se de­
saber que até mesmo os melhores homens senvolveram.
e mulheres encontrados nos registros bíbli­ Ociosidade (w. 1, 2a). O relato dos pe­
cos tinham, assim como nós, suas fraquezas cados de Davi é apresentado no contexto
e fracassaram. No entanto, o Senhor, em sua do cerco de Joabe a Rabá, principal cidade
graça soberana, pôde usá-los para cumprir dos amonitas (11:1,16,17; 1 Cr 20:1-3). O
seus propósitos. Noé foi um homem de fé e exército amonita havia fugido para a cidade
de obediência, mas se embriagou. Em duas fortificada de Rabá (2 Sm 10:14), e Joabe e
ocasiões, Abraão mentiu sobre a esposa; os soldados de Israel estavam esperando o
Jacó mentiu ao pai, Isaque, e ao irmão, Esaú. povo ficar sem comida e sem água para,
Moisés perdeu a cabeça quando matou um então, atacar a cidade. Davi enviou Joabe e
egípcio, e Pedro perdeu a coragem e negou seu exército para sitiar Rabá, mas ele mes­
a Cristo três vezes. mo ficou em Jerusalém. É provável que fos­
Nesta passagem, vemos Davi - o ho­ se abril ou maio, que as chuvas de inverno
mem segundo o coração de Deus, o homem tivessem cessado e que o clima estivesse fi­
que cometeu adultério e depois matou um cando mais quente. De acordo com os cál­
compatriota - em seus esforços desespera­ culos de cronologistas, a essa altura, Davi
dos para encobrir seu pecado. Davi pas­ deveria estar com cerca de cinqüenta anos
sou pelo menos nove meses recusando-se de idade. Por certo, o rei havia sido aconse­
a confessar suas transgressões, até que lhado por seus líderes a não se envolver di­
Deus lhe falou, e o rei buscou ao Senhor e retamente nas batalhas (2 Sm 21:15-17), mas
recomeçou sua vida. No entanto, pagou ainda assim poderia ter acompanhado o
caro por seus pecados, pois como disse exército para ajudar a desenvolver a estraté­
Charles Spurgeon: "Deus não permite que gia e oferecer liderança moral.
seus filhos pequem com sucesso". Infeliz­ Quer Davi tenha ficado em Jerusalém por
mente, Davi sofreu as conseqüências de um bom motivo quer não, uma coisa é ver­
seus pecados para o resto da vida, e o mes­ dade: "Satanás sempre encontra algum tipo
mo acontecerá conosco se nos rebelarmos de maldade para ocupar mãos ociosas".2 O
contra Deus, pois o Senhor disciplina a quem ócio não é apenas a ausência de atividade,
ama e procura conduzi-los à obediência. pois todos nós precisamos de descanso em
Pagamos adiantado pelas coisas boas que intervalos regulares; antes, o ócio também é
recebemos na vida, pois somos preparados a atividade sem propósito algum. Depois de
por Deus para aquilo que tem reservado cochilar durante a tarde, Davi deveria ter se
para nós. Quanto ao mal, porém, pagamos dedicado imediatamente a alguma tarefa
por ele em prestações, e as conseqüências administrativa para ocupar sua mente e seu
326 2 SAMUEL 1 1 - 1 2

corpo ou, se queria caminhar, deveria ter Informação (v. 3). Quando Deus proíbe
convidado alguém a ir com ele. "Se está algo e chama de pecado, não devemos pro­
ocioso, não fique sozinho", escreveu Samuel curar descobrir mais sobre o assunto. "Que­
Johnson. "E se está sozinho, não fique ocio­ ro que sejais sábios para o bem e símplices
so". Se Davi tivesse seguido esse conselho, para o mal" (Rm 16:19). Davi conhecia a lei
teria poupado a si mesmo e sua família de sobre adultério, então por que enviou men­
muito sofrimento. sageiros para investigar a mulher?3 Porque,
Quando Davi colocou de lado sua arma­ em seu coração, já havia tomado Bate-Seba
dura, deu o primeiro passo rumo à derrota para si e estava ansioso para se encontrar
moral, um princípio que se aplica, igualmen­ com ela. Descobriu que Bate-Seba era uma
te, aos cristãos de hoje (Ef 6:10-18). Sem o mulher casada, fato que deveria ter sido su­
capacete da salvação, não pensamos como ficiente para impedir que prosseguisse com
criaturas salvas, e sem o peitoral ("couraça") seu plano perverso. Quando soube que ela
da justiça, não temos com que proteger era esposa de um de seus soldados valen­
nosso coração. Na falta do cinto da verda­ tes, que se encontrava no campo de batalha
de, acreditamos facilmente em mentiras ("Po­ (23:9), deveria ter se dirigido à tenda da con­
demos nos safar dessa!"), e sem a espada gregação, se prostrado com o rosto em ter­
da Palavra e o escudo da fé, ficamos impo­ ra e suplicado pela misericórdia de Deus.
tentes diante do inimigo. Sem a oração, não Pela breve genealogia apresentada, Davi
temos forças e, quanto ao calçado da paz, deveria ter percebido que Bate-Seba era neta
Davi caminhou em meio a batalhas pelo res­ de Aitofel, seu conselheiro predileto (23:34;
to da vida. Estava mais seguro no campo de 16:23). Não é de se admirar que Aitofel tenha
batalha do que dentro dos muros de sua tomado o partido de Absalão quando este
casa! se rebelou contra o pai e usurpou o reino!
Imaginação (v. 2b). Não se pode culpar Davi conhecia a lei e deveria tê-la recor­
um homem se uma mulher bonita entra em dado e aplicado em seu coração. "Não co­
seu campo de visão, mas se o homem se biçarás a mulher do teu próximo" (Êx 20:1 7);
demora deliberadamente e olha outra vez a "Não adulterarás" (Êx 20:14). Davi também
fim de alimentar sua lascívia, está procuran­ sabia que os servos do palácio viam e ou­
do problemas. Jesus disse: "Ouvistes que foi viam tudo o que acontecia e relatavam a
dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: outros, de modo que não seria capaz de
qualquer que olhar para uma mulher com fazer coisa alguma às escondidas. É prová­
intenção impura, no coração, já adulterou vel que já fosse de conhecimento geral que
com ela" (Mt 5:27, 28). Quando Davi parou o rei estava mostrando interesse pela espo­
e olhou demoradamente pela segunda vez, sa de seu próximo. Porém, mesmo que nin­
sua imaginação pôs-se a trabalhar e come­ guém além do mensageiro soubesse o que
çou o processo de concepção do pecado. se passava, o Senhor Deus sabia e não apro­
Teria sido o momento perfeito de dar as vava o que Davi estava fazendo. Deus deu
costas de uma vez por todas ao que havia tempo para o rei recobrar o juízo e buscar
visto, sair do terraço do palácio e ir para um perdão, porém Davi só endureceu o coração
lugar mais seguro. Quando José enfrentou e continuou a fingir que estava tudo bem.
tentação parecida, apressou-se em fugir (Gn
39:11-13). "Vigiai e orai, para que não entreis 2. A PERPETRAÇÃO (2 Sm 11:4)
em tentação; o espírito, na verdade, está Um dos mistérios desse episódio é a dispo­
pronto, mas a carne é fraca" (Mt 26:41). sição de Bate-Seba em acompanhar os men­
Davi deveria ter orado pedindo: "Não sageiros e em sujeitar-se aos desejos de Davi.
nos deixes cair em tentação". Ao se demorar O termo hebraico traduzido por "trazer"
e olhar, Davi tentou a si mesmo; ao enviar {laqah) pode significar, simplesmente, "bus­
mensageiros, tentou Bate-Seba; e ao se en­ car, receber ou adquirir", ou também pode
tregar aos desejos da carne, tentou o Senhor. ser traduzido por "agarrar, pegar à força,
2 SAMUEL 1 1 - 1 2 327

tomar". Porém, não pareceu ter havido evi­ admitem que foram infiéis ao cônjuge, mas
dência alguma de força ou de violência no isso não parece causar qualquer dano a sua
texto, e o leitor supõe que Bate-Seba coo­ imagem pública ou a sua renda. Divórcios
perou com os mensageiros. Mas por quê? com base apenas em questões vagas de
Bate-Seba sabia por que Davi a desejava? "incompatibilidade" simplificam o procedi­
Em caso afirmativo, será que se deteve para mento, mas não evitam as conseqüências
pensar que, uma vez que sua menstruação emocionais dolorosas da infidelidade. Pasto­
havia terminado havia pouco tempo (v. 2), res e conselheiros sabem como não é fácil
encontrava-se no período fértil? Talvez ela para as vítimas encontrarem a cura e recons­
quisesse ter um filho com o rei! 1 Reis 1 re­ truírem sua vida e seu lar, e, no entanto, a
vela que Bate-Seba não era exatamente do mídia continua ensinando como romper os
tipo passivo. "Será que essa jovem dona de votos matrimoniais e, aparentemente, esca­
casa armou toda a situação?", pergunta o par incólume.
professor E. M. Blaiklock. "Podemos encon­ Davi e Bate-Seba pecaram contra Deus,
trar mais do que simples suspeitas de que pois foi Deus quem instituiu o casamento e
ela atirou a rede na qual Davi caiu tão facil­ criou as regras que o governam. Israel con­
mente".4Talvez ela tivesse pensado que Davi siderava o adultério um pecado tão sério
havia recebido notícias da frente de batalha que, tanto o homem quanto a mulher que o
a respeito do marido. Porém, não cabia ao cometiam, eram levados para fora da cida­
rei transmitir notificações militares. Será que de e apedrejados (Lv 20:10; Dt 22:22-24; Jo
sentia falta do amor de seu marido e seu 8:1-6). Deus leva a sério os votos matrimo­
banho de purificação em público foi um con­ niais que noivos e noivas fazem, mesmo que
vite a qualquer homem que, por acaso, a os jovens casais não os considerem de modo
estivesse observando? Se ela recusasse o tão judicioso (Ml 2:14; Hb 13:4).
pedido de Davi, o rei castigaria o marido?
(O que, aliás, aconteceu de qualquer forma!) 3. A o c u lt a ç ã o (2 Sm 11:5-27)
Nenhum cidadão israelita devia obe­ "A mulher concebeu e mandou dizer a Davi:
diência a um rei quando este transgredia a Estou grávida" (2 Sm 11:5). Estas são as úni­
lei de Deus, pois o rei havia feito uma alian­ cas palavras de Bate-Seba registradas em
ça com Deus e com o povo de sujeitar-se à todo o episódio, mas são palavras que Davi
lei divina. Será que Bate-Seba pensou que, não queria ouvir. Podemos parafrasear essa
ao sujeitar-se a Davi, estaria obtendo uma mensagem curta como: "A bola está de seu
arma para ajudá-la no futuro, especialmente lado da quadra". Tático perspicaz, Davi mais
caso seu marido fosse morto em combate? que depressa desenvolveu um plano para
Podemos fazer essas e muitas outras pergun­ ocultar seu pecado. Chamou Urias do cam­
tas, mas encontrar as respostas para elas não po de batalha, na esperança de que esse
é nada fácil. O texto bíblico não dá detalhes, soldado valente fosse para casa e passasse
e as conjecturas não são de grande ajuda. algum tempo com a esposa. Na verdade,
O pecado que a lascívia de Davi havia Davi ordenou que fosse para casa (v. 8), mas
concebido estava para nascer, o qual traria o soldado desobedeceu a essas ordens e
tristeza e morte. De acordo com Provérbios passou a noite com os servos do rei. Davi
6, em breve Davi seria caçado (v. 26), quei­ até enviou comida de sua própria mesa para
mado (vv. 27, 28), desgraçado e arruinado que Urias e a esposa desfrutassem um ban­
(vv. 30-33), tudo isso por apenas alguns quete, mas Urias nem levou esse presente
minutos de prazer proibido. Os filmes de para casa. Ficamos imaginando se Urias ti­
Hollywood, os programas de TV e a literatu­ nha ouvido algo que o deixou desconfiado.
ra de ficção atual usam histórias sobre adul­ Os palacianos são famosos por suas fofocas.
tério como uma forma de entretenimento, Davi teve de pensar em outro plano.
o que serve apenas para mostrar como an­ Seu próximo artifício foi chamar Urias para
dam as coisas. Hoje em dia, pessoas famosas outra audiência no dia seguinte, sendo que
328 2 SAMUEL 1 1 - 1 2

durante esse encontro o rei o repreendeu Joabe tenha lido as entrelinhas da carta de
por não voltar para casa. Como um verda­ Davi e deduzido que a única coisa que Urias
deiro soldado, Urias censurou brandamen­ possuía e que Davi poderia desejar era uma
te o rei por sugerir que um de seus homens bela esposa, de modo que cooperou com o
colocasse o prazer pessoal antes do dever, plano. Afinal, o fato de saber dessa intriga
especialmente quando seus companheiros de Davi poderia, algum dia, ser uma arma
estavam no campo de batalha. Até mesmo nas mãos de Joabe. Além disso, o próprio
a arca da aliança encontrava-se numa ten­ Joabe já matara Asael, Abner (2 Sm 2:17-24;
da, então por que Urias deveria desfrutar sua 3:27ss) e ainda iria matar Amasa (2 Sm 20:6­
casa e sua esposa? 1 Samuel 21:5 indica que 10), de modo que entendia do assunto.
os soldados de Davi abstinham-se de re­ Joabe sabia que não poderia enviar Urias
lações sexuais enquanto cumpriam seus até as muralhas sozinho, pois isso levantaria
deveres militares (regra baseada em Lv 15:16­ suspeitas. Portanto, mandou também vários
18); de modo que Urias deve ter ficado sur­ "servos do rei" (v. 24), que morreram junto
preso com a sugestão de seu comandante. com Urias só para que Davi encobrisse seus
O terceiro artifício de Davi foi convidar pecados. É possível que esses "servos do rei"
Urias para comer com ele antes de voltar à fossem membros da guarda pessoal de Davi,
batalha. Durante essa refeição, Davi passou- os melhores soldados israelitas (8:18).
lhe o cálice tantas vezes que Urias ficou A expressão de tristeza de Bate-Seba pela
embriagado. No entanto, mesmo bêbado, morte do marido guerreiro, ainda que since­
Urias mostrou ser um homem mais digno ra, talvez tenha sido amenizada pelo fato de
do que Davi quando estava sóbrio, pois re­ saber que logo estaria vivendo no palácio. É
cusou mais uma vez ir para casa. Urias era provável que as pessoas tenham se espanta­
um soldado de corpo e alma, e mesmo de­ do quando se casou tão rapidamente, logo
pois que o álcool derrubou suas defesas, depois do funeral, com ninguém menos do
permaneceu fiel a sua missão. Havia ape­ que o rei. Porém, seis meses depois, quan­
nas uma coisa a fazer: Urias deveria morrer. do deu à luz um menino, o espanto foi geral
Se Davi não conseguisse convencer Urias a outra vez. 2 Samuel 3:1-5 dá a entender que
ir para casa, teria de tirá-lo do caminho para Bate-Seba foi a sétima esposa de Davi, mas
que pudesse se casar com a viúva do solda­ ao contar com Mical, que não teve filhos,
do, e, quanto antes o fizesse, melhor. Davi Bate-Seba foi a oitava. Nas Escrituras, o núme­
estava quebrando cada um dos dez man­ ro oito indica, com freqüência, um recome­
damentos. Cobiçou a esposa do próximo ço e, com o nascimento de Salomão a Davi
e cometeu adultério com ela. Em seguida, e Bate-Seba, essa esperança se cumpriu.
deu falso testemunho contra o próximo e deu No entanto, Davi ainda tinha assuntos
ordens para que fosse morto. Davi pensou pendentes dos quais precisava cuidar, pois
estar enganando a todos quando, na verda­ o Senhor estava desgostoso com tudo o que
de, estava apenas enganando a si mesmo. o rei havia feito.
Achou que poderia escapar da culpa, enquan­
to, na realidade, só a estava alimentando e, 4. A confissão (2 S m 12:1-14)
por fim, não havia como fugir do julgamento Natã teve o privilégio de transmitir a Davi a
de Deus. "O que encobre as suas transgres­ mensagem sobre a aliança de Deus com o
sões jamais prosperará" (Pv 28:13). rei e seus descendentes (2 Sm 7), mas aqui
Joabe havia sitiado Rabá e ordenado que teve de realizar uma cirurgia espiritual e de
seus homens não se aproximassem do muro confrontar Davi com seus pecados. Havia
para que não fossem feridos e mortos. Por pelo menos seis meses, o rei vinha enco­
vezes, alguns soldados amonitas saíam à brindo seus pecados, e o bebê de Bate-Seba
porta da cidade para tentar atrair os solda­ estava prestes a nascer. A tarefa que o Se­
dos israelitas para mais perto e atacá-los. nhor havia dado a Natã não era nada fácil,
Sendo um homem perspicaz, é possível que mas fica evidente que o profeta preparou-se
2 S A M U E L 11 - 12 329

com cuidado antes de se encontrar com o pecado dos outros (Mt 7:1-3)! Roubar e
Davi. matar um animal doméstico não era um cri­
O julgamento (w. 1-6). Ao contar uma me capital em Israel, mas Davi estava tão
história sobre um crime de outro homem, irado que exagerou o crime e também o cas­
Natã preparou Davi para lidar com os pró­ tigo. Até esse momento, o rei vinha minimi­
prios pecados, e é possível que Davi tenha zando as conseqüências de seus atos sem
pensado que Natã estava lhe apresentando tomar qualquer atitude, quando, na verdade,
um caso verídico do tribunal de Jerusalém. aquilo que havia feito a Urias era digno da
Natã aproveitou-se do fato de o rei haver pena de morte. Tanto Davi quanto Bate-Seba
baixado a guarda para estudar suas reações deveriam ter sido mortos por apedrejamento
e discernir o que deveria fazer em seguida. (Lv 20:10; Dt 22:22-24; Jo 8:1-6). Uma vez
Uma vez que Davi havia sido pastor de ove­ que conhecia a lei, Davi calculou que o ho­
lhas, sua atenção seria cativada por uma mem rico deveria dar quatro ovelhas como
história sobre o roubo de uma cordeirinha restituição ao proprietário do qual havia rou­
inocente e, como rei, Davi era responsável bado a cordeirinha (Êx 22:1).
por garantir que as famílias pobres tivessem O veredicto (w. 7-9). O profeta perce­
acesso à justiça. beu que, apesar de Davi estar extremamen­
Deus orientou Natã para que escolhes­ te irado, também estava vulnerável e pronto
se as palavras com cuidado, de modo a lem­ para que a espada do Espírito atravessasse
brar Davi daquilo que havia feito. O profeta seu coração (Hb 4:12; Ef 6:1 7). Com um gol­
afirmou que a cordeirinha "comia do seu pe rápido, Natã disse: "Tu és o homem!"
bocado [do bocado do homem pobre] e (2 Sm 12:7) e prosseguiu em sua tarefa de
do seu copo bebia; dormia nos seus bra­ mostrar o espelho que revelava como o rei
ços" (v. 3). Isso deveria ter lembrado Davi era, na verdade, um homem desprezível.
das palavras de Urias em 2 Samuel 11:11: Natã explicou a Davi o motivo de haver rou­
"Hei de eu entrar na minha casa, para co­ bado a cordeirinha de Urias. Em primeiro
mer e beber e para me deitar com minha lugar, o rei se esqueceu da bondade do Se­
mulher?" Mas só quando Natã falou do nhor, que lhe dera tudo o que ele possuía
homem rico que roubou e matou a cordei­ e teria lhe dado muito mais (vv. 7, 8). Em
rinha que Davi mostrou algum tipo de segundo lugar, Davi havia desprezado o
reação, enfurecendo-se com os pecados mandamento de Deus e agido como se ti­
desse outro homem! (ver 1 Sm 25:13, 22, vesse o privilégio de pecar (v. 9). Ao cobiçar,
33 para outro exemplo da ira de Davi). Ao cometer adultério, dar falso testemunho e
que parece, Davi não se deu conta de que matar, Davi quebrou quatro dos dez man­
ele era o homem rico, Urias era o homem damentos e pensou que poderia escapar
pobre e Bate-Seba, a cordeirinha que havia incólume! Já era terrível Davi ter providen­
roubado. O "viajante" ao qual o homem ciado para que Urias fosse morto, mas pior
rico deu de comer representa a tentação e ainda foi ter usado, para isso, a espada do
a lascívia que visitaram Davi no terraço e inimigo!
que se apoderaram dele. Se abrirmos a A sentença (vv. 10-12). O adultério de
porta, o pecado entra como convidado, Davi com Bate-Seba havia sido um pecado
mas logo se torna o senhor da casa (ver Cn passional, impulsivo, que o arrebatara, mas
4:6, 7). o pecado de mandar matar Urias havia sido
Davi julgou o homem rico sem perceber um crime premeditado, deliberado e ver­
que estava julgando a si mesmo. De todos gonhoso. Talvez, por esse motivo, 1 Reis
os tipos de cegueira, o pior é aquele que 15:5 enfatize o "caso de Urias, o heteu" e
nos cega para o que somos. Nas palavras não mencione Bate-Seba. Porém, o Senhor
de Joseph Butler: "Muitos homens parecem julgou os dois pecados, pois Davi pagou
desconhecer inteiramente o próprio caráter" caro por sua lascívia e por seu dolo. Deus
e Davi era um deles.5 Como é fácil perceber retribuiu a Davi "em espécie" (Dt 19:21; Êx
330 2 SAMUEL 1 1 -1 2

21:23-25; Lv 24:20), um princípio espiritual da cova redime a tua vida [...]. Quanto dista
que Davi expressou em seu "salmo de vitó­ o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós
ria" depois da morte de Saul (SI 18:25-27). as nossas transgressões" (Sl 103:3, 4, 12).
A espada não deixou a casa do rei, e No entanto, a resposta de Natã incluiu
suas esposas foram tomadas e violadas da um "mas" ("Mas, posto que"), pois apesar
mesma forma como ele havia tomado Bate- de Deus, em sua graça, haver perdoado os
Seba. De fato, a retribuição foi quádrupla, pecados de Davi, em sua soberania, teve de
pois o bebê de Bate-Seba morreu e seus fi­ permitir que Davi sofresse as conseqüências
lhos, Amnom, Absalão e Adonias, foram desses pecados, a começar pela morte do
mortos (2 Sm 13:29; 18:14, 15; 1 Rs 2:25). bebê de Bate-Seba. Ao longo de todos os
Tamar, a bela filha de Davi, foi estuprada por meses que passou em silêncio, Davi sofrera
seu meio irmão (cap. 13), e as concubinas profundamente, como é possível perceber
de Davi foram humilhadas publicamente por em suas duas orações de confissão (Sl 32 e
Absalão quando ele tomou o reino (16:22). 51). O Salmo 32 retrata um homem idoso e
Durante o resto de sua vida, Davi passou enfermo, não um guerreiro vigoroso, e o
por uma sucessão de tragédias, quer em sua Salmo 51 descreve um homem temente a
família quer em seu reino. Que alto preço Deus que havia perdido quase tudo - sua
pagou por aqueles momentos de paixão pureza e alegria, seu testemunho, sua sabe­
com a esposa do próximo! doria e sua paz -, um homem cujo grande
Os castigos que Deus determinou para medo era que Deus tirasse dele o Espírito
Davi haviam sido prescritos na aliança de Santo, como havia feito com Saul. Davi pas­
Deus com Israel, a qual o rei deveria guar­ sou por dores físicas e emocionais intensas,
dar (Lv 26; Dt 27—30). Se a nação se rebe­ mas deixou para trás duas orações precio­
lasse contra Deus, ele mataria seus filhos na sas para todos os cristãos que pecaram.
batalha (Lv 26:1 7; Dt 28:25,26), tomaria suas Em função da obra completa de Cristo
crianças (Lv 26:22; Dt 28:18), daria suas es­ na cruz, Deus pode salvar os pecadores e
posas a outros (Dt 28:30) e até mesmo tira­ perdoar os cristãos desobedientes e, quanto
ria Israel da terra e a levaria para o exílio em antes os perdidos e os rebeldes se voltarem
outro país (Dt 28:63-68). Como resultado da para o Senhor e se arrependerem, melhor
rebelião de Absalão, Davi foi obrigado a fu­ será para eles. Davi escreveu: "Confessei-te
gir de Jerusalém e a viver no deserto. Po­ o meu pecado e a minha iniqüidade não
rém, a aliança também incluía uma seção mais ocultei. Disse: confessarei ao S enhor
sobre o arrependimento e o perdão (Dt 30; as minhas transgressões; e tu perdoaste a
Lv 26:40ss), e Davi creu nessas palavras. iniqüidade do meu pecado. Sendo assim,
O perdão (vv. 13, 14). O prisioneiro con­ todo homem piedoso te fará súplicas em
denado sabia que o julgamento era verda­ tempo de poder encontrar-te" (Sl 32:5, 6).
deiro e a sentença era justa, de modo que, "Buscai o S enhor enquanto se pode achar,
sem qualquer argumento, confessou: "Pe­ invocai-o enquanto está perto" (Is 55:6).
quei contra o S e n h o r " (v . 13).6 Natã garantiu
a Davi que o Senhor havia perdoado seu 5. A d is c ip l in a (2 S m 12:15-23)
pecado. "Se confessarmos os nossos peca­ A disciplina não é um castigo imposto por
dos, ele é fiel e justo para nos perdoar os um juiz irado que deseja fazer cumprir a lei;
pecados e nos purificar de toda injustiça" antes, é uma dificuldade permitida por um
(1 Jo 1:9). "Se observares, S e n h o r , iniqüida- Pai carinhoso que deseja que seus filhos se
des, quem, Senhor, subsistirá? Contigo, po­ sujeitem a sua vontade e que desenvolvam
rém, está o perdão, para que te temam" (SI um caráter piedoso. A disciplina é uma ex­
130:3, 4). pressão do amor de Deus (Pv 3:11, 12), e o
Não é de se admirar que, posteriormen­ termo hebraico usado em Hebreus 12:5-13
te, Davi tenha escrito que o Senhor "é quem significa "a educação de uma criança, ins­
perdoa todas as tuas iniqüidades [...] quem trução, ensino". Os meninos gregos iam para
2 SAMUEL 1 1 - 1 2 331

o gymnasium ainda pequenos e aprendiam "É o S e n h o r ; faça o que bem lhe ap ro uver"
a correr, lutar, nadar e fazer exercícios de (1 Sm 3:18). N ão há respostas simples que
arremesso, a fim de desenvolver uma "men­ façam nossa m ente sossegar, mas há muitas
te sã e um corpo são". Na vida cristã, nem promessas confiáveis para aquecer nosso co ­
sempre a disciplina é uma reação de Deus a ração, e a fé se alim enta de promessas, não
nossa desobediência. Por vezes, ele nos pre­ de explicações.
para para um desafio que teremos pela fren­ Uma coisa é certa: a semana de jejum
te, como um técnico preparando atletas para e oração de Davi em súplica pelo bebê foi
os Jogos Olímpicos. Se o pecado não tives­ uma demonstração de sua fé no Senhor e
se conseqüências dolorosas nem fosse se­ de seu amor por Bate-Seba e seu filhinho.
guido de qualquer disciplina da mão de Poucos monarcas do Oriente teriam derra­
Deus, em que tipo de mundo insolente e mado uma lágrima sequer ou expressado
irresponsável viveríamos? uma só frase de tristeza se um bebê nasci­
Bate-Seba deu à luz um menino, o qual do de uma das "esposas" do harém mor­
Natã prenunciou que morreria, mas, ainda resse. Apesar de seus muitos pecados, Davi
assim, Davi jejuou e orou, pedindo a Deus ainda era um pastor sensível e um homem
que curasse a criança. O Senhor não in­ segundo o coração de Deus. Não havia sido
terrompeu as orações de Davi nem lhe or­ "endurecido pelo engano do pecado" (Hb
denou que parasse de interceder; afinal, 3:13). Davi se lavou, trocou de roupa, ado­
diante de todos os pecados que Davi havia rou ao Senhor e voltou para a sua vida, com
cometido, não lhe faria mal passar o dia em todas as respectivas decepções e deveres.
oração. Depois dos meses de silêncio e de Nas Escrituras, lavar-se e trocar de roupa
separação de Deus, havia muita coisa que simboliza um recomeço (Gn 35:1, 2; 41:14;
Davi precisava colocar em dia com o Senhor. 45:22; Êx 19:10; Lv 14:8, 9; Jr 52:33; Ap
O bebê viveu apenas uma semana, e os pais 3:18). Não importa o tempo nem a intensi­
não puderam circuncidá-lo nem dar-lhe um dade da disciplina do Senhor, ele "não re­
nome no oitavo dia. Seu filho, Salomão, re­ preende perpetuamente, nem conserva para
cebeu dois nomes (w. 24, 25), mas esse fi­ sempre a sua ira" (SI 103:9). Pela graça e a
lho sequer teve um nome. misericórdia de Deus, podemos sempre re­
Por que um Deus justo e amoroso não começar.
respondeu às orações de um pai arrepen­ As palavras de Davi no versículo 23 ser­
dido e extremamente aflito e não curou a vem de grande consolo para os que perde­
criança?7Afinal, não era culpa do bebê que ram um filho pequeno, mas nem todos os
os pais tivessem pecado contra o Senhor. A estudiosos do Antigo Testamento concor­
propósito, por que Deus permitiu que Urias dam que as palavras do rei sejam uma reve­
e alguns de seus companheiros do exérci­ lação de Deus. Talvez estivesse simplesmente
to morressem em Rabá só para que Davi dizendo: "Meu filho não pode voltar da cova
se casasse com Bate-Seba? Continue fazen­ nem do mundo dos espíritos que partiram,
do perguntas desse tipo e, no final, chega­ mas um dia eu me encontrarei lá com ele".
rá à maior dúvida de todas: "por que um Porém, que consolo há para nós no fato de
Deus de amor permite que o mal exista que, um dia, todos morrem? A declaração
neste mundo?". Posteriormente, Davi olhou "não voltará para mim" mostra que Davi acre­
para trás e considerou essa experiência ditava que seu filho não seria reencarnado
dolorosa como parte da "bondade e mise­ e que, também, não ressuscitaria antes do
ricórdia" de Deus (SI 23:6) tanto para com tempo do Senhor. Além disso, afirma que
ele quanto para com o bebê. "Não fará jus­ Davi esperava ver e reconhecer o filho na
tiça o Juiz de toda a terra?", perguntou vida futura. Para onde Davi iria um dia? "Ha­
Abraão (Gn 18:25). Ao ouvir as terríveis no­ bitarei na Casa do S enhor para todo o sem­
tícias do julgamento de Deus sobre sua fa­ pre" (SI 23:6; ver também SI 11:7; 16:11;
mília, até mesmo Eli, o apóstata, confessou: 17:1 5).8
332 2 S A M U E L 11 - 12

6. O c o n so lo (2 Sm 12:24, 25) a concluir o cerco de Rabá (2 Sm 10:14;


Não importa quão arrasados nos sintamos 11:1; 12:26-31). Aos poucos, o exército
pela mão disciplinadora de nosso Pai amo­ israelita havia tomado conta da cidade, pri­
roso, o Senhor também oferece consolo (ver meiro da região onde ficava o palácio real
Is 40:1, 2, 9-11, 28-31). Antes de o menino (v. 26) e, depois, da parte que controlava
morrer, Deus chamou Bate-Seba de "mulher seu abastecimento de água (v. 27). Joabe
de Urias" (v. 15), talvez porque essa era sua estava pronto para a última investida que
identidade quando o bebê foi concebido, encerraria o cerco, mas queria que o rei es­
mas, no versículo 24, ela é a esposa de Davi, tivesse lá para comandar o exército. Quais­
indicando que, assim como Davi, ela tam­ quer que fossem seus defeitos, pelo menos
bém estava recomeçando. Que evidência Joabe desejava honrar seu rei. Davi foi a Rabá
extraordinária da graça de Deus o fato de a e liderou as tropas de incursão que derruba­
"mulher de Urias" ser mencionada na genea­ ram a cidade.
logia do Messias (Mt 1:6), juntamente com Nenhum rei conseguiria usar por muito
Tamar (Mt 1:3; Gn 38), Raabe e Rute (Mt tempo uma coroa que pesava de vinte e cin­
1:5; Js 2 e 6:22-25; Rt 1, 4; Dt 23:3). co a trinta e três quilos, de modo que a "co­
Pelo menos nove meses encontram-se roação" de Davi foi um ato de Estado breve,
condensados nos versículos 24 e 25, nove porém oficial, indicando a apropriação de
meses da graça e da terna misericórdia de Amom como seu território. (A coroa impe­
Deus. Foi Deus quem fez com que ocorres­ rial usada pelos reis e rainhas da Inglaterra
se a concepção e quem providenciou para pesa menos de um quilo e meio e, para os
que aquele bebê tivesse a "estrutura genéti­ monarcas, já parece um tanto pesada!) A
ca" necessária para realizar sua vontade (SI coroa era extremamente valiosa, de modo
139:13-16). "O S enhor o amou" de maneira que Davi a levou junto com a grande quan­
muito particular e até mesmo deu a Salomão tidade de despojos encontrada na cidade. É
("pacífico") um nome especial: "Jedidias - bem provável que a maior parte dessa riqueza
amado pelo S enhor ". Uma vez que Davi sig­ tenha sido acrescentada aos tesouros do Se­
nifica "amado", pai e filho foram ligados por nhor e usada para a construção do templo.
nomes semelhantes. Deus havia dito a Davi Davi colocou alguns de seus prisionei­
que esse filho nasceria e construiria o tem­ ros de guerra para trabalhar com serras, pi­
plo (2 Sm 7:12, 13; 1 Cr 22:6-10) e cumpriu caretas e machados e pôs outros para fazer
sua promessa. Toda vez que Davi e Bate-Seba tijolos. Em sua graça, Deus concedeu essa
olhavam para Salomão, sua presença os lem­ vitória a Davi, apesar de o rei ter se mostra­
brava de que Deus havia perdoado seu pas­ do um homem rebelde. Ele e seu exército
sado e garantido seus planos para o futuro. voltaram para Jerusalém, onde Davi ainda
passaria por mais disciplinas, dessa vez por
7. AS CONQUISTAS meio dos membros adultos de sua família.
(2 S m 12:26-31; 1 C r 20:1-3) Havia forçado os amonitas a deixarem suas
No entanto, Davi ainda tinha o trabalho espadas, mas uma espada havia sido desem­
do reino a realizar, inclusive ajudar Joabe bainhada em sua família.

1. 1 Crônicas não apresenta relato algum dos grandes pecados de Davi. Esse livro foi escrito do ponto de vista do sacerdócio,

e sua ênfase é sobre a grandeza dos reis, não sobre seus pecados. Davi e Salomão são descritos como "governantes

ideais".

2. W a tts , Isaac. "Divine Songs for Children", 1 715.


3- O verbo "enviar" é repetido com freqüência nos capítulos 11 e 12. Ver 11:1, 3, 4, 5, 6 (duas vezes), 8, 12, 14, 18, 22; 12:1,

25, 27. Os pecados de Davi mobilizaram todo mundo!

4. B l a ik l o c k , E. M. Professor Blaiklock’s Handbook of Bible People. Londres: Scripture Union, 1979, p. 210.
5. B u tler , Joseph. Fifteen Sermons. Charlottesville, VA: Ibis Publishing, 1987, p. 114.
2 SAMUEL 1 1 - 1 2 333

6. Saul usou a declaração "pequei" três vezes, mas não com sinceridade (1 Sm 15:24, 30; 26:21). Davi disse "pequei" pelo

menos cinco vezes (2 Sm 12:13; 24:10, 17 [1 Cr 21:8, 17); SI 41:4; 51:4). Davi foi o filho pródigo do Antigo Testamento,

aquele que se arrependeu e "voltou para casa", onde encontrou perdão (Lc 15:18, 21). Para outras pessoas que fizeram essa

mesma declaração, ver Êxodo 9:27; Números 22:34; Josué 7:20; 2 Samuel 19:20; Mateus 27:4.

7. Como aconteceu com Jonas e a cidade de Nínive, o decreto de julgamento de Deus pode ser interrompido pelo arrependimento

das pessoas envolvidas (Nínive só caiu mais de um século depois). A previsão de que o bebê de Bate-Seba morreria cumpriu-

se na mesma semana, pois Deus escolheu agir naquele momento. O caráter e os propósitos de Deus não mudam, mas a fim

de cumprir esses propósitos, ele muda seu tempo e seus métodos.

8. Uma vez que as Escrituras não apresentam uma revelação conclusiva sobre a questão da morte de crianças, os teólogos

buscam uma solução para esse problema, enquanto cristãos fiéis e tementes a Deus, muitas vezes, não chegam a um

consenso. Para uma visão teológica equilibrada e sensível, ver N a s h , Ronald H. When a Baby Dies. Zondervan, 1999.
6 os pecados de Davi (12:13), mas o rei des­
cobriu que as conseqüências de pecados
perdoados são dolorosas. Deus havia aben­
çoado Davi com muitos filhos (1 Cr 28:5),
O s F il h o s R ebeld es mas o Senhor transformaria algumas des­
sas bênçãos em maldições (Ml 2:1, 2). "A
de D avi
tua malícia te castigará, e as tuas infidelida­
des te repreenderão" (Jr 2:19). Os aconte­
2 S amuel 1 3 - 1 4
cimentos dos capítulos 13 e 14 desdobram-se
como uma sinfonia trágica com cinco mo­
vimentos: do amor à lascívia (13:1-14), da
lascívia ao ódio (13:15-22), do ódio ao
imos nos dez primeiros capítulos de homicídio (13:23-36), do homicídio ao exí­
V 2 Samuel como Deus deu poder a Davilio (13:37-39) e do exílio à reconciliação
para derrotar os inimigos de Israel e para (14:1-23).
consolidar e expandir o reino. Em seguida,
Davi cometeu os pecados de adultério, ho­ 1. D o amor À lascívia (2 Sm 13:1-14)
micídio e falso testemunho (caps. 11 - 12); Absalão é mencionado primeiro, pois os
o restante do livro mostra Davi lutando com capítulos 1 3 - 1 9 concentram-se na "histó­
problemas causados pelos próprios filhos. Fo­ ria de Absalão"; Tamar era sua irmã por par­
ram dias sombrios e cheios de decepções, te de pai e mãe. Tanto Tamar quanto Absalão
mas o rei continuou a depender do Senhor, eram conhecidos por sua beleza física (13:1;
que, por sua vez, o capacitou a superar es­ 14:25). Sua mãe era Maaca, princesa da casa
sas provações e a preparar as nações para o real de Talmai em Gesur, um pequeno reino
reinado de seu filho, Salomão. Aquilo que a arameu próximo ao mar da Galiléia. Por cer­
vida faz conosco depende do que a vida to, Davi havia tomado Maaca como esposa
encontra em nós, e, no caso de Davi, en­ a fim de estabelecer um tratado de paz com
controu uma fé vigorosa no Deus vivo. o pai dela. O fato de Absalão ter sangue
Absalão é o ator principal dessa parte real nas veias tanto por parte de pai como
do drama, pois contribuiu para transformar de mãe pode tê-lo impelido em sua busca
o drama em tragédia.1 Os três herdeiros do egoísta por um reino.
trono de Davi eram Amnom, o primogênito Amnom era o filho mais velho de Davi
de Davi, Absalão, seu terceiro filho,2 e o e, ao que tudo indicava, o herdeiro ao tro­
quarto filho, Adonias (1 Cr 3:1, 2). Deus ha­ no, de modo que talvez sentisse que tinha
via advertido Davi de que a espada não se mais privilégios que os outros filhos. O amor
apartaria de sua casa (2 Sm 12:10), e Absalão anormal que nutriu por sua meia-irmã era
(que significa "pacífico") foi o primeiro a perverso e, no momento que esse desejo
empunhá-la. O julgamento de Davi contra o teve início, Amnom deveria ter parado de
homem rico da história de Natã foi: "pela alimentá-lo (Mt 5:27-30). Não se tratava ape­
cordeirinha restituirá quatro vezes" (12:6), e nas de um pecado contrário à natureza, mas
esse julgamento foi executado contra o pró­ também de uma violação dos padrões de
prio Davi. O bebê de Bate-Seba morreu; pureza sexual estabelecidos pela lei de Deus
Absalão matou Amnom por haver estupra­ (Lv 18:9-11; 20:17; Dt 27:22). Porém,
do Tamar; Joabe matou Absalão durante a Amnom apaixonou-se de tal modo por Tamar
batalha no monte Efraim; e Adonias foi mor­ que acreditou estar amando de verdade a
to ao tentar usurpar o trono de Salomão moça, chegando a adoecer como resultado
(1 Rs 2:12-25). desse sentimento. As princesas virgens eram
Davi estava reinando sobre Israel, mas o mantidas isoladas em seus aposentos, separa­
pecado e a morte reinavam sobre sua famí­ das até mesmo dos parentes do sexo opos­
lia (Rm 5:14, 17, 21). Deus havia perdoado to, e a imaginação de Amnom trabalhava
2 SAMUEL 1 3 - 1 4 335

incessantemente enquanto pensava em o inimigo blasfemasse contra Deus (v. 14).


Tamar. O uso que Tamar faz dos termos "loucura"
Jonadabe era primo de Amnom, filho e "loucos" (w. 12,13) nos lembra de Gênesis
de Samá, irmão de Davi, chamado aqui de 34 e de Juizes 19 - 20, mais duas cenas
Siméia (1 Sm 16:9). Também era um ho­ desprezíveis de estupro registradas nas Es­
mem astucioso e, provavelmente, funcioná­ crituras (ver Gn 34:7; Jz 19:23, 24; 20:6, 10).
rio de segundo escalão no palácio, jonadabe Tamar tentou ganhar tempo sugerindo que
aparece novamente em 2 Samuel 14:32, Amnom pedisse permissão ao rei para ca­
depois que Amnom é morto pelos servos sar-se com ela (v. 13), apesar de saber que
de Absalão. Qualquer um que facilita o pe­ esse tipo de casamento era proibido pela lei
cado em nossa vida certamente não é um de Moisés (Lv 18:9-11; 20:17; Dt 27:22).3
amigo verdadeiro. Na verdade, ao seguir o
conselho de Jonadabe, Amnom acabou por 2. Da la sc ív ia a o ó d io
tornar-se estuprador, cometer incesto e ser (2 Sm 13:15-22)
assassinado. Amnom pensou que amava Tamar. Primei­
É bem provável que Amnom tivesse co­ ro, afligiu-se por causa dela (vv. 1, 2), de­
meçado a se recuperar da sua "enfermidade pois, caiu enfermo de desejo por ela (v. 2) a
amorosa", pois precisou fingir estar doente ponto de emagrecer (v. 4). Porém, depois
quando Davi foi visitá-lo. Talvez o filho do de cometer esse ato vergonhoso, sentiu ódio
rei tenha pensado: "Se meu pai conseguiu intenso por Tamar e quis se livrar dela! O
safar-se de um adultério, então, sem dúvida verdadeiro amor jamais violaria o corpo do
também posso me safar de um estupro"... outro simplesmente para satisfazer apetites
prova do poder destrutivo dos maus exem­ egoístas nem tentaria persuadir o outro a
plos. "Como fonte que foi turvada e manan­ desobedecer à lei de Deus. Em seus desejos
cial corrupto, assim é o justo que cede ao sensuais, Amnom confundiu lascívia com
perverso" (Pv 25:26). A família de Davi ha­ amor e não percebeu que existe uma linha
via sido turvada, e as conseqüências seriam tênue que separa o amor egoísta (lascívia)
trágicas. Davi era conhecido por sua sabe­ do ódio. Antes de pecar, queria Tamar so­
doria e discernimento aguçado (2 Sm 14:1 7, mente para si; mas depois de pecar, não viu
20), mas depois de todo o episódio com a hora de livrar-se dela.
Bate-Seba, parece ter perdido parte de sua Os pecados sexuais produzem esse tipo
perspicácia. Ao ordenar que Tamar aten­ de dano emocional. Ao tratar outras pessoas
desse o pedido do meio-irmão, condenou a como objetos a serem usados, termina-se por
filha a uma experiência de dor e de humi­ deixá-las de lado, como brinquedos quebra­
lhação e, dois anos depois, quando Davi per­ dos ou roupas velhas. No versículo 17, a pa­
mitiu que Amnom participasse do banquete lavra "mulher" não aparece no texto em
de Absalão, mandou seu primogênito para hebraico, de modo que Amnom estava di­
o matadouro. zendo: "Jogue fora esta coisa!". Isso explica
Tamar preparou os bolos especiais para por que Tamar acusou Amnom de ser ainda
Amnom, o qual pediu que todos saíssem mais cruel ao expulsá-la do que ao violentá-
para que ele pudesse desfrutar sua refeição la. Uma vez que havia perdido a virgindade,
com a irmã e, depois, violentou Tamar. Aqui­ não havia muitas possibilidades de casamen­
lo que pensava ser amor, na verdade não to para Tamar, e ela não poderia mais viver
passava de lascívia, uma paixão que se apo­ nos aposentos junto com as virgens. Para
derou dele de modo a transformá-lo num onde iria? Quem lhe daria abrigo? Quem iria
animal. É evidente que Tamar resistiu o quan­ querê-la? Como seria capaz de provar que
to pôde. Sua recusa em cooperar baseou-se Amnom era o agressor e que ela não o ha­
na lei de Deus e na responsabilidade de Israel via seduzido?
em ser diferente dos vizinhos pagãos (v. 12). Tamar dirigiu-se aos aposentos do irmão,
O pecado de Davi havia dado ocasião a que Absalão, pois, numa sociedade polígama era
336 2 SAMUEL 1 3 - 1 4

responsabilidade de um irmão por parte de capitais - adultério e homicídio -, e Deus


pai e mãe proteger a honra da irmã.4 Quan­ não havia aplicado a lei a ele.
do Absalão viu as lágrimas, as vestes rasga­ Assim, nem Davi nem Absalão disseram
das e as cinzas sobre sua cabeça, percebeu coisa alguma a Amnom sobre seu ato per­
a profunda aflição e humilhação de Tamar e verso. Na verdade, Absalão sequer falou com
deduziu que Amnom a havia violentado. Sua Amnom ("nem mal nem bem"), mas simples­
pergunta: "Esteve Amnom, teu irmão,5 con­ mente esperou o momento certo para matá-
tigo?" (v. 20) revela essa conclusão, pois a lo e vingar a irmã. No entanto, Jonadabe,
expressão "estar com alguém" é um eufe­ amigo de Amnom, sabia que Absalão de­
mismo equivalente a "ir para cama com sejava matar Amnom, pois disse: "assim já
alguém". Os mexericos do palácio não dei­ o revelavam as feições de Absalão, desde o
xavam passar muita coisa, de modo que é dia em que sua irmã Tamar foi forçada por
bem provável que Absalão tivesse ficado sa­ Amnom" (13:32). Se Jonadabe pôde per­
bendo da "doença" de Amnom e da visita ceber o que estava acontecendo, talvez
que Tamar pretendia fazer aos aposentos do outros também tenham suspeitado de algu­
meio-irmão. Mas se Absalão estava tão preo­ ma coisa. A lascívia de Amnom havia se
cupado com a irmã, por que não a alertou a transformado em ódio, mas a essa altura, era
ficar longe de Amnom? O rei havia ordena­ Absalão quem estava alimentando em seu
do que Tamar visitasse o meio-irmão, e as coração o ódio que daria à luz o homicídio
palavras de Absalão não poderiam mudar a (Mt 5:21, 22). Então, com Amnom fora do
ordem do rei. Não havia o que fazer senão caminho, Absalão poderia se tornar rei.6
adverti-la a não ficar sozinha com Amnom.
Talvez Tamar tenha dito que contaria ao 3. D o Ó D IO AO H O M ICÍD IO
rei o que havia acontecido, mas seu irmão (2 Sm 13:23-36)
sugeriu que esperasse. Por quê? Sem dúvida, Nas palavras do escritor francês Emile Gabo-
a mente astuta de Absalão já estava criando riau: "A vingança é um fruto saboroso que
um plano para cumprir três propósitos: vin­ deve ser guardado até amadurecer". Absalão
gar Tamar, livrar-se de Amnom e colocar-se esperou dois anos para vingar o estupro da
como o próximo na linha de sucessão ao irmã, mas, quando chegou a hora, estava
trono! Sua declaração "é teu irmão" (v. 20) pronto para agir. Graças à generosidade do
significa: "Se fosse outro homem, eu a vin­ pai, os príncipes não apenas possuíam car­
garia imediatamente, mas uma vez que ele gos oficiais, mas também eram proprietários
é teu irmão, será preciso ter paciência e es­ de terras e de rebanhos. As terras e os reba­
perar uma oportunidade". Absalão estava nhos de Absalão ficavam em Baal-Hazor,
tentando evitar um escândalo que entriste­ cerca de vinte e dois quilômetros de Jerusa­
ceria a família e que prejudicaria seus pla­ lém. Era costume em Israel preparar enor­
nos de tomar o trono. mes banquetes na época da tosquia das
O rei Davi soube da tragédia e se enfure­ ovelhas e convidar os membros da família e
ceu, mas o que poderia dizer? A lembrança os amigos para compartilhar essa ocasião
dos próprios pecados calou sua boca. Além festiva.
disso, como castigar o filho primogênito e Absalão pediu ao pai que comparecesse
herdeiro de seu trono? De acordo com a lei, à festa e que levasse consigo seus oficiais,
se um homem estuprava uma virgem que mas Davi recusou o convite, explicando que
não estava noiva, deveria pagar uma multa um número tão grande de convidados seria
ao pai dela e se casar com a moça, sendo uma despesa desnecessária para o filho.
proibido de se divorciar (Dt 22:28, 29). Po­ Absalão esperava uma resposta desse tipo,
rém, a lei também não permitia o casamen­ pois não queria que Davi e seus guardas
to entre meios-irmãos, de modo que Amnom estivessem presentes quando Amnom fosse
casar-se com Tamar estava fora de questão morto. Então, perguntou a Davi se permitiria
(Lv 18:9). Davi havia cometido dois crimes que Amnom, seu sucessor, comparecesse à
2 SAMUEL 1 3 - 1 4 337

festa, pedido que deixou Davi um tanto apre­ rei haviam sido mortos na casa de Absalão!
ensivo. Porém, Davi sabia que o príncipe (As más notícias espalham-se rapidamente e
herdeiro o representava com freqüência em são, com freqüência, exageradas.) Davi ras­
ocasiões que exigiam a presença do rei, gou as vestes e se lançou por terra em sinal
então por que não representar Davi no ban­ de luto (12:16), sem dúvida alguma culpan­
quete de Absalão? Além disso, dois anos se do-se por ter permitido que os filhos compare­
passaram desde que Amnom havia violenta­ cessem ao banquete de Absalão. Jonadabe,
do Tamar, e Absalão não tinha feito coisa sobrinho de Davi, que sabia mais do que
alguma contra ele. A fim de garantir certa estava disposto a admitir, relatou a verdade
segurança a Amnom, Davi foi ainda mais ao dizer que apenas Amnom havia sido
longe e permitiu que todos os filhos adultos morto.7 Até mesmo essa notícia, porém, foi
do rei comparecessem ao banquete, supon­ um golpe terrível para Davi, pois Amnom era
do que Absalão não ousaria atacar Amnom seu primogênito e herdeiro do trono. Os
diante de tantos membros da família. príncipes que haviam fugido chegaram em
Porém, durante esses dois anos, Absalão segurança, e todos se reuniram para expres­
havia aperfeiçoado seu plano e feito prepa­ sar sua tristeza profunda, pois Amnom esta­
rativos para fugir. Davi, seu pai, havia provi­ va morto por ordem de Absalão.
denciado para que Urias, o heteu, fosse O problema da vingança é que, na ver­
morto e havia sobrevivido, então por que o dade, não resolve coisa alguma e acaba se
mesmo não poderia se aplicar a seu filho, voltando contra aquele que a tomou nas
Absalão? Assim como o pai, Absalão usou mãos e ferindo o vingador. "Ao se vingar",
as mãos de outros para executar o crime e escreveu Francis Bacon, "um homem colo­
o fez quando a vítima menos esperava. Davi ca-se no mesmo nível do inimigo, mas ao
havia embriagado Urias, mas não conseguiu abrir mão da vingança, torna-se superior a
colocar seu plano em prática, enquanto ele".8 Ninguém foi tratado de modo mais
Absalão embriagou o irmão e fez exatamen­ injusto e desumano do que Jesus Cristo em
te aquilo que havia planejado. Absalão se­ seu julgamento e crucificação, e, no entan­
guiu o péssimo exemplo do pai e cometeu to, ele se recusou a revidar. Cristo é nosso
um homicídio premeditado. exemplo (1 Pe 2:18-25). O velho slogan: "não
Quando Absalão deu a ordem para que se exaspere, vingue-se!" pode agradar a
os servos matassem Amnom, os príncipes alguns, porém jamais será agradável ao Se­
que se encontravam no banquete fugiram, nhor. O modo de viver do cristão é de per­
tentando se salvar, certos de que Absalão dão e de fé, confiando que o Senhor fará
havia planejado exterminar toda a família real tudo cooperar para o nosso bem e para a
e tomar o trono. Os jovens montaram em sua glória (1 Pe 4:12-19).
suas mulas, "animais da realeza" (18:9; 1 Rs
1:33, 38, 44), e voltaram a Jerusalém tão rá­ 4. D o H O M IC ÍD IO AO EXÍLIO
pido quanto seus animais eram capazes de (2 Sm 13:37-39)
andar. Mas Absalão também fugiu (vv. 34, O texto diz, em duas ocasiões, que Absalão
37), e é provável que seus servos o tenham fugiu (vv. 34, 37), e é bem provável que te­
acompanhado. nha escapado durante a confusão, quando
Nos versículos 30 a 36, que constituem os outros filhos do rei também fugiram. So­
uma inserção, deslocamo-nos de Baal-Hazor mente Absalão e seus servos culpados sa­
para Jerusalém e vemos os príncipes que biam o que aconteceria no banquete, de
haviam fugido da festa do ponto de vista de modo que os convidados foram pegos de
Davi. Antes de os guardas na muralha da surpresa. Todos foram testemunhas do "mais
cidade conseguirem distinguir os homens vil dos homicídios" e podiam facilmente de­
que cavalgavam em disparada rumo a Jeru­ clarar que Absalão era culpado.
salém, um mensageiro da casa de Absalão Absalão fugiu quase cento e trinta quilô­
chegou anunciando que todos os filhos do metros para o nordeste, para a casa dos avós
338 2 SAMUEL 1 3 - 1 4

maternos em Cesur, onde seu avô Talmai Israel tivesse um príncipe pronto para reinar,
era rei (3:3). Sem dúvida, esse refúgio havia caso alguma coisa acontecesse a Davi, que
sido preparado de antemão e, possivelmen­ estava, a essa altura, com quase sessenta
te, Talmai teria se agradado de ver o neto anos de idade. No entanto, Absalão não
coroado rei de Israel. Em Jerusalém, Davi poderia voltar para casa a menos que Davi
pranteava seu primogênito, Amnom. Em assim o permitisse, e o rei não daria sua per­
Gesur, porém, o filho exilado estava, por missão até que estivesse convencido de que
certo, tramando como poderia tomar o rei­ era a coisa certa a fazer. Era obrigação do
no do pai. A tristeza normal é curada com o rei cumprir a lei, e Absalão era culpado de
devido tempo e, depois de três anos, Davi tramar o assassinato do meio-irmão, Amnom.9
estava conformado com a morte do prínci­ Davi amava seu filho e, sem dúvida algu­
pe herdeiro. ma, sabia de sua parcela de culpa por tê-lo
A oração: "o coração do rei começava a mimado, mas como resolver esse dilema?
inclinar-se para Absalão" (14:1) tem, pelo Joabe ofereceu a solução para o problema.
menos, duas interpretações. Pode significar Joabe apresenta sua argumentação ao
que Davi desejava muito ver o filho outra rei (vv. 1-20). Assim como Natã havia con­
vez - o que é compreensível - ou que Davi frontado Davi, o pecador, contando-lhe uma
planejava perseguir Absalão e acertar as história (12:1-7), Joabe confrontou Davi, o
contas com ele, mas que sua ira foi se apa­ pai, com um relato inventado de um proble­
gando aos poucos. Prefiro a segunda interpre­ ma familiar narrado por uma mulher que era
tação. Se Davi tivesse realmente desejado não apenas sábia, mas também uma boa
que Absalão voltasse, poderia ter consegui­ atriz. Ela procurou o rei vestida em trajes de
do isso com facilidade, uma vez que Joabe luto e lhe contou os problemas de sua famí­
era a favor dessa idéia (14:22), e os paren­ lia. Seus dois filhos haviam discutido no cam­
tes de Davi em Gesur teriam cooperado. po e um deles havia matado o outro (uma
Porém, quando Absalão voltou para casa, história parecida com a de Caim e Abel, Gn
Davi manteve-se distante dele por dois anos 4:8-16). Os outros parentes queriam exe­
(v. 28)! Se o rei estivesse mesmo ansioso cutar o filho culpado e vingar o sangue do
para rever o filho, sua atitude foi bastante irmão (Nm 35:6ss; Dt 19:1-14), mas a mu­
estranha. Ao que parece, o coração de Davi lher discordava deles. Matar seu único filho
estava dividido: sabia que o filho merecia daria cabo de sua família e "[apagaria] a últi­
ser castigado, mas, ao mesmo tempo, era ma brasa" (v. 7). De acordo com a lei, o filho
conhecido pela leniência com que tratava que havia assassinado o irmão era culpado
os filhos (1 Rs 1:6). A princípio, a intenção e deveria ser executado (Êx 21:12; Lv 24:1 7),
de Davi era tratar Absalão com severidade, mas ela desejava que o rei perdoasse o filho
mas, por fim, mudou de idéia à medida que culpado.
sua atitude foi se alterando. Conforme o A história de Natã sobre a cordeirinha
capítulo 14 explica, Davi transigiu quando, comoveu Davi como pastor de ovelhas, e
finalmente, trouxe Absalão de volta para essa história sobre uma família em pé de
casa, mas, ao mesmo tempo, o castigou ao guerra tocou seu coração de pai. Sua pri­
adiar uma reconciliação completa. Cinco meira reação foi garantir-lhe: "eu darei or­
anos se passaram até que pai e filho se en­ dens a teu respeito" (v. 8), mas, para ela,
contraram outra vez (2 Sm 13:38; 14:28). isso não era suficiente. Por vezes, as engre­
nagens do governo se movem com lentidão,
5. D o EXÍLIO À RECONCILIAÇÃO e seu caso era uma questão de vida ou
(2 S m 14:1-33) morte. Quando a mulher declarou que as­
Joabe conhecia o rei muito bem e identifi­ sumiria a culpa pela decisão que o rei to­
cou os sinais de que Davi ansiava por ver o masse, Davi prometeu protegê-la de qualquer
filho exilado. Como comandante do exérci­ um que falasse contra ela sobre esse assun­
to, uma das preocupações de Joabe era que to (vv. 9, 10). Nem assim, porém, a mulher
2 SAMUEL 1 3 - 1 4 339

ficou satisfeita, de modo que pediu ao rei invenção e que outra pessoa estava por trás
que jurasse, garantindo que seu filho não de tudo o que a suposta viúva havia falado.
seria morto, ao que Davi concordou (v. 11). A verdade, então, veio à tona, revelando que,
Um juramento feito em nome do Senhor de fato, Joabe havia tramado todo o episó­
transformava as palavras numa obrigação e dio, mas sua motivação era das mais nobres:
não podia ser ignorado. "Para mudar o aspecto deste caso foi que o
A mulher havia encurralado Davi (vv. 12­ teu servo Joabe fez isto" (v. 20).
17). Se ele se dispusera a proteger um filho Joabe agradece ao rei (vv. 21-27). Sem
culpado que sequer conhecia, ainda maior dúvida, foi Joabe quem levou a mulher ao
seria sua obrigação de proteger o próprio palácio para ter essa audiência com o rei e
filho amado! Ela havia abordado o rei com é provável que tenha ficado na sala e ouvi­
uma questão envolvendo o futuro de uma do todo o diálogo dos dois. Davi havia jura­
pequena família, mas a questão de Absa- do proteger a mulher e seu filho, de modo
lão dizia respeito ao futuro de uma nação que não lhe restava outra coisa a fazer se­
inteira. O rei não queria ver o único filho e não permitir que Absalão voltasse para casa.
herdeiro daquela mulher ser executado, mas Assim, ordenou que Joabe fosse a Gesur e
estava disposto a permitir que o príncipe trouxesse o exilado para Jerusalém. As pala­
herdeiro fosse mantido no exílio. Se per­ vras de Joabe no versículo 22 sugerem for­
doou o assassino do filho daquela mulher, temente que havia discutido o assunto com
por que não poderia perdoar o homem que Davi mais de uma vez e que se regozijou
havia planejado a morte de Amnom? Quan­ grandemente ao ver a questão resolvida.
to tempo o rei ainda iria esperar até man­ Gesur ficava a quase cento e trinta quilô­
dar buscar o filho? Afinal, a vida é curta e, metros de Jerusalém, e Joabe não perderia
quando chega ao fim, é como água derra­ tempo na viagem, de modo que Absalão pu­
mada na terra que não pode ser recupera­ desse estar de volta em casa uma semana
da. Executar o assassino não pode trazer ou dez dias depois.
de volta a vítima, então por que não lhe No entanto, algumas restrições foram
dar mais uma chance? impostas ao príncipe herdeiro. Deveria per­
Deus não faz acepção de pessoas, e sua manecer em suas próprias terras - o que
lei é perfeita, mas até mesmo Deus cria for­ equivalia praticamente a uma prisão domi­
mas de demonstrar misericórdia aos trans­ ciliar - e não teria permissão de ir ao palá­
gressores e de perdoá-los (v. 14). Por certo, cio ver o pai. Davi estava testando o filho
ele castiga o pecado, mas também procura para determinar se poderia confiar nele, ou
maneiras de reconciliar o pecador consigo. talvez tivesse pensado que essas restrições
(E possível que a mulher tivesse em mente assegurariam ao povo que o rei não estava
Êx 32:30-35 e 34:6-9.) Acaso o Senhor não mimando o filho problemático. Porém, es­
havia perdoado os pecados de Davi? A mu­ sas limitações não foram empecilho para a
lher confessou seu temor de que sua família expansão da popularidade de Absalão, pois
executasse seu filho e tirasse dela a herança era amado e louvado pelo povo. O fato de
que Deus havia lhe dado. ter tramado a morte do meio-irmão e de
Foi um discurso comovente, que tocou haver provado sua culpa ao fugir não signi­
Davi. Porém, sendo um homem sábio, o rei ficava muita coisa para o povo, pois as pes­
se deu conta de que o significado mais pro­ soas precisam de ídolos, e que figura mais
fundo da súplica dessa mulher ia muito além apropriada que a de um príncipe jovem e
dos limites de sua família e propriedade. Davi bem apessoado? A falta de caráter era irre­
teve discernimento suficiente para perceber levante; o que importava era sua posição,
que ela estava falando do rei, de Absalão e sua riqueza e sua excelente aparência.'0
do futuro de Israel, a herança de Deus. A Absalão era um ícone de masculinidade, e
essa altura, também deve ter compreendi­ o povo o invejava e admirava. As coisas não
do que a história toda não passava de uma mudaram muito.
340 2 SA M U E L 13 - 14

Quaisquer que fossem, possivelmente, os general, pois a lei exigia que um incendiário
atributos de Absalão, uma coisa que lhe fal­ ressarcisse o proprietário do campo cuja
tava era um grande número de filhos para plantação ele havia destruído (Êx 22:6). O
dar continuidade a seu nome "célebre". É povo ficou sabendo do incêndio, de modo
provável que os três filhos mencionados no que Joabe pôde visitar Absalão sem medo
versículo 27 tenham morrido ainda muito de ser mal interpretado.
jovens, pois 2 Samuel 18:18 diz que, naque­ Absalão apresentou duas alternativas ao
la época, Absalão não tinha filho algum. Não general: ou ele o levava ao rei e deixava que
é de surpreender que tenha dado à sua filha recebesse seu filho e que o perdoasse ou o
o nome da irmã, Tamar. Sempre um egotista, levava à justiça e provava que era culpado de
Absalão ergueu uma coluna para servir de um crime capital e merecia morrer. Absalão
lembrança a todos de sua grandeza. preferia ser executado a continuar vivendo
Joabe leva Absalão ao rei (vv. 28-33). sob vergonhosa prisão domiciliar. Joabe esta­
Uma "mulher sábia" dissimulada poderia ter va entre o fogo e a frigideira, pois ele próprio
uma audiência com o rei, mas o próprio filho havia planejado a volta de Absalão a Jerusa­
do rei foi banido de sua presença. Absalão lém. Sabia que o povo jamais permitiria que
aceitou esse arranjo por dois anos, crendo sua figura real mais querida fosse julgada e
que Joabe conseguiria que Davi aceitasse condenada por um crime, mas como garan­
uma reconciliação, mas Joabe não fez coisa tir que o rei se reconciliaria com seu filho?
alguma. Absalão sabia o que significava ser Joabe transmitiu a mensagem de Absalão a
banido da presença do rei: ninguém espe­ Davi, e o rei convidou o filho a visitá-lo, re­
raria que herdasse o trono. Era uma situa­ cebendo-o com um beijo de reconciliação.
ção complicada, pois, mais do que qualquer Depois de cinco anos de separação, pai e
outra coisa, Absalão desejava ser rei de Is­ filho se reuniram (2 Sm 13:38; 14:28).
rael. Um homem astuto como Joabe deve Não há registro algum de que Absalão
ter percebido que Absalão tinha planos de tenha se arrependido e pedido perdão ao
subir ao trono e que a popularidade cada pai, ou que tenha visitado o templo e ofere­
vez maior do príncipe poderia oferecer-lhe cido os devidos sacrifícios. Apesar de pai e
o apoio de que precisava para assumir o con­ filho estarem juntos outra vez, não se trata­
trole do reino. Sabendo como a situação era va de uma paz verdadeira, mas sim de uma
instável, o general perspicaz afastou-se de trégua muito delicada. Absalão ainda alimen­
Absalão, a fim de não dar a impressão de tava ambições secretas e estava determina­
que estava sendo controlado pelo príncipe do a tomar o trono de Davi. Uma vez livre,
egotista. o príncipe poderia visitar a cidade e desfru­
Depois de dois anos de espera, durante tar a adulação da multidão, enquanto, ao
os quais convocou Joabe duas vezes e foi mesmo tempo, organizava calmamente seus
ignorado, Absalão decidiu que era necessá­ simpatizantes para a futura rebelião. Davi
rio tomar uma medida drástica. Ordenou que estava prestes a perder o trono, a coroa, as
seus servos ateassem fogo à plantação de concubinas, o conselheiro de confiança,
cevada de seu vizinho, que, por acaso, era Aitofel, e, por fim, o filho, Absalão. Seria o
Joabe." Com isso, conseguiu a atenção do momento mais sombrio da vida do rei.

1. Mesmo depois da morte de Absalão, seu nome e sua memória lembravam o povo do mal (2 Sm 20:6; 1 Rs 2:7, 28; 15:2,10;
2 Cr 11:20, 21).

2. É bem provável que Quileabe (ou Daniel), segundo filho de Davi, tenha morrido ainda jovem, pois exceto pela genealogia real,
ele não é mencionado no relato bíblico (1 Cr 3:1).

3. Talvez tivesse em mente Abraão e Sara (Cn 20:12), mas isso foi antes da lei de Moisés.

4. Quando Diná foi estuprada (Cn 34), Simeão e Levi, seus irmãos por parte de pai e mãe, trataram de vingá-la (ver Cn 29:32­

35; 30:17-21).
2 SA M U EL 1 3 - 1 4 341

5. O termo hebraico "Amnom" é um diminutivo: " O pequeno Amnom esteve com você?". Absalão não escondeu a aversão total

que sentia pelo meio-irmão.

6. Alguém sabia que Salomão era o filho de Davi escolhido por Deus para ser o próximo rei? Talvez não, pois o Senhor ainda não

havia revelado sua vontade. De acordo com alguns cronologistas, o nascimento de Salomão ocorreu antes do pecado de

Amnom contra Tamar, mas Bate-Seba havia dado à luz três outros filhos antes de Salomão (2 Sm 5:14; 1 Cr 3:5; 14:4). Deus

prometeu a Davi que um de seus filhos seria seu sucessor e construiria o templo (2 Sm 7:12-15), mas o texto não registra que,

nessa ocasião, o Senhor tenha anunciado o nome do filho em questão. Amnom e Absalão já haviam nascido, e esse anúncio

dá a entender que o filho escolhido ainda estava por nascer.1 Crônicas 22:6-10 indica que, a certa altura, o Senhor disse a

Davi que Salomão seria seu sucessor (ver 28:6-10; 29:1). Quer soubessem quer não, Amnom e Absalão estavam lutando uma

batalha perdida.

7. Parece estranho jonabe ter feito esse anúncio, pois, com isso, estava praticamente confessando que tinha algum conhecimento

da trama. Porém, Davi e seus servos sabiam que Jonadabe era confidente de Amnom e, sem dúvida, concluíram que ele e

Amnom haviam discutido a atitude de Absalão e concluído que não havia mais perigo algum. Jonadabe era um homem astuto

demais para se comprometer diante do rei.

8. "O f Revenge", The Essays of Frands Bacon.

9. Deus resolveu o problema dos pecadores enviando seu Filho para morrer na cruz, guardando, desse modo, a lei e, ao mesmo

tempo, oferecendo a salvação a todos aqueles que crêem em Cristo. Ver Romanos 3:19-31.

10. O peso dos cabelos que o barbeiro de Absalão cortava depende de quanto era um "peso real" (v. 26). Se era de 11,5 gramas,

então eram aparados dois quilos e meio de cabelos. A calvície era ridicularizada em Israel (2 Rs 2:23).

11. Podem-se traçar paralelos interessantes entre Absalão e Sansão. Os dois se distinguiam pelos cabelos, pois Sansão era

nazireu (Jz 13:1-5), e os dois atearam fogo em plantações (Jz 15:4, 5). A perda de seus cabelos causou a derrota de Sansão

(Jz 16:17ss), e é provável que os cabelos espessos de Absalão tenham contribuído para que ficasse preso pela cabeça aos

galhos da árvore na qual Joabe o encontrou e matou (2 Sm 18:9-17).


O editor de jornal H. L. Mencken definiu
_ 7_ um demagogo de maneira um tanto extre­
mada, porém bastante clara: "É alguém que
prega doutrinas que sabe serem falsas a ho­
A Fu g a de D avi P a r a mens que sabe serem idiotas". O escritor
James Fenimore Cooper expressou-se bem
o D eserto quando disse que demagogo "E aquele que
promove os próprios interesses ao fingir pro­
2 Sam uel 15:1 - 16:14 funda dedicação aos interesses do povo".
Absalão não era apenas um mentiroso de
primeira linha, mas também um homem pa­
ciente e capaz de discernir o momento certo

E
xperimentar o poder de Deus ao enfren­ de agir. Esperou durante dois anos até man­
tar gigantes ou lutar contra exércitos é dar matar Amnom (13:23) e, posteriormente,
uma coisa; outra bem diferente é ver pessoas esperou quatro anos antes de rebelar-se aber­
destruindo seu mundo bem diante de seus tamente contra o pai e tomar o trono (v. 7).2
olhos. Deus havia disciplinado Davi, mas o Ao ler os "salmos do exílio" de Davi, temos a
rei sabia que o poder de Deus poderia ajudá- impressão de que, nessa época, o rei se en­
lo tanto na hora do sofrimento quanto na contrava enfermo e não estava cuidando di­
hora da conquista e escreveu em um de seus retamente dos assuntos do reino, dando a
salmos no exílio: "São muitos os que dizem Absalão a oportunidade de tomar seu lugar
de mim: Não há em Deus salvação para ele. e de assumir o controle.3 O príncipe egotista
Porém tu, S en h o r , és o meu escudo, és a mostrou-se habilidoso ao usar de todos os
minha glória e o que exaltas a minha cabe­ artifícios a sua disposição para encantar o
ça" (SI 3:2, 3). Davi reconheceu que a mão povo e granjear seu apoio. Davi havia con­
amorosa e disciplinadora de Deus estava quistado o coração do povo pelo sacrifício e
sobre ele e admitiu que merecia cada um serviço, mas Absalão o fez do modo mais
de seus golpes. Mas creu também que a fácil, como se faz hoje em dia: criando uma
bondade e o poder de Deus continuavam imagem irresistível de si mesmo ao povo. Davi
operando em sua vida e que o Senhor não foi um herói, enquanto Absalão foi apenas
o havia abandonado como fizera com Saul. uma celebridade. Infelizmente, muitos
O Senhor ainda realizava sua vontade per­ israelitas haviam se acostumado com seu rei
feita e, em momento algum, Davi mostrou e não lhe davam mais o devido valor.
maior fé e submissão do que quando foi for­ Tudo indica que a campanha de Absalão
çado a deixar Jerusalém e se esconder no começou logo depois da reconciliação com
deserto. Essa passagem apresenta três reis. 0 pai, uma vez que, a partir de então, estava
livre para ir aonde quisesse. Sua primeira pro­
1. A bsalão, o rei impostor de I srael vidência foi começar a andar em um carro
(2 Sm 15:1-12) puxado por cavalos e acompanhado de cin­
Se já houve um homem perfeitamente pre­ qüenta guarda-costas, que anunciavam sua
parado para ser um demagogo' e fazer o presença. O profeta Samuel havia previsto
povo se desviar, esse foi Absalão. Era bem esse tipo de comportamento da parte dos
apessoado, com um charme difícil de resistir reis de Israel (1 Sm 8:11) e Moisés havia ad­
(14:25, 26) e tinha em suas veias sangue vertido contra a aquisição de cavalos (Dt
real tanto por parte de pai quanto de mãe. 17:16). Davi escreveu em Salmos 20:7: "Uns
O fato de esse príncipe não ter caráter al­ confiam em carros, outros, em cavalos; nós,
gum não era importante para a maioria do porém, nos gloriaremos em o nome do Se­
povo, que, como um rebanho de ovelhas, n h o r , nosso Deus".
seguia qualquer um que falasse o que deseja­ Uma vez que Davi não estava à disposi­
vam ouvir e que lhes desse o que queriam. ção, Absalão encontrava-se pessoalmente
2 S A M U E L 15:1 - 16:14 343

com o povo na estrada que levava à porta em seu próprio nome, certamente, o rece­
da cidade, para onde os israelitas se diri­ bereis" (Jo 5:43).
giam todas as manhãs a fim de que suas Absalão vinha enganando os irmãos e o
queixas fossem examinadas e que suas cau­ povo de Israel havia anos, e, quando o mo­
sas fossem julgadas. Na Antiguidade, a por­ mento certo chegou, deu um passo ousado
ta da cidade equivalia à prefeitura e ao e mentiu para o pai (2 Sm 19:7-9). O prínci­
fórum (Rt 4:1 ss; Cn 23:10; Dt 22:15; 25:7), pe não se encontrava mais sob prisão domi­
e Absalão sabia que encontraria ali muita ciliar, de modo que não havia necessidade
gente insatisfeita se perguntando por que de receber permissão para sair de Jerusalém,
o sistema judicial não funcionava com efi­ mas, ao fazê-lo, Absalão conseguiu várias
ciência. (Ver 2 Sm 19:1-8.) Absalão cumpri­ coisas. Em primeiro lugar, poderia dizer a
mentava esses visitantes como se fossem qualquer um que perguntasse que Davi ha­
amigos de longa data e descobria de onde via permitido a ida do filho a Hebrom para
haviam vindo e quais eram seus problemas. que cumprisse um voto feito enquanto esta­
Concordava com todos que suas queixas va no exílio em Gesur. Em segundo lugar,
eram válidas e que deveriam ser decididas dissipava as apreensões que poderiam sur­
em favor deles no tribunal do rei. Suas pa­ gir em decorrência do banquete que Absalão
lavras não passavam de bajulação vulgar do havia oferecido no passado, no qual Amnom
tipo mais desprezível, mas o povo adorava. havia sido morto. Em terceiro lugar, dava
Absalão afirmava que poderia cuidar me­ credibilidade a seu convite a duzentas pes-
lhor dos assuntos do reino se, ao menos, soas-chave da administração de Davi, que
fosse juiz (v. 4), uma forma sutil de criticar o compareceram de bom grado ao banquete.
pai. Quando as pessoas começavam a se Os convidados devem ter ficado impressio­
curvar diante de Absalão por ser o príncipe nados ao ver essas duzentas pessoas impor­
herdeiro, estendia a mão a fim de detê-las, tantes em Hebrom. O fato de o banquete
puxava-as para junto de si e as beijava (v. 5). estar relacionado ao cumprimento de um
Esse gesto nos lembra do beijo hipócrita de voto conferiu ao encontro certa aura reli­
Judas ao saudar Jesus no jardim (Mt 26:47­ giosa (Dt 32:21-23), pois foram oferecidos
50; Mc 14:45). sacrifícios ao Senhor. O que poderia dar er­
Levou apenas quatro anos para o mag­ rado num banquete dedicado ao Senhor?
netismo de Absalão reunir um número con­ Absalão estava usando o nome do Senhor
siderável de seguidores devotos por toda a para ocultar seus pecados.4
terra. As pessoas com as quais Absalão se O golpe de mestre de Absalão foi con­
encontrava voltavam para a casa e conta­ quistar o apoio de Aitofel, o conselheiro mais
vam aos amigos e vizinhos que haviam astuto de Davi, e, quando os convidados o
conversado pessoalmente com o príncipe viram no banquete, tiveram certeza de que
herdeiro, e, ao longo desse período de qua­ tudo estava bem. No entanto, Aitofel fez mais
tro anos, esse tipo de apoio conquistou mui­ do que comparecer à comemoração; tam­
tos amigos para Absalão. A rapidez com que bém se uniu a Absalão em sua rebelião
foi capaz de influenciar a mente e o cora­ contra o rei Davi. É provável que toda essa
ção do povo serve-nos de advertência hoje, operação tenha sido idealizada por Aitofel.
lembrando que, um dia, surgirá um líder que Afinal, Davi havia violentado Bate-Seba, neta
controlará a mente das pessoas de todo o de Aitofel, e mandado matar o marido dela
mundo (Ap 13:3; 2 Ts 2). Até mesmo o povo (ver 2 Sm 23:34; 1 Cr 3:5). Era a grande
de Israel será enganado e firmará uma alian­ oportunidade de Aitofel vingar-se de Davi.
ça com esse governante, sendo que, depois, Porém, ao apoiar Absalão, Aitofel rejeitou
ele se voltará contra os judeus e tentará des­ Salomão, filho de Bate-Seba, o qual Deus ha­
truí-los (Dn 9:26, 27). Jesus disse aos líderes via escolhido para ser o próximo rei de Is­
judeus de seu tempo: "Eu vim em nome de rael. Ao mesmo tempo, estava rumando para
meu Pai, e não me recebeis; se outro vier a morte, pois, assim como Judas, rejeitou o
344 2 SA M U EL 15:1 - 16:14

verdadeiro rei, saiu e cometeu suicídio (ver de pessoas inocentes morrerem. Foi um ges­
2 Sm 17:23; SI 41:9; 55:12-14; Mt 26:21-25; to típico de Davi arriscar a própria vida e
Jo 13:18; At 1:16). Aitofel havia enganado abandonar o trono a fim de proteger a ou­
Davi, seu rei, e pecara contra o Senhor, que tros. Seus servos juraram fidelidade ao rei
havia escolhido Davi. (v. 16), como também o fez sua guarda pes­
Por que Absalão decidiu começar sua soal (vv. 18-22). As dez concubinas que Davi
insurreição em Hebrom? Um dos motivos deixou para trás a fim de administrar a casa
foi o fato de a cidade ser a antiga capital de seriam, posteriormente, violentadas por
Judá, e talvez alguns tivessem se ressentido Absalão (16:20-23), ato que declarava que
com o fato de Davi ter mudado a capital ele havia tomado posse do reino de seu pai.
para Jerusalém. Absalão havia nascido em Davi mobiliza suas tropas (w. 17-22).
Hebrom e poderia dizer que possuía maior Davi e seu grupo fugiram para o Nordeste,
afinidade com seus habitantes. Hebrom era afastando-se de Jerusalém na direção opos­
uma cidade sagrada para os israelitas, pois ta a Hebrom. Quando chegaram à ultima
havia sido designada para os sacerdotes e casa da periferia de Jerusalém, fizeram uma
era relacionada a Calebe (Js 21:8-16). Situa­ pausa para descansar, e Davi passou as tro­
da a pouco mais de trinta quilômetros a pas em revista. Entre os soldados, estava a
sudoeste de Jerusalém, era uma cidade guarda pessoal do rei (os queretitas e
murada, ponto de partida ideal para invadir peletitas, 8:18; 23:22, 23) e, também, seis­
Jerusalém e tomar o trono. Com duzentos centos filisteus que haviam seguido Davi de
oficiais de Davi "presos" dentro dos muros Gate e que se encontravam sob o comando
de Hebrom, seria fácil a Absalão assumir o de Itai (1 Sm 27:3). Itai garantiu a lealdade
controle do reino. absoluta de seus soldados ao rei. O teste­
munho de fidelidade desse gentio a Davi (v.
2. D avi, o verdadeiro rei de I srael 21) é uma das grandes confissões de fé e de
(2 Sm 15:13-23) lealdade encontradas nas Escrituras e pode
Absalão e Aitofel ordenaram que seus trom- ser colocada ao lado da confissão de Rute
beteiros e mensageiros ficassem prontos para (1:16) e das palavras do centurião romano
agir, e, ao sinal, a notícia espalhou-se rapi­ (Mt 8:5-13).5
damente por toda a terra: "Absalão é rei em Davi chora (v. 23). A palavra-chave des­
Hebrom!" O mensageiro anônimo que in­ ta seção é o verbo "passar", usado nove ve­
formou Davi, na verdade, ajudou a salvar a zes. Davi e seu povo passaram o ribeiro de
vida do rei. Por mais apático que Davi esti­ Cedrom (v. 23), que corria pelo Leste de Je­
vesse até então, entrou imediatamente em rusalém com um grande volume de água
ação, pois, nos momentos de crise, mostra­ durante o inverno e precisava ser atravessa­
va sempre o melhor de si. do para se chegar ao monte das Oliveiras.
Davi assume o controle (w. 13-16). Sua Essa cena nos lembra da experiência de Je­
primeira ordem oficial foi para que sua fa­ sus quando foi ao jardim (Jo 18:1). Naquele
mília, seus oficiais e sua guarda pessoal exato momento Judas, um dos próprios dis­
deixassem Jerusalém imediatamente. Se cípulos, o estava traindo e providenciando
Absalão conseguisse o apoio de todo o Is­ para que fosse preso. O povo chorava en­
rael, seria fácil para os exércitos de Judá e quanto andava apressadamente e seu rei
das tribos do Norte cercarem a cidade, blo­ chorava com eles, ainda que, talvez, por
queando qualquer saída. Davi sabia que o motivos diferentes (vv. 23,30). Seu próprio
mesmo Absalão que havia matado Amnom filho o havia traído, juntamente com seu
também mataria os irmãos e talvez até o pai, amigo e conselheiro particular, e o povo in­
de modo que era absolutamente necessário sensato pelo qual o rei havia feito tanta coi­
que todos fugissem. Além disso, se Absalão sa nem sabia o que estava acontecendo.
tivesse de atacar Jerusalém, exterminaria seus "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
habitantes, e não havia motivo para centenas fazem" (Lc 23:34).
2 SA M U E L 15:1 - 16:14 345

Será que Davi sentia o peso da culpa, Senhor. Hoje, é possível encontrar coragem
enquanto, mais uma vez, seu filho amado e confiança em nossos momentos de difi­
Absalão desafiava a vontade de Deus e ma­ culdade ao ver como o Senhor respondeu a
goava o pai tão profundamente? Ele e o fi­ Davi e foi fiel a ele em sua hora de angústia.
lho haviam se reconciliado, mas o rapaz não O Senhor reconhece a fé de Davi ( 15:24­
havia mostrado qualquer sinal de contrição 29). Zadoque e Abiatar dividiam as funções
por seus pecados nem pedido perdão ao do sumo sacerdote e ajudaram a transferir
pai ou ao Senhor. "Não se apartará a espa­ a arca para Jerusalém (1 Cr 15:11 ss), de
da jamais da tua casa", havia sido a senten­ modo que lhes pareceu por bem levar a
ça ominosa proferida pelo profeta de Deus arca a Davi. Absalão havia usurpado o trono
e que estava se cumprindo. O bebê de Bate- do pai, mas os sacerdotes não permitiriam
Seba morrera e Amnom fora assassinado. que tomasse o trono de Deus. Juntaram-se
Davi não queria que Absalão morresse (18:5), ao grupo de Davi, que, a essa altura, en­
mas o jovem seria morto por Joabe, a tercei­ contrava-se acampado, e levaram consigo
ra "prestação" do pagamento doloroso de muitos dos levitas, sendo que Abiatar ofe­
Davi (12:6). Adonias também morreria numa receu sacrifícios (v. 24) e, sem dúvida, cla­
tentativa frustrada de tornar-se rei (1 Rs 1) e, mou ao Senhor pedindo que guiasse e que
então, a dívida estaria paga. protegesse o rei.
Pela segunda vez em sua vida, Davi foi Davi, porém, ordenou que levassem a
obrigado a fugir para o deserto a fim de se arca de volta a Jerusalém! Não queria que o
salvar. Quando era jovem, fugiu da fúria in­ trono de Deus fosse tratado como amuleto,
vejosa do rei Saul, e, dessa vez, tentava es­ como havia acontecido no tempo de Eli
capar da conspiração de seu filho, Absalão, quando a glória partiu de Israel (1 Sm 4).
e de seu antigo conselheiro, Aitofel. Ao dei­ Absalão e seus homens tentavam transfor­
xar Jerusalém, Davi poupara a cidade de uma mar a glória de Davi em opróbrio (SI 4:2),
carnificina, mas ele e a família estavam em mas o favor de Deus estava sobre seu rei e
perigo, sem saber o que seria do futuro do o restauraria a seu trono. Davi havia visto o
reino e da aliança de Deus com Davi. poder e a glória de Deus em seu santuário
(SI 63:2) e, pela fé, os veria no deserto. Mas,
3. J eová, o rei soberano de I srael mesmo que Deus rejeitasse Davi, o rei esta­
(2 Sm 1 5 :2 4 -1 6 :1 4 ) va preparado para aceitar a vontade sobe­
Ao ler os salmos do exílio de Davi, é impos­ rana de Jeová (v. 26).6 Eli havia feito uma
sível não ver sua confiança em Deus e sua declaração parecida (1 Sm 3:18), mas era
convicção de que, por mais desordenadas uma expressão de resignação, não de con­
e perturbadas que estivessem as coisas, o sagração. No caso de Davi, o rei entregara
Senhor continuava em seu trono. Quaisquer todo seu ser ao Senhor, dizendo: "seja feita
que fossem seus sentimentos, Davi sabia que a tua vontade e não a minha".
o Senhor seria sempre fiel a sua aliança e A fé sem obras é morta, de modo que
cumpriria suas promessas. O Salmo 4 pode, Davi incumbiu os dois sacerdotes de ser seus
muito bem, ser o cântico que Davi entoou a olhos e ouvidos em Jerusalém e de transmi­
Deus naquela primeira noite longe de casa, tir toda e qualquer informação que pudesse
e o Salmo 3 o que ele orou na manhã se­ ajudá-lo a planejar sua estratégia. Aimaás,
guinte. Nos Salmos 41 e 55, derramou o filho de Zadoque, e também Jônatas, filho
coração diante do Senhor; Deus o ouviu e, de Abiatar, seriam os mensageiros e leva­
a seu tempo, respondeu a suas súplicas. Os riam as informações a Davi. O rei era um
Salmos 61, 62 e 63 nos permitem ver o que tático de grande competência, e, ao ler 1 Sa­
se passava no coração aflito de Davi, enquan­ muel 19 - 28, descobrimos que possuía
to pedia orientação e forças de Deus. Obser­ um sistema eficiente de espias que o manti­
ve que cada um desses três salmos termina nha informado de todos os movimentos de
com uma declaração veemente de fé no Saul. Davi teria concordado com o conselho
346 2 SA M U EL 15:1 - 16:14

atribuído a Oliver Cromwell: "Rapazes, co­ Israel e com o futuro do ministério que Deus
loquem sua confiança em Deus, mas man­ havia dado a essa nação como testemunho
tenham a pólvora sempre seca". A despeito para o mundo todo. A aliança de Deus com
do que pudesse fazer aos oficiais do rei, di­ Davi (2 Sm 7) garantia que seu trono perma­
ficilmente Absalão atacaria os sacerdotes e neceria para sempre, e isso se cumpriu em
levitas, que teriam liberdade de continuar Cristo; mas essa promessa também signifi­
seu trabalho praticamente sem ser notados. cava que Israel não seria destruído e que a
Quando os dois sacerdotes e seus filhos lâmpada de Davi não se apagaria de modo
voltaram a Jerusalém com a arca, é provável permanente (1 Rs 11:36; 15:4; 2 Rs 8:19;
que os seguidores de Absalão tenham inter­ 21:7; SI 132:17). Deus seria fiel no cumpri­
pretado esse ato como mais quatro votos mento de sua aliança, e Davi sabia que seu
em favor do novo rei. trono estava seguro nas mãos do Senhor.
O Senhor vê as lágrimas de Davi (15:30). O Senhor responde à oração de Davi
Nas palavras de A. W. Tozer:7 "A Bíblia foi (15:31-37). Outro mensageiro chegou ao
escrita com lágrimas, e é às lágrimas que ela acampamento de Davi e informou ao rei que
entrega seus tesouros mais preciosos". Davi Aitofel havia desertado para o lado de
era um homem forte e valente, mas não ti­ Absalão (ver v. 12). "Até o meu amigo ínti­
nha medo de chorar abertamente (homens mo, em quem eu confiava, que comia do
de verdade choram, sim, inclusive Jesus e meu pão, levantou contra mim o calcanhar"
Paulo). Lemos sobre as lágrimas de Davi no (Sl 41:9). "Não é inimigo que me afronta; se
Salmo 6, que pode ser um salmo do exílio o fosse, eu o suportaria [...] mas és tu, ho­
(vv. 6-8), bem como nos Salmos 30:5; 39:12; mem meu igual, meu companheiro e meu
e 56:8. "Apartai-vos de mim, todos os que íntimo amigo" (Sl 55:12-14). O que devemos
praticais a iniqüidade, porque o S enhor ouviu fazer quando um de nossos confidentes mais
a voz do meu lamento" (SI 6:8). "Sacrifícios chegados nos trai? O mesmo que Davi: orar
agradáveis a Deus são o espírito quebranta­ e adorar. " Ó S enhor , peço-te que transtor­
do; coração compungido e contrito, não o nes em loucura o conselho de Aitofel" (2 Sm
desprezarás, ó Deus" (SI 51:17). 15:31).
Por certo, não faltavam motivos para as Então, "ao chegar Davi ao cimo, onde
lágrimas de Davi, pois seus pecados haviam se costuma adorar a Deus" (v. 32), Davi viu
trazido tristeza e morte sobre sua família. Husai, a resposta a sua oração! Husai é cha­
Amnom fora assassinado, e Tamar, violenta­ mado de "amigo de Davi" (v. 37; 1 Cr 27:33),
da; agora, Absalão - o próprio filho do rei - indicando que era amigo na corte e conse­
estava no processo de usurpar o trono de lheiro especial do rei. Husai era arquita, o
Israel e rumando para a morte certa. Aitofel, que significava que vinha de um grupo de
amigo e conselheiro de Davi, voltara-se con­ descendentes de Canaã, portanto gentios
tra ele, e o povo pelo qual Davi havia arrisca­ (Gn 10:17; 1 Cr 1:15). A cidade de Arca fi­
do a vida em tantas ocasiões o abandonava cava na Síria, a cerca de trezentos e vinte
a fim de seguir um rebelde egotista que não quilômetros de Damasco e a oito quilôme­
havia sido escolhido por Deus. Se havia um tros a leste do mar. As conquistas de Davi
homem com todo o direito de chorar, esse haviam chegado até essa região, no Norte,
era Davi. Assim como as crianças desobe­ e alguns desse povo haviam passado a ado­
dientes choram quando recebem uma surra, rar o Deus verdadeiro de Israel e a servir a
é fácil as pessoas chorarem quando estão seu rei.
sendo disciplinadas por seus pecados, e, Davi fez com Husai o mesmo que havia
uma vez terminada a surra, se esquecem da feito com Zadoque, Abiatar e os dois filhos
dor. No entanto, as lágrimas de Davi eram dos sacerdotes: enviou-o de volta a Jerusa­
muito mais profundas. Estava preocupado lém para "servir" a Absalão. Esses cinco ho­
não apenas com o bem-estar de seu filho mens estavam se arriscando por amor ao
rebelde, mas também com a segurança de Senhor e ao reino, mas consideraram uma
2 SA M U EL 15:1 - 16:14 347

honra servir a seu rei e ajudar a restituí-lo ao desmentida (2 Sm 19:26,27) - e fez um


trono. Todas as pessoas às quais Davi deu julgamento precipitado, que deu a Ziba a
incumbências específicas poderiam dizer: propriedade pertencente, por direito, a
"Eis aqui os teus servos, para tudo quanto Mefibosete. "Responder antes de ouvir é
determinar o rei, nosso senhor" (v. 15). Tra­ estultícia e vergonha" (Pv 18:13). Os líderes
ta-se de uma excelente declaração a ser ado­ que servem ao Senhor devem estar sempre
tada pelos cristãos hoje para expressar sua alertas a fim de não tomar decisões precipita­
devoção a Cristo. das com base em informações incompletas.
Husai voltou a Jerusalém logo depois que Deus honra a submissão de Davi (16:5­
Absalão havia chegado, e é possível que a 14). Por meio das mentiras de Ziba, Satanás
empolgação do povo ao saudar seu novo atacou Davi como uma serpente enganado­
rei tenha permitido que entrasse na cidade ra (2 Co 11:3; Gn 3:1-7). Em seguida, pelas
sem ser notado, ou talvez tenha reforçado palavras e pedras de Simei, Satanás manifes­
sua posição juntando-se ao povo na recep­ tou-se como leão devorador (1 Pe 5:8). Ziba
ção. É claro que, mais tarde, Husai cum­ contou mentiras, Simei atirou pedras, e os
primentaria o rei e colocaria mãos à obra, dois perturbaram o rei. Davi estava próximo
fazendo todo o possível para embargar os a Baurim,8 na tribo de Benjamim, onde as
planos do novo rei e para manter Davi infor­ forças partidárias de Saul ainda eram fortes.
mado. Se há coisa melhor do que obter uma Simei encontrava-se na encosta de uma co­
resposta de oração é ser uma resposta de lina oposta a Davi e acima dele, de modo
oração, e Husai foi a resposta às orações de que foi fácil jogar pedras e torrões de terra
Davi. Em termos humanos, se não fosse pelo sobre Davi e seu grupo. Davi estava exausto
conselho de Husai a Absalão, Davi poderia e desanimado e, no entanto, jamais demons­
ter sido morto no deserto. trou tanta grandeza como quando permitiu
O Senhor supre as necessidades de Davi que Simei prosseguisse com seu ataque.
(16:1-4). O encontro de Davi com Husai foi Abisai mostrou-se mais do que disposto a
uma resposta de oração, mas seu encontro passar e matar o homem que atacava o rei,
com Ziba supriu uma necessidade imediata mas Davi não permitiu que o fizesse. Abisai
que acabou criando um problema, só resol­ também havia desejado matar Saul no
vido depois que Davi reassumiu o trono. acampamento de Israel (1 Sm 26:6-8) e aju­
Ziba havia sido um dos administradores das dara seu irmão, Joabe, a assassinar Abner
terras de Saul, bem como responsável por (2 Sm 3:30), de modo que Davi sabia que
Mefibosete, o filho aleijado de Jônatas (cap. as palavras de Abisai deveriam ser levadas
9). Sabendo que Ziba era um oportunista a sério.
mal-intencionado, Davi desconfiou de sua "Fora daqui, fora, homem de sangue,
visita, de seus presentes e da ausência de homem de Belial", gritou Simei, mas Davi
Mefibosete, que havia ficado sob os cuida­ não revidou. Simei estava culpando Davi pela
dos de Davi. Ziba havia levado consigo dois morte de Saul e de seus filhos, pois, afinal
jumentos para Davi e sua família, bem como de contas, quando eles morreram, Davi fa­
porções generosas de pão, vinho e frutas. zia parte, oficialmente, do exército dos filis­
Os presentes eram coisas de que necessita­ teus. Ao que parece, o fato de Davi estar a
vam e foram devidamente apreciados, mas quilômetros de distância do campo de ba­
o que preocupava Davi era a motivação por talha na ocasião da morte deles não impor­
trás dessa generosidade. tava para Simei. É bem provável que esse
Ziba mentiu ao rei e fez todo o possível benjamita leal culpasse Davi pela morte de
para difamar seu jovem senhor, Mefibosete. Isbosete, o filho de Saul que havia herdado
Davi estava cansado e profundamente ma­ o trono do pai, e também de Abner, o fiel
goado, de modo que não era o melhor mo­ comandante de Saul, sem deixar de fora, ain­
mento para julgar o caráter de qualquer um. da, Urias, o heteu. "Eis-te, agora, na tua des­
Aceitou a história de Ziba - que depois foi graça, porque és homem de sangue" (v. 8).
348 2 SA M U EL 15:1 - 16:14

Sua expressão de ira contra Davi era uma de vadear o rio Jordão, possivelmente nas
transgressão da lei, pois Êxodo 22:28 diz: cercanias de Gilgal ou Jericó, e descansa­
"Contra Deus não blasfemarás, nem amaldi­ ram nesse local. Atravessaram o rio bem ce­
çoarás o príncipe do teu povo". do na manhã seguinte e prosseguiram até
A atitude de Davi foi de submissão, pois Maanaim (2 Sm 17:22, 24), local onde Jacó
aceitou os insultos de Simei como prove­ havia feitos os preparativos para se encon­
nientes das mãos de Deus. Davi já havia trar com o irmão, Esaú, e onde havia lutado
anunciado que aceitaria qualquer coisa que com Deus (Gn 32). Talvez Davi tenha se lem­
o Senhor lhe enviasse (15:26) e, nesse mo­ brado desse acontecimento e recobrado a
mento, provou sua declaração. Ao refletir coragem ao pensar no exército de anjos que
sobre o fato de ser um adúltero e homicida Deus enviou para proteger Jacó.
que merecia morrer e, no entanto, que Deus Em que esse sofrimento todo beneficiou
permitiu viver, por que Davi se queixaria de Davi? Tornou-o mais semelhante a lesus Cris­
pedras e de terra? E se Absalão, o próprio to! Foi rejeitado por seu próprio povo e traí­
filho de Davi, estava determinado a matá-lo, do por um amigo próximo. Abriu mão de
por que um desconhecido deveria ser casti­ tudo por amor ao povo e teria entregue até
gado por insultar o rei e atirar coisas nele? mesmo a vida para salvar seu filho rebelde,
Davi acreditava que um Deus justo faria o que merecia morrer. Assim como Jesus, Davi
balanço geral e daria a gente como Absalão atravessou o Cedrom e subiu o monte das
e Simei o que lhes era devido. Talvez Davi Oliveiras. Foi acusado falsamente e tratado
tivesse em mente as palavras de Deute- de modo vergonhoso e, no entanto, sujei­
ronômio 32:35: "A mim me pertence a vin­ tou-se à vontade soberana de Deus. "Ele,
gança, a retribuição" (ver Rm 14:17-21). quando ultrajado, não revidava com ultraje;
Quando Davi recuperou o trono, perdoou quando maltratado, não fazia ameaças, mas
Simei (2 Sm 19:16-23) que, posteriormente, entregava-se àquele que julga retamente"
foi confinado por Salomão em Jerusalém, (1 Pe 2:23).
onde poderia ser mantido sob vigilância. Davi perdera o trono, mas o Deus Jeová
Quando, num gesto de arrogância, Simei ainda era soberano e cumpriria as promes­
ultrapassou seus limites, foi preso e executa­ sas feitas a seu servo. Fiel a sua aliança, o
do (1 Rs 2:36-46). Senhor lembrou-se de Davi e de todas as
Davi e seu grupo foram cerca de trinta e provações pelas quais passou (SI 132:1) e
dois quilômetros para além de Baurim, a fim se lembra de nós nos dias de hoje.

1. O termo "demagogo" vem de duas palavras gregas: demos ("povo") e agogos ("guiar"). Um verdadeiro líder usa sua

autoridade para ajudar o povo, enquanto um demagogo usa o povo para obter autoridade. Os demagogos fingem se
preocupar com as necessidades do povo, mas sua única preocupação é alcançar o poder e desfrutar os ganhos de sua

desonestidade.

2. Os textos hebraicos mostram variações de "quatro" a "quarenta". Se o número certo é quarenta, então não sabemos quando

a contagem foi iniciada. Quarenta anos a partir de que acontecimento? Alguns cronologistas datam a rebelião de Absalão mais

ou menos entre 1027 a.C. e 1023 a.C , o que seria aproximadamente quarenta anos depois que Davi foi ungido por Samuel,
mas por que escolher esse acontecimento como ponto de partida? Parece razoável aceitar "quatro" como sendo o número
correto e datar esse período a partir da reconciliação de Absalão com o pai (14:33).

3. A maioria dos estudiosos identifica os Salmos 3, 4, 41, 55, 61 - 63 e 143 como "salmos do exílio", e alguns acrescentam a

estes os Salmos 25, 28, 58 e 109. O s Salmos 41 e 55 indicam que Davi não estava bem de saúde. Ver, ainda, Salmos 61:6, 7.

Se, de fato, Davi estava enfermo, não era capaz de atender às necessidades do povo e nem de ouvir seus problemas, e

Absalão aproveitou-se da situação.


4. Certa vez, Davi mentiu sobre seu comparecimento a uma festa a fim de enganar o rei Saul (1 Sm 20:6) - nossos pecados
nos encontram.

5. Davi enfrentou prova semelhante quando era comandante da guarda pessoal de Aquis, rei dos filisteus (1 Sm 29).
2 SA M U E L 15:1 - 16:14 349

6. A declaração de Davi: "Eis-me aqui" faz lembrar Abraão (Gn 22:1,11), Jacó (Gn 31:11; 46:2), Moisés (Êx 3:4), Samuel (1 Sm

3:4, 16) e Isaías (Is 6:8), homens que se entregaram ao Senhor.

7. To zer, A. W . God Tells the Man Who Cares. Christian Publications, 1970, p. 9.

8. Foi em Baurim que Mica, esposa de Davi, ao ser devolvida a ele, despediu-se de seu segundo marido, que chorou amargamente

(3:13-16). Dessa vez, é Davi quem está chorando.


1. S eu trono foi usurpado
8_ (2 Sm 16:15-23)
Esse parágrafo retoma a narrativa interrom­
pida em 2 Samuel 15:37 para nos informar
A V itó ria D o c e e da fuga de Davi e de seus encontros com
Ziba e Simei. Graças ao fato de Davi ter
A m a r g a de D avi
partido tão depressa, a rebelião de Absalão
2 Sam uel 16:15 - 18:33 foi um golpe pacífico, e o príncipe tomou
Jerusalém sem sofrer qualquer oposição -
exatamente o que Davi queria (15:14). Ao
contrário de Absalão, Davi era um homem
com o coração de um pastor que pensava
oi em seu discurso diante do Congres­
F
primeiro no bem de seu povo (24:17; SI
so dos Estados Unidos, no dia 19 de 78:70-72).
abril de 1951, que o general Douglas Mac- Husai conquistou a confiança de Absa­
Arthur fez a famosa declaração: "Na guer­ lão (vv. 16-19). Assim que teve oportunida­
ra, nada substitui a vitória". Porém, vários de, Husai entrou na sala de audiência do
especialistas militares garantem que as for­ rei e se apresentou oficialmente ao novo
ças armadas só podem vencer batalhas e monarca. Não queria que Absalão pensas­
que, a longo prazo, ninguém vence, de se que ele era um espia, apesar de ser exa­
fato, uma guerra. Isso porque o preço é tamente essa a sua função. Era o homem
alto demais. Para cada palavra do livro que Deus havia colocado em Jerusalém
Mein Kampf [Minha Luta] de Hitler, morre­ para frustrar o conselho de Aitofel. Sem
ram cento e vinte e cinco pessoas na Se­ dúvida, Absalão ficou surpreso em ver o
gunda Guerra Mundial. Considerando-se conselheiro de seu pai em Jerusalém, mas
as armas nucleares modernas, ninguém sua saudação sarcástica não perturbou
sairia vitorioso de uma Terceira Guerra Husai, que se dirigiu a Absalão de modo
Mundial. respeitoso. É preciso ler as palavras de Husai
Os exércitos de Davi e de Absalão esta­ ao novo rei com muita atenção, a fim de
vam prestes a entrar em combate numa não interpretá-las equivocadamente.
guerra civil que nem pai nem filho pode­ Husai ofereceu a saudação habitual ex­
riam "vencer", mas na qual ambos os lados pressando respeito: "Viva o rei, viva o rei!",
poderiam perder. A vitória de Davi signi­ mas não disse "rei Absalão". Em seu cora­
ficaria a morte do filho, Absalão, e do ami­ ção, estava se referindo a Davi, mas o novo
go, Aitofel. A vitória de Absalão poderia rei não entendeu esse sentido das palavras
significar a morte para Davi e de outros de Husai. Em seu orgulho, Absalão pensou
membros de sua família. Hoje em dia, diría­ que Husai o estava chamando de rei. Ob­
mos que é uma situação sem saída; na An­ serve, mais uma vez, que Husai não cita o
tiguidade, a expressão usada seria "uma nome de Absalão nem diz que servirá ao
vitória pírrica".1 novo rei. No versículo 18, Husai está falan­
Absalão estava confiando em seu char­ do de Davi, pois o Senhor jamais havia es­
me, em sua popularidade, em seu exército colhido Absalão para ser rei. Além disso,
e na sabedoria de Aitofel, porém Davi con­ Husai não prometeu servir Absalão, mas sim
fiava no Senhor. "Ouve, ó Deus, a minha servir "diante de seu filho [do filho de Davi]".
súplica; atende à minha oração. Desde os Em outras palavras, Husai estaria na pre­
confins da terra clamo por ti, no abatimen­ sença de Absalão, mas estaria servindo ao
to do meu coração. Leva-me para a rocha Senhor e a Davi. A soberba de Absalão le­
que é alta demais para mim" (SI 61:1, 2). vou-o a crer que as palavras de Husai apli­
O que aconteceu com Davi durante es­ cavam-se a ele e aceitou Husai como mais
ses tempos de provação? um de seus conselheiros. Essa decisão veio
2 S A M U E L 16:15 - 18:33 351

do Senhor e preparou o caminho para a der­ tivesse colocado em prática o plano de


rota de Absalão. Aitofel, Davi teria sido morto, e os proble­
Absalão seguiu o conselho de Aitofel mas de Absalão estariam resolvidos. Porém,
(vv. 20-23). Absalão tinha duas tarefas im­ Davi havia orado pedindo que Deus trans­
portantes a cumprir antes de poder gover­ formasse os conselhos de Aitofel em loucura
nar sobre o reino de Israel. Em primeiro lugar, (15:31), e Deus usou Husai para fazer exa­
deveria tomar o trono do pai e divulgar uma tamente isso. Observe que Aitofel colocou-
declaração pública de que era, oficialmen­ se em primeiro plano usando expressões
te, o novo rei. Ao contrário de Davi, seu pai, como: "Deixa-me escolher [...] e me dispo­
que buscava o Senhor por meio do Urim e rei [...] e perseguirei" e assim por diante. Seu
do Tumim ou de um profeta, Absalão pro­ desejo era ser general do exército, pois que­
curou a experiência e a sabedoria humanas ria supervisionar pessoalmente o assassina­
- e, do ponto de vista humano, Aitofel era to de seu inimigo, o rei Davi. Seu plano era
um dos melhores conselheiros. Porém, este eficiente: usar um pequeno exército que
também não buscava nem desejava fazer a pudesse deslocar-se rapidamente, atacar de
vontade de Deus. Seu maior objetivo era vin­ surpresa durante a noite e ter como objeti­
gar-se de Davi pelo pecado que este havia vo central a morte de Davi. Na seqüência,
cometido contra a neta, Bate-Seba, e o ma­ Aitofel traria de volta os seguidores de Davi,
rido dela, Urias, o heteu. e estes deveriam jurar lealdade ao novo rei.
Era costume um novo rei herdar as espo­ Seria uma vitória rápida, sem muito derra­
sas e o harém do monarca anterior, de modo mamento de sangue.
que, ao seguir o conselho de Aitofel, Absalão Husai não estava na sala quando Aitofel
estava declarando que, a partir de então, ele descreveu seu plano, de modo que Absalão
era o rei de Israel (ver 3:7; 12:8 e 1 Rs 2:22). chamou-o e lhe contou o que seu conse­
Ao tomar as concubinas do pai, Absalão tor­ lheiro predileto havia dito. Dirigido pelo
nou-se inteiramente abominável ao pai e Senhor, Husai usou de uma abordagem in­
destruiu qualquer ponte que poderia levar a teiramente distinta e se concentrou no ego
uma reconciliação. O novo rei estava dizen­ do jovem rei. A resposta de Husai não é
do a seus seguidores que não havia mais uma série de declarações em primeira pes­
volta e que a revolução iria prosseguir. Po­ soa, girando em torno dele mesmo, mas
rém, mesmo sem perceber, estava fazendo sim uma série de afirmações sobre o novo
mais do que isso: cumpria a profecia de Natã, rei, o que, sem dúvida, estimulou a imagi­
segundo a qual as esposas de Davi seriam nação e o egotismo de Absalão. Husai usou
violentadas em público (12:11,12). Do ter­ suas palavras para montar a armadilha na
raço de sua casa, Davi havia cobiçado Ba- qual Absalão caiu.
te-Seba (11:2-4) e, nesse mesmo local, as Em primeiro lugar, Husai explicou por
esposas de Davi seriam violentadas. que o conselho de Aitofel não era sábio "des­
ta vez", ainda que tivesse sido em outras
2. S ua oração foi respondida ocasiões (vv. 7-10). Quanto à idéia de con­
(2 Sm 17:1-28) centrar-se exclusivamente no assassinato de
Depois de alcançar seu primeiro objetivo e Davi, Absalão sabia que o pai era um gran­
de assumir a posição de autoridade real, de tático e um guerreiro valente, cercado
Absalão precisava certificar-se de que Davi e de soldados experientes que não temiam
seus seguidores não voltariam para recuperar coisa alguma. Estavam todos enfurecidos,
o reino. A solução era simples, porém drásti­ pois haviam sido expulsos de seus lares. Eram
ca: era necessário encontrar o pai e matá-lo. como uma ursa roubada de seus filhotes.
Para resolver essa questão, Absalão buscou (Husai faz uso magistral das metáforas!) Além
a orientação de seus dois conselheiros. disso, Davi era astuto demais para ficar com
O conselho de Husai prevaleceu (vv. 1­ seus soldados e buscaria um esconderijo
14)* Do ponto de vista humano, se Absalão seguro, onde não pudesse ser preso. Seus
352 2 SA M U EL 16:15 - 18:33

homens estariam montando guarda e mata­ O discurso prático de Aitofel foi esque­
riam qualquer um que se aproximasse. O cido, à medida que o plano grandioso de
exército de Davi era experiente demais para Husai, entremeado de imagens vívidas, foi
ser pego despreparado num ataque surpre­ cativando o coração e a mente de Absalão
sa. Uma investida desse tipo, com um exér­ e de seus líderes. Deus havia respondido à
cito pequeno, não funcionaria. Se o exército oração de Davi e confundido o conselho
invasor fosse rechaçado, a notícia se espa­ de Aitofel. Absalão cavalgaria adiante de seu
lharia, e o povo ficaria sabendo que as forças exército determinado a vencer. Porém, o que
de Absalão haviam sido derrotadas; assim, estaria a sua espera seria uma derrota humi­
todos os seus homens fugiriam. Absalão lhante. "O S enhor frustra os desígnios das
começaria o reinado com um fiasco militar. nações e anula os intentos dos povos. O
Então, Husai apresentou um plano que conselho do S enhor dura para sempre; os
superava todas essas dificuldades. Em primei­ desígnios do seu coração, por todas as ge­
ro lugar, o novo rei deveria comandar pes­ rações" (SI 33:10, 11).
soalmente o exército, o que conseguisse A rede de espionagem de Davi funcio­
reunir "desde Dã até Berseba". Essa suges­ nou (w. 15-22). Davi e seu grupo estavam
tão agradou ao ego vaidoso de Absalão e, acampados nos vaus do Jordão, a pouco
em sua imaginação, podia ver-se comandan­ mais de trinta quilômetros de Jerusalém, e
do o exército numa grande vitória. Claro que os dois corredores estavam de prontidão em
não era um militar experiente, mas que dife­ En-Rogel, no vale do Cedrom, a menos de
rença fazia? Que excelente maneira de co­ dois quilômetros de Jerusalém. Husai trans­
meçar seu reinado! Absalão não se deteve mitiu a mensagem aos dois sacerdotes e lhes
para pensar que levaria tempo para reunir pediu que dissessem a Davi para atravessar
tropas "de Dã até Berseba", uma demora o Jordão o mais rápido possível. O rei não
que Davi poderia usar para atravessar o rio devia se demorar, pois se Absalão mudasse
Jordão e "sumir do mapa". E evidente que de idéia e adotasse o plano de Aitofel, poria
Husai estava interessado em ganhar tempo tudo a perder. Zadoque e Abiatar pediram a
para que Davi fizesse exatamente isso. uma serva, cujo nome não é mencionado,
Com um exército tão grande sob seu que passasse a mensagem adiante a Jônatas
comando, Absalão não teria de depender e Aimaás. Os dois correram cerca de um
de um ataque surpresa, mas poderia "cair quilômetro e meio para o sul até a casa de
sobre" os homens de Davi, cobrindo uma um colaborador em Baurim. Porém, um ra­
área ampla, como o orvalho da manhã que paz os viu sair de lá e reconheceu os filhos
cai sobre a terra. Para onde quer que os dos sacerdotes. Ansioso por impressionar o
homens de Davi fugissem, iriam se deparar novo rei, contou a Absalão o que estava
com soldados de Absalão e não teriam como acontecendo, e os guardas de Absalão fo­
escapar. Em vez de poupar os homens de ram atrás dos dois jovens.
Davi, o exército de Absalão os exterminaria Aqui, o relato se parece com a história
para que não causassem problemas no futu­ dos dois espias registrada em Josué 2. Raabe
ro. Ao perceber que Absalão talvez se preo­ escondeu os dois espias sob feixes de linho
cupasse com a questão do tempo, Husai no terraço de sua casa. A mulher em Baurim
respondeu a suas objeções no versículo 13. escondeu os dois corredores num poço,
Se, durante a demora causada pelo proces­ cobriu a abertura com um pano e espalhou
so de reunir seus soldados, Absalão ficasse sobre ele cereais, como se estivesse secan­
sabendo que Davi havia levado seus homens do os grãos ao sol. Uma vez que não tinha
para uma cidade murada, sua tarefa seria obrigação alguma de colaborar com o pla­
ainda mais fácil. A nação toda obedeceria no perverso de Absalão, a mulher mandou
ao novo rei e trabalharia em conjunto para os guardas para a direção errada, e os dois
derrubar a cidade, pedra por pedra! Uma jovens foram salvos. Chegaram ao acampa­
demonstração e tanto de poder! mento de Davi, transmitiram a mensagem
2 S A M U EL 16:15 - 18:33 353

ao rei e insistiram para que atravessasse logo o exército de anjos que Deus havia enviado
o Jordão, o que Davi fez sem demora. Os para protegê-lo (Cn 32), mas Davi não teve
guardas voltaram para Jerusalém de mãos visão alguma. No entanto, Deus muitas ve­
vazias, mas Absalão não considerou esse zes usa "anjos" humanos para ajudar seus
insucesso um problema sério. Que grande servos e, dessa vez, chamavam-se Sobi, Ma-
erro! quir e Barzilai. Abasteceram o rei e seu grupo
Aitofel cometeu suicídio (v. 23). O que com provisões e providenciaram para que
levou Aitofel a tirar a própria vida? Ficou fossem bem cuidados. Deus preparou uma
magoado por Absalão rejeitar seu conselho? mesa para Davi enquanto seus inimigos se
Não. O que o motivou foi saber que o con­ aproximavam (SI 23:5).
selho de Husai causaria a derrota de Absalão O exército de Absalão estava sob o co­
e que, como conselheiro, ele estava a servi­ mando de Amasa, sobrinho de Davi e pri­
ço do rei errado. Uma vez que havia traído mo de Joabe (v. 25). Evidentemente, Absalão
o rei Davi, Aitofel seria executado ou bani­ era o comandante supremo (17:11). Que
do para sempre do reino. Em vez de humi­ coisa triste ver um filho lutando contra o pai,
lhar a si mesmo e sua família com essa pena, tio contra sobrinho, primo contra primo e ci­
colocou seus negócios em ordem e depois dadão contra cidadão! Uma guerra já é ter­
se enforcou. Seu suicídio nos lembra do que rível em si mesma, mas uma guerra civil é
Judas fez (Mt 27:5) e mostra o que Davi ha­ ainda pior. Absalão e seu exército atravessa­
via escrito em dois de seus salmos do deser­ ram o Jordão com a intenção de encontrar
to (SI 41:9; 55:12-15; ver Jo 13:18). Em Atos o exército de Davi em algum lugar perto do
1:15-22, Pedro citou outros dois salmos que bosque de Efraim, cerca de cinco quilôme­
se referiam a Judas (SI 69:25 e 109:8). tros a noroeste de Maanaim. É provável que
Aitofel havia sido um servo fiel do rei e o bosque de Efraim tenha recebido esse
de seu reino até que decidiu, em seu cora­ nome de efraimitas que atravessaram o rio e
ção, vingar-se de Davi por aquilo que o rei se assentaram na margem ocidental na re­
havia feito a Bate-Seba e a Urias. Essa sede gião de Cileade.
de vingança o tornou tão obcecado que
Aitofel deixou de ser um servo do Senhor e 3. Seu f il h o f o i m o r t o (18:1-18)
começou a servir aos próprios desejos pe­ Sabendo que o inimigo estava para chegar,
caminosos. C onhecia as am bições de Davi contou seus soldados, dividiu-os em três
Absalão, mas ocultou-as de Davi e colabo­ companhias e colocou Joabe, Abisai e Itai
rou com o príncipe herdeiro em seu golpe no comando. Qualquer que fosse a aborda­
de Estado. Porém, apesar de toda sua sabe­ gem de Absalão e de Amasa, os homens de
doria, Aitofel estava apoiando o rei errado, Davi poderiam manobrar e ajudar uns aos
e o Senhor teve de julgá-lo. Tanto Aitofel outros. Davi ofereceu-se para acompanhar
quanto Absalão acabaram dependurados o exército, mas o povo lhe disse para ficar
de uma árvore. Como é triste quando uma num lugar seguro na cidade murada (ver
pessoa leva uma vida exemplar e produtiva 2 Sm 21:15-17, um episódio ocorrido bem
e, depois, fracassa vergonhosamente no fi­ antes da rebelião de Absalão). "Tu vales por
nal. Existem insensatos de todas as idades, e dez mil de nós", argumentou o povo. Sabia
Aitofel foi um deles. Todos nós precisamos que os soldados de Absalão iriam atrás do
orar para o Senhor nos ajudar a terminar rei e que não se preocupariam com os sol­
bem. dados. Se Davi ficasse na cidade, poderia
Davi recebeu o cuidado de amigos (w. enviar reforços caso fossem necessários.
24-29). Davi e seu grupo vadearam o rio e Davi aceitou a decisão deles; de qualquer
chegaram a Maanaim, antiga capital das dez modo, não queria lutar contra o filho.
tribos durante o breve reinado de Isbosete, Mas também não queria que seu exérci­
filho de Saul (2:8). Foi em Maanaim ("dois to lutasse contra seu filho! Absalão havia fi­
acampamentos, dois exércitos") que Jacó viu cado à porta de Jerusalém e atacado o pai
354 2 SA M U E L 16:15 - 18:33

(15:1-6), e naquele momento Davi estava à o rei", mas Joabe comprou essa idéia! O
porta da cidade instruindo seus homens a versículo 11 sugere que Joabe havia es­
tratar Absalão "com brandura". Por certo, palhado discretamente a notícia de que re­
não era esse o tratamento que Absalão ha­ compensaria o soldado que matasse o filho
via reservado para o pai! Havia assassinado rebelde. O soldado que poderia ter recebi­
Amnom, expulsado Davi de Jerusalém, to­ do a recompensa recusou-se a matar Absalão
mado o trono, violentado as concubinas de por dois motivos: não queria desobedecer
Davi e, agora, estava determinado a matar o ao rei e não estava certo de que Joabe o
rei. Não é o tipo de homem que alguém defenderia se o rei descobrisse. Afinal, Davi
gostaria de proteger, mas se Davi tinha um havia matado o homem que alegou ter dado
defeito, esse era mimar os filhos (1 Rs 1:5, 6; cabo de Saul (1:1-16) bem como os dois
ver 1 Sm 3:13). Porém, antes de criticar Davi, homens que disseram ter matado Isbosete,
devemos nos lembrar de que ele foi um ho­ filho de Saul (4:1 ss). Os soldados sabiam que
mem segundo o coração de Deus. Sejamos Joabe não queria ser pego mandando matar
gratos porque nosso Pai no céu não nos tra­ o filho do rei, quando Davi havia ordenado
ta de acordo com nossos pecados (SI 103:1­ justamente o contrário. A morte de Absalão
14). Em sua graça, ele nos dá aquilo que marcou o fim da guerra e da rebelião, de
não merecemos e, em sua misericórdia, modo que Joabe retirou seus soldados.
deixa de nos dar aquilo que merecermos. Tanto Absalão quanto Aitofel morreram
Jesus não merecia morrer, pois não tinha dependurados em árvores e, para um israe­
pecado algum e, no entanto, tomou sobre lita, pendurar um corpo numa árvore pro­
si o castigo que nos era devido. Que grande vava que o morto era amaldiçoado por Deus
Salvador! (Dt 21:22, 23; Gl 3:13). Ao consider os cri­
A batalha espalhou-se por toda a região, mes que esses dois homens cometeram, não
e muitos soldados morreram por causa do é de se admirar que tenham sido amaldiçoa­
bosque fechado. Não sabemos quantas bai­ dos. No entanto, Deus, em sua graça, per­
xas houve de cada lado, mas é bem prová­ doou Davi do mesmo crime e permitiu que
vel que a maioria dos dez mil homens que vivesse. Por algum tempo, Absalão foi o
morreram fosse do exército de Absalão. Tan­ homem mais benquisto do reino, mas termi­
to a espada quanto o bosque devoraram suas nou sepultado numa cova, com o corpo
vítimas. (Trata-se de uma metáfora usada coberto de pedras. Ao que parece, seus três
anteriormente em 1:22 e 2:26.) Porém, Deus filhos haviam morrido (14:27), não restando
não precisava de uma espada para deter o ninguém em sua família para dar continui­
rebelde Absalão; simplesmente usou o ga­ dade a seu nome, fato que havia levado
lho de uma árvore! O texto não registra a Absalão a erguer uma coluna para manter
relação desse acidente com a cabeleira pe­ vivo seu nome (v. 18). Até mesmo essa colu­
sada de Absalão, mas é uma ironia algo que na não existe mais, e o que hoje é chamado
lhe dava tanto orgulho (14:25, 26) acabar de "Túmulo de Absalão", no vale do Cedrom,
contribuindo para sua morte. Por certo, a na realidade é do tempo de Herodes. "A
soberba conduz ao julgamento. Outro exem­ memória do justo é abençoada, mas o nome
plo disso é Sansão (Jz 16). "Ele apanha os dos perversos cai em podridão" (Pv 10:7).
sábios na sua própria astúcia; e o conselho
dos que tramam se precipita" (Jó 5:13). 4. E le se entristeceu profundamente
Os soldados que encontraram Absalão (2 Sm 18:19-33)
dependurado da árvore não ousaram tocá- A guerra e a rebelião haviam chegado ao fim.
lo, mas Joabe sabia muito bem o que queria Joabe só precisava avisar o rei e levá-lo de
fazer. O general que havia promovido a re­ volta em segurança a Jerusalém. Porém, foi
conciliação entre Davi e Absalão ignorou as uma vitória doce e, ao mesmo tempo, amar­
ordens de Davi e matou o rapaz.3 Absalão ga para Davi. Quando o inimigo é seu filho,
rejeitou o plano de Aitofel de "matar somente é impossível haver triunfo ou celebração.
2 S A M U E L 16:15 - 18:33 355

Aimaás era um corredor conhecido (v. 27) que o caráter do mensageiro não tem rela­
e se ofereceu para levar a notícia ao rei em ção alguma com a mensagem, mas Davi
Maanaim, cerca de cinco quilômetros de estava tentando se apegar até ao último fio
onde se encontravam. Por maior que fosse de esperança.
seu entusiasmo, o rapaz não se deu conta Aimaás estava tão ansioso para dar a
do que estava pedindo, pois Davi era co­ notícia que, antes de chegar à porta, gritou,
nhecido por descontar sua raiva e tristeza "Paz!".5 Então aproximou-se do rei, curvou-
nos mensageiros (1:4-16; 4:8-12)! Apesar de se diante dele e lhe disse que Joabe havia
a palavra "notícia" usada por Aimaás poder vencido a batalha. Quando Davi lhe pergun­
se referir a qualquer tipo de notícia, normal­ tou sobre Absalão, o jovem mensageiro não
mente era empregada no caso de "boas estava preparado para lhe dar as más notí­
novas", e naquele dia não havia boa nova cias, de modo que apresentou uma descul­
alguma para transmitir. Joabe conhecia o rei pa que, sem dúvida alguma, não passava de
muito bem e sabia que o relato da morte de uma mentira. Em sua tentativa medíocre de
Absalão deveria ser transmitido com grande entrar para a história como o homem que
habilidade e compaixão. A fim de garantir a havia trazido notícias do bosque de Efraim
segurança de Aimaás, Joabe escolheu uma para Maanaim, Aimaás acabou não tendo o
pessoa chamada apenas de "o etíope", pos­ que dizer sobre aquilo que Davi desejava
sivelmente um de seus servos. Era melhor saber. Sua mensagem estava correta, porém
que um servo estrangeiro fosse morto do incompleta. Acabou ficando de lado como
que o filho de um sacerdote israelita. Porém, expectador, enquanto o etíope transmita ao
depois que o etíope partiu, Aimaás conti­ rei a mensagem completa da forma correta.
nuou a perturbar Joabe, insistindo que lhe Ao longo de meu ministério pastoral, fui,
desse permissão para correr. Não havia nada em certas ocasiões, portador de más notí­
de bom nem de ruim na notícia, então por cias. Lembro-me de orar, de meditar e de
que correr? Cansado das súplicas do rapaz, me colocar no lugar das pessoas que esta­
Joabe lhe deu permissão para ir. vam esperando notícias, tentando o tempo
Aimaás lembra aquelas pessoas incon­ todo encontrar palavras que causassem o
venientes que querem ser importantes, mas mínimo de dor. Não era fácil. Alguém defi­
que não têm muito a dizer. Tomou o cami­ niu "tato" como "a capacidade de dizer o
nho mais longo e fácil até Maanaim, passan­ que é preciso sem fazer um inimigo". O
do pelo vale, enquanto o etíope foi pelo etíope teve tato.
caminho mais curto e direto que atravessa­ De acordo com o texto, o rei ficou "pro­
va um terreno acidentado. Aimaás era um fundamente comovido" ao compreender
jovem sem uma verdadeira mensagem e que Absalão havia sido morto. Sem dúvida,
sem a capacidade de transmiti-la da manei­ havia orado para que não acontecesse o
ra correta. Enquanto o etíope corria, medi­ pior, mas ainda assim o pior havia aconte­
tou sobre como iria dizer ao rei Davi que cido. Em certo sentido, Davi pronunciou a
seu filho estava morto. De que adiantaria própria sentença quando disse a Natã: "res­
correr bem quando não se sabe como trans­ tituirá quatro vezes" (12:6), pois, no final,
mitir a mensagem? foi assim que Davi pagou sua grande dívida.
A cena muda para Maanaim, onde Davi O bebê havia morrido, Tamar havia sido es­
se encontra assentado entre as portas ex­ tuprada, Amnom havia sido assassinado e
terna e interna da cidade, esperando a sen­ Absalão estava morto. Davi sentiu, mais uma
tinela lhe dizer que um mensageiro estava a vez, a dor do pecado perdoado.
caminho, vindo do campo de batalha.4 Ape­ As lágrimas de Davi revelam o coração
sar de não estar preparado para falar com o aflito de um pai amoroso. Ao falar sobre a
rei, Aimaás esforçou-se ao máximo e passou tristeza de Davi, Charles Spurgeon disse:
o etíope. Davi comentou: "Este homem é "Seria sábio nos compadecermos o máximo
de bem e trará boas-novas" (v. 27). É evidente possível em vez de julgarmos uma situação
356 2 SA M U EL 16:15 - 18:33

pela qual nunca passamos".6 Davi chorou e as lágrimas fazem parte da cura. O proble­
quando soube da morte de Saul e de Jô- ma foi que Davi custou a superar essa tris­
natas (1:11,12), do assassinato de Abner teza e não se permitiu ser consolado. Sua
(3:32) e do assassinato de Amnom (13:33­ reação foi anormal. Deixou de cuidar de si
36); então, por que não deveria chorar pela mesmo e das responsabilidades do reino e
morte de seu filho amado, Absalão? Vemos, teve de ser duramente repreendido por
porém, o coração de Deus revelado no Joabe antes de tomar as devidas providên­
coração de Davi, pois Cristo morreu por cias para voltar a Jerusalém e salvar o reino.
nós quando éramos pecadores e vivíamos Seus problemas ainda não haviam termina­
como inimigos de Deus (Rm 5:7-10). Davi do, mas o Senhor lhe daria o poder de que
teria morrido por Absalão, mas Jesus mor­ precisava para ser o governante que Deus
reu por nós! desejava.
O problema de Davi não foi o fato de se O Senhor pode curar um coração parti­
entristecer com a perda do filho, pois a tris­ do se lhe entregarmos todos os pedaços e
teza é uma reação normal do ser humano, lhe obedecermos pela fé.

1. Em 279 a.C, o exército de Pirro, rei de Épiro, derrotou os romanos em Ásculo, pagando por isso um preço tão alto que o rei

disse: "M ais uma vitória como essas e estamos perdidos".

2. Para um estudo detalhado dos discursos de Aitofel e de Husai e do motivo pelo qual Deus usou o conselho de Husai, ver os

capítulos 1 a 4 de minha obra Preaching and Teachingwith Imagination [Pregando e Ensinado com Imaginação] (Baker Books).

3. O termo traduzido por "dardos" em 18:14 pode significar vara, bordão ou mesmo cetro. É provável que fossem azagaias com

uma das pontas afiada. Foi com eles que joabe traspassou Absalão, e os dez homens ao redor terminaram o serviço.

4. Essa cena nos lembra do sacerdote Eli à porta, esperando notícias sobre a arca da aliança (1 Sm 4:12ss).

5. Trata-se do conhecido termo hebraico shalom, que entre outras coisas significa "paz, prosperidade e bem-estar" (w . 29, 32).

6. Spurg eo n , Charles. The Metropolitan Tabernacle Pulpit, vol. 24, p. 505.


9 dia estava tão obcecado com a morte de
Absalão que não era capaz de pensar em
qualquer outra coisa. Ao isolar-se de seus
homens, o rei transformou uma vitória mili­
O R e t o r n o d e D avi tar numa derrota emocional. Davi não era
apenas um grande guerreiro, mas também
e d o s P ro blem a s
poeta e músico profundamente emotivo,
um homem que poderia ir do mais profundo
2 S amuel 19:1-40
desespero à mais elevada glória enquanto
escrevia um único salmo. Davi havia passa­
do por um período difícil depois da morte
de Amnom (13:37-39), e a morte de Absalão,
tema que se repete neste capítulo é seu filho predileto, o havia deixado inconsolá­

O "trazer de volta o rei" (vv. 10, 11, 12, vel. A atitude do rei causou perplexidade nos
15, 41). Davi estava do outro lado do Jordão,seguidores, que consideravam Absalão um
na cidade de Maanaim, mas seu lugar era mentiroso, assassino, traidor e rebelde.
em Jerusalém. Todas as tribos, inclusive Judá, Sem dúvida, é de se esperar que um
a própria tribo de Davi, haviam participado pai se entristeça com a morte trágica de
em maior ou menor grau da rebelião de um filho, deixando de lado os defeitos e
Absalão, e era chegada a hora de levarem pecados dele. Porém, os líderes devem
seu rei de volta a Jerusalém. Anos de intriga continuar liderando, mesmo quando estão
e de conflitos entre as tribos haviam trans­ aflitos, pois esse é um dos preços que de­
formado Israel numa nação profundamente vem pagar por sua posição. No dia 10 de
dividida, e havia uma necessidade premen­ outubro de 1950, Sir Winston Churchill foi
te de uma demonstração firme de união e apresentado na Universidade de Copenha­
de lealdade. Este capítulo descreve cinco gue como "o arquiteto da vitória" na Se­
passos que Davi tomou a fim de promover a gunda Guerra Mundial, ao que Churchill
cura de Israel. respondeu: "Fui apenas um servo de meu
país e, se em algum momento tivesse dei­
1. D avi Umitou sua perspectiva xado de expressar sua determinação ina­
(2 Sm 19:1-8) balável de vencer, deveria, justificadamente,
O pastor escocês Andrew Bonar (1810-1892) ser colocado de lado". Davi, o pai, se es­
costumava dizer: "Permaneçamos tão vigi­ queceu de que também era Davi, o rei, que
lantes depois da vitória quanto antes da ba­ ainda possuía a coroa, pois soldados valen­
talha". É possível vencer uma batalha, mas tes haviam colocado o bem de Israel à frente
perder a vitória, e foi isso o que aconteceu de seus interesses pessoais.
com Davi depois que Joabe derrotou Absa­ O discurso breve, porém penetrante, de
lão e seu exército. O que deveria ter sido Joabe puxou o rei de volta à realidade, e Davi
um dia de comemoração para o exército de assumiu seu posto na porta da cidade - onde
Davi em Maanaim, tornou-se uma ocasião seus homens foram se encontrar com ele e
confusa de perturbação e de vergonha, en­ receberam dele o reconhecimento por sua
quanto o povo' se esgueirava de volta para bravura ao lhe servir. É bem provável que
a cidade como se tivesse sido humilhado por Davi ainda não soubesse que Joabe havia
uma derrota. Haviam arriscado a vida pelo cuidado da morte e do sepultamento de
rei e pela nação e estavam sendo tratados Absalão; de outro modo, sua reação pode­
como criminosos! ria ter sido diferente. Davi não demorou a
Era totalmente atípico de Davi mostrar- descobrir o que Joabe e seus homens ha­
se insensível para com os sacrifícios que seus viam feito, fato que contribuiu para que o
homens faziam quando estavam a seu servi­ rei nomeasse Amasa general de seu exército
ço (23:13-17; 1 Sm 30:21-30), mas naquele (2 Sm 19:13; e ver 1 Rs 2:5).
358 2 SA M U EL 19:1 - 40

A única coisa que faltou em todo o epi­ dessa tribo haviam sido os primeiros a
sódio de Absalão foi Davi buscar ao Senhor proclamá-lo rei (2:1-4), de modo que foi ló­
na hora de tomar suas decisões. Quando gico ele buscar, antes de tudo, a ajuda dos
era mais jovem, Davi pedia que se usasse o anciãos de Judá. Usando seus dois sacerdo­
Urim e o Tumim ou que um profeta o acon­ tes como intermediários, Davi disse aos
selhasse, mas exceto pela oração em 2 Sa­ anciãos que os israelitas das outras tribos
muel 15:31, não encontramos Davi pedindo estavam falando em reinstituir o rei em Je­
orientação do Senhor. Por certo, os salmos rusalém, mas que ainda não ouvira coisa
do deserto registram suas preocupações e alguma da própria tribo. Absalão havia co­
orações, de modo que sabemos que ele não meçado sua rebelião em Hebrom, que fica­
estava dependendo somente de si mesmo e va em Judá, e é possível que os líderes de
de seus líderes. Porém, gostaríamos que Davi Judá tenham cooperado com ele, de modo
tivesse buscado a direção de Deus ao lidar que havia chegado a hora de mostrarem
com Absalão e com os problemas que ele lealdade a Davi, seu rei por direito. E bem
criou. Em se tratando de seus filhos, Davi provável que todos os líderes tribais que ha­
precisava de toda a ajuda possível, mas tal­ viam cometido a insensatez de seguir
vez não admitisse esse fato. Nunca é tarde Absalão estivessem imaginando o que Davi
demais para Deus realizar sua obra. faria com eles, uma vez que reassumisse o
trono.
2. D avi luta por união (2 Sm 19:9-15) Davi nomeou Amasa seu general (vv. 13,
Quando Davi finalmente voltou a Jerusalém, 14). As notícias da nomeação devem ter
sua chegada foi um sinal à nação de que a causado espanto e, depois, trazido grande
rebelião havia chegado ao fim e de que seu alívio aos líderes de Israel, pois significava
verdadeiro rei estava, mais uma vez, assen­ que Davi perdoou todos os oficiais que ha­
tado no trono. Porém, a caminho de Jerusa­ viam seguido Absalão. Amasa havia sido
lém, Davi tomou algumas decisões acerca general de Absalão, incumbido de procurar
do reino que transmitiram importantes men­ e de destruir Davi, mas o rei nomeou esse
sagens ao povo. A primeira foi que desejava sobrinho (e primo de Joabe) líder de seu
um reino constituído por um povo unido. grande exército.
Os antigos preconceitos e rancores precisa­ O que levou Davi a mudar de general?
vam ser enterrados, e a nação deveria unir- Dentre outras coisas, Davi descobriu que
se sob seu rei. Dentro das tribos, o povo Joabe havia executado Absalão, desobede­
havia se dividido em partidários de Absalão cendo, assim, às ordens expressas do rei.
e de Davi (vv. 9, 10), e a antiga divisão entre Apesar de merecer a morte, Absalão pode­
"as dez trinos (Israel) e Judá" ainda persistia ria ter sido preso e levado até Davi para que
(vv. 40-43). ele tratasse do rebelde posteriormente, e
Davi começou com Judá (vv. 11, 12). Joabe não possuía autoridade para desafiar
Os líderes das doze tribos deveriam ter se seu soberano e agir como juiz e algoz. Se
unido e enviado um convite formal para que Joabe fez isso com o filho do rei, o que não
Davi voltasse a reinar, mas as rixas e atritos seria capaz de fazer com o próprio rei? Isso
entre as tribos continuavam causando inquie­ levanta um segundo motivo para a troca de
tações. Davi sabia que a tendência era o generais: desde que Davi havia sido acon­
problema se agravar, caso esperasse muito selhado a parar de combater pessoalmente
tempo para recuperar a cidade e o trono, nas batalhas, Joabe vinha adquirindo cada
de modo que avançou sem hesitar. Afinal, vez mais autoridade (21:15-17).
era o rei ungido de Deus (v. 22) e não preci­ No Antigo Oriente Próximo, o rei era o
sava convocar um plebiscito antes de tornar comandante supremo do exército, e aque­
a empunhar seu cetro. le que assumia esse posto, qualquer que
Davi era de Judá, a tribo real (Gn 49:10); fosse o motivo, tornava-se um homem de
a capital do reino ficava em Judá, e os anciãos grande autoridade, tido na mais alta estima.
2 S A M U EL 19:1 - 40 359

Foi Joabe quem disse a Davi para ir a Rabá ao longo do restante do livro vemos Davi
no final da conquista; de outro modo, Joabe muito mais ativo no poder.
tomaria a cidade e lhe daria o próprio
nome! Na época da batalha no bosque em 3. D avi d eclara an istia (2 Sm 19:16-23)
Efraim, Joabe possuía pelo menos dez es­ Não eram apenas os homens de Judá que
cudeiros (18:15)! De acordo com seu his­ estavam no Jordão para dar as boas-vindas a
tórico, Joabe eliminava qualquer um que Davi; Simei, seu inimigo benjamita, também
questionasse sua autoridade. Ele e seu ir­ estava lá2 com mil homens de sua tribo (ver
mão, Abisai, haviam assassinado Abner, que 16:5-14). Ziba, o administrador das terras de
tinha sido general do rei Saul (3:27ss); e, Mefibosete (9:1-10), também fazia parte da
antes do fim desse relato, Joabe ainda mata multidão e, com seus quinze filhos e vinte
Amasa (20:4-13). servos, atravessou o rio para se encontrar
Apesar de guerreiros competentes, Joabe com o rei do lado oeste e escoltá-lo para a
e seus irmãos causaram um bocado de so­ outra margem. Alguém providenciou uma
frimento a Davi desde o começo de seu rei­ barca que fez várias viagens entre as mar­
nado (3:39; 16:10; 19:22). É evidente que gens do Jordão para transportar os membros
Joabe sabia do assassinato de Urias da casa real, de modo que não precisassem
(11:14ss), e talvez essa informação fosse mais vadear o rio. Quando Davi chegou à mar­
poderosa que sua espada. Quando matou gem ocidental, Simei prostrou-se e suplicou
Absalão, o general foi longe demais, e Davi misericórdia.
considerou o episódio uma oportunidade Sem dúvida, Simei merecia ser morto
para livrar-se de seu comandante e de sua pelo modo como havia tratado Davi (Êx
respectiva sede de poder. Amasa havia lide­ 22:28), e Abisai estava disposto a cuidar da
rado o exército rebelde, de modo que, ao execução, mas Davi deteve o sobrinho,
nomeá-lo para o cargo de Joabe, Davi uniu como havia feito anteriormente (16:9). A
o exército e declarou anistia a todos os sol­ primeira vez que Davi deteve Abisai foi
dados rebeldes, dando à nação a oportuni­ porque o Senhor havia dito a Simei que
dade de recomeçar. amaldiçoasse o rei, de modo que Davi esta­
Enquanto as outras tribos deliberavam va disposto a aceitar esses insultos das mãos
e se demoravam, os homens de Judá uniram- do Senhor. Mas, dessa vez, o motivo para
se sob o comando de Davi de todo o coração poupar a vida de Simei foi o fato de aquele
e lhe enviaram um convite oficial pedindo ser um dia de regozijo e não de vingança.
que voltasse para casa. Davi desceu até o Mais do que isso, porém, ao perdoar Simei,
Jordão, próximo a Gilgal, e os homens de o rei Davi estava oferecendo anistia a todos
Judá foram a seu encontro. Gilgal foi o pri­ os que haviam apoiado Absalão durante a
meiro lugar onde Israel acampou depois que rebelião.
Josué conduziu-os na travessia do Jordão e Davi cumpriu sua palavra e não ordenou
ficava cerca de trinta quilômetros de Jerusa­ que Simei fosse executado por seu crime,
lém, sendo considerada uma cidade impor­ mas quando Davi estava prestes a morrer,
tante para a história de Israel. Lá, todos os advertiu Salomão a vigiar Simei (1 Rs 2:8,
homens da nova geração entraram em 9). Salomão ordenou que ele ficasse sob
aliança com Jeová e foram circuncidados (Js prisão domiciliar em Jerusalém, mas Simei
3 -5) e, em Gilgal, Samuel renovou a alian­ desobedeceu ao rei e foi executado (1 Rs
ça quando Saul subiu ao trono (1 Sm 11:14, 2:36-46). Uma fraqueza de Simei era resistir
15). O texto não diz isso, mas é possível que à autoridade e desdenhar dos ministros elei­
Davi também tenha renovado a aliança em tos por Deus (Jd 8), e foi por isso que Davi
Gilgal e garantido ao povo que Jeová ainda advertiu Salomão sobre o benjamita. Simei
estava assentado no trono e sua Palavra con­ não deu valor à misericórdia de Davi nem à
tinuava em vigor. Talvez, para o rei, esse te­ graça de Salomão e acabou pagando caro
nha sido um tempo de reconsagração, pois por sua independência e arrogância.
360 2 SA M U EL 19:1 - 40

4. D avi corrige um erro estava dizendo: "Não há necessidade de fa­


(2 S m 19:24-30) lar sobre isso novamente. Você e Ziba que
Mefibosete, o príncipe aleijado, havia sido dividam as terras entre si". Mas será que Davi
"adotado" como parte da família de Davi e era o tipo de homem que voltava atrás de­
tinha permissão para comer à mesa do rei pois de dar sua palavra? Como uma decisão
(9:1 ss), uma dádiva de Davi em homenagem dessas seria recebida pelos milhares de
a Jônatas, pai de Mefibosete e amigo queri­ benjamitas que tinham ido ao Jordão receber
do de Davi. Quando Davi tornou-se rei de Davi? Afinal, fazer uma gentileza a Mefibosete
todo Israel, herdou tudo o que pertencia a teria fortalecido os laços de Davi tanto com
Saul, inclusive suas terras, sendo que parte Benjamim (a tribo de Saul) quanto com as
dessas propriedades foi entregue a Mefibo­ dez tribos que haviam seguido a casa de Saul
sete para ajudar a sustentá-lo e a sua família. no passado. Tirar de Mefibosete metade de
Davi ordenou que Ziba, servo de Saul, cui­ sua herança dificilmente se encaixava no cli­
dasse das terras e acatasse as ordens de ma de alegria e de clemência daquele dia e,
Mefibosete, e o servo prometeu obedecer. no entanto, ao dividir as terras, Davi também
Porém, quando Davi estava fugindo de Jeru­ estava perdoando Ziba por suas mentiras e
salém, Ziba apareceu sem seu senhor e trou­ pela traição a seu senhor. Ao dividir as terras
xe ajuda para Davi e seu grupo. Naquela entre Ziba e Mefibosete, Davi estava resol­
ocasião, Davi tomou uma decisão impulsiva vendo a questão do jeito fácil.
e deu todas as terras a Ziba (16:1-4). O ser­ Porém, a resposta de Mefibosete deve
vo também apareceu para ajudar Davi a atra­ ter deixado Davi atônito: "Fique ele, muito
vessar o rio e voltar para casa (19:17). embora, com tudo, pois já voltou o rei, meu
Ziba não estava por perto para ajudar senhor, em paz à sua casa" (v. 30). Mas
Mefibosete, de modo que deve ter sido difí­ graças ao julgamento precipitado de Davi,
cil para o príncipe aleijado percorrer os mais Ziba já era dono de todas as terras! Essa
de trinta quilômetros de Jerusalém até o situação nos lembra do "caso do bebê mor­
Jordão, mas ainda assim Mefibosete foi até to" que Salomão teve de resolver (1 Rs 3:16­
o rio.3 Sabia que Ziba o havia difamado ao 28). Salomão descobriu quem era a mãe
dizer a Davi que ele esperava que a rebe­ verdadeira quando sugeriu que o bebê vivo
lião fosse bem-sucedida e que a coroa vol­ fosse cortado ao meio e a mulher que es­
tasse para a casa de Saul. Mefibosete queria tava dizendo a verdade protestou. Ao con­
uma chance de falar pessoalmente com o trário do caso do bebê, as terras poderiam
rei, negar as mentiras de Ziba e afirmar sua facilmente ser divididas, mas talvez Davi
lealdade a Davi - e foi exatamente o que estivesse testando a sinceridade de Mefi­
fez. Seu uso repetido da designação "rei, bosete. O texto não diz, mas é possível que
meu senhor" foi sincero, pois era fiel ao rei. Mefibosete tenha ficado com todas as ter­
Enquanto Davi ouvia a explicação de ras, como determinava o contrato original.
Mefibosete, percebeu que se precipitara ao De qualquer modo, o príncipe continuou
dar todas as terras a Ziba, mas não teve tem­ tendo suas necessidades supridas, enquan­
po de realizar uma audiência para resolver to Ziba cultivou as terras.
a questão. Mefibosete deixou claro que não
estava pedindo coisa alguma ao rei. Davi 5. D avi recompensa os fiéis
havia lhe dado a vida, que mais poderia que­ (2 Sm 19:31-40)
rer? Parafraseando as palavras de Mefibosete: Barzilai foi um dos três proprietários de ter­
"Tenho mais do que mereço, por que dese­ ra abastados que saíram ao encontro de
jaria o trono? Estava destinado à morte, e Davi quando ele chegou a Maanaim, os
não apenas me salvou como também me quais, juntos, supriram as necessidades do
recebeu em sua família". rei e de seu grupo (1 7:27-29). Depois disso,
Não é fácil entender a resposta de Da­ Barzilai voltou para sua casa em Rogelim,
vi. À primeira vista, a impressão é a de que cerca de trinta a quarenta quilômetros ao
2 S A M U EL 19:1 - 40 361

norte. Quando ficou sabendo que Davi es­ corte e seria um fardo para o rei, cujas preo­
tava voltando para Jerusalém, desceu até o cupações já não eram poucas.
Jordão para despedir-se dele. Não tinha pe­ Porém, Barzilai estava disposto a permitir
cados a confessar, diferentemente de Simei, que o filho, Quimã, tomasse seu lugar (1 Rs
nem algum mal-entendido a esclarecer, 2:7) e se mudasse para Jerusalém. Queria
como Mefibosete. Barzilai não desejava fa­ que outros desfrutassem aquilo que não lhe
vor algum do rei. Tudo o que queria era en­ era necessário. Nas palavras de Matthew
viá-lo de volta para casa em segurança, Henry: "Aqueles que são idosos não devem
sabendo que a guerra havia terminado. Es­ privar os jovens dos prazeres que eles pró­
sas duas viagens devem ter sido difíceis para prios desfrutaram no passado nem obrigar
um homem de oitenta anos, mas ele deseja­ os jovens a se aposentar como eles". Barzilai
va dar o melhor de si a seu rei. atravessou o rio junto com Davi e Quimã e
Davi queria recompensar Barzilai cuidan­ percorreu uma distância curta com os dois.
do dele no palácio em Jerusalém. Além de Em seguida, se despediram, e Davi beijou
expressar sua gratidão, o fato de ter um afetuosamente o amigo e benfeitor.4 No tem­
homem tão importante como Barzilai em Je­ po de Jeremias, havia um lugar chamado
rusalém fortaleceria as relações com os ci­ Jerute-Quimã ("habitação de Quimã") pró­
dadãos da região da Transjordânia numa ximo a Belém (Jr 41:17), e é possível que
época em que a união era um bem precio­ tenha sido nesse lugar que o filho de Barzilai
so. Barzilai, porém, recusou gentilmente a se assentou com a família.
oferta de Davi afirmando que já estava ve­ Mas os problemas de Davi ainda não ha­
lho demais. As pessoas mais idosas não gos­ viam terminado, pois a eterna rixa entre as
tam de se mudar e preferem morrer em casa dez tribos e Judá voltaria à tona e, por pouco,
e ser sepultadas com os entes queridos. Em não causaria outra guerra civil. Shakespeare
sua idade, Barzilai não poderia mais desfru­ estava certo: "Inquieta deita-se a cabeça que
tar devidamente os privilégios da vida na usa a coroa".5

1. Em 2 Samuel, a expressão "o povo* refere-se aos seguidores de Davi, especialmente a seu exército. Ver 15:17, 23, 24, 30;

16:14; 17:2,3, 16, 22; 18:1-4,6,16; 19:2, 3, 8, 9, 39. Outra expressão usada para seu exército é "os homens/servos de Davi"

(2:13, 15, 17, 30, 31; 3:22; 8:2, 6, 14; 10:2, 4; 11:9, 11, 13, 17; 12:18; 15:15; 16:6; 18:7, 9; 19:6; 20:6).

2. Simei identificou-se com a "casa de José" (v. 20), sendo a primeira vez que essa expressão é usada no Antigo Testamento.

Refere-se às dez tribos lideradas por Efraim, filho mais novo de José. As dez tribos do Norte costumavam ser chamadas de

"Efraim* ou de "filhos de José*.

3. A tradução "a Jerusalém", no versículo 25, deve ser lida como "de Jerusalém*.

4.O "episódio de Absalão" teve início no momento em que Davi beijou o filho depois que havia passado dois anos em prisão

domiciliar (14:33) e terminou quando Davi beijou Barzilai.

5. Henry IV, Parte 2, ato 3, cena 1.


10 de sua tribo, de modo que recaía sobre eles
maior responsabilidade de cuidar do rei. Is­
rael argumentou que tinham dez partes em
Davi, enquanto Judá tinha apenas duas,
A s N o v a s L utas como se o rei fosse alguma empresa na bol­
sa de valores. Ao que parece, ninguém ins­
de D avi
tou as tribos a clamar ao Senhor pedindo
ajuda e a lembrar que Gilgal era o lugar onde
2 Samuel 19:41 - 21:22
Israel havia recomeçado no tempo de Josué
(Ver também 1 Crônicas 2 0 :4 -8 ) (Js 3 - 5).
As raízes do conflito entre Judá e Israel
eram profundas, assim como as origens dos
bem-humorado poeta Ogden Nash es­ conflitos que dividem tantas nações hoje.

O creveu em tom sério: "As pessoas Quando o rei Saul reuniu seu primeiro exér­
seriam capazes de sobreviver a seus proble­cito, as tropas foram divididas entre Judá e
mas normais se não fossem todas as dificul­ Israel (1 Sm 11:8), divisão que persistiu ao
dades que causam a si mesmas!" longo de todo seu reinado (15:4; 17:52;
Ao ler o relato da vida de Davi em sua 18:16). Depois da morte de Saul, as dez tri­
idade mais avançada, percebemos como isso bos de Israel apoiaram o filho dele, Isbosete,
é verdade. Todos os pais têm problemas pre­ enquanto Judá seguiu Davi (2 Sm 2:10,11).
visíveis com os filhos, mas os pecados dos E evidente que Judá estava obedecendo à
filhos de Davi pareciam bater todos os re­ vontade de Deus, pois o Senhor havia esco­
cordes, especialmente com referência a lhido Davi para ser o próximo rei de seu
Absalão. Todos os líderes enfrentam dificul­ povo. Mesmo nos tempos de Davi ainda
dades com os seguidores, mas no caso de existia essa rivalidade entre as tribos (2 Sm
Davi, a espada reluziu repetidamente em 11:11; 12:8). Jesus disse que "Todo reino
Israel, enquanto irmão lutava contra irmão. dividido contra si mesmo ficará deserto, e
Que dolorosas são as conseqüências dos toda cidade ou casa dividida contra si mes­
pecados perdoados! Estes capítulos descre­ ma não subsistirá" (M t 12:25). Quando
vem quatro conflitos com os quais Davi teve Roboão subiu ao trono depois da morte de
de lidar depois que a rebelião de Absalão seu pai, Salomão, essa divisão tornou-se ain­
havia sido contida. da mais profunda, e o reino se dividiu em
Israel e Judá.
1. C onflito tribal O discurso de um aspirante a líder mui­
(2 S m 19:41 - 20:4, 14-26) tas vezes é suficiente para começar um con­
Em algumas pessoas, as crises fazem aflorar flito, e, nesse caso, o nome desse pretenso
o que há de melhor, e em outras, o pior. Os líder era Seba. Por ser um benjamita, apoia­
representantes das tribos estavam reunidos va a casa de Saul e, provavelmente, era um
em Gilgal a fim de escoltar seu rei de volta a oficial do exército do Norte. Se as dez tri­
Jerusalém, mas em vez de se regozijarem bos se separassem do reino, talvez pudesse
com a vitória que Deus havia dado a seu comandar seu exército. Seba não declarou
povo, as tribos lutavam entre si. Os "homens guerra, mas apenas dispensou o exército e
de Israel" eram as dez tribos do Norte, ira­ os cidadãos das tribos do Norte e lhes disse
das com a tribo de Judá, a qual havia assimi­ para deixarem de seguir Davi. No fundo, po­
lado a tribo de Simeão. O motivo da ira de rém, suas palavras foram uma declaração de
Israel era o fato de Judá não ter esperado guerra, pois Seba percorreu as tribos do
que os outros chegassem ao local a fim de Norte em busca de seguidores (20:14). Ao
ajudar a levar Davi para casa. Judá havia "se­ que parece, não foram muitos os que o apoia­
qüestrado" o rei, ignorando e insultando as ram, e Seba e seus partidários acabaram na
outras tribos. Judá respondeu que Davi era cidade murada de Abel-Bete-Maaca.
2 S A M U E L 19:41 - 21:22 363

Joabe assumiu novamente o comando ganhasse força entre a população insatisfei­


das tropas de Davi e seguiu Seba até Abel- ta da terra, o que poderia levar a outra guer­
Bete-Maaca, cercou a cidade e começou a ra. Milhares de súditos de Davi haviam se
sitiá-la. Pela terceira vez na "história de Davi", disposto a seguir Absalão e, ao que parecia,
uma mulher mudou o curso dos aconte­ as tribos do Norte estavam dispostas a se­
cimentos. Abigail foi a primeira dessas mu­ guir qualquer um.
lheres (1 Sm 25); a mulher de Tecoa foi a Porém, Amasa não compareceu com o
segunda (2 Sm 14). A mulher sábia chamou exército no dia marcado, e Davi teve de
Joabe de dentro da cidade e lhe garantiu entregar o comando das tropas a Abisai.
que ninguém ali se aliou a quaisquer rebel­ Amasa havia sido comandante do exército
des e que, portanto, não mereciam ser ata­ de Absalão, de modo que Davi talvez sus­
cados. Talvez tivesse em mente a lei em peitasse que o havia traído juntando-se a
Deuteronômio 20:10-16, de acordo com a Seba. A explicação mais lógica para a de­
qual uma cidade deveria oferecer uma ofer­ mora de Amasa era que os homens não
ta de paz antes de ser atacada. Quando confiavam nele e não queriam segui-lo, ar­
Joabe explicou que estava apenas atrás de riscando a vida para lutar sob seu comando.
Seba, a mulher convenceu os habitantes de Levando consigo os oficiais de Joabe e os
Abel a matarem o líder rebelde e a salvar a "valentes" de Davi, Abisai reuniu o exército
cidade. Mas Seba não foi um bode expiató­ de Judá rapidamente e rumou para o norte,
rio, pois como oficial que havia se rebelado a fim de deter Seba. Qual não foi a surpresa
contra o rei, o benjamita merecia morrer. deles quando encontraram Amasa e seu
Seba queria ser cabeça do exército, mas, em exército na pedra grande junto a Gibeão,
vez disso, sua cabeça é que foi jogada por cerca de nove quilômetros a noroeste de
sobre o muro para o exército. Jerusalém. Amasa estava a caminho para se
O capítulo encerra com mais uma lista apresentar a Davi e receber suas ordens.
de oficiais de Davi (ver 8:15-18), à qual são Apesar de não ter cargo oficial, Joabe
acrescentados dois nomes: Adorão (ou acompanhou o irmão, Abisai, a fim de aju­
Adonirã) era encarregado dos trabalhos for­ dá-lo no que fosse possível. Os dois haviam
çados e Ira, o jairita, era o capelão de Davi. lutado juntos na batalha no bosque de Efraim
Os "trabalhos forçados" eram realizados e derrotado Absalão. Joabe não tinha qual­
pelos prisioneiros de guerra, mas, por vezes, quer afeição por Amasa, o comandante que
os israelitas eram convocados para ajudar havia traído Davi e liderado o exército de
nos programas de construção do governo. Absalão (17:25). Além disso, Amasa tomara
Do reinado de Salomão em diante, o oficial o lugar de Joabe como comandante das tro­
encarregado desses projetos não teve uma pas de Davi, uma nomeação que deve ter
vida fácil (1 Rs 4:6; 5:14; 12:18ss; 2 Cr humilhado Joabe (Davi fez essa mudança
10:18, 19). porque Joabe havia dado cabo de Absalão).
Agora, devemos retroceder um pouco a Joabe sabia que ele e o irmão, Abisai, pode­
fim de descobrir como Joabe recuperou o riam dar conta da revolta de Seba, mas
comando do exército de Davi. Amasa era fraco e inexperiente demais para
comandar um exército vitorioso.
2. C o n f lit o pesso a l (2 Sm 20:4-13) Como na ocasião em que assassinaram
Quando Davi ficou sabendo que Seba esta­ Abner (3:27-39), Joabe e Abisai devem ter
va conclamando o povo a se rebelar, mais tramado algo rapidamente assim que viram
que depressa enviou uma mensagem a Amasa se aproximar. Joabe havia assassina­
Amasa, seu novo comandante (19:13), or­ do Abner' e Absalão, de modo que suas
denando que reunisse os soldados em três mãos já estavam manchadas de sangue. O
dias e que fosse a Jerusalém. Como estrate­ gesto ardiloso com a espada deu a Amasa a
gista experiente, Davi sabia que a insurrei­ impressão de que se tratava de um encon­
ção deveria ser cortada pela raiz antes que tro informal, mas foi a maneira astuciosa de
364 2 SA M U E L 19:41 - 21:22

Joabe pegar Amasa desprevenido (ver Jz Pecado (w. 1-4). Em parte alguma das
3:20-23). Mais uma vez, a espada caiu so­ Escrituras é explicado quando ou por que
bre a casa de Davi, pois Amasa era seu pri­ Saul matou os gibeonitas, rompendo, assim,
mo. Não havia motivo para matar Amasa. a aliança que Israel havia feito com esse
Por certo, ele havia se aliado a Absalão, mas povo no tempo de Josué (Js 9). Josué havia
Davi havia declarado anistia, a qual também tentando tirar proveito de seu erro, pois
incluía Joabe, que havia matado Absalão. colocou os gibeonitas para trabalhar cor­
Joabe poderia ter tomado o comando de tando lenha e carregando água, mas o ju­
Amasa sem maiores dificuldades, mas a ín­ ramento dos israelitas obrigava-os diante de
dole do veterano era tal que ele preferia ex­ Deus a proteger os gibeonitas (Js 10). Saul
terminar os que estavam em seu caminho. matou vários gibeonitas, mas sua intenção
Não queria ver líder algum de Absalão ain­ era eliminá-los de todo, tratando-se, portan­
da vivo e criando problemas para Davi. to, de um caso de "extermínio étnico" e de
Joabe deixou Amasa caído numa poça genocídio.
de sangue no meio da estrada, levando todo A vida religiosa de Saul é um mistério.
o exército a interromper a marcha de súbito Na tentativa de parecer piedoso, fez votos
diante daquela cena. A batalha nem havia insensatos que ninguém conseguiria cum­
começado e lá estava seu comandante, mor­ prir (1 Sm 14:24-35) e, ao mesmo tempo,
to no meio do caminho! Joabe e Abisai parti­ ignorou ordens claras do Senhor (1 Sm 13,
ram em perseguição a Seba, mas o exército 15). Deus ordenou que Saul matasse os
não os seguiu, pois como acontece em aci­ amalequitas, e ele não o fez; no entanto,
dentes de trânsito hoje em dia, todos os que exterminou os gibeonitas! Outro mistério é
passavam precisavam parar e olhar, causando o fato de Jeiel, bisavô de Saul, ser progenitor
um congestionamento. Um dos homens de dos gibeonitas (1 Cr 8:29-33; 9:35-39), de
Joabe teve o bom senso de colocar o corpo modo que Saul matou os próprios parentes.
à beira da estrada e cobri-lo. Em seguida, Cibeão tornou-se uma cidade levítica (Js
convocou os soldados de Amasa para que 21:17) e, durante algum tempo, abrigou o
apoiassem Joabe e Davi, e os homens con­ tabernáculo (1 Rs 3:4, 5). A cidade ficava
cordaram. Teria sido mais politicamente em Benjamim, tribo de Saul, o que talvez
correto dizer "Davi e Abisai", pois Davi ha­ seja uma pista para o comportamento de
via entregado o comando a Abisai. Joabe, Saul. Já era problemático o suficiente ver os
porém, tomou de volta seu antigo cargo e pagãos gibeonitas vivos e tranqüilos na ter­
se recusou a entregá-lo (v. 23). Mais uma ra de Israel, mas será que precisavam morar
vez, Davi teve de ceder aos jogos de poder no território de Benjamim? Uma das táticas
de Joabe. de "liderança" de Saul era recompensar seus
Por certo, alguém sepultou o corpo, uma homens com casas e terras (1 Sm 22:7); tal­
vez que era considerado algo muito grave em vez, para fazer isso, tenha confiscado pro­
Israel não sepultar os mortos devidamente. priedades dos gibeonitas. Qualquer que
tenha sido o motivo e o método, mesmo
3. C onflito étnico (2 S m 21:1-14) em seu túmulo, Saul trouxe julgamento so­
O livro encerra com um registro de duas ca­ bre o povo de Israel, uma vez que a seca e a
lamidades nacionais: uma seca decorrente do fome continuaram por três anos (21:1,10).
pecado do rei Saul (21:1-14) e uma praga É possível que o primeiro ano de seca
causada pelo pecado do rei Davi (24:1-25). tenha sido causado por alguma mudança
Entre esses dois acontecimento trágicos, o climática inesperada, e, durante o segundo
escritor apresenta um resumo de quatro vitó­ ano, talvez os israelitas dissessem: "Logo as
rias (21:15-22) e uma lista dos valentes de coisas vão melhorar". Mas quando, pelo
Davi (23:8-39), bem como dois salmos escri­ terceiro ano consecutivo, a terra teve de
tos de Davi (22:1 - 23:7). Mais uma vez, ve­ suportar a escassez de chuva e de alimen­
mos Davi como soldado, cantor e pecador. tos, Davi buscou o Senhor. Estava escrito na
2 S A M U EL 19:41 - 21:22 365

aliança do Senhor com Israel que ele envia­ Porém, devemos nos lembrar de que a mor­
ria chuvas à terra, caso seu povo o honrasse te dos sete homens não serviu de expiação,
e lhe obedecesse (Dt 28:1-14). Davi sabia mas sim de retribuição legal.
que o pecado de homicídio contaminava a Apesar de Davi não haver cometido o
terra (Nm 35:30-34), e era exatamente isso crime, teve de escolher os sete homens que
o que estava causando todo o transtorno. iriam morrer, tarefa nada fácil (talvez Davi
Talvez por intermédio do profeta Natã ou tivesse pensado nos que morreram em de­
de Ira, capelão do rei, o Senhor disse a Davi: corrência de seus pecados: o bebê de Ba-
"Há culpa de sangue sobre Saul e sobre a te-Seba; Urias, o heteu; Amnom; Absalão;
sua casa, porque ele matou os gibeonitas" Amasa). Por causa do voto que havia feito
(v. 1). Fazia mais de trinta anos que Saul ha­ a Jônatas de proteger seus descendentes
via morrido, e o Senhor esperou paciente­ (1 Sm 20:12-17),4 o rei não citou o nome de
mente para tratar do pecado dele.2 Mefibosete e escolheu dois filhos de Rispa,
Retribuição (w. 5-9). Quando ficou sa­ concubina de Saul, e também os cinco fi­
bendo dos fatos, Davi ofereceu imedia­ lhos de Merabe, filha de Saul casada com
tamente uma restituição pelos pecados Adriel (2 Sm 21:8).5 Esse fato ocorreu duran­
terríveis de seu antecessor, pois desejava que te a colheita da cevada, em meados de abril,
os gibeonitas abençoassem o povo de Is­ e os corpos ficaram expostos por cerca de
rael e, desse modo, desfrutassem as bênçãos seis meses, até as chuvas chegarem; a seca
de Deus (Gn 12:1-3). Porém, os gibeonitas terminou em outubro. Pendurar um corpo
não queriam dinheiro; sabiam que um ho­ era uma forma de desgraçar a pessoa e de
micida não poderia pagar resgate nem inde­ amaldiçoá-la (Dt 21:22, 23).
nizar os sobreviventes (Nm 35:31-33). Os Compaixão (w. 10-14). A lei exigia que
gibeonitas deixaram claro que sabiam qual os corpos expostos fossem retirados até o
era seu lugar em Israel: eram servos e resi­ pôr-do-sol e sepultados. A fim de ter certeza
dentes estrangeiros e não tinham direito al­ de que todo o possível havia sido feito para
gum de pleitear sua causa.3 Porém, seria tratar do crime de Saul, Davi permitiu que
necessário derramar sangue a fim de expiar os corpos ficassem expostos até virem as
o sangue gibeonita derramado (Êx 21:24; Lv chuvas, indicando que o Senhor havia volta­
24:19-21; Dt 19:21). A nação sofria por cau­ do a abençoar seu povo. Durante todo esse
sa dos pecados de Saul, e matar qualquer tempo, Rispa protegeu os corpos de seus
um não resolveria o problema. Os gibeonitas filhos e sobrinhos, num ato de amor e de
pediram que sete homens descendentes de coragem. Rispa era a concubina envolvida
Saul fossem sacrificados diante do Senhor; no episódio em que Abner abandonou a
isso daria fim à seca e à fome. casa de Saul e aliou-se a Davi (3:6-12).
Davi sabia que os israelitas eram proibi­ Porém, Davi foi ainda mais longe. Orde­
dos de oferecer sacrifícios humanos (Lv nou que os ossos fossem recolhidos, e que,
18:21; 20:1-5; Dt 12:29-32; 18:10) e que a juntamente com os ossos de Saul e de seus
morte de sete homens em sacrifício não ti­ filhos, enterrados pelos homens de Jabes-
nha valor expiatório. Nós, que temos hoje o Gileade (1 Sm 31), fossem colocados no
Novo Testamento e que compreendemos o túmulo da família de Saul (vv. 12-14). Todo
evangelho de Jesus Gristo, vemos esse epi­ israelita desejava ser sepultado de modo
sódio todo com um misto de espanto e de apropriado junto a seus antepassados, e Davi
repugnância, mas não devemos nos esque­ concedeu essa bênção a Saul e a sua famí­
cer de que estamos lidando com a lei, não lia. Quaisquer que sejam as dúvidas que
com a graça, e se trata de Israel, não da Igre­ ainda restam sobre esse acontecimento sin­
ja. A lei de Moisés exigia que um homicídio gular, uma coisa é certa: os pecados de um
não solucionado fosse expiado por um homem podem causar tristeza e morte para
sacrifício (Dt 21:1-9), quanto mais o ex­ sua família, mesmo depois de morto e se­
termínio explícito perpetrado por um rei! pultado. Também devemos dar crédito a Davi
366 2 SA M U EL 19:41 - 21:22

por tratar energicamente do pecado por O segundo embate com os filisteus (2 Sm


amor à nação e, ao mesmo tempo, mostrar 21:18; 1 Cr 20:4) ocorreu em Gobe, local
bondade para com a casa de Saul. impossível de determinar com precisão,
onde Israel venceu a batalha porque um dos
4. C onflito nacional valentes de Davi matou o gigante (ver 1 Cr
(2 S m 21:15-22; 1 C r 20:4-8) 11:29). O fato de os nomes desses gigantes
Estes quatro conflitos ocorreram no começo aparecerem no texto mostra que eram guer­
do reinado de Davi, provavelmente antes reiros conhecidos.
que transformasse Jerusalém em sua capi­ O terceiro conflito com os filisteus (v. 19)
tal e antes que os filisteus se opusessem a foi, novamente, em Gobe, e, dessa vez, o
sua ascensão ao poder. Os quatro episódi­ gigante morto foi o irmão de Golias (1 Cr
os envolveram "descendentes dos gigan­ 20:5). Sabemos pouco sobre Elanã, exceto
tes"6 da Filístia, sendo um deles irmão de que veio de Belém e que era um dos valen­
Golias (v. 19). tes de Davi (2 Sm 23:24).
No primeiro conflito (vv. 15-1 7), Davi lu­ A quarta batalha ocorreu em território
tou tanto que ficou fraco, pois os filisteus inimigo, na cidade de Gate (vv. 20-22; 1 Cr
concentravam-se nele, não nos outros sol­ 20:6-8), e Jônatas, sobrinho de Davi, matou
dados. Isbi-Benobe queria matar Davi e ti­ o gigante que, assim como Golias, havia de­
nha uma lança de bronze que pesava quase safiado Israel e o Deus de Israel (ver 1 Sm
quatro quilos. Mas Abisai, sobrinho de Davi 17:10).
que o exasperou em mais de uma ocasião, Quando, em sua adolescência, Davi ma­
socorreu o rei e matou o gigante. Foi então tou Golias, sem dúvida deu aos homens de
que os líderes militares decidiram que o rei Israel um bom exemplo do que significa
era vulnerável e valioso demais para ser sa­ confiar em Deus para alcançar a vitória. É
crificado no campo de batalha. O rei era a bom saber matar os gigantes em sua vida,
"lâmpada de Israel" e deveria ser protegido mas não se esqueça de ajudar outros a ma­
(ver 1 Rs 11:36; 15:4; 2 Rs 8:19; 2 Cr 21:7). tar os gigantes na vida deles.

1. joabe matou Abner, pois este havia matado seu irmão, Asael, e o fez próximo a Gibeão, onde Joabe encontrou-se com Amasa

(2:12ss). Talvez a memória da morte de seu irmão tenha instigado Joabe, apesar de Amasa não ter qualquer relação com esse
acontecimento.

2. Não se sabe por que os gibeonitas não apresentaram essa questão a Davi bem antes, pois, uma vez que eram residentes

estrangeiros em Israel, tinham direitos civis. Durante a primeira parte de seu reinado, Davi estava protegendo e expandindo
0 reino, e, nos últimos anos, tratava de problemas decorrentes dos próprios pecados, de modo que talvez tenha levado

algum tempo para a questão chegar aos ouvidos do rei. Ao enviar seca e fome, o Senhor cumpriu as estipulações da aliança
(Lv 26:18-20; Dt 28:23, 24).

3. A lei de Moisés concedia certos direitos a residentes estrangeiros, e Israel havia recebido a advertência de não oprimir os

estrangeiros na terra (Êx 22:21; Lv 19:34; Dt 24:17). Ao que parece, nem o juramento de Josué nem a lei de Moisés

impediram Saul de tentar exterminar os gibeonitas.

4. No entanto, Davi fez uma promessa semelhante a Saul (1 Sm 24:20-22) e, nesse caso, estava ordenando a morte de descendentes

de Saul. Porém, a execução de cinco homens não era o mesmo que mandar exterminar toda a família.

5. De acordo com 6:23, Mical morreu sem ter filhos, de modo que o texto deve dizer "Merabe". Ela era filha de Saul com Ainoã
(1 Sm 14:49) e casada com Adriel (1 Sm 18:17-19).

6. O texto hebraico diz "descendentes de Rafa", sendo que esse termo significa "gigante" (D t 2:11, 20; Js 12:4; 13:12; 17:15;

1 Cr 20:4, 6, 8).
11 sua dinastia (2 Sm 7) e lhe deu as vitórias
registradas em 2 Samuel 8 e 10. Podemos
concluir, ainda, pelos versículos 20 a 27, que
escreveu o salmo antes de cometer os pe­
O C â n t ic o de V itó r ia cados gravíssimos relacionados a Bate-Seba
e a Urias (2 Sm 11 - 12), pois jamais pode­
de D avi
ria ter escrito os versículos 20 a 27 depois
2 S amuel 22 desse triste episódio.
O salmo enfatiza aquilo que o Senhor,
(V er também o S almo 18) em sua graça e misericórdia, fez por Davi.

1. O S enhor livrou a D avi


(2 Sm 22:1-19)
E
m 1 Samuel 2, há o registro do cântico
que Ana entoou quando levou o filho, A palavra-chave desse cântico é "livrar" (vv.
Samuel, para servir ao Senhor no taber­ 1, 2, 18, 20, 44, 49), tendo como significa­
náculo, e em 2 Samuel 22, há o cântico de dos "tirar do perigo, agarrar, levar embora,
Davi depois que o Senhor o ajudou a derro­ permitir escapar". Antes de se tornar rei, Davi
tar os inimigos (v. 1; SI 18, título). É extrema­ passou pelo menos dez anos sendo perse­
mente significativo que esses dois livros, tão guido por Saul e por seu exército; de acor­
pesados e cheios de morte, comecem e ter­ do com o registro bíblico, Saul tentou matar
minem com louvores! Não importa quão Davi pelo menos cinco vezes (ver 1 Sm
sombrios sejam os dias ou quão dolorosas 18:10, 11; 19:8-10, 18-24). Depois que se
as memórias, podemos sempre louvar ao tornou rei, Davi teve de lutar contra os
Senhor. filisteus, os amonitas, os sírios, os moabitas
Neste cântico, Davi agradeceu ao Senhor e os edomitas, e Deus capacitou-o a triunfar
as muitas vitórias que lhe havia dado e sua sobre todos os inimigos.
bondosa atuação ao conduzi-lo ao trono de Davi começou seu cântico louvando ao
Israel. Observe que Saul não é incluído na Senhor por aquilo que ele é: uma rocha, uma
relação de inimigos de Davi, pois, a despei­ fortaleza, um libertador (v. 2), imagens sem
to de tudo o que Saul fez contra ele, em dúvida provenientes dos anos que Davi pas­
momento algum Davi o considerou um ini­ sou no deserto, quando ele e seus homens
migo. É bem provável que 2 Samuel 22 seja esconderam-se em cavernas e em fortalezas
a versão original, mas quando o cântico foi naturais. A declaração: "Deus, o meu roche­
adaptado para a adoração comunitária, Davi do" (v. 3) pode ser traduzida por: "Meu Deus
escreveu uma nova abertura: "Eu te amo, ó semelhante a uma rocha". A imagem do
S e n h o r , força minha" (SI 18:1). O termo Senhor, "a rocha", já aparece em Gênesis
hebraico usado para "amar", nessa declara­ 49:24 e é usada, com freqüência, no
ção, significa "amor profundo e fervoroso", "cântico de Moisés" em Deuteronômio 32
não apenas uma emoção passageira. Além (vv. 4, 15, 18, 30, 31). Ana empregou essa
disso, Davi removeu do versículo 3 as pala­ expressão em seu cântico (1 Sm 2:2), e pa­
vras: "D a violência tu me salvas". Existem lavras semelhantes podem ser encontradas
diferenças, mas elas não devem nos impe­ em várias ocasiões nos salmos. Uma rocha
dir de compreender a mensagem gloriosa lembra força e estabilidade, algo confiável e
desse cântico de louvor. imutável. Por mais que os inimigos de Davi
É pouco provável que esse cântico te­ tentassem destruí-lo, ele estava sempre pro­
nha sido escrito logo depois da derrota de tegido e era sempre conduzido pelo Senhor.
Saul e do início do reinado de Davi em Deus era um escudo ao redor dele e um
Hebrom. Podemos inferir, pelo versículo 51, libertador em todo tempo de perigo.
que Davi escreveu esse salmo depois que A imagem da rocha dá lugar à imagem
Deus firmou com ele a aliança acerca de da torrente (vv. 4-7), que, por sua vez, leva
368 2 SA M U EL 22

ao retrato vívido da tempestade (vv. 8-20). Jeová conquistaria a vitória. Por isso, dava
Enquanto estava exilado no deserto, Davi toda a glória ao Senhor. Davi declarou que
certamente viu muitas tempestades (ver SI Deus não apenas "desceu" (v. 10), mas tam­
29), que transformavam os leitos secos de bém lhe "estendeu... a mão" e o tomou; ti­
riachos em torrentes intensas (SI 126:4). rou-o das muitas águas perigosas (v. 17).
Qualquer que fosse a estação do ano, Davi
sempre lutava contra as fortes correntezas 2. O S enhor recompensou a D avi
da oposição de Saul. Ondas de morte, tor­ (2 Sm 22:20-28)
rentes de impiedade, cadeias infernais e tra­ Durante pelo menos dez anos, Davi havia
mas ocultas de morte enchiam a vida de Davi passado por "apertos", mas o Senhor o con­
de dificuldades e de perigos. Não é de se duziu a um "lugar espaçoso" (v. 20). Deus
admirar que dissesse a Jônatas: "apenas há pôde lhe dar um lugar maior, pois Davi ha­
um passo entre mim e a morte" (1 Sm 20:3). via sido engrandecido em sua própria vida
O que fazer quando se está morrendo mediante as experiências de aflição e de
afogado numa torrente de oposição? Clamar provação. "Na angústia, me tens aliviado"
ao Senhor e confiar, e ele dará a ajuda neces­ (SI 4:1). Em várias ocasiões, Davi clamou
sária (v. 7). Davi era um homem de oração ao Senhor, pois seu sofrimento era cada vez
que dependia do Senhor para ter sabedoria, mais intenso; porém, ao mesmo tempo, o
força e livramento, e o Senhor jamais falhou Senhor estava engrandecendo seu servo e
com ele. Por que Deus esperou tantos anos preparando-o para um lugar maior (SI 18:19,
antes de livrar Davi e de colocá-lo no trono? 36). "Em meio à tribulação, invoquei o S e­
Dentre outras coisas, porque o Senhor esta­ n h o r , e o S enhor me ouviu e me deu folga"

va constituindo para si um líder, algo que (SI 118:5). Na escola da vida, Deus promo­
poderia ser feito somente por meio de pro­ ve aqueles que, nos tempos de dificuldade,
vações, de sofrimento e de batalhas. Porém, aprendem as lições da fé e da paciência
o Senhor também tinha em vista a hora cer­ (Hb 6:12), e Davi havia aprendido bem suas
ta: "vindo, porém, a plenitude do tempo" lições.
(Gl 4:4), o Messias viria ao mundo nascido A justiça de Davi (vv. 21-25). Uma leitu­
da família de Davi. ra superficial desses versículos pode nos dar
Quando Senhor respondeu aos clamo­ a impressão de que Davi estava se vanglo­
res de Davi e o livrou de Saul e dos inimigos riando, mas de modo algum esse é o caso.
do povo de Deus, foi como uma grande tem­ Davi louvava ao Senhor por capacitá-lo para
pestade caindo sobre a terra (2 Sm 22:8-20). que tivesse uma vida irrepreensível em meio
Davi descreve a intervenção divina como um a situações perigosas e desconfortáveis. Ima­
terremoto (v. 8) seguido de relâmpagos, fogo gine como era difícil guardar a lei do Senhor
e fumaça (v. 9). O Senhor estava irado (ver no meio do deserto da Judéia, quando se
SI 74:1; 140:10)! Tendo o céu escuro como estava fugindo para salvar a própria pele! Em
pano de fundo, o Senhor fez descer uma tudo o que fazia, Davi procurava agradar ao
nuvem impelida por querubins.' A tempes­ Senhor, obedecer à sua lei e confiar em suas
tade caiu com toda sua fúria! Nas Escrituras, promessas. Esses versículos descrevem Da­
uma tempestade pode retratar um exército vi como um homem íntegro (ver SI 78:72),
avançando (Ez 38:9; Dn 11:40; Hb 3:14) um homem segundo o coração de Deus
ou o julgamento de Deus (Jr 11:6; 23:19; (ver 1 Sm 13:14, NVI). Davi conhecia as pro­
25:32). As setas de Deus eram como raios, messas de Deus na aliança, apropriou-se
sua voz como o trovão, e o vento era o bu­ delas e foi honrado pelo Senhor. O rei Saul
far de suas narinas. Não é de se admirar que transgrediu os termos da aliança e foi julga­
seus inimigos fugissem aterrorizados! Davi do pelo Senhor.
não se considerava um grande comandante Isso não significa que Davi foi perfeito e
que havia liderado um exército vitorioso, mas que sempre fez a coisa certa. Teve seus dias
sim um servo de Deus que confiava que de desespero, quando fugiu para o lado
2 SA M U EL 22 369

inimigo em busca de ajuda, mas foram "desonesto" vem de um radical que signifi­
incidentes na vida de um homem que, de ca "lutar". Davi não lutou contra Deus nem
outro modo, dedicou-se inteiramente ao contra a vontade do Senhor, como fez Saul,
Senhor. Davi honrou ao Senhor e nunca se por isso Davi foi exaltado, e Saul, humilhado
voltou para ídolos. Não envergonhou o (1 Pe 5:5,6; Tg 4:10).
nome do Senhor e teve o cuidado de prote­ Por fim, Davi foi humilde e quebrantado
ger seus pais (1 Sm 22:1-4). Quando se viu diante do Senhor, enquanto Saul promoveu
diante de oportunidades de matar Saul, re­ a si mesmo e se colocou em primeiro lugar.
cusou-se a tocar o ungido de Deus e a co­ "Tu salvas o povo humilde, mas, com um
meter homicídio. Não há evidência alguma lance de vista, abates os altivos" (v. 28). Ana
de que, durante seus "anos de batalha", Davi tocou nesse tema importante em seu cântico
tenha sido ladrão, adúltero ou que desse ao Senhor (1 Sm 2:3, 7,8). Quando come­
falso testemunho contra outros (na verdade, çou a reinar, Saul "se sobressaía de todo o
foram Saul e seus homens que mentiram povo do ombro para cima" (1 Sm 10:23,24),
sobre Davi). Foi um homem generoso, que mas, no final da vida, caiu com o rosto em
não alimentou a cobiça em seu coração. terra na casa de uma feiticeira (28:20) e,
Não sabemos como Davi guardou o sába­ depois, caiu sobre a espada, cometendo
do enquanto estava longe da comunidade suicídio no campo de batalha (31:1-6). "Aque­
da aliança, mas não há motivo algum para le, pois, que pensa estar em pé veja que não
crer que tenha quebrado o quarto manda­ caia" (1 Co 10:12).
mento. Medido de acordo com os parâme­ Davi prostrou-se em submissão, e o Se­
tros de justiça da lei, Davi foi um homem de nhor o exaltou em honra. Saul exaltou a si
mãos limpas e de coração puro (SI 24:3-6) e mesmo e acabou caindo com o rosto em
recebeu sua recompensa do Senhor. terra em humilhação.
A fidelidade do Senhor (vv. 26-28). O Deus é sempre fiel a seu caráter e a sua
Senhor nunca vai contra os próprios atri­ aliança. E essencial conhecer o caráter de
butos. Deus sempre trata as pessoas de Deus, a fim de saber e de fazer a vontade
acordo com suas atitudes e ações. Davi foi dele e de agradá-lo. Davi conhecia a aliança
misericordioso para com Saul e poupou a de Deus, portanto entendia o que Deus es­
vida dele em, pelo menos, duas ocasiões, e perava dele. O caráter e a aliança de Deus
o Senhor foi misericordioso para com Davi. são os alicerces para as promessas de Deus.
"Bem-aventurados os misericordiosos, por­ Se ignorarmos seu caráter e aliança, jamais
que alcançarão misericórdia" (Mt 5:7). Davi conseguiremos nos apropriar de suas pro­
foi fiel ao Senhor, e o Senhor foi fiel a ele. messas.
Davi foi justo e sincero em seu serviço a
Deus. Não foi perfeito - ninguém aqui na 3. O S enhor capacitou a D avi
terra é mas foi irrepreensível em suas (2 Sm 22:29-43)
motivações e lealdade ao Senhor. Nesse Nesta estrofe de seu cântico, Davi olha para
sentido, seu coração era limpo: "Bem-aven­ trás e se lembra de como o Senhor o aju­
turados os limpos de coração, porque verão dou durante os anos difíceis de exílio.
a Deus" (Mt 5:8). O Senhor iluminou a Davi (v. 29). A
Ao contrário de Saul, Davi não foi per­ imagem de uma lâmpada acesa pode ser
verso em seu coração, mas se sujeitou à uma referência à bondade de Deus ao man­
vontade de Deus (v. 27). A segunda parte ter vivo seu povo (Jó 18:5, 6; 21:1 7). A vida
desse versículo pode ser traduzida por: de Davi estava sempre em perigo, mas o Se­
"com o desonesto, astuto te mostras", o que nhor o preservou e supriu todas as suas ne­
nos lembra de que ter fé é viver sem tramar cessidades. Porém, uma lâmpada acessa
nem inventar desculpas, duas práticas nas também se refere ao reinado de um monar­
quais Saul se destacava. O termo hebraico ca. Os homens de Davi temiam que, um dia,
traduzido por "perverso", "petulante" ou fosse morto na batalha e que a "lâmpada de
370 2 S A M U EL 22

Israel" se apagasse (2 Sm 21:17). Mesmo atenção. Davi sempre se viu como um sim­
depois que Davi morreu, o Senhor foi fiel a ples pastor israelita, sem qualquer posição
sua promessa na aliança e manteve acesa a especial em Israel (1 Sm 18:18, 23), mas o
lâmpada de Davi ao preservar sua dinastia Senhor "inclinou-se" para engrandecê-lo. Fez
(1 Rs 11:36; 15:4; 2 Rs 8:19; 2 Cr 21:7; SI de Davi um grande guerreiro e lhe deu um
132:17). grande nome (2 Sm 7:23), e Davi reconhe­
Deus também iluminou Davi de outra ceu essa misericórdia inexplicável de Deus.
maneira, pois lhe revelou sua vontade por Seu maior desejo, porém, era engrandecer
meio do uso do Urim e do Tumim. Saul to­ o nome de Jeová diante das nações (2 Sm
mou as próprias decisões, mas Davi buscou 7:18-29).
o S enh o r . N o s dias sombrios do exílio, Davi A condescendência bondosa de Deus é
pôde dizer: "O S enhor é a minha luz e a um tema muitas vezes deixado de lado pelo
minha salvação; de quem terei medo? O S e­ povo de Deus. Assim como fez com Davi,
n h o r é a fortaleza da minha vida; a quem Deus Pai digna-se a trabalhar em nossa vida
temerei?"2 (SI 27:1). a fim de nos capacitar para aquilo que esco­
O Senhor deu poder a Davi (vv. 30-35). lheu para nós (ver também Is 57:15), e Deus
O retrato dessa passagem mostra um guer­ Filho, sem dúvida, se humilhou por nós quan­
reiro valente que não deixa coisa alguma do veio à terra como servo e como sacrifício
impedi-lo de alcançar a vitória. Deus deu po­ pelo pecado (Fp 2:5-11). O Santo Espírito
der a Davi para que enfrentasse o inimigo aceitou vir à terra e viver com o povo de
sem medo, correndo em meio aos soldados Deus! Ao olhar para trás, para os anos difí­
e a suas barricadas e, até mesmo, escalan­ ceis no exílio, Davi não viu a "severidade"
do muralhas para tomar uma cidade. O ca­ de Deus, mas sim sua brandura. Viu "bon­
minho do Senhor é perfeito (v. 31), e ele dade e misericórdia" o seguindo (SI 23:6).
tornou perfeito o caminho de Davi (v. 33), O servo da parábola que chamou seu se­
pois confiou no Senhor. Deus protegeu Davi nhor de "homem severo" (Mt 25:24) certa­
na batalha, pois ele creu inteiramente na mente não via as coisas da mesma forma
Palavra perfeita de Deus. que o rei Davi!
O corpo de Davi pertencia ao Senhor Podemos não gostar das descrições que
(ver Rm 12:1), que usou os braços, os pés e Davi faz de suas vitórias, mas devemos nos
as mãos de seu servo (vv. 33-35) para ven­ lembrar de que lutava as batalhas do Senhor.
cer o inimigo. Davi era um guerreiro de gran­ Se essas nações tivessem derrotado e
de talento, mas foi o poder da unção do destruído Israel, o que teria acontecido com
Senhor que o capacitou a ser vitorioso no o grande plano de Deus para a salvação do
campo de batalha. Como uma corça ligeira, mundo? Não teríamos a Bíblia nem um Sal­
conseguiu alcançar as alturas, e seus pés vador! Ao se rebelarem contra o Senhor e
não vacilaram (v. 37). Deus fortaleceu os adorarem ídolos, essas nações pagãs peca­
braços de Davi de modo que pudesse ver­ ram de modo deliberado e indesculpável
gar um arco de bronze e atirar flechas com (Rm 1:18ss; Js 2). Durante muitos anos, o
grande poder. Na força do Senhor, Davi foi Senhor fora paciente com elas (Gn 15:16),
invencível. mas essas nações rejeitaram sua graça. Davi
O Senhor engrandeceu a Davi (vv. 36­ perseguiu os inimigos quando tentaram fugir
43). O Senhor alongou o caminho de Davi (2 Sm 22:38, 41); derrotou-os, aniquilou-os
(v. 37) e levou seu servo a um lugar espaço­ e moeu-os como o pó da terra! Tornaram-se
so (v. 20), uma verdade maravilhosa sobre a como lama nas ruas.
qual falamos anteriormente. A declaração
extraordinária: "a tua clemência me engran­ 4. O S e n h o r estabeleceu a D avi
deceu" (2 Sm 22:36) revela como Davi con­ (2 Sm 22:44-51)
siderava absolutamente admirável que o Uma coisa é lutar as guerras e derrotar os ini­
Deus Todo-Poderoso se dignasse a lhe dar migos e outra bem diferente é manter essas
2 S A M U E L 22 371

nações sob controle. Davi não apenas pre­ admoestação aos cristãos da igreja de Roma
cisou unificar e liderar as doze tribos de Is­ para que recebessem uns aos outros e pa­
rael, como também teve de lidar como as rassem de julgar uns aos outros. Os cristãos
nações sob o domínio de Israel. gentios em Roma desfrutavam de liberdade
O Senhor entronizou a Davi (w. 44-46). em Cristo, enquanto muitos cristãos judeus
As nações gentias não queriam um rei ainda viviam sob o jugo da lei de Moisés.
ocupando o trono de Israel, especialmente Paulo ressalta que Cristo veio para minis­
um estrategista brilhante, guerreiro valente trar tanto a judeus quanto a gentios, ao
e líder querido como Davi. Porém, Deus não cumprir as promessas de Deus aos judeus
apenas estabeleceu Davi em seu trono, e ao morrer pelo povo de Israel, bem como
como também lhe prometeu uma dinastia pelos povos de outras nações. Desde o iní­
que jamais teria fim. O Senhor prometeu a cio de Israel, quando Deus chamou Abraão
Davi um trono e cumpriu a promessa. Aju­ e Sara, era intenção do Senhor incluir os
dou Davi a unir o próprio povo e a lidar com gentios em seu plano de salvação pela gra­
aqueles ainda leais a Saul. A palavra "estran­ ça (Gn 12:1-3; Lc 2:29-32; Jo 4:22; Ef
geiros", nos versículos 45 e 46, refere-se às 2:11 ss).
nações gentias. As vitórias do Senhor assus­ A seqüência em Romanos 15:8-12 é sig­
taram esses povos e os fizeram fugir para nificativa. Jesus confirmou as promessas
seus esconderijos. Um dia, acabariam sain­ feitas a Israel (v. 8), e Israel levou a mensa­
do de suas frágeis fortalezas e se sujeitariam gem de salvação aos gentios (v. 9). Tanto os
a Davi. cristãos judeus quanto os cristãos gentios,
O Senhor exaltou a Davi (w. 47~49). O como um só corpo, louvam juntos ao Se­
grito de louvor de Davi: "Vive o S enhor " (v. nhor (v. 10), e todas as nações podem ouvir
47) era seu testemunho claro aos povos sob as boas novas do evangelho (v. 11). Quan­
o domínio de Israel de que os ídolos deles do Jesus voltar, reinará tanto sobre judeus
não poderiam salvá-los nem protegê-los (ver quanto sobre gentios em seu reino glorioso
SI 115). Somente Jeová, o Deus de Israel, é o (v. 12). Sempre fez parte do plano de Deus
verdadeiro Deus vivo, e as vitórias e entroni­ que a nação de Israel servisse de veículo
zação de Davi provaram que Deus estava para levar a salvação ao mundo perdido. "Ao
com ele. Davi sempre teve o cuidado de exal­ S enhor pertence a salvação!" (Jn 2:9). "A sal­
tar o Senhor, não a si mesmo (Mt 6:33; 1 Sm vação vem dos judeus" (Jo 4:22).
2:30). Se engrandecermos nosso nome ou Os gentios devem muito aos judeus (Rm
nossos feitos, pecaremos, mas se o Senhor 15:27), e os cristãos gentios devem pagar
nos engrandece, glorificará seu nome (Js 3:7). essa dívida. Precisam mostrar o devido valor
O Senhor elegeu a Davi (vv. 50, 51). O a Israel orando por sua salvação (Rm 9:1-5;
fato de Deus ter escolhido Davi para ser rei 10:1) e pela paz de Jerusalém (SI 122:6),
e de ter feito com ele uma aliança dinástica testemunhando com amor quando Deus
é o fundamento para tudo o que Deus fez oferece oportunidades (Rm 1:16) e compar­
por seu servo. Israel foi chamado a testemu­ tilhando com eles quando surgem necessi­
nhar às nações, e era responsabilidade de dades materiais (Rm 15:27).
Davi construir um reino que honrasse o Ao recapitular esse salmo, percebe-se
nome do Senhor. Infelizmente, em decor­ o que tocava mais profundamente o cora­
rência de seu pecado com Bate-Seba, Davi ção de Davi. Ele viu e mencionou Deus pelo
trouxe opróbrio ao nome de Deus (2 Sm menos dezenove vezes. Viu Deus nas
12:14). Ainda assim, Davi era o rei e o ungi­ coisas da vida, tanto nas ocasiões alegres
do de Deus, e a aliança entre Deus e Davi quanto nas tempestades. Viu o propósito
permanece até hoje e se cumprirá, finalmen­ de Deus em sua vida e em Israel como na­
te, com Jesus Cristo em seu reino. ção, regozijando-se por ser parte desse pro­
Paulo citou o versículo 50, em Romanos pósito. Porém, o mais empolgante é que,
15:9, como parte do encerramento de sua apesar de todos os problemas pelos quais
372 2 S A M U EL 22

Davi passou, ainda viu a mão bondosa de (Sl 4:1), preparando-o para dar passos maio­
Deus moldando sua vida e cumprindo seus res (2 Sm 22:37) no lugar espaçoso que Deus
propósitos (v. 35). Os problemas cada vez havia preparado para ele (2 Sm 22:20) - uma
maiores (Sl 25:17) "engrandeceram" Davi experiência que também podemos ter.

1. Em Ezequiel 1, o profeta viu o trono glorioso de Deus numa plataforma esplendorosa de cristal, com um querubim em cada

canto, como "rodas" carregando o trono de um lugar para o outro. A imagem do trono de Deus como um carro nos lembra

de que ele pode descer do céu e ajudar seu povo e de que nada é capaz de impedi-lo.

2. A luz é usada com freqüência nas Escrituras como imagem de Deus (Sl 84:11; Is 60:19, 20; Ez 1:4, 27; Dn 2:22; Mq 7:8;

Ml 4:2; Lc 2:32; Jo 8:12; 1 Tm 6:16; 1 Jo 1:5; Ap 21:23).


12 Deus tê-lo chamado para tornar-se rei de Is­
rael, de liderar o povo de Deus, de lutar as
batalhas de Deus e até mesmo de ajudar a
escrever a Palavra de Deus. Foi por meio da
A s M em ó rias e os linhagem de Davi que Deus trouxe ao mun­
do o Messias. Do ponto de vista humano,
E r r o s de D avi
Davi era um "joão-ninguém", um pastor, o
caçula dos oito filhos de uma família israelita
2 Samuel 23 - 24
comum. No entanto, Deus o escolheu e o
(Ver também 1 Crônícas 11 : 10 ­ criou para tornar-se o maior rei de Israel. O
41 ; 2 1 : 1-2 6 ) Senhor havia dado a Davi mãos habilidosas
e um coração íntegro (SI 78:70-72), prepa­
morte do rei Davi não é relatada em
A
rando-o para conhecer sua vontade. Como
2 Samuel, mas sim em 1 Reis 2:1-12. filho de Jessé, Davi era membro da tribo real
Porém, 2 Samuel 23 e 24 registram seu de Judá, o que não era o caso de seu ante­
último salmo, os nomes de seus maiores sol­ cessor, Saul (ver Cn 49:10).
dados e o triste relato de seu pecado ao rea­ Davi não realizou qualquer forma de
lizar um censo do povo. Os capítulos 21 a autopromoção a fim de alcançar a grande­
24 servem de "apêndice" a 2 Samuel e, ao za; foi o Senhor quem o escolheu e que o
que parece, concentram-se nos aspectos di­ elevou ao trono (Dt 17:15). O Senhor pas­
vinos e humanos da liderança. As decisões sou trinta anos preparando Davi, primeiro
de um líder podem ter sérias conseqüências, com as ovelhas no pasto, depois com Saul
o que é comprovado pelos pecados de Saul no acampamento do exército e, por fim,
(cap. 21) e Davi (cap. 24). Os líderes devem com os próprios homens valentes no de­
depender do Senhor e lhe dar a glória, como serto da Judéia. Os grandes líderes são trei­
declaram os dois salmos de Davi. Além dis­ nados nos bastidores antes de começarem
so, nenhum líder é capaz de fazer todo o a trabalhar em público. Nas palavras de
trabalho sozinho, como indica a lista dos va­ Goethe: "Os talentos são mais desenvolvi­
lentes de Davi. Em 2 Samuel 23 a 24, são dos na solidão, e o caráter é melhor forma­
apresentados três retratos de Davi que ilus­ do nos vagalhões tempestuosos do mundo".
tram a grandeza e o caráter humano desse Davi tinha as duas coisas. Havia sido fiel em
líder. sua vida particular como servo, de modo
que Deus pôde elevá-lo publicamente, a fim
1. D avi, o cantor inspirado de que se tornasse um governante (Mt
(2 Sm 23:1-7) 25:21). O Senhor seguiu esse mesmo pro­
Pelo menos setenta e três salmos do Livro cedimento ao preparar Moisés, Josué,
de Salmos são atribuídos a Davi, mas seu Neemias, os apóstolos e até seu próprio
último salmo encontra-se somente aqui em Filho (Fp 2:5-11; Hb 5:8). O Dr. D. Martyn
2 Samuel 23. A oração "as últimas palavras Lloyd-Jones costumava dizer: "É triste quan­
de Davi" significa "suas últimas palavras es­ do um jovem alcança o sucesso antes de
critas inspiradas pelo Senhor". É possível que estar preparado para ele". Davi estava pre­
o salmo tenha sido escrito nos dias finais de parado para o trono.
sua vida, pouco antes de Davi morrer. Uma Deus dá poder àqueles que chama, e
vez que o tema dessa composição é a lide­ ungiu Davi com seu Espírito (1 Sm 16:12,
rança piedosa, talvez Davi tenha escrito es­ 13). Como dizia o Dr. A. W. Tozer: "Nunca
sas palavras especialmente para Salomão, siga um líder antes de ver o óleo da unção
mas têm muito a ensinar a todo o povo de em sua testa", o que explica por que tantos
Deus hoje. homens competentes procuraram Davi e se
Os privilégios da liderança (vv. 1, 2). juntaram a seu grupo. É preciso mais do que
Davi nunca deixou de se admirar do fato de talento e treinamento para ser um verdadeiro
374 2 S A M U E L 23 - 24

líder eficaz e ter a habilidade de recrutar e da área empresarial de hoje comparam líde­
de treinar outros líderes. Jesus lembrou a seus res eficazes com pastores de ovelhas sensí­
discípulos, e a nós também: "Sem mim nada veis às necessidades do rebanho.'
podeis fazer" (Jo 15:5). Os líderes religiosos Davi usou uma bela metáfora para retra­
que seguem os princípios daquilo que o tar o trabalho de um líder: a chuva e o sol,
mundo chama de "sucesso" raramente rea­ que juntos produzem frutos proveitosos em
lizam algo duradouro e que glorifica a Deus. vez de espinhos dolorosos (vv. 4-7). Davi
"Aquele, porém, que faz a vontade de Deus exemplificou esse princípio em sua vida,
permanece eternamente" (1 Jo 2:1 7). É bom pois sua ascensão ao trono significou a au­
ser instruído pelos homens, mas é ainda mais rora de um novo dia para a nação de Israel.
importante ser treinado pelo Senhor. "Nos­ Nesse sentido, ele nos lembra do que ocor­
so Senhor passou trinta anos preparando-se reu quando Jesus veio à terra (ver SI 72:5-7;
para três anos de serviço", escreveu Oswald Is 9:2; 58:8; 60:1, 19; Ml 4:1-3; Mt 4:13-16;
Chambers. "O mais típico, hoje em dia, é Lc 2:29-32). Com a coroação de Davi, as
ter três horas de preparação para trinta anos tempestades que Saul havia causado na ter­
de serviço". ra chegaram ao fim, e a luz do semblante de
Porém, o Espírito não apenas concedeu Deus passou a brilhar sobre seu povo. Sob a
poder a Davi para a batalha, mas também o liderança de Davi haveria uma colheita de
inspirou a escrever belos salmos que conti­ bênçãos do Senhor.
nuam ministrando a nosso coração. Damos Com a ajuda de Deus, os líderes devem
valor ainda maior a esses salmos quando criar um ambiente no qual seus colaborado­
pensamos nas provações que Davi deve ter res sejam capazes de crescer e de produzir
suportado a fim de nos oferecer suas pala­ frutos. O ministério envolve tanto a luz do
vras. Davi deixou claro que não estava es­ sol quanto a chuva, tanto dias claros quanto
crevendo apenas poesia religiosa, mas sim nublados, mas o ministério de um líder pie­
a Palavra de Deus. Pedro chamou Davi de doso produzirá chuvas leves e vivificadoras
"profeta" (At 2:30) e, em Pentecostes, citou e não tempestades destruidoras. Como é
as palavras de Davi sobre a ressurreição e agradável seguir um líder que faz aflorar o
ascensão do Messias (At 2:24-36). Ao ler os que há de melhor em nós e que nos ajuda a
Salmos, lê-se a Palavra de Deus e aprende- produzir frutos para a glória de Deus! Líde­
se sobre o Filho de Deus. res não espirituais produzem espinhos que
As responsabilidades da liderança (w. irritam o povo e que dificultam seu progres­
3-7). Deus não treinou Davi apenas para exi­ so (vv. 6, 7).
bi-lo, mas também para que realizasse um Em seu cântico, Davi foi além dos prin­
trabalho importante, e o mesmo se aplica a cípios de liderança e celebrou a vinda do
todos os verdadeiros líderes. Davi deveria Messias (v. 5). Mencionou a aliança que o
governar sobre o povo de Deus, "rebanho Senhor fez com ele (2 Sm 7), a qual lhe ga­
do seu pastoreio" (SI 100:3), uma respon­ rantia uma dinastia e um trono para sempre,
sabilidade assustadora. Trata-se de uma in­ uma aliança que se cumpriu em Jesus Cristo
cumbência que exige integridade ("justiça" (Lc 1:32, 33, 68-79). Parece mais apropria­
= retidão) e atitude submissa ao Senhor ("te­ do ler as declarações no versículo 5 como
mor do Senhor"). Sem a justiça e sem o perguntas: "Não está assim com Deus a mi­
temor do Senhor, um líder torna-se um dita­ nha casa? Não estabeleceu, pois, comigo
dor e abusa do povo de Deus, tocando-o uma aliança eterna, em tudo bem definida
feito gado em vez de conduzi-lo como ove­ e segura?" A primeira pergunta não indica
lhas. Davi foi um monarca que liderou na que todos os filhos de Davi fossem piedo­
qualidade de um servo que governa, e sua sos, pois sabemos que esse não era o caso.
grande preocupação era com o bem-estar do Apenas diz que a casa (dinastia) de Davi
povo (2 Sm 24:17). Para mim, é um grande estava segura, pois contava com as promes­
ânimo ver que até mesmo os especialistas sas da aliança de Deus. Nada poderia mudar
2 S A M U E L 23 - 24 375

essa aliança, eternamente garantida pelo Eleazar (vv. 9, 10) era da tribo de Benja­
caráter de Deus. mim (1 Cr 8:4) e lutou contra os filisteus ao
No texto original, Davi usou, mais uma lado de Davi, provavelmente em Pas-Damim
vez, a imagem do fruto, no versículo 5: "Não (1 Sm 17:1; 1 Cr 11:12, 13). Enquanto mui­
me fará ele prosperar [frutificar] toda a minha tos dos soldados israelitas se retiravam da
salvação e toda a minha esperança?" O de­ luta, ele permaneceu em seu lugar e lutou
sejo de Davi era que Deus cumprisse sua pro­ até sua espada ficar "pegada" à mão. O
messa e enviasse o Messias, que nasceria dos Senhor honrou a fé e a coragem de Davi e
descendentes de Davi. Em termos históricos, de Eleazar e deu a Israel uma grande vitó­
o trono de Judá chegou ao fim em 586 a.C. ria, depois da qual os soldados voltaram
com o reinado de Zedequias, mas não foi o para o campo de batalha e tomaram os
fim da família de Davi ou de Israel como na­ despojos dos inimigos mortos. Assim como
ção. Em sua providência, o Senhor preservou Davi, Eleazar não se mostrou egoísta na
Israel e a semente de Davi para que Jesus hora de dividir os despojos da batalha, pois
Cristo pudesse nascer em Belém, a Cidade a vitória viera do Senhor (1 Sm 30:21-25).
de Davi. A nação era pequena e fraca, mas o O terceiro "valente" foi Sama (vv. 11, 12),
Messias veio mesmo assim! "Do tronco de também usado pelo Senhor para trazer a
Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um vitória em Pas-Damim (1 Cr 11:13, 14). Mas
renovo" (Is 11:1; ver 4:2; 6:13; e 53:2). Po­ por que arriscar a vida a fim de defender
rém, um dia, os perversos da terra serão ar­ um campo de lentilhas ou cevada? A terra
rancados como espinhos e queimados (vv. 6, pertencia ao Senhor (Lv 25:23) e havia sido
7; ver Mt 3:10, 12; 13:40-42). dada aos israelitas a fim de que a usassem
para a glória de Deus (Lv 18:24-30). Sama
2. D avi , u m líd er de talento não queria que os filisteus controlassem
(2 Sm 23:8-38; 1 C r 11:10-47) aquilo que pertencia a Jeová, pois os israe­
Nesta passagem, são relacionados os nomes litas eram mordomos da terra de Deus. Res­
e alguns feitos dos homens mais importan­ peitar a terra significava honrar ao Senhor
tes que seguiram Davi e que ficaram a seu e sua aliança com Israel.
lado durante os anos difíceis do exílio e ao O segundo grupo de três "valentes"
longo de seu reinado. (vv. 13-17; 1 C r 11:15-19). Os nomes des­
Os três primeiros "valentesv de Davi ses três não são citados, mas fazem parte
(2 Sm 23:8-12; 1 C r 11:10-14). O primeiro dos "trinta" relacionados nos versículos 24
citado é o de Josebe-Bassebete, também cha­ e 29. Isso indica que não eram os três ho­
mado de Jasobeão (v. 8; 1 Cr 11:11). Era mens citados anteriormente. Todas as pes­
chefe dos capitães do exército de Davi, fa­ soas são criadas iguais diante de Deus e da
moso por ter matado oitocentos soldados lei, mas nem todos são iguais em termos de
inimigos "de uma vez". Em 1 Crônicas 11:11, talentos e de habilidades; alguns têm mais
a Palavra diz que ele matou trezentos ho­ dons e oportunidades do que outros. Porém,
mens. Como observamos anteriormente, a o fato de não conseguirmos realizar tantas
transmissão de números de um manuscrito coisas quanto "os três primeiros" não deve
para outro pelos copistas causava, por ve­ nos impedir de fazer nosso melhor e, quem
zes, essas pequenas diferenças. Será que o sabe, formar um "segundo grupo de três".
temor do Senhor fez todos esses homens se Deus não nos mede de acordo com aquilo
lançarem de um penhasco ou será que a que ajudou outros a realizar, mas de acordo
coragem de Jasobeão inspirou outros a en­ com o que deseja que façamos com as apti­
trarem na batalha de modo que recebeu cré­ dões e oportunidades que concedeu a nós
dito pela vitória? O texto não revela como em sua graça.
realizou esse feito, mas é pouco provável O fato de Davi estar escondido numa
que tenha dado cabo desses homens um a caverna próxima a Belém indica que esse
um com sua lança. acontecimento ocorreu enquanto fugia de
376 2 SA M U EL 23 - 24

Saul ou logo depois que foi proclamado rei que havia custado tudo àqueles três homens.
em Hebrom e os filisteus o atacaram (2 Sm Todos os líderes precisam seguir o exemplo
5:17; 1 Cr 14:8). Era tempo da colheita, o de Davi e mostrar a seus seguidores como
que significa que não havia chovido e que dão valor a eles e aos sacrifícios que fazem.
as cisternas estavam vazias. Não havia água Jesus entregou-se como sacrifício por nós
na caverna, e Davi teve sede da água do e também como libação (SI 22:14; Is 53:12).
poço em Belém, do qual ele costumava be­ Paulo usou a imagem da libação para des­
ber quando era menino. O texto indica que crever a própria consagração ao Senhor (Fp
Davi falou consigo mesmo sobre a água e 2:17; 2 Tm 4:6). Madre Teresa costumava
não deu ordem alguma, porém o maior de­ dizer: "Não somos capazes de fazer gran­
sejo desses três homens era agradar seu lí­ des coisas, mas apenas pequenas coisas com
der. Estavam perto o suficiente para ouvir as grande amor". Porém, fazer pequenas coi­
palavras sussurradas por Davi, foram leais o sas motivados pelo amor a Cristo as trans­
suficiente para considerar o desejo dele uma forma em grandes realizações. Jesus disse
ordem e corajosos o suficiente para obe­ que, sempre que demonstramos amor e
decer a qualquer custo. Viajaram mais de bondade e procuramos suprir as necessida­
dezoito quilômetros, romperam as linhas ini­ des de outros, damos a nosso Senhor um
migas e voltaram com a água. Que exemplo copo de água fresca (Mt 25:34-40).
extraordinário para nosso relacionamento Dois "valentes" especiais (vv. 18-23;
com nosso Comandante e Salvador! 1 Cr 11:20-25). Abisai (vv. 18, 19) era sobri­
O que quer que o Senhor colocasse nas nho de Davi e irmão de Joabe, comandante
mãos de Davi, ele sempre usava para honrar do exército de Davi. Também era irmão de
a Deus e para ajudar seu povo - uma funda, Asael, morto de modo traiçoeiro por Abner;
uma espada, uma harpa, um cetro e até Joabe e Abisai mataram Abner, causando
mesmo um copo de água -, e essa ocasião grande tristeza a Davi (2 Sm 2 - 3). Abisai
não foi exceção. Ao olhar para o copo, Davi foi um homem corajoso que, nessa passagem,
não viu água; viu o sangue de três homens é elogiado por ter matado trezentos solda­
que haviam arriscado a vida para satisfazer dos inimigos. Porém, em algumas ocasiões,
seu desejo. Beber aquela água seria o mes­ mostrou ter mais zelo do que sabedoria. Quis
mo que humilhar todos os seus homens e matar Saul numa noite em que estava no
trivializar o ato de bravura daqueles três he­ acampamento do rei com Davi, mas Davi
róis. Passaria a mensagem de que, na verda­ rejeitou a idéia (1 Sm 26). Além disso, ofere­
de, a vida deles não era importante para seu ceu-se para decapitar Simei por ter amaldiçoa­
líder. Em vez disso, Davi transformou a ca­ do Davi (2 Sm 16:9-11; 19:21). Comandou
verna num templo e derramou a água como o exército no cerco a Rabá (10:10-14) e sal­
libação ao Senhor, conforme havia visto os vou a vida de Davi durante uma luta com
sacerdotes fazerem no tabernáculo. A liba­ um gigante (21:15-17). Abisai manteve-se
ção acompanhava a oferta de outro sacrifí­ leal a Davi durante a rebelião de Absalão e
cio, como, por exemplo, um holocausto, e ficou no comando de um terço do exército
não costumava ser oferecida de modo inde­ de Davi (18:2, 12).2 Também liderou o se­
pendente. Era um ato de consagração que gundo grupo de três valentes e era tido em
simbolizava a vida de uma pessoa derrama­ alta estima.
da a serviço do Senhor. Os três homens en­ Benaia (vv. 20-23; 1 Cr 11:22-25) era um
tregaram a si mesmos como sacrifício a Deus homem extraordinário, nascido para servir
para servir a Davi (Rm 12:1), de modo que no sacerdócio (1 Cr 27:5), mas que se tornou
Davi acrescentou sua oferta à deles para soldado e comandante da guarda pessoal
mostrar-lhes que estava plenamente de acor­ de Davi (2 Sm 8:18; 20:23). Encontramos
do com sua devoção a Jeová. Parafrasean­ na Bíblia sacerdotes que se tornaram profe­
do as palavras de Davi em 2 Samuel 24:24, tas, como Jeremias, Ezequiel e João Batista,
ele não trataria como se fosse nada aquilo mas Benaia é o único sacerdote citado que
2 S A M U E L 23 - 24 377

se tornou um soldado. Lutou bravamente no à medida que os homens morriam e eram


campo de batalha e participou de alguns substituídos.
conflitos interessantes. F. W . Boreham tem Nesta lista, os homens foram divididos
um ótimo sermão sobre o episódio em que em quatro grupos: os três valentes (vv. 8­
Benaia matou um leão e no qual ressalta que 12), o segundo grupo de três valentes (vv.
Benaia deparou-se com o pior dos inimigos 13-17),4 dois líderes especiais (w. 18-23) e
(um leão), no pior dos lugares (uma cova), "os trinta" soldados extraordinários (vv. 24-
na pior das circunstâncias (um dia de neve)... 39).5 No versículo 36, trata-se do nome de
e venceu! Benaia foi leal à casa de Davi e um só homem ("Igal, filho de Natã [que era
apoiou Salomão quando este subiu ao trono filho] de Zobá") ou dos nomes de dois ho­
(1 Rs 1:8-10). Quando Joabe tentou pro­ mens ("Igal, filho de Natã e o filho de Zobá")?
clamar Adonias rei, foi Benaia quem o exe­ Com exceção dos três homens que trouxe­
cutou, cumprindo, desse modo, a ordem de ram água para Davi, os nomes de todos os
Davi a Salomão (1 Rs 2:5, 6). Salomão fez outros são relacionados, de modo que pa­
de Benaia o líder do exército no lugar de rece estranho a lista omitir o nome de um
Joabe (1 Rs 2:35; 4:4; 1 Cr 27:5, 6). Joiada, só homem. É bem provável que o versículo
o filho de Benaia, não seguiu a carreira mili­ 36 registre o nome de um indivíduo, o que
tar, mas se tornou conselheiro do rei Salo­ significa que havia trinta e dois soldados no
mão no lugar de Aitofel (27:34). grupo dos "trinta" - os vinte e nove cujos
Os trinta (w. 24-39; 1 C r 11:26-47). Saul nomes aparecem na lista, mais os três ho­
destacava-se da multidão por sua altura, mas mens dos versículos 13 a 17. Talvez o termo
foi Davi quem mostrou ter o tipo de caráter "os trinta" fosse simplesmente um codinome
e de grandeza que atraía os que estavam para os soldados de elite de Davi, não obs­
em busca de verdadeira liderança. Uma das tante o número exato de membros, assim
marcas dos verdadeiros líderes é que têm como "os doze" designava o grupo de após­
seguidores dedicados, não apenas bajula­ tolos de Jesus. Se acrescentarmos aos trinta
dores egoístas e parasitas (o termo mais pre­ e dois homens os três valentes dos versículos
ciso é "sicofanta", derivado de uma palavra 8-12, mais Abisai e Benaia, temos o total de
grega que significa "informante" ou "esco- trinta e sete indicado no versículo 39.
va-botas"). Os oficiais de Saul eram homens Dois nomes são conhecidos: Asael, so­
nos quais não se podia confiar e que pre­ brinho de Davi e irmão de Joabe e de Abisai
cisavam ser subornados a fim de prestar ser­ (w. 24), e Urias, o heteu, marido de Bate-
viços leais ao rei (ver 1 Sm 22:6ss), mas os Seba (v. 39; 1 Cr 11:41). Os dois estavam
homens de Davi estavam dispostos a mor­ mortos, mas seus nomes permaneceram na
rer por seu líder e, de fato, foi o que alguns lista de grandes guerreiros. Que tragédia
deles fizeram. Davi ter tirado a vida de um de seus melhores
Uma vez que os povos antigos tinham soldados só para encobrir o próprio pecado!
dois ou mais nomes que podiam ser grafados Há dois outros fatos dignos de observa­
de formas diferentes, não é fácil correlacionar ção. Em primeiro lugar, Davi não realizou
essa lista em 2 Samuel 23 com a de 1 Crôni­ suas conquistas sozinho; teve a ajuda de
cas 11. Alguns nomes na lista de Samuel não muitos seguidores dedicados. Consideramos
aparecem na lista de Crônicas, mas esta últi­ Davi um guerreiro poderoso, o que de fato
ma traz dezesseis nomes a mais (1 Cr 11:41 - era, mas até onde teria ido sem seus solda­
47). É possível que se trate de substitutos dos competentes e leais? A maioria dos ho­
ou de "reservas".3 Os nomes que não apa­ mens que aparecem na lista vinha de Judá,
recem na lista de Crônicas são Sama, filho o que não causa espanto, uma vez que Davi
de Agé (v. 11), Elica (v. 25), Eliã (v. 34) e Igal era da tribo de Judá e reinou ali antes da
(v. 36). As diferenças entre as duas listas unificação nacional. Porém, o grupo dos
são mínimas e, sem dúvida, a composição "trinta" também incluía homens de Benja­
desse grupo mudava de tempos em tempos, mim, a tribo de Saul, e vários soldados das
378 2 S A M U EL 23 - 24

nações vizinhas. Todos esses homens reco­ sabendo que grande parte do ministério do
nheceram que a mão de Deus estava sobre templo, naquela época, era corrupta e rejei­
Davi e desejaram participar daquilo que tada por seu Pai (Mt 23:37 - 24:1). O termo
Deus estava fazendo. Essa diversidade de "povo", em 2 Samuel 24:2, 4, 9, 10, refere-
comandantes em seu exército é louvável na se às forças armadas de Israel e é usado com
liderança de Davi. esse sentido em 1 Samuel 4:3, 4, 17. Porém,
Em segundo lugar, Deus lembrou-se de o censo ordenado por Davi não tinha o pro­
cada um dos homens, providenciou para que pósito de coletar o imposto anual do templo.
a maioria deles fosse anotada na sua Pala­ Antes, foi um censo militar para determinar
vra e, um dia, recompensará cada um deles o tamanho de seu exército, como fica claro
pelo ministério que realizaram. O nome de no versículo 9. Haviam sido realizados cen­
Davi é citado mais de mil vezes na Bíblia, sos militares, no passado, sem que o Senhor
enquanto a maioria desses homens é men­ tivesse julgado a nação (Nm 1 e 26). O que
cionada apenas uma ou duas vezes. Porém, houve de errado nesse censo?
quando se encontrarem com o Senhor, Joabe e seus capitães foram contra o pla­
"cada um receberá o seu louvor da parte de no (v. 4), e o discurso de Joabe, no versículo
Deus" (1 Co 4:5). 3, indica que a ordem de Davi foi motivada
Joabe foi comandante de todo o exérci­ pelo orgulho. O rei quis engrandecer as
to (20:23), mas é citado nessa lista militar próprias realizações em vez do nome do Se­
somente em relação a seus irmãos Abisai (v. nhor. É possível que Davi tenha racionali­
18) e Asael (v. 24; 1 Cr 11:20, 26). No final, zado esse desejo argumentando que seu
Joabe foi desleal a Davi e tentou colocar filho, Salomão, era um homem pacífico e
Adonias no trono, o que lhe custou a vida sem experiência militar. Davi desejava certi­
(1 Rs 2:28-34). ficar-se de que Israel teria as forças necessá­
rias para manter a paz. Outro fator pode ter
3. D avi, o pecador arrependido sido o plano de Davi de organizar o exército,
(2 Sm 24; 1 C r 21) o governo e, também, os sacerdotes e levi­
Lê-se, em 2 Samuel 24:1, que Deus incitou tas, para que Salomão pudesse administrar
Davi a contar o povo, enquanto 1 Crônicas tudo com mais facilidade e conseguir se de­
21:1 indica Satanás como o culpado. Os dois dicar à construção do templo (1 Cr 22 - 27).
estão certos: Deus permitiu que Satanás ten­ Qualquer que tenha sido a causa, o Se­
tasse a Davi, a fim de realizar os propósitos nhor se desagradou (1 Cr 21:7), mas per­
que tinha em mente. Satanás, sem dúvida, mitiu que Joabe e seus capitães passassem
fez oposição ao povo de Deus ao longo da os nove meses e vinte dias seguintes con­
história do Antigo Testamento, mas esse é tando os israelitas com vinte anos ou mais
um de quatro casos, no Antigo Testamento, e aptos para o serviço militar. Por vezes, o
em que Satanás é mencionado de modo maior julgamento de Deus é simplesmente
específico e visto trabalhando abertamente. permitir que façamos as coisas à nossa ma­
As outras três ocasiões são a tentação de neira. Os recenseadores partiram de Jeru­
Eva (Gn 3), o ataque a Jó (Jó 1 - 2) e a acusa­ salém, viajaram para o leste, atravessando
ção ao sumo sacerdote Josué (Zc 3).6 o Jordão, e começaram a contagem em
Um rei orgulhoso (w. 1-9; 1 C r 21:1-6). Aroer, nas vizinhanças do mar Morto. Des­
Não havia nada de ilegal em realizar um locaram-se para o norte por Gade e Gileade
censo, desde que fosse feito de acordo com até a fronteira de Israel, no extremo norte,
as regras estabelecidas em Êxodo 30:11-16 onde Davi havia conquistado território e ex­
(ver também Nm 3:40-51). O meio siclo re­ pandido seu reino (2 Sm 8). Foram, então,
cebido no censo era usado para pagar as para o oeste, até Tiro e Sidom e depois para
contas do santuário de Deus (Êx 38:25-28). o sul até Berseba, em Judá, a cidade fron­
Como bom cidadão judeu, Jesus pagou esse teiriça mais distante em Israel. De Berseba
imposto do templo (Mt 17:24-27), mesmo voltaram a Jerusalém, mas não contaram os
2 S A M U EL 23 - 24 379

levitas (isentos do serviço militar; Nm 1:49; tratam os culpados de maneira distinta (Dt
2:33) nem os homens de Benjamim. O 19:1-13; Êx 21:12-14). O censo foi uma re­
tabernáculo situava-se em Gibeão, na tribo belião intencional, e Davi pecou deliberada
de Benjamim (1 Cr 16:39, 40; 21:29), e é e conscientemente. Além disso, Deus deu a
possível que Joabe tenha considerado im­ Davi mais de nove meses para se arrepen­
prudente invadir o território sagrado numa der, mas o rei recusou-se a ceder. Em diver­
missão pecaminosa como aquela. De qual­ sas cenas da história de Davi, Joabe não é
quer modo, Saul era de Benjamim, e ainda retratado como um homem piedoso, mas
havia vários bolsões de resistência na tribo. até mesmo Joabe e seus oficiais se opuse­
A tribo de Benjamim era próxima demais de ram a esse projeto. Davi deveria ter dado
Jerusalém, e Joabe não queria correr qual­ ouvidos ao conselho deles, mas estava de­
quer risco. O total incompleto de homens terminado a realizar o censo.
foi de um milhão e trezentos mil.7 Em sua graça, Deus perdoa nossos pe­
Um rei culpado (vv. 10-14; 1 Cr 21:7­ cados quando os confessamos (1 Jo 1:9),
13). Ao perceber sua insensatez em levar a mas, em seu justo governo, permite que so­
cabo tal plano, Davi confessou seu pecado framos as conseqüências. Nesse caso, o
e buscou ao Senhor. Pelo menos seis vezes Senhor concedeu a Davi até mesmo o privi­
nas Escrituras, vemos Davi confessando: "pe­ légio de escolher as conseqüências. Isso
quei" (2 Sm 12:13; 24:10, 17; SI 41:4 e 51:4; porque a desobediência de Davi foi um pe­
1 Cr 21:8). Ao confessar seu pecado de adul­ cado consciente, uma escolha deliberada da
tério e homicídio, Davi declarou: "Pequei parte do rei, de modo que Deus permitiu
contra o S enh o r ", mas ao confessar seu pe­ que fizesse outra escolha e determinasse o
cado de contar o povo, disse: "Muito pequei castigo. Gade8 deu três escolhas ao rei e dis­
no que fiz" (grifo meu). A maioria de nós se-lhe para refletir sobre elas, tomar uma
considera o pecado de Davi em relação a decisão e dar sua resposta quando o profe­
Bate-Seba muito mais grave e insensato do ta voltasse.
que o pecado da contagem do povo, mas Entre uma visita e outra do profeta, Davi
Davi percebeu a enormidade do que ha­ deve ter buscado o Senhor, pois Deus dimi­
via feito. O pecado de Davi com Bate-Seba nuiu o período da fome de sete para três
custou a vida de quatro filhos de Davi (o anos, o que explica a aparente discrepância
bebê, Amnom, Absalão e Adonias) e tam­ entre 2 Samuel 24:13 e 1 Crônicas 21:12.
bém a vida de Urias. Porém, depois do cen­ Em sua misericórdia, Deus abreviou os dias
so, Deus enviou uma praga que tirou a vida de sofrimento para seu povo escolhido (Mt
de setenta mil pessoas. O Senhor deve ter 24:22). Os três castigos são citados na alian­
concordado com Davi que, de fato, ele ha­ ça de Deus com Israel (Dt 28), de modo
via pecado muito. que Davi não deve ter se surpreendido: fome
O pecado de Davi com Bate-Seba foi um - 28:23, 24, 38-40; derrota militar - 28:25,
pecado da carne, de ceder à lascívia numa 26, 41-48 e peste - 28:21, 22, 27, 28, 35,
tarde de ócio (2 Sm 11:2; Gl 5:19), mas o 60, 61.9 Na lei de Israel, o pecado involun­
censo foi um pecado do espírito (ver 2 Co tário do sumo sacerdote equivalia ao peca­
7:1), um ato deliberado de rebelião contra do de toda a congregação (Lv 4:1-3,13,14),
Deus. Foi motivado pelo orgulho, e o orgu­ logo, as penas aplicadas a um rei que havia
lho encontra-se no topo da lista de pecados pecado voluntariamente deveriam ser mui­
que Deus abomina (Pv 6:16, 17). "O orgu­ to mais pesadas! Conhecendo a misericór­
lho é o solo em que crescem todos os ou­ dia de Deus, Davi foi sábio ao escolher a
tros pecados", escreveu William Barclay, "e peste como castigo.
a fonte de todas as outras transgressões". Um rei arrependido (vv. 15-25; 1 Cr
Tanto as Escrituras quanto a lei civil fazem 21:14-30). A peste começou no dia seguin­
distinção entre pecados considerados de te pela manhã e continuou no decorrer dos
paixão e pecados deliberados de rebelião e três dias determinados, quando o Anjo de
380 2 S A M U EL 23 - 24

julgamento terminou seu trabalho em Jeru­ 24:24; 1 Cr 21:25). Quando o sacerdote


salém, da mesma forma como Joabe e seus ofereceu os sacrifícios, Deus enviou fogo dos
homens haviam feito (v. 8). O coração de céus para consumi-los, indicando que havia
pastor de Davi se quebrantou sob o peso aceitado a oferta (1 Cr 21:26; Lv 9:24).
do julgamento, e ele suplicou ao Senhor que Sabendo que o rei poderia muito bem
o castigasse no lugar do povo. Que motivo comprar sua propriedade, por que Ornã es­
Deus teria para matar setenta mil homens e, tava tão ansioso para entregá-la de graça a
ao mesmo tempo, preservar a vida de Davi? Davi? Ou será que sua oferta foi apenas
Devemos observar que, de acordo com 2 Sa­ outro caso da tradicional cortesia do Orien­
muel 24:1, Deus estava irado com Israel e te na arte da barganha? (ver Gn 23). Talvez
não com Davi, de modo que deveria estar Ornã se lembrasse do que havia acontecido
castigando o povo por algum pecado que aos descendentes de Saul por causa daqui­
havia cometido. Alguns estudiosos sugerem lo que Saul havia feito aos gibeonitas (2 Sm
que a praga tirou a vida dos israelitas que 21:1-14) e não quisesse colocar em perigo
seguiram Absalão em sua rebelião e que a vida de seus filhos (1 Cr 21:20).
rejeitaram Davi como seu rei. E uma possibi­ A terra que Davi havia comprado não era
lidade, mas o texto não a confirma. uma propriedade qualquer, pois naquele lo­
Deus permitiu que Davi visse o Anjo de cal Abraão havia colocado o filho, Isaque,
julgamento pairando sobre Jerusalém, pró­ sobre o altar (Gn 22), e, nele, Salomão cons­
ximo à eira do jebuseu Araúna (Ornã). Os truiu o templo (1 Cr 22:1; 2 Cr 3:1). Depois
jebuseus foram os primeiros habitantes de que a praga cessou, Davi consagrou o local
Jerusalém, de modo que Ornã havia se su­ ao Senhor (Lv 27:20, 21) e o usou como lu­
jeitado ao governo de Davi e se tornado um gar de sacrifício e adoração. O altar e o
cidadão respeitável. A passagem não diz se tabernáculo ficavam em Gibeão, mas Deus
Davi ouviu a ordem de Deus para que o permitiu que Davi adorasse em Jerusalém. A
Anjo cessasse a praga, mas Davi sabia que terra foi santificada e, um dia, se tornaria o
Deus era misericordioso e bondoso, de templo de Deus. Davi anunciou: "Aqui, se
modo que pediu misericórdia pelo "rebanho levantará a Casa do S enhor Deus e o altar do
do seu pastoreio" (SI 100:3). Os anciãos es­ holocausto para Israel" (1 Cr 22:1); a partir
tavam com Davi (1 Cr 21:16) e o acompanha­ de então, tiveram início os preparativos para
ram, prostrando-se com o rosto em terra em que Salomão construísse o templo.
contrição humilde e adoração. Foi o peca­ Se alguém lhe pedisse para citar os dois
do de Davi que desencadeou a crise, e é pecados mais graves de Davi, é bem prová­
possível que esses líderes tenham percebi­ vel que respondesse: "o adultério com Bate-
do que a nação também havia pecado e Seba e a contagem do povo", e teria razão.
merecia sentir a disciplina de Deus. Porém, partindo desses dois pecados graves,
O profeta Gade voltou a aparecer, des­ Deus edificou um templo! Bate-Seba deu à
sa vez com uma mensagem de esperança. luz Salomão, a quem Deus escolheu como
Deus deveria construir um altar na eira de sucessor de Davi ao trono. Na propriedade
Ornã e oferecer sacrifícios ao Senhor naque­ que Davi comprou e onde ergueu o altar,
le local, e a praga cessaria. Como rei, Davi Salomão construiu o templo, consagrando-
poderia ter tomado posse da propriedade o para a glória de Deus. O que Deus fez por
(1 Sm 8:14) ou tê-la pedido emprestada, mas Davi certamente não é pretexto para pecar
insistiu em comprá-la. Davi sabia do alto pre­ (Rm 6:1, 2), pois Davi pagou caro por esses
ço do pecado e se recusou a dar a Deus pecados. Porém, conhecer o que Deus fez
algo que não lhe havia custado coisa algu­ por Davi serve de estímulo para buscarmos
ma. Por cinqüenta siclos de prata, comprou ao Senhor e confiarmos em sua graça quan­
os bois para os sacrifícios, usando seus jugos do lhe desobedecemos. "Mas onde abun­
de madeira como lenha e, por seiscentos dou o pecado, superabundou a graça" (Rm
siclos de ouro, adquiriu toda a eira (2 Sm 5:20). Que Deus misericordioso servimos!
2 SA M U EL 23 - 24 381

1. No Antigo Testamento, Deus considerava os governantes de Israel pastores, o que explica passagens como Jeremias 10:21,

12:10, 23:1-8, 25:36; Ezequiel 34:1-18; Zacarias 10:2, 11:15-17.

2. 2 Samuel 8:13 dá crédito a Davi pela grande vitória contra os edomitas, enquanto 1 Crônicas 18:12 atribui a vitória a Abisai.

O sobrescrito do Salmo 60 afirma que Joabe também participou desse acontecimento. É bem provável que Davi estivesse no

comando e que Joabe e seu irmão, Abisai, tenham liderado o exército no campo de batalha. Naquela época, era costume o

rei receber crédito por vitórias como essa (ver 2 Sm 12:26-31).

3. Para um excelente quadro comparativo dos valentes de Davi, ver W a lv o o r d , John; Zuck, Roy. (Orgs.) The Bible Knowledge

Commentary, Victor. V. Antigo Testamento, pp. 478, 479.


4. Alguns estudiosos acreditam que os três homens que trouxeram água do poço de Belém foram aqueles cujos nomes são

citados nos versículos 8 a 12, mas, ao que parece, o versículo 13 indica que eram outros três homens, parte dos "trinta".

5. As duas expressões "os três" e"os trinta" são encontradas várias vezes nesses capítulos. Para "os três", ver os versículos 9,13,

16-19, 22, 23; para "os trinta" ver versículos 13, 23, 24. Em 1 Crônicas 11, "os três" são mencionados nos versículos 12, 15,

18-21, 24, 25; e "os trinta" nos versículos 15, 25 e 42.

6. Para um estudo dessas quatro aparições de Satanás e de sua aplicação para os cristãos hoje, ver minha obra, The Strategy of

Satan [A Estratégia de Satanás] (Tyndale House).


7. 1 Crônicas 21:5 registra 1.100.000 homens, mas é preciso lembrar que Joabe não completou o censo (1 Cr 27:23, 24), e

valores diferentes foram registrados em ocasiões distintas ao longo dos nove meses de levantamento. Observar, ainda, que

2 Samuel 24:9 especifica "oitocentos mil homens de guerra", ou seja, um exército permanente com experiência, enquanto

outros trezentos mil homens tinham idade para combater, mas não possuíam experiência de combate. Isso nos dá o total de

1.100.000 homens registrado em 1 Crônicas 21:5.

8. O profeta Gade aparece pela primeira vez nas Escrituras depois que Davi fugiu de Saul (1 Sm 22:5). É possível que fosse um

especialista em liturgia israelita, uma vez que ajudou Davi a organizar os levitas para sua participação na adoração no templo.

Também manteve um registro oficial dos acontecimentos do reinado de Davi (1 Cr 29:29).

9. Em mais de uma ocasião, Deus enviou pragas sobre Israel para castigar seu povo (Nm 11:31 -34; 14:36-38; 16:46*50; 21:4­

9; 26:9, 10). É evidente que essa medida estava de acordo com o que havia sido estipulado em sua aliança, a qual o povo

havia transgredido.
13 depois do cativeiro na Babilônia (ver os li­
vros de Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias).
Essas pessoas corajosas tiveram de recons­
truir o templo e de organizar seu ministério,
O Leg a d o de D avi e, para elas, ler estes capítulos lembraria que
estavam realizando a obra de Deus. O Se­
1 Crônicas 22 - 29 nhor deu cada detalhe do primeiro templo
e de seu ministério a Davi, o qual, por sua
vez, transmitiu as instruções a Salomão. Es­
tas "listas de nomes" ajudaram Zorobabel e
o sumo sacerdote Josué a examinar as cre­
denciais dos que desejavam servir no templo
avi "[serviu] à sua própria geração, con­
D
(Ed 2:59-64) e recusar os não qualificados.
forme o desígnio de Deus" (At 13:36). Estes capítulos serviram de ânimo aos
Quem serve à sua geração fielmente, tam­ judeus em seus trabalhos séculos atrás e
bém serve às gerações futuras. "Aquele, po­ também podem nos animar hoje em dia na
rém, que faz a vontade de Deus permanece edificação da Igreja (Ef 2:19-22). Ao ler 1 Co-
eternamente" (1 Jo 2:17). O legado de Davi ríntios 3:9-23 e comparar essa passagem
enriqueceu o povo de Deus, Israel, durante com 1 Crônicas 22, 28 e 29, vemos parale­
séculos. Davi não apenas providenciou todo los que devem nos estimular a edificar a
o necessário para a construção do templo, Igreja da forma que a Palavra de Deus or­
como também escreveu cânticos e criou dena.1 Davi sabia que o templo de Deus
instrumentos musicais para serem usados deveria ser construído com ouro, prata e
nos cultos de adoração (1 Cr 23:5). O mais pedras preciosas (22:14; 29:1-5), e Paulo
importante, porém, é que o Salvador veio fez uma aplicação espiritual desses mate­
ao mundo por intermédio da família de Davi, riais para a igreja local. Representam a sa­
sendo "a Raiz e a Geração de Davi" (Ap bedoria de Deus, conforme apresentada na
22:16), de modo que Davi continua a enri­ Palavra de Deus (Pv 2:1-10; 3:13-15; 8:10­
quecer a Igreja nos dias de hoje. 21). A madeira, o feno e a palha podem ser
Quando ouvimos o nome de Davi, é reunidos na superfície, mas se desejamos
possível que a primeira coisa que nos vem à obter ouro, prata e pedras preciosas, pre­
mente seja Bate-Seba e os pecados do rei, cisam os cavar para encontrá-los. Não
mas esses capítulos apresentam Davi como edificamos a Igreja com idéias humanas
o construtor, um homem que arriscou a vida engenhosas nem imitando o mundo, mas sim
a fim de ajuntar riquezas para a construção pelo ensinamento e obediência às verdades
do templo para a glória de Deus. Ele é um preciosas da Palavra de Deus (ver 1 Co 3:18­
grande exemplo para os crisrãos de todas 20 para a opinião de Paulo sobre a sabedo­
as idades que desejam viver para Cristo de ria deste mundo).
modo produtivo e deixar um legado de bên­ Salomão não precisou desenhar os pro­
çãos espirituais. jetos do templo, pois o Senhor já os entre­
gara a Davi (1 Cr 28:11, 12). Quando lemos
1. M otivação espiritual a Palavra e oramos, o Senhor mostra seus
Alguns leitores da Bíblia, hoje, podem ser planos para cada igreja local. "Desenvolvei
tentados a passar rapidamente por estes ca­ a vossa salvação com temor e tremor" (Fp
pítulos, pular todas as listas de nomes e pros­ 2:12, 13). Essas palavras foram escritas para
seguir a leitura com o reinado de Salomão a igreja de Filipos, e, apesar de terem uma
em 2 Crônicas, mas isso seria um grande aplicação pessoal a cada cristão, sua princi­
erro. Pense no ânimo e na orientação que pal ênfase é sobre o ministério da congrega­
estes capítulos devem ter oferecido ao re­ ção em caráter coletivo. Alguns líderes da
manescente judeu que voltou a Jerusalém igreja local vivem freqüentando seminários
2 SA M U E L 383

e palestras na tentativa de aprender como O local, os materiais e os trabalhado­


edificar a igreja, quando, na verdade, é pro­ res (vv. 1-4). Não se sabe, ao certo, quando
vável que devessem ficar em casa, chamar a o Senhor começou a transmitir a Davi os
igreja para orar e buscar a Deus em sua Pa­ projetos para o templo e para seus funcio­
lavra. Deus tem planos diferentes para cada nários, mas ao que parece, a compra da
igreja, e não devemos imitar uns aos outros propriedade de Ornã foi um sinal para Davi
cegamente. entrar em ação. Quando Deus enviou fogo
O templo foi construído para mostrar a do céu para consumir os sacrifícios de Davi
glória de Deus, e nossa tarefa na igreja local (21:26), o rei soube que seus pecados ha­
é glorificar a Deus (1 Co 10:31; 14:25). viam sido perdoados e que se encontrava
Quando Salomão consagrou o templo, a novamente em comunhão com o Senhor.
glória de Deus foi habitar naquele local Porém, Davi também se deu conta de que
(1 Rs 8:6-11); mas quando Israel pecou, a seu altar havia se tornado um lugar muito
glória deixou o templo (Ez 10:4, 18, 19; especial para o Senhor e continuou a ofere­
1 1:22, 23). Ficamos imaginando quantas cer sacrifícios ali em vez de ir ao tabernáculo
igrejas locais cumprem toda a rotina de cul­ em Gibeão. O Senhor lhe revelou que o
tos, domingo após domingo e, no entanto, monte Moriá era o local em que desejava
não têm sequer resquícios da glória de Deus. que o templo fosse construído. É possível
O templo deveria ser uma "Casa de Ora­ que Davi tenha escrito o Salmo 30 nessa
ção para todos os povos" (Is 56:7), mas os época, apesar de ainda não haver um edifí­
líderes religiosos transformaram-no num co­ cio para consagrar. Pela fé, consagrou ao
vil de salteadores (Mt 21:13; Lc 19:46; Jr Senhor a propriedade que havia comprado
7:11). O covil de salteadores é o lugar onde e o templo que, um dia, seria edificado so­
os ladrões vão se esconder depois de prati­ bre aquela terra.2
carem seus crimes, o que sugere que um Davi recrutou tanto israelitas quanto re­
culto pode ser um bom lugar para fingir sidentes estrangeiros (1 Rs 5:13-18) para
espiritualidade (1 Jo 1:5-10). Quantas igre­ ajudar na construção do templo. Essa divi­
jas são conhecidas por ter um ministério são do governo de Davi encontrava-se sob
eficaz de oração? Podem ser casas de mú­ a responsabilidade de Adorão (2 Sm 20:24),
sica, de ensino e até mesmo de atividades também chamado de Adonirão (1 Rs 4:6).3
sociais, mas será que são casas de oração? Os trinta mil trabalhadores israelitas corta­
O templo foi construído, e Deus o hon­ vam madeira no Líbano durante um mês e,
rou com sua presença, pois os líderes e o depois, voltavam para casa por dois meses,
povo de Israel deram o melhor de si ao Se­ enquanto os cento e cinqüenta mil traba­
nhor, sacrificaram e seguiram suas instruções. lhadores "estrangeiros" cortavam e trans­
Trata-se de um bom exemplo a seguir hoje portavam pedaços enormes de pedra dos
em dia. Somos privilegiados em ajudar na montes, sob a supervisão de contramestres
edificação da igreja, e nosso motivo deve ser israelitas (1 Rs 5:13-18; ver também 9:15­
tão-somente a glória de Deus. 19; 2 Cr 2:17, 18). A presença de gentios
trabalhando lado a lado com israelitas mos­
2. O CUIDADO NOS PREPARATIVOS tra que o templo era, de fato, uma casa de
(1 C r 22:1-19) oração para todas as nações. Não devemos
O Senhor não permitiu que Davi construís­ imaginar que os estrangeiros eram tratados
se o templo, mas honrou os preparativos que como escravos, pois a lei de Moisés proibia
fez para que seu filho, Salomão, cumprisse claramente esse tipo de prática (Êx 22:21;
essa tarefa. De acordo com um antigo dita­ 23:9; Lv 19:33).
do: "O que é bem começado já está meio Davi passou anos ajuntando materiais
acabado", e Davi cuidou de preparar Salo­ para o templo, sendo que seu valor total
mão, o povo e os materiais para esse grande era incalculável. Muita coisa veio dos des­
projeto (ver os vv. 3, 5 e 14). pojos das batalhas que Davi lutou e venceu
384 2 SA M U E L

(18:9-11; 26:26-28). Davi, o guerreiro, havia sucessor, Josué (Dt 31:5-8, 23), e o Senhor
derrotado os inimigos de Israel e tomado sua repetiu essas palavras a Josué depois da
riqueza para que seu filho, Salomão, tivesse morte de Moisés (Js 1:6, 9). Moisés e Josué
a paz e as provisões necessárias para cons­ foram homens fiéis; Deus os conduziu en­
truir a casa de Deus. quanto atravessavam todas as provações,
Salomão, o construtor (w. 5-16). Alguns capacitando-os a completar seu trabalho, e
cronologistas bíblicos acreditam que Davi faria o mesmo por Salomão.
estava com cerca de sessenta anos de idade O terceiro estímulo de Davi a seu filho
quando deu início ao programa de constru­ foi a enorme quantidade de riquezas que o
ção do templo, mas não sabemos quantos rei havia acumulado para o projeto, jun­
anos Salomão tinha na época. Davi disse que tamente com o grande número de traba­
seu filho ainda era "moço e tenro" (22:5; lhadores que recrutara (vv. 14-16). Parece
29:1), e depois de sua ascensão ao trono, incrível, mas o rei disse que havia ajuntado
Salomão referiu-se a si mesmo dizendo: "não 3.400 toneladas de ouro e 34.000 tonela­
passo de uma criança" (1 Rs 3:7). Isso expli­ das de prata e que havia tanto bronze e ferro
ca por que Davi admoestou e incentivou o que nem poderiam ser pesados. Pelo me­
filho, várias vezes, a obedecer ao Senhor e nos, Salomão não teria de passar o chapéu!
a terminar o trabalho que lhe havia sido de­ Os líderes de Israel (vv. 17-19). Davi or­
signado por Deus (22:6-16; 28:9,10, 20, 21). denou aos líderes que cooperassem com
Davi também admoestou seus líderes a in­ Salomão e que o ajudassem a completar o
centivar e ajudar o novo rei nesse grande projeto. Lembrou-os de que a paz e o des­
projeto. Davi desejava que tudo estivesse canso desfrutados então se deviam somente
preparado antes de sua morte, para que ao fato de Deus ter usado Davi para derro­
Salomão tivesse o que precisaria para cons­ tar os inimigos de Israel e expandir suas fron­
truir a casa de Deus. teiras (observe a menção do termo "paz"
Davi encorajou Salomão ao garantir-lhe nos w . 9 e 18 e também em 23:25). Uma
que o projeto do templo era da vontade de vez que o templo estava sendo construído
Deus, e, portanto, o Senhor o ajudaria a con­ para Deus, era imperativo que os líderes
cluí-lo (vv. 6-10). Deus havia capacitado seu buscassem ao Senhor e que mantivessem o
pai para lutar nas batalhas do Senhor e para coração em ordem diante dele. Davi havia
trazer paz para Israel, e era chegada a hora colocado seu trono em Israel e desejava que
de construir a casa de Deus (2 Sm 7:9). O a arca - o trono de Deus - também ficasse
Senhor havia dito a Davi que teria um filho lá. Sua única preocupação era que o nome
para levar a cabo essa tarefa (7:12-16; 1 Cr de Deus fosse glorificado.
17:11; ver Dt 12:8-14). Davi colocou a ênfa­
se sobre o fato de que o templo deveria ser 3. A O RGANIZAÇÃO DO TEMPLO
construído não para a glória do nome de (1 C r 23:1 - 26:32)
Davi nem de Salomão, mas sim para a glória Davi sabia que, a fim de Deus ser glorifica­
do nome do Senhor (vv. 7, 8, 10, 19). Davi do, também era preciso organizar e prepa­
queria certificar-se de que Salomão iria glo­ rar os ministros do templo. Muitas vezes, os
rificar o Senhor, não construir um monumen­ programas de construção das igrejas con­
to em honra a si mesmo. centram-se tanto nos aspectos financeiros e
Davi também encorajou o filho ao lem­ materiais que deixam de lado as questões
brá-lo da fidelidade de Deus (w. 11-13). Se espirituais e, assim, uma congregação após­
confiasse no Senhor e lhe obedecesse em tata e dividida reúne-se para consagrar o
tudo, o Senhor manteria Israel em paz e em novo edifício! Como administrador compe­
segurança e o capacitaria para completar o tente, Davi organizou os levitas (cap. 23), os
projeto (ver 28:7-9, 20). As palavras "sê for­ sacerdotes (cap. 24), os cantores do templo
te e corajoso, não temas, não te desalentes" (cap. 25) e os oficiais do templo (cap. 26).
nos lembram de Moisés encorajando seu Davi desejava ter certeza de que tudo na
2 SA M U E L 385

casa do Senhor seria feito "com decência e tomarem conta do santuário enquanto os
ordem" (1 Co 14:40). Davi e seus dois sa­ sacerdotes ministravam no altar não signifi­
cerdotes lançaram sortes para tomar essas ca que seu trabalho era menos importante
decisões (24:5, 6, 31; 25:8; 26:13, 14, 16). para o ministério do Senhor. Cada servo era
Foi esse mesmo processo que Josué usou importante para Deus, e cada ministério era
quando deu às tribos sua herança na Terra necessário.
Prometida (Js 14:2; 23:4). Davi não apenas organizou os músicos
No entanto, a organização não era um do santuário, mas também lhes forneceu
fim em si, pois essas pessoas foram orga­ instrumentos musicais adequados para usar
nizadas para servir. A expressão "para o no louvor ao Senhor (v. 5; 2 Cr 29:25-27;
ministério da Casa do S en h o r " ( ou termos Am 6:5). Nada do que os levitas e sacer­
semelhantes) é usada várias vezes nestes dotes faziam no templo foi deixado ao en­
capítulos, a fim de nos lembrar de que o cargo do acaso ou da invenção humana;
ministério é a principal responsabilidade do antes, foi tudo ordenado por Deus. Nadabe
servo do Senhor na casa de Deus (ver 23:24, e Abiú, os filhos de Arão, o sumo sacerdote
26, 28, 32; 25:1, 6, 8, 30; 28:13, 14, 20, 21;(24:1, 2), foram mortos pelo Senhor por de­
29:5, 7; 2 Cr 31:16, 17). Uma coisa é preen­ senvolverem sua própria forma de adoração
cher um cargo, mas outra bem diferente é (Lv 10).
usar esse cargo para servir ao Senhor e a Os deveres levíticos são apresentados
seu povo. nos versículos 24 a 32. Os israelitas estavam
Os levitas (23:1-32; ver também o cap. desfrutando descanso em sua terra e haviam
6). O autor de Crônicas não registra o con­ deixado de ser um povo nômade, de modo
flito familiar ocorrido quando Salomão subiu que os levitas não precisavam mais levar as
ao trono (1 Rs 1 - 2), mas o versículo 1 indi­ várias partes do tabernáculo de um lugar
ca uma primeira nomeação e 29:22, outra para o outro (ver Nm 4). A construção do
depois desta. Porém, é possível que o ver­ templo significava que os levitas seriam ne­
sículo 1 signifique, simplesmente, que Davi cessários para novas incumbências. Uma de
anunciou Salomão seu sucessor, como em suas tarefas seria manter o templo limpo e
28:4, 5, enquanto 29:22 descreve a coroa­ arrumado, certificando-se de que os arredo­
ção propriamente dita. (Temos a impressão res do templo fossem conservados cerimo-
de que a coroação de Salomão descrita em nialmente puros. Também deveriam cuidar
1 Reis 1 foi preparada às pressas.) A ascen­ que houvesse farinha suficiente para as ofer­
são pública e formal de Salomão ao trono é tas. Em todos os sacrifícios diários, mensais
descrita em 29:21-25. e anuais realizados, o coral de levitas deve­
Os levitas ajudavam os sacerdotes no ria oferecer louvores ao Senhor.
ministério e, de acordo com a lei, deveriam Os sacerdotes (24:1-31). Era importante
ter, no mínimo, trinta anos de idade (v. 3; que os sacerdotes fossem, de fato, descen­
Nm 4:3; ver também Nm 8:24). Posterior­ dentes de Arão. No tempo de Davi, havia
mente, esse limite foi antecipado para vinte dois sumos sacerdotes, Zadoque, um des­
e dois anos de idade (v. 24). Os trinta e oito cendente de Arão por Eleazar, e Aimeleque,
mil levitas foram divididos em quatro gru­ filho de Abiatar, da linhagem de Itamar. Abia-
pos: cada um com um ministério específi­ tar foi amigo e sacerdote de Davi durante
co: vinte e quatro mil levitas para ajudar os os anos de exílio (1 Sm 20:20ss) e também
sacerdotes no santuário, seis mil como "ofi­ durante a rebelião de Absalão (2 Sm 15:24­
ciais e juizes" (ver 26:1-32), quatro mil como 29). Infelizmente, Abiatar não foi leal a Salo­
"porteiros" (ver 26:1-19) e quatro mil como mão e tomou o partido de Adonias em sua
cantores (ver 25:1-31). Havia um templo e campanha pelo trono, de modo que Salo­
um sumo sacerdote, mas uma diversidade mão teve de expulsar Abiatar de Jerusalém
de dons e de ministérios não muito diferen­ (1 Rs 2:22-27). Abiatar era da linhagem de Eli,
tes da Igreja de hoje. O fato de os levitas rejeitada e julgada por Deus (1 Sm 2:30-33;
386 2 SA M U E L

ver também 2 Sm 22:26, 27). As vinte e qua­ foi chamada de profetisa (Êx 15:20). O radi­
tro famílias (clãs) de sacerdotes foram desig­ cal do termo hebraico naba significa "bor­
nadas por sortes para servir no santuário em bulhar, efervescer", referindo-se ao fervor e
épocas definidas e, no restante do tempo, empolgação do profeta ao proclamar a
deveriam trabalhar nas cidades levíticas mensagem de Deus. Outros dizem que sua
instruindo o povo. Esse procedimento con­ origem é um radical árabe que significa
tinuava em vigor quando Zacarias serviu no "anunciar". O importante é que os homens
templo (Lc 1:5-9). Zacarias era do clã de que dirigiram a adoração no santuário de
Abias (24:10). Israel não eram necessariamente profetas no
Os músicos (25:1-31). Além do toque sentido técnico da palavra, mas que eles e
cerimonial das trombetas (Nm 10), a lei de seus cantores proclamavam a Palavra (a men­
Moisés não faz qualquer outra menção de sagem de Deus) com entusiasmo e alegria.
música com relação à adoração em Israel, Os oficiais do templo (26:1-32). Esses
e, no entanto, esse capítulo descreve uma oficiais incluíam os porteiros (vv. 1-19), os
organização complexa de vinte e quatro tesoureiros (vv. 20-28) e outros oficiais es­
grupos de cantores e de músicos. Davi foi palhados por locais fora de Jerusalém (vv.
um escritor de salmos e um músico talentoso 29-32). Os porteiros foram nomeados para
(2 Sm 23:1, 2; 1 Sm 16:18), e é provável que guardar as portas do templo, ficando quatro
a adoração musical no santuário tenha se guardas nas portas Norte e Sul e seis nas
desenvolvido sob sua orientação (v. 6), le­ portas Leste e Oeste (vv. 17, 18). Dois guar­
vando a inovações aprovadas pelo Senhor das cuidavam dos depósitos; também havia
(2 Cr 29:25). Essa passagem menciona har­ guardas fora da área do templo. Certos de­
pas, alaúdes e címbalos (v. 1); outros textos talhes sobre a área do templo não se encon­
fazem menção de trombetas (1 Cr 13:8; tram registrados nas Escrituras, o que torna
15:24, 28; 2 Cr 5:13; 20:28) e também de difícil apresentar uma descrição exata.4 Ao
corais (1 Cr 15:27). que parece, os guardas observavam o povo
Três levitas de grande talento foram que entrava e saía para se certificarem de
incumbidos da música instrumental e dos que ninguém profanava o templo nem se
cânticos nos cultos de adoração. Asafe comportava de modo a envergonhar o san­
escreveu pelo menos vinte salmos (50, 73 tuário do Senhor.
- 83) e tocava címbalos (16:5). Hemã tam­ Os tesoureiros (w. 20-28) guardavam os
bém era chamado de "vidente do rei' (v. 5), dois tesouros do templo, um para as ofertas
o que indica que tinha o dom especial de gerais e outro para as "coisas consagradas"
discernir a vontade de Deus. O Senhor pro­ recebidas do povo, especialmente despojos
meteu dar a Hemã uma família numerosa de guerra (vv. 20-28). (Ver 2 Rs 12:4-16.) Saul
(v. 5), e todos os seus filhos foram músicos. e Davi contribuíram para esse tesouro, como
O nome de Jedutum é relacionado a Judá também o fizeram outros líderes, como o
e significa "louvor", um bom nome para um profeta Samuel e os generais Abner e Joabe.
regente de coral. Jedutum também é asso­ O terceiro grupo de oficiais do templo
ciado aos Salmos 39, 62 e 77. (vv. 29-32) era constituído de "oficiais e
O verbo "profetizar" é usado duas ve­ juizes" nomeados para tarefas fora do tem­
zes nos versículos 1 a 3 para descrever o plo, até mesmo a oeste do Jordão. Manti­
ministério de Asafe, Hemã e Jedutum. O ter­ nham o rei em contato com os assuntos das
mo normalmente se referia ao ministério de tribos de Rúben e Gade e da meia tribo de
profetas na declaração da Palavra de Deus. Manassés. Eram responsáveis, ainda, por
Costuma-se dizer que "os profetas eram manter essas tribos envolvidas em "todos os
proclamadores bem como prenunciadores". negócios de Deus" (v. 32), ou seja, todos os
Não apenas previam o futuro, mas também acontecimentos religiosos importantes de
falavam das necessidades presentes. Miriã Israel. Uma vez que ficavam separados das
dirigiu as mulheres no louvor ao Senhor e outras tribos, os israelitas da Transjordânia
2 SA M U EL 387

poderiam descuidar-se da observância das A menção das tribos e de seus líderes trou­
festas anuais ou mesmo dos sábados sema­ xe à memória o censo fatídico realizado por
nais. Isso explica por que esses oficiais fo­ Davi (21:1-17; 2 Sm 24). Essa informação
ram selecionados dentre os funcionários do adicional nos ajuda a entender por que os
templo. Além disso, é bem possível que fos­ números são diferentes nos dois relatos (24:9;
sem responsáveis pela coleta de impostos. 21:5): Joabe não terminou o censo, e nem
todos os números foram registrados.
4. A dministração militar Os administradores do rei (w. 25-31).
(1 C r 27:1-34) Havia, durante o reinado de Saul, um tipo
A fim de Salomão poder construir o templo, de estrutura tributária (1 Sm 17:25), mas esta
era necessário que Israel continuasse sendo não é mencionada nos registros do reinado
uma nação forte e que tivesse paz com os de Davi. No governo de Salomão, os impos­
vizinhos, pois o jovem Salomão não era um tos tornaram-se insuportáveis (1 Rs 4:7, 26-28;
gênio militar como o pai, Davi. Era preciso 12:1-24). Davi possuía fazendas, pomares,
organizar o exército, os líderes tribais, os vinhas e rebanhos de ovelhas e gado usa­
administradores e os conselheiros para ser­ dos para suprir as necessidades do palácio.
vir ao rei pessoalmente. Tinha depósitos para seus alimentos e, uma
Os capitães (vv. 1-15). O exército de vez que seus gostos não eram tão extrava­
Davi era constituído de duzentos e oitenta gantes quanto os de Salomão, aquilo que
e oito mil homens - o que não poderia ser Davi recebia do Senhor rendia muito mais.
considerado um exército permanente mui­ Os conselheiros do rei (vv. 32-34). Todo
to grande - composto de doze divisões de líder precisa de um grupo mais íntimo de
vinte e quatro mil homens cada, de modo pessoas para aconselhá-lo, obrigá-lo a exa­
que cada homem servia um mês por ano. minar as próprias decisões e motivações e
Porém, no caso de uma emergência mili­ ajudá-lo a buscar ao Senhor. Jônatas, tio de
tar, o exército todo poderia ser convoca­ Davi, é elogiado e, ao que parece, Jeiel era
do. Cada divisão militar mensal ficava sob o tutor dos filhos da família real. Aitofel ha­
o comando de um dos "valentes" de Davi via sido um amigo de confiança e conselhei­
relacionados em 1 Crônicas 11. Os doze ro sábio de Davi, mas se juntou a Absalão na
comandantes eram Jasobeão (1 Cr 27:2, 3; rebelião e cometeu suicídio quando Absalão
ver 11:11); Dodai (v. 4; ver 11:12); Benaia, rejeitou seu conselho (2 Sm 15:30, 31; 16:15
comandante da guarda pessoal de Davi (vv. - 17:23). Husai foi o homem cujo conselho
5, 6; ver 11:22-25); Asael, sobrinho de Davi Absalão aceitou, o que levou à derrota do
(v. 7; ver 11:26); Samute (v. 8; ver 11:27); exército rebelde. O substituto de Aitofel foi
Ira (v. 9; ver 11:28); Heles (v. 10; ver 11:27); "Joiada, filho de Benaia". É provável que esse
Sibecai (v. 11; ver 11:29); Abiezer (v. 12; Benaia seja filho do comandante da guarda
ver 11:28); Maarai (v. 13; ver 11:30); outro pessoal do rei, o sacerdote Benaia. O sacer­
Benaia (v. 14; ver 11:31) e Heldai (v. 15; dote Abiatar era um dos assessores de maior
ver 11:30). confiança do rei Davi (1 Sm 22:20-23) e, ape­
Os líderes tribais (vv. 16-24). Cada tri­ sar de Joabe e Davi não serem amigos che­
bo possuía um líder (Nm 1 - 2, 4) e era divi­ gados, Davi precisava do comandante do
dida em unidades menores (grupos de dez, exército dentro de seu círculo mais íntimo,
de cinqüenta, de cem e de mil; Êx 18:17­ nem que fosse apenas para saber o que ti­
23), e cada unidade tinha seu líder. Por al­ nha em mente. Nem sempre a prioridade de
gum motivo, as tribos de Gade e Aser não Joabe era servir aos interesses de Davi.
são mencionads nessa lista, mas a fim de
chegar ao total de doze, Levi é incluída com 5. C onsagração sincera
as tribos de José (Efraim e Manassés). O rei (1 C r 28:1 - 29:20)
poderia convocar doze homens e, por meio Não há estrutura e organização humana
deles, comunicar-se com todo o povo. capazes de substituir a consagração sincera
388 2 SA M U EL

ao Senhor. Davi estava prestes a sair de cena seguir, de modo geral, o padrão do taber­
e a ser sucedido por um filho inexperiente, náculo, o edifício construído por Salomão
e a construção do templo era uma tarefa era muito maior e mais complexo do que a
grande demais para qualquer pessoa ou gru­ construção de Moisés. Davi lembrou Salo­
po de pessoas. Sem a bênção do Senhor, mão de que esses projetos não eram ape­
não havia esperança alguma de sucesso para nas uma sugestão do Senhor, mas sim uma
o povo. Os líderes vêm e vão, mas o Senhor comissão divina. O Senhor também orde­
permanece, e é ao Senhor que devemos nou a organização dos sacerdotes e levitas.
agradar. Moisés teve de seguir fielmente o modelo
Davi desafia os líderes (28:1-8). Davi que Deus havia lhe dado no monte (Êx 25:9,
reuniu em Jerusalém os líderes citados nos 40; Hb 8:5), e Salomão deveria fazer o
capítulos anteriores e recapitulou para eles mesmo. O projeto do templo indicava a
a história de seu grande desejo de construir quantidade de material a ser usada para cada
o templo para o Senhor. É bom o povo sa­ utensílio e peça de mobília e para cada par­
ber o que se passa no coração de seu líder te da construção (vv. 13-19), e nada disso
e como Deus trabalhou na vida dele. Davi deveria ser alterado.
enfatizou que o Senhor é quem o havia es­ A segunda contribuição de Davi foi ou­
colhido, ungido e escolhido Salomão para tra palavra de estímulo para fortalecer a von­
ser seu sucessor. Lembrou aos líderes a alian­ tade e a fé de Salomão (v. 20). Assim como
ça que Deus, em sua graça, havia feito com Moisés encorajou Josué (Dt 31:6, 7), Davi
a casa de Davi e a sua responsabilidade em disse a Salomão que o Senhor jamais o aban­
obedecer à lei do Senhor. Se guardassem donaria e que ele poderia encontrar em
os termos da aliança e obedecessem a Deus, Deus toda a sabedoria e forças necessárias
ele cumpriria suas promessas e abençoaria para completar o projeto.5
a nação. Enquanto obedecessem aos termos A terceira contribuição que Salomão re­
da aliança de Deus, possuiriam a terra e des­ cebeu do pai foi um grupo de pessoas pre­
frutariam suas bênçãos. paradas para trabalhar com ele e para levar
Davi apresenta as responsabilidades a o projeto a cabo (v. 21). Vimos como Davi
Salomão (28:9, 10). Cabia a Salomão a gran­ organizou os diversos níveis de líderes, tan­
de responsabilidade de servir de exemplo e to civis quanto religiosos, de modo que pu­
de obedecer à lei do Senhor. Um "coração dessem trabalhar em harmonia e seguir o
íntegro" é o que não se encontra dividido e novo rei. Assim como o Senhor havia provi­
é inteiramente consagrado ao Senhor. E triste do trabalhadores capacitados para construir
que, em sua idade mais avançada, Salomão o tabernáculo (Êx 35:25-35; 36:1, 2), tam­
tenha se tornado um homem inconstante e bém forneceria os trabalhadores de que
começado a adorar ídolos, pois isso levou à Salomão precisava para construir o templo
disciplina de Deus e à divisão do reino. Mais de Jeová, uma promessa que o Senhor cum­
uma vez, Davi exortou Salomão a "ser for­ priu (2 Cr 2:13, 14). Além disso, todo o povo
te" (22:13), uma admoestação que repetiria daria ouvidos e obedeceria às ordens de seu
pela terceira vez antes do fim de seu discur­ novo rei.
so (v. 20). O Dr. Lee Roberson costuma di­ A quarta contribuição de Davi foi a pró­
zer que: "a ascensão e queda de todas as pria provisão de riquezas que havia ajunta­
coisas se deve à liderança". Se uma lideran­ do para a construção do templo (29:1-5). De
ça é fiel ao Senhor e confia nele, Deus lhe acordo com 22:14, os despojos das bata­
dá sucesso. lhas consagrados ao Senhor constituíam um
Davi transmite suas contribuições ao total de 3.400 toneladas de ouro e 34.000
projeto (28:11 — 29:9). A primeira contri­ toneladas de prata. Davi acrescentou, ain­
buição de Davi a Salomão foi um projeto, da, de seu próprio tesouro, mais de 100 to­
por escrito, do templo e de sua mobília e neladas de ouro e 235 toneladas de prata
utensílios (vv. 11-19). Apesar de o templo (v. 4). Isso significa que Davi forneceu 3.500
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toneladas de ouro e 34.235 toneladas de que adorem somente ao Senhor e que não
prata. Mas, em seguida, o rei instou seus líde­ transformem as riquezas no seu deus.
res a contribuírem com generosidade para Como qualquer pai temente a Deus, Davi
o "fundo de construção" (vv. 6-9), e eles for­ encerrou sua oração intercedendo pelo fi­
neceram 168 toneladas de ouro e depois lho, Salomão, para que fosse sempre obe­
mais 1.270 quilos do mesmo metal, 336 to­ diente àquilo que estava escrito na lei e que
neladas de prata, bem como 675 toneladas fosse bem-sucedido na construção do tem­
de bronze e 3.750 toneladas de ferro e tam­ plo para a glória de Deus. (No v. 19, o ter­
bém pedras preciosas. Essa oferta nos lem­ mo palácio" significa "qualquer estrutura
bra do "ouro, prata, pedras preciosas" (1 Co palaciana de grandes proporções".) Em se­
3:12) citados por Paulo. O mais extraordiná­ guida, convocou a congregação para louvar
rio com relação aos líderes e suas ofertas é ao Senhor, e o povo obedeceu, curvou-se e
que contribuíram de bom grado, e todos se até se prostrou com o rosto em terra em
"alegraram com grande júbilo" por esse pri­ sinal de submissão e de adoração. Que
vilégio! Dessa vez, nos lembramos das pala­ maneira extraordinária de dar início a um
vras de Paulo em 2 Coríntios 8:1-5 e 9:7. programa de construção!
Davi clama ao Senhor (29:10-21). Esta
oração magnífica inicia com o louvor e a 6. C eleb r a ç ã o aleg r e
adoração ao Senhor (w. 10-14). Deus aben­ (1 C r 29:21-25)
çoara Davi ricamente, de modo que o rei No dia seguinte, Davi ofereceu sacrifícios
abençoa a Deus com toda gratidão! Suas ao Senhor e um banquete a seus líderes.
palavras constituem um curso breve de teo­ Os holocaustos foram sacrificados a fim de
logia. Ele bendiz o Deus de Israel e reco­ expressar a consagração total do povo ao
nhece sua grandeza, poder, glória, vitória Senhor. Além disso, porém, Davi realizou
e majestade. Tudo pertence a Deus, e ele é ofertas pacíficas, e parte de cada sacrifício
soberano sobre todas as coisas! Seu nome foi usada para uma refeição de comunhão.
é grande e glorioso! Mas quem é Davi e seu Foi uma ocasião de grande alegria que che­
povo que possam ofertar tão generosamen­ gou ao auge com a coroação de Salomão.
te ao Senhor? Afinal, todas as coisas vêm Era extremamente importante que os re­
dele, e quando damos, apenas devolvemos presentantes de todo o Israel concordassem
ao Senhor aquilo que ele já nos deu em sua que Salomão era o rei escolhido por Deus;
graça. de outro modo, jamais teria sido capaz de
Em contraste com o Deus eterno, Davi liderá-los na construção do templo. Davi foi
declara que ele - o rei! - é como qualquer ungido por Samuel em particular (1 Sm
outro ser humano, um forasteiro e estran­ 16:13) e, depois, publicamente em He­
geiro na Terra. Deus é eterno, mas a vida brom em duas ocasiões (2 Sm 2:4; 5:3), de
humana é breve, e ninguém pode evitar a modo que, na verdade, foi ungido três ve­
hora inescapável da morte. (Nesta passagem, zes. Na mesma comemoração, Zadoque foi
Davi faz lembrar Moisés no Salmo 90.) Uma ungido sumo sacerdote, o que indica que
vez que todas as coisas vêm de Deus e que Abiatar foi colocado de lado. Posteriormen­
a vida é breve, o mais sábio a fazer é devol­ te, Abiatar mostrou-se um traidor, apoian­
ver ao Senhor aquilo que ele nos dá e inves­ do Adonias, e foi aposentado (1 Rs 2:26,
tir no que é eterno. 27, 35).
Davi garante ao Senhor que as ofertas O livro encerra com um tom melancóli­
vieram do fundo de seu coração e do cora­ co, ao registrar a morte do rei Davi. Como
ção de seu povo e foram entregues com ale­ diz um provérbio russo: "Até mesmo o maior
gria e sinceridade. O rei ora pedindo que dos reis deve receber seu repouso final com
seu povo tenha sempre um coração cheio a ajuda de uma pá". É verdade, mas há aque­
de generosidade, gratidão e alegria e que seja les que, mesmo de seu túmulo, glorificam o
sempre fiel a seu Deus. Em outras palavras, nome de Deus! Daquele dia em diante, Davi
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seria o parâmetro usado para medir todos Davi escreveu cânticos para os levitas
os reis de Israel (1 Rs 3:3; 15:5; 2 Rs 18:3; cantarem em sua adoração a Deus e tam­
22:2; 14:3; 15:3, 34; 16:2; 18:3; 20:3). bém lhes forneceu instrumentos musicais.
O legado de Davi é longo e rico. Ele Organizou o ministério no templo e ensi­
unificou a nação, deu ao povo paz em sua nou ao povo que a adoração a Deus era a
terra e ampliou as fronteiras do reino. Deus maior de todas as prioridades para a nação.
o escolheu para estabelecer a dinastia que, Antes de morrer, encorajou Salomão, desa­
a seu tempo, trouxe ao mundo Jesus, o Sal­ fiou os líderes e deu ao novo rei um povo
vador. Davi forneceu grande parte da rique­ unido, entusiasmado com a construção da
za usada para construir o templo, o filho Casa de Deus. Hoje, a vida de Davi serve
para construí-lo e o local onde o templo foi para nos ensinar tanto o que devemos co­
edificado. Deus deu a Davi o projeto do mo o que não devemos fazer. Os hinos de
templo, e Davi recrutou os trabalhadores Davi fazem parte de nossa leitura, medita­
para executá-lo. ção e cânticos.

1. Infelizmente, muitos pregadores bem-intencionados interpretam de maneira equivocada a passagem de 1 Coríntios 3:9-23 e

pregam sobre "a edificação de sua vida". É possível fazer tal aplicação, porém a interpretação fundamental está ligada à

edificação da igreja local. Para uma exposição dessa passagem, ver minha obra Be W/se (Victor).

2. Sem dúvida, esse salmo encaixa-se com as experiências de Davi descritas em 1 Samuel 24 e em 1 Crônicas 21. Seu orgulho
o levou a pecar {w . 6, 7), e a nação estava sob pena de morte. Porém, Deus respondeu a suas súplicas por livramento, e a ira

divina não se prolongou.

3. Adorão não era um homem benquisto. Depois da morte de Salomão, Roboão, filho do rei, subiu ao trono. Os israelitas

estavam cansados dos impostos de Salomão e de seus grandes programas de construção e apedrejaram Adorão até a morte

(1 Rs 12:18).

4. 1 Crônicas 26:18 costuma ser usado por pessoas que gostam de criticar as Escrituras: "N o átrio ao ocidente, quatro junto ao

caminho, dois junto ao átrio". A que se referem esses números? Vários estudiosos do hebraico acreditam que se tratam de

colunatas e que se referem a uma área a oeste do templo propriamente dito.

5. Permita-me fazer uma observação pessoal. Na década de 1950, quando pastoreava minha primeira igreja, o Senhor nos
orientou a iniciar um programa de construção. Não sou construtor e tenho dificuldade até para entender uma planta baixa.

Um dia, durante minha hora devocional, estava lendo a Bíblia quando me deparei com 1 Crônicas 28:20, e o Senhor me deu

essa passagem como uma promessa de sucesso, promessa esta que me ajudou a levar a cabo aquela empreitada.

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