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H istó r ic o s

W a rren W. W ie r sb e
C o m e n t á r io B íb lic o
E x p o sit iv o

Antigo Testamento
Volume II —Histórico

W arren W. W iersbe

T r a d u z id o p o r
S u s a n a E. K la sse n

1 * Edição
4 a Impressão

Geográfica
Santo André, SP - Brasil
2009
S u m á r io

J o s u é ....................................................................................07

J uízes....................................................................................89

Rute................................................................................... 172

1 Samuel.............................................................................199

2 Samuel / 1 Crônicas...................................................... 293

1 R eis ................................................................................391

2 Reis / 2 Crônicas........................................................... 491

Esdras................................................................................ 586

N eem ias .............................................................................. 614

E ster ...................................................................................689
1 S amuel

ESBOÇO 7. A derrota e a morte de Saul - 28; 31

Tema-chave: A instituição de um rei em Israel CONTEÚDO


Versículo-chave: 1 Samuel 12:22 1. "O S e n h o r dos Exércitos está
conosco" (1 Sm 1 - 3)................... 200
1.0 FRACASSO DO SACERDÓCIO 2. A derrota de Israel - A vitória de
1-7
- Deus(1 Sm 4 - 6).......................... 211
1. O nascimento de Samuel - 1:1 - 2:11 3. O povo pede um rei
2. O fracasso de Eli - 2:12-36 (1 Sm 7- 11)................................. 217
3. O chamado de Samuel - 3 4. Recapitulação e repreensão
4. O resgate da arca - 4 - 6 (1 Sm 12 - 13)............................... 227
5. O recomeço espiritual - 7 5. Um voto insensato e uma desculpa
esfarrapada (1 Sm 14 - 15)............ 234
II. O FRACASSO DO PRIM EIRO 6. Deus escolhe um rei
REI - 8 - 15 (1 Sm 16- 17)............................... 242
1. Israel pede um rei - 8 7. Um rei invejoso
2. Saul é escolhido rei - 9 - 10 (1 Sm 18- 19)............................... 250
3. As primeiras vitórias de Saul - 11 8. Davi no exílio
4. A nação renova a aliança - 12 (1 Sm 20-22)............................... 256
5. Saul perde o trono - 13 - 15 9. Davi, o libertador
(1 Sm 23 -24)............................... 265
III. O TREINAMENTO DO NOVO 10. Uma mulher sábia e um rei
REI - 16 - 31 insensato (1 Sm 25 - 26)............... 271
1. Davi é ungido - 16:1-13 11. Morando com o inimigo
2. Davi serve a Saul - 16:14-23 (1 Sm 27:1 - 28:2; 29 - 30)........... 278
3. Davi mata a Colias - 17 12. O rei está morto
4. Saul inveja a Davi - 18 - 19 (1 Sm 28:3-25; 31; 1 Cr 10)............ 283
5. O amor de Davi e Jônatas - 20 13. Quatro sucessos e três fracassos
6. Davi é forçado a se exilar - 21 - 27,29 - 30 (Recapitulação de 1 Samuel).......... 288
pecados e de fracassos do povo de Deus,
1 mas também lembram que Deus está assen­
tado no trono e, quando não lhe é permiti­
do governar, ele prevalece sobre todas as
" O S en h o r d o s coisas. Ele é o S e n h o r dos Exércitos, e seus
propósitos serão cumpridos.
E x ér c it o s E stá
C o n o sco " 1. D eu s d ir ig e a h ist ó r ia
"Q ue são todas as histórias, senão Deus
1 S am uel 1 - 3 manifestando a si mesmo?", perguntou
Oliver Cromwell mais de três séculos atrás;
mas nem todos concordam com ele. O his­

U
m dos títulos mais temíveis de nosso toriador inglês Edward Cibbon, que escre­
grande Deus é "S e n h o r dos Exércitos". veu Decline and Fali of the Roman Empire,
Esse título é usado quase trezentas vezes chamou a história de "pouco mais que um
nas Escrituras e é encontrado pela primeira registro dos crimes, da insensatez e dos in­
vez em 1 Samuel 1:3. A designação "S e n h o r fortúnios da humanidade", e seu contempo­
dos Exércitos" descreve Deus como Senhor râneo, Lord Chersterfield, chamou a história
soberano das hostes de estrelas (Is 40:26), de "um amontoado confuso de fatos". Mas
das hostes angelicais (SI 103:20, 21) e dos o Dr. A. T. Pierson, pregador e estadista
exércitos de Israel (Êx 12:41; SI 46:7, 11). missionário do século passado, expressou
Em seu hino Castelo Forte, Martinho Lutero muito bem a realidade ao dizer que "nossa
refere-se ao Senhor como o Deus que luta e história é a história de Deus". Trata-se de algo
vence a batalha. particularmente verdadeiro no que se refere
à história registrada na Bíblia, pois nela te­
Nossa força nada faz, estamos, sim, mos um relato inspirado da mão de Deus
perdidos; operando nos assuntos da humanidade, de
mas nosso Deus socorro traz e somos modo a trazer ao mundo o Salvador.
protegidos. No Livro de Juizes, "não havia rei em
Defende-nos Jesus, o que venceu na Israel", e o texto descreve uma nação domi­
cruz, Senhor dos nada pela anarquia. "Naqueles dias, não
altos céus; e, sendo o próprio Deus, havia rei em Israel; cada qual fazia o que
triunfa na batalha. achava mais reto" (Jz 17:6; ver também Jz
18:1; 19:1; 21:25). Israel não era mais um
A história do povo de Israel, conforme esta povo unido, como no tempo de Josué, mas
se encontra registrada na Bíblia, é uma de­ sim uma confederação informal de tribos
monstração viva de que o Senhor, de fato, com juizes designados por Deus governan­
triunfa na batalha e de que é soberano so­ do sobre áreas distantes umas das outras.
bre todas as coisas. As pessoas e os acon­ Não havia um exército permanente nem lí­
tecimentos registrados nas Escrituras são deres militares fixos. Homens de diferentes
parte daquilo que os teólogos chamam de tribos se voluntariavam para defender a ter­
"história da salvação", o plano bondoso de ra quando eram chamados para a batalha.
Deus de enviar ao mundo o Salvador para No entanto, é durante esses dias som­
morrer pelos pecadores. O Livro de Rute brios dos juizes que se desenrola a história
termina com o nome de Davi (Rt 4:22), e registrada no Livro de Rute. Boaz casou-se
1 Samuel conta a história da preparação com Rute, a moabita, e de sua união nas­
bem-sucedida de Davi para reinar sobre ceu Obede, o pai de Jessé, que se tornou
Israel. Jesus Cristo, o "Filho de Davi", nas­ pai do rei Davi. Não havia rei em Israel, mas
ceu na família de Davi. Os livros de Samuel, Deus estava trabalhando de modo a pre­
Reis e Crônicas registram uma porção de parar o caminho para o seu servo escolhido
1 SAMUEL 1 - 3 201

(SI 78:56-72). Se Juizes é o livro no qual "não dia, vivemos um tempo de mudanças radi­
há rei", então 1 Samuel é o livro do "rei es­ cais em âmbito mundial, e a Igreja precisa
colhido pelos homens". O povo de Israel de líderes como Samuel, que ajudem o povo
pediu um rei, e Deus lhes deu Saul, da tribo de Deus a entender onde estão, quem são
de Benjamim, e o reinado de Saul terminou e o que são chamados a fazer.
em tremendo fracasso. Porém, o Senhor
havia preparado Davi para o trono, e 2 Sa­ 2. D eu s r es p o n d e a o r a ç õ e s
muel é o livro do "rei escolhido por Deus". (1 S m 1:1-28)
É impossível ler os registros do passado No tempo dos juizes, os israelitas viram-se
sem ver a mão do " S e n h o r dos Exércitos" numa situação crítica, pois lhes faltava uma
operando nos acontecimentos que chama­ liderança temente a Deus. O sacerdócio
mos de história. O Senhor é mencionado estava corrompido, o Senhor não se comu­
mais de sessenta vezes em 1 Samuel 1 - 3, nicava constantemente com seu povo (3:1)
pois ele é o ator principal desse drama. Os e a lei de Moisés era ignorada por toda a
seres humanos têm liberdade de tomar as terra. Como fez em várias outras ocasiões,
próprias decisões, sejam elas acertadas ou Deus começou a resolver essa situação en­
erradas, mas é Jeová, o Senhor da história, viando um bebê. Os bebês são a forma de
que, em última análise, cumpre seus propó­ Deus anunciar que conhece as necessida­
sitos nas nações e por meio delas (At 14:15­ des de seu povo, que se preocupa com ele
17; 17:24-26; Dn 4:25, 32). De fato, "nossa e que está trabalhando para seu bem. A che­
história é a história de Deus", verdade que gada de um bebê traz nova vida e novo co­
serve de grande encorajamento para o povo meço; os bebês mostram o caminho para o
de Deus que sofre por sua fé. Porém, ao futuro, e sua concepção e nascimento são
mesmo tempo, é uma advertência aos in­ milagres que só podem ser realizados por
crédulos que ignoram ou que se opõem à Deus (Cn 30:1, 2). Para tornar esse aconte­
vontade de Deus, pois, no final, o S e n h o r cimento ainda mais extraordinário, Deus por
dos Exércitos triunfará. vezes escolhe mulheres estéreis para serem
Samuel foi usado por Deus para trazer mães, como quando enviou Isaque a Sara,
união num momento crítico da história de Jacó e Esaú a Rebeca e José a Raquel.
Israel, quando a frágil confederação de tribos Um la r dividido (vv. 1-8). Elcana era um
precisava desesperadamente de orientação. levita, um coatita da família de Zufe (1 Cr
Foi o último dos juizes (1 Sm 7:15-17; At 6:22-28, 34, 35). Os levitas encontravam-se
13:20) e o primeiro de uma nova linha de espalhados por toda a terra e, sempre que
profetas depois de Moisés (3:24). Fundou necessário, iam a Siló ministrar no taberná­
uma escola de profetas e ungiu dois reis - culo. Elcana vivia em Ramá, na fronteira en­
Saul, que fracassou, e Davi, que foi bem- tre as tribos de Efraim e de Benjamim (ver Js
sucedido. Numa época em que as eras se 18:25). Samuel, o filho tão conhecido de
confrontavam e em que nada parecia firme, Elcana, nasceu em Ramá (1 Sm 1:19, 20),
Samuel foi o líder espiritual da nação de Is­ onde viveu (1 Sm 7:1 7) e foi sepultado quan­
rael e ajudou a conduzi-la à unificação nacio­ do morreu (1 Sm 25:1).'
nal e à reconsagração espiritual. Em vários sentidos, Elcana dá a impres­
Aparentemente, na história humana, a são de ser um homem bom e temente a
verdade está "sempre no cadafalso", enquan­ Deus, exceto pelo fato de que tinha duas
to a injustiça está "sempre no trono", mas esposas. Ao que parece, Ana era sua primeira
esse não é o ponto de vista do céu. Ao estu­ esposa e, ao ver que era estéril, Elcana ca­
dar 1 Samuel, veremos claramente que Deus sou-se com Penina para que pudesse ter uma
está sempre no controle. Ao mesmo tempo família. Não sabemos o motivo de Elcana
que ele é longânimo, misericordioso e res­ não ter esperado no Senhor e confiado que
ponde às orações de seu povo, também é realizaria seu plano, mas até mesmo Abraão
santo, justo e castiga o pecado. Hoje em casou-se com Hagar (Gn 16) e Jacó acabou
202 1 SAMUEL 1 - 3

tendo quatro esposas! Apesar de a bigamia orações dessa mulher piedosa. Na verdade,
e o divórcio não serem proibidos pela lei quanta coisa da história não dependeu das
mosaica (Dt 21:15-17; 24:1-4), o plano ori­ orações de pessoas que sofreram e que se
ginal de Deus era que cada homem se ca­ sacrificaram, especialmente das orações de
sasse com uma só mulher para a vida toda mães?
(Mc 10:1-9). O primeiro tabernáculo era uma tenda
Todos os anos, Elcana levava a família a cercada por divisórias de linho, mas, pela
Siló para adorar (Êx 23:14-19) e, juntos, descrição do texto, vemos que, a essa altu­
comiam uma refeição que fazia parte da ra, o santuário de Deus incluía algum tipo
adoração (Dt 12:1-7). Essa visita anual ao de estrutura de madeira com colunas (1:9)
tabernáculo deveria ser um acontecimento e portas (3:2,15), na qual havia lugar para
alegre para Ana, mas a cada ano Penina usa­ dormir (3:1-3). O conjunto dessa estrutura
va a viagem como uma oportunidade para com o tabernáculo era chamado de "Casa
irritar a rival e zombar de sua esterilidade. do S e n h o r " (1:7), "templo", "tabernáculo da
Ao distribuir a carne do sacrifício, Elcana Congregação" e a "morada" de Deus (2:32).
precisava dar várias porções a Penina e a Era nesse lugar que o idoso sumo sacerdote
seus filhos, enquanto Ana recebia apenas Eli assentava-se no trono sacerdotal e super­
uma porção. Elcana dava-lhe uma quantidade visionava o ministério dos sacerdotes, e foi
generosa, mas sem dúvida sua generosidade a esse local que Ana se dirigiu para orar.
não compensava a infertilidade da esposa.2 Seu desejo era pedir ao Senhor um filho e
O nome "Ana" significa "mulher cheia prometer-lhe que esse filho iria servi-lo to­
de graça" e, sem dúvida, Ana demonstrava dos os dias de sua vida.
graça na maneira de lidar com sua esterili­ Que exemplo de oração temos em Ana!
dade e com as atitudes e palavras cruéis de Sua oração nasceu da tristeza e do sofri­
Penina. Elcana conseguiu ter filhos com mento, mas apesar de seus sentimentos, der­
Penina, de modo que Ana sabia que ela era ramou a alma perante o Senhor. Foi uma
o problema e não o marido. Parecia injusto oração que envolveu submissão, pois se
uma mulher de índole tão má quanto Penina apresentou ao Senhor como uma serva dis­
ter uma porção de filhos, enquanto Ana, com posta a fazer aquilo que ele desejasse (ver
toda sua graça, não ter filho algum. Ana tam­ Lc 1:48). Sua oração também inclui sacrifí­
bém sabia que somente o Senhor poderia cio, pois fez um voto de devolver o filho ao
fazer por ela o que havia feito por Sara e Senhor para ser nazireu (Nm 6) e servir a
Raquel, mas por que Deus havia lhe cerra­ Deus por toda a vida. É possível que, com
do a madre? Sem dúvida, essa experiência essa oração, Ana estivesse fazendo uma
ajudou a transformá-la numa mulher de ca­ "barganha" com Deus? Acredito que não.
ráter e de fé e a motivou a dar o melhor de Ter um filho removeria sua desgraça e pode­
si ao Senhor. Ela expressou sua angústia so­ ria dar fim à perseguição de sua rival, mas
mente a Deus e não criou problemas na fa­ abrir mão desse filho seria outra história.
mília discutindo com Penina. Em tudo o que Talvez tivesse sido mais fácil para ela conti­
disse e fez, Ana procurou glorificar ao Se­ nuar vivendo com sua esterilidade do que
nhor. Sem dúvida, foi uma mulher notável ter um filho por três anos e, depois, precisar
que deu à luz um filho extraordinário. renunciá-lo para sempre. Fico imaginando
Uma oração devota (w . 9-18). Durante se Deus deu a Ana a convicção interior de
uma das refeições festivas em Siló, Ana dei­ que o filho exerceria papel marcante no fu­
xou a família e foi ao tabernáculo orar. Ha­ turo de Israel.
via sentido no coração que Deus desejava A fé e a devoção de Ana foram tão for­
que orasse por um filho, uma criança que tes que se elevaram acima da interpretação
devolveria ao Senhor para servi-lo por toda incorreta e da crítica do mais alto líder espi­
a vida. É impressionante como, em termos ritual de sua nação. Ao entregar ao Senhor
humanos, o futuro de Israel dependia das o que se tem de melhor, não é incomum
1 SAMUEL 1 - 3 203

receber críticas de quem deveria encorajá- Deus" ou "pedido a Deus". Ao longo de


lo. Moisés foi criticado pelo irmão e pela toda a sua vida, Samuel foi tanto uma res­
irmã (Nm 12), Davi pela esposa (2 Sm 6:12­ posta de oração como um grande homem
23) e Maria de Betânia por um apóstolo (Jo de oração.3
12:1-8) e, no entanto, essas três pessoas re­ Sem dúvida, Ana contou a Elcana sobre
ceberam a aprovação do Senhor. Nos qua­ seu voto, pois sabia que, de acordo com a
tro primeiros capítulos de 1 Samuel, Eli é lei mosaica, o marido poderia anular o voto
apresentado como péssimo exemplo de da esposa caso não concordasse com ele
seguidor de Jeová e de sumo sacerdote. É (Nm 30). Elcana concordou com sua deci­
provável que fosse um homem voltado aos são e permitiu que ela ficasse em casa com
próprios prazeres (4:18) e, sem dúvida, mos­ o filho, enquanto o resto da família fazia a
trou-se tolerante com relação aos pecados viagem anual a Siló. É impossível não admi­
dos filhos (2:22-36). No entanto, também se rar Elcana por aquilo que disse e fez, pois
apressou em julgar e em condenar a devo­ esse era seu filho primogênito com sua
ção de uma mulher temente a Deus. Nas esposa amada, Ana, e pai e filho ficariam
palavras de John Bunyan: "É melhor orar de separados pelo resto da vida. Um filho
coração, mas sem palavras, do que orar com primogênito era redimido por sacrifício (Êx
palavras, mas sem coração". Ana orou de 13:11-13), mas Elcana estava entregando seu
coração. filho como um sacrifício vivo ao Senhor.
Os líderes do povo de Deus precisam Como levita, nazireu, profeta e juiz, Samuel
de sensibilidade espiritual a fim de alegrar- serviria fielmente ao Senhor e a Israel e aju­
se "com os que se alegram e [chorar] com daria a dar início a uma nova era na história
os que choram" (Rm 12:15). Eli acusou Ana de seu povo.
de haver bebido vinho demais quando, na As mães israelitas costumavam desma­
verdade, o que ela estava fazendo era derra­ mar os filhos aos 3 anos de idade e, sem
mando a alma perante o Senhor em oração dúvida, durante esses anos preciosos, Ana
(1 Sm 1:15). Em cinco ocasiões, Ana referiu- ensinou o filho e o preparou para servir ao
se a si mesma como "serva", indicando sua Senhor. Foi só mais tarde, quando Deus lhe
submissão ao Senhor e a seus servos. O tex­ falou, que Samuel conheceu o Senhor pes­
to não diz que Eli pediu perdão por julgá-la soalmente (1 Sm 3:7-10). Ana era uma mu­
com tanta severidade, mas, pelo menos, deu- lher de oração (1:27) e ensinou seu filho a
lhe sua bênção, e ela voltou para a festa com orar. Quando Ana e Elcana levaram Samuel
paz no coração e alegria no rosto. O fardo a Siló para entregá-lo ao Senhor, também
que pesava em seu coração havia sido reti­ levaram consigo os sacrifícios necessários
rado, e ela sabia que Deus havia respondi­ para a adoração. Algumas versões dizem
do à sua oração. "três novilhos", enquanto outras falam de
Um filho ilustre (vv. 19-28). Quando os "um novilho de três anos". Porém, o fato de
sacerdotes ofereceram o holocausto logo os pais terem levado um odre de vinho e
cedo na manhã seguinte, Elcana e a família um efa de farinha, o suficiente para acom­
estavam presentes para adorar a Deus, e é panhar três sacrifícios, indica que o correto
bem provável que a alma de Ana estivesse é mesmo "três novilhos", pois para cada
transbordando de alegria, pois ela havia ofe­ novilho sacrificado eram necessários três
recido um sacrifício vivo ao Senhor (Rm 12:1, décimos de um efa de cereal (Nm 28:12).
2). Ao voltar para casa, Deus respondeu à Quando Elcana e Ana apresentaram o
oração de Ana e permitiu que ela concebes­ filho ao Senhor, Ana lembrou a Eli que ela
se; e, quando a criança nasceu, Ana cha­ era a mulher que havia orado pedindo um
mou o menino de Samuel. O termo hebraico filho três anos antes.4 Será que o homem
sa-al quer dizer "pedido" e sama significa "ou­ idoso se lembrava daquela ocasião e, se foi
vido", enquanto e/é um dos nomes de Deus, o caso, será que se recordava de como ha­
de modo que Samuel significa "ouvido por via tratado aquela mulher aflita? O texto não
204 1 SAMUEL 1 - 3

registra se Eli se lembrou do ocorrido, mas com cânticos. "Em começando o holocaus­
ele recebeu o menino para que se tornasse to, começou também o cântico ao S e n h o r "
servo de Deus no tabernáculo e fosse edu­ (2 Cr 29:27). Antes de ir para o jardim onde
cado segundo as leis do Senhor. seria preso, Jesus cantou um hino com seus
Tendo em vista o estado precário da vida discípulos (Mt 26:30); Paulo e Silas canta­
espiritual de Eli e os caminhos perversos de ram hinos ao Senhor depois de terem sido
seus filhos, foi preciso que Elcana e Ana ti­ humilhados e açoitados (At 16:20-26). Nos
vessem um bocado de fé para deixar o filho Salmos, encontramos, em várias ocasiões,
inocente sob os cuidados deles. Mas o Se­ Davi louvando a Deus em meio a circuns­
nhor estava com Samuel, tomando conta tâncias difíceis. Depois de açoitados pelos
dele e preservando-o da corrupção a seu líderes religiosos em Jerusalém, os apósto­
redor. Assim como Deus protegeu José no los "se retiraram do Sinédrio regozijando-se
Egito, também protegeria Samuel em Siló, e por terem sido considerados dignos de so­
é capaz de proteger nossos filhos e netos frer afrontas por esse Nome" (At 5:41).
neste mundo perverso em que vivemos. O O cântico de Ana, quase no início do
julgamento sobre Eli e sua família estava a Livro de 1 Samuel, deve ser comparado ao
caminho, mas Deus providenciaria para que cântico de Davi, quase no final de 2 Samuel
Samuel guiasse a nação e conduzisse os (22) e também com o cântico de Maria em
israelitas a um novo estágio de seu desen­ Lucas 1:46-55. Esses três cânticos falam da
volvimento. graça imerecida do Senhor com seu povo,
Até aqui, a história deixa claro que a vida da vitória de Deus sobre o inimigo e da
e o futuro de uma nação dependem do maneira maravilhosa de Deus fazer uma
caráter da família, e o caráter da família de­ reviravolta nas coisas a fim de realizar seus
pende da vida espiritual dos pais. De acor­ propósitos. Aquilo que Maria expressou
do com um provérbio africano: "A ruína de em seu cântico é especialmente parecido
uma nação começa nos lares de seu povo"; com o que Ana cantou em seu hino de
até mesmo Confúcio ensinou que "a força louvor.
de uma nação nasce da integridade de suas A alegria do Senhor (v. 1). Ana orava e
famílias". Eli e seus filhos tinham lares "reli­ se regozijava ao mesmo tempo! Pensava nas
giosos" que, na verdade, eram ímpios, mas bênçãos de Deus sobre a nação bem como
Elcana e Ana tinham um lar piedoso, que sobre si mesma e seu lar. A oração egoísta
honrava ao Senhor, e lhe entregaram o que não é espiritual e não honra ao Senhor. Ana
tinham de melhor. A esperança do povo de sabia, em seu coração, que Deus faria gran­
Israel encontrava-se sobre aquele menino, des coisas por seu povo e que seu filho teria
ainda tão pequeno, que vivia no tabernáculo importante papel no cumprimento da von­
e que ali aprenderia a servir ao Senhor. Nun­ tade de Deus. Sua adoração veio de um
ca subestime o poder de um lar consagrado coração repleto da alegria do Senhor.
a Deus ou o poder de uma criança peque­ No original, o termo "força", nos versí­
na dedicada ao Senhor. culos 1 e 10, aparece como "chifre", uma
representação de força ou de pessoa forte
3. Deus recebe lo u v o r e a d o r a ç ã o (ver SI 75:4, 5, 10; 89:1 7, 24; 92:10;
(1 S m 2:1-11) 132:17). Ter sua "força exaltada" significa
Depois que Ana deixou o filho com Eli, po­ receber forças de Deus e ser ajudado por
deria ter se retirado sozinha para algum lu­ ele de maneira especial durante um tempo
gar a fim de chorar desconsolada, mas, em de crise. Ter uma "boca que se ri" é uma
vez disso, irrompeu num cântico de louvor referência a gloriar-se com a vitória de Deus
ao Senhor. O mundo não entende a relação sobre os inimigos. Um povo derrotado deve
entre sacrifício e cântico; não compreende calar-se, mas aqueles que participam da vi­
como o povo de Deus consegue cantar en­ tória de Deus têm o que dizer para a glória
quanto se dirige para o sacrifício e sacrificar do Senhor.
1 SAMUEL 1 - 3 205

A expressão "Alegro-me na tua salvação" mais profundo do coração de Ana. Deus é


não indica apenas que Ana foi liberta de sua onisciente: conhece todas as coisas; é tam­
infertilidade. Ana considera esse milagre o bém onipresente e vê todas as coisas.
começo de novas vitórias para Israel, que Ana se regozijou, pois esse Deus santo
havia sido repetidamente invadido, derrota­ é um justo juiz daquilo que seu povo faz. Ao
do e abusado por seus inimigos (Jz 2:10-23). contrário das pessoas que participam de
Mas a palavra hebraica para salvação é processos judiciais, o Senhor sabe tudo e é
yeshua - Josué -, um dos nomes do Mes­ capaz de nos avaliar, bem como nossas
sias prometido. O rei Davi seria o yeshua de ações, com precisão. Pesou Belsazar e des­
Deus para livrar Israel de seus inimigos, e cobriu que estava "em falta" (Dn 5:27). O
Jesus, o Filho de Davi, seria o yeshua de Deus Senhor pesa nossas motivações (Pv 16:2) e
para livrar todos da escravidão do pecado e nosso coração (Pv 24:11, 12), e suas balan­
da morte. ças são precisas. Assim como aconteceu
A m ajestade do Senhor (w . 2, 3). É bom com Ana, pode ser que outros nos enten­
começar as orações com louvores, pois o dam mal ou tenham pensamentos malignos
louvor ajuda a concentrar-se na glória do sobre nós, mas o Senhor sempre agirá com
Senhor e não no tamanho das necessida­ justiça.
des. Quando contemplamos a grandeza de A graça do Senhor (w . 4-8a). Deus é
Deus, começamos a ver a vida de outra pers­ santo, justo e sempre fiel a sua Palavra e a
pectiva. Ana conhecia o caráter de Deus e seu caráter. Mas também é cheio de mise­
exaltou seus atributos gloriosos. Começou ricórdia e de graça, e com freqüência faz
declarando a santidade e a singularidade do coisas que nos surpreendem. Ana descre­
Senhor. Esses dois atributos andam juntos, veu alguns atos do Senhor e afirmou que
pois tanto no hebraico quanto no grego, o ele virava tudo de cabeça para baixo! O
termo "santo" significa "inteiramente outro, "Cântico de Maria" (Magnificat), em Lucas
reservado, separado". Os judeus ortodoxos 1:46-55, expressa algumas dessas mesmas
confessam diariamente: "Ouve, Israel, o S e­ verdades.
n h o r , nosso Deus, é o único S e n h o r " (Dt Guerreiros poderosos caem, enquanto
6:4). Não há outro Deus, e sempre que Is­ fracos e cambaleantes vencem a batalha
rael se voltava para os ídolos em busca de (1 Sm 2:4; ver Ec 9:11). Os ricos, antes far­
ajuda, perdia as bênçãos do Senhor. tos, buscam algo para comer e estão dispos­
A "Rocha" é uma imagem do Senhor que tos a trabalhar por sua comida, enquanto os
se repete nas Escrituras. Pode ser encontra­ pobres e famintos têm alimento em abun­
da no "Cântico de Moisés" (Dt 32:4, 15, 18, dância (1 Sm 2:5a). A mulher estéril dá à luz
30, 31, 37) e no cântico de Davi (2 Sm sete filhos, enquanto a mulher com muitos
22:32). É uma referência à força, à estabili­ filhos se vê exausta e enfraquecida e sequer
dade e à constância e engrandece o fato de consegue desfrutar sua família (v. 5b). A ver­
que Deus não muda. Podemos depender do dade dessa declaração reflete-se no fato de
Senhor, pois seu caráter é imutável e suas Ana ter dado à luz mais cinco filhos (v. 21).
promessas nunca falham. "Porque eu, o S e­ Por ser soberano, o Senhor controla a
n h o r , não mudo" (Ml 3:6). vida e a morte e tudo o que acontece entre
O Senhor também é "Deus da sabedo­ o começo e o fim (v. 6). É capaz tanto de
ria" (1 Sm 2:3), de modo que as pessoas nos resgatar da cova como de permitir que
devem ter cuidado do que falam e de como morramos. Se permitir que vivamos, pode
falam. Quando estamos diante de Deus, que nos tornar ricos ou pobres, exaltados ou
conhece todas as coisas, tudo o que pen­ humilhados, pois ele sabe o que é melhor.
samos, dizemos e falamos, não há lugar para Isso não significa que as pessoas devam
orgulho e arrogância. Deus ouviu todas as conformar-se mansamente com as circuns­
palavras desdenhosas de Penina contra tâncias difíceis da vida sem tomar qualquer
Ana e também ouviu a oração vinda do atitude, mas sim que não podemos mudar
206 1 SAMUEL 1 - 3

essas circunstâncias sem a ajuda do Senhor de Davi e governará sobre seu reino glorioso
(Dt 8:18). Em sua graça, Deus pode esco­ (Lc 1:32, 33, 69-75).
lher os pobres e exaltá-los, de modo que se Ana e Elcana deixaram o filho em Siló e
assentem entre os príncipes (ver SI 113:7, 8 voltaram para Ramá com o coração alegre
e Lc 1:52). Ele os tira do pó e do monturo e e cheio de expectativa quanto ao que o Se­
os coloca em tronos gloriosos! Não foi isso nhor faria. Que coisa maravilhosa quando o
o que Deus fez por Jesus (Fp 2:1-10) e que casal é consagrado ao Senhor, adorando
Jesus fez por nós quando nos salvou (Ef 2:1­ juntos e crendo em sua Palavra. Ana foi ao
10)? De fato, por causa da cruz, o Senhor lugar de adoração com o coração quebran­
"tem transtornado o mundo" (At 17:6), e só tado, mas o Senhor lhe deu paz, pois ela
possuem visão clara e valores verdadeiros orou e se sujeitou a sua vontade.
os que crêem em Jesus.
A proteção do Senhor (w . 8b-10a). Deus 4. D eu s ju l g a o pec a d o
estabeleceu o mundo de modo que não se (1 Sm 2:12-36)
movesse do lugar, e aquilo que acontece em Até aqui, a narrativa concentrou-se em Elcana
nosso planeta está sob os cuidados atencio­ e em sua família (1 Sm 1:1 - 2:11), mas a
sos do Criador.5 Podemos pensar que Deus partir desse ponto, muda para Eli e sua famí­
abandonou a Terra nas mãos de Satanás e lia (2:12 - 3:21). Ao longo desta seção,
de seus poderes demoníacos, mas este mun­ veremos um contraste intencional entre
do ainda pertence a nosso Pai (SI 24:1, 2), e Samuel e os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias.
ele colocou seu Rei no trono celestial (SI 2:7­ Os filhos de Eli "desprezavam a oferta do
9). Enquanto o povo de Deus caminhar sobre S e n h o r " (2:17), mas "Samuel ministrava
a Terra e andar na luz, o Senhor os guardará perante o S e n h o r " (v. 18). Os dois irmãos co­
e conduzirá seus passos, mas os perversos meteram atos de perversidade no taber­
caminham na escuridão espiritual, pois de­ náculo e suscitaram o julgamento de Deus,
pendem da própria sabedoria e força. Pode mas Samuel serviu no tabernáculo e cresceu
parecer que os perversos são bem-sucedi­ no favor do Senhor (v. 26). A linhagem sacer­
dos, mas um dia a tempestade da ira de Deus dotal chegaria ao fim na família de Eli, mas
irromperá contra eles em julgamento seve­ Samuel seria chamado por Deus para dar
ro. Deus é longânimo para com os que o continuidade a um sacerdócio santo (1 Sm
rejeitam, mas seu dia está chegando. 2:34 - 3:1). Do ponto de vista humano, a
O reino do Senhor (v. 10b). Trata-se de impressão era a de que os perversos filhos
uma declaração extraordinária de que o Se­ de Eli escaparam incólumes com sua deso­
nhor dará um rei ungido a Israel e de que o bediência, mas Deus estava preparando o
fortalecerá para que sirva a Deus e à nação. julgamento deles, enquanto capacitava seu
Sem dúvida, Ana conhecia a lei de Moisés, servo Samuel para continuar a obra divina.
pois nela encontrou as promessas de um O julgam ento de Deus é m erecido (vv.
futuro rei. Deus disse a Abraão e a Sara que 12-21). Uma vez que Eli era um homem ido­
haveria reis entre seus descendentes (Gn so que não conseguia mais enxergar muito
17:6,16) e repetiu essa promessa a Jacó bem (4:15), deixou o trabalho do tabernáculo
(35:11). Nas últimas palavras que proferiu ao encargo dos dois filhos que, por sua vez,
aos filhos, Jacó anunciou que Judá seria a se aproveitaram do pai fazendo o que bem
tribo real (49:10); em Deuteronômio 17:14­ entendiam. Hofni e Finéias não conheciam
20, Moisés deu instruções com referência a ao Senhor pessoalmente; antes, eram "filhos
um futuro rei. Quando Israel pediu um rei, de Belial", expressão hebraica para descre­
Deus estava preparado para conceder-lhes ver pessoas desprezíveis que praticavam
esse pedido. Em vários sentidos, o rei Davi abertamente o mal (Dt 13:13; Jz 19:22; 1 Sm
cumpriu essa profecia, mas seu cumprimento 25:25; Pv 16:27). Em 2 Coríntios 6:15, Pau­
absoluto encontra-se em Jesus Cristo ("o Un­ lo usa Belial como um sinônimo de Satanás.
gido"), que, um dia, se assentará no trono A lei descrevia com precisão as porções dos
1 SAMUEL 1 - 3 207

sacrifícios que pertenciam aos sacerdotes (1 Sm 2:21; ver SI 113:9). Esse foi o presente
(Lv 7:28-36; 10:12-15; Dt 18:1-5), mas os dois de Deus, em sua graça, e também uma res­
irmãos tomavam para si toda a carne que posta à oração de Eli (1 Sm 2:20), que se
queriam e, ainda, as partes de gordura que agradava de Samuel e era grato por seu
pertenciam ao Senhor. Chegavam até a pe­ ministério. Ana deu um filho ao Senhor e
gar a carne crua para assá-la e não ter de ele lhe devolveu cinco!
comê-la cozida. Eles "desprezavam a oferta O julgam ento de Deus é desprezado (w .
do S e n h o r " (2:17) e pisavam (escarneciam) 22-26). De nada adiantou que pessoas te­
nos sacrifícios do Senhor (v. 29). mentes a Deus contassem a Eli os pecados
Hofni e Finéias não apenas desrespeita­ que os dois filhos dele estavam praticando.
vam os sacrifícios no altar, como também Eli não era um pai muito piedoso nem um
não tinham consideração alguma pelas mu­ grande líder espiritual, e seus filhos despre­
lheres que serviam à porta do tabernáculo zaram suas admoestações. E triste quando
(v. 22; Êx 38:8). Em vez de promover o cres­ um pai - especialmente aquele que também
cimento espiritual dessas mulheres, os dois é líder espiritual - perde a influência sobre a
irmãos as seduziam. Não eram servas ofi­ própria família, restando-lhe apenas esperar
ciais designadas pela lei, mas sim voluntá­ a vinda do julgamento de Deus. Ló perdeu
rias que auxiliavam os sacerdotes e levitas. É a influência sobre a família (Gn 19:12-14) e,
possível que ajudassem a cuidar das crian­ depois que Davi pecou com Bate-Seba, sua
ças pequenas que vinham com os adultos influência sobre os filhos enfraqueceu con­
adorar no templo ou, talvez, que estivessem sideravelmente. Hofni e Finéias não tinham
lá simplesmente para ficar próximas à pre­ respeito algum pelo Senhor nem pela posi­
sença do Senhor. Hoje em dia, a imoralida­ ção do pai como sumo sacerdote, de modo
de no ministério aparece ocasionalmente que só restava a Deus julgá-los e colocar em
nos noticiários e, apesar de ser algo trágico, seu lugar servos que fossem fiéis.
não é novidade. O julgam ento de Deus é declarado (vv.
Contrastando com a perversidade dos 27-36). Um "homem de Deus", cujo nome
filhos de Eli, vê-se a fidelidade de Samuel não é mencionado, apareceu em Siló para
(1 Sm 2:18-21). Era uma espécie de aprendiz declarar os termos do julgamento do Senhor
de sacerdote que recebia instruções quanto sobre Eli e a família. O título "homem de
ao trabalho no santuário e até usava vestes Deus" é usado cerca de setenta vezes no
de linho com uma estola, como faziam os Antigo Testamento e costuma referir-se a um
sacerdotes e levitas adultos. A cada ano, profeta enviado pelo Senhor. Em primeiro
quando os pais vinham a Siló, sua mãe trazia lugar, o profeta tratou do passado (vv. 27,
vestes novas para o menino em fase de cres­ 28) e lembrou a Eli que seu cargo como
cimento. Nas Escrituras, é comum as vestes sumo sacerdote era uma dádiva recebida
se referirem à vida espiritual (Is 61:10; Zc pela graça de Deus. O Senhor havia escolhi­
3:1-5; Ef 4:22-32; Cl 3:8-17; 1 Pe 5:5), e mu­ do Arão para ser o primeiro sumo sacerdote
dar de roupa simboliza um novo começo (Cn e concedido a ele a prerrogativa de passar
35:2; 41:14; 45:22; Êx 19:10; Ap 3:18). As essa honra adiante para o filho mais velho
vestes novas de cada ano representavam não (Êx 4:14-16; 28:1-4). Era um privilégio para o
apenas o crescimento físico de Samuel, mas sumo sacerdote e seus filhos oferecer sacri­
também seu crescimento espiritual (1 Sm fícios no altar de bronze, queimar incenso
2:21), o que nos lembra como "crescia jesus no altar de ouro, usar as vestimentas sagra­
em sabedoria, estatura e graça, diante de das e comer das santas ofertas. Em seguida,
Deus e dos homens" (Lc 2:52). o mensageiro voltou a atenção para o pre­
Deus estava prestes a executar seu jul­ sente (1 Sm 2:29) e acusou Eli de colocar os
gamento sobre a casa de Eli, mas o Senhor filhos à frente do Senhor e de participar de
abençoou Elcana e Ana, bem como o lar seus pecados. Tolerar o pecado e não tratar
desse casal, pois lhes deu mais cinco filhos dele com severidade é o mesmo que tomar
208 1 SAMUEL 1 - 3

parte dessa transgressão. Como sumo sacer­ tataraneto de Eli, de seu sumo sacerdócio,
dote, Eli possuía a autoridade de disciplinar pois havia cooperado com Adonias, filho de
os filhos, mas se recusou a fazê-lo. "Não Davi, em sua tentativa de tomar o trono.
te tornes cúmplice de pecados de outrem" Salomão nomeou Zadoque, da casa de
(1 Tm 5:22). Se Eli fosse um homem de Deus, Eleazar, sumo sacerdote (ver 1 Rs 2:26, 27,
preocupado com a glória de Deus, teria cen­ 35). Os nomes de Eli e de Abiatar não apa­
surado os filhos e os chamado ao arrependi­ recem na lista de sumos sacerdotes israelitas
mento, e caso se recusassem a mudar seus em 1 Crônicas 6:3-15. Ao confirmar Zado­
caminhos, teria colocado outros sacerdotes que como sumo sacerdote, Salomão cum­
no lugar deles. priu a profecia proferida pelo homem de
O tema principal da mensagem do pro­ Deus quase um século e meio antes.7
feta girava em torno do futuro (1 Sm 2:30­ No entanto, o futuro não era de todo
36). Deus havia dado o sacerdócio a Arão e sombrio, pois o homem de Deus anunciou
a seus descendentes para sempre, e nin­ que o Senhor levantaria um sacerdote fiel,
guém poderia tomar deles essa honra (Êx que agradaria o coração de Deus e faria a
29:9; 40:15; Nm 18:7; Dt 18:5). Porém, vontade dele (1 Sm 2:35). A referência imedia­
os servos de Deus não podem viver como ta é a Zadoque, mas, em última análise, essas
bem entendem e esperar que o Senhor os palavras apontam para Jesus Cristo, o único
honre, "porque aos que me honram, honra­ que teria uma "casa estável" e que seria o
rei" (1 Sm 2:30). O privilégio do sacerdócio sacerdote ungido de Deus "para sempre".
continuaria sendo da tribo de Levi e da casa Jesus veio da tribo de Judá, de modo que
de Arão, mas Deus o tomaria da linhagem não tinha ligação alguma com a casa de Arão,
de Eli. Os descendentes de Eli se enfraquece­ mas foi instituído sumo sacerdote segundo a
riam e se extinguiriam e não haveria mais ordem de Melquisedeque (Hb 7 - 8).
homens idosos como Eli na família. Teriam
de mendigar sua comida e suplicariam uma 5. Deus recompensa a fidelidade
oportunidade de servir (v. 36). No tempo de (1 S m 3:1-21)
Davi, havia pelo menos dois descendentes Mais uma vez, vemos o contraste entre a
de Eleazar para cada descendente de Itamar perversidade da família de Eli e a fidelidade
(1 Cr 24:1-5), de modo que a família de Eli do menino Samuel (v. 1). Ele ministrou peran­
foi, aos poucos, desaparecendo. O pior, te o Senhor sob a orientação de Eli num tem­
porém, era que, em breve, os dois filhos po em que Deus não estava falando a seu
mimados de Eli morreriam no mesmo dia. povo com muita freqüência. Os líderes espi­
Até mesmo o tabernáculo ficaria angustia­ rituais eram corruptos e, de qualquer modo,
do (1 Sm 2:32), o que, de fato, aconteceu o povo de Deus não obedecia à lei; então,
com a captura da arca e, por fim, a transfe­ por que Deus deveria revelar-lhes algo novo?
rência do tabernáculo de Siló para Nobe Eram tempos de grande tristeza para a nação
(21:1-6; Jr 7:14). No entanto, grande núme­ de Israel, quando o Deus vivo deixava de
ro de sacerdotes morreu pelas mãos de enviar sinais e mensagens proféticas ao povo
Doegue em Nobe, episódio que constituiu (SI 74:9; Ez 7:26; Am 8:11, 12; Mq 3:6). O
o cumprimento parcial dessa profecia. silêncio de Deus era o Julgamento divino.
Eli era descendente de Arão pela linha­ Porém, Deus estava prestes a mudar a
gem de Itamar, o quarto filho de Arão, mas situação e a proferir sua preciosa Palavra a
Deus abandonaria essa linhagem e se volta­ um menino que ouviria e que obedeceria.
ria para os filhos de Eleazar, o terceiro filho Um ouvido atento (w . 1-9). É bem pro­
de Arão e seu sucessor como sumo sacer­ vável que Samuel tivesse cerca de 12 anos
dote.6 Durante o reinado de Davi, tanto de idade quando Deus lhe falou. A Palavra
Zadoque quanto Abiatar serviram no ofício do Senhor veio a Samuel enquanto o me­
de sumo sacerdote (2 Sm 8:17), mas quando nino encontrava-se deitado num cômodo
Salomão subiu ao trono, removeu Abiatar, contíguo ao tabernáculo, onde Eli também
1 SAMUEL 1 - 3 209

dormia. A "lâmpada de Deus" era o cande­ que não tinha como saber de quem era a
labro de ouro com sete hastes, que ficava voz que havia falado com ele. Talvez esti­
no lugar santo diante do véu, à direita do vesse usando de cautela ao não aceitar a
altar de ouro do incenso (Êx 25:31-40; 27:20, voz como sendo de Jeová antes de ter como
21; 37:17-24). Era a única fonte de ilumi­ se assegurar disso.
nação no lugar santo, e os sacerdotes de­ Por ser obediente a Deus e a Eli, Samuel
veriam mantê-la sempre acesa (Êx 27:20) e ouviu a mensagem do Senhor e ficou saben­
aparar os pavios todas as manhãs e noites, do o que Deus planejava fazer. Sem dúvida,
quando oferecessem incenso (Êx 30:7, 8). era uma mensagem pesada para transmitir a
O candelabro era um símbolo da luz da ver­ um menino tão jovem, mas ao fazê-lo, é pos­
dade de Deus, concedida ao mundo por seu sível que Deus estivesse repreendendo a le­
povo, Israel. Infelizmente, naqueles dias, o targia espiritual dos adultos, pois a qual deles
brilho da luz da Palavra de Deus era muito Deus poderia ter transmitido tal mensagem?
fraco, e o sumo sacerdote de Deus mal con­ Quando Deus não encontra um adulto obe­
seguia enxergar! A arca estava lá, e, dentro diente, por vezes chama uma criança. "Dar-
dela, encontrava-se a lei de Deus (Êx 25:10­ lhes-ei meninos por príncipes" (Is 3:4).
22; 37:1-9; Hb 9:1-5), mas a lei não estava Samuel nada sabia da mensagem que o
sendo honrada pelo povo de Deus. profeta anônimo havia transmitido a Eli, mas
O Senhor falou a Samuel quatro vezes a mensagem que recebeu de Deus con­
(1 Sm 3:4, 6, 8, 10), e, nas três primeiras, firmava as palavras proféticas. O Senhor jul­
Samuel pensou que fosse Eli quem o cha­ garia a casa de Eli, pois seus dois filhos "se
mava. Uma das características de um servo fizeram execráveis" e Eli não tomou atitude
fiel é ter ouvidos atentos e resposta imedia­ alguma para refreá-los. Apesar de Eli e seus
ta. Porém, Samuel nunca havia escutado a filhos serem sacerdotes, não havia sacrifício
voz de Deus, de modo que não sabia quem algum que pudessem oferecer para expiar
estava chamando seu nome. Assim como seus pecados! Suas transgressões eram deli­
Saulo de Tarso, o chamado e a conversão beradas e provocadoras e, para pecados des­
de Samuel foram simultâneos, mas a expe­ se tipo, não era possível oferecer sacrifícios
riência de Samuel ocorreu durante a noite, (Nm 15:30). Não apenas haviam profanado
enquanto Saulo viu uma luz resplandecente a si mesmos, mas também ao sacerdócio. O
quando ouviu a voz de Deus (At 9:1-9). Eli Senhor havia sido longânimo para com a casa
foi perspicaz o suficiente para entender que de Eli, mas seus filhos não haviam se arrepen­
era Deus quem estava falando ao menino, dido nem deixado seus pecados, e o tempo
de modo que instruiu Samuel sobre como do arrependimento já havia passado.
deveria responder. Um coração hum ilde (vv. 15-18). Samuel
Uma disposição obediente (vv. 10-14). ouviu a voz de Deus e recebeu a mensagem
Samuel obedeceu a Eli, voltou para o lugar dele, mas ainda assim se levantou logo cedo
onde dormia e esperou que a voz o chamas­ e foi cumprir suas tarefas habituais. Abriu as
se novamente. Dessa vez, Deus disse o nome portas do santuário para que o povo pudes­
do menino duas vezes, pois o Pastor chama se entrar e oferecer sacrifícios9 e não comen­
suas ovelhas pelo nome e elas lhe dão ouvi­ tou com Eli o que Deus havia lhe dito. Essas
dos (Jo 10:3,14).8Além disso, o Senhor apro­ atitudes mostram um grau extraordinário de
ximou-se de Samuel enquanto falava com ele. maturidade para um menino como ele. A
Essa experiência não foi um sonho ou visão, maioria dos jovens teria se orgulhado de sua
mas sim um exemplo de manifestação da pre­ experiência com o Senhor e corrido de um
sença do Senhor. A resposta de Samuel foi: lado para outro, transmitindo a mensagem
"Fala, porque o teu servo ouve" (1 Sm 3:10). sem ao menos parar a fim de abrir as portas.
Mas por que Samuel deixou de fora a palavra Foi somente quando Eli assim lhe ordenou
" S e n h o r " (ver v. 9)? Porque ainda não conhe­ que Samuel contou a mensagem de julga­
cia o Senhor pessoalmente (v. 7), de modo mento que Deus havia lhe revelado.
210 1 SAMUEL 1 - 3

Qual teria sido a reação de Eli à men­ Eli pelo menos se preocupou com a arca de
sagem: submissão ativa ou resignação passi­ Deus e com o futuro de sua nação, e sua
va? Meu voto vai para a resignação, a mesma morte foi causada pela notícia da derrota
atitude demonstrada por Ezequias quando de Israel e da captura da arca. Se tivesse
Isaías lhe disse que suas atitudes insensatas mostrado um pouco dessa consideração
um dia causariam a ruína do reino de Judá quando os filhos ainda eram jovens como
(Is 39). Eli era um homem idoso e não havia Samuel, as coisas teriam sido diferentes.
sido bom pai nem sacerdote fiel; já fora Um viver piedoso (vv. 19-21). O texto
advertido de que o julgamento estava a ca­ diz, pela segunda vez, que Samuel cresceu
minho. Seus dois filhos morreriam no mes­ (2:21; 3:19), mas a essa afirmação é acres­
mo dia, e sua família perderia o privilégio centado que "o S e n h o r era com ele". A mes­
do sacerdócio; assim, que motivo havia para ma declaração é feita mais adiante sobre o
viver? Deus havia escolhido Samuel para ser jovem Davi (1 Sm 16:18; 18:12,14). O Se­
juiz, sacerdote e profeta, de modo que a luz nhor estava contra Eli e seus filhos, mas suas
da verdade continuasse a brilhar em Israel. bênçãos encontravam-se sobre Samuel e
Tudo o que restava ao velho era esperar pa­ seu ministério. Ao contrário dos outros jui­
cientemente que a espada caísse sobre ele zes, as palavras e a influência de Samuel
e sua família. alcançaram a nação toda. O povo reconhe­
Como todos nós, Eli tinha seus defeitos, ceu que Deus havia chamado Samuel para
mas devemos dar o devido valor a sua atitu­ ser profeta e proclamar a Palavra e a vonta­
de positiva em relação ao jovem Samuel, seu de de Deus. O Senhor voltou a aparecer
sucessor como líder espiritual de Israel. Não de tempos em tempos em Siló e a revelar-
é todo servo veterano que mostra cortesia se a seu profeta. Israel estava prestes a pas­
na hora de descansar as ferramentas de tra­ sar por um recomeço que o levaria a novos
balho e deixar que o aprendiz assuma seu desafios e perigos, bem como a novas bên­
lugar. Até o fim da vida, pode-se dizer que çãos e vitórias.

1. Ramá quer dizer "altura" e Ramataim significa "as duas alturas". Várias cidades apresentam o termo ramah em seu nome

(Js 13:26; 19:29; 21:38; Jz 4:5; 1 Sm 30:27), porém o mais provável é que Elcana e sua família vivessem em Ramataim, na

fronteira entre Benjamim e Efraim. Elcana era da tribo de Levi, mas vivia em Efraim.

2. Várias versões trazem a expressão "porção dupla" em 1 Samuel 1:5, mas o original também é traduzido por "porção especial";

alguns estudiosos propõem "somente uma porção". Tudo indica, porém, que Elcana estava tentando mostrar o amor especial

que sentia por sua esposa num momento difícil, de modo que a porção oferecida também deve ter sido especial.
3. O Salmo 99:6 e Jeremias 15:1 descrevem Samuel como um homem de oração, e ele é citado em Hebreus 11:32 como
homem de fé. Para exemplos de orações específicas de Samuel, ver 1 Samuel 7:8, 9; 8:6; 12:18, 19, 23; 15:11.

4. Em seu breve discurso registrado em 1 Samuel 1:25-28, Ana usou, com freqüência, formas diferentes do termo hebraico sa-al,

que significa "pedido" e constitui a base do nome Samuel. O termo "devolvido", no versículo 28, significa "entregue". A
entrega de Samue! ao Senhor por Ana foi um gesto definitivo.

5. É evidente que a terra não repousa sobre o alto de colunas. Trata-se de uma forma de linguagem poética baseada na

arquitetura daquela época. Ver também Jó 38:4; Salmos 75:3; 82:5; 104:5; Isaías 24:18.
6. Não há registro algum nas Escrituras de como o sumo sacerdócio passou da linhagem de Eleazar para Itamar e daí, posteriormente,

para Eli.

7. Os sacerdotes que servirão no templo durante a Era do Reino serão da família de Zadoque (Ez 40:45, 46; 43:19; 44:10-16).

8. A repetição do nome, quando Deus fala, também pode ser vista quando o Senhor se dirige a Abraão (Cn 22:11), a Moisés

(Êx 3:4), a Marta (Lc 10:41) e a Paulo (At 9:4; 26:14).

9. Samuel teria um ministério de "abrir as portas" para outros. Abriu as portas da monarquia a Saul, que não a colocou a serviço
da glória de Deus, e também para Davi, que usou seu cargo para servir a Deus e ao povo. Samuel fundou uma escola de

profetas e abriu as portas do ministério a homens que lhe foram enviados por Deus. Abriu as portas de um novo começo para

a nação de Israel, que se encontrava em decadência tanto em termos espirituais quanto políticos.
Israel fo i derrotado (vv. 1-10). Afeca era
2 uma cidade filistéia situada ao norte, a cerca
de cinco quilômetros da cidade israelita de
Ebenézer ("pedra da ajuda").' Siló ficava
A D erro ta de Isra el - cerca de trinta e dois quilômetros a leste de
Ebenézer. No confronto inicial, os filisteus
A V it ó r ia de D eu s derrotaram Israel e mataram quatro mil ho­
mens, causando a perplexidade dos anciãos
1 S am uel 4 - 6
israelitas. Afinal, Israel não era a nação es­
colhida de Deus e o Senhor não lhes havia
dado a terra como sua propriedade? Se os
anciãos tivessem se lembrado dos termos
arca da aliança é mencionada pelo me­ da aliança de Deus, teriam percebido que
A nos trinta vezes nestes três capítulos
e representa o Deus Jeová, a figura central
essa derrota vergonhosa havia sido causada
pela desobediência de Israel à lei de Deus
de toda a história de Israel. A arca era a (Lv 26:39; Dt 28:25).
peça mais importante do tabernáculo e fi­ O Senhor havia lhes dito claramente
cava no Santo dos Santos. Dentro da arca como combater suas guerras (Dt 20), mas
ficavam as duas tábuas da lei, e sobre ela em vez de sondar seu coração e de confes­
havia um "propiciatório" dourado, no qual sar seus pecados, os israelitas decidiram
a presença gloriosa de Deus habitava (Êx imitar Moisés e Josué e levar a arca da alian­
25:10-22). Para os olhos da fé, Deus encon­ ça junto consigo para a batalha (ver Nm
tra-se evidente e ativo em todos os acon­ 10:33-36; Js 3 - 4 e 6). Porém, essa aborda­
tecimentos registrados nestes capítulos. gem foi apenas uma forma de "usar Deus"
Nenhum dos acontecimentos ocorreu por para cumprir propósitos humanos. Ao con­
acidente, pois tudo fazia parte do plano de trário de Moisés e de Josué, não buscaram
Deus para disciplinar seu povo, julgar os a vontade de Deus e, certamente, não esta­
pecadores e, a seu tempo, estabelecer seu vam procurando glorificar ao Senhor. O pior
rei ungido. é que Hofni e Finéias carregariam a arca de
Deus! Como seria possível que Deus aben­
1. A P alavra fie L de D eus çoasse dois homens perversos contra os
(1 Sm 4:1-22) quais já havia decidido executar seu julga­
Assim que Deus começa a revelar sua Pa­ mento (1 Sm 2:29, 34 - 4:4,17)? Porém, a
lavra a seu povo, o inimigo aparece para esperança de Israel era que a presença da
atacar. Os filisteus são mencionados nas Es­ arca salvaria os israelitas de seus inimigos.2
crituras já nos tempos de Abraão (Cn 21:32; Quando Hofni e Finéias apareceram no
ver 10:14), e nos Livros de Samuel são cita­ acampamento carregando a arca de Deus,
dos mais de cento e cinqüenta vezes. Eram, os soldados e anciãos gritaram, cheios de
a princípio, um povo da região do Egeu e entusiasmo, mas sua autoconfiança carnal
uma gente voltada para o mar. Invadiram o serviu apenas de prelúdio para outra derro­
território da costa do Mediterrâneo (Fenícia) ta. A arca poderia estar com eles no acam­
e procuraram controlar toda a terra conhe­ pamento, mas o Senhor estava contra eles.
cida como Palestina (o nome "Palestina" vem Os gritos de alegria talvez tenham levanta­
do termo "Filístia"). A conquista da Terra do seu moral, mas não garantiam, de modo
Prometida por Israel causou grande trans­ algum, a vitória. Tudo isso só serviu para
torno para os filisteus e, em várias ocasiões, aumentar a determinação do exército filisteu
esse povo tentou expulsar os israelitas da de lutar com mais vigor e de vencer a bata­
região. É bem provável que a batalha aqui lha, o que de fato aconteceu e causou a
mencionada tenha sido uma reação de Is­ morte de trinta mil soldados israelitas. Deus
rael a uma dessas invasões filistéias. não permite ser "usado" para que pessoas
212 1 SAMUEL 4 - 6

perversas alcancem seus próprios objetivos controlá-los no passado. Ao assentar-se em


egoístas. Deus prometeu: "aos que me hon­ seu lugar especial junto ao tabernáculo, Eli
ram, honrarei" (1 Sm 2:30). não estava preocupado com os filhos; an­
A arca fo i capturada (v. 11a). Nos tes, estremeceu por causa da arca de Deus.
versículos 11-22, encontramos cinco vezes Mas será que Eli não sabia que Deus ainda
a oração: "Foi tomada a arca de Deus" (1 Sm estava em seu trono celestial, mesmo que
4:11, 17, 19, 21, 22). Nunca antes na histó­ seu trono aqui na terra tivesse sido vulgari­
ria de Israel a arca de Deus havia caído nas zado e transformado num amuleto? O Se­
mãos do inimigo! Sua santidade era tal que nhor não era capaz de proteger a própria
a arca permanecia atrás do véu do taberná­ mobília e a própria glória?
culo e era vista apenas pelo sumo sacerdo­ O mensageiro correu primeiro à parte
te uma vez por ano no dia da expiação (Lv mais movimentada de Siló e ali transmitiu a
16). No tempo em que a nação vagou pelo triste notícia da derrota de Israel, e o lamen­
deserto, quando o acampamento se deslo­ to ruidoso do povo chamou a atenção de
cava, a primeira coisa que o sacerdote fazia Eli. Correu, em seguida, até o sumo sacer­
era cobrir a arca com o véu (Nm 4:5, 6) e, dote e lhe contou sobre a derrota de Israel e
só então, cuidava do restante da mobília do sobre o massacre que ocorrera, no qual
tabernáculo. Hofni e Finéias haviam sido mortos e - como
A arca de Deus era o trono de Deus (2 Sm se estivesse guardando a notícia mais trági­
6:2; ver também SI 80:1 e 99:1); agora se ca para o final - que a arca de Deus havia
encontrava em território inimigo! Os israelitas sido tomada pelos filisteus. Eli deve ter so­
haviam se esquecido de que a arca era o frido um derrame ou um ataque cardíaco,
trono de Deus somente quando Israel se su­ pois caiu para trás, quebrou o pescoço e
jeitasse a ele e obedecesse à sua aliança. Qual­ morreu. Eli "era homem [...] pesado",3 pro­
quer outra coisa não passava de superstição vavelmente de comer carne demais dos
ignorante, como acreditar em amuletos. Não sacrifícios (2:29) e de levar uma vida seden­
era pecado levar a arca para a batalha se o tária. A morte de Eli e de seus dois filhos foi
povo encontrava-se, verdadeiramente, con­ o começo do cumprimento da profecia se­
sagrado ao Senhor e se possuía o desejo de gundo a qual a linhagem de Eli no sacerdó­
honrá-lo. Deus colocou a arca nas mãos de cio seria extinta e uma nova linhagem seria
pagãos, mas os filhos de Eli viviam como introduzida.
pagãos enquanto ministravam diante da A glória de Deus partiu (vv. 19-22). A
arca, de modo que não fazia grande dife­ esposa de Finéias possuía percepção espiri­
rença. Deus usaria a arca para ensinar algu­ tual mais profunda do que seu sogro, seu
mas lições importantes tanto para os israelitas marido e seu cunhado. Os dois irmãos usa­
quanto para os filisteus. ram a arca como um amuleto, Eli estava in­
Os dois sacerdotes foram mortos (v. 11b). teressado na segurança da arca, mas ela se
Esse acontecimento cumpriu a Palavra de preocupou com a glória de Deus. Chamou
Deus proferida a Eli pelo profeta anônimo seu filho de Icabô - "Foi-se a glória de Is­
(2:27-36) e a Samuel quando ele foi chama­ rael" - e, logo em seguida, faleceu.4 A pre­
do pelo Senhor (3:11-18). Deus havia sido sença da glória de Deus no acampamento
longânimo para com Hofni e Finéias, en­ era um sinal especial de que os israelitas
quanto profanavam os sacrifícios do Senhor eram o povo de Deus (Êx 40:34; Rm 9:4),
e o povo de Deus, mas sua hora havia chega­ porém, uma vez que a glória havia partido,
do e seus pecados os haviam encontrado. o favor especial de Deus não estava mais
O sumo sacerdote m orreu (vv. 12-18). sobre eles. Quando o rei Salomão consa­
Eli sabia que seus filhos haviam entrado no grou o templo, a glória de Deus voltou (1 Rs
Santo dos Santos e levado a arca para o cam­ 8:10), mas antes da destruição de Jerusalém,
po de batalha, mas não fora capaz de de­ o profeta Ezequiel viu a glória de Deus dei­
tê-los, assim como não havia conseguido xar o templo e a cidade (Ez 8:4; 9:3; 10:4,
1 SAMUEL 4 - 6 213

18; 11:22, 23). Ezequiel também viu o futu­ seguinte, os adoradores encontraram Dagom
ro templo milenar e a volta da glória de Deus prostrado diante da arca, como se fosse um
(Ez 43:1-5). A glória de Deus só retornou à de seus devotos. Assim como todo ídolo
terra com o nascimento de Cristo, o Salva­ morto, Dagom teve de ser erguido à posi­
dor do mundo (Lc 2:8-11; Jo 1:14). Nos dias ção original (SI 115), mas o que ocorreu na
de hoje, a glória de Deus habita em seu povo manhã seguinte foi ainda pior. O tronco de
de modo individual (1 Co 6:19, 20) e em Dagom estava prostrado diante da arca da
sua Igreja de modo coletivo (Ef 2:19-22). aliança, mas sua cabeça e seu braço haviam
Esse acontecimento trágico foi tão signi­ sido decepados e colocados no limiar do
ficativo que o salmista inclui-o em um de templo! No entanto, a história não terminou
seus salmos (SI 78:60, 61). Porém, a captura aí, pois Deus não apenas humilhou o deus
da arca pelos filisteus foi apenas parte da dos filisteus como também julgou o povo
história, pois o Senhor abandonou o taberná­ que adorava esse deus. Quando os filisteus
culo em Siló e permitiu que este fosse tomaram a arca e, em sua arrogância, trata­
destruído pelo inimigo (Jr 7:12-14; 26:6, 9). ram o Senhor como se fosse apenas outra
Os filisteus acabaram devolvendo a arca, que divindade qualquer, atraíram sobre si o jul­
ficou primeiro em Bete-Semes e, depois, em gamento de Deus.
Quiriate-Jearim (1 Sm 6:13-21). É bem pro­ Ao reunir as evidências, tudo indica que
vável que os sacerdotes tenham construído o Senhor infectou camundongos ou ratos
algum tipo de tabernáculo em Nobe (1 Sm (1 Sm 6:4) no meio do povo e usou-os para
21:1 ss), mas no tempo de Salomão, o san­ espalhar uma praga terrível. De acordo com
tuário ficava em Cibeão (1 Cr 21:29; 1 Rs a aliança, o Senhor deveria ter enviado essa
3:4). Quando Salomão terminou de cons­ aflição sobre os israelitas incrédulos (Dt
truir o templo, juntou a este o tabernáculo 28:58-60), mas, em sua graça, o Senhor
(2 Cr 5:5). castigou o inimigo. Alguns estudiosos acre­
Os filhos perversos de Eli acreditaram ditam que se tratou de uma epidemia de
que seu subterfúgio salvaria a glória de peste bubônica, causando inchaços doloro­
Deus, mas só conseguiram mandar embo­ sos nos gânglios linfáticos, especialmente na
ra essa glória! região da virilha. Outros acreditam que foi
uma praga de tumores, talvez casos graves
2. O p o d e r v in d ic a d o r de D eu s de hemorróidas (ver 1 Sm 5:9), apesar de
(1 Sm 5:1-12) ser difícil de entender, nesse caso, a partici­
As cinco cidades-chave dos filisteus eram pação dos ratos. Qualquer que tenha sido o
Asdode, Gaza, Asquelom, Gate e Ecrom, e castigo, foi algo que causou dor e humilha­
cada uma possuía um governante ou "prín­ ção nos filisteus; eles, por sua vez, atribuí­
cipe" (6:16,17). Os filisteus colocaram a arca ram seu sofrimento à presença da arca.
no templo do deus Dagom em Asdode, Porém, os cinco príncipes filisteus esta­
como evidência de que Dagom era mais vam preocupados em preservar a glória de
forte e poderoso do que Jeová. No começo sua vitória. Se pudessem provar que a cala­
da batalha, os filisteus se assustaram ao saber midade era uma coincidência, ficariam com
que o Deus de Israel estava no acampamen­ a arca e continuariam a engrandecer Dagom,
to, mas depois da vitória filistéia, começa­ afirmando sua superioridade em relação a
ram a escarnecer de Jeová e a exaltar seus Jeová. A maneira mais fácil de fazer isso era
deuses. Na mitologia filistéia, Dagom era o transportar a arca para outra cidade e ver o
deus principal e pai de Baal, deus da tem­ que aconteceria, de modo que a levaram
pestade, cuja adoração causou tantos trans­ para Gate... e a praga se repetiu nessa cida­
tornos para Israel. de! Em seguida, levaram a arca para Ecrom,
Dagom não representava ameaça algu­ onde o povo protestou e ordenou que a
ma, pois o Deus Jeová era e é plenamente colocassem em outro lugar! Deus matou
capaz de cuidar de si mesmo! Na manhã vários cidadãos ("a mão de Deus castigara
214 1 SAMUEL 4 - 6

duramente ali") e também enviou uma pra­ para apaziguar Jeová, confeccionando para
ga dolorosa sobre o povo de Ecrom, exata­ isso modelos em ouro dos ratos e dos tumo­
mente como havia feito com os habitantes res. Se as vacas não rumassem para o terri­
de Asdode e de Gate. Deus havia se vindi­ tório dos israelitas, os filisteus poderiam
cado e provado que fora sua mão que havia pegar de volta o ouro. Se as vacas atraves­
destruído a estátua de Dagom, trazendo afli­ sassem a fronteira com Israel, o Senhor seria
ção sobre o povo filisteu. Ninguém poderia apaziguado e não enviaria mais pragas para
chamar a erupção dessas pragas de simples a Filistia. Esse plano permitiria que o Senhor
coincidência. Porém, os príncipes filisteus recebesse a glória sem que os príncipes
ainda tiveram de encontrar uma forma de filisteus fossem envergonhados. Ao levar em
se livrar da arca sem se humilhar e, talvez, consideração que as vacas estavam amamen­
sem trazer mais julgamento. tando seus bezerros e mugindo por eles e
que nunca haviam puxado um carro antes,
3. A PROVIDÊNCIA SÁBIA DE DEUS era muito improvável que tomassem a estra­
(1 S m 6:1-18) da de Ecrom para Bete-Semes. Os cinco prín­
As experiências descritas em 1 Samuel 5:1­ cipes e seus sábios haviam pensado em tudo.
12 ocorreram ao longo de um período de Deus dispõe (w . 10-18). Mas haviam se
sete meses, sendo que, no final desse tem­ enganado. Os príncipes filisteus não conhe­
po, os cinco príncipes decidiram que era ciam o verdadeiro Deus vivo, mas as vacas
hora de livrar-se da arca. Ainda que não qui­ sabiam quem era seu Criador e obedece­
sessem admitir, Jeová havia se vindicado di­ ram a suas ordens! "O boi conhece o seu
ante dos filisteus e humilhado seu falso deus. possuidor, e o jumento, o dono da sua man­
Insistindo em manter a dignidade, os prínci­ jedoura" (Is 1:3). Atravessaram a fronteira e
pes procuraram um modo de enviar a arca chegaram à cidade levítica de Bete-Semes
de volta para Israel sem o envolvimento di­ (Js 21:13-16), onde os homens trabalhavam
reto deles próprios ou de seu povo. nos campos colhendo o trigo. Os israelitas
O homem põe (w . 1-9). Os sábios filis­ receberam a arca de volta com grande ale­
teus criaram outra forma de testar o Deus gria, e os levitas a tiraram do carro e a colo­
de Israel. Se Jeová, representado pela arca, caram numa grande pedra no campo.
era de fato o verdadeiro Deus vivo, então Gratos porque o trono de Deus havia
e/e que levasse a arca de volta a seu lugar! sido devolvido a seu povo, os levitas ofere­
Os príncipes traçaram um plano que os ab­ ceram as vacas como holocaustos ao Senhor
solveria de qualquer responsabilidade ou e, em sua alegria, desconsideraram que, de
culpa. Tomariam duas vacas com seus be­ acordo com a lei, somente animais machos
zerros e as separariam deles. Atrelariam as poderiam ser sacrificados (Lv 1:3). Outros
vacas a um carro novo, colocariam a arca homens da cidade trouxeram mais sacrifícios.
sobre o carro e soltariam as vacas. Se elas Colocaram os presentes de ouro sobre a
não se movessem ou se fossem para junto pedra e ofereceram-nos ao Senhor. Uma
de seus bezerros, seria "prova" de que o vez que Siló havia sido destruída e que não
Deus de Israel não estava no controle e de existia mais um santuário para a adoração,
que os filisteus não tinham o que temer. Se uma pedra grande foi usada como altar, e o
as vacas simplesmente vagassem de um lado Senhor aceitou as ofertas. Deus quer um co­
para o outro sem rumo certo, os príncipes ração contrito e quebrantado e não uma
poderiam chegar à mesma conclusão. O obediência servil à lei (SI 51:15-1 7). O inimi­
mais provável era que as vacas voltassem go estava por perto (1 Sm 6:16), e os israelitas
para seus bezerros, uma vez que estavam não se atreveram a deixar aquele lugar, para
cheias de leite do qual iriam querer se livrar onde as vacas foram direcionadas por Deus.
e do qual os bezerros precisavam. Deus havia feito o que Dagom jamais
Mas os sábios não pararam por aí. Deci­ seria capaz fazer: guiou as vacas, manteve
diram que a nação deveria enviar dádivas sua atenção presa à estrada certa, superou
1 SAMUEL 4 - 6 215

o desejo delas de ir para junto de seus be­ foram julgados, mas cinqüenta mil parece
zerros e levou-as para a cidade levítica de um número um tanto exagerado. Porém,
Bete-Semes. Sua providência governa todas uma vez que não sabemos qual era a popu­
as coisas. Infelizmente, os sacerdotes e levitas lação de Bete-Semes e arredores, não temos
não fizeram bem o seu trabalho, e aquilo como julgar o texto. Quem sabe, um dia,
que deveria ter sido motivo de grande ale­ um arqueólogo apresentará a solução para
gria acabou trazendo tristeza em função da esse problema.
insensatez humana. A seu tempo, a arca re­ Apesar de Deus não viver nas constru­
ceberia um novo local, quando o rei Davi a ções nem na mobília ou nos utensílios de
transportasse para o lugar especial que ha­ nossas igrejas (At 7:48-50), desejamos mos­
via preparado em Jerusalém (2 Sm 6:12ss). trar respeito por tudo aquilo que é consa­
grado à glória de Deus. O acontecimento
4. A IRA SANTA DE DEUS extraordinário descrito nessas passagens
(1 S m 6 :1 9 , 20 ) sem dúvida serve para nos advertir sobre a
Os homens de Bete-Semes deveriam ter co­ curiosidade religiosa e a falta de reverência
berto a arca, que não deveria ser vista por pelo Senhor. "Horrível coisa é cair nas mãos
pessoa alguma exceto o sumo sacerdote, e do Deus vivo" (Hb 10:31). Na sociedade
esse erro lhes custou caro. Alguns ficaram ocidental de nosso tempo, com toda sua
curiosos, olharam dentro da arca e foram informalidade e falta de respeito pelo sagra­
mortos. Se os filisteus pagãos foram julga­ do, é fácil até os cristãos ficarem tão "che­
dos pela maneira de tratar a arca, o povo gados" a Deus a ponto de esquecerem que
israelita, que conhecia a lei e que vivia nu­ ele é "elevado e exaltado".
ma cidade levítica, deveria ser ainda mais
responsável! 5. A GRAÇA MISERICORDIOSA DE DEUS
O número preciso de pessoas mortas é (1 S m 6:21 - 7:2)
motivo de controvérsia entre os estudiosos, O Senhor poderia ter se retirado do meio
pois cinqüenta mil parece ser elevado de­ de seu povo, mas em vez disso, em sua gra­
mais para uma cidade do tamanho de Bete- ça, permitiu que a arca fosse transportada
Semes. Alguns acreditam que não passaram cerca de dezesseis quilômetros até Quiriate-
de setenta pessoas e dizem que cinqüenta Jearim, onde perm aneceu na casa de
mil é erro de algum escriba, o que talvez Abinadabe. Os homens da cidade consagra­
seja verdade. Os hebreus usavam letras no ram Eleazar, filho de Abinadabe, para guar­
lugar de números e não seria difícil um dar a arca. Sem dúvida, tratava-se de uma
copista se equivocar. Outros incluem nos família de levitas, uma vez que, depois do
cinqüenta mil os quatro mil exterminados que havia acontecido em Bete-Semes, é
no "grande morticínio" (1 Sm 4:17) no cam­ pouco provável que o povo quisesse correr
po de batalha, mas o texto afirma de modo o risco de transgredir a lei novamente! É
específico que Deus feriu os irreverentes possível que a arca tenha passado aproxi­
que olharam dentro da arca (ver 1 Sm 6:19; madamente um século em Quiriate-Jearim,
Lv 16:13; Nm 1:50, 51; 4:5, 16-20). É extre­ pois a batalha em Afeca ocorreu por volta
mamente improvável que cinqüenta mil pes­ de 1104 a.C., e Davi levou a arca para Jeru­
soas tenham feito uma fila e passado pela salém por volta de 1003 a.C. (2 Sm 6). A
arca, pois aqueles que estivessem enfileira­ arca já estava na casa de Abinadabe havia
dos se dispersariam assim que os primeiros vinte anos quando Samuel convocou uma
curiosos tivessem sido mortos. É possível assembléia de todo o povo, instando os is­
que a morte não tenha sido instantânea. raelitas a deixar seus pecados e a buscar o
Sem dúvida, os levitas teriam protegido a Senhor (1 Sm 7:3).
arca de curiosos, pois conheciam as pena­ A arca da aliança representava a pre­
lidades resultantes de transgredir a lei de sença do Senhor com seu povo e o domí­
Deus. Não é difícil crer que setenta homens nio do Senhor sobre Israel. Deus tinha todo
216 1 SAMUEL 4 - 6

o direito de abandonar seu povo perverso, para os que colocam a escolha nas mãos
mas, em sua graça, permaneceu com eles, do Senhor.
ainda que não no tabernáculo especial cuja Jesus Cristo representa para o povo de
construção ele havia ordenado. Foi um tem­ Deus, nos dias de hoje, aquilo que a arca
po difícil para os israelitas, pois não cons­ representava para Israel. E, quando é colo­
tituíam um povo unido e temente a Deus. cado em seu devido lugar de proeminência
Israel acreditava que seus problemas se­ em nossa vida, ele nos abençoará e traba­
riam resolvidos se tivessem um rei como as lhará para o nosso bem. "Santificai a Cristo,
outras nações, mas iriam descobrir que fa­ como Senhor, em vosso coração" (1 Pe
zer as coisas a seu modo sempre os colo­ 3:15). Quando Jesus Cristo é Senhor, o futu­
cava em dificuldades ainda maiores. Deus ro é seu amigo, e você pode caminhar cada
ainda tem reservado o que há de melhor dia certo da presença e da ajuda de Deus.

1. É evidente que o Livro de 1 Samuel foi redigido depois dos acontecimentos descritos, de modo que o nome "Ebenézer" é

usado nessa passagem por antecipação. Ver 1 Samuel 7:12. Contudo, pode ter sido outro local com o mesmo nome.

2. A palavra "mão(s)" é o termo-chave dessa história. A expressão "mãos dos filisteus" pode ser encontrada em 1 Samuel 4:3 ("de

nossos inimigos"]; 7:3 e 8. Os filisteus falam das "mãos destes grandiosos deuses" (1 Sm 4:8), e "a mão do S enh o r " é
mencionada em 1 Samuel 5:6, 7,9, 11; 6:3, 5, 9; e 7:13.

3. O termo hebraico kabod aparece com freqüência nesse relato. Significa "pesado", mas também pode significar "honra, glória,

respeitoso" (pessoas "de peso"). Eli era "pesado" (obeso), mas não era um homem "de peso", com relação a seu caráter e
piedade, aquilo que Paulo chamou de "peso de glória" (1 Co 4:17).

4. Raquel chamou seu segundo filho de "Ben-oni", que significa "filho da minha tristeza", mas Jacó mudou o nome do bebê para
Benjamim, "filho da minha destra" (Gn 35:16-18).
uma cidade em Benjamim (Js 18:26), onde
3 desafiou o povo da aliança de Deus a voltar
para o Senhor.
Os israelitas deixaram seus falsos deu­
O Povo Pede um Rei ses (w . 3, 4). A idolatria havia sido um pe­
cado constante em Israel. A família de Jacó
1 S a m u e l 7-11 havia carregado falsos deuses consigo (Gn
35:2), e quando os hebreus eram escravos
no Egito, adotaram os deuses e deusas dos
egípcios, e, depois do êxodo, os israelitas
adoraram alguns desses ídolos durante as
jornadas pelo deserto (At 7:42, 43). Moisés
arca da aliança não estava mais nas ordenou que Israel destruísse todo e qual­
A mãos do inimigo e se encontrava na
casa de Abinadabe, em Quiriate-Jearim, no
quer vestígio da religião cananéia, mas o
povo acabou se entregando novamente à
território de Benjamim (1 Sm 1 - 2; Js 18:28). idolatria e adorando os deuses de seus ini­
Siló havia sido destruída pelos filisteus e não migos derrotados. Samuel citou especifica­
era mais o lugar do santuário do Senhor, mente os baalins e astarotes (1 Sm 7:3, 4).
sendo que muitos anos se passariam antes Baal era o deus cananeu da tempestade,
que a arca fosse levada a Jerusalém pelo rei para o qual os israelitas se voltavam com
Davi (1 Cr 15). Porém, ter a arca em sua freqüência quando a terra passava por um
terra não resolveria automaticamente os pro­ período de seca. Astarote era a deusa da
blemas de Israel, pois ao longo de vinte anos, fertilidade, cuja adoração incluía rituais
desde que a arca havia sido colocada na indescritivelmente sensuais. Os israelitas
casa de Abinadabe, uma nova geração sur­ não viram apenas uma representação de
gira e clamava por mudanças radicais no Deus no monte Sinai, mas sim ouviram a
governo de Israel. Durante séculos, o povo voz do Senhor. Sabiam, portanto, que ado­
de Israel havia considerado Jeová seu Rei, rar qualquer imagem de seu Deus consti­
mas agora pediam ao Senhor que lhes des­ tuía uma prática ilícita.
se um rei como os monarcas das outras na­ Deixar os falsos deuses era apenas o
ções. Foi um momento crítico na história de começo do processo de volta para o Senhor.
Israel, e as orações e orientações de Samuel Além disso, os israelitas deveriam preparar
mostraram-se cruciais para que o povo pas­ o coração para o Senhor e se consagrar so­
sasse em segurança por essa fase perigosa mente a ele (v. 3). Essas instruções estavam
de transição. de acordo com o primeiro mandamento:
"Não terás outros deuses diante de mim"
1. O povo busca a o Se n h o r (Êx 20:3). Um ídolo é um substituto para
(1 S m 7:3-17) Deus: qualquer coisa a que servimos e na
Samuel estava ciente da inquietação do qual confiamos em lugar de Deus. Os israe­
povo e de seu desejo de mudanças e sabia litas adoravam ídolos de madeira, de pedra
que períodos de transição fazem aflorar o e de metal, mas os cristãos de hoje possuem
que há de melhor ou de pior nas pessoas. ídolos mais sutis e atraentes: casas e pro­
Deus chamou Samuel para construir uma priedades, riqueza, carros, cargos e reco­
ponte entre a era turbulenta dos juizes e a nhecimento, ambição e, até mesmo, outras
nova era da monarquia, tarefa nada fácil. De pessoas. Qualquer coisa em nossa vida que
uma coisa Samuel estava certo: com ou sem ocupe o lugar de Deus e que exija o sacrifí­
rei, a nação jamais seria bem-sucedida se o cio e a dedicação que pertencem somente
povo não colocasse o Senhor em primeiro ao Senhor é um ídolo e deve ser lançada
lugar e cresse somente nele. Por esse mo­ fora. Os ídolos do coração são muito mais
tivo, convocou uma assembléia em Mispa, perigosos do que os de um templo.
218 1 SAMUEL 7 - 1 1

Confessaram seus pecados (vv. 5, 6). Como vimos, Samuel era um homem de
Samuel planejava conduzir o povo a um oração (SI 99:6), e, naquele dia, Deus lhe
tempo de adoração e de intercessão para respondeu. Ao oferecer o holocausto no fi­
que fossem libertos dos inimigos, mas, se nal do dia, o Senhor trovejou contra os sol­
os israelitas tivessem qualquer iniqüidade dados filisteus, confundindo-os de tal modo
no coração, o Senhor não os ouviria (SI que foi fácil Israel atacá-los e derrotá-los.
66:18). Não bastava apenas destruir seus Quando nos lembramos de que Baal era o
ídolos, mas também era preciso que confes­ Deus cananeu da tempestade, vemos como
sassem seus pecados e que se entregassem o poder do trovão de Deus é ainda mais
ao Senhor. Duas considerações indicam significativo.
que essa assembléia ocorreu durante a Fes­ O Senhor manteve os filisteus afastados
ta dos Tabernáculos. Em primeiro lugar, o de Israel todos os dias de Samuel. Em decor­
povo derramou água diante do Senhor, algo rência dessa vitória, os israelitas recupera­
que se tornou uma prática relacionada à ram cidades que haviam perdido na batalha
Festa dos Tabernáculos, comemorando as e até ganharam os amorreus como seus alia­
ocasiões em que o Senhor proveu água no dos. Sempre que o povo de Deus depende
deserto (Jo 7:37-39). Em segundo lugar, o de seus planos e recursos, seus esforços fra­
povo jejuou, uma prática requerida apenas cassam e envergonham o nome de Deus.
no dia anual da expiação, que antecedia a Porém, quando o povo de Deus confia no
Festa dos Tabernáculos.' Senhor e ora, ele supre suas necessidades e
A principal atividade daquele dia foi a seu nome é glorificado. Um homem ou
confissão do povo. "Pecamos contra o Se­ mulher de oração é mais poderoso do que
n h o r . " A promessa da aliança de Deus a todo um exército! Não é de se admirar que
Israel era a de que ele perdoaria seus pe­ o rei Jeoás tenha chamado o profeta Eliseu
cados, se os confessassem ao Senhor com de "Carros de Israel e seus cavaleiros!" (2 Rs
sinceridade (Lv 26:40-45), pois não havia 13:14), título que Eliseu usou para Elias, seu
sacrifícios suficientes nem rituais capazes mentor (2 Rs 2:12 e ver 6:17). Será que te­
de purificá-los de seus pecados. "Sacrifícios mos homens e mulheres de oração desse
agradáveis a Deus são o espírito quebran­ tipo hoje?
tado; coração compungido e contrito, não Comemoraram a vitória (v. 12). A práti­
o desprezarás, ó Deus" (SI 51:1 7). Essa pro­ ca de colocar pedras para comemorar acon­
messa de perdão e de bênção foi reiterada tecimentos importantes faz parte da cultura
por Salomão mais adiante na história de Is­ dos hebreus desde o tempo em que Jacó
rael, por ocasião da consagração do tem­ ergueu um memorial em Betei (Gn 28:20­
plo (2 Cr 7:14). 22; 35:14). Josué colocou doze pedras no
Oraram ao Senhor pedindo sua ajuda meio do rio Jordão (Js 4:9) e outras doze na
(w . 7-11, 13, 14). Quando os filisteus sou­ margem ocidental em Gilgal, a fim de mar­
beram desse grande ajuntamento de car o local onde as águas se abriram e Israel
israelitas, suspeitaram que Israel estava pla­ atravessou para a terra prometida (4:1-8,19­
nejando um ataque, de modo que os cinco 21). Um montão de pedras no vale de Acor
príncipes filisteus convocaram suas tropas e servia para lembrar os israelitas da desobe­
se prepararam para invadir a nação vizinha. diência de Acã (7:24-26), e outro montão
Israel não possuía um exército permanente marcava o lugar onde o rei de Ai havia sido
nem um governante para organizar uma for­ sepultado (8:29). Ainda outro conjunto de
ça militar, de modo que se sentiam impo­ pedras encontrava-se na caverna de
tentes. Porém, sua maior arma era a fé no Maquedá, a fim de marcar o local onde cin­
Deus Jeová, fé que se expressava por meio co reis haviam sido derrotados e mortos
da oração. "Uns confiam em carros, outros, (10:25-27). Antes de sua morte, Josué er­
em cavalos; nós, porém, nos gloriaremos em gueu uma grande pedra para servir de teste­
o nome do S e n h o r , nosso Deus" (SI 20:7). munho e lembrar os israelitas do voto que
1 SAMUEL 7 - 1 1 219

haviam feito de servir e de obedecer somen­ obedeceu ao Senhor, mas o fez com dor no
te ao Senhor (24:26-28). coração.
"Ebenézer" significa "pedra de ajuda", Deus havia escolhido Moisés para lide­
pois o monumento era uma lembrança aos rar a nação de Israel e Josué para sucedê-lo
israelitas de que Deus os havia ajudado até (Dt 31:1-15), mas Josué não recebeu instru­
lá e de que continuaria a ajudá-los se con­ ções do Senhor para impor as mãos sobre
fiassem nele e guardassem sua aliança. O um sucessor. Deixou os anciãos que havia
fundador da Missão para o Interior da Chi­ treinado para servir ao Senhor, mas quando
na, J. Hudson Taylor, costumava pendurar estes morreram, a nova geração afastou-se
em todas as casas onde morava uma placa de Deus e seguiu os ídolos de Canaã (Jz
que dizia: "Ebenézer - Jeová Jiré". Juntas, 2:10-15). Com referência ao sacerdócio, o
essas palavras em hebraico significam: "Até que ocorreu foi uma sucessão automática,
aqui nos ajudou o Senhor e nos ajudará e, sempre que fosse preciso, Deus poderia
daqui em diante". Que grande estímulo levantar profetas, mas quem iria liderar o
para nossa fé! povo e providenciar para que a lei fosse
Respeitaram Sam uel (w . 15-17). É bem obedecida? Durante o período dos juizes,
provável que essa assembléia em Mispa te­ Deus levantou líderes aqui e ali e lhes deu
nha marcado o início do ministério público grandes vitórias, mas ninguém possuía au­
de Samuel à nação toda de Israel, de modo toridade sobre a nação como um todo. "Na­
que, daquela ocasião em diante, foi ponto queles dias, não havia rei em Israel; cada
central de unidade política e de autoridade um fazia o que achava mais reto" (Jz 21:25;
espiritual. A nação sabia que Samuel era um ver 17:6; 18:1; 19:1). A "nação" de Israel
líder escolhido por Deus (3:20 - 4:1), e, quan­ era, na verdade, uma confederação informal
do ele morreu, Israel inteiro o pranteou de tribos soberanas, e esperava-se que cada
(28:3). Samuel vivia em Ramá e instituiu um tribo buscasse ao Senhor e a sua vontade.
circuito ministerial para ensinar a lei ao povo, A reivindicação por um re i (vv. 1-9). Sa­
ouvir casos litigiosos, aconselhar e julgar. bendo que Israel precisava de um governo
Seus dois filhos o assistiam servindo em central mais forte, os anciãos apresentaram
Berseba (8:1, 2). Era uma bênção para Israel a Samuel seu pedido e vários argumentos
ter um homem como Samuel para conduzi- para apoiá-lo. Destes, os dois primeiros de­
los, mas os tempos estavam mudando, e os vem ter ferido Samuel até a alma: ele estava
anciãos israelitas queriam que a nação acom­ velho e não tinha sucessor algum e seus fi­
panhasse essas mudanças. lhos não eram piedosos e aceitavam subor­
nos (1 Sm 8:3-5). Como é triste ver que tanto
2. O POVO REJEITA O SENHOR Eli quanto Samuel tiveram filhos que não
(1 S m 8:1-22) seguiram o Senhor. Eli foi complacente de­
Cerca de vinte a vinte e cinco anos se pas­ mais com os filhos rebeldes (2:29), e talvez
saram entre os acontecimentos registrados Samuel tenha passado tempo demais longe
no capítulo 7 e os do capítulo 8. Samuel era de casa, percorrendo seu circuito ministe­
um homem idoso, prestes a sair de cena, e rial pelas cidades de Israel. Os filhos ficaram
havia surgido em Israel outra geração, com distantes dele, na cidade de Berseba, onde
líderes novos e cheios de idéias. A vida con­ Samuel não poderia supervisionar o traba­
tinua, as circunstâncias mudam e o povo de lho que realizavam. Porém, se os anciãos
Deus deve ter sabedoria para se adaptar a sabiam dos pecados dos filhos do sacerdo­
novos desafios sem abandonar as antigas te, então é bem provável que o pai também
convicções. Assim como tantos outros gran­ soubesse.
des líderes, em sua velhice Samuel foi obriga­ Quando os anciãos pediram para ter um
do a tomar decisões difíceis. Aposentou-se rei "como o têm todas as nações" (1 Sm
certo de que havia sido rejeitado pelo povo 8:5, 20), estavam se esquecendo de que a
ao qual havia servido tão fielmente. Samuel força de Israel deveria ser diferente da força
220 1 SAMUEL 7 - 1 1

de outras nações. Os israelitas eram o povo Moisés preparou a nação para um rei quan­
da aliança de Deus, e ele era seu Rei. A gló­ do falou à nova geração, pouco antes de
ria de Deus habitava no meio deles e a lei entrarem na terra prometida (Dt 17:14-20).
de Deus era sua sabedoria. (Ver Êx 19:3-6; O maior pecado de Israel não foi pedir
33:15, 16; Lv 18:30 e 20:26; Nm 23:9.) Po­ um rei, mas sim insistir que Deus lhes desse
rém, os anciãos preocupavam-se com ques­ um rei imediatamente. O Senhor havia pla­
tões de segurança nacional e de proteção nejado um rei para eles - Davi, o filho de
contra os inimigos a seu redor. Os filisteus Jessé -, mas ainda não era o momento de
ainda eram uma nação poderosa, e os ele aparecer. Assim, o Senhor respondeu ao
amonitas também representavam uma amea­ pedido do povo nomeando Saul seu rei e
ça (1 Sm 12:12). Israel não tinha um exército usou Saul para disciplinar a nação e prepará-
permanente nem um rei para comandá-lo. la para Davi, o homem que Deus havia es­
Os anciãos se esqueceram de que o Senhor colhido. O fato de Saul ser da tribo de
era o Rei de Israel, aquele que dava a seu Benjamim e não de Judá já é forte indício
povo o exército e a capacidade de derrotar de que não se esperava, em momento algum,
os inimigos. que ele instituísse uma dinastia. "Dei-te um
Samuel era um homem de profunda per­ rei na minha ira e to tirei no meu furor" (Os
cepção espiritual e sabia que essa reivindi­ 13:11). O maior julgamento que Deus pode
cação de um rei era sinal de decadência enviar sobre nós é deixar que façamos as
espiritual entre os líderes. Não estavam re­ coisas a nosso modo. "Concedeu-lhes o que
jeitando a Samuel, mas sim a Deus, e era pediram, mas fez definhar-lhes a alma" (SI
isso o que pesava no coração de Samuel 106:15). Porém, o Senhor queria que seu po­
quando orou ao Senhor pedindo sabedoria. vo entrasse nessa nova fase inteiramente
Não era a primeira vez que o povo rejeitava cônscio da situação, de modo que ordenou
ao Senhor. No Sinai, seu pedido foi: "faze- a Samuel que lhes dissesse o preço que te­
nos deuses" (Êx 32:1), e depois de seu riam de pagar se quisessem ser governados
fracasso humilhante em Cades-Barnéia, dis­ por um rei.
seram: "Levantemos um capitão e voltemos O preço de um rei (w . 10-22). O que
para o Egito" (Nm 14:4).2 Sempre que a lide­ vale para indivíduos também vale para na­
rança de uma igreja entra em decadência ções: quem tira da vida o que quer paga
espiritual, essa igreja torna-se mais parecida por isso. Sob o reinado do Deus Jeová, a
com o mundo e usa os métodos e recursos nação tinha segurança e suficiência, desde
do mundo para tentar realizar a obra de que obedecesse ao Senhor, cujas exigências
Deus. Os líderes israelitas do tempo de não eram desmedidas. Obedecer à aliança
Samuel não acreditavam que Deus poderia de Deus significava viver uma vida feliz, en­
derrotar os inimigos e proteger seu povo, quanto o Senhor lhes provia tudo de que
de modo que escolheram fiar-se em um bra­ precisavam e muito mais. Porém, a palavra-
ço de carne. chave no discurso de Samuel é tomar, não
Deus nunca se surpreende com as atitu­ dar. O rei e sua corte precisariam ser susten­
des de seu povo e também não fica sem tados, de modo que tomaria seus filhos e
saber o que fazer. "O S e n h o r frustra os de­ filhas, suas propriedades, suas colheitas e
sígnios das nações e anula os intentos dos seus rebanhos. Os melhores jovens servi­
povos. O conselho do S e n h o r dura para sem­ riam no exército e nos campos do rei. Suas
pre; os desígnios do seu coração, por todas filhas seriam cozinheiras e padeiras para o
as gerações" (SI 33:10, 11). Há inúmeras evi­ rei. Ele tomaria propriedades e parte de suas
dências, ao longo do Pentateuco, de que, colheitas, a fim de alimentar os oficiais e
um dia, Israel teria um rei. Deus prometeu a servos do palácio. Apesar de tais aspectos
Abraão, Sara e Jacó que haveria reis em sua não terem ficado muito evidentes nos rei­
descendência (Gn 17:6, 17; 35:11), e Jacó nados de Saul e de Davi, certamente se
havia chamado Judá de tribo real (49:10). tornaram patentes no tempo de Salomão
1 SAMUEL 7 - 1 1 221

(1 Rs 4:7-28). Chegou o dia em que o povo facilmente. Saul possuía certa modéstia (v.
clamou pedindo alívio do jugo pesado que 21; 10:14-16), mas não havia indicação al­
esse rei havia posto sobre os israelitas para guma de que tivesse vida espiritual ativa.
manter a glória de seu reino (1 Rs 12:1-4; O encontro entre Sam uel e Saul (9:1­
ver Jr 22:13-17). 25). Saul vivia em Cibeá, localizada a cerca
Apesar das advertências, o povo insistiu de oito quilômetros de Ramá, cidade onde
que Deus lhe desse um rei. Naquele mo­ Samuel morava. No entanto, Saul nem se­
mento, a prioridade dos israelitas não era quer sabia de um fato conhecido por todo
agradar a Deus, mas sim ter garantias de Israel (3:20): que um homem de Deus cha­
proteção contra os inimigos. Queriam al­ mado Samuel vivia em Ramá (9:6). Como
guém que os julgasse e que combatesse suas era possível Saul viver tão perto do líder es­
batalhas, alguém que pudessem ver e se­ piritual de Israel e não saber dele? Trata-se,
guir. Consideravam difícil demais confiar em parte, de um mistério, mas também indi­
num Deus invisível e obedecer a seus man­ ca que Saul simplesmente vivia e trabalhava
damentos maravilhosos. Apesar de tudo o nas lavouras com a família em Cibeá e cui­
que o Senhor havia feito por Israel desde dava de sua vida. Ao que parece, não partici­
o chamado de Abraão até a conquista da pava das festas anuais e não se preocupava
Terra Prometida, deram as costas para o muito com questões espirituais. Assim como
Deus Todo-Poderoso e escolheram sujeitar- muitas pessoas hoje em dia, não era contra
se ao governo de um frágil ser humano. a religião, mas não fazia da busca ao Se­
nhor uma parte essencial de sua vida. Feliz­
3. A OBEDIÊNCIA AO SENHOR mente, o servo sabia quem era Samuel, e
(1 Sm 9:1 - 10:27) Saul deu ouvidos a seu conselho!
O enfoque passa de Samuel para Saul, rei Um acontecimento um tanto insignifi­
designado por Deus para Israel. Saul era de cante reuniu Saul e Samuel: o extravio das
Benjamim, tribo que, por pouco, não fora jumentas de Quis. Evidentemente, eram ani­
exterminada em decorrência de sua rebe­ mais valiosos, e, mais tarde, alguém os en­
lião contra a lei (Jz 19 - 20). Jacó comparou controu e devolveu a Quis (10:2), mas quem
Benjamim com um "lobo que despedaça" iria pensar que o primeiro rei de Israel seria
(Cn 49:27), e a tribo envolveu-se em inúme­ chamado para o trono enquanto procurava
ras batalhas. O território de Benjamim fica­ jumentas perdidas? Davi cuidava de ovelhas
va entre Efraim e Judá, de modo que a tribo (SI 78:70-72; 1 Sm 17:15) e considerava o
de Saul era adjacente à tribo real de Judá. povo de Israel um rebanho carente de pro­
Apesar do que Saul disse a Samuel em 1 Sa­ teção e de orientação (2 Sm 24:1 7). O Se­
muel 9:21, ele pertencia a uma família po­ nhor trabalha de maneiras incomuns, mas
derosa e rica, com servos, propriedades e se Saul não tivesse obedecido ao pai e ouvi­
animais. do seu servo, a história poderia ter sido bem
No tocante a seu aspecto físico, Saul era diferente.
alto, bem apessoado e forte, o tipo de rei Os dois homens chegaram às portas de
que o povo iria admirar. Até mesmo Samuel, Ramá no final da tarde, pois as moças esta­
com toda sua percepção espiritual, empol­ vam saindo para buscar água. Ao perguntar
gou-se quando o viu (10:23, 24). Esse ponto às jovens se o vidente estava lá, receberam
fraco de Samuel - sua admiração pelas qua­ uma resposta longa e detalhada. Talvez as
lidades físicas - transpareceu até mesmo moças israelitas estivessem contentes de
quando foi ungir Davi (16:1-7). Saul tinha poder conversar com um desconhecido alto
consideração pelos sentimentos do pai (9:5) e bem apessoado! Até mesmo o momento
e persistia no desejo de obedecer à von­ em que Saul chegou na cidade foi provi­
tade dele. O fato de haver dedicado tanto dencial, pois Samuel apareceu assim que o
tempo e esforço procurando animais perdi­ futuro rei e seu servo entraram na cidade.
dos indica que não era do tipo que desistia Samuel estava se dirigindo a um "alto" fora
222 1 SAMUEL 7 - 1 1

da cidade, onde iria oferecer um sacrifício acontecendo! Depois do banquete, Saul


ao Senhor. Uma vez que não havia um san­ voltou com Samuel para sua casa e lá tive­
tuário central em Israel naquela época, o ram uma longa conversa, durante a qual
povo levava seus sacrifícios a um santuário Samuel explicou a Saul os acontecimentos
consagrado ao Senhor que ficava num mon­ que haviam levado àquele encontro.
te próximo à cidade. As nações pagãs ado­ Sam uel unge Saul (9:26 - 10:16). Logo
ravam seus falsos deuses em lugares altos e cedo, na manhã seguinte, Samuel acompa­
também se entregavam a práticas imorais nhou Saul e seu servo até a saída da cidade,
nesses lugares, mas o povo de Israel era proi­ enviou o servo adiante e, em seguida, un­
bido de imitar tais costumes (SI 78:58; Os giu Saul como primeiro rei de Israel. Daque­
4:11-14; Jr 3:2). No dia anterior, o Senhor le momento em diante, Saul passou a ser o
havia dito a Samuel que Saul viria a Ramá, novo líder do povo de Deus ("herança"), mas
de modo que o sacerdote estava prepara­ somente Samuel e Saul sabiam disso. Como
do para encontrá-lo e para transmitir-lhe a o jovem Saul poderia ter certeza de que
mensagem de Deus. O termo "príncipe", em Deus o havia escolhido de fato? Samuel deu
1 Samuel 9:16, significa simplesmente "líder". a Saul três sinais, acontecimentos especiais
Quando Saul apareceu, o Senhor falou no­ com os quais iria se deparar no caminho para
vamente a Samuel e confirmou que aquele casa.
era, de fato, o homem que havia escolhido Primeiro, encontraria dois homens que
e que Samuel deveria ungi-lo rei. Um dos lhe diriam que os animais perdidos haviam
títulos dado aos reis era "ungido de Deus" sido encontrados (10:2), notícia esta que Saul
(1 Sm 12:3; 24:6; 26:9, 11, 16; SI 2:2, 6). já havia recebido de Samuel. Ao que pare­
Assim como havia feito com Sansão (Jz 13:5), ce, esses homens sabiam quem Saul era e
o Senhor usaria Saul para enfraquecer os que havia estado longe de casa à procura
filisteus, preparando Israel para a conquista das tais jumentas. Foi uma experiência posi­
final desse inimigo sob a liderança de Davi tiva para o jovem rei, pois serviu para asse­
(1 Cr 18:1). gurá-lo de que Deus era capaz de resolver
A resposta de Samuel ao pedido de Saul seus problemas. Uma das grandes falhas de
deve ter espantado o rapaz. Saul descobriu Saul como líder era sua dificuldade de não
que estava falando justamente com o ho­ interferir nas situações e de deixar Deus
mem a quem procurava e que, em seguida, operar. Em termos mais atuais, Saul tinha
jantaria com Samuel. Ficou sabendo que o "mania de controlar" tudo. No entanto, en­
profeta tinha uma mensagem especial para quanto Saul e seu servo jantavam com
ele e que as jumentas perdidas haviam sido Samuel, Deus trabalhava para salvar os ani­
encontradas e devolvidas ao pai de Saul. mais perdidos.
Além disso, todo o desejo de Israel concen­ O segundo sinal ocorreria no carvalho
trava-se em Saul, pois a nação inteira queria de Tabor, onde Saul encontraria peregrinos
ter um rei. Saul não entendeu o que Samuel a caminho de Betei (vv. 3, 4). Apesar da in­
estava dizendo, mas isso tudo lhe seria ex­ credulidade de Israel, ainda havia pessoas
plicado no dia seguinte. Samuel ignorou os devotas na terra que honravam e buscavam
protestos de Saul, segundo os quais ele era ao Senhor.3 É bem provável que existisse em
um joão-ninguém que pertencia a uma tri­ Betei um lugar consagrado ao Senhor (Jz
bo insignificante, e acompanhou Saul e seu 20:18, 26), e talvez os três cordeiros, o vi­
servo à sala de banquetes no alto, onde se­ nho e os três pães fossem presentes para os
ria realizada a refeição. Uma vez realizada a levitas que viviam naquele local. Uma vez
oferta pacífica, Saul recebeu a porção es­ que, até então, não havia um santuário cen­
pecial que cabia ao sacerdote (1 Sm 9:24; tral, é possível que os três cordeiros fossem
Lv 7:32, 33), e Samuel lhe informou que para os sacrifícios. Esses homens saudariam
aquela porção havia sido separada especial­ Saul e lhe dariam dois dos três pães, sendo
mente para ele. Coisas estranhas estavam que ele deveria aceitar o presente. Deus
1 SAMUEL 7 - 1 1 223

estava mostrando a Saul que ele não apenas também poderia retirar seu Espírito. Os cris­
resolveria seus problemas, como também tãos de hoje, que se encontram sob a nova
supriria suas necessidades. Como primeiro rei aliança, têm o Espírito habitando dentro de­
de Israel, ele teria de reunir um exército e les para sempre (Jo 14:16, 17) como selo de
fornecer comida e equipamentos necessá­ Deus mostrando que somos seus filhos (Ef
rios a esses homens e teria de depender do 1:13, 14). Quando Davi pediu a Deus que
Senhor. não retirasse dele o Espírito Santo (SI 51:11),
O terceiro sinal era associado ao poder pensava especificamente naquilo que Deus
espiritual (1 Sm 10:5, 6). Saul encontraria um havia feito com Saul (1 Sm 16:14; 28:15).
grupo de profetas voltando de uma cerimô­ Os cristãos de hoje podem entristecer (Ef
nia de adoração num alto, os quais estariam 4:30) e apagar (1 Ts 5:19) o Espírito, mas
profetizando. O Espírito Santo viria sobre Saul não podem mandá-lo embora.
naquela ocasião e ele se juntaria aos profe­ O Espírito possibilitou que Saul tivesse
tas em sua adoração extática. Nesse sinal, (provavelmente, pela primeira vez na vida)
Deus disse a Saul que poderia investi-lo do uma experiência pessoal com o Senhor e
poder necessário para o serviço. "Quem, que a expressasse por meio do louvor e da
porém, é suficiente para estas coisas?", é adoração. Se Saul tivesse continuado a ali­
pergunta no coração de todo servo de Deus mentar esse relacionamento com o Senhor,
(2 Co 2:16), e a única resposta correta é: sua vida teria sido muito diferente. Seu or­
"nossa suficiência vem de Deus" (3:5). No gulho e sua sede de poder tornaram-se pe­
entanto, mais tarde Saul, se tornaria extre­ cados constantes. Quando a notícia de que
mamente auto-suficiente e rebelde, e o Se­ Saul havia profetizado com os profetas es­
nhor retiraria dele seu Espírito (1 Sm 16:14; palhou-se, alguns de seus amigos falaram
28:15). dele com desdém (1 Sm 10:11-13). Não há
Quando Saul deixou Samuel e partiu de evidência alguma de que Saul fosse exces­
volta para casa, Deus "lhe mudou o cora­ sivamente perverso, mas era uma pessoa
ção" (1 Sm 10:9; ver v. 6). Não considere mundana, não espiritual, o último homem
essa declaração como um caso de "regene­ que seus amigos esperavam ver tendo expe­
ração", dentro dos padõres do Novo Testa­ riências desse tipo. A pergunta: "Está tam­
mento, pois se refere principalmente a uma bém Saul entre os profetas?" passou a ser
atitude e a uma perspectiva diferente. Esse usada sempre que alguém fazia algo que,
jovem agricultor passaria a pensar e a agir para sua personalidade, era incomum e ines­
como um líder, o rei de sua nação, um esta­ perado. Uma vez que os profetas muitas
dista e guerreiro cuja responsabilidade era vezes herdavam o ministério de seus pais
ouvir a Deus e obedecer à sua vontade. O (Am 7:14) e eles próprios eram chamados
Espírito Santo o capacitaria ainda mais para de "pais" (2 Rs 2:12; 6:2), a segunda per­
servir a Deus, desde que ele andasse em gunta foi: "Quem é o pai deles?" Mesmo
obediência à vontade do Senhor (v. 6). Pelo depois de Saul ter sido apresentado ao povo
fato de Saul ter se tornado orgulhoso e inde­ como seu rei, nem todos em Israel se im­
pendente e por ter se rebelado contra Deus, pressionaram com ele (1 Sm 10:27).
o rei perdeu o poder do Espírito, bem como Saul voltou para casa e retomou o tra­
seu reinado e, por fim, também a vida. balho no campo, como se nada de extraor­
Cada um desses acontecimentos ocor­ dinário tivesse ocorrido. Não disse coisa
reu exatamente conforme Samuel havia alguma à família sobre ter sido ungido rei
prometido, mas o texto descreve apenas o e, ao que parece, a notícia de suas expe­
encontro de Saul com os profetas (vv. 10­ riências proféticas não chegou a Cibeá. Os
13). No tempo do Antigo Testamento, Deus acontecimentos dos dias anteriores deve­
dava seu Espírito Santo a pessoas escolhi­ riam ter mostrado a Saul que Deus estava
das, a fim de capacitá-las para realizarem com ele (v. 7) e que cuidaria dele, suprindo
tarefas especiais e, da mesma forma, Deus suas necessidades, se confiasse no Senhor
224 1 SAMUEL 7 - 1 1

e obedecesse a ele. Saul também deveria Caso Saul estivesse se concentrando na gló­
ter percebido que poderia confiar que ria de Deus, teria se apresentado na assem­
Samuel lhe transmitiria a mensagem de Deus bléia e aceitado humildemente o chamado
e que desobedecer a Samuel significava de­ do Senhor. Em seguida, pediria ao povo que
sobedecer ao Senhor. Mais uma tarefa aguar­ orasse por ele e que o seguisse enquanto
dava a Saul, e era ela encontrar-se com procuraria fazer a vontade de Deus.
Samuel um Cilgal em data que lhe seria O primeiro ato oficial de Saul indicou
mostrada (v. 8). Tratava-se de um teste para que o futuro seria problemático. Saul foi um
determinar se Saul era, verdadeiramente, de­ governante cheio de relutância, que seguiu
dicado ao Senhor e se estava disposto a aca­ as emoções em vez de fortalecer a fé. Num
tar ordens. Infelizmente, Saul foi reprovado. instante servia como soldado corajoso e al­
Sam uel apresenta Saul ao povo (10:17­ truísta e, no momento seguinte, não passa­
27). Samuel convocou outra assembléia em va de um autocrata egocêntrico. Evitar a
Mispa, com o propósito de apresentar o aclamação nacional é uma coisa, mas evitar
novo rei ao povo. Fiel a seu chamado profé­ a responsabilidade recebida de Deus é ou­
tico, Samuel começou pregando um sermão tra bem diferente. Nas palavras de C. Camp­
e lembrando o povo de sua redenção do bell Morgan: "Se Deus chamou um homem
Egito pela graça e pelo poder de Deus, bem para reinar, esse indivíduo não tem direito
como sua obrigação pactuai de obedecer algum de se esconder".4 Samuel fez o que
ao Senhor. Porém, os israelitas haviam deso­ pôde para consertar a situação embaraço­
bedecido ao pedir um rei! Haviam pecado, sa. Apresentou Saul como o rei escolhido
mas o Senhor atenderia seu pedido. por Deus, de modo que a nação teve de
Somente Deus e Samuel sabiam que o aceitá-lo, e destacou as características físi­
rei já havia sido escolhido e ungido, mas cas admiráveis de Saul. O povo ficou impres­
Samuel desejava que as tribos entendessem sionado, mas, certamente, Samuel sabia que
que Jeová estava no controle do processo não era preciso ser um homem alto e mus­
de seleção. Pediu às tribos que se apresen­ culoso para realizar a obra do Senhor. Alguns
tassem - provavelmente pela representação anos depois, Deus usou o adolescente Davi
de seus anciãos -, e a tribo de Benjamim foi para matar um gigante (ver SI 147:10,11)!
selecionada. É possível que essa seleção te­ A coisa mais sábia que Samuel fez na­
nha ocorrido lançando-se sortes (14:40-42) quele dia foi ligar a monarquia à aliança di­
ou, talvez, um dos sacerdotes tenha usado vina (1 Sm 10:25). Seu primeiro discurso
o Urim e o Tumim para determinar a vonta­ sobre o rei havia sido negativo (1 Sm 8:10­
de do Senhor (Êx 28:30). Em seguida, o clã 18), mas este discurso e documento foram
de Matri foi selecionado e, desse clã, a famí­ positivos e ressaltaram os deveres tanto do
lia de Quis e, por fim, o jovem Saul. rei quanto do povo. Sem dúvida, Samuel
Mas Saul havia desaparecido! Samuel tomou como ponto de partida as palavras
teve de consultar o Senhor novamente para de Moisés em Deuteronômio 17:14-20 e
descobrir que o rei estava escondido entre lembrou o povo de que mesmo o rei deve­
os carros e a bagagem. Por certo, uma forma ria sujeitar-se ao Senhor e a sua Palavra.
nada auspiciosa de começar seu reinado! Havia um só Deus, uma só nação e uma só
O fato de Saul ter se escondido foi provoca­ aliança, e o Senhor ainda está no poder.
do por modéstia ou por medo? Provavelmen­ Terminada a assembléia, todos voltaram
te pelo medo, já que a verdadeira humildade para casa, inclusive o rei, acompanhado de
aceita a vontade de Deus e, ao mesmo tem­ um grupo de valentes que se tornaram seus
po, depende da força e da sabedoria do oficiais e seus homens de confiança. Segui­
Senhor. Como disse Andrew Murray: "A ver­ ram Saul, porque Deus lhes tocou o cora­
dadeira humildade não consiste em pensar ção. Alguns do povo deram presentes a Saul
sobre si mesmo de modo depreciativo, mas como sinal de reverência ao rei, mas um
sim de nem sequer pensar em si mesmo". grupo o desprezou e ridicularizou. Como
1 SAMUEL 7 - 1 1 225

rei, Saul poderia tê-los tratado com severida­ de reunir um exército. É interessante que
de, mas preferiu calar-se. No entanto, poste­ ninguém de Jabes-Gileade respondeu à con­
riormente, mostrou-se disposto a matar o vocação para juntar-se ao exército quando
próprio filho, Jônatas, pelo simples fato de o a nação teve de castigar a perversidade de
rapaz haver comido um pouco de mel! A Gileade em Benjamim (Jz 21:8,9), mas agora
instabilidade emocional de Saul fez com que estavam pedindo que seus compatriotas
chorasse por Davi um dia e tentasse matá-lo israelitas os salvassem!
no outro. A conquista (w . 4-11). É estranho que
os mensageiros de Jabes-Gileade não tenham
4. O serviço d o Se n h o r se apressado a entrar em contato primeira­
(1 S m 11:1-15) mente com Samuel e Saul. Seu profeta,
Um dos motivos pelos quais Israel pediu um Samuel, havia orado, e Deus havia dado a
rei foi para que a nação se unisse sob um vitória sobre os filisteus; seu novo rei, Saul,
líder e tivesse mais oportunidade de en­ tinha consigo criar o núcleo de um exército.
frentar os inimigos. O Senhor aceitou des­ Levaria algum tempo para os israelitas se
cer ao nível de incredulidade dos israelitas e acostumarem com a nova forma de gover­
deu-lhes um rei com a aparência de um guer­ no. Quando recebeu a notícia, Saul estava
reiro nato. Infelizmente, o povo de Deus con­ arando um campo com uma junta de bois.
fiou num homem feito de pó, alguém a quem Os israelitas eram conhecidos por suas ex­
pudessem admirar. No entanto, a nação não pressões ruidosas e veementes de tristeza,
creu no Senhor que, ao longo de toda a his­ e, quando Saul ouviu o povo chorando, per­
tória de Israel, havia se mostrado poderoso guntou o que havia acontecido. O rei mal
em favor de seu povo. Em sua graça, Deus havia entendido a situação quando recebeu
deu a Saul uma oportunidade de mostrar seu uma dádiva do Espírito de Deus e seu espíri­
caráter e de consolidar sua autoridade. to encheu-se de indignação justa ao ver algo
O desafio (w . 1-3). Os amonitas eram assim ocorrendo em Israel.
descendentes de Ló, o sobrinho de Abraão No mesmo instante, Saul entrou em ação
(Cn 19:30-38) e, portanto, parente dos e usou um modo dramático para enviar aos
israelitas. O perigo que Naás ("serpente") e homens de sua nação a mensagem de que
seu exército representavam contribuiu para Israel precisava deles para lutar. (Gompare
que os israelitas pedissem um rei; agora, essa passagem com aquilo que o levita de
Naás encontrava-se acampado ao redor de Juizes 19 fez.) Além disso, ao enviar a con­
Jabes-Gileade, cidade a cerca de oitenta qui­ vocação, identificou-se com Samuel, pois ele
lômetros da casa de Saul. Em vez de dar iní­ e Samuel estavam trabalhando juntos. O
cio a um cerco longo e dispendioso, Naás Senhor operou em favor de Saul ao colocar
ofereceu negociar com o povo da cidade e o temor no coração do povo, de modo que
poupar os habitantes. Tudo o que exigiu foi trezentos e trinta mil homens se reuniram
que se submetessem ao castigo incapa- para a batalha. Saul juntou o exército em
citante de ter o olho direito vazado. Arquei­ Bezeque, a cerca de trinta e dois quilôme­
ros e espadachins ficariam em desvantagem tros de Jabes-Gileade e, em seguida, enviou
em combates e todos seriam humilhados e uma mensagem à cidade avisando que o
marcados como prisioneiros de guerra der­ socorro estava a caminho e que o exército
rotados. Sem precisar matar um só israelita, chegaria lá no dia seguinte, por volta do meio
Naás poderia subjugar a cidade, tomar suas da manhã. Os habitantes da cidade usaram
riquezas e escravizar o povo. de astúcia e disseram aos amonitas que se
Os anciãos da cidade mostraram sabe­ entregariam no dia seguinte, dando a Naás
doria ao pedir uma semana de prazo, na a falsa segurança que levou seu exército a
esperança de encontrar alguém que pudes­ baixar a guarda.
se salvá-los, e Naás concordou, pensando É possível que Saul conhecesse a his­
que os pobres israelitas não seriam capazes tória de Gideão e de sua vitória sobre os
226 1 SAM UEl 7 -11

midianitas, uma vez que, assim como Gi- Samuel aproveitou a oportunidade para
deão, ele dividiu seu exército em três partes ajuntar a nação, dar graças ao Senhor e con­
e atacou durante a noite (Jz 7:16, 19). A firmar Saul e seu reinado. Os israelitas reu­
vigilha da manhã ia das duas às seis, de modo niram-se em Gilgal, próximo ao rio Jordão,
que ele pegou o exército inimigo de surpresa lugar que trazia lembranças solenes ao povo
e o aniquilou. Saul foi bem-sucedido, pois de Deus (Js 4:19 - 5:11; 7:16; 10:8-15;
recebeu o poder do Espírito de Deus, que 13:4). Na assembléia em Mispa, aceitaram
usou os talentos naturais de Saul, mas tam­ 0 rei que Deus havia lhes dado, mas em
bém lhe deu a sabedoria e a força necessá­ Gilgal confirmaram Saul como seu rei dian­
rias. Comandar um exército de trezentos e te do Senhor (1 Sm 12:1). Nosso termo
trinta mil homens não era fácil, mas Deus moderno para isso seria "coroação". As
deu a vitória. A vontade de Deus jamais nos ofertas pacíficas faziam parte de uma ceri­
conduzirá a um lugar onde a graça de Deus mônia da aliança na qual o povo oferecia
não possa nos guardar e usar. sacrifícios a Deus e, depois, fazia uma re­
Quando Saul foi escolhido rei, recebeu feição com algumas porções dos animais
autoridade de Deus e de Israel, mas quando que haviam entregue ao Senhor. Estava cla­
conquistou essa grande vitória, alcançou a ro para todos que o rei e a nação haviam
grandeza diante do povo. Um verdadeiro lí­ entrado num relacionamento renovado de
der precisa das duas coisas. As dificuldades aliança com o Senhor e tinham a responsa­
começaram mais tarde, quando a soberba bilidade de obedecer a ele.
de Saul cresceu e sua autoridade começou Samuel havia ungido Saul em particular
a destruir seu caráter e grandeza. Davi sen­ (10:1) e depois o apresentara ao povo (vv.
tia-se humilhado por seu sucesso, mas Saul 17-27), e então, conduzindo Israel num ato
tornou-se cada vez mais orgulhoso e abusivo. de consagração ao Senhor. Foi uma oca­
Admiramos Saul por não usar essa vitória sião de reavivamento espiritual e de rego­
como forma de livrar-se dos inimigos, mas zijo nacional. Saul havia passado em seu
sim como um meio de glorificar ao Senhor primeiro teste, mas não tardaria a fracassar
(1 Sm 11:13; Lv 19:18; Rm 12:1 7). Os ver­ num teste muito mais simples, perdendo seu
dadeiros líderes usam sua autoridade para reino. Andrew Bonar, um homem temente
honrar a Deus e para edificar seu povo, mas a Deus, costumava dizer: "Permaneçamos
os líderes fracos usam o povo para aumen­ tão vigilantes depois da vitória quanto an­
tar sua autoridade. Mais adiante, foi isso o tes da batalha".
que Saul começou a fazer e foi o que o con­ Saul venceu sua primeira batalha, mas
duziu a seu fracasso. perderia a vitória.

1. O gesto de derramar água também pode ser considerado uma libação, simbolizando a consagração total ao Senhor, pois uma

vez que os líquidos são derramados, não podem mais ser recuperados. Ver Salmo 62:8; Lamentações 2:19; Filipenses 2:17;

2 Timóteo 4:6.0 único jejum oficial no calendário de Israel ocorria no Dia da Expiação, mas isso não impedia o povo de jejuar

em outras épocas do ano. A situação era crítica, e a nação precisava confessar-se honestamente ao Senhor.

2. A nação de Israel rejeitou o Deus Pai quando pediu um rei; o Deus Filho quando disse: "N ão temos rei, senão César" (Jo 19:15);

e o Deus Espírito Santo quando apedrejou Estêvão (At 7:51-60).


3. "Voltar a Betei" significa voltar para o Senhor. Foi o que fizeram Abraão (1 Sm 12:8; 13:1-4) e Jacó (Gn 28:18, 19; 35:1 ss).

4. The Westminster Pulpit Londres: Pickering and Inglis, s.d., vol. 9, p. 14.
quinhentos anos, mas os tempos haviam
JL mudado, e o povo queria um rei. Antes de
deixar seu cargo de juiz, Samuel precisava
esclarecer tudo o que havia se passado e
R e c a p itu la ç ã o e dar testemunho de que suas mãos estavam
limpas, e o povo não poderia encontrar nele
Repreensão
culpa alguma.
1 S am uel 1 2 - 1 3 Para muitos dos que estavam naquela
assembléia, Samuel sempre havia estado
presente. Alguns o conheciam desde meni­
no e, mais tarde, como o rapaz em Siló que
aprendia a servir como sacerdote, enquan­
aul e o povo se regozijaram grandemen­
S
to outros se lembravam de quando ele havia
te com o livramento de Jabes-Cileade das começado a proclamar a Palavra do Senhor
mãos dos amonitas, e Saul teve o cuidado (3:20). Havia caminhado diante do povo
de dar a glória ao Senhor (11:13). Samuel quase toda a sua vida e, agora, estava dian­
viu a vitória como uma grande oportunida­ te deles "[envelhecido]... cheio de cãs" e
de de "[renovar] ali o reino" (v. 14) e de lem­ desafiando-os a acusá-lo de usar sua auto­
brar ao povo que o Deus Jeová ainda era ridade em benefício próprio. As palavras: "Eis-
seu Rei. O fato de Saul ter comandado o me aqui" (12:3) lembram a resposta de
exército numa grande vitória seria uma ten­ Samuel na noite em que o Senhor o cha­
tação para os israelitas depositarem sua fé mou (3:4-6, 8, 16). No Oriente, esperava-se
em seu novo rei, e Samuel desejava que o que as autoridades civis usassem seus cargos
futuro sucesso de Israel se baseasse na con­ para ganhar dinheiro, mas Samuel não ha­
fiança somente em Jeová. O rei era apenas via seguido esse caminho. Ele obedeceu à
um servo de Deus para o povo, e tanto o rei lei de Moisés e manteve as mãos limpas (Êx
quanto o povo deveriam obedecer à alian­ 20:17; 22:1-4, 9; 23:8; Lv 19:13; Dt 16:19;
ça com Deus. Em sua mensagem de despe­ 24:14). Tendo um exemplo tão piedoso dian­
dida, Samuel defendeu o próprio ministério te de si, nós nos perguntamos o que teria le­
(12:1-5), recapitulou as misericórdias de Deus vado os filhos de Samuel a aceitar subornos.
para com Israel (w. 6-11) e admoestou o po­ Assim como Jesus, Samuel colocou-se
vo a temer ao Senhor e a obedecer à alian­ diante do povo e perguntou: "Quem dentre
ça (w. 12-25). Samuel mencionou o nome vós me convence de pecado?" (Jo 8:46). O
do Senhor pelo menos trinta vezes em sua povo ouviu o que Samuel disse e deu teste­
mensagem, pois o desejo de seu coração munho de que ele havia falado a verdade.
era ver o povo voltar para o Senhor e honrar Samuel era um homem íntegro, enquanto
sua aliança. Saul se mostraria um homem hipócrita e
doble. Quando a assembléia deu seu voto
1. A INTEGRIDADE DE UM LÍDER de confiança a Samuel, o profeta chamou o
(1 Sm 12:1-5) Senhor e o novo rei para servirem de teste­
Ao pedir um rei, o povo havia rejeitado a munhas daquilo que o povo havia dito. Se,
soberania de Jeová e a liderança de Samuel, em algum momento, o povo mudasse de
o último dos juizes (1 Sm 7:6, 15-1 7). Deve idéia, teria de tratar com Deus e com seu rei
ter sido doloroso para Samuel realizar essa escolhido!
última assembléia como líder e transferir a E maravilhoso chegar aos anos finais e
autoridade civil a Saul. Sem dúvida havia poder recapitular a vida e o ministério sem
nutrido esperanças de que seus filhos o medo nem vergonha. Que todos possamos
sucederiam, mas eles sequer foram con­ dizer como Jesus Cristo: "Eu te glorifiquei
siderados (8:1-3). As doze tribos haviam si­ na terra, consumando a obra que me con­
do governadas por juizes durante quase fiaste para fazer" (Jo 17:4).
228 1 SAMUEL 1 2 - 1 3

2. A INIQUIDADE DE UMA NAÇÃO deuses de seus vizinhos, de modo que Deus


(1 Sm 12:6-25) precisou discipliná-los (vv. 9-11). Entramos,
Uma vez que afirmaram a credibilidade de assim, no Livro de Juizes, com seus sete
Samuel, os israelitas tiveram de aceitar a ciclos de desobediência, disciplina e livra­
análise dele acerca da situação em que se mento (Jz 2:10-23). De acordo com o argu­
encontravam. Samuel recapitulou a história mento de Samuel, Deus sempre proveu um
de Israel desde Moisés até seus dias e líder quando necessário, e a nação não te­
enfatizou aquilo que o Senhor, em sua gra­ ria precisado de um juiz se o povo tivesse
ça, havia feito por seu povo. sido fiel a Deus. Em 1 Samuel 12:11, Jerubaal
Agradecei ao Senhor (w . 6-11). Deus - ("que Baal contenda [por si mesmo]") é
e não o povo - é quem havia nomeado Gideão e, em algumass versões, Baraque'
Moisés e Arão (v. 6) e quem os capacitara é chamado de Bedã. Samuel incluiu-se na
para os feitos poderosos que haviam reali­ lista, pois foi o último juiz (7:1 5).
zado em favor do povo de Israel. Samuel Temei ao Senhor (w . 12-19). Qual de­
não tinha medo de mostrar os pecados de veria ter sido a reação de Israel diante de
Israel e, em seguida, de desafiar o povo a uma história nacional como essa? Deveriam
consagrar-se ao Senhor e à sua aliança. Al­ ter expressado gratidão ao Senhor e confia­
guém disse que aprendemos com a história do que ele continuaria a cuidar de seu povo.
que não aprendemos coisa alguma com a Deveriam ter confessado seu pecado de in­
história; Samuel não queria que o povo co­ credulidade e crido somente em Deus. Mas,
metesse esse erro. em vez disso, o que fizeram? Assim que os
Porém, seu discurso foi mais do que uma amonitas atacaram, os israelitas pediram um
aula de história; também foi um julgamento. rei e trocaram o governo do Senhor, seu Rei,
As palavras de Samuel, no versículo 7, têm pela liderança de um simples homem! Deus
tom judicial: "ponde-vos aqui" dá a idéia de lhes deu o que pediram, mas, nessa transa­
pôr-se de pé no início de uma audiência e ção, Israel saiu em desvantagem.
"pleitear" significa "resolver um caso de lití­ Porém, nem tudo estava perdido. Deus
gio". Samuel iria provar ao povo que havia nunca é pego de surpresa e, por amor de
sido justo e fiel em tudo o que havia feito seu nome, não iria desertar seu povo. Se o
por Israel, mas os israelitas haviam sido in­ povo temesse ao Senhor e o seguisse, ele
fiéis e desobedientes. O Senhor entrara em continuaria a cuidar de Israel e usaria seu
aliança somente com Israel, e a obediência rei para guiá-los e protegê-los. Em seguida,
de Israel a essa aliança possibilitava que Samuel demonstrou o poder extraordiná­
desfrutassem as bênçãos que Deus havia rio do Senhor ao orar, e, em resposta a seu
prometido. Essas bênçãos incluíam viver na pedido, Deus fez cair uma tempestade no
Terra Prometida, ser protegidos dos inimigos meio da estação seca da colheita do trigo
e ter campos, rebanhos e famílias férteis. (meados de maio a meados de junho). Esse
Se não obedecessem, o Senhor os discipli­ milagre nos lembra dos sinais realizados por
naria e reteria suas bênçãos. (Ver Dt 28 - Moisés e Arão no Egito. Samuel estava pro­
30 e Lv 26.) Todo israelita sabia disso, mas vando aos israelitas que Deus era capaz de
nem todos compreendiam, de fato, o que fazer qualquer coisa por eles se confiassem
isso significava. no Senhor e se obedecessem a ele, mas
Quando estavam no Egito, os hebreus sem Deus um simples rei era impotente.
clamaram ao Senhor por socorro, e ele lhes Quando os israelitas imploraram a Samuel
enviou Moisés e Arão (1 Sm 12:8). Deus li­ por livramento, agiram de modo parecido
bertou o povo e o conduziu até Canaã, dan­ com o Faraó, que confessou seu pecado e
do-lhe vitória sobre os habitantes da terra. suplicou a Moisés por alívio (êx 8:8; 9:27,
Porém, uma vez que estavam assentados na 28; 10:16, 17), e é bem provável que seu
terra prometida, os israelitas tornaram-se con­ arrependimento fosse tão insincero quan­
descendentes e passaram a adorar os falsos to o do Faraó.
1 SAMUEL 1 2 - 1 3 229

O bedecei ao Senhor (vv. 20-25). Samuel sobre ti a uma gente que não conheceste,
passou do imperativo "Temei" para "Não nem tu, nem teus pais". Infelizmente, Israel
temais", ao incentivar o povo a aceitar a si­ desobedeceu aos termos da aliança, e Deus
tuação que sua incredulidade lhes havia teve de enviar seu povo para o exílio na
criado e a aproveitar-se dela ao máximo. Babilônia.
Quantas vezes, em nossa vida, recebemos De tempos em tempos, as igrejas e ou­
algo que gostaríamos de não ter pedido! Por tros ministérios cristãos enfrentam novas si­
causa de sua santa aliança e de sua grande tuações e decidem que devem efetuar
fidelidade, o Senhor não rejeitaria nem aban­ mudanças organizacionais. Cada ministério
donaria seu povo. O propósito de Deus era precisa de um Samuel para lembrar seus mem­
usar Israel para glorificar seu nome, um pro­ bros dos princípios espirituais imutáveis: o
pósito que ele cumpriria. O povo de Israel caráter de Deus, a Palavra de Deus, a neces­
conhecia os termos da aliança: se obede­ sidade da fé e a importância da obediência.
cessem, o Senhor os abençoaria; se deso­
bedecessem, o Senhor os disciplinaria. De Os métodos são muitos, os princípios
uma forma ou de outra, Deus seria fiel a sua são poucos.
Palavra; a questão principal era se Israel se­ Os métodos sempre mudam, os princí­
ria fiel. Os israelitas haviam cometido um pios nunca se alteram.
erro, mas Deus os ajudaria, se o temessem
e se obedecessem a ele. Como dizia o antigo lema do ministério Mo­
Samuel deixou claro que, qualquer que cidade para Cristo: "Ligados a nosso tempo,
fosse a decisão do povo, e/e obedeceria ao mas ancorados à Rocha". Algumas mudan­
Senhor. Parte dessa obediência consistiria ças são inevitáveis e necessárias, mas nem
em orar fielmente pelo povo e em ensinar- por isso precisam destruir a obra de Deus.
lhe a Palavra de Deus. A oração e a Palavra
de Deus sempre andam juntas (At 6:4; Jo 3. A IRRESPONSABILIDADE DO REI
1 5:7; Ef 6:1 7, 18). O coração de Samuel es­ (1 S m 13:1-14)
tava ferido, mas como servo fiel do Senhor, A narrativa dos capítulos 13-15 concentra-
intercedeu pelo povo e procurou conduzi- se no início do reinado de Saul, especial­
lo pelo caminho certo. Para o povo de Deus, mente em seu relacionamento com Deus e
deixar de orar é pecar contra o Senhor e, no com Samuel. Vemos Saul tomando decisões
entanto, se há uma coisa faltando nas igre­ tolas e imprudentes e tentando encobrir sua
jas de hoje é a oração, especialmente a ora­ desobediência com mentiras. Foi o começo
ção por aqueles que exercem autoridade de um declínio trágico, que terminou na casa
(1 Tm 2:1-4). de uma feiticeira e com o suicídio de Saul
Ao pensar nas grandes coisas que Deus no campo de batalha. Davi entra em cena
fez por nós, que outra atitude poderíamos no capítulo 16, e o texto descreve os confli­
ter senão temê-lo, agradecer a ele e servir-lhe tos cada vez mais profundos de Saul com
em verdade todos os dias de nossa vida? A Deus, consigo mesmo e com Davi. Pode­
aliança de Deus com Israel ainda estava em mos acompanhar os passos que conduziram
vigor: se obedecessem, ele os abençoaria, o rei ao seu fracasso calamitoso.
e, se desobedecessem, ele os disciplinaria. Orgulho (vv. 1-4). Saul havia reinado du­
Samuel advertiu: "Se, porém, perseverardes rante dois anos quando começou a orga­
em fazer o mal, perecereis, tanto vós como nizar um exército permanente.2 Mais de
o vosso rei" (1 Sm 12:25). É possível que trezentos mil homens haviam se voluntariado
Samuel estivesse se referindo especifica­ para livrar o povo de Jabes-Gileade (1 Sm
mente à advertência dada por Moisés em 11:8), mas Saul escolheu apenas três mil
Deuteronômio 28:36, incluída na aliança homens, comandando uma parte desse gru­
séculos antes de Israel ter um rei: " O S e n h o r po e colocando o resto sob o comando de
te levará e o teu rei que tiveres constituído seu filho, Jônatas. O acampamento de Saul
230 1 SAMUEL 1 2 - 1 3

ficava em Micmás, e o de Jônatas, a cerca começaram a se esconder e a abandonar o


de vinte e cinco quilômetros de lá, em Cibeá. exército, atravessando o rio; os que ficaram
O fato de Israel estar reunindo um exército estavam paralisados de medo. Conforme
colocou os filisteus em estado de alerta. A Samuel havia ordenado, Saul esperou sete
Filístia possuía guarnições em diferentes dias (10:8) e, quanto mais esperava, mais
partes do país e monitorava a situação de preocupado ficava. Seu exército sumia aos
perto. poucos, o inimigo se mobilizava, e a situa­
Jônatas nos é apresentado como um sol­ ção era desesperadora.
dado valente e vitorioso. Seu ataque ao pos­ Por que Samuel demorou? Estava ten­
to avançado dos filisteus em Ceba foi uma tando fazer Saul fracassar ou apenas lem­
declaração de guerra, e os filisteus não tar­ brando o novo rei de quem ainda estava no
daram em responder. Assim, teve início a controle? Samuel só teria a perder se Saul
guerra de libertação de Israel, que só chega­ fosse derrotado no campo de batalha e sa­
ria ao fim durante o reinado de Davi. Mas bia que Deus dominava a situação, mesmo
quem tocou a trombeta e, ao que parece, depois de nomear o novo rei. Além disso,
assumiu todo o crédito pela vitória? Saul, fi­ aquela reunião havia sido marcada uns dois
lho que Quis! Em sua posição de coman­ anos antes (v. 8) e, sem dúvida, Samuel lem­
dante supremo, começou a convocar mais brara Saul desse compromisso mais de uma
homens, pois sabia que ainda havia muitas vez. Esse encontro era uma forma de Deus
batalhas pela frente. Como teria sido bom testar a fé e a paciência de Saul. Sem fé e
se Saul houvesse dado o devido crédito a sem paciência, não podemos receber aqui­
seu filho corajoso! lo que o Senhor nos promete (Hb 6:12); a
Por que Saul chamou seus compatriotas incredulidade e a impaciência são sinais de
israelitas de "os hebreus" em vez de "ho­ imaturidade espiritual (Tg 1:1-8). Até apren­
mens de Israel"? E possível que o nome ti­ dermos a confiar em Deus e a esperar pelo
vesse origem em Éber, antepassado de tempo dele, não teremos como assimilar
Abraão (Cn 10:21), ou talvez viesse do termo outras lições que ele deseja nos ensinar, nem
que significa "atravessar". Os antepassados poderemos receber as bênçãos que ele tem
de Abraão foram aqueles que "habitaram reservadas para nós. Saul podia ser bem
dalém [atravessaram] do Eufrates" (Js 24:2, apessoado, forte e mais alto do que os ou­
3). Canaã era a "terra dos hebreus" (Cn tros homens, mas se não tivesse o coração
40:15); os egípcios se recusavam a comer em ordem com Deus, não teria nada. Uma
com "os hebreus" (Cn 43:32) e um egípcio coisa é conquistar a vitória comandando um
"espancava um dos hebreus" (Êx 2:11). Nas exército de mais de trezentos mil homens
Escrituras, o termo é usado principalmente (1 Sm 11:8) e outra, bem diferente, é lutar
por estrangeiros falando com israelitas ou com apenas seiscentos homens (v. 15)! Mas
sobre eles, ou, ainda, por israelitas falando é nesse momento que a fé entra em cena.
sobre si mesmos a estrangeiros. Tem-se a Saul não queria sair para a batalha sem
impressão de que, em várias ocasiões, "he­ antes oferecer um sacrifício ao Senhor, o
breu" é usado como um termo expressando que, em si, talvez fosse uma forma sutil de
desprezo. Será que Saul não respeitava seu superstição, como levar a arca para a bata­
povo? Qualquer que tenha sido o motivo lha. Posteriormente, Samuel lembrou a Saul
para usar essa palavra, sua ordem foi clara: que o Senhor deseja obediência, não sacri­
reúnam-se em Cilgal, no lugar indicado por fícios (15:22). Sem esperar pelo sacerdote
Samuel (1 Sm 10:8ss). designado por Deus, Saul ofereceu o sacri­
Incredulidade e im paciência (vv. 5-9). fício, e, naquele exato momento, Samuel
As tropas filistéias reuniram-se em Micmás, chegou ao acampamento. Se Saul tivesse
cerca de trinta quilômetros a oeste de Cil­ esperado apenas mais alguns minutos, nada
gal, e era evidente que Saul e seu exército de grave teria acontecido, mas sua impa­
estavam em minoria.3 Os homens de Saul ciência lhe custou caro.
1 SAMUEL 1 2 - 1 3 231

Dissim ulação (w . 10-12). À medida que em vez de agir pela fé nas promessas de
o caráter de Saul se deteriora, pode-se vê-lo Deus, "e tudo o que não provém de fé é
enganando a si mesmo e a aos outros cada pecado" (Rm 14:23). Saul tinha o mesmo
vez mais. Sua primeira atitude dissimulada tipo de fé supersticiosa que os filhos de Eli
em Cilgal ocorreu quando saudou Samuel demonstraram ao levar a arca para o campo
cordialmente, esperando que o sacerdote lhe de batalha. Não sabia coisa alguma sobre a
desse uma bênção. Saul estava sendo hipó­ "obediência por fé" (Rm 16:26).
crita e agindo como se não tivesse feito nada O orgulho, a impaciência, a desobediên­
de errado. "Se dissermos que mantemos cia e a dissimulação de Saul foram vistos e
comunhão com ele e andarmos nas trevas, julgados pelo Senhor, e Samuel declarou a
mentimos e não praticamos a verdade" (1 Jo sentença: um dia, a coroa seria tomada de
1:6). Sua segunda mentira foi culpar Samuel Saul e dada a outro, nesse caso, Davi. Saul
e os soldados, em vez de assumir a respon­ continuaria a ser rei, mas não instituiria uma
sabilidade. Era culpa de Samuel por sua de­ dinastia duradoura, e nenhum de seus filhos
mora e culpa do exército por desertar de o sucederia no trono de Israel. Porém, mes­
seu rei. Saul começou a frase com o verbo mo que Saul não tivesse pecado, como sua
"Vendo", o que indica que estava sendo dinastia poderia durar "para sempre" (1 Sm
conduzido pelas aparências e não pela fé. 13:13) quando Saul era da tribo errada e
Mentiu pela terceira vez ao dizer que preci­ Deus já havia escolhido Davi para ser rei
sou obrigar-se a oferecer o sacrifício. Será sobre Israel? Uma possível resposta é que
que não poderia ter se "forçado" a orar ou Jônatas, o filho mais velho de Saul, poderia
a reunir alguns de seus oficiais a fim de supli­ ter governado com Davi - o que, de fato,
car o auxílio do Senhor? A vontade obede­ era o plano de Davi e Jônatas (1 Sm 20:31,
ce à mente e ao coração, mas o raciocínio 42; 23:16-18). É evidente que a dinastia de
e os desejos de Saul estavam inteiramente Davi instituiria a linhagem messiânica, mas
fora da vontade de Deus. alguém da família de Saul teria servido na
Quem tem facilidade para inventar des­ corte junto com um rei davídico.
culpas raramente fará qualquer outra coisa, O pecado de Saul em Cilgal custou-lhe
e aqueles que são rápidos na hora de colo­ a dinastia, e seu pecado envolvendo os amale-
car a culpa nos outros não devem reclamar quitas custou-lhe o reino. Acabou perdendo
quando os outros jogarem a culpa sobre eles. a coroa e a vida (ver 15:16-34, especialmen­
Adão culpou Eva, e Eva culpou a serpente, te 23, 27-29; 16:1).
mas nem Adão nem Eva declararam humil­ Deus queria um rei cujo coração estive­
demente: "Pequei". Ao longo de toda a sua sse em ordem diante do Senhor, um homem
carreira, o rei Saul mostrou-se adepto da prá­ com o coração de um pastor, e encontrou
tica de minimizar os próprios pecados e de essa disposição em Davi (1 Sm 13:14; SI
enfatizar os erros de outros, mas não é as­ 78:72; 89:20; At 13:22).
sim que um homem de Deus conduz o povo "Ao governar Israel, esse homem [Saul]
do Senhor. não passava de um guerreiro, mas em mo­
Insensatez (vv. 13, 14).* Foi insensatez mento algum foi um pastor", disse C. Camp­
da parte de Saul pensar que poderia deso­ bell Morgan. Davi, por outro lado, possuía o
bedecer a Deus e escapar incólume, e que coração de um pastor, pois o Senhor era
essa desobediência traria as bênçãos de o seu Pastor (SI 23:1). Davi estava sob uma
Deus sobre ele e seu exército. "Pratiquemos autoridade maior, de modo que tinha o di­
males para que venham bens" (Rm 3:8): essa reito de exercer sua autoridade.
é a lógica do inferno, não a lei do céu. Saul
foi insensato ao concluir que o sacrifício de 4. A INSEGURANÇA DE UM EXÉRCITO
um rei, na hora errada, era tão bom quanto (1 S m 13:15-23)
o sacrifício de um sacerdote na hora certa. Saul havia fracassado terrivelmente, mas, no
Foi insensato ao ser levado pelas aparências, capítulo 14, veremos o grande sucesso de
232 1 SAMUEL 1 2 - 1 3

Jônatas como comandante. Esta passagem com todos esses soldados filisteus moven­
descreve o triste estado do exército de do-se de um lado para outro na região? Para
Israel, revelando quão inadequada era a li­ onde Israel se virasse, iria se deparar com o
derança de Saul e quão extraordinária foi a inimigo! No entanto, Deus usaria Jônatas e
vitória de Jônatas. Saul viveu pelas aparên­ seu escudeiro para conquistar uma grande
cias e quase não teve fé alguma, enquanto vitória, pois para Deus nada é impossível.
Jônatas viveu pela fé e fez grandes coisas Um exército destituído (vv. 19-22). A
para o Senhor. falta de homens no exército de Saul era pro­
Um exército minguado (vv. 15, 16). Saul blemática o suficiente, mas, pior ainda, era
havia juntado mais de trezentos mil homens o fato de esses homens não estarem devi­
para resgatar o povo de Jabes-Gileade e, damente equipados. Quando os filisteus
depois, cortou o número de soldados do invadiram e subjugaram a terra de Israel,
exército permanente para três mil. A essa deportaram todos os ferreiros para que os
altura, porém, não tinha mais do que seis­ israelitas não pudessem confeccionar armas
centos homens. O exército filisteu era um nem consertar seus implementos agrícolas.
"povo em multidão como a areia que está à Tinham de pagar valores exorbitantes só
beira-mar" (v. 5), símile usada também para para mandar afiar as ferramentas que usa­
o exército que Gideão enfrentou (Jz 7:12) - vam no campo. Os benjamitas ainda eram
e o exército de Saul era duas vezes maior hábeis no uso de fundas (Jz 20:15, 16), mas
que o de Gideão! A diferença não estava as fundas não eram adequadas para com­
tanto no tamanho do exército, mas sim na bates a curta distância. Além disso, o que
força da fé de seu comandante. Gideão creu poderiam fazer contra o grande número de
que o Senhor lhe daria a vitória, e Deus o carros do exército filisteu? O exército is­
honrou; Saul desobedeceu ao Senhor, e raelita era pequeno em número e em quan­
Deus o castigou. Saul havia juntado um exér­ tidade de armas, mas possuía um grande
cito enorme por medo (11:7), de maneira Deus, caso se dispusesse a confiar nele.
que, quando seus homens passaram a te­ Tudo isso prepara o cenário para a vitória
mer o inimigo em vez do rei, começaram a emocionante de Jônatas, descrita no capí­
desertar do acampamento e a procurar re­ tulo 14, que contrasta com a triste derrota
fúgio. Jônatas sabia que Deus não precisava de seu pai no capítulo 15.
de grandes números para cumprir seus A maneira como funciona ou deixa de
propósitos (14:6), mas que honrava uma funcionar a Igreja de Jesus Cristo hoje pode,
grande fé. por vezes, assemelhar-se ao exército de Saul,
Um exército am eaçado (vv. 17, 18, 23). mas se esse é o caso, nós somos os únicos
Os filisteus enviaram, repetidamente, grupos culpados. Por sua obra magnífica na cruz, o
de ataque para proteger as estradas e as pas­ Senhor derrotou todos os inimigos e colo­
sagens que os israelitas poderiam usar caso cou seu poder à disposição de seu povo.
atacassem e, ao mesmo tempo, impediram Temos a armadura e as armas de que preci­
que qualquer habitante da região ajudasse samos (Ef 6:10ss), e sua Palavra nos diz tudo
o exército de Israel. Havia três grupos desse o que necessitamos saber sobre a estratégia
tipo: um foi para o norte, em direção a Ofra, do inimigo e sobre os recursos que temos
outro se dirigiu para Bete-Horom, a oeste, e em Cristo. O que ele nos pede é que con­
o terceiro foi para o leste, rumo a Zeboim. fiemos nele e que obedeçamos a suas or­
Um quarto destacamento deslocou-se para dens, e ele nos ajudará a vencer a batalha.
o sul, em direção a Gibeá, a fim de evitar "Sede fortalecidos no Senhor e na força
que o exército israelita subisse para Geba do seu poder" (Ef 6:10) pois "do S e n h o r é a
(v. 23). Que esperança restava aos israelitas guerra" (1 Sm 17:47).
1 SAMUEL 1 2 - 1 3 233

1. As letras hebraicas que representam r e d , bem como k e n são bastante parecidas, e um copista do manuscrito hebraico

poderia facilmente se equivocar. Os manuscritos originais das Escrituras são inspirados e inerrantes, mas é possível que

pequenos erros numéricos e de ortografia tenham se infiltrado nas cópias.

2. O texto hebraico de 1 Samuel 13:1 diz: "Saul era filho de um ano em seu reinado e reinou dois anos sobre Israel", sem dúvida

uma declaração enigmática. Algumas versões dizem: "Saul estava com 30 anos de idade quando se tornou rei e reinou sobre

Israel durante quarenta e dois anos", mas esses números não se encontram no texto original. Outras traduções dizem que ele

estava com 40 anos de idade quando iniciou seu reinado e que reinou durante trinta e dois anos, números que, mais uma vez,

não passam de conjecturas; ou ainda: "U m ano reinara Saul em Israel. No segundo ano de seu reinado sobre o povo, escolheu
para si três mil homens de Israel" (1 Sm 13:1, 2). De acordo com Paulo, Saul reinou quarenta anos (At 13:21). Uma vez que

Jônatas, filho de Saul, tinha idade suficiente para ser o comandante do exército, é bem possível que Saul tivesse 40 anos de

idade ou mais quando se tornou rei. Se reinou durante trinta anos, então estava com 70 anos de idade quando morreu. Alguns

cronologistas conjecturaram que Saul nasceu em 1080 a.C. e subiu ao trono em 1050 a.C., aos 30 anos de idade. Caso Saul

tenha morrido aos 70 anos de idade, isso ocorreu no ano de 1010 a.C. Ver The Expositor's Bible Commentary, vol. 3, p. 373,

para a cronologia sugerida por Ronald Youngblood. É evidente que não existe consenso entre os estudiosos do Antigo

Testamento, o que é compreensível, tendo em vista o fato de as informações factuais não serem completas. Nenhuma questão
doutrinária é afetada por esse problema.

3. Assim como o latim, a língua hebraica usa letras para representar números, de modo que era fácil os copistas se equivocarem.

Alguns estudiosos acreditam que "trinta mil carros" é um erro de um escriba e que o número correto deve ser três mil. É

possível que o / no final de Israel tenha sido copiado duas vezes, transformando desse modo o número "três" em "trinta". Nas

guerras da Antiguidade, o número de soldados da cavalaria era sempre maior que o número de soldados que conduziam os

carros, e a cavalaria do exército filisteu contava com um total de seis mil homens. Porém, qualquer que seja o número, o

exército israelita sem dúvida era minoria diante do inimigo.

4. Saul chamou-se de "louco" em 1 Samuel 26:21, e Davi admitiu que havia procedido loucamente ao fazer um censo do povo

(2 Sm 24:10; 1 Cr 21:8). A diferença é que Davi foi sincero em sua confissão, arrependendo-se verdadeiramente de seu

pecado. Em 2 Crônicas 16:9, o profeta Hanani disse ao rei Asa que ele havia procedido loucamente ao roubar do templo de

Deus a fim de contratar soldados pagãos para lutar em suas batalhas. Toda desobediência a Deus é loucura e termina em
fracasso e sofrimento.
estabelecer um novo posto avançado, a fim
5 de guardar a passagem em Micmás (13:23),
e Jônatas considerou essa movimentação
uma oportunidade para atacar e ver o Se­
U m V o t o I n sen sa t o nhor operar. Em sua incredulidade, Saul es­
tava hesitando (14:2), enquanto seu filho
e U m a D esc u lpa estava agindo pela fé. Deus havia chama­
E s fa r r a p a d a do Saul para começar a libertar Israel dos
filisteus, mas grande parte do tempo, o rei
1 Samuel 1 4 - 1 5 só deu continuidade ao que outros haviam
começado. Apesar de tudo o que o Senhor
havia feito por ele e de tudo o que Samuel
ão é nada agradável observar o declínio havia lhe ensinado, Saul não era um homem
N contínuo do rei Saul. O rei já havia de­
monstrado sua incredulidade e impaciência
de fé que confiava em Deus e que procura­
va glorificá-lo. Saul tinha um sacerdote do
(cap. 13) e, agora, revela ainda mais de sua Senhor que o servia, um homem chamado
desobediência e desonestidade. A história Aias, da linhagem rejeitada de Eli (v. 3), mas
de Saul chega a seu auge quando o rei visi­ o rei nunca esperava pelo conselho do Se­
ta uma feiticeira e, depois, comete suicídio nhor (vv. 18-20). Saul é um exemplo triste
no campo de batalha. Sir Walter Scott esta­ do homem comum do mundo, que tenta
va certo quando escreveu em seu poema parecer religioso e fazer o trabalho do Se­
"Marmion": nhor, mas ao qual falta uma fé viva em Deus
e um coração que deseja honrá-lo. Infeliz­
Oh! que teias emaranhadas tecemos, mente, a história da Igreja registra relatos
Quando, primeiramente, a arte de enga­ de um número enorme de pessoas talen­
nar praticamos! tosas que "usaram Deus" para alcançar os
próprios objetivos, mas que, no final, aban­
Estes capítulos nos ensinam três lições im­ donaram o Senhor e terminaram seus dias
portantes, às quais devemos dar ouvidos e em desonra.
obedecer, se desejamos a bênção de Deus Por que Jônatas não contou ao pai que
em nossa vida e serviço. tinha um plano para derrotar o inimigo? Por­
que, em sua incredulidade, Saul teria veta­
1 . A fé em Deus redunda em v itó ria do um empreendimento de fé tão ousado,
(1 Sm 14:1-23) e Jônatas não queria discordar dele num
O enfoque deste capítulo volta-se para momento tão crítico. É possível que Jônatas
Jônatas, o filho mais velho de Saul que ven­ tenha sido insubordinado a seu pai e co­
ceu a primeira batalha principal contra os mandante, mas ainda assim seu plano era a
filisteus, vitória esta pela qual seu pai assu­ abordagem mais sensata. Com sua falsa sen­
miu todo o crédito (13:1-7). É uma bênção sação de segurança, as tropas filistéias no
extraordinária da graça de Deus que um novo posto avançado não se assustariam
homem como Saul tivesse um filho tão ex­ com um par de israelitas que conseguissem
celente quanto Jônatas. Era um guerreiro atravessar a passagem e escalar os penhas­
valente (2 Sm 1:22), um líder nato e um ho­ cos. Os guardas poderiam pensar que eram
mem de fé que procurou fazer a vontade de dois israelitas querendo desertar do exérci­
Deus. Com o desenrolar do relato, fica cla­ to de Israel e se refugiar junto ao inimigo.
ro que Saul invejava Jônatas e sua populari­ Jônatas não estava prestes a deixar que o
dade e que essa inveja cresceu à medida inimigo atacasse primeiro.
que Jônatas e Davi se tornaram amigos fiéis. É impossível não admirar Jônatas por sua
Jônatas in icia o ataque (vv. 1-15). Os fé no Senhor. Talvez, ao escalar as rochas,
filisteus enviaram um destacamento para ele tenha meditado nas promessas de vitória
1 SAMUEL 1 4 - 1 5 235

dadas por Deus na aliança. "Perseguireis os Saul assiste à batalha (w . 16-19). Saul e
vossos inimigos, e cairão à espada diante seus seiscentos homens estavam de volta em
de vós. Cinco de vós perseguirão a cem, e Gibeá, onde Saul vivia, e as sentinelas nas
cem dentre vós perseguirão a dez mil; e os muralhas da cidade eram capazes de ver as
vossos inimigos cairão à espada diante de forças filistéias retrocedendo, mas não ti­
vós" (Lv 26:7, 8; ver Dt 28:7). Agir sem pro­ nham como explicar o motivo dessa retirada.
messas é presunção e não fé, mas quando Será que parte do exército de Israel havia
se tem as promessas de Deus, pode-se avan­ planejado um ataque furtivo sem a permis­
çar com plena confiança. "Porventura, o são de Saul? Quem estava faltando? Jônatas
S e n h o r nos ajudará nisto, porque para o S e­ e seu escudeiro! Era a segunda vez que
n h o r nenhum impedimento há de livrar com Jônatas agia por conta própria (13:3), e é
muitos ou com poucos" (1 Sm 14:6; ver Jz 6 provável que irritasse Saul saber que o filho
- 7). " S e Deus é por nós, quem será contra era tão independente. Ao estudar a vida de
nós?" (Rm 8:31). Saul, encontramos cada vez mais evidên­
Porém, o plano de ataque de Jônatas cias de que ele era obcecado pelo controle.
diferia do plano de Gideão em pelo menos Invejava o sucesso de outros, suspeitava de
dois aspectos: não era um ataque surpresa qualquer estratégia que ele próprio não ti­
durante a noite e ele e seu escudeiro deixa­ vesse criado ou, pelo menos, aprovado e era
ram, propositadamente, que os guardas impiedoso quando se tratava de remover
filisteus os vissem. Era a reação dos guardas pessoas que desafiavam sua liderança ou
que daria a Jônatas a orientação de que pre­ que tornavam clara a sua insensatez.
cisava.1 Jônatas deveria esperar que os Saul pediu ao sacerdote que lhe trou­
filisteus fossem até onde estava ou deveria xesse a arca do Senhor e, de certo, tam­
encontrar-se com eles em território inimigo? bém a estola sacerdotal.2 É bem possível
Quando os dois homens se revelaram ao que estivesse planejando levar a arca para
inimigo, os filisteus apenas riram e zomba­ o campo de batalha com o exército - uma
ram deles. Trataram-nos como animais assus­ tática imprudente que só havia trazido jul­
tados que haviam acabado de sair da toca gamento no tempo de Eli (cap. 4). Enquan­
ou como soldados desertando da causa de to isso, o sacerdote poderia usar a estola
Israel e se juntando ao exército filisteu. para determinar a vontade de Deus naque­
Esse tipo de arrogância tão autoconfian­ la situação. Porém, o sacerdote nem sequer
te era exatamente o que Jônatas queria ver, teve a chance de descobrir qual era a von­
pois foi o que deu a ele e a seu escudeiro a tade de Deus, pois assim que Saul ouviu o
oportunidade de se aproximarem dos guar­ barulho da batalha aumentando, interrom­
das antes de atacar. Quem teria medo de peu os procedimentos religiosos e tomou
um soldado acompanhado do escudeiro? sua decisão. Mais uma vez, a impaciência
Mas esses dois homens tinham, a seu lado, e a autoconfiança de Saul mostraram-se
o Deus Todo-Poderoso! "Um só homem den­ mais fortes, e ele agiu sem saber qual era a
tre vós perseguirá mil, pois o S e n h o r , v o s s o vontade de Deus e sem receber a bênção
Deus, é quem peleja por vós, como já vos do Senhor (Dt 20:4, 5). Estava terrivelmen­
prometeu" (Js 23:10). Os dois israelitas co­ te ansioso para provar que era um soldado
rajosos mataram rapidamente vinte homens, tão competente quanto Jônatas, e seu dese­
e o Senhor honrou sua fé enviando um ter­ jo mais ardente era vingar-se dos inimigos
remoto! "Mas o S e n h o r , teu Deus, tas entre­ (1 Sm 14:24). Saul apressou-se ao campo
gará e lhes infligirá grande confusão, até que de batalha espiritualmente despreparado,
sejam destruídas [as nações inimigas]" (Dt não para honrar a Deus, mas para cumprir
7:23). O acampamento inimigo foi tomado os próprios objetivos.
de terror e de confusão, preparando, assim, Israel entra na batalha (w . 20-23). Quan­
o caminho para uma grande vitória do exér­ do Saul e seu exército deslocaram-se em
cito de Israel. direção à batalha, receberam reforços dos
236 1 SAMUEL 1 4 - 1 5

israelitas que haviam desertado para o acam­ Um voto insensato (w . 24-35). O cora­
pamento inimigo (v. 21) e dos homens que ção de Saul não estava em ordem com Deus,
haviam fugido do combate e se escondido e, num ato de imprudência, o rei forçou seu
(v. 22). Ficamos imaginando que tipo de exército a concordar com um voto de jejuar
soldados eram esses desistentes e como se até o anoitecer (v. 24). Não impôs o jejum
saíram na batalha. O fato de Saul ter aceitado por ser da vontade de Deus, mas porque
esses homens de volta pode indicar que es­ desejava que seus soldados pensassem que
tava confiando em seu exército e não no ele era um homem inteiramente consagra­
Senhor. Seiscentos soldados não constituem do ao Senhor. No entanto, essa ordem foi
um grande exército, de modo que ele rece­ mais uma mostra da fé confusa e supersti­
beu, de bom grado, até o mais fraco dos ciosa de Saul. Acreditou que seu jejum, em
homens que quisesse voltar. No entanto, em conjunto com a presença da arca, impres­
poucas horas, Saul estaria disposto a matar sionaria o Senhor e faria com que lhes des­
o próprio filho por haver comido um pouco se vitória. Porém, Jônatas e seu escudeiro já
de mel e quebrado o voto insensato do pai! estavam desfrutando a vitória sem a arca e
O desequilíbrio emocional de Saul e seu ra­ sem jejum!
ciocínio contraditório apareciam repetida­ Nenhum comandante sensato privaria
mente e causaram grandes estragos em seu seus soldados de alimento e de energia em
reino. Um dia ele avançava impetuosamen­ meio à luta. Se tivesse sido uma ordem do
te como um cavalo; no dia seguinte, empa­ Senhor, ele teria concedido as forças neces­
cava feito uma mula (SI 32:9). sárias, mas Deus não deu instrução alguma
Não foi Saul com seu exército que ven­ desse tipo a Saul. Moisés jejuou durante
ceu a batalha, mas sim o Senhor, que usou quarenta dias e quarenta noites quando es­
Jônatas e seu escudeiro (1 Sm 14:23, ver tava no alto da montanha com o Senhor (Êx
14:6, 12 e 45). O exército israelita perse­ 34:28), pois o Senhor o sustentou. Mas os
guiu os filisteus pelos quase vinte quilôme­ soldados de Saul ficaram "angustiados" (1 Sm
tros de Micmás até Bete-Áven, e o Senhor 14:24), "exaustos" (v. 28) e "exaustos em
os capacitou a derrotar o inimigo. Mas o extremo" (v. 31), em função desse jejum des­
exército de Saul havia entrado na batalha necessário. Quando obedecemos às ordens
tão tarde e os homens estavam tão fracos e de Deus, caminhamos pela fé, mas quando
famintos que não conseguiram obter uma obedecemos a regras humanas artificiais,
vitória decisiva (v. 30). Uma das marcas do apenas tentamos o Senhor. O primeiro caso
verdadeiro líder é saber quando agir, e Saul é prova de confiança, enquanto o segundo
havia perdido tempo assistindo à batalha é prova de presunção. Precisamos todos
de longe em vez de buscar a vontade do atentar para a admoestação dada em Ecle-
Senhor. siastes 5:2: "Não te precipites com a tua
boca, nem o teu coração se apresse a pro­
2. P alavras insensatas r e d u n d a m em nunciar palavra alguma diante de Deus".
t r a n st o r n o s (1 Sm 14 :24 -52) Quando Jônatas e seu escudeiro junta­
O estado espiritual de nosso coração reve­ ram-se ao exército israelita em sua marcha,
la-se não apenas por nossos atos, mas tam­ não sabiam da ordem imprudente que o rei
bém por nossas palavras. "Porque a boca havia dado, e Jônatas comeu um pouco de
fala do que está cheio o coração" (Mt 12:34). mel de um favo que havia caído no chão.
Quando lemos as palavras do rei Saul registra­ Assim, um dos soldados lhe disse que Saul
das nas Escrituras, elas revelam, com freqüên­ havia colocado uma maldição sobre qual­
cia, um coração controlado pelo orgulho, quer soldado que comesse durante aquele
pela insensatez e pela dissimulação. Dizia dia. Por que ninguém avisou Jônatas an­
coisas tolas para impressionar as pessoas com tes? Talvez os soldados tivessem esperança
sua "espiritualidade", quando, na verdade, de que a "desobediência" inocente de
estava caminhando longe do Senhor. Jônatas abrisse caminho para que todos eles
1 SAMUEL 1 4 - 1 5 237

pudessem comer! Imagino se Saul não esta­ se detivessem ali tempo suficiente para con­
va propositadamente colocando a vida de sultar o Senhor. O texto não diz que méto­
seu filho em perigo. Jônatas, porém, não se do Aias usou para determinar a vontade de
mostrou muito preocupado e teve até a ou­ Deus, mas qualquer que tenha sido, Deus
sadia de admitir que a liderança do pai ha­ não respondeu. Apesar de Saul não ser um
via causado transtornos a Israel (v. 29). homem piedoso, o voto que havia feito em
O voto insensato de Saul não apenas nome do Senhor era legítimo e, se o Senhor
enfraqueceu os soldados fisicamente e ser­ o tivesse ignorado, teria desonrado o pró­
viu de estorvo para que perseguissem o ini­ prio nome. Além disso, Deus estava usando
migo, como também criou nos homens um esse acontecimento para repreender Saul e
desejo anormal pelo alimento. Quando o Sol também para honrar Jônatas. Saul ficaria sa­
se pôs e trouxe um novo dia, o voto já não bendo que seus homens amavam Jônatas e
estava mais em vigor e os soldados agiram que estavam preparados para defendê-lo.
como animais, atacando os espólios, matan­ Saul já sabia que Jônatas não estava en­
do as ovelhas e bois e comendo a carne tre os soldados (v. 17), portanto supôs que
ainda com sangue. Quando os israelitas aba­ o filho não tinha conhecimento do voto. Mas
tiam um animal, deveriam deixar escorrer se ele fora informado a respeito do voto e,
todo o sangue antes de preparar a carne, ainda assim, o havia quebrado, isso teria tor­
pois, em hipótese alguma, o sangue deveria nado seu pecado ainda maior. De qualquer
ser usado como alimento (Lv 3:17; 7:26; modo, Jônatas seria culpado e poderia ser
17:10-14; 22:28; Dt 12:23, 24; ver Cn 9:4). executado. Temos a impressão de que Saul
Um voto verdadeiramente espiritual faz estava praticamente determinado a rebaixar
aflorar o que há de melhor nas pessoas, mas e a destruir o próprio filho, e ficou claro que
o voto carnal de Saul trouxe à tona o que Jônatas não concordava com a política nem
havia de pior. com as práticas do pai. Daí Saul ter feito
Como fazia com freqüência, o rei assu­ outro voto (v. 39). Pelo fato de seu coração
miu a "liderança espiritual" e ordenou aos não estar em ordem diante de Deus, o rei
homens que levassem os animais para uma estava tomando o nome do Senhor em vão
pedra grande a fim de serem abatidos e para (Êx 20:7).
que o sangue escorresse mais facilmente. Dessa vez, foram lançadas sortes, que
Não construiu um altar para que os animais indicaram Saul e Jônatas. Da segunda vez,
fossem oferecidos como ofertas pacíficas (Lv a sorte caiu sobre Jônatas. Deus poderia
3; 7:11-34), das quais algumas partes eram ter mudado os resultados (Pv 16:33), mas
separadas para o consumo numa refeição desejava que tudo viesse à luz e que o rei
de comunhão. Saul fez uma tentativa me­ Saul fosse humilhado, pois o problema ha­
díocre de transformar uma orgia gastronô­ via começado com o orgulho do rei. Os
mica num culto de adoração, mas não se homens louvaram Jônatas, não Saul, como
saiu nada bem. Os homens estavam famin­ aquele que havia dado grande vitória a Is­
tos e mais interessados em comer do que rael, e, se o Senhor havia usado Jônatas de
em adorar ao Senhor. modo tão maravilhoso, por que o filho do
Um julgam ento insensato (w . 36-52). rei deveria ser executado? Quando essa
Sem dúvida, Saul percebeu que essa demo­ questão finalmente foi resolvida, era tarde
ra em Cibeá, bem como a imposição do voto demais para seguir o exército filisteu, de
imprudente, já haviam custado uma grande modo que Saul e seus homens se retiraram.
vitória aos israelitas, de modo que tentou Por certo, a vitória mandou os filisteus para
consertar a situação. Resolveu deslocar o casa, mas eles voltaram a ameaçar Israel
exército naquela mesma noite e estar pron­ repetidamente (1 Sm 14:52). Essa vitória
to para surpreender os filisteus logo pela teve efeito positivo sobre a reputação de
manhã. O exército não resistiu à idéia, mas Saul e o ajudou a consolidar seu reino. Nos
o sacerdote Aias sugeriu, sabiamente, que versículos 47, 48 e 52, o escritor apresenta
238 1 SA M U E L 1 4 - 1 5

um resumo de algumas das principais vitó­ em vez de confessar seus pecados. Não im­
rias de Saul e informa que ele convocou para portava o que acontecia, era sempre culpa
seu exército todo homem apto que pôde de outro. Estava mais preocupado em manter
encontrar. uma boa imagem diante dos demais do que
Os fatos sobre a família real são resumi­ em ser verdadeiramente bom diante de Deus.
dos nos versículos 49-51, mas quando com­ Observe os estágios desse episódio que
parados a outros textos (1 Sm 9:2; 2 Sm 21:8; custou a Saul seu reino e, por fim, sua vida.
1 Cr 8:29-33; 9:39), revelam alguns proble­ Saul desobedece a Deus (w . 1-11). Os
mas. Saul era neto de Abiel e filho de Quis amalequitas eram descendente de Esaú, o
(1 Sm 9:1, 2). Era sobrinho de Ner, enquanto irmão incrédulo de Jacó (Gn 36:12,15,16;
Abner ("filho de Ner") era capitão do exérci­ Hb 12:14-17), sendo inimigos do povo
to (14:51). Somente três filhos são mencio­ israelita. O exército de Amaleque atacou os
nados (Jônatas, Isvi e Malquisua), ao passo israelitas logo depois que o povo deixou o
que textos posteriores falam de Abinadabe Egito, e os amalequitas foram derrotados,
e Esbaal (1 Cr 8:33; 9:39). Saul teve duas pois Deus ouviu as orações de Moisés e aju­
filhas, Merabe e Mical, e todos esses filhos dou o exército de Josué. Naquele tempo, o
eram de sua esposa Ainoã. Sua concubina Senhor declarou guerra perpetuamente
Rispa deu à luz Armoni e Mefibosete (2 Sm contra Amaleque (Êx 17:8-16), e Balaão
21:8). Jônatas, Malquisua e Abinadabe mor­ profetizou sua derrota final (Nm 24:20; ver
reram com o pai em Cilboa (1 Sm 31:1, 2), também Dt 25:17-19).
e Abner declarou Isbosete sucessor do pai Algumas pessoas têm dificuldade em crer
ao trono (2 Sm 2:8ss). É bem provável que que o Senhor ordenasse que uma nação
Isbosete seja o Esbaal de 1 Crônicas 8:33 e inteira fosse destruída em função de algo
9:39, pois não era incomum os homens que seus antepassados haviam feito séculos
israelitas terem mais de um nome. Mas o antes. E possível que alguns desses críticos
que foi feito de Isvi? Seria outro nome para fiem-se mais em sentimentos do que em
Esbaal (Isbosete), uma vez que os dois no­ verdades espirituais, sem perceber como o
mes não são encontrados juntos em nenhum Senhor havia sido longânimo com essas na­
texto? Se esse é o caso, então Saul teve qua­ ções e como elas eram indescritivelmente
tro filhos com Ainoã - Jônatas, o mais ve­ perversas (ver 1 Sm 15:18, 33; Gn 15:16). A
lho, depois Isvi / Esbaal / Isbosete, seguido aliança de Deus com o povo de Israel in­
de Malquisua e Abinadabe. Uma vez que o cluía a seguinte promessa: "Amaldiçoarei os
filho mais velho e os dois mais moços foram que te amaldiçoarem" (Gn 12:3), e Deus
mortos em combate, restava Isbosete, o se­ sempre cumpre sua Palavra. Povos como os
gundo filho de Saul, para reivindicar a co­ amalequitas, que desejavam exterminar os
roa. Sem dúvida, é possível que Isvi tenha israelitas, não estavam apenas declarando
morrido antes, restando, portanto, Esbaal / guerra contra Israel, mas também se opon­
Isbosete para reinar, ou se Esbaal morreu, do ao Deus Todo-Poderoso e a seu grande
então Isvi / Isbosete sobreviveu e teve um plano de redenção para o mundo inteiro.
curto reinado. Ou as pessoas são a favor ou são contra o
Senhor, e, caso sejam contra ele, devem so­
3. A DESOBEDIÊNCIA E A DISSIMULAÇÃO frer as conseqüências. Sabendo da aliança
REDUNDAM EM JULGAMENTO de Deus com Abraão, Saul permitiu que os
(1 S m 15:1-35) queneus escapassem (1 Sm 15:6), pois ha­
Esse é o capítulo central da história de Saul. viam sido amigáveis com Israel. Eram des­
O Senhor lhe deu outra oportunidade de cendentes dos midianitas, e Moisés havia se
provar seu valor e, mais uma vez, Saul fracas­ casado com uma mulher de Midiã (Êx 2:16,
sou, mentiu sobre o que havia ocorrido e 21, 22; ver Jz 4:11). A história mostra como
foi julgado. Saul tinha o costume de falar as nações que perseguiram Israel foram
em vez de realizar e de inventar desculpas julgadas com severidade.
1 SAMUEL 1 4 - 1 5 239

Saul fez algo admirável ao ter o cuidado a cerca de vinte e quatro quilômetros de
de proteger os queneus, mas não teve o Cilgal, possivelmente um dia de viagem para
mesmo cuidado com referência à vontade o profeta idoso.
de Deus. Destruiu tudo o que era abominá­ A saudação de Saul foi absolutamente
vel e desprezível, mas permitiu que o rei hipócrita. Não tinha bênção alguma para dar
Agague vivesse e que os soldados israelitas a Samuel e não havia feito a vontade do
tomassem para si "o melhor" dos rebanhos. Senhor. Em primeiro lugar, mentiu para si
Porém, se o Senhor diz que algo é condena­ mesmo, pensando que poderia escapar incó­
do, como podemos dizer que é "o melhor"? lume de sua dissimulação, e, depois, mentiu
"Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, para Samuel que, aliás, já sabia da verdade.
mal" (Is 5:20). Sem dúvida, Saul tinha ho­ Tentou até mentir para Deus ao dizer que
mens suficientes para executar o serviço usaria os animais que havia poupado para
completo, mas decidiu fazer as coisas a sua oferecer como sacrifício! (ver 1 Jo 1:5-10).
maneira. O profeta Samuel ficou sabendo Saul culpou os soldados por guardar os es­
da desobediência de Saul antes de o exér­ pólios, mas, certamente, como seu co­
cito voltar da batalha e se entristeceu pro­ mandante, poderia tê-los controlado. "Eles"
fundamente. O termo hebraico significa pouparam o melhor, mas "nós" destruímos
"queimar" e indica indignação justa, ira san­ inteiramente o resto! Para Saul, a culpa era
ta. Samuel teve pena de Saul pelo resto de sempre de alguma outra pessoa.
sua vida (16:1) e clamou ao Senhor (15:11). Saul discute com Sam uel (vv. 16-23). O
Servir a Deus de modo aceitável envolve imperativo enfático de Samuel - "Espera" -
fazer a vontade de Deus da maneira certa, indica que Saul estava se virando para ir
no momento certo e pelos motivos certos. embora ou significa "chega de mentir"? Tal­
Deus havia dado a Saul outra chance, e o vez as duas coisas, pois Saul não desejava
rei havia fracassado completamente. Não é discutir seus assuntos com Samuel. No
de se admirar que seu mentor, Samuel, esti­ entanto, Samuel tinha uma mensagem do
vesse irado e entristecido. Saul era o homem Senhor, e Saul sabia que era melhor escutar.
que Deus havia escolhido para ser rei, e Sa­ Chegaria o dia em que Saul daria qualquer
muel desejava que ele fosse bem-sucedido. coisa para ouvir uma palavra do Senhor
No final, o fato de Saul não ter exterminado (1 Sm 28:4-6).
todos os amalequitas resultou em sua morte O rapaz outrora modesto (9:21), pela
(2 Sm 1:1-10). segunda vez, deliberadamente desobedecia
Quanto à questão de Deus "arrepender- à vontade do Senhor, tendo, até mesmo,
se" (1 Sm 15:11), não há contradição algu­ erguido um monumento em homenagem ao
ma entre essa declaração e o versículo 29 ocorrido. Deveria ter aniquilado a nação que,
(ver a nota número 4). durante séculos, havia feito o que era mau,
Sau l m ente para Sam uel (vv. 12-15). mas ele próprio acabou fazendo o mal. Con­
Aos olhos dos soldados e do povo de Is­ frontado com essa acusação, Saul começou
rael, Saul havia conquistado uma grande vi­ a argumentar com o servo de Deus e a ne­
tória sobre um inimigo de longa data, mas gar que tivesse feito algo errado. Pela segun­
aos olhos de Deus, havia sido uma derrota. da vez, mentiu quando disse: "executei as
No entanto, o rei estava tão impressionado palavras do S e n h o r " (1 Sm 15:13, 20); pela
consigo mesmo que foi até o Carmelo e segunda vez, jogou a culpa sobre seu exér­
ergueu um monumento de pedra em sua cito (vv. 15, 21) e, pela segunda vez, usou a
homenagem e, depois, seguiu para Cilgal, desculpa esfarrapada de que consagraria os
onde havia pecado contra o Senhor e animais que havia poupado como sacrifício
Samuel anteriormente (13:4ss). É possível ao Senhor (vv. 15, 21).
que, com isso, estivesse tentando evitar O profeta rejeitou as três mentiras e ex­
Samuel? Talvez, mas seus esforços foram plicou o motivo de Deus não considerar os
inúteis. A casa de Samuel em Ramá ficava animais um sacrifício aceitável: o Senhor
240 1 SAMUEL 1 4 - 1 5

deseja uma vida de obediência sincera, não Saul é rejeitado por Deus (w . 24-29).
animais mortos sobre o altar. Deus não pre­ O rei Saul passou de "dei ouvidos à voz do
cisa de qualquer doação nossa (SI 50:7-15), S e n h o r " (1 Sm 15:20) para "pequei".3Porém,
e o sacrifício que deseja é um coração que­ não foi uma expressão verdadeira de arre­
brantado e contrito (51:16, 17). O sacrifício pendimento e de pesar por haver pecado,
sem obediência não passa de hipocrisia e pois quando repetiu essas palavras, acres­
de ritual religioso vazio (Is 1:11-17; Jr 7:21 - centou: "honra-me, porém, agora, diante dos
26; SI 40:6-8). "Pois misericórdia quero, e anciãos do meu povo" (v. 30). É evidente
não sacrifício, e o conhecimento de Deus, que o rei estava mais preocupado com sua
mais do que holocaustos" (Os 6:6). Os lí­ reputação diante do povo do que com seu
deres religiosos do tempo de Jesus não en­ caráter diante de Deus, o que não expressa
tenderam essa verdade (Mt 9:9-13; 12:1-8), a atitude de um homem verdadeiramente
ainda que, ocasionalmente, alguém no meio quebrantado pelo pecado. Saul também ad­
da multidão tenha conseguido captar a men­ mitiu que havia poupado Agague e os ani­
sagem (Mc 12:28-34). mais, pois temeu o povo em vez de temer o
Samuel era levita e profeta, de modo que Senhor e seus mandamentos. Porém, essa
certamente não estava criticando o sistema foi apenas outra indicação de que estava
sacrificial de Israel. Por intermédio de Moisés, mais interessado em manter a imagem dian­
o Senhor havia estabelecido os critérios para te do povo do que em agradar a Deus.
a adoração em Israel, e era correto o povo Samuel recusou acompanhar Saul até o
levar seus sacrifícios ao Senhor. Essa era a altar, pois sabia que o Senhor não receberia
forma de adoração que Deus havia deter­ a adoração do rei, uma vez que o havia re­
minado. Porém, os adoradores deveriam jeitado. No caso anterior de desobediência,
aproximar-se do Senhor com um coração Saul havia perdido sua dinastia (1 Sm 13:14),
submisso e com fé verdadeira, do contrário mas dessa vez, havia perdido seu trono. Não
seus sacrifícios seriam em vão. Quando Davi era mais o rei de Israel, pois Samuel iria un­
estava no deserto e longe dos sacerdotes e gir Davi para exercer essa função. Saul já
do santuário de Deus, sabia que o Senhor havia sido advertido sobre esse julgamento,
aceitaria a adoração de seu coração. "Suba e agora a sentença estava prestes a ser exe­
à tua presença a minha oração, como in­ cutada. Quando Samuel virou-se para partir,
censo, e seja o erguer de minhas mãos como Saul agarrou as borlas na bainha de suas
oferenda vespertina" (SI 141:2). A adoração vestes (Nm 15:38, 39) e rasgou o manto do
cristã de hoje deve ir além da mera execução profeta (ver 1 Rs 11:29-39). Samuel usou isso
de uma liturgia. Devemos adorar a Deus "em como ilustração e anunciou que Deus havia
espírito e em verdade" (Jo 4:24), "Louvando rasgado o reino das mãos de Saul. Samuel
a Deus [...] com cânticos espirituais, com gra­ chamou Deus de "Glória de Israel", nome
tidão, em vosso coração" (Cl 3:16). que se refere à glória, eminência e perfei­
Mas o profeta prosseguiu, revelando ção de Deus. Como era possível um Deus
que o coração de Saul era controlado pelos tão maravilhoso ser culpado de mudar ou
pecados de rebelião e de obstinação (arro­ de mentir? O Senhor havia anunciado que
gância), e, aos olhos de Deus, eram perver- Saul perderia o reino e que nada o faria vol­
sidades semelhantes à feitiçaria e à idolatria tar atrás.4
(posteriormente, Saul, de fato, recorreu à fei­ Saul é rejeitado por Sam uel (w . 30-35).
tiçaria). Os dois pecados eram indício de um A Palavra de Deus simplesmente não pe­
coração que havia rejeitado a palavra do netrou a mente e o coração de Saul, e ele
Senhor. Conhecer a vontade de Deus e de­ continuou preocupando-se em manter a re­
sobedecer deliberadamente a ela é colocar- putação em vez de colocar a vida em ordem
se acima de Deus e, portanto, tornar-se seu diante do Senhor. Não se sabe, ao certo, o
próprio deus. Trata-se do tipo mais abomi­ que levou Samuel a mudar de idéia e a ir
nável de idolatria. adorar com Saul, mas os gestos do profeta
1 SAMUEL 1 4 - 1 5 241

depois disso não deixam dúvida alguma do o rei e para fortalecer o reino, mas Saul in­
posicionamento de Samuel em relação ao sistiu em conseguir tudo a sua maneira. Cada
rei. Samuel despedaçou o rei Agague publi­ vez que Saul recebeu uma missão, não a
camente e, assim, mostrou ao povo que Saul cumpriu como deveria e, quando confron­
não havia cumprido sua missão. Samuel vol­ tado, mentia e colocava a culpa em outros.
tou para seu lar em Ramá e Saul para sua A maior parte das vitórias de Israel deu-se
casa em Gibeá, e Samuel não fez mais via­ sob o comando de Jônatas. Foi um tempo
gens públicas nem particulares para se en­ difícil para Samuel, mas Deus ainda estava
contrar com o rei. Saul visitou Samuel uma assentado no trono e ainda tinha um rei ver­
vez em Ramá (19:23, 24). dadeiro esperando para ser ungido.
Sentimos por Samuel, que, certamente, O rei Saul havia perdido sua dinastia, seu
sofreu muito por causa do povo e do rei de­ caráter, seu trono e sua coroa. Também ha­
sejado com tanto ardor. Na introdução da via perdido um amigo piedoso. Quando Davi
monarquia em Israel, Samuel foi substituído entrou em cena, Saul perdeu o controle e o
por um líder inferior a ele em todos os senti­ bom senso e, por fim, perdeu a última bata­
dos. Samuel fez o que pôde para aconselhar lha e a vida.

1. O "teste" de jônatas não foi uma demonstração de incredulidade como foi o da lã de Gideão (Jz 6:36-40). Jônatas já possuía

a fé necessária para derrotar o inimigo, mas desejava saber de que maneira o Senhor queria que atacasse. É errado os filhos
de Deus "colocarem a lã no chão da eira" e imporem condições para Deus cumprir a fim de que obedeçam ao Senhor. Por

vezes, o Senhor inclina-se até nosso nível de fraqueza e satisfaz nossas condições, mas não se trata de uma prática que edifica

a fé do cristão.
2. A oração: "traze aqui a arca de Deus", no versículo 18, é incomum, pois a arca não era usada para determinar a vontade de

Deus. Seria de se esperar que o rei ordenasse: "traze aqui a estola sacerdotal", como acontece em 1 Samuel 23:9 e 30:7. A

estola fazia parte das vestes oficiais do sumo sacerdote e nela ficavam guardados o Urim e o Tumim (Êx 28:6-30), usados para

determinar a vontade de Deus.


3. Em duas ocasiões, o Faraó disse "Pequei" (Êx 9:27; 10:16), mas foram apenas confissões vazias. Assim que a situação

melhorou no Egito, o Faraó retomou sua oposição a Moisés e a Deus. Balaão disse "Pequei" (Nm 22:34), mas continuou

sendo inimigo de Israel. Judas só admitiu seu pecado, mas nunca se arrependeu (M t 27:4). Davi declarou com sinceridade:

"Pequei contra o Senhor" {2 Sm 12:13; 24:10, 17; SI 51:4), como também o fez o filho pródigo (Lc 15:18, 21).
4. Quando a Bíblia fala que Deus "se arrependeu", usa linguagem humana para descrever uma verdade divina. Deus conhece

o futuro, inclusive as respostas a suas ordens, e jamais fica sem saber o que fazer. Por certo, muda suas ações de acordo com

aquilo que as pessoas fazem, mas isso não tem relação alguma com sua natureza imutável nem com seus atributos. Jonas

anunciou que Nínive seria destruída, mas a cidade arrependeu-se, e o Senhor retirou seu julgamento. Do ponto de vista

humano, Deus pareceu mudar de idéia, mas não foi o que ocorreu do ponto de vista divino. Deus é sempre fiel a sua natureza

e coerente com seus atributos e planos. Nada o pega de surpresa.


o rei Saul, é pouco provável que o povo
6 tivesse escolhido Davi, mas ele era o prefe­
rido de Deus. "Também escolheu a Davi,
seu servo, e o tomou dos redis das ove­
D eu s E s c o l h e um R ei lhas; tirou-o do cuidado das ovelhas e suas
crias, para ser o pastor de Jacó, seu povo, e
1 Samuel 1 6 - 1 7 de Israel, sua herança" (SI 78:70, 71). Con­
sideremos alguns fatos sobre esse rapaz
incomum.
Belém - a cidade de D avi (w . 1-5). Apesar
de ser uma cidade pequena em Judá, a maio­
ria dos israelitas conhecia Belém. Foi quando
ualquer um que tenha ficado profun­ Jacó e sua família estavam a caminho de Betei
Q damente decepcionado com um ami­
go ou membro da família pode entender o
que Raquel, sua esposa mais amada, faleceu
próximo a Belém, enquanto dava à luz
motivo de Samuel, um homem idoso, ter se Benjamim (Gn 35:16-20). Foi em Belém que
lamentado durante tanto tempo pelo rei Saul. Rute, a viúva moabita, encontrou seu mari­
Israel havia rejeitado a liderança de Samuel, do, Boaz, e deu à luz Obede, avô de Davi (Rt
uma vez que ele estava muito velho, e os 4:13-22; Mt 1:3-6). O próprio Davi tornaria
israelitas não queriam que os filhos de Samuel Belém um lugar famoso, como também o fa­
o sucedessem, pois aceitavam subornos e per­ ria Jesus, o Filho de Davi, que nasceu nessa
vertiam a justiça (8:3). Porém, o rei Saul era cidade, conforme haviam prometido as Escri­
culpado de desobedecer às ordens inequívo­ turas (Mq 5:2; Mt 2:6). O nome Belém quer
cas de Deus e também de mentir sobre o que dizer "casa do pão", e foi lá que o pão da
havia feito e, em decorrência desses pecados, vida desceu do céu e veio habitar no mundo
havia perdido o trono. Ainda estava ocupan­ como ser humano.
do o cargo e, no entanto, não era capaz de Em sua posição de juiz e profeta, Samuel
liderar a nação, e Samuel havia rompido seu tinha o direito de viajar como bem lhe aprou­
relacionamento com ele (15:34, 35). Em sua vesse, a fim de servir ao Senhor e a seu povo.
tristeza, Samuel deve ter se sentido o maior No entanto, eram tempos difíceis, pois Saul
dos fracassados como pai, líder espiritual e era um homem desconfiado e seus espias
mentor do novo rei. A expressão traduzida por poderiam relatar ao rei qualquer coisa que
"ter pena" significa "prantear pelos mortos" e Samuel fizesse. Partindo de Ramá, onde
revela a profundidade da tristeza de Samuel. Samuel morava, a estrada para Belém passa­
Há um tempo para prantear (Ec 3:4), mas va por Gibeá, onde ficava o quartel-general
também há o momento de agir (Js 7:10), e, de Saul; o rei iria querer saber para onde
para Samuel, esse momento havia chegado. Samuel se dirigia e o que pretendia fazer lá.
Apesar do que sentia em relação a si mes­ A fim de evitar problemas, Deus ordenou que
mo, o trabalho de Samuel ainda não havia seu servo tomasse uma novilha e anunciasse
chegado ao fim, pois Deus queria que ele que iria realizar uma oferta pacífica em Belém
ungisse o novo rei. Se Saul foi "o rei aclama­ para um grupo seleto de pessoas, inclusive
do pelo povo", Davi foi o rei escolhido por Jessé e seus filhos. Nessa ocasião, Deus mos­
Deus, e os acontecimentos registrados nes­ traria a Samuel qual dos filhos de Jessé o pro­
tes dois capítulos mostram claramente que a feta deveria ungir rei.
mão de Deus estava sobre Davi, o líder se­ Os anciãos de Belém sabiam que Saul e
gundo o coração do Senhor. Samuel não se entendiam, de modo que a
chegada de Samuel os deixou sobressaltados.
1. D eu s es c o l h eu D a vi (1 S m 16:1-13) Será que Samuel estava alistando seguidores
Caso houvesse uma eleição em Israel com para formar um grupo de resistência a Saul? E
a finalidade de escolher um substituto para se Saul interpretasse a presença do profeta
1 SAMUEL 1 6 - 1 7 243

na pequena cidade como uma declaração A profissão de D avi - pastor (v. 11). Davi
de guerra? Samuel apressou-se em tranquili­ era tão desconceituado em sua família que
zá-los e instruiu-os a santificar-se e a partici­ Jessé nem foi chamá-lo no local onde ele
par do sacrifício e do banquete subseqüente. cuidava do rebanho para convidá-lo a parti­
A "santificação" implicava que cada convi­ cipar do banquete!1 Saul estava escondido
dado deveria tomar um banho e trocar de no meio da bagagem quando Samuel o cha­
roupa (Êx 9:10-15), pois ninguém que se en­ mou, mas Davi estava ocupado cuidando
contrasse cerimonialmente impuro poderia das ovelhas do pai. No Antigo Testamento,
participar do banquete sacrificial (Lv 7:19­ os reis e seus oficiais eram considerados
21). Jessé e seus filhos consideraram uma "pastores" do povo (ver Jr 23; Ez 34), e Davi
grande honra ser convidados para esse ban­ era um homem com o coração de um pas­
quete, e é evidente que ninguém além de tor (ver 2 Sm 7:8; 1 Cr 21:1 7; SI 78:70-72). A
Samuel sabia por que haviam sido incluídos. Igreja de Cristo, nos dias de hoje, bem como
A fam ília de D avi (w . 6-10). Antes de os cada líder espiritual, precisa ter o coração
convidados se sentarem para a refeição co­ de um pastor e cuidar com carinho dos cor­
munitária, Samuel examinou por alto os sete deiros e ovelhas do rebanho de Deus (Jo
filhos de Jessé, imaginando que a família 10:1-18; 21:15-19; 1 Pe 5).
inteira estava presente e baseando-se nas Os bois podem ser tangidos, mas as ove­
aparências em vez de agir pela fé. Não sa­ lhas devem ser conduzidas para que não se
bemos qual era a aspecto dos dois filhos de dispersem. O pastor deve conhecer suas
Samuel, mas sabemos que o pai deles pres­ ovelhas individualmente, amá-las e cuidar
tava atenção na aparência dos outros. Sa­ delas de acordo com suas necessidades. As
muel já havia se esquecido do erro que havia ovelhas em geral são indefesas e não enxer­
cometido em relação a Saul (9:2; 10:23, 24). gam muito bem, de modo que dependem
Davi era o oitavo filho de Jessé, e as Escritu­ do pastor para guiá-las e protegê-las. Apesar
ras dão o nome de seis de seus irmãos: de Davi ser, literalmente, um pastor, via-se
Eliabe, o primogênito; Abinadabe, o segun­ como uma das ovelhas do Senhor e escre­
do; Siméia, o terceiro, também chamado veu sobre isso no Salmo 23. Esse salmc^ não
Samá; Natanael, o quarto; Radai, o quinto e foi escrito por um rapaz, mas sim por um
Ozém, o sexto (1 Cr 2:13-15). Davi é apre­ homem experiente e temente a Deus, que
sentado como o sétimo filho nessa genealo­ olhou para trás, para uma vida longa, e con­
gia, mas 1 Samuel 16:10,11 deixa claro que fessou que o Senhor lhe havia sido fiel to­
ele era o oitavo e o caçula. Ao que parece, dos os dias de sua vida (SI 23:6). Davi era
um dos irmãos morreu sem deixar herdei­ exatamente o tipo de líder que Israel preci­
ros, de modo que seu nome foi tirado da sava para reparar todo o estrago que Saul
genealogia. Davi também tinha duas irmãs: havia causado à nação.2
Zeruia, mãe de Abisai, Joabe e Asael, e Deus chama pessoas ocupadas, não
Abigail, mãe de Amasa (1 Cr 2:16,17). To­ quem procura maneiras de fugir das respon­
dos esses homens exerceram papéis impor­ sabilidades. Moisés (Êx 3), Gideão (Jz 6), Elias
tantes no reino de Davi. (1 Rs 19:19-21), Neemias (Ne 1), Amós (Am
Sem dúvida, não havia outra família em 7:14, 15), Pedro, André, Tiago e João (Mc
Belém que pudesse dizer que possuía sete 1:16-20) e Mateus (Mt 9:9-13) estavam tra­
irmãos, homens de força e de grandeza e, balhando quando o Senhor os chamou. O
no entanto, nenhum deles era o rei escolhido padrão de Deus para a liderança é declara­
de Deus! Samuel viu as feições e o aspecto do em Mateus 25:21: "Muito bem, servo
de cada um, mas o Senhor examinou-lhes o bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito
coração. Somente Deus pode sondar o co­ te colocarei; entra no gozo do teu senhor".
ração e conhecer as verdadeiras motivações Davi havia sido fiel como servo sobre pou­
das pessoas (1 Cr 28:9; Jr 17:10; Rm 8:27; co, e Deus o promoveu a fim de governar
Hb 4:12). sobre muito; de um rebanho de ovelhas para
244 1 SAMUEL 1 6 - 1 7

uma nação inteira! Ao contrário de Saul, foi o poder de que precisamos, pois Jesus dis­
possível confiar a Davi o exercício da autori­ se: "Sem mim, nada podeis fazer" (Jo 15:5).
dade, pois ele próprio havia se sujeitado à Até que ponto o pai e os irmãos de Davi
autoridade e se mostrado fiel. entenderam essa unção? Diante do rela­
A aparência de D avi (v. 12a; ver 17:42). cionamento subseqüente com o rei Saul,
Apesar de a aparência física não ser o atri­ talvez tenham interpretado esse aconte­
buto mais importante de um rei (16:7), a cimento como uma consagração para que
compleição de Davi era tão marcante que o Davi servisse ao rei. É bem provável que
Senhor chama nossa atenção para ela. Saul Samuel tenha conversado com Davi em par­
era diferente da maioria dos semitas de sua ticular e explicado que ele havia sido esco­
época, pois era alto, enquanto a característi­ lhido pelo Senhor para ser o próximo rei. Se
ca distintiva de Davi era o fato de sua pele esse foi o caso, seu comportamento enquan­
ser clara e não morena. A palavra traduzida to estava a serviço de Saul foi notavelmente
por "ruivo" é a mesma que aparece no ape­ maduro para um rapaz que, um dia, usaria a
lido de Esaú: "Edom - vermelho" (Gn 25:24­ coroa. Sem dúvida, foi essa certeza sobre o
34). De acordo com a interpretação de futuro que ajudou Davi a manter-se fiel du­
alguns, isso não significa que Davi fosse rante os anos subseqüentes de provações e
ruivo, mas apenas que, ao contrário de ou­ de perseguições.5 Porém, suas provações e
tros semitas, tinha a pele e os cabelos cla­ testes ao longo daqueles anos no deserto
ros. Assim como José, era bem apessoado ajudaram a desenvolver sua fé e seu caráter
(39:6) e tinha personalidade cativante (1 Sm piedoso e a prepará-lo para o ministério que
16:18). Era o tipo de pessoa que atraía ou­ Deus planejou para ele.
tros e que conquistava sua confiança. Quando Davi e Jônatas tornaram-se ami­
A unção de D avi (vv. 12a, 13). Depois gos (18:1) e fizeram uma aliança de fidelida­
de olhar para os sete filhos de Jessé, Samuel de mútua (18:3; 20:16), por certo, Davi lhe
finalmente encontrou o homem escolhido revelou que era o rei ungido de Deus. Quan­
pelo Senhor, o homem segundo o coração do Davi subisse ao trono, Jônatas seria o
de Deus (13:14). É interessante o fato de segundo no poder (23:16-18). Dificilmente
Davi ("amado") ser o oitavo filho, pois nas foi Jônatas quem contou a Saul, um homem
Escrituras esse número é, com freqüência, a paranóico, sobre Davi e sua aliança, mas de
representação de um novo começo. De fato, algum modo o rei descobriu que Davi era
Deus usou Davi para promover um recome­ seu sucessor (20:30, 31) e tentou matá-lo
ço em Israel, tanto em termos políticos quan­ com empenho redobrado. Os homens de
to espirituais.3 Saul deveriam mantê-lo informado sobre os
Nas Escrituras, somente profetas, sacer­ passos de Davi, e Saul lhes contou que Davi
dotes e reis eram ungidos, e a unção deve­ havia sido escolhido para ser o próximo rei
ria ser realizada por uma pessoa autorizada (22 :6-8 ).
pelo Senhor. Na imageria bíblica, o óleo
pode simbolizar o Espírito Santo e a conces­ 2. D eu s preparo u D avi
são de seu poder a seus servos (Zc 4). Tanto (1 Sm 16:14-23)
o termo hebraico "Messias" quanto o termo Davi sabia que o Senhor havia estado pre­
grego "Cristo" significam "ungido". O Espíri­ sente em sua concepção e que havia orga­
to de Deus veio sobre o jovem Davi com nizado sua estrutura genética (SI 139:13-16).
grande poder, e daquele momento em O Senhor determinou que Davi seria forte e
diante, Davi foi um homem de Deus. Simul­ de boa aparência, que teria talento para a
taneamente, porém, o Espírito de Deus música, que seria cauteloso e valente. As­
deixou Saul (1 Sm 16:14).4 Sem o poder do sim como Paulo foi um vaso preparado por
Espírito, o servo de Deus é incapaz de fazer Deus para um trabalho específico (Gl 1:15;
a vontade de seu Senhor e de glorificar a At 9:15), Davi foi o servo que Deus preparou
Cristo. Ao permanecer em Cristo, recebemos para cumprir seus propósitos para seu povo.
1 SAMUEL 1 6 - 1 7 245

Os servos de Saul sabiam que havia algo Davi conhecia seus dons (Rm 12:3) e usou-
de muito errado com seu senhor e atribuí­ os em sua vida diária. Ele amava e adorava o
ram corretamente os ataques do rei à in­ Senhor e entregou-se à obra a que Deus o
fluência de um espírito maligno. Deus havia havia chamado para realizar. Enquanto Davi
permitido que esse espírito perturbasse Saul seguiu o Senhor, Deus o abençoou e usou
(1 Sm 16:14, 23; 18:10; 19:9) como parte para sua glória.
de sua disciplina pela rebelião do rei. Saul Em seu primeiro encontro, Saul "amou
era, por natureza, um homem desconfiado muito" Davi (1 Sm 16:21), de modo que não
e vingativo, o que deu a esse espírito um fazia idéia que seu novo escudeiro seria o
ponto de apoio para operar (Ef 4:25-27). O próximo rei de Israel. Porém, esse amor foi
único homem no reino preparado para mi­ sendo substituído, aos poucos, pela inveja
nistrar a Saul era Davi! e, depois, pelo medo (18:8, 9, 12, 15), até
Davi era poeta e músico e possuía apti­ que Saul resolveu matar Davi. Saul tornou-
dão para tocar harpa e para compor cânticos. se inimigo de Davi (18:19), mas Davi nunca
No final de sua vida, ficou conhecido como o tratou como tal. Davi comportou-se com
"mavioso salmista de Israel" (2 Sm 23:1). Não sabedoria e procurou ajudar Saul a superar
é comum encontrar talentos artísticos desse seus ataques de depressão, mas estes só pio­
tipo num homem que também era um solda­ raram. Sem Deus, Saul não passava de um
do enérgico e general destemido. Escreveu fracassado.
salmos, organizou o ministério de música
no templo (1 Cr 25) e forneceu instrumen­ 3. Deus co n d u ziu D avi
tos para os músicos (23:5). Com os despo­ (1 S m 17:1-27)
jos de suas muitas batalhas, providenciou Davi não ficava o tempo todo no acampa­
materiais para a construção do templo e mento de Saul; passava temporadas com o
ansiou pelo privilégio de construir uma casa rei ou em sua casa conforme se fazia neces­
para o Senhor. Seja qual for o ponto de vista sário (v. 15). Sempre que era chamado para
que se use para analisar a vida e as aptidões ajudar Saul, Davi deixava seu rebanho com
de Davi, chega-se sempre à conclusão de um homem de confiança (v. 20) e se apres­
que ele era um indivíduo singular e de que sava para o acampamento, onde tinha até
era assim porque Deus o havia criado desse sua tenda (v. 54). Foi só depois que Davi
modo! matou Golias que Saul nomeou-o um de seus
Foi a aptidão musical de Davi que lhe escudeiros (18:1, 2). Davi era um homem
deu acesso à corte do rei e que, posterior­ conduzido pelo Espírito, e todas as suas de­
mente, o promoveu ao serviço militar. As cisões precisavam estar dentro da vontade
oportunidades da vida apareceram de acor­ de Deus. Outros poderiam ir e vir como bem
do com seus talentos, e Davi teve a sabedo­ lhes aprouvesse, mas Davi era conduzido
ria de obedecer à vontade de Deus. Assim pela mão providencial de Deus. Vemos essa
como se recusou a vestir a armadura de Saul orientação divina nos acontecimentos rela­
ao enfrentar Golias, também rejeitou tudo tados no capítulo 17.
aquilo que não havia sido preparado para Golias é descrito como um gigante de
ele pelo Senhor. "Guia-me pelas veredas da mais de quatro metros e sessenta centíme­
justiça por amor do seu nome" (SI 23:3; Ef tros de altura, que vestia uma couraça de
2 : 10 ). escamas pesando mais de sessenta quilos e
A chave para o sucesso de Davi é apre­ carregava uma lança de quase oito quilos.
sentada em 1 Samuel 16:18: "o S e n h o r é Sem dúvida, era um adversário descomunal.
com ele" (ver 18:12, 14, 28). Esse também Havia se apresentado ao exército de Israel
foi o segredo do sucesso de José (Gn 39:2, todas as manhãs e noites durante quarenta
3, 21, 23), de Josué (Js 6:27) e de Samuel dias e, ao que parece, Davi chegou no últi­
(1 Sm 3:19) e constitui o alicerce para a mo dia (17:16). Jessé escolheu o dia certo
vida cristã bem-sucedida nos dias de hoje. para enviar Davi ao campo de batalha, a fim
246 1 SAMUEL 1 6 - 1 7

de entregar alimentos a seus três irmãos e — Somos soldados e você é só um pas-


ao comandante deles (vv. 17, 18). Ao con­ torzinho! Veio só para assistir à batalha! Volte
trário dos exércitos modernos, os soldados para casa, vá cuidar de seu pequeno reba­
da antiguidade deveriam providenciar os nho e deixe o combate por nossa conta!
próprios suprimentos e ajudar a fornecer Sem dúvida, o fato de não ter havido
provisões a outros. batalha alguma não envergonhava Eliabe;
Davi levantou bem cedo e ouviu o desa­ também se esqueceu de que, em primeiro
fio matinal de Colias a Saul e a seu exército. lugar, Davi estava lá para entregar suprimen­
Se os israelitas conseguissem encontrar um tos a ele, Abinadabe e Samá. Esses três
campeão capaz de derrotar Colias, os fi­ homens haviam visto Davi ser ungido por
listeus se sujeitariam aos israelitas e seriam Samuel, mas não entenderam o que isso sig­
seus servos, mas se isso não acontecesse, nificava. "Assim, os inimigos do homem se­
os israelitas deveriam considerar-se derrota­ rão os da sua própria casa" (Mt 10:36; ver
dos e tornar-se servos dos filisteus (vv. 8, 9). Mq 7:6) - foi o que Jesus prometeu e exata­
Infelizmente, ninguém no exército israelita mente o que ocorreu no caso de Davi. O
apresentou-se como voluntário, nem o rei mesmo aconteceu com José, tratado pelos
Saul, que era bem mais alto que a maioria irmãos com ódio, mentiras e vendido por
dos homens. Uma vez que Israel havia chega­ eles como escravo. Moisés foi criticado pe­
do a um momento de crise nesse confron­ los irmãos, Arão e Miriã (Nm 12), e a família
to, Saul fez uma oferta generosa ao homem de Jesus aqui na terra não o compreendeu
que se prontificasse a calar Colias: ele se e se opôs a seu ministério (Mc 3:31-35; Jo
casaria com uma de suas filhas, receberia 7:1-10). No entanto, Davi não permitiu que
muitas riquezas e a casa de seu pai seria as palavras ríspidas de Eliabe o desanimas­
isenta de impostos. Saul esperava que al­ sem, pois sabia que Deus poderia ajudá-lo a
guém fosse tentado por essa oferta e pro­ derrotar o gigante.
curasse derrotar Colias. Porém, o rei Saul também não foi de gran­
Davi reagiu com a mais completa aver­ de ajuda com suas palavras e conselhos.
são ao discurso de Colias. Quem era aque­ "Contra o filisteu não poderás ir para pelejar
le filisteu incircunciso para blasfemar contra com ele; pois tu és ainda moço, e ele, guer­
o Deus de Israel? Lembre-se de que Davi reiro desde a sua mocidade" (1 Sm 17:33).
era jovem demais para servir no exército, Saul estava repetindo o relato dos dez es­
mas, para ele, qualquer um no acampamen­ pias incrédulos, que viram os gigantes em
to com fé em Jeová seria capaz de desafiar Canaã e decidiram ser impossível entrar na
Colias e de derrotá-lo! No entanto, viu ho­ terra prometida (Nm 13:28, 29). Quando vi­
mens fugindo do campo de batalha só de vemos de acordo com as aparências, cal­
olhar para o gigante; até mesmo o rei Saul culamos tudo pelo ponto de vista humano,
estava aterrorizado (vv. 11, 24).6 Deus havia o que nos leva sempre a desanimar. Porém,
conduzido Davi até o acampamento para quando vivemos pela fé, Deus entra na equa­
essa ocasião, e o rapaz estava pronto a acei­ ção e muda todos os resultados.
tar o desafio. Davi havia experimentado o poder de
Deus em sua vida e sabia que o Senhor po­
4. Deus anim ou D avi (1 S m 17:28-39) deria transformar sua fraqueza em poder.
Sempre que damos um passo de fé para lu­ Enquanto cuidava de suas ovelhas, Davi ha­
tar contra o inimigo, há alguém a nosso re­ via matado um leão e um urso e sabia que o
dor para nos desanimar, e, com freqüência, Senhor seria capaz de livrá-lo das mãos de
essa resistência começa no próprio lar. Colias. Era como se visse Colias apenas
Eliabe, o irmão mais velho de Davi, ficou como mais um animal atacando o rebanho
zangado quando soube que Davi estava fa­ de Deus! Saul não havia experimentado pes­
zendo perguntas sobre a oferta de Saul e soalmente esse poder maravilhoso de Deus,
ridicularizou o irmão caçula (vv. 28-30). de modo que aconselhou Davi a vestir sua
1 SAMUEL 1 6 - 1 7 247

armadura. Não tinha a fé necessária para crer Davi considerou esse desafio uma disputa
que Deus poderia fazer algo novo e, portan­ entre o verdadeiro Deus de Israel e os falsos
to, sugeriu o método testado e aprovado de deuses dos filisteus.
combate. O rei Saul era um adulto e, aliás, Deus quer usar seu povo a fim de en­
um homem grande e forte. Davi não passa­ grandecer seu nome a todas as nações da
va de um adolescente. Imagine, assim, como Terra. Esse propósito fazia parte do chama­
a armadura de Saul ficou no corpo de Davi! do de Abraão (Gn 12:1-3) e da escolha de
Porém, homens e mulheres de fé obedecem, Israel para ser povo de Deus (Dt 28:9, 10).
a despeito de tudo o que os entendidos te­ Um dos propósitos do tempo que Israel pas­
nham a dizer. sou no Egito, bem como dos julgamentos
O ânimo de Davi procedia de Deus, e que Deus enviou contra o Faraó, era pro­
esse foi um dos segredos de sua vida. "Po­ clamar o nome e a glória de Deus a toda a
rém Davi se reanimou no S e n h o r , seu Deus" terra (Êx 9:16). A separação das águas do
(1 Sm 30:6). Apesar das críticas e dos con­ mar Vermelho para que Israel saísse do Egi­
selhos desanimadores e inapropriados, Davi to e a abertura do rio Jordão para que en­
confiou no Senhor, seu Deus, e o Senhor trasse em Canaã foram testemunhos a todas
recompensou sua fé. as nações de que o Deus de Israel era o
Deus verdadeiro (Js 4:23, 24). Até mesmo a
5. Deus capacitou D avi construção do templo deu testemunho do
(1 S m 17 :40 -58) Deus de Israel às nações gentias, para que
"Todos os gigantes de Deus foram homens estas o conhecessem e temessem (1 Rs 8:42,
fracos que fizeram grandes coisas para ele, 43). O que o Senhor fez por intermédio de
pois contaram como certo que o Senhor Davi ficaria registrado, seria contado por
estaria a seu lado." James Hudson Taylor, todo o mundo e traria grande honra ao nome
fundador da Missão para o Interior da China, do Senhor.
escreveu essas palavras, porém, mais do que A própria arma que Davi utilizou - uma
isso, colocou-as em prática. "Sou um servo funda - era a arma de um pastor, quase um
bem pequeno de um Senhor muito eminen­ brinquedo de criança, e, no entanto, Deus
te", disse a uma congregação na Austrália. a usou para derrotar o gigante e o exército
Davi entendia o significado dessa declara­ dos filisteus. Quando Golias viu um menino
ção, pois, quando enfrentou o gigante, não vindo em sua direção, com uma funda em
passava de um adolescente. No entanto, uma das mãos e um bastão na outra, riu-se
sabia que o Senhor estaria com ele. dele e perguntou: "Sou eu algum cão, para
A vitória fo i do Senhor (w . 40-47). Infe­ vires a mim com paus?". Mas Davi anunciou
lizmente, esse relato dramático é considera­ que seu verdadeiro poder era o nome do
do, antes de tudo, uma história infantil ou, Senhor dos Exércitos, nome que Golias e os
então, a base para uma alegoria sobre como filisteus haviam insultado. Davi queria que
derrotar os "gigantes" de nossa vida. Ape­ todos ali reunidos - israelitas e filisteus -
sar de haver diversas aplicações para uma soubessem que o Senhor não precisa de
passagem bíblica, existe apenas uma inter­ espadas nem de lanças, mas que é capaz
pretação, e, nesse caso, a interpretação é de livrar seu povo a seu modo, usando os
que Davi fez o que fez para a glória de Deus. meios mais modestos. Não é de se admirar
Davi apresentou-se para o desafio em nome que Davi e Jônatas tenham se tornado ami­
do Senhor, o Deus dos exércitos de Israel, e gos tão chegados, pois os dois criam num
queria que Colias, o exército filisteu e toda Deus poderoso, e desejavam lutar as bata­
a terra soubessem que o verdadeiro Deus lhas desse Deus e glorificá-lo (1 Sm 13:6; SI
vivo era o Deus de Israel (v. 46). Colias ha­ 33:16-22; 44:6-8).
via ridicularizado o Deus de Israel e blasfe­ A vitória também fo i de D avi (vv. 48-
mado contra o nome do Senhor, mas Davi 51a). O Senhor usa determinados meios para
estava prestes a retificar essas declarações. cumprir seus propósitos, e Davi foi o servo
248 1 SA M U EL 1 6 - 1 7

preparado para aquela ocasião. Como pas­ Em que momento Davi levou a cabeça
tor trabalhando sozinho nos campos, apren­ de Golias a Jerusalém? É bem provável que
deu a confiar em Deus e, como guardião isso tenha acontecido mais tarde, quando
fiel do rebanho, tornou-se habilidoso no conquistou a cidade e fez dela a sua capital
manejo da funda. Davi possuía uma fé segura (2 Sm 5:1-10). Naquele tempo, a cidade era
em Deus, pois havia descoberto que o Se­ conhecida como Jebus e era habitada pelos
nhor era confiável nas situações de crise e jebuseus (Jz 19:10), de modo que esse
que não o abandonaria naquele momento. versículo foi incluído no texto em ocasião
O Espírito de Deus habitava no corpo de posterior, quando o nome da cidade já ha­
Davi e o capacitaria de modo a vencer a via sido alterado. Quando Davi mudou-se
batalha. Deus guiou a pedra, que afundou para a cidade como rei, sem dúvida trouxe
na testa do gigante, e ele caiu com o rosto consigo vários troféus preciosos de suas
em terra diante dos dois exércitos.7 Davi batalhas. Por mais horrível que fosse, a ca­
colocou-se sobre o corpo caído de Golias, beça de Golias serviria para lembrar Davi
tomou a espada do gigante e cortou-lhe fora de que poderia confiar no Senhor para lhe
a cabeça, ato que não apenas garantiu a dar a vitória ao procurar glorificar somente
morte da vítima, como também humilhou o o nome dele.
guerreiro filisteu e seu exército, anunciando A vitória não fo i de Sau l (vv. 55-58).
a vitória total. Anos depois, Davi escreveu: Quando Jônatas atacou o posto avançado
"O Deus que me revestiu de força e aperfei­ dos filisteus (14:1-23), Saul foi um expecta-
çoou o meu caminho [...]. Ele adestrou as dor, e suas decisões insensatas quase lhe
minhas mãos para o combate, de sorte que custaram a vitória. Mais uma vez, Saul apenas
os meus braços vergaram um arco de bron­ assistiu enquanto Davi derrotava sozinho o
ze" (SI 18:32, 34). inimigo. Esse foi seu padrão de liderança até
E transformou-se numa vitória de Israel o fim trágico de sua vida.
(w . 51b-54). Mesmo sendo jovem, Davi mos­ Saul sabia quem Davi era, mas pergun­
trou uma das marcas de um grande líder: tou a Abner quem era o pai do rapaz, pois,
assumiu riscos e abriu caminho para que naquele tempo, esse era o modo de identifi­
outros pudessem participar da vitória. Os car as pessoas. Jessé havia sido menciona­
filisteus não cumpriram sua parte do acor­ do anteriormente nos meios em que Saul
do e, portanto, não se entregaram a Israel convivia (1 Sm 16:18), mas é possível que
(v. 9). Em vez disso, fugiram de medo, e os Abner não estivesse presente e que Saul ti­
israelitas os perseguiram por mais de quin­ vesse facilmente se esquecido (sabemos o
ze quilômetros até as cidades de Gate (a nome dos pais de nossos conhecidos?).
cidade natal de Golias; 1 Sm 17:4) e de Como músico oficial de Saul, Davi ia e vi­
Ecrom, matando soldados inimigos ao lon­ nha do acampamento para casa e só estava
go de todo o caminho.8 No final, aquela foi presente quando Saul era oprimido pelo es­
uma grande vitória para o exército de Saul. pírito maligno, de modo que podemos des­
Quando os israelitas voltaram para o acam­ culpar Saul por não saber quem era Jessé.
pamento filisteu, tomaram os despojos da O acordo era que a família do campeão se­
vitória que o Senhor e Davi haviam conquis­ ria isenta de impostos e o rapaz se casaria
tado. Ao que parece, Davi acompanhou os com uma das filhas de Saul (17:25), de modo
homens na perseguição ao inimigo (v. 57) e que Saul teria de perguntar sobre o pai. Por
começou a adquirir a reputação de ser um fim, é possível que Saul quisesse saber se
soldado valente (18:7). Despojou o gigante, havia mais homens como Davi no lugar de
pegou sua armadura e colocou-a em sua onde o rapaz tinha vindo. É provável que
tenda. Posteriormente, a espada de Golias não soubesse que três dos irmãos de Davi
apareceria na cidade israelita de Nobe (21:1­ eram soldados de seu exército, mas, sem
9), de modo que Davi deve tê-la consagra­ dúvida, não faria mal ter mais alguns homens
do ao Senhor entregando-a aos sacerdotes. como aquele jovem! (ver 1 Sm 14:52). Como
1 SAMUEL 1 6 - 1 7 249

resultado da vitória daquele dia, Davi pas­ espiritual entre a verdade e a falsidade, a fé
sou a fazer parte da comitiva permanente e a superstição, entre o verdadeiro Deus vivo
do rei. e ídolos mortos. A fé de Davi elevou a guerra
Alguém disse bem que há os que fazem a outro plano, como também o fez Paulo
as coisas acontecerem, há os que assistem em Efésios 6:1 Oss. Nossa batalha é contra
enquanto as coisas acontecem e há quem Satanás e seu exército, e as armas humanas
nem sequer sabe que algo está acontecen­ de nada valem nesse conflito.
do. Davi estava ciente da situação de Israel A fé em Deus nos torna co-participantes
e sabia o que estava acontecendo. Tinha com o Senhor da batalha pela verdade. "E
consciência de que não era um conflito físico esta é a vitória que vence o mundo - a nos­
entre dois exércitos, mas sim uma batalha sa fé" (1 Jo 5:4).9

1. O termo hebraico traduzido por "o mais moço", no versículo 11, significa "o menor". Saul era conhecido por sua altura (1 Sm

9:2; 10:23), mas Davi não se destacava da multidão. Desde o começo de seu ministério, Davi é considerado um homem de

espírito humilde.

2. Logo no início de sua vida, Davi reconheceu que o Deus Jeová era Rei (SI 59:13). Bem-aventurado o líder que reconhece que

está sob a autoridade do Senhor!


3. Noé foi a "oitava pessoa" (2 Pe 2:5), e oito pessoas foram salvas na arca para recomeçar a civilização (1 Pe 3:20). O s meninos

israelitas eram circuncidados no oitavo dia, o que lhes dava uma nova posição dentro de Israel, passando a ser considerados

"filhos da aliança", e o primogênito era consagrado ao Senhor no oitavo dia (Êx 22:29, 30).
4. No Antigo Testamento, o Espírito de Deus era colocado sobre pessoas chamadas pelo Senhor para cumprir determinados

propósitos, mas o Espírito também poderia deixá-las, como aconteceu com Saul. Esse fato ajuda a explicar a oração de Davi no

Salmo 51:11. O s cristãos de hoje fazem parte da nova aliança e têm a certeza de possuir o Espírito para sempre {Jo 14:16). Os

verdadeiros cristãos são selados pelo Espírito quando de sua conversão, e o selo refere-se à posse e proteção permanentes

(Ef 1:13, 14 e 4:30).


5. De acordo com alguns cronologistas, Davi nasceu por volta de 1085 a.C. e foi ungido em 1070 a.C., aos 15 ou 16 anos de

idade. Cinco anos depois (1065 a.C ), fugiu de Saul e passou os dez anos seguintes no exílio. Em 1055 a.C., foi coroado rei de

Judá, aos 30 anos de idade (2 Sm 2).


6. O medo parecia ser um problema constante para Saul. Ver 1 Samuel 13:11; 15:24; 17:11; 18:12; 28:5. A fé e o medo não

podem ocupar, simultaneamente, o mesmo coração (M t 8:26).

7. O gigante estava usando seu capacete ou sua certeza da vitória era tanta que nem o havia trazido consigo? No entanto,

capacete algum seria capaz de impedir uma pedra impulsionada pela força divina de penetrar o crânio de Golias. É bem

provável que Golias estivesse em posição de combate, ligeiramente inclinado para frente e se aproximando de Davi, sendo

que esse fator, juntamente com o peso de sua armadura, o levou a cair com o rosto em terra.

8. A expressão "Israel e Judá", no versículo 52, também aparece em 1 Samuel 18:16, indicando que Saul não tinha uma nação

nem um exército unificado. Depois da morte de Saul e de seus filhos, foi a tribo de Judá que recebeu Davi de braços abertos

como seu rei (2 Sm 2:1-4).


9. Alguns estudiosos do Antigo Testamento acreditam que Davi escreveu o Salmo 8 para glorificar a vitória de Deus sobre

Golias. Tanto 1 Samuel 17 quanto o Salmo 8 enfatizam o nome de Deus, as aves do céu e as feras do campo, bem como o

desejo de Deus de cuidar do frágil ser humano e de usá-lo para seus propósitos.
Am or (w . 1-4). Muitos leitores da Bíblia
_7_ ainda vêem Davi e Jônatas como dois ado­
lescentes brincalhões que gostavam um do
outro, pois tinham interesses em comum, mas
U m R ei I n v e jo s o esse é um retrato superficial e equivocado.
Uma vez que fazia parte do exército do pai,
1 Sa m uel 1 8 - 1 9 Jônatas deveria ter pelo menos 20 anos de
idade, e o fato de já estar no comando de
um terço do exército e de ter conquistado
duas grandes vitórias (13:1-4; 14:1 ss) indica
que era um soldado experiente, não um ado­
lescente imaturo. Alguns cronologistas bíbli­
ara ir à guerra, os homens israelitas de
P
cos calculam que havia, possivelmente, uma
veriam ter, pelo menos, 20 anos de ida­ diferença de idade de vinte e cinco a vinte
de (Nm 1:3), mas é provável que Davi tives­ e oito anos entre Davi e Jônatas.
se apenas 18 anos quando se tornou oficial Depois de ouvir seu pai e Davi conver­
num posto elevado do exército israelita sarem, Jônatas desenvolveu uma afeição por
(18:5). Desde o começo dessa nova incum­ Davi como só acontece entre companhei­
bência, o jovem viu-se num conflito mortal ros de combate.1 Jônatas era o filho mais
com o rei Saul. Davi não criou problemas velho de Saul, o próximo candidato ao tro­
para Saul, mas sim revelou perturbações pro­ no de Israel que, na verdade, o Senhor já
fundas que já se encontravam presentes. havia entregue a Davi, de modo que a ami­
Davi era um homem honesto que vivia pela zade entre os dois foi, sem dúvida alguma,
fé, enquanto Saul era um homem dissimula­ singular. Quando Jônatas entregou suas ves­
do, intriguista e mundano. Davi havia tes oficiais e sua armadura a Davi, fazendo
aceitado sua nomeação como próximo rei dele um amigo e um igual, estava reconhe­
de Israel com grande humildade, enquanto cendo que, um dia, Davi tomaria seu lugar,
Saul beirava a paranóia ao tentar proteger indicando que Davi deve ter lhe contado
seu trono. Deus tinha abandonado Saul, mas sobre sua unção. Os dois amigos fizeram
havia dado o poder de seu Espírito a Davi, e uma aliança, de acordo com a qual, quando
o rapaz comandou os soldados de Saul em Davi se tornasse rei, Jônatas seria o segun­
vitórias sucessivas. Podemos acompanhar do no poder (20:16,1 7, 42; 23:16-18), e Davi
alguns dos principais estágios da oposição se comprometeu a proteger da morte a fa­
cada vez mais intensa de Saul a Davi. mília de Jônatas.
Saul não se agradou nem um pouco da
1. S a u L DESEJA A MORTE DE DAVI amizade de seu filho com Davi. Em primeiro
(1 S m 18:1-12) lugar, Jônatas era o melhor comandante de
Houve um tempo em que Saul "amou mui­ Saul e servia para manter uma boa imagem
to" Davi (16:21), mas a atitude do rei trans­ do rei. Saul também temia que Jônatas re­
formou-se em inveja e, depois, em ódio. No velasse segredos da corte a Davi, e o despra­
entanto, o Senhor estava com Davi (18:12, zer do rei só aumentou quando descobriu
14, 28), e Saul não poderia lhe fazer mal. Ao que Davi já havia sido ungido para sucedê-
longo do período de cerca de dez anos du­ lo. Saul considerava Davi um inimigo, uma
rante o qual Davi foi um fugitivo, o Senhor ameaça ao futuro de seu filho, ainda que
não apenas frustrou repetidamente os planos esse não fosse o modo de Jônatas encarar a
de Saul como também usou a hostilidade situação. Porém, quando um líder alimenta-
do rei para amadurecer Davi e transformá-lo se de orgulho, inveja e medo, suspeita de
num homem de coragem e de fé. Enquanto tudo e de todos.
Saul protegia seu trono, Davi estava sendo Popularidade (vv. 5-7). "Como o crisol
preparado para assumir seu trono. prova a prata, e o forno, o ouro, assim, o
1 SA M U EL 1 8 - 1 9 251

homem é provado pelos louvores que descreve-a corretamente como "podridão


recebe" (Pv 27:21). Assim como o crisol e dos ossos". É a dor que sentimos dentro de
a fornalha testam o metal e o preparam para nós quando alguém realiza ou recebe algo
o uso, os elogios testam e preparam as pes­ que pensamos que nos pertence. A inveja é
soas para aquilo que Deus tem planejado o pecado de pessoas bem-sucedidas que
para elas. A forma de reagir ao louvor reve­ não suportam ver outros galgarem novas
la o que há em nosso íntimo e se estamos posições e, mais cedo ou mais tarde, to­
prontos a receber novas responsabilidades. marem seu lugar. Somos, por nossa própria
Se o louvor nos conduz à humildade, Deus natureza, seres orgulhosos que desejam re­
pode nos usar, mas se ele nos enche de vai­ conhecimento e aplauso e, desde a infân­
dade, ainda não estamos prontos para uma cia, somos ensinados a competir. O Dr. Bob
promoção. Cook lembrava-nos com freqüência de que
Davi foi um sucesso absoluto em suas todo mundo ostenta uma placa que diz: "Por
atitudes, conduta e serviço, e os servos de favor, façam com que me sinta importante".
Saul, bem como o povo de Israel, demons­ Boa parte da publicidade moderna desen­
traram seu reconhecimento e seus louvores volve-se a partir da inveja e contrasta astu­
em público. Essa aclamação popular come­ ciosamente "aqueles que têm" com "aqueles
çou depois da vitória extraordinária de Davi que não têm", instigando estes últimos a
sobre Golias, quando o exército de Israel comprar seus novos produtos e a ficar em
perseguiu os filisteus por mais de quinze dia com "aqueles que têm". As pessoas inve­
quilômetros, derrotou-os e tomou seus des­ josas estouram o limite do cartão de crédito
pojos (1 Sm 17:52ss). Quando Saul e seus para comprar coisas de que não precisam
homens voltaram para o acampamento, as com o simples objetivo de impressionar ou­
mulheres foram ao encontro dos soldados tros que nem sequer se importam!
vitoriosos e louvaram tanto Saul quanto Da­ Mas a inveja conduz facilmente à ira, e
vi. Como era costume da cultura hebraica, esta, por sua vez, é muitas vezes o primeiro
seu louvor foi exagerado, mas, em certo sen­ passo para o homicídio (Mt 5:21-26). Isso
tido, também verdadeiro. A vitória de Davi explica por que Saul atirou sua lança em Davi
sobre Golias permitiu que o exército todo quando o rapaz estava tentando acalmar o
de Israel conquistasse os filisteus, de modo rei e ajudá-lo a superar sua depressão. O
que os feitos heróicos de cada soldado fo­ Senhor permitiu que Davi escapasse, e
ram, na verdade, um triunfo para Davi. quando Davi voltou à presença do rei, Saul
Inveja e ira (w . 8-11). "Quando um co­ tentou matá-lo outra vez. É provável que es­
ração orgulhoso encontra-se com lábios ba­ ses dois acontecimentos tenham ocorrido
juladores, tem-se uma conjuntura perigosa", depois da vitória sobre Golias, mas antes de
disse John Flavel, escritor e ministro presbite­ Davi ser nomeado oficial do exército, e, no
riano do século dezessete. Ao que parece, entanto, Davi permaneceu fiel a seu rei.
o cântico das mulheres não afetou Davi, mas Medo (v. 12). O Senhor protegeu seu ser­
enfureceu Saul. O rei já havia perdido seu vo Davi da mão homicida de Saul, fato que
reino (15:28), mas ainda assim perguntou: só fez crescer o medo de Saul (vv. 15, 29).
"que lhe falta, senão o reino?" A reação de Sem dúvida, o rei sabia que estava lutando
Saul ao sucesso de Davi foi exatamente o uma batalha perdida, pois o Senhor estava
oposto da atitude de João Batista quando do lado de Davi e havia retirado seu Espírito
lhe falaram sobre o grande sucesso de Je­ de Saul. Porém, Saul manteve uma fachada
sus: "Convém que ele cresça e que eu dimi­ de valentia na tentativa de impressionar seus
nua" (Jo 3:30). oficiais com sua autoridade. Mesmo que Saul
A inveja é um inimigo traiçoeiro e pe­ tenha errado o alvo, as pessoas a seu redor
rigoso, um câncer que corrói lentamente entenderam a mensagem inequívoca que o
nossa vida interior e que nos leva a dizer rei estava transmitindo: "Saul é o rei e seu
e a fazer coisas terríveis. Provérbios 14:30 desejo é que Davi seja morto".
252 1 SA M U EL 1 8 - 1 9

2. SAUL PLANEJA A MORTE DE DAVI recusou a oferta, dizendo que sua família
(1 S m 18:13-30) não era digna de aparentar-se com o rei, de
"Crer é viver sem tramar", porém Saul era modo que Saul entregou Merabe a outro
melhor em criar tramas do que em confiar pretendente.2
no Senhor. Se Saul desobedecia a Deus, ti­ Assim, para sua felicidade, Saul desco­
nha sempre uma desculpa preparada a fim briu que Mical, sua filha mais nova, estava
de livrá-lo de qualquer dificuldade, e se as apaixonada por Davi! Saul conversou com
pessoas questionavam sua liderança, pensa­ Davi sobre o assunto e disse que lhe daria
va em formas de eliminá-las. Tomado de ira outra chance de reivindicar sua recompen­
e de inveja e determinado a não abrir mão sa. Mais uma vez, Davi recusou a oferta, mas
da coroa, Saul decidiu que o jovem Davi Saul insistiu. Dessa vez, pediu a alguns ser­
deveria ser morto. vos que mentissem a Davi, dizendo-lhe que
Saul envia D avi para a batalha (vv. 13­ Saul gostava dele e queria que se casasse
16). Uma vez que Davi era um soldado ex­ com Mical, e que a corte de Saul concorda­
cepcional e um líder nato, o mais lógico a va com a proposta. Porém, Davi esquivou-
fazer era dar-lhe uma missão que o afastaria se dizendo a verdade: era de uma família
do campo, colocando-o numa situação em humilde e não tinha dinheiro algum para
que o inimigo pudesse matá-lo. Saul nomeou pagar o dote de casamento (Gn 34:12; Êx
Davi comandante sobre mil homens e en­ 22:16).
viou-o a lutar contra os filisteus. Se Davi fosse Quando os servos transmitiram a Saul a
morto em combate, a culpa seria do inimi­ resposta de Davi, o rei astucioso viu nessa
go, e se perdesse a batalha, mas sobrevives­ situação uma excelente oportunidade de
se, sua popularidade ficaria abalada. Porém, atacar os inimigos e de livrar-se de Davi ao
o plano do rei não funcionou, pois Davi ven­ mesmo tempo. Saul instruiu seus servos a
ceu todas as batalhas! Afinal, o Senhor esta­ comunicarem a Davi que, como dote pela
va com ele, e o poder de Deus estava sobre noiva, o rei desejava apenas o prepúcio de
ele. Em vez de eliminar Davi ou de enfra­ cem "filisteus incircuncisos". Saul estava cer­
quecer sua popularidade, o plano de Saul to de que, mais cedo ou mais tade, Davi
só contribuiu para transformar o rapaz num seria morto nessa missão. Mais uma vez, o
herói ainda mais admirado pelo povo, o que rei estava usando uma de suas filhas em um
fez crescer o medo que Saul tinha de Davi. plano para destruir um homem inocente e,
Saul exige uma façanha im possível (vv. nesse caso, um homem que Mical verdadei­
17-27). Saul havia prometido dar uma de ramente amava.
suas filhas em casamento ao homem que Não é relevante determinar se a expres­
matasse Colias (17:25), mas ainda não ha­ são "vencido o prazo" (18:26) refere-se a
via cumprido a promessa. O fato de Davi ter um novo prazo ou ao primeiro que Saul ha­
matado Colias não era suficiente, pois Saul via estabelecido para Merabe, pois Davi e
esperava que Davi "[guerreasse] as guerras seus homens3 cumpriram a missão e fize­
do Senhor" a fim de obter sua esposa, a fi­ ram mais do que Saul havia pedido. Davi
lha mais velha de Saul, chamada Merabe. A sobreviveu outra vez às batalhas e trouxe
torpeza de Saul era tal que não se importa­ para o rei duzentos prepúcios. Mais um dos
va de usar a própria filha como instrumento planos de Saul havia fracassado, e o rei teve
para se livrar de Davi. O texto não entra em de entregar Mical a Davi para ser sua esposa.
detalhes, mas, ao que parece, Davi teria de Cresce o medo de Saul (vv. 28-30). Não
lutar um determinado número de batalhas, era a primeira vez que isso acontecia (vv.
a fim de que o casamento pudesse ocorrer. 12,15), mas as emoções distorcidas de Saul
Sem dúvida. Saul tinha esperanças de que o controlavam de tal modo que ele ficou
Davi fosse morto durante uma dessas bata­ obcecado pelo desejo de matar o genro. Em
lhas, de modo que o rei não tivesse de en­ momento algum, Davi considerou Saul seu
tregar sua filha. Porém, Davi humildemente inimigo (ver a dedicatória do SI 18), mas até
1 S A M U EL 1 8 - 1 9 253

o dia em que morreu no campo de batalha que um homem tão magnífico fosse filho de
Saul foi seu inimigo. Davi prosseguiu lutando um pai tão perverso! Se Jônatas fosse egoís­
os combates do Senhor, e o Senhor conti­ ta, teria ajudado a eliminar Davi para ga­
nuou a lhe dar grande sucesso e a engrande­ rantir a coroa para si. Em vez disso, porém,
cer seu nome acima do nome dos melhores sujeitou-se à vontade de Deus e ajudou Davi.
oficiais de Saul. Sem dúvida, Davi ficou aten­ Jônatas apresentou dois argumentos ao
to ao que Deus operava dentro dele e por pai: (1) Davi era um homem inocente que
intermédio dele; por certo, a memória des­ não merecia a morte;4 e (2) Davi havia ser­
ses acontecimentos serviu-lhe de estímulo vido Saul fielmente ao conquistar grandes
durante os dias tão difíceis no exílio. "Se vitórias sobre os inimigos de Israel. Davi era
Deus é por nós, quem será contra nós?" (Rm um homem valioso e útil e jamais havia pe­
8:31). cado contra o rei. Jônatas não mencionou
que Davi também era querido pelo povo,
3. S a u l p r o c u r a o p o r t u n id a d e s para pois tal declaração só teria suscitado a ira e
m atar D avi (1 S m 19:1-17) a inveja do rei. Saul estava numa fase de
A mente e o coração de Saul estavam toma­ sanidade e concordou com seu filho, che­
dos de tal maneira pelo ódio por Davi que o gando até a jurar que não mataria Davi. Saul
rei admitiu abertamente a Jônatas e a seus era um mentiroso e seus juramentos não sig­
cortesãos que planejava matar o genro. Saul nificavam coisa alguma (14:24, 44), mas esse
havia passado do estágio de conspirar nos compromisso permitiu que Davi voltasse
bastidores e estava determinado a destruir para a corte.
Davi da maneira mais rápida possível, orde­ Quando os filisteus atacaram Israel no­
nando que Jônatas e os cortesãos se juntas­ vamente, Davi saiu com seus homens e
sem a ele nessa campanha. A esperança de conquistou uma vitória absoluta. Isso só sus­
Israel encontrava-se no coração e no minis­ citou a inveja e a ira do rei e, mais uma vez,
tério de Davi, e, no entanto, Saul desejava Saul tentou cravar Davi na parede (18:10,
matá-lo! Davi conquistaria os inimigos de 11). Satanás é um mentiroso e um homicida
Israel e consolidaria o reino. Ajuntaria gran­ (Jo 8:44), e, uma vez que Saul estava sob o
de parte das riquezas empregadas na cons­ controle do maligno, quebrou seu juramen­
trução do templo, escreveria salmos para os to e atirou sua lança. Davi sabia que era che­
levitas entoarem em louvor a Deus e até cria­ gada a hora de deixar a presença de Saul e
ria instrumentos musicais para tocarem. A de se esconder, mas, antes disso, voltou para
aliança de Deus com Davi manteria uma luz casa a fim de ver a esposa, Mical. Desde
resplandecente em Jerusalém ao longo dos então, Davi passaria por um exílio de quase
dias sombrios de decadência nacional, e o dez anos, durante os quais Deus o transfor­
cumprimento dessa aliança traria ao mundo maria num líder.
Jesus Cristo, o Messias. Não é de se admirar A dissim ulação de M ical (vv. 11-17).
que Satanás estivesse tão determinado a Saul imaginou que Davi voltaria para casa,
matar Davi! de modo que, naquela noite, enviou homens
A intervenção de Jônatas (w . 1-10). Sem para vigiar a casa de Davi e matá-lo quando
dúvida, Saul sabia que Jônatas daria a notícia saísse na manhã seguinte. Conhecendo o
a seu amigo tão querido, mas talvez fosse raciocínio do pai, Mical insistiu para que Davi
isso o que o rei quisesse. Se não conseguia partisse ainda naquela noite e fugisse para
matar Davi, então quem sabe o amedron­ um lugar seguro. Ela o ajudou a descer por
tasse de tal modo que deixasse a terra e uma janela e usou um ídolo e um pouco de
nunca mais fosse visto. De fato, Jônatas rela­ pêlo de cabra para dar a impressão de que
tou a Davi as palavras do rei e sugeriu que Davi ainda estava na cama. Não se sabe o
seu amigo se escondesse nos campos na que Mical estava fazendo com um ídolo
manhã seguinte, quando Jônatas falaria com pagão (ídolo do lar), especialmente um que
o pai em favor de Davi. É impressionante era do tamanho de um homem. (Raquel
254 1 SA M U EL 1 8 - 1 9

escondeu dois ídolos do lar embaixo de uma Saul onde poderia encontrar Davi. Assim, o
sela - Gn 31:33-35.) É possível que o ídolo rei enviou três grupos diferentes de solda­
fosse apenas um busto, e que Mical tenha dos para prender Davi, mas quando estes
usado os pêlos de cabra5 para a cabeça e chegavam ao lugar onde os profetas esta­
travesseiros para simular o corpo. Mesmo vam reunidos, eram imediatamente tomados
casada com um homem segundo o coração pelo Espírito e começavam a louvar e a ado­
do Senhor, Mical ainda adorava ídolos e, rar a Deus! O termo hebraico traduzido por
assim como o pai, era uma intriguista. "profetizar" pode significar "entoar cânticos
Enquanto Mical ocupava-se com suas e louvar a Deus" e também "prenunciar
intrigas, Davi orava e confiava no Senhor, e acontecimentos". Os soldados de Saul não
o Salmo 59 é resultado dessa experiência. se tornaram profetas, mas apenas proferiram
Ao ler esse salmo, vemos que os espias de palavras inspiradas pelo Espírito de Deus. O
Saul corriam por toda a parte, esperando que Senhor não protegeu Davi e Samuel envian­
Davi saísse de casa, e ouvimos Davi compa­ do um exército, mas sim enviando o Espírito
rá-los a cães rosnando e vagando pelas ruas Santo para transformar guerreiros em ado­
da cidade. Porém, a fé de Davi estava firma­ radores. "Porque as armas da nossa milícia
da no Senhor, uma vez que só ele poderia não são carnais, e sim poderosas em Deus,
ser sua defesa e refúgio. Isso não significa para destruir fortalezas" (2 Co 10:4).
que Davi tenha rejeitado qualquer plano para Três grupos de soldados haviam fracas­
escapar, pois o Senhor usa meios humanos sado, de modo que Saul decidiu ir pessoal­
para alcançar fins divinos, mas significa que mente a Ramá. A presença de Davi em Ramá
a fé de Davi não estava em si mesmo nem não era segredo algum, pois as pessoas à
nos planos de Mical, mas no Senhor dos beira do grande poço sabiam onde ele e
exércitos de Israel. Samuel se encontravam e disseram a Saul.
Pela manhã, quando os homens do rei Talvez a cidade inteira soubesse que algum
exigiram que Mical lhes entregasse o mari­ tipo de "avivamento espiritual" estava ocor­
do, ela lhes disse que Davi estava doente, e, rendo na escola de profetas. Saul apressou-
quando os homens relataram isso a Saul, ele se até o lugar indicado, e, quando chegou
ordenou que lhe trouxessem Davi com cama lá, o Espírito de Deus também veio sobre
e tudo! Porém, quando foram buscá-lo, os ele, levando-o a louvar ao Senhor. Saul re­
homens do rei descobriram a verdade, e moveu as vestes reais que se sobrepunham
Mical foi repreendida pelo pai por sua dissi­ às roupas normais, tornando-se, desse modo,
mulação, ainda que estivesse apenas seguin­ como qualquer outro homem e, em segui­
do seu exemplo! Assim como o pai, mentiu da, deitou-se no chão diante de Samuel. Esse
e disse que Davi havia ameaçado matá-la se seria o último encontro dos dois até a noite
não cooperasse. fatídica em que Samuel voltou do reino dos
mortos para julgar o rei (1 Sm 28:7ss).
4. O p r ó p r io S a u l sai para matar Saul teve uma experiência parecida de­
D avi (1 Sm 19:18-24) pois que Samuel o havia ungido como rei
Davi buscou refúgio com Samuel em Ramá, (10:9-13), e dessa ocasião veio o ditado:
pois sabia que ele era um amigo piedoso e "Está também Saul entre os profetas?". De­
confiável. Samuel levou-o para a casa dos pois da experiência de Saul em Ramá, o
profetas, onde poderiam adorar e buscar ao provérbio voltou à moda. Esses dois acon­
Senhor. O termo naioth significa "habita­ tecimentos provam que uma pessoa pode
ções", provavelmente uma referência à par­ ter uma experiência religiosa extraordiná­
te de Ramá onde a "escola de profetas" se ria e, ainda assim, não passar por uma trans­
reunia. Lá, Samuel e Davi adorariam e ora­ formação de caráter. No caso de Saul, as
riam pedindo sabedoria a Deus, e os profe­ duas experiências foram, de fato, enviadas
tas orariam com eles. Porém, os espias de pelo Senhor, mas Saul não se beneficiou
Saul estavam por toda a parte e disseram a delas. Manifestações religiosas especiais não
1 SA M U EL 1 8 - 1 9 255

indicam, inequivocamente, que uma pes­ lugar próximo a Gibeá. Davi e Jônatas fa­
soa seja sequer salva (Mt 7:21-23). Judas riam uma última tentativa de conciliação
pregou sermões e até realizou milagres (Mt com Saul, o que acabaria quase custando a
10:1-8) e, no entanto, jamais creu em Jesus vida de Jônatas. Saul era um "homem de
(Jo 6:67-71; 13:10, 11; 17:12) e traiu o Se­ ânimo dobre, inconstante em todos os seus
nhor, cometendo suicídio em seguida. Assim caminhos" (Tg 1:8). Dali em diante, tentaria
como Judas, Saul teve diversas oportunida­ governar a terra e derrotar os filisteus e, ao
des de ver a mão do Senhor operando e, mesmo tempo, perseguir Davi e fazer o pos­
no entanto, em momento algum passou por sível para matá-lo. Quanto mais Davi se es­
uma transformação de vida pela graça do gueirava para longe dele, mais fanático Saul
Senhor. se tornava. Por fim, deu cabo da própria vida
Enquanto Saul estava entretido com a no campo de batalha onde lutava sem a aju­
escola de profetas, Davi escapou de Ramá da do único homem que poderia ter lhe
e foi encontrar-se com Jônatas em algum dado a vitória.

1. Encontrar qualquer outra coisa nessa amizade além de uma afeição madura entre dois homens tementes a Deus é distorcer

as Escrituras. Se tivesse havido algo de pecaminoso em seu relacionamento, sem dúvida o Senhor jamais teria abençoado e

protegido Davi, o qual não poderia, de modo algum, ter escrito o Salmo 18:19-27 dez anos depois.

2. Merabe e o marido tiveram cinco filhos, todos eles sacrificados pelos gibeonitas com o intento de dar cabo de uma grande

escassez de alimentos na terra (2 Sm 21:1-9).


3. A expressão "homens de Davi" é encontrada com freqüência ao longo da narrativa de Samuel (1 Sm 18:27; 23:3-5; 24:3;

25:12,13). Ao que parece, alguns de seus soldados permaneceram com ele e se tornaram seus "soldados de elite" durante o

tempo do exílio. Consideravam, com razão, uma grande honra serem conhecidos como "homens de Davi".

4. O derramamento de sangue inocente era um crime gravíssimo em Israel. As seis cidades de refúgio haviam sido separadas

para que inocentes envolvidos em homicídios culposos não fossem tratados como assassinos (Dt 19:1-10), e o ritual da

novilha vermelha expiava, pelo sangue inocente derramado, homicídios dos quais não se tinha conhecimento (Dt 21:1-9).

Deus abomina o derramamento de sangue inocente (Pv 6:16,17), e os profetas clamaram contra esse pecado (Is 59:7; Jr 7:6;

22:17; 26:15). Essa foi um das transgressões que causou a queda de Jerusalém e do reino de judá (2 Rs 21:16).

5. O pêlo de cabra lembra-nos a história de como Jacó enganou o pai em Gênesis 27:15,16. Sem dúvida, Mical conhecia essa

história.
do rei, nem incitado rebelião alguma contra
8 o trono, como também não havia transgre­
dido a lei de Deus, e, no entanto, Saul esta­
va decidido a matá-lo.’ Davi sabia que Saul
D avi no E x ílio era um homem invejoso, decidido a manter
o trono e a passá-lo a seus descendentes,
1 S am uel 20 - 22 mas Davi acreditava que o Senhor poderia
remover Saul de cena em seu tempo e a sua
maneira (26:7-11). Davi amava Jônatas pro­
fundamente e não desejava magoá-lo criti­
cando o pai, mas a situação toda havia se
transformado numa questão de vida ou
á quem tenha criticado Davi, chaman­
H
morte.
do-o de impulsivo por haver deixado A resposta de Jônatas parece um tanto
Ramá e seu amigo Samuel e fugido para ingênua, especialmente ao considerar-se a
Gibeá a fim de falar com Jônatas. Porém, declaração de Saul em 1 Samuel 19:1 e seu
Davi sabia que a experiência extática de Saul com portam ento em Ramá. Saul havia
não duraria muito tempo e que não trans­ atirado sua lança em Davi pelo menos três
formaria o coração do rei. Saul havia prome­ vezes (vv. 10, 11; 19:9, 10) e enviado três
tido a Jônatas que não atentaria contra a grupos de soldados para prendê-lo; por fim,
vida de Davi (19:6), mas já havia quebrado o próprio Saul havia se dirigido a Ramá, a
essa promessa quatro vezes (vv. 20-24), de fim de cuidar pessoalmente do assunto (vv.
modo que a coisa mais sábia que Davi pode­ 20-24). Que mais Jônatas precisava como
ria fazer era afastar-se de Saul e esconder-se. prova de que o pai era um homem pertur­
Permanecer em Gibeá não seria um exercí­ bado e decidido a destruir o rei ungido de
cio de fé para Davi, mas sim uma atitude Deus? Jônatas acreditou equivocadamente
presunçosa com a qual ele estaria tentando que seu relacionamento com o pai era bas­
a Deus. O drama destes três capítulos en­ tante próximo e que Saul lhe confiava seus
volve quatro personagens: Jônatas, Saul, Davi segredos, mas os acontecimentos subse­
e Doegue. qüentes deixaram claro que Jônatas estava
errado, pois Saul tentou matar até o pró­
1. JÔNATAS, UM AMIGO FIEL prio Jônatas!
(1 S m 20:1-23) Davi refutou o argumento de Jônatas afir­
Em toda a literatura, Jônatas e Davi desta­ mando que, para Saul, a coisa mais lógica a
cam-se como exemplos de amigos dedica­ fazer era manter o filho primogênito desin-
dos. A situação de Jônatas era mais difícil, formado. Saul sabia que Davi e Jônatas eram
pois desejava ser leal ao pai e, ao mesmo amigos chegados e que Jônatas ficaria aflito
tempo, ser amigo do próximo rei de Israel. se descobrisse as verdadeiras intenções do
A lealdade divida, especialmente dentro da pai. A questão era tão séria que Davi não
família, é uma das situações mais dolorosas podia sequer acreditar naquilo que Saul di­
que enfrentamos na vida de fé (Mt 10:34­ zia a Jônatas. "Apenas há um passo entre
39), mas Cristo requer dedicação absoluta a mim e a morte" (20:3). Tratava-se de uma
ele e à vontade dele para nossa vida. verdade tanto em termos metafóricos quan­
A conversa (vv. 1-10, 18-23). Davi encon­ to literais, pois em três ocasiões Davi havia
trou-se com Jônatas em algum lugar próximo se esquivado da lança do rei.
a Gibeá e não perdeu tempo em confrontar Jônatas ofereceu-se para ajudar de qual­
o amigo querido com a pergunta mais pre­ quer modo que o amigo sugerisse, e Davi
mente: "E qual é o meu pecado diante de propôs um teste simples para determinar o
teu pai, que procura tirar-me a vida?" Davi que Saul sentia, de fato, por ele. Era costu­
não havia desobedecido a ordem alguma me cada família israelita realizar uma festa
1 S A M U E L 20 - 22 257

na lua nova (Nm 10:10; 28:11-15; SI 81:3), em que é descrito o cuidado compassivo
e Saul contaria com a presença de Davi. Se de Davi para com Mefibosete, o filho aleija­
o genro e principal herói militar de Saul não do de Jônatas.
participasse da festa, seria um insulto para Jônatas reafirmou seu juramento e incluiu
o rei e também para a família real, de modo toda a casa de Davi (20:16), pedindo que
que a ausência de Davi ajudaria a revelar a Davi também repetisse seu juramento. Não
verdadeira atitude de Saul para com o futu­ há menção alguma de que tenha sido ofere­
ro rei. Caso Saul se enfurecesse, a avaliação cido um sacrifício (Cn 15) ou de que tenha
de Davi seria confirmada, mas se Saul acei­ sido assinado algum documento pactuai,
tasse a ausência do genro e não insistisse pois o amor dos dois homens pelo Senhor e
na questão, Jônatas estaria certo. O único um pelo outro era suficiente para selar o
problema desse plano é que Jônatas preci­ acordo. Jônatas havia dado muita alegria e
saria mentir e dizer que Davi havia ido a ânimo a Davi durante aqueles anos difíceis,
Belém, a fim de participar de um banquete mas não era da vontade de Deus que Davi
com a própria família. Davi estaria escondi­ se juntasse em caráter permanente a Saul e
do no campo, esperando Jônatas lhe dizer a sua família, pois pertenciam à tribo errada
se era seguro ou não voltar para casa.2 e representavam uma monarquia condena­
Que maneira segura Jônatas poderia usar da e rejeitada. Davi nunca teve um co-re-
para transmitir essa mensagem a Davi (1 Sm gente, pois Jônatas foi morto em combate
20:10)? Não poderia confiar num dos ser­ (1 Sm 31:1, 2), e Davi rejeitou Mical, a filha
vos para dar o recado, de modo que, apesar de Saul, como esposa, e ela morreu sem fi­
do perigo, ele próprio teria de servir de men­ lhos (2 Sm 6:16-23). Qualquer filho ao qual
sageiro. Jônatas criou um plano simples, no Mical tivesse dado à luz teria causado con­
qual atiraria três flechas no campo onde Davi fusão na linhagem real.
estaria escondido (v. 20). Jônatas chamaria
o rapaz que o estava ajudando e, desse 2. S a u l, um rei o f e n d id o
modo, daria a Davi um sinal e lhe diria o (1 Sm 20:24-42)
que fazer. Mesmo se os espias de Saul esti­ No primeiro dia da festa, Davi escondeu-se
vessem por perto, não entenderiam o que na pedra de Ezel e esperou pelo sinal de
se passava. Jônatas, uma vez que havia a possibilidade
A aliança (vv. 11-17). Do versículo 11 remota de que o rei se mostrasse favorável
até o versículo 23, Davi permanece calado, a recebê-lo de volta em sua corte.
enquanto Jônatas recapitula a aliança que A ausência de D avi (w . 24-29). Sempre
haviam feito um com o outro (18:1-4). Jôna­ com medo de ser atacado por alguém, Saul
tas chegou a fazer um juramento e prome­ sentava-se com as costas voltadas para a pa­
teu transmitir a Davi a mensagem correta rede, tendo Abner no lugar vizinho ao seu e
no terceiro dia do banquete, de modo que Jônatas do outro lado da mesa. O lugar de
ele ficasse sabendo se a disposição do rei Davi ao lado de Jônatas estava vazio, mas o
era amigável ou se estava irado.3 Jônatas rei não fez qualquer comentário, certo de
foi além da crise imediata e tratou de acon­ que Davi encontrava-se cerimonialmente
tecimentos futuro. Sabia que, um dia, Davi impuro e, portanto, impossibilitado de par­
se tornaria rei e orou para que o Senhor ticipar do banquete real naquele dia. A re­
abençoasse seu reinado. Em sua aliança, con­ feição consistia basicamente de carne das
cordaram que jônatas governaria juntamen­ ofertas pacíficas realizadas na lua nova, e
te com Davi, como o segundo no poder qualquer um que estivesse cerimonialmen­
(23:16-18). Em seguida, Jônatas pediu que, te impuro era proibido de participar (Lv 7:20,
se qualquer coisa lhe acontecesse, Davi 21). Talvez Davi tivesse tocado algo imundo
prometesse não exterminar sua família, e ou tido relações com a esposa (15:16-18).
Davi concordou. A expressão "bondade do Se esse era o caso, tudo o que precisava fazer
S e n h o r " (20:14) aparece em 2 Samuel 9, era separar-se dos outros durante aquele
258 1 SA M U EL 20 - 22

dia, lavar-se, trocar de roupa e voltar ao con­ de suas palavras mostra que descrevem seu
vívio social no dia seguinte. filho como o mais desprezível dos seres. De
Porém, quando os homens se reuniram acordo com Saul, a traição de Jônatas ao ter
para a refeição no segundo dia, Davi não amizade com Davi indicava que ele não era
estava presente mais uma vez, indicando a filho de Saul, mas sim de algum outro ho­
Saul que a ausência de seu genro devia-se a mem, pois um filho de Saul jamais trairia o
algo mais sério do que uma simples contami­ pai. Assim, Jônatas estaria difamando a pró­
nação ritual. Era possível remover a conta­ pria mãe e dizendo que ela não passava de
minação ritual em um dia, mas Davi estava uma prostituta qualquer, uma transgressora
ausente já há dois dias. Desconfiado de tudo da lei de Moisés e uma pervertida. Ao aju­
o que fugia à norma entre seus oficiais, Saul dar Davi e não proteger o pai, Jônatas havia
perguntou a Jônatas qual era o motivo da envergonhado a mãe tanto quanto se tives­
ausência de Davi, chamando-o desdenho­ se exposto sua nudez. Ela havia dado à luz
samente de "filho de Jessé" e não pelo seu Jônatas para que fosse sucessor do rei, e seu
nome que, a essa altura, era tão conhecido. filho havia recusado a coroa em favor do
Posteriormente, Saul tentaria humilhar o filho de Jessé. Na verdade, o rei esbravejava:
sumo sacerdote Aimeleque, chamando-o de — Você não é meu filho! Deve ser um
"filho de Aitube" (1 Sm 22:11, 12). bastardo!
Foi então que Jônatas inseriu sua menti­ A grande preocupação de Saul era pre­
ra na conversa e, depois disso, nada mais servar um reino que o Senhor já havia toma­
deu certo. Jônatas não disse que Jessé, o do dele. Deus havia deixado bem claro que
pai de Davi, o havia chamado, mas sim que nenhum dos filhos de Saul jamais herdaria o
um de seus irmãos havia insistido que ele trono e que Davi era seu rei escolhido, de
participasse do banquete de sua família. Tal­ modo que Saul lutava contra a vontade de
vez Jônatas esperasse que o pai iria supor Deus e pedia que Jônatas fizesse o mesmo.
tratar-se de um dos três irmãos de Davi que Saul estava ciente de que o filho sabia onde
serviam no exército do rei (17:13), o que Davi havia se escondido e ordenou que
teria tornado a situação mais fácil de Saul Jônatas encontrasse Davi e que o trouxesse
aceitar. Jônatas também usou um verbo que até ele para ser executado. Quando Jônatas
significa "sair, fazer uma visita rápida", de protestou contra o pai e se recusou a obe­
modo que Saul não suspeitasse que Davi decer à ordem do rei, Saul atirou sua lança
estava pretendendo demorar-se em Belém contra ele! Jônatas saiu da mesa enfurecido
para reunir os próprios soldados e tomar o e passou o resto do dia jejuando.
trono. O alerta de Jônatas (w. 35-42). Jônatas
A fúria de Saul (vv. 30-34). Quando o esperou até o dia seguinte e se dirigiu ao
coração está repleto de ódio, não é preciso campo com um de seus servos, como se
muita coisa para que esse sentimento se fosse praticar com seu arco e flecha. Con­
transforme em palavras (Mt 12:34,35). É pos­ forme havia prometido a Davi, atirou três fle­
sível que Saul estivesse ruminando há algum chas (v. 20), sendo que mandou uma delas
tempo sobre como Davi o havia insultado para bem longe do servo, de modo que
ao não comparecer à festa, e quanto mais Jônatas precisou gritar algo para o rapaz.
pensava, mais sua ira se inflamava. Porém, Suas palavras, porém, eram para Davi: "Cor­
em vez de atacar Davi, o rei Saul atacou o re! Apressa-te! Não te demores!" Quando o
próprio filho! Se o Senhor não tivesse inter­ rapaz voltou com as flechas, Jônatas entre­
vindo em Ramá, Saul teria matado Davi na gou-lhe o arco e mandou-o de volta para a
presença do profeta Samuel (1 Sm 19:22­ cidade e depois correu para encontrar-se
24); nessa ocasião, Saul afrontou o filho en­ com Davi.
quanto comiam uma refeição sagrada! Esse não foi o último encontro dos dois
O discurso de Saul pareceu infamar a pró­ (23:16-18), mas sem dúvida foi uma despe­
pria esposa, mas uma compreensão correta dida comovente. Os dois choraram, porém
1 S A M U E L 20 - 22 259

quem mais se emocionou foi Davi. Não sa­ do Senhor (SI 27:4-6). O fato de Davi ter
bia quantos anos de exílio o esperavam e chegado sozinho assustou Aimeleque, o
talvez jamais voltasse a ver seu amigo queri­ sumo sacerdote, neto de Eli, também conhe­
do. Os povos do Oriente Médio não têm cido como Aias (1 Sm 14:3). Aimeleque sa­
vergonha de chorar, de se abraçar e de se bia da reputação e da posição de Davi e
beijar em encontros e partidas (Cn 31:55; estranhou que não estivesse viajando com
At 20:37). Jônatas deve ter animado Davi uma comitiva real.
ao dizer: "Vai-te em paz". Os dois homens Se "o rei" em 1 Samuel 21:2 é uma refe­
reafirmaram sua aliança, sabendo que o Se­ rência ao Deus Jeová (ver 20:42), não era
nhor havia ouvido suas palavras e sondado mentira de Davi, pois sem dúvida estava
seu coração.4 Davi partiu e viajou quase seis cuidando do trabalho do Senhor, como fa­
quilômetros até a cidade levítica de Nobe, ria pelo resto de sua vida. Porém, se essa
enquanto Jônatas voltou para Cibeá e conti­ declaração é uma mentira intencional, Davi
nuou como oficial do exército de seu pai. não estava confiando, mas sim tramando.
Dez anos depois, Saul, Jônatas e seus Talvez estivesse fazendo isso para proteger
irmãos seriam mortos pelos filisteus no cam­ o sumo sacerdote de quaisquer investiga­
po de batalha (1 Sm 31:1-6). ções futuras de Saul, mas seu plano falhou,
pois Saul matou Aimeleque e todos os sacer­
3. D avi , u m e x il a d o e s p er a n ç o s o dotes, com exceção de Abiatar, por haverem
(1 S m 21:1 - 2 2 :5 ) conspirado com seu inimigo. No entanto, é
A fuga de Davi para Nobe marcou o início possível que Davi tivesse pedido a alguns
de seu exílio, que durou cerca de dez anos de seus homens que se encontrassem com
(21:1 - 29:11). Nem todas as experiências ele na caverna de Adulão (ver 22:2). É isso o
de Davi no deserto encontram-se registradas, que indica a referência de Davi à pureza ri­
mas o texto nos apresenta o suficiente para tual de seus homens.
mostrar que ele foi um homem de fé e cora­ Davi precisava de alimento, de modo
gem. Apesar de ser difícil determinar o con­ que Aimeleque deu-lhe os pães sagrados do
texto de todos os salmos, é bem provável tabernáculo, reservados somente aos sacer­
que os anos em que Davi viveu como fugiti­ dotes (Lv 24:5-9). Se o povo estivesse levan­
vo encontrem-se refletidos nos Salmos 7, 11 do seus dízimos ao tabernáculo conforme a
- 13, 16, 17, 22, 25, 31, 34, 35, 52 - 54, 56 lei ordenava, haveria muito mais comida dis­
- 59, 63, 64, 142, 143. O Salmo 18 é seu ponível, mas aqueles eram tempos de deca­
cântico de louvor quando Deus lhe con­ dência espiritual em Israel. Jesus usou esse
cedeu a vitória sobre os inimigos.5 É maravi­ episódio para ensinar uma lição sobre a ver­
lhoso saber que Davi escreveu tantos salmos dadeira obediência e o discernimento espi­
de ânimo durante esse período de grande ritual (Mt 12:1-8; M c 2:23-28; Lc 6:1-5).6
sofrimento e, nessas palavras, o povo de Aimeleque desejava certificar-se de que os
Deus nos dias de hoje pode encontrar força homens de Davi estavam, de fato, ritual­
e coragem para tempos de provação. Jesus mente puros, e Davi garantiu-lhe que nem
citou os Salmos 22:1 e 31:5 quando estava os homens nem seu equipamento haviam
na cruz. sido contaminados (Lv 15:16-18). Davi tam­
D avi se dirige a Nobe (21:1-9). Nobe bém pediu a espada de Colias, que, por
era uma cidade levítica, cerca de cinco qui­ algum motivo, ficava guardada no taber­
lômetros ao sul de Cibeá, onde ficava o náculo juntamente com a estola sacerdotal
tabernáculo (a arca ainda se encontrava na (Êx 28:4-13). Davi estava pronto a seguir via­
casa de Abinadabe em Quiriate-Jearim; 7:1). gem, levando consigo alimentos para forti­
Em função de sua amizade com Samuel, ficá-lo e uma espada para protegê-lo.
Davi sabia que poderia encontrar refúgio e A presença de Doegue no tabernáculo
ajuda no meio dos sacerdotes; além disso, é um mistério. Ele era um edomita e, portan­
possuía uma profunda devoção ao santuário to, não havia nascido como filho da aliança,
260 1 SA M U EL 20 - 22

mas havia sido "detido perante o S e n h o r " Sem dúvida o Senhor foi misericordioso com
no santuário (1 Sm 21:7). É possível que fos­ Davi e permitiu que ele fugisse de volta para
se um prosélito e que seguisse a fé hebraica a própria terra. Não importa como nos sen­
a fim de não perder o emprego. Como che­ timos ou quão desanimadoras as circunstân­
fe dos pastores de Saul, era fácil que Doegue cias pareçam ser; o lugar mais seguro do
houvesse se contaminado e estivesse levan­ mundo é dentro da vontade de Deus.
do um sacrifício para o Senhor. Davi sabia De Gafe para a caverna de Adulão (22:1,
que Doegue contaria a Saul o que havia vis­ 2). Essa caverna era um lugar bastante conhe­
to em Nobe e que isso traria problemas cido em Judá, cerca de dezesseis quilóme­
(22:9ss). tros de Cate e vinte e quatro quilómetros
De Nobe para Cate (21:10-15). Por al­ de Belém, a cidade natal de Davi. Pelo me­
gum tempo, Davi não foi impelido por sua nos, Davi encontrava-se em território ami­
fé em Deus, mas sim por seu medo de Saul, go, e os valentes de Judá e de Benjamim
de modo que se apressou por mais de trinta juntaram-se a seu bando (1 Cr 12:16-18). Foi
e seis quilômetros até a cidade inimiga de nesse lugar que Davi ansiou por um pouco
Cate, de onde havia vindo Colias, o gigante de água do poço em Belém e três de seus
filisteu (17:4). Não era um lugar seguro, mas valentes passaram pelas linhas inimigas a fim
depois de ver Doegue em Nobe, talvez Davi de buscá-la para seu líder (2 Sm 23:13-17).
tenha decidido que sua presença em qual­ Sabendo que aquela água havia custado
quer parte de Israel colocaria em risco a pró­ muito aos três homens, que arriscaram a vida
pria vida e a de seus amigos, de modo que a fim de buscá-la, Davi derramou-a como
decidiu deixar a terra. Além disso, o último libação ao Senhor. Os grandes líderes não
lugar onde Saul iria procurá-lo seria na Filístia. se esquecem do valor de seus seguidores
A reputação de Davi como grande guer­ nem tratam com descaso os sacrifícios que
reiro o havia precedido,7 e o rei e seus con­ fazem além de seu dever.
selheiros não viram com bons olhos sua A família toda de Davi juntou-se a ele na
presença na cidade. Por isso, Davi fingiu estar caverna, o que significa que seus irmãos
louco, o que permitiu que escapasse incó­ desertaram do exército de Saul e tornaram-
lume com facilidade. Se Davi tivesse espe­ se fugitivos como Davi. Sabiam que Davi era
rado no Senhor e buscado sua vontade, o rei ungido de Deus, de modo que se liga­
talvez não tivesse se metido em encrencas. ram ao futuro de sua nação. Muitos outros
Os Salmos 34 e 56 são resultantes dessa viram em Davi a única esperança de um rei­
estranha experiência. O Salmo 56 foi sua ora­ no bem-sucedido, de modo que também se
ção a Deus pedindo socorro quando a situa­ dirigiram a ele aqueles que se achavam em
ção tornou-se perigosa, e o Salmo 34 foi seu dificuldades por causa de Saul bem como
hino de louvor depois que Deus o livrou, os endividados e os descontentes com a
apesar de mencionar "temores" (SI 34:4, 7) forma de Saul governar Israel (ver 1 Sm
e livramento do mal (1 Sm 21:6, 17, 19). A 14:29). No final, Davi ficou com quatrocen­
ênfase do Salmo 56 é sobre a difamação e tos excelentes guerreiros, número que pos­
os ataques verbais dos líderes filisteus ao ten­ teriormente subiu para seiscentos (23:13;
tarem fazer seu rei tomar uma providência 25:13; 27:2; 30:9). Alguns de seus valentes
com relação a Davi. Não há dúvida de que e seus líderes são relacionados em 2 Samuel
Davi viveu dias de medo enquanto ficou em 23:8-39 e em 1 Crónicas 11:10-41. Saul pos­
Cate, mas manteve a fé lembrando-se das suía um exército de três mil homens escolhi­
promessas de Deus (vv. 10,11) e do chama­ dos (1 Sm 26:2).
do de Deus em sua vida (v. 12). De acordo Os verdadeiros líderes atraem as melho­
com o Salmo 34, Davi orou muito enquanto res pessoas, que vêem neles as qualidades
estava em Cate (vv. 4-6, 17-22), e o Senhor de caráter que mais admiram. As pessoas
o ouviu. Davi aprendeu que o temor do Se­ que cercaram Davi teriam passado desperce­
nhor vence todos os outros medos (vv. 9-16). bidas pela história se não tivessem se unido
1 SA M U E L 20 - 22 261

a ele, assim como os discípulos de Jesus te­ e pode se referir a esconderijos naturais no
riam morrido no anonimato se não tivessem deserto. Davi viveu "no deserto, nos lugares
andado com Cristo. Deus não costuma cha­ seguros" (23:14), enquanto procurava pro­
mar grandes e poderosos para serem seus teger a si mesmo e a seus amigos e sobre­
servos, mas sim aqueles cujo coração está pujar Saul e seus espias. Porém, o profeta
aberto a ele e que se mostram ansiosos para Gade advertiu Davi de que a fortaleza no
obedecer à sua vontade (1 Co 1:26-31). O deserto não era segura e de que deveria
pequeno bando de rejeitados que se juntou voltar para a terra de Judá, de modo que
a Davi representava o futuro de Israel, e a Davi mudou-se para o bosque de Herete,
bênção de Deus estava sobre eles. A histó­ nas proximidades da caverna de Adulão.
ria revela que é o remanescente dedicado, Hereth quer dizer "mata fechada".
por menor que seja, que tem a chave para o O profeta Gade volta a aparecer nas
futuro da obra de Deus neste mundo. narrativas da vida de Davi. Foi ele quem trans­
Os Salmos 57 e 142 são associados ao mitiu a Davi a mensagem do Senhor depois
tempo em que Davi permaneceu na caver­ de Davi ter realizado um censo do povo
na de Adulão e enfatizam a fé de Davi em (2 Sm 24:11-19; 1 Cr 21:9-19) e também
Deus como seu refúgio. Quando Davi ora­ quem ajudou Davi a organizar o ministério
va, a caverna tornava-se um santo taberná­ de música no santuário do Senhor (2 Cr
culo, onde pela fé era capaz de encontrar 29:25). Além disso, Gade escreveu um livro
abrigo sob as asas dos querubins no Santo sobre o reinado de Davi (1 Cr 29:29). Poste­
dos Santos (57:1). O que para outros pare­ riormente, o sacerdote Abiatar escaparia do
cia uma caverna, para Davi era um santuá­ massacre de sacerdotes em Nobe promovi­
rio divino, pois o Senhor era sua porção e do por Saul e se juntaria a Davi, de modo
seu refúgio (142:5). Para Davi, a vida de fu­ que o rei teria à sua disposição o ministério
gitivo era como estar na prisão (v. 7), mas de um profeta e de um sacerdote.
ele confiava que o Senhor o acompanharia
até o fim da provação. Sabia que Deus cum­ 4. Doegue, um servo dissim ulado
priria suas promessas e que lhe daria o trono (1 S m 22 :6-2 3)
e o reino. Descobrimos nesta passagem o motivo de
De Adulão para M oabe (22:3, 4a). Davi o escritor haver mencionado Doegue no
honrou o pai e a mãe e procurou protegê- versículo 7, pois ele aparece como persona­
los, de modo que pediu ao rei de Moabe gem central no drama. Onde quer que haja
que lhes desse abrigo até o final do exílio. um líder intriguista, terá seguidores igualmen­
Os moabitas eram descendentes de Ló, fru­ te dados a intrigas, pois cada um se repro­
to de sua relação incestuosa com sua filha duz segundo sua espécie. Seguidores desse
mais velha (Gn 19:30-38). Nos dias de Moi­ tipo são pessoas dispostas a fazer qualquer
sés, os moabitas não eram um povo muito coisa para conseguir a aprovação de seu lí­
estimado pelos israelitas (Dt 23:3-6), mas der e receber suas recompensas, e Doegue
Rute, bisavó de Davi, era de Moabe (Rt 4:18­ era um homem assim. O momento era per­
22), o que pode ter ajudado Davi a conse­ feito para que usasse suas informações a fim
guir o apoio dos moabitas. de agradar o rei e de elevar-se acima dos
De Adulão para o " lugar seguro" (22:4b). outros funcionários da corte. O fato de estar
Depois que Davi garantiu a segurança de acusando o rei ungido de Deus não o inco­
seus pais, voltou a Adulão e, de lá, deslocou modava, nem o fato de mentir sobre o sumo
seu grupo para um "lugar seguro" ou "for­ sacerdote. Não é de se admirar que Davi
taleza", o qual, para muitos estudiosos, lo­ tenha desprezado Doegue e expressado sua
calizava-se em Massada, próximo ao mar repugnância com as palavras do Salmo 52.
Morto, cerca de cinqüenta e seis quilômetros A ira do re i (w . 6-10). O rei Saul empu­
a sudoeste de Adulão. O termo hebraico me- nhava sua lança (1 Sm 18:10; 19:9; 26:7­
suda significa "fortaleza" ou "lugar seguro" 22), enquanto julgava sob uma árvore numa
262 1 SA M U E L 20 - 22

colina8 próxima a Gibeá, quando recebeu a do rei", e Saul não queria saber dessa desig­
notícia de que seus espias9 haviam desco­ nação; Aitube, por outro lado, quer dizer
berto o esconderijo mais recente de Davi. É "bom irmão". E evidente que o rei estava
bem provável que esse esconderijo fosse a fazendo todo o possível para envergonhar o
fortaleza perto do mar Morto (1 Sm 22:4, sumo sacerdote, quando, na verdade, deve­
5), o que explica o motivo de Deus ter en­ ria estar confessando-lhe seus pecados e
viado uma mensagem a Gade, alertando o buscando o perdão de Deus. De fato, Saul
grupo de Davi para que voltasse a Judá. Saul estava realizando um julgamento ilegal apre­
usou esse acontecimento como ocasião para sentando quatro acusações: Aimeleque deu
repreender severamente seus oficiais, sen­ pão a Davi e forneceu-lhe uma arma, con­
do que todos eram da tribo de Benjamim. sultou a Deus por ele e, portanto, partici­
Sempre desconfiado de traição no meio de pou da "conspiração" para matar Saul, de
seus funcionários, Saul lembrou os homens modo que Davi pudesse subir ao trono. Em
de que ele era o rei e, portanto, o único que momento algum, a paranóia de Saul mostra­
poderia recompensá-los por seu serviço fiel. se mais evidente ou perigosa do que nesse
Davi atraiu homens dispostos a arriscar a vida episódio.
por ele, mas Saul usou de suborno e de Quando Aimeleque ouviu tais acusa­
medo para manter seus soldados unidos. Saul ções, a primeira coisa que fez foi defender
tinha certeza de que seus oficiais conspira­ Davi e, só depois, apresentou um relato da­
vam contra ele, pois haviam se recusado a quilo que ele próprio havia feito. Lembrou o
dizer-lhe que Davi e Jônatas tinham feito uma rei de que Davi havia sido um servo fiel, ar­
aliança com respeito ao reino. Jônatas era o gumento usado anteriormente por Jônatas,
líder da conspiração, que incluía alguns dos filho de Saul (19:4, 5). A nação toda respei­
homens aos quais Saul se dirigia. Os traido­ tava Davi como guerreiro valente e fiel. Po­
res trabalhavam para Davi, pois este lhes pro­ rém, mais do que isso, Davi era genro de
metera recompensá-los. Além disso, Saul Saul, membro da família real, que sempre
estava certo de que Davi planejava matá-lo! havia obedecido às ordens do rei. Era tido
Doegue disse a verdade quando contou em alta estima pelos funcionários do palá­
que havia visto Davi em Nobe e que o sumo cio e havia até mesmo servido como capi­
sacerdote Aimeleque havia lhe dado comida tão da guarda pessoal de Saul (22:14). Se a
e a espada de Golias. Porém, não há evidên­ intenção de Davi fosse matar Saul, sem
cia alguma de que o sumo sacerdote tenha dúvida teria encontrado inúmeras oportuni­
usado o Urim e o Tumim a fim de determi­ dades de fazê-lo antes de fugir. Talvez as
nar a vontade de Deus para Davi (Ex 28:30; palavras do sacerdote tenham lembrado o
Nm 27:21). A espada de Golias era guarda­ rei de que era Saul quem havia tentado ma­
da perto da estola, e é possível que Doegue tar Davi e não o contrário.
tivesse visto o sumo sacerdote segurando a Aimeleque negou que tivesse usado a
estola, mas isso não prova que Aimeleque estola a fim de determinar a vontade de Deus
havia consultado o Senhor para Davi. No para Davi. Antes, declarou com ousadia que,
entanto, essa mentira foi benéfica para a se houvesse feito isso, teria sido a primeira
imagem de Doegue e péssima para a ima­ vez, pois jamais havia usado a estola desse
gem de Davi. modo.10 Esse ato seria o equivalente a aban­
O julgam ento ilegal (vv. 11-15). Nobe donar Saul em troca de Davi! O sacerdote
ficava próxima a Gibeá, de modo que Saul encerrou sua defesa afirmando que ele e sua
mandou convocar imediatamente o sumo família não tinham conhecimento algum de
sacerdote, toda a sua família e os sacerdotes uma conspiração e, portanto, era impossí­
de Nobe. Saul recusou-se a chamar o sumo vel que estivessem participando de algum
sacerdote pelo nome e, da mesma forma que conluio secreto.
Doegue, referiu-se a ele como "filho de A sentença injusta (vv. 16-19). Não há
Aitube". O nome Aimeleque significa "irmão qualquer evidência de que Aimeleque tenha
1 SA M U E L 20 - 22 263

cometido um crime capital, mas Saul anun­ Ainda que esse julgamento injusto e essa
ciou que ele e a família deveriam morrer. sentença ilegal sejam perturbadores, deve­
Mesmo que o sumo sacerdote fosse culpa­ mos ter em mente que faziam parte do pla­
do, o que não era o caso, a lei não permitia no de Deus. O extermínio dos sacerdotes
que se castigasse a família inteira pelo peca­ consistiu no cumprimento parcial da profe­
do do pai (Dt 24:16). Seu crime era saber cia ominosa feita a Eli, o sumo sacerdote
que Davi havia fugido e não relatar o fato a infiel (1 Sm 2:27-36; 4:10-18), pois Deus pro­
Saul. As coisas que Samuel dissera ao povo meteu colocar a casa de Zadoque no lugar
em sua advertência sobre a monarquia e da linhagem de Eli (1 Rs 2:26, 27; 4:2).
outras coisas ainda piores estavam ocorren­ O sacerdote protegido (vv. 20-23). O
do (1 Sm 8:10-18). O governo de Saul usava único sobrevivente do massacre de Nobe
a vigilância constante, sistema no qual cada foi Abiatar, um dos filhos de Aimeleque, que
cidadão policiava o outro e relatava ao rei se tornou sumo sacerdote. Sabia que sua
quando alguém se opunha a sua liderança. única esperança era juntar-se a Davi, de
Israel havia pedido um rei, "como o têm to­ modo que fugiu para Queila, onde Davi en­
das as nações", e foi o que o povo recebeu! contrava-se acampado (23:6). O texto não
Os guardas que estavam com Saul re­ revela quando Davi se mudou de Herete
cusaram-se a matar os sacerdotes. Isso nos para Queila, mas ter consigo um sacerdote
faz lembrar da ocasião em que Saul orde­ com uma estola foi uma ajuda enorme para
nou que o povo matasse Jônatas por haver Davi e seu grupo. Os quatrocentos homens
quebrado o voto e os israelitas se recusa­ tinham o profeta Gade, o sacerdote Abia­
ram a lhe obedecer (14:41-46). Saul sabia tar e o rei Davi e lutavam as batalhas do
que Doegue estava pronto a praticar esse Senhor." Davi tomou sobre si a culpa pelo
ato maligno, de modo que lhe deu permis­ massacre dos sacerdotes, mas também as­
são para executar Aimeleque e sua família, sumiu a responsabilidade de cuidar de
oitenta e cinco sacerdotes do Senhor. Men­ Abiatar e de certificar-se de que fosse man­
tiroso e homicida (Jo 8:44), Doegue foi além tido em segurança.
das ordens de Saul, dirigindo-se até Nobe, Davi se tornara oficialmente fora-da-lei,
onde exterminou toda a população bem mas o Senhor estava com ele e, um dia, se­
como os animais domésticos. ria o maior rei de Israel.

1. Em seus salmos, Davi menciona com freqüência que sua vida estava constantemente em perigo, pois havia sempre alguém

querendo matá-lo: Salmos 34:4; 38:12; 40:14; 54:3; 63:9; 70:2. O Salm o!8 resume os dez anos de exílio de Davi e como o

Senhor o sustentou e ajudou.

2. Ao que parece, Davi possuía um esconderijo especial conhecido somente por ele e por jônatas, um lugar próximo à pedra de

Ezel, onde Davi se escondeu quando todos os seus problemas com Saul tiveram início {1 Sm 19:2; 20:19). O termo hebraico
ezel quer dizer "a partida", algo significativo quando vemos que foi nesse local que Davi e Jônatas se separaram e de onde
Davi partiu, deixando de servir a Saul.

3. A promessa de Jônatas de que dirá a verdade a Davi dá quase a impressão de ele estar minimizando o ódio do pai por Davi

{w . 12, 13). Talvez fosse natural um filho mostrar-se mais esperançoso sobre o temperamento do pai do que a vítima dos
abusos desse mesmo homem, mas Jônatas não tardou a descobrir que, se tivesse a oportunidade, Saul também o mataria.

4. As palavras de Jônatas: "O S enh o r seja entre mim e ti" não devem ser equiparadas ao acordo entre Labão e Jacó na chamada

"bênção de Mispa" (Cn 31:43-53), que na verdade não é uma bênção. Davi e Jônatas confiavam no Senhor e um no outro;

sabiam que Deus cuidaria deles e que cumpriria seus propósitos. Labão e Jacó não confiavam um no outro e lembraram um
ao outro de que o Senhor os estaria observando para certificar-se de que nenhum dos dois ultrapassaria o limite demarcado
a fim de atacar o outro.

5. Não existe consenso entre os estudiosos da Bíblia quanto à autenticidade de todos os sobrescritos históricos anexos aos
salmos, mas os salmos que não possuem sobrescrito algum representam um mistério ainda maior. Nesta obra, parto do

pressuposto de que os sobrescritos são autênticos.


264 1 SA M U EL 20 - 22

6. O fato de Jesus mencionar Abiatar e não Aimeleque pode decorrer do fato de Abiatar ser o único sacerdote sobrevivente ao

massacre ordenado por Saul.


7. Os filisteus chamavam Davi de "rei", pois sabiam como era benquisto pelo povo de Israel. Era o "rei" do campo de batalha.

8. A palavra "Ramá", que aparece em algumas versões no versículo 6, significa "altura" e, portanto, também é traduzida por

"numa colina". É evidente que Saul e seus oficiais não poderiam estar em Ramá e Gibeá ao mesmo tempo, apesar de as duas

cidades ficarem a menos de oito quilômetros uma da outra.

9. Saul alistou todas as pessoas que pôde para ajudá-lo a encontrar Davi e usou de suborno e de intimidação para obter os

resultados desejados (1 Sm 23:7, 19, 25, 27; 24:1; 26:1).


10. Algumas traduções do versículo 15 indicam que essa não era a primeira vez que o sumo sacerdote consultava o Senhor para

Davi. Porém, não há indicação alguma de que Davi tenha ido alguma vez a Nobe pedir que o sumo sacerdote determinasse

para ele a vontade de Deus, inclusive na ocasião descrita por Doegue. Davi era simplesmente um funcionário público a

serviço de Saul e não tinha direito algum de pedir ao sumo sacerdote que consultasse o Senhor para ele. Mais tarde, quando

Abiatar fugiu e se juntou ao grupo de Davi, usou a estola para determinar a vontade do Senhor.

11. Infelizmente, Abiatar tomou o partido de Adonias quando este tentou usurpar o trono, e Salomão o substituiu por Azarias, da

família sacerdotal de Zadoque. Esse foi o último passo para eliminar a família de Eli do sacerdócio levítico.
Tanto os espias de Saul quanto os de Davi
9 não paravam de trabalhar, e os espias de Davi
relataram que os filisteus estavam atacando
Queila. Davi não tomou nenhuma providên­
D a v i, o L iber t a d o r cia antes de descobrir qual era a vontade de
Deus, prática que todo líder precisa imitar,
1 Sam uel 23 - 24 pois é fácil nossos interesses pessoais se
colocarem no caminho daquilo que o Se­
nhor deseja fazer. De que maneira Davi des­
cobriu a vontade de Deus, uma vez que o
sacerdote Abiatar ainda não se encontrava
no acampamento (23:6)? O profeta Gade
o segundo capítulo de seu livro Up from
N
estava com Davi (22:5), e é bem provável
Slavery, BookerT. Washington escreveu: que tenha orado ao Senhor pedindo orien­
"Aprendi que o sucesso não deve ser medi­ tação. Depois que Abiatar chegou com a
do pela posição que alguém conseguiu al­ estola, sempre que era necessário tomar
cançar na vida, mas sim pelos obstáculos que decisões importantes, Davi costumava pe­
conseguiu superar enquanto tentava progre­ dir que ele consultasse o Senhor (v. 9; 25:32;
dir". De acordo com essa medida tão ade­ 26:11, 23).'
quada, Davi foi um homem extremamente Assim que Davi recebeu do Senhor o
bem-sucedido. Durante dez anos, foi consi­ sinal para avançar, mobilizou seus homens,
derado um fora-da-lei e, no entanto, lutou as sendo que estes não se mostraram muito
batalhas do Senhor e livrou Israel de seus ini­ empolgados com o plano. Era aceitável luta­
migos. Viveu com seus homens fiéis em luga­ rem contra os filisteus, inimigos de longa data
res ermos da terra e, em várias ocasiões, teve do povo de Israel, mas não queriam lutar
de fugir para salvar a própria vida. No entan­ contra seus irmãos israelitas. E se Saul se
to, sabia que, no final, o Senhor o livraria e voltasse contra Davi e seus homens? Nesse
lhe daria o trono prometido. A coroação de caso, o bando de seiscentos homens ficaria
Davi não foi importante apenas para o povo encurralado entre dois exércitos! Não dese­
de Israel, mas também para todo o povo de jando impor as próprias idéias sobre os ho­
Deus de todas as eras. Isso porque, da linha­ mens, Davi consultou o Senhor novamente
gem de Davi, um dia viria o Redentor, Jesus e, mais uma vez, recebeu a instrução de res­
de Nazaré, Filho de Davi e Filho de Deus. gatar o povo de Queila. Não se tratou de
incredulidade da parte de Davi, pois deposi­
1. D avi liv r a a cidade de Q u e ila dos tava sua fé no Senhor. Antes, foi o medo no
filisteus (1 S m 23:1-6) coração de seus homens que fez com que
Queila era uma cidade fronteiriça em Judá, estivessem despreparados para a batalha.
a pouco menos de vinte quilômetros da ci­ Deus cumpriu sua promessa e ainda fez
dade filistéia de Gate e a cerca de dezesseis mais, pois não apenas ajudou Davi a exter­
quilômetros a oeste do bosque de Herete, minar os invasores filisteus, como também
onde Davi e seus homens estavam acampa­ permitiu que tirasse deles grande quantida­
dos (22:5). Situada tão próxima ao território de de despojos. Davi mudou-se para Queila
inimigo, Queila era bastante vulnerável, es­ - uma cidade fortificada -, e foi para lá que
pecialmente durante a época da colheita, Abiatar se dirigiu quando fugiu de Nobe,
quando o exército filisteu estava à procura carregando consigo a preciosa estola sacer­
de alimento. Se o rei Saul tivesse se preo­ dotal (22:20-23; 23:6). Porém, os espias de
cupado em defender seu povo em vez de Saul não descansavam e descobriram que
entregar-se à sua obsessão de encontrar e Davi encontrava-se em Queila, uma cidade
de matar Davi, teria enviado um destacamen­ com muralhas e portas. Saul disse a seus
to para proteger Queila. soldados que iriam a Queila para salvar a
266 1 SA M U EL 23 - 24

cidade, mas sua verdadeira intenção era cap­ os dias, deixando de lado os assuntos im­
turar Davi, certo de que, dessa vez, ele não portantes do reino. Porém, o Senhor estava
poderia escapar. Saul não apenas se mos­ com Davi e providenciou que, em momen­
trou disposto a massacrar os sacerdotes de to algum, Saul fosse bem-sucedido em sua
Nobe como também teria destruído o pró­ busca. Zife era uma cidade pequena, cerca
prio povo da cidade de Queila só para con­ de vinte e quatro quilómetros a sudeste de
seguir chegar até Davi. Quem é controlado Queila, no "deserto de Zife", que fazia par­
pela maldade e pelo ódio perde com rapi­ te do deserto de Judá. Era uma região po­
dez a capacidade de avaliar corretamente bre, próxima ao mar Morto, um lugar onde
as situações e não tarda a abusar de sua a fé e a coragem de Davi foram grandemente
autoridade. testadas. Quando os visitantes da Terra San­
ta vêem essa região desértica hoje em dia,
2. D avi liv ra seu s h o m e n s e a si muitas vezes se admiram de que Davi tenha
m e s m o de S a u l (1 Sm 23 :7-2 9) conseguido sobreviver ali.
Quando estava a serviço de Saul, Davi se Jônatas, o amigo querido de Davi, arris­
esquivara das lanças do rei, frustrara uma cou a vida para visitá-lo no deserto "e lhe
tentativa de seqüestro e escapara da violên­ fortaleceu a confiança em Deus" (v. 16). Esse
cia de três companhias de soldados e do é o último encontro dos dois registrado nas
próprio Saul. Uma vez que era um fugitivo Escrituras. Jônatas só é mencionado nova­
com a cabeça a prêmio e com mais de seis­ mente em 1 Samuel 31:2, onde o texto rela­
centas pessoas sob seus cuidados, Davi pre­ ta que morreu no campo de batalha. Jônatas
cisava ter muito cuidado com o que fazia e não fazia idéia de que seria morto antes de
para onde ia. Talvez houvesse outro Doegue Davi tornar-se rei, pois conversou com Davi
escondido nas sombras. sobre a futura co-regência e renovou com
De Q ueila para o deserto de Z iíe (w . 7­ ele a aliança que haviam feito (18:8; 20:31).
18). Os espias de Davi não tardaram a Garantiu a Davi que Deus certamente o faria
informá-lo de que Saul plenejava ir a Queila, rei e que ele seria sempre liberto das intrigas
de modo que, com a ajuda de Abiatar, Davi de Saul para capturá-lo. Jônatas admitiu que
buscou a orientação do Senhor. Sua grande seu pai estava a par de todos esses planos.
preocupação era se o povo de Queila o en­ De Z ife para o deserto de Maom (vv.
tregaria e denunciaria seus homens a Saul. 19-28). Os zifeus não estavam interessados
Uma vez que Davi havia salvado a cidade em seguir o plano de Deus; sua maior preo­
dos filisteus, esperava que seus habitantes cupação era proteger-se da fúria do rei Saul.
demonstrassem gratidão protegendo-o, mas Sabiam onde Davi se escondia, de modo
não foi o que aconteceu.2 O Senhor avisou que transmitiram essa informação importan­
Davi de que deveria sair da cidade, pois o te a Saul, cuidando para dirigir-se a ele como
povo estava preparado para entregá-lo a "rei". Essa foi a maneira de os zifeus mostra­
Saul. Sem dúvida, os habitantes de Queila rem a Saul que eram leais a ele, não a Davi.
temiam que, se não cooperassem com Saul, Saul continuava manipulando os israelitas e
ele os exterminaria como havia feito com a fazendo-os sentir pena dele (v. 21; 22:8),
população de Nobe. Davi se lembrava de usando uma combinação de autopiedade
sua dor profunda pela tragédia de Nobe e crescente e de poder implacável, que pare­
não queria que outra cidade fosse destruída cia funcionar. O caráter de Saul se degene­
por sua causa. Conduziu seus homens para rava rapidamente, mas, enquanto isso, o
fora da cidade e "se foram sem rumo certo" Senhor moldava Davi como homem valente
(v. 13), até que se assentaram no deserto de de Deus.
Zife (v. 14). Saul era um guerreiro apto o suficiente
Quando Saul recebeu a notícia de que para saber que não poderia encontrar Davi
Davi havia saído de Queila, suspendeu o ata­ no deserto de Judá sem alguma orientação
que, mas continuou a perseguir Davi todos específica, de modo que pediu aos zifeus
1 SA M U EL 23 - 24 267

que lhe fornecessem informações mais preci­ jamais serão capazes de desenvolver outros
sas. Queria saber quais eram os esconderijos líderes nem de realizar a vontade de Deus
nas rochas e cavernas que Davi costumava para a glória do Senhor. Davi desenvolveu
usar e os caminhos escondidos que usava. oficiais que foram "homens valentes" (1 Cr
Uma vez que tivesse o mapa, poderia realizar 21; 2 Sm 24), mas Saul atraiu oficiais que
uma busca na região e encontrar, sem de­ não passavam de "débeis morais". "Assim,
mora, seu inimigo. Mas Davi também tinha pois, pelos seus frutos os conhecereis" (Mt
espias a seu serviço e sabia o que Saul esta­ 7:20).
va fazendo; além disso, o Senhor cuidava
do futuro rei. Davi saiu da região de Zife e 3. D avi liv r a S a u l da morte
dirigiu-se cerca de cinco quilômetros para o (1 S m 24 :1-2 2)
sul, entrando no deserto de Maom. No Salmo 54, Davi orou pedindo que o
Determinado a capturar a Davi, Saul o Senhor o vindicasse e que lhe desse a opor­
seguiu até o deserto de Maom, e os dois tunidade de provar a Saul que não era um
exércitos se encontraram na "penha", uma fora-da-lei tentando matá-lo para usurpar seu
montanha conhecida na região. Saul dividiu trono. Afinal, Saul não era apenas o rei de
seu exército e mandou que metade circun­ Davi como também seu comandante e so­
dasse um lado da montanha, enquanto o gro, e, apesar das atitudes perversas de Saul,
restante circundava o outro lado, numa movi­ Davi jamais o considerou seu inimigo.3 Deus
mentação de torquês que teria, sem dúvida, respondeu à oração de Davi quando Saul e
derrotado Davi e seus seiscentos soldados. seus soldados o encontraram em En-Cedi.
Porém, o Senhor estava no controle e levou A tentação de D avi (w . 1-4). Davi e seus
os filisteus a atacarem parte de Judá, fazen­ homens esconderam-se numa caverna am­
do com que Saul e seus homens tivessem pla — havia muitas desse tipo na região de
de abandonar sua investida contra Davi. O En-Gedi -, e Saul escolheu justamente aquela
futuro rei e seus homens foram salvos no como lugar para "aliviar o ventre". Em se tra­
último instante, mas Deus cumpriu suas pro­ tando de questões de higiene, a lei de Moi­
messas. A fim de comemorar esse salvamen­ sés era bastante rígida, especialmente com
to extraordinário, os israelitas chamaram relação ao acampamento militar (Dt 23:12­
aquele local de Se/a Hamm ahlekoth, que 14). Todo soldado deveria fazer suas neces­
significa "a pedra da partida". A expressão sidades fora do acampamento e, junto com
hebraica tem o sentido de "uma pedra lisa" as armas, levar consigo uma pazinha para
e, portanto, "uma pedra escorregadia", em cavar um buraco e enterrar seus excremen­
outras palavras, "a Pedra de Escape". Davi tos. Isso significava que Saul estava afastado
deslocou-se rapidamente de Maom para o do acampamento e, portanto, bastante vul­
deserto de En-Cedi, próximo ao mar Morto, nerável. Sem dúvida, desejava ter privacida­
um lugar seguro e com suprimento abun­ de e sentiu que não estava correndo perigo.
dante de água. O fato de entrar exatamente no esconderijo
Foi nessa ocasião que Davi escreveu o de Davi não apenas comprovou que os es­
Salmo 54, um pedido de salvação e de vin- pias de Saul eram incompetentes, como tam­
dicação do Senhor. Davi sabia que os bajula­ bém que o Senhor ainda estava no controle
dores do círculo de oficiais de Saul, pessoas da situação.
como Doegue, contavam mentiras a seu Enquanto Davi e seus homens se aper­
respeito e davam a impressão de que Davi tavam contra as paredes no fundo da caver­
desejava matar o rei. Esses aduladores espe­ na, sussurravam uns para os outros qual era
ravam ser recompensados por Saul, mas aca­ o significado daquele acontecimento extra­
baram derrotados, pois foram leais ao rei ordinário. Os homens asseveraram que a
errado. Os líderes que gostam de bajulação presença de Saul na caverna era o cumpri­
e de elogios, incentivando e recompensan­ mento de uma promessa de Deus segundo
do quem procura apenas satisfazer seu ego, a qual ele entregaria Saul nas mãos de Davi.4
268 1 SA M U EL 23 - 24

Mas quando foi que Deus disse isso? Esta­ estava na mesma categoria que blasfemar
vam se referindo às palavras de Samuel a contra o nome do Senhor (22:28).
Saul em 1 Samuel 15:26-29 ou à mensagem No entanto, a consciência de Davi o
de Deus a Samuel em 1 Samuel 16:1? Tal­ perturbou, pois ele cortara um pedaço da
vez essa idéia tivesse vindo das palavras de orla do manto de Saul. Esse gesto transmitiu
Jônatas em 1 Samuel 20:15, que alguns dos três mensagens. Primeiro, foi um ato inso­
homens podem ter ouvido pessoalmente. É lente de desrespeito, que humilhou Saul, mas
bem provável que os líderes dos seiscentos também foi um gesto simbólico não muito
homens tenham discutido essas questões diferente do que Saul fez com o manto de
entre si, pois seu futuro estava diretamente Samuel depois do fiasco no episódio com
ligado ao de Davi, e, sem dúvida, chegaram os amalequitas (1 Sm 15:27, 28). Ao cortar
a algumas conclusões equivocadas. Em parte do manto real, Davi estava declarando
momento algum Davi planejou matar Saul, que o reino havia sido transferido para ele.
pois estava certo de que o Senhor o tiraria Por fim, aquele pedaço de pano era prova
de cena a seu modo e a seu tempo (1 Sm de que Davi não tinha intenção de matar o
26:9-11). rei e de que os bajuladores da corte não
Para os homens de Davi, pareceu provi­ passavam de mentirosos. Os homens de Davi
dencial que Saul se encontrasse a sua mercê teriam matado Saul num piscar de olhos, mas
(1 Sm 24:4; Êx 21:13), e tanto Davi quanto seu comandante sábio os deteve. Os líderes
Saul concordaram com eles (1 Sm 24:10, devem saber como interpretar os aconteci­
18). Mas essa não era a questão. A pergun­ mentos e reagir da maneira correta.
ta fundamental era: "de que maneira o Se­ A vindicação de D avi (vv. 8-15). Quando
nhor deseja que usemos essa ocasião?" Os Saul estava a uma distância segura, Davi saiu
homens de Davi consideraram a situação da caverna e o chamou. Ao usar o título "Ó
uma oportunidade de vingança, enquanto rei, meu senhor" e prostrar-se com o rosto
Davi considerou a mesma situação uma em terra, Davi enfatizou aquilo que havia
oportunidade de demonstrar misericórdia e dito a seus homens e mostrou a Saul que
de provar que não havia dolo em seu cora­ não era um rebelde. Mesmo que não seja­
ção. Deus lhe dava a chance de responder mos capazes de respeitar uma pessoa que
à própria oração em que pedia vindicação ocupa determinado cargo, devemos mostrar
(SI 54:1). Davi esgueirou-se até o manto que respeito pelo cargo em si (Rm 13:1-7; 1 Pe
Saul havia posto de lado, cortou uma beira­ 2:13-1 7). Davi demonstrou respeito chaman­
da dessa vestimenta e voltou ao fundo da do Saul de "meu senhor" (1 Sm 24:6, 8, 10),
caverna. Saul saiu de lá sem perceber o que "o ungido do S e n h o r " (vv. 6, 10), "o rei" (vv.
havia acontecido. 8, 14) e "meu pai" (v. 11). A aparição públi­
A convicção de D avi (vv. 5-7). Davi co­ ca ousada de Davi também mostrou a Saul
nhecia bem demais a verdade da Palavra de e a seu exército que seu sistema de espio­
Deus para interpretar esse acontecimento nagem era de uma ineficiência absurda.
como um sinal de que devia matar Saul, pois Usando o pedaço do manto de Saul
a lei diz: "Não matarás" (Êx 20:13). Matar o como prova, Davi iniciou sua defesa desmas­
inimigo no campo de batalha ou um atacante carando a dissimulação dos cortesãos que
em defesa própria era uma coisa, mas assas­ difamavam Davi para Saul. A lógica era
sinar um rei que nem sequer desconfiava irrefutável: Davi tivera a oportunidade de
do que estava acontecendo era outra bem matar Saul e se recusara a fazê-lo. Davi che­
diferente. Davi lembrou seus homens de que gou a admitir que alguns de seus homens
Saul era o ungido do Senhor e de que ne­ haviam insistido para que matasse o rei, mas
nhuma pessoa de Israel tinha o direito de ele os repreendeu. Davi não era culpado de
atacá-lo. Os israelitas não deveriam sequer qualquer mal contra Saul nem de qualquer
amaldiçoar seus governantes, quanto mais transgressão contra o Senhor, enquanto Saul
matá-los, pois amaldiçoar um governante era culpado de tentar matar Davi. "Julgue o
1 SA M U EL 23 - 24 269

S enh or entre mim e ti", disse Davi, "e vin­ pagamos o mal com o bem; o humano, de
gue-me o S e n h o r a teu respeito [prove que acordo com o qual pagamos o bem com o
os teus oficiais são mentirosos]; porém a bem e o mal com o mal; e o demoníaco,
minha mão não será contra ti". Saul havia de acordo com o qual pagamos o bem com
esperado que Davi morresse nas mãos dos o mal. Saul admitiu que Davi era um ho­
filisteus (18:17) ou dos próprios soldados mem piedoso que, ao poupá-lo, havia pago
(19:20, 21), mas tais esperanças haviam sido o mal com bem. No entanto, Saul estava
frustradas. No final, foi Saul quem morreu possuído por forças demoníacas e fez o que
pela própria mão no campo de batalha era mal ao único homem que poderia tê-lo
(31:1-6). destruído. Saul confessou abertamente sa­
Davi citou um provérbio conhecido5para ber que Davi seria o próximo rei (23:17;
confirmar o que estava dizendo: "Dos per­ 24:20) e que ele consolidaria a nação de
versos procede a perversidade" (24:13), o Israel, despedaçada por Saul. Mesmo assim,
que significa simplesmente que o caráter é a maior preocupação de Saul era com o
revelado pela conduta. O fato de Davi não próprio nome e com seus descendentes,
ter matado o rei indicava que Davi não ti­ não com a saúde espiritual do povo. Saul
nha o caráter de um rebelde nem de um fez Davi jurar que não exterminaria sua fa­
homicida. Porém, ao mesmo tempo, Davi mília quando subisse ao trono. Davi havia
sugeria fortemente que o caráter de Saul era feito uma aliança semelhante com Jônatas
duvidoso, pois havia tentado matar o gen­ (20:14-17, 42) e estava disposto a prome­
ro! Mas o que o rei estava fazendo, de fato, ter a mesma coisa a Saul. Como é triste que
ao perseguir Davi? Apenas perseguindo um os pecados de Saul tenham destruído toda
cão morto ou uma pulga que pulava de um a sua família com exceção de Mefibosete,
lugar para o outro! (pulgas e cães andam o filho aleijado de Jônatas adotado por Davi
juntos). Naquele tempo, a expressão "cão (2 Sm 9).
morto" era uma forma humilhante de opró­ Por saber do chamado de Deus e por
brio (17:43; 2 Sm 3:8; 9:8; 16:9), de modo crer na promessa do Senhor, Davi pôde ser
que Davi estava se humilhando diante do tão ousado diante de Saul e de seu exérci­
rei e do Senhor. Davi encerrou sua defesa to. Sem dúvida, foi uma santa ousadia que
asseverando, pela segunda vez (1 Sm 24:12, pocedeu de um coração em ordem com
15), que o Senhor era o justo juiz e que plei­ Deus. Chegaria o dia em que Davi e sua
tearia a causa de seu servo fiel (SI 35:1; 43:1; causa seriam vindicados, e o Senhor julga­
ver 1 Pe 2:23). ria os que se opuseram a ele. Saul retornou
A atestação de D avi (vv. 16-22). Mais a Gibeá, mas apesar de suas lágrimas e de
uma vez, o rei Saul revelou seu estado men­ seu discurso emotivo, voltou a perseguir Davi
tal confuso ao levantar a voz e perguntar se (1 Sm 26:2, 21).
era Davi quem estava falando. Por certo, Davi Davi vencera muitas batalhas e cria nas
havia falado o suficiente para Saul identifi­ promessas de Deus, mas uma de suas maio­
car que, de fato, aquele era seu genro.6 res vitórias ocorreu naquela caverna, quando
Quanto às lágrimas de Saul, o rei havia ma­ se refreou e impediu seus homens de ma­
nifestado reações emotivas temporárias tarem Saul. "Melhor é o longânimo do que
como essa em ocasiões anteriores, mas elas o herói da guerra, e o que domina o seu
nunca levavam ao arrependimento nem a espírito, do que o que toma uma cidade"
uma mudança em seu coração. (Pv 16:32). Trata-se de um ótimo exemplo a
Saul descreveu três possíveis comporta­ todos nós, mas especialmente para aqueles
mentos: o divino, de acordo com o qual aos quais o Senhor confiou a liderança.

1. O próprio Davi foi chamado de profeta (2 Sm 23:2; At 4:25), mas esse dom parece ter sido usado principalmente para
escrever os Salmos, especialmente aqueles que falam do Messias.
270 1 SA M U EL 23 - 24

2. Davi poderia reivindicar direitos dobrados sobre Queila: era seu irmão, membro da tribo de Judá e também foi seu libertador.

3. No sobrescrito do Salmo 18, Davi separou Saul de seus inimigos.

4. Saul estava certo de que o Senhor havia entregado Davi em suas mãos (23:7), e os homens de Davi estavam certos de que o

Senhor havia entregado Saul nas mãos de Davi! Tudo depende do ponto de vista!

5. Davi usou um provérbio conhecido que hoje faz parte das Escrituras. No entanto, isso não significa que provérbios populares

tenham a mesma autoridade que a Palavra inspirada de Deus. Alguns provérbios contêm certa sabedoria prática, mas os

provérbios têm a tendência de entrar em contradição. O conselho "prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém"

é contrabalançado por "quem muito pensa nada faz" e "a ausência aumenta o amor" por "longe dos olhos, longe do coração".
6. É possível que o escritor tenha considerado essa questão como um reflexo das palavras de Isaque para Jacó, o qual, na

ocasião, passava*se por Esaú: "és meu filho Esaú ou não?" {Gn 27:24). No entanto, o mentiroso era Saul e não Davi.
relativamente unida. Uma vez que o rela­
10 cionamento entre Saul e Samuel havia se
rompido vários anos antes, é pouco prová­
vel que o rei estivesse presente no funeral,
U ma M u l h e r S á b ia e mas ainda clamaria a Samuel por socorro,
mesmo depois da morte do profeta (cap. 28).
um R ei I n sen sa t o
O povo de Israel nem sempre foi obe­
diente a Samuel ao longo da vida dele, mas
1 S amuel 25 - 26
teve o cuidado de honrá-lo quando morreu.
Assim é a natureza humana (Mt 23:29-31).
Porém, em vez de preparar um túmulo sofis­
ticado em algum lugar público importante,

O
s relacionamentos pessoais constituem Samuel pediu para ser sepultado em sua casa
grande parte de nossa vida, sendo que em Ramá, provavelmente no jardim ou no
o mais importante é nosso relacionamento quintal. Com todo seu orgulho, o rei Saul
com o Senhor. Se, desde a infância, você e havia preparado para si um monumento no
eu tivéssemos mantido uma lista das pessoas Carmelo (1 Sm 15:12), mas Samuel - aque­
que entraram e saíram de nossa vida, fica­ le que verdadeiramente merecia reconheci­
ríamos admirados com o número e a varie­ mento - fez um pedido humilde: descansar
dade de papéis que desempenharam. Sem no próprio lar.
levar Deus em consideração, o filósofo Davi sabia que seria perigoso ir ao fune­
estivador Eric Hoffer disse que os outros são ral em Ramá, pois Saul teria espias no local,
"os escritores e produtores do roteiro de de modo que se retirou para o deserto. Davi
nossa vida: colocam-nos para desempenhar demonstrara amor e respeito por Samuel
um papel e, seja isso de nossa vontade ou enquanto o profeta estava vivo e, portanto,
não, nós o interpretamos". Mas não se pode não havia necessidade alguma de fazer uma
deixar Deus de fora! Afinal, é ele quem es­ aparição pública. Samuel ungira Davi rei de
creve o roteiro para nós, quem escolhe o Israel e, em várias ocasiões, protegera e acon­
elenco e quem nos coloca nas cenas que selhara o futuro rei. Como é maravilhoso
planejou. Se seguirmos sua direção, a vida quando os cristãos da geração mais velha
torna-se o cumprimento gratificante da von­ passam tempo com líderes mais jovens e
tade dele, mas se nos rebelarmos, a trama ajudam a prepará-los para servir ao Senhor
se transformará em tragédia. e a seu povo, e como é animador quando
Estes dois capítulos registram quatro os líderes mais jovens ouvem e aprendem!
acontecimentos que revelam o envolvimento Samuel era o tipo de mentor e conse­
de Davi com quatro tipos diferentes de lheiro espiritual do qual todo líder precisa,
pessoas. pois colocava aquilo que era relevante para
Deus antes dos interesses políticos do mo­
1. D avi perde um am igo mento. Para Samuel, era muito mais impor­
(1 Sm 25:1) tante agradar ao Senhor do que ser estimado
A morte de Samuel, profeta e juiz de Israel, pelo povo. Quando o povo de Israel quis um
é mencionada duas vezes no livro (1 Sm rei, esse pedido cortou o coração do profe­
28:3). As duas referências afirmam que todo ta, mas ele obedeceu às ordens do Senhor
o Israel pranteou sua morte e se reuniu para e ungiu Saul. Não tardou para que se de­
sepultá-lo. É claro que nem todo israelita es­ cepcionasse com Saul, mas, em seguida, o
tava presente no funeral, mas os líderes das Senhor orientou-o a que ungisse Davi. Sa­
tribos participaram dessa última homenagem muel faleceu sabendo que o reino estaria
a um grande homem. A fé e a coragem de em boas mãos.
Samuel ajudaram Israel a fazer a transição Quando Samuel faleceu, Davi encontra­
da desunião política para uma monarquia va-se em Massada ("lugar seguro"; 24:22) e,
272 1 SA M U E L 25 - 26

acompanhado de seus homens, saiu de lá e convidados para a festa. Nabal recusou-se


foi para o "deserto de Parã", mais de cento a ouvir.
e sessenta quilômetros ao sul de Massada. Nabal é descrito como um homem de
Talvez Davi sentisse que, ao perder a influên­ caráter "duro e maligno" (1 Sm 25:3). Era da
cia e as orações de Samuel, correria perigo tribo de Judá e da família de Calebe, um dos
ainda maior e, portanto, precisava distanciar- dois espias que haviam insistido para que
se mais de Saul. Em lugar de "Parã", alguns Israel entrasse na terra prometida (Nm 13 -
textos trazem o nome "Maom", um lugar de 14; Js 14:6, 7).2 No entanto, o nome Calebe
refúgio próximo ao mar Morto, onde Davi também significa "um cão", de modo que
havia estado anteriormente (23:24). Os acon­ talvez o escritor desejasse, ainda, transmitir
tecimentos da história de Nabal desenrola­ esse sentido. Esse homem era como um
ram-se em Maom, perto do Carmelo (25:2), animal obstinado e maldoso do qual nin­
o que indica a possibilidade de Davi ter se guém poderia aproximar-se com segurança
escondido em Maom. Pode ser que Davi (1 Sm 25:1 7). Um de seus servos, bem como
tenha fugido para o deserto de Parã, voltan­ a própria esposa, o chamaram de "filho de
do depois para Maom, mas considerando a Belial", dizendo que "a loucura [estava] com
natureza do terreno e a dificuldade da jorna­ ele" (vv. 17, 25). O termo hebraico beliya' ai
da, essa idéia parece não ter fundamento. significa "indignidade" e, no Antigo Testamen­
to, refere-se a pessoas que transgrediam a
2. D avi d esc o b r e u m in im ig o lei deliberadamente e que desprezavam
(1 Sm 25 :2-1 3) aqueles que eram bons (ver Dt 13:13; Jz
Durante a estadia anterior de Davi em Maom 19:22; 20:13; 1 Sm 2:12). No Novo Testa­
(23:24ss), região adjacente ao Carmelo,1 mento, o termo refere-se a Satanás (2 Co
seus homens haviam servido de muro de 6:15).
proteção para os rebanhos de Nabal e para Quando os jovens explicaram-lhe educa­
os que cuidavam de seus animais. Nabal era damente a situação, Nabal insultou-os. O
um homem muito rico, porém nada genero­ termo hebraico descreve o guincho de uma
so. Quando Davi retornou às cercanias das ave de rapina ao atacar a presa. E usado para
terras de Nabal, era tempo da tosquia, um retratar os homens famintos de Saul ao ata­
acontecimento festivo (2 Sm 13:23) que car os despojos e abater os animais (1 Sm
ocorria toda primavera e no começo do 14:32; 15:19). Suas palavras são registradas
outono. Davi tinha esperanças de que Nabal em 1 Samuel 25:10, 11 e, sem dúvida, reve­
o recompensasse e a seus homens por seus lam o coração de um homem egoísta, arro­
serviços, pois certamente mereceriam algu­ gante e rebelde. Abigail reconheceu Davi
ma coisa por terem protegido as ovelhas e como rei (vv. 28 e 30) e o chamou de "meu
cabras de Nabal dos ladrões que costuma­ senhor", mas Nabal comparou Davi a um
vam aparecer no tempo de tosquia. servo rebelde que abandonou seu senhor
A expectativa de Davi era lógica. Qual­ (v. 10)1 Por certo, Nabal era um simpatizan­
quer homem com três mil ovelhas e mil cabras te de Saul e não de Davi, outra evidência de
poderia dar alguns animais para alimentar que, ao contrário de sua esposa, seu coração
seiscentos homens que havia arriscado a não tinha lugar para as coisas espirituais. Ao
própria vida para guardar parte de sua rique­ observar os pronomes pessoais no versículo
za. Sem dúvida, por uma simples questão 11, pode-se reconhecer de imediato seu or­
de cortesia, Nabal deveria convidar Davi e gulho e presunção. Nabal sequer deu crédi­
seus homens a partilhar de sua comida numa to a Deus por enriquecê-lo (Dt 8:17, 18; Lc
ocasião festiva em que a hospitalidade era a 12:15-21)1
ordem do dia. Alimentar seiscentos homens Os jovens relataram a resposta de Nabal
no deserto não seria uma tarefa simples, de a Davi que, no mesmo instante, se irou e
modo que Davi enviou dez de seus rapazes jurou vingança contra ele. Davi foi capaz de
para explicar a situação e pedir que fossem perdoar Saul, que desejava matá-lo, mas não
1 SA M U EL 25 - 26 273

pôde perdoar Nabal, que se recusou a ali­ ser fastidiosa. Seu marido só queria saber
mentá-lo e a seus homens. Nabal era ingrato de dinheiro, comida, bebida e de fazer as
e egoísta, mas esses não eram crimes capi­ coisas a seu modo.
tais; Saul era invejoso e estava obcecado O servo relatou como Davi e seus ho­
com o desejo de matar um homem inocen­ mens haviam protegido os pastores e seus
te. Davi deixou-se controlar por sua ira e não rebanhos e como Nabal havia se recusado
parou a fim de consultar o Senhor, mas se a retribuir esse favor. Será que o rapaz sabia
apressou em satisfazer sua sede de vingan­ que Davi e seus homens estavam a cami­
ça. Se Davi tivesse levado a cabo o que in­ nho para confrontar Nabal ou simplesmen­
tentava, teria cometido um pecado terrível te supôs que isso poderia acontecer? Talvez
e causado grande estrago em seu caráter e o Senhor tenha lhe dado uma intuição espe­
em sua carreira, mas, em sua misericórdia, cial de que a situação estava prestes a se
o Senhor o deteve. complicar. Nabal e seus homens não tinham
Os servos do Senhor devem manter-se como se defender de Davi e de seus quatro­
vigilantes em todo o tempo, para que o ini­ centos homens. Porém, se Davi tivesse con­
migo não os ataque de surpresa nem os do­ seguido cumprir seu intento, só teria dado a
mine. "Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, Saul a prova necessária de que Davi era um
vosso adversário, anda em derredor, como renegado e de que seu comportamento re­
leão que ruge procurando alguém para de­ queria providências drásticas.
vorar" (1 Pe 5:8). Davi era um homem pie­ Abigail juntou comida suficiente para os
doso e um líder competente, mas até os homens de Davi, mas não disse coisa algu­
melhores homens são, na melhor das hipó­ ma ao marido. Ela era a senhora da casa e
teses, apenas seres humanos. poderia usar as provisões da família como
lhe parecesse melhor, inclusive partilhando
3. D avi tom a uma esposa para si com outros esse suprimento. Nabal não te­
(1 S m 2 5 :1 4 -4 4 ) ria concordado com Abigail, apesar de sua
Quando não damos ao Senhor permissão intervenção ter sido para o bem dele. Ela
de governar nossa vida, ainda assim ele pre­ não estava roubando do marido, mas sim
valece. Deus viu que Davi estava prestes a saldando uma dívida que ele havia se recusa­
se precipitar e a agir com insensatez, de do a pagar. A fim de fazer uma pequena
modo que providenciou para que uma mu­ economia, Nabal colocara em perigo todos
lher sábia e corajosa o detivesse. em sua casa e, especialmente, arriscara a
O plano sábio de A b ig ail (vv. 14-19). própria vida.
Quer tivesse consciência disso quer não, As desculpas hum ildes de A bigail (vv.
quando esse jovem anônimo relatou a Abi­ 20-35). Somente um Deus soberano pode­
gail o que seu senhor havia feito, estava ser­ ria ter providenciado que Abigail encontras­
vindo ao Senhor. Sabia que não poderia se Davi quando este estava prestes a atacar.
conversar sobre coisa alguma com Nabal Abigail curvou-se diante de Davi e reconhe­
(v. 17), de modo que foi, imediatamente, pro­ ceu-o como senhor e rei; na verdade, usou
curar sua senhora, uma mulher sábia e pru­ o termo "senhor" quatorze vezes em seu
dente. Naquele tempo, os pais arranjavam discurso. Nabal não teria aprovado suas pa­
os casamentos de seus filhos, portanto, não lavras nem suas ações, pois era partidário
nos surpreende ver uma mulher sábia casa­ de Saul e considerava Davi um rebelde (v.
da com um homem insensato. (Infelizmen­ 10). Abigail era uma mulher de fé, que acre­
te, isso ainda ocorre com freqüência nos ditava que Davi era o rei escolhido de Deus
dias de hoje sem a ajuda dos pais!) Sem e que Saul era apenas "um homem" (v. 29).
dúvida, os pais de Abigail consideraram uma Confessou, mais que depressa, que seu
felicidade que sua filha se casasse com um marido era um "homem de Belial" (v. 25,
homem tão rico. Ela acatou o desejo dos ver v. 17) que fazia jus a seu nome - "lou­
pais, mas a vida ao lado de Nabal deveria co" - e explicou que ela não ficara sabendo
274 1 SA M U EL 25 - 26

antes que Davi havia pedido alimento. As­ conselho sábio. Foi perspicaz ao ouvir uma
sumiu a culpa por essa "transgressão" (vv. repreensão feita com sabedoria (Pv 15:5,10,
24, 28).3 31-33). É pouco provável que Saul tivesse
No restante de seu discurso, Abigail con­ dado ouvidos ao conselho de uma mulher.
centrou-se em Davi e no Senhor e não em Davi escreveu no Salmo 141:5: "Fira-me o
Davi e Nabal, e sua ênfase foi sobre o futu­ justo, será isso mercê; repreenda-me, será
ro de Davi. A essa altura, Davi começou a como óleo sobre a minha cabeça, a qual
acalmar-se e a perceber que se encontrava não há de rejeitá-lo". A maneira de receber
na presença de uma mulher extraordinária. uma repreensão ou um conselho é um teste
Ela ressaltou que o Senhor havia impedido de nosso relacionamento com o Senhor e de
Davi de vingar-se, e Davi reconheceu que nosso desejo de viver de acordo com sua
isso era verdade (w. 32-34). Abigail admitiu Palavra. Davi admitiu que estava errado, o Se­
que o marido merecia ser julgado, mas seu nhor o perdoou e interveio em sua situação.
desejo era que o Senhor o julgasse, não o O casam ento inesperado de A bigail (w .
rei. De fato, ela declarou que o Senhor jul­ 36-44). Nabal festejava, enquanto o julga­
garia todos os inimigos do rei. mento estava prestes a lhe sobrevir! Não se
Abigail lembrou Davi de que o Senhor deteve para agradecer a Deus as bênçãos
havia lhe dado uma "casa firme" (ou seja, que havia lhe enviado nem considerou que
uma dinastia permanente), de modo que ele havia recebido essas bênçãos apesar de sua
não precisava temer o futuro. Davi estava maldade e por causa da fé da esposa. Para
seguro, sua vida mantinha-se "atada no fei­ Nabal, a idéia de felicidade não incluía lou­
xe dos que vivem com o S e n h o r "; mas seus var a Deus e alimentar os famintos, mas sim
inimigos seriam lançados longe como a pe­ comer, fartar-se e embebedar-se. Nabal não
dra que Davi usou para derrotar Golias (ver professava fé alguma; antes, era como as
Jr 10:18). Não importava o que Saul havia pessoas que Paulo descreveu: "O destino
planejado fazer com Davi, o Senhor cumpri­ deles é a perdição, o deus deles é o ventre,
ria suas promessas e colocaria Davi no tro­ e a glória deles está na sua infâmia, visto
no de Israel. Assim, Davi, ficaria contente que só se preocupam com as coisas terre­
por não ter derramado sangue a fim de se nas" (Fp 3:19).
vingar ou de conseguir o reino. O Senhor Abigail foi prudente ao esperar para con­
trataria Davi com bondade, e o rei não teria tar ao marido o que havia feito. A notícia
coisa alguma a temer. deixou-o tão aturdido que sofreu um derra­
Abigail apresentou apenas um pedido me e ficou paralisado por dez dias, depois
para si mesma: que Davi se lembrasse dela dos quais o Senhor lhe tirou a vida. O que
quando entrasse em seu reino (1 Sm 25: 31). causou esse derrame? Foi seu orgulho e a
Tratava-se de um pedido velado de casamen­ raiva ao descobrir que a esposa havia tido a
to, caso Nabal viesse a falecer? Ou Abigail ousadia de ajudar Davi sem a permissão
estava apenas pensando no futuro, vendo a dele? Ou foi o choque de perceber o perigo
si mesma como uma viúva que poderia ser que havia corrido e como sua casa por pou­
beneficiada pela amizade com o rei? Talvez co não havia sido exterminada? E se Saul
estivesse acautelando Davi para que se lem­ ficasse sabendo que Abigail havia feito ami­
brasse dela e de seu conselho quando se zade com Davi? O rei poderia considerar
tornasse rei, a fim de não ser tentado a to­ Nabal um inimigo e mandar castigá-lo. Quer
mar as coisas nas próprias mãos e se esque­ tenha sido um desses motivos, quer a com­
cer da vontade de Deus. Na verdade, Davi binação de todos eles que causou a parali­
não esperou muito tempo depois da morte sia de Nabal, foi o Senhor quem, por fim,
de Nabal para casar-se com Abigail! tirou-lhe a vida. Infelizmente, ele morreu do
Davi bendisse o Senhor por tê-lo impe­ modo que havia vivido: como um louco.
dido, providencial mente, de matar pessoas Quando Davi soube da morte de Nabal,
inocentes e também bendisse Abigail por seu louvou ao Senhor por vingá-lo e por impedi-lo
1 S A M U E L 25 - 26 275

de ter executado essa vingança com as pró­ encontrada no capítulo 24, mas as evidên­
prias mãos. Davi preocupava-se com a gló­ cias mostram-se contrárias a essa interpreta­
ria de Deus e com o avanço de seu reino. ção. Há diferenças em termos de localização
Sem dúvida, Abigail deve ter ficado con­ (uma caverna em En-Gedi; o acampamento
tente de ver-se livre do jugo de um homem de Saul próximo a Haquila), de hora (dia;
tão perverso, com o qual provavelmente noite), de atividades (Saul entrou na caver­
havia se casado contra a vontade. Abigail na; Davi entrou no acampamento), de rea­
causara tamanho impacto em Davi com seu ção de Davi (cortou uma parte do manto de
caráter e sabedoria a ponto de ele consi­ Saul; tomou a lança e o jarro de água de
derar que seria uma boa rainha. Assim, en­ Saul) e de palavras de Davi (falou apenas
viou mensageiros a fim de pedir a mão de com Saul; falou com Saul e Abner). A se­
Abigail em casamento. Era uma oportuni­ gunda experiência com Saul foi, sem dúvi­
dade que mulher alguma recusaria, e ela da, mais audaciosa da parte de Davi, uma
se sujeitou a seu rei e se ofereceu até para vez que estava no acampamento de Saul. O
lavar-lhe os pés! Ao casar-se com Abigail, episódio recente de Davi com Nabal e
Davi não apenas tomou para si uma boa Abigail havia lhe dado segurança sobre seu
esposa, como também se apropriou de toda futuro reinado, ensinando-lhe uma lição va­
a riqueza de Nabal, cujas propriedades fi­ liosa sobre a vingança.
cavam perto de Hebrom, onde posterior­ Traição (vv. 1-4). Assim como Nabal, os
mente Davi estabeleceu sua residência real zifeus eram parentes de Calebe (1 Cr 2:42),
(2 Sm 2:1-4; 5:5). Davi já havia tomado mas, como membros da tribo de Judá, de­
Ainoã como esposa, uma vez que o nome veriam ter sido leais a Davi. Na esperança
dela sempre aparece antes do nome de de obter o favor do rei, entregaram Davi a
Abigail (1 Sm 27:3; 30:5; 2 Sm 2:2). Ela deu Saul pela segunda vez (1 Sm 23:19ss; ver SI
à luz Amnom, o primeiro filho de Davi, en­ 54). Saul havia aprendido a dar o devido
quanto Abigail deu-lhe Quileabe, também valor à aptidão de Davi como perito em
chamado de Daniel (1 Cr 3:2). táticas, de modo que tomou três mil de seus
Mas e quanto a Mical, filha de Saul e homens para vasculhar o deserto à procura
primeira esposa de Davi que havia ajudado de Davi. No entanto, Davi já estava à frente
a salvar sua vida? Depois que Davi fugiu de de Saul, pois seus espias haviam localizado
casa, Saul entregou-a a outro homem, pro­ o acampamento do rei, e Davi encontrava-
vavelmente usando essa aliança como uma se seguro no deserto. O Senhor manteve
forma de fortalecer a própria posição e de Davi em segurança e livrou seu ungido sem­
romper a ligação de Davi com o trono. Não pre que Saul dele se aproximava. "Livrou-me
havia nenhuma forma legal de divórcio, de de forte inimigo e dos que me aborreciam,
modo que Saul forçou Mical a ter um rela­ pois eram mais poderosos do que eu" (SI
cionamento adúltero. Quando Davi estava 18:17).
reinando sobre a tribo de Judá em Hebrom, Audácia (vv. 5-12). O Senhor deve ter
ordenou que Mical lhe fosse devolvida (2 Sm instruído Davi a ir até o acampamento de
3:13-16). Porém, ela não continuou sendo Saul naquela noite, pois fez Saul e seus ho­
uma esposa amorosa, e é provável que te­ mens caírem num sono profundo. Saul e
nha se ressentido com o fato de Davi haver Abner, seu capitão (14:10) e também seu
tomado o trono de Saul. Mical morreu sem primo (v. 50), dormiam no meio do acampa­
filhos (6:16-23). mento, cercados de carros e de bagagens.
Por causa do sono sobrenatural enviado pelo
4. D avi p o u p a a v id a d o rei Senhor, Davi e seu sobrinho, Abisai, conse­
(1 Sm 26:1-25) guiram penetrar até onde Saul e Abner esta­
Alguns estudiosos do Antigo Testamento vam deitados.4Essa é a primeira menção que
tentaram provar que o relato desse capítulo as Escrituras fazem a Abisai. Como de costu­
não passa de uma adaptação da narrativa me, Saul havia deixado a lança à mão, pois
276 1 SA M U EL 25 - 26

a arma simbolizava sua posição e autoridade matado. Abner era culpado e poderia ter sido
(26:7, 11; 22:6; 18:10; 19:9; 20:33). disciplinado por não cumprir seu dever.
Abisai estava certo de que era da vonta­ D esonestidade (vv. 17-25). Saul reco­
de de Deus que Davi matasse Saul e desse nheceu a voz de Davi e respondeu chaman­
cabo de seu reinado egoísta e de sua perse­ do-o de "meu filho Davi", mas Davi não o
guição implacável ao verdadeiro rei de Israel, chamou de "meu pai", como havia feito an­
mas Davi o deteve. Davi acertara essa ques­ tes (24:11). Dirigiu-se a Saul apenas como
tão na caverna (24:1-6) e não havia necessi­ "ó rei, meu senhor". Mical, a filha de Saul,
dade de voltar a considerá-la. Também tinha não era mais esposa de Davi (25:44), de
visto o que o Senhor fizera a Nabal. Davi modo que Davi não era mais genro do rei.
estava certo de que a vida de Saul chegaria Além disso, sem dúvida Saul não o havia tra­
ao fim no momento certo e da maneira cer­ tado como filho.
ta, por morte natural ou pelo julgamento de Mais uma vez, Davi tentou arrazoar com
Deus, e então o trono seria seu. Quando Saul e lhe mostrar como estava errado em
Abisai olhava para Saul, via um inimigo, mas sua forma de pensar e de agir. Davi deseja­
quando Davi olhava para ele, via o "ungido va saber qual havia sido seu crime para que
do S e n h o r ". Em vez de tirar a vida de Saul, Saul o perseguisse e quisesse matá-lo. Se
Davi tomou dele uma lança e um jarro de Davi havia transgredido uma das leis de
água, de modo que pudesse provar a Saul, Deus, estava disposto a levar um sacrifício
pela segunda vez, que não tinha intenção para que seu pecado fosse perdoado pelo
alguma de matá-lo. Davi não deixou Abisai Senhor. Porém, se Saul estava tratando Davi
segurar a lança para que não fosse tentado como criminoso em função das mentiras que
a usá-la. seus oficiais haviam lhe contado, e/es eram
Teria sido fácil argumentar que Davi os transgressores e não Davi, portanto te­
havia se enganado na caverna e que Deus riam de pagar por seus pecados. Saul e seus
estava lhe dando outra chance de matar oficiais haviam expulsado Davi da própria
Saul, mas a decisão de Davi era baseada terra, a herança que o Senhor havia conce­
em princípios e não em circunstâncias. Davi dido a sua família, e se Davi se mudasse para
sabia que era errado tocar o ungido de outras terras, como poderia adorar Jeová
Deus, mesmo que o rei não estivesse ser­ longe do sacerdócio e do santuário?5
vindo como Deus desejava que o fizesse. É Porém, se Davi não era culpado de cri­
possível que Davi não fosse capaz de res­ me nem de pecado algum, o que levava Saul
peitar o homem, mas demonstrou respeito a investir tanto tempo e energia em sua per­
por seu cargo e pelo Deus que havia confia­ seguição? O rei de Israel perseguia uma
do esse cargo a Saul. perdiz pelo simples privilégio de derramar
Escárnio (vv. 13-16). Davi e seu sobri­ seu sangue! (Perdizes não gostam de voar.
nho dirigiram-se ao monte do outro lado do Correm de uma cobertura para outra.) Saul
acampamento de Saul, um lugar seguro de teve outra de suas recaídas sentimentais (ver
onde poderiam ser ouvidos, e, de lá, Davi 24:1 7) e confessou que era um louco e um
chamou os soldados do acampamento, es­ pecador. Prometeu a Davi que não lhe faria
pecialmente Abner, guarda-costas do rei. mal, mas Davi não acreditou nele e respon­
Teve o cuidado de não humilhar Saul na pre­ deu: "Eis aqui a lança, ó rei; venha aqui um
sença de seus homens, apesar de Saul não dos moços e leve-a" (1 Sm 26:22). Quando
ter como escapar facilmente da natureza Davi cortou a orla do manto de Saul na
embaraçosa daquela situação. Davi não se caverna, lembrou-o de que seu reino seria
identificou a Abner, referindo-se a si mesmo separado dele, mas ao tomar-lhe a lança, hu­
apenas como "um do povo" (v. 15). A au­ milhou o rei e tirou dele o símbolo de sua
sência da lança e do jarro de água era prova autoridade.
suficiente de que alguém havia, de fato, se Davi poupara a vida de Saul pela segunda
aproximado do rei e de que poderia tê-lo vez e sabia que o Senhor o recompensaria
1 SA M U EL 25 - 26 277

pelo que havia feito (SI 7:8). Porém, Davi se separaram, sendo que Saul rumou para a
não esperava que sua vida fosse valorizada vergonha e a morte e Davi para a glória e
por Saul da mesma forma como prezava a vitória finais. Porém, antes disso, a increduli­
vida do rei, pois sabia que não poderia con­ dade de Davi o levou a Ziclague, na terra
fiar nele. Antes, pediu ao Senhor que o re­ dos filisteus, onde viveu cerca de um ano e
compensasse com proteção e segurança, da meio. Em breve, os anos que Davi passou
mesma forma como havia protegido o rei vagando e sendo provado chegariam ao fim
(ver SI 18:20-27). e ele estaria pronto a assentar-se no trono
As últimas palavras de Saul a Davi das de Israel e a governar o povo de Deus. Um
quais se tem registro encontram-se em 1 Sa­ dia, Davi faria uma recapitulação daqueles
muel 26:25 e consistem numa declaração anos difíceis e veria, em suas experiências
que afirma a grandeza dos feitos de Davi e dolorosas, somente a bondade e misericór­
a certeza de seu reinado. Os dois homens dia do Senhor (SI 23:6).

1. Não se trata do monte Carmelo, situado no extremo norte, na fronteira entre Aser e Manassés, próximo ao mar Mediterrâneo.
2. A árvore genealógica de Calebe encontra-se em 1 Crónicas 2:18-54, sendo interessante observar que a avó de Calebe

chamava-se Efrata (2:50), antigo nome de Belém (Gn 35:16). Outro dos descendentes de Calebe chamava-se Belém (1 Cr

2:51, 54; 4:4). Uma vez que tanto Davi quanto Nabal eram da tribo de Judá, e tendo em vista que Davi era de Belém, talvez

ele e Nabal fossem parentes distantes! Se esse é o caso, Davi teria duas vezes mais direito à hospitalidade de Naba!. Observe

que Davi refere-se a si mesmo como "filho" de Nabal (v. 8), o que indica que esperava o respectivo tratamento.

3. Essa "transgressão" talvez incluísse mais do que apenas o egoísmo e a falta de generosidade de Nabal. Davi havia jurado matar

Nabal e todos os seus homens, e é possível que, de algum modo, Abigail tivesse ficado sabendo desse juramento. Ao que

parece, essa mulher sábia tinha conhecimento do que estava se passando no acampamento de Davi. Se Davi não cumprisse

seu juramento, por mais insensato que este fosse, pecaria contra o Senhor, mas Abigail declarou que assumiria a culpa em seu

lugar. Rebeca ofereceu-se para tomar sobre si a maldição de Jacó caso seu plano falhasse {Gn 27:11-13). Porém, se fosse da

vontade de Deus que Davi cumprisse seu juramento, não teria intervindo da maneira como o fez.
4. Abisai, Asael e Joabe eram filhos de Zeruia, irmã de Davi (1 Cr 2:16), portanto, sobrinhos de Davi. Abner, capitão de Saul,

matou Asael, de modo que, para a tristeza de Davi, Joabe e Abisai perseguiram o capitão e o mataram (2 Sm 2 - 3). Abisai

tornou-se um dos melhores líderes militares de Davi e salvou a vida dele quando foi atacado por um gigante (2 Sm 21:15-17).

5. Naquele tempo, muita gente acreditava que os deuses limitavam-se apenas ao território do povo que os adorava; assim,

quando alguém se mudava para outra terra, era costume adotar o deus desse novo local. Aqueles que adoravam Jeová

deveriam fazê-lo na terra de Israel. Por certo, Davi não acreditava nessa mentira; antes, exaltava Jeová como Senhor sobre toda

a Terra. Ver os Salmos 8, 138, 139.


de se preocupar com a própria segurança,
11 deveria ainda cuidar de duas esposas e de
seiscentos homens.
"Até quando, S e n h o r ? Esquecer-te-ás de
M orando com mim para sempre? Até quando ocultarás de
mim o rosto? Até quando estarei eu relutan­
o I n im ig o do dentro de minha alma, com tristeza no
1 Sam uel 27:1 - 28:2; 29 - 30 coração cada dia? Até quando se erguerá
contra mim o meu inimigo?" (SI 13:1, 2). Em
cerca de três anos o exílio de Davi chegaria
ao fim, e ele estaria governando o povo de
Judá em Hebrom, mas não havia como sa­
uma idade mais madura, Davi ouviria
N
ber disso. A fim de receber as promessas de
Deus lhe dizer: "Instruir-te-ei e te ensi­ Deus, é preciso ter fé e também paciência
narei o caminho que deves seguir; e, sob as (Hb 6:12), e Davi parecia estar vacilando
minhas vistas, te darei conselho. Não sejais nesses dois elementos essenciais. Precisava
como o cavalo ou a mula" (SI 32:8,9). da fé e da coragem expressadas no Salmo
O cavalo é impulsivo e se apressa des­ 27:1-3, mas, antes de criticá-lo com severi­
cuidadamente, enquanto a mula é obstina­ dade excessiva, devemos nos lembrar de
da e empaca - e todos nós imitamos um e ocasiões em que fizemos a mesma coisa.
outro... Deus não quer tratar-nos como os Essa cena me traz à memória uma situa­
homens tratam com os animais. Deseja ter ção semelhante na vida de Cristo, quando
intimidade conosco e nos guiar sob seu estava prestes a enfrentar a cruz (Jo 12:20­
olhar, como um pai orienta um filho. Quan­ 33). "Agora, está angustiada a minha alma,
do contemplamos a face do Senhor, pode­ e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas
mos vê-lo sorrir ou franzir a testa e discernir, precisamente com este propósito vim para
por seu olhar, para onde deseja que vamos. esta hora. Pai, glorifica o teu nome" (Jo 12:27,
Estes capítulos registram as experiências de 28). A glória do Pai encontrava-se acima de
Davi quando vivia sem esse tipo de orienta­ todas as coisas no coração de Jesus, enquan­
ção íntima e amorosa. to a maior preocupação de Davi era seu
conforto e segurança. No entanto, o Senhor
1. D avi d eixa a t e r r a (1 Sm 2 7 :1 , 2) estava usando as dificuldades na vida de Davi
Davi havia passado cerca de sete anos como para transformá-lo num homem de Deus e
fugitivo quando decidiu refugiar-se em Gate, prepará-lo para o trono. Nessa ocasião, po­
mas é provável que, antes disso, já tivesse rém, Davi decidiu seguir o caminho que lhe
em mente a idéia de sair de Israel (26:19). pareceu melhor e resolver seus problemas
Havia motivos de sobra para Davi ficar na sozinho.
terra e continuar a confiar que Deus iria Os filhos de Deus devem ter o cuidado
protegê-lo e suprir suas necessidades. Afi­ de não se entregar ao desalento. Moisés fi­
nal, era o rei ungido de Israel e sabia que, a cou desanimado com o peso de seu traba­
seu tempo, Deus lhe daria o trono. Abigail lho e quis morrer (Nm 11:15), e Elias fugiu
havia lhe garantido isso (25:27-31), e até mes­ do dever por causa do medo e do desâni­
mo Saul admitira que, no final, Davi sairia mo (1 Rs 19). Quando começamos a olhar
vencedor (26:25). Saul não cumpriu suas para Deus através de nossas circunstâncias
promessas de deixar Davi em paz, e as em vez de olhar para nossas circunstâncias
bajulações constantes dos mentirosos que com os olhos de Deus, perdemos a fé, a
faziam parte do seu círculo mais íntimo in­ paciência e a coragem e damos a vitória ao
centivaram o rei a continuar sua perseguição. inimigo. "Confia no S e n h o r de todo o teu
A vida diária de exilado no deserto estava coração e não te estribes no teu próprio
começando a deixar Davi deprimido. Além entendimento" (Pv 3:5).
1 SA M U E L 27:1 - 28:2; 29 - 30 279

"Nas tuas mãos, estão os meus dias; li­ Simeão situava-se dentro da tribo de Judá,
vra-me das mãos dos meus inimigos e dos o que explica o fato de Ziclague ser associa­
meus perseguidores" (SI 31:15). da às duas tribos (Js 15:31; 19:5). Porém,
desde o momento em que Aquis entregou
2. D avi en g a n a o in im ig o a cidade a Davi, ela passou a pertencer aos
(1 Sm 27:3 - 2 9 :1 1 ) reis de Judá. Davi e seus homens não po­
No começo de seu exílio, Davi fugira para deriam ter conseguido melhor quartel-ge­
Gate em busca de segurança, só para des­ neral para suas operações e fizeram bom
cobrir que sua vida continuava em perigo, uso dele.
de modo que, para escapar, precisou fingir Seus relatos dos ataques (27:8-12).
que estava louco (21:10-15). Naquela épo­ Aquis pensou que Davi e seus homens esti­
ca, porém, Davi estava sozinho, enquanto, vessem atacando cidades e vilas em Judá,
dessa vez, voltou para Gate com duas espo­ quando, na verdade, estavam atacando as
sas e como o comandante de seiscentos vilas e campos dos aliados de Aquis! Davi
soldados valentes. "Crer é viver sem tramar", estava exterminando o povo que Josué e
e Davi continuou usando de dissimulação. seus sucessores não haviam conseguido eli­
Enganou Aquis em três coisas: ao pedir uma minar quando entraram na terra, conforme
cidade, ao fazer referência aos ataques que as ordens dadas por Moisés em Deuteronô-
seus homens realizaram e ao declarar seu mio 20:16-18. Ao mesmo tempo, eliminava
desejo de lutar as batalhas do rei. o risco de que qualquer um dos sobreviven­
Seu pedido por uma cidade (27:3-7). tes levasse até Gate a notícia de que Davi
Sem dúvida, a notícia de que Saul estava estava mentindo. Davi entregou a Aquis pre­
tentando matar Davi chegara até os filisteus, sentes dos despojos das batalhas, transmi­
de modo que qualquer inimigo de Saul era tindo-lhe relatos falsos de suas atividades, e
bem-vindo em Gate. A aptidão tática de Davi Aquis acreditou nele. Quando Judá recebeu
e a eficiência de seus valentes no combate a notícia de que Davi estava atacando os
podiam ser úteis a Aquis. Porém, é bem pos­ inimigos, a popularidade do futuro rei entre
sível que Davi tenha trazido consigo de duas os líderes de Israel cresceu ainda mais.
a três mil pessoas (1 Sm 30:1-3), uma multi­ Sua responsabilidade na batalha (28:1,
dão e tanto para aparecer de repente na ci­ 2; 29:1-11). Foi nessa batalha que Saul e seus
dade de Gate. filhos morreram (31:1-6), e foi a mão provi­
Na verdade, Davi não desejava ficar em dencial do Senhor que impediu Davi e seus
Gate, pois lá o rei e seus oficiais investiga­ homens de participarem desse combate.
riam suas atividades, de modo que pediu ao Aquis deixou claro a Davi que esperava que
rei que desse a ele e a sua gente uma cida­ ele e seus homens lutassem ao lado dos sol­
de só para eles. Usou de grande diplomacia dados filisteus, mas Davi lhe deu uma res­
ao elaborar o pedido, humilhando-se diante posta evasiva. "Assim saberás quanto pode
do rei ("por que há de habitar o teu servo o teu servo fazer" (1 Sm 28:2). O rei inter­
contigo na cidade real?") e garantindo a pretou essas palavras como "até agora, você
Aquis que seus serviços estariam sempre a recebeu apenas relatos das minhas façanhas
sua disposição. Satisfeito por poder tirar toda e das proezas de meus homens, mas essa
aquela gente de Gate, onde provavelmente batalha nos dará a oportunidade de lhe
estavam causando problemas de suprimen­ mostrar pessoalmente nossa aptidão". Mas
to de água e de alimento, e pronto a fortale­ será que esse era o verdadeiro significado
cer seu exército, Aquis aceitou a idéia sem das palavras de Davi? Por certo ele não luta­
demora. Entregou a Davi a cidade de Zicla- ria contra seu povo, de modo que é bem
gue, cerca de quarenta quilômetros a sudo­ provável que tivesse em mente um plano
este de Gate, na fronteira com a tribo de alternativo. No entanto, o rei ficou tão im­
Simeão, que na época se encontrava sob o pressionado que nomeou Davi como seu
controle dos filisteus. A herança da tribo de guarda-costas vitalício!1
280 1 SA M U EL 27:1 - 28:2; 29 - 30

Os soldados reuniram-se e marcharam, em condições ideais de combate. Davi obe­


num desfile, com os cinco príncipes filisteus deceu e voltou para Ziclague.2
(6:16, 17) comandando as companhias, e Apesar de Deus ter sido bondoso ao li­
Davi e seus homens na retaguarda protegen­ vrar Davi e seus homens de participarem
do o rei. Quando os príncipes (comandantes dessa batalha, o Senhor não tem obrigação
militares) dos filisteus viram o rei com Davi alguma de salvar seu povo de situações
e seus seiscentos valentes, reagiram com causadas por suas decisões pecaminosas.
protestos: "Estes hebreus, que fazem aqui?", Colhemos aquilo que semeamos, e, poste­
pergunta que deve ter espantando Aquis, riormente, Davi foi enganado por membros
pois o rei confiava plenamente em Davi. de sua corte e até mesmo da própria família.
Mais que depressa, Aquis garantiu a seus
comandantes que havia observado Davi 3. D avi lib er t o u o s cativo s
durante um ano - aliás, desde o primeiro (1 Sm 30 :1-2 0)
dia em que Davi havia deixado Saul (21:10­ Davi e seus homens foram impedidos de
15) - e que confiava nele. combater junto com os filisteus, mas ainda
Os líderes não poderiam discutir com seu lhes restava uma batalha a lutar, dessa vez
rei, mas sugeriram uma medida de seguran­ contra os amalequitas, inimigos declarados
ça. Lembraram que, numa batalha anterior, dos israelitas (Êx 17:8-16; Dt 25:1 7). Pelo fato
alguns soldados israelitas do exército filisteu de Saul haver conquistado apenas uma vitó­
haviam desertado de seus postos e lutado ria incompleta sobre os amalequitas (15:1­
do lado de Israel (14:21), algo que Davi e 11), esse povo ainda estava livre para atacar
seus homens também eram capazes de fa­ os israelitas.
zer. Por certo, Saul era inimigo de Davi, mas Perigo (w . 1-6a). Talvez o Senhor tenha
havia a possibilidade de os dois se recon­ permitido o ataque a Ziclague a fim de in­
ciliarem e de lutarem juntos. Afinal, o povo centivar Davi a sair do território inimigo e a
costumava cantar: "Saul feriu os seus milha­ voltar para Judá, que era seu lugar. Os líde­
res, porém Davi, os seus dez milhares" (1 Sm res amalequitas sabiam que Davi estava em
28:5; 18:7; 21:11), sugerindo que, no passa­ Cate e que toda a atenção voltava-se para o
do, os dois haviam lutado juntos. A coisa confronto entre os israelitas e os filisteus. Era
mais segura a fazer era enviar Davi de volta o momento perfeito de desforrar-se de Davi
a Ziclague, para longe da batalha, e deixar por seus ataques e, ainda, de conseguir al­
que realizasse os próprios ataques militares guns despojos. Uma vez que a maioria dos
em outras regiões. homens estava com Davi, os habitantes de
O rei transmitiu a mensagem a Davi, que Ziclague não tinham como oferecer qual­
continuou usando de dissimulação ao fingir quer resistência, de modo que os invasores
ficar profundamente ofendido com tal or­ simplesmente raptaram o povo e levaram
dem. Acaso ele não havia se mostrado con­ toda a riqueza que puderam encontrar.
fiável? Queria sair à guerra e "pelejar contra Queimaram a cidade, o que para eles foi
os inimigos do rei, [seu] senhor", outra de­ um ato de vingança, mas que, da parte do
claração ambígua que o rei interpretou a seu Senhor, talvez tenha sido uma mensagem
favor. Mas quem era o "rei e senhor" de Davi mostrando a Davi que era hora de pensar
- o rei Saul (24:8; 26:1 7), Aquis ou o Rei em voltar a Judá.
Jeová? E quem eram os inimigos de Davi - Só podemos imaginar o horror e a triste­
os israelitas ou os filisteus? Aquis, porém, za de Davi e de seus seiscentos homens,
partiu do pressuposto de que era o rei de que jamais haviam perdido uma batalha. Sua
Davi, de modo que lhe ordenou que deixas­ cidade havia sido incendiada, toda a sua ri­
se Cate sem qualquer tumulto e voltasse para queza fora levada embora, e suas mulheres
Ziclague, a fim de não provocar os prínci­ e seus filhos haviam sido raptados. Foi pela
pes filisteus. Eles tinham diante de si uma misericórdia do Senhor que os amalequitas
batalha difícil, e Aquis queria que estivessem pouparam as mulheres e as crianças, pois,
1 S A M U EL 27:1 - 28:2; 29 - 30 281

em seus ataques, Davi e seus homens mata­ que o senhor desse escravo fosse um ho­
ram muitas mulheres e crianças (27:11). A mem importante, pois o servo sabia dos pla­
expressão: "os levaram consigo" (30:2) nos do grupo de amalequitas que haviam
significa, literalmente, "os tocaram de lá" e atacado Ziclague e foi capaz de conduzir
dá a impressão de animais sendo tocados Davi até o acampamento. O senhor daque­
por pastores e boieiros. Os homens se acaba­ le escravo havia esperado que ele morresse,
ram de tanto chorar, e Davi "muito se angus­ mas Deus o conservara com vida para que
tiou", verbo que significa que foi espremido Davi salvasse as famílias capturadas.
contra um canto, da mesma forma que um Vitória (w . 16-20). Tomados de uma fal­
oleiro aperta a argila dentro de um molde. sa impressão de segurança, os amalequitas
Ânim o (w . 6b-15). As pessoas reagem comemoravam sua grande vitória, quando
de maneiras diferentes às mesmas circuns­ Davi e seus homens atacaram e pegaram o
tâncias, pois aquilo que a vida faz conosco acampamento de surpresa. Mataram todos
depende daquilo que ela encontra dentro os amalequitas, exceto quatrocentos rapa­
de nós. Houve quem quisesse apedrejar zes que fugiram, resgataram todos os que
Davi, reação, sem dúvida alguma, insensa­ haviam sido capturados e tomaram de volta
ta. Mais do que nunca, precisavam de seu seus pertences tomados de Ziclague. A vi­
líder; de que modo a morte dele iria resolver tória não foi apenas completa, mas também
o problema? Não culpamos esses homens lucrativa para Davi, pois tomou as riquezas
por estarem tão aflitos, mas questionamos o e despojos dos amalequitas para si.
fato de deixarem o coração prevalecer so­ Ao recapitular o que o Senhor fez por
bre a mente. Davi sabia que o ânimo de que Davi nessa fase sombria de sua vida, pode-
precisava só poderia vir do Senhor. Orde­ se compreender melhor como Deus ajuda
nou que o sacerdote Abiatar trouxesse a seu povo quando este se encontra envol­
estola e, juntos, buscaram a vontade de vido em problemas e crises. Em primeiro
Deus. Saul havia consultado o Senhor, mas lugar, o Senhor animou Davi para que não
não havia recebido resposta alguma {28:3­ se desesperasse e para que cresse que o
6); porém, em sua graça, o Senhor respon­ Senhor o ajudaria. Sempre que surge uma
deu ao pedido de Davi. Sem dúvida, Davi crise, precisamos de coragem para enfrentá-
não estava vivendo em obediência, mas ain­ la, e não devemos tentar jogar a culpa em
da assim Deus lhe respondeu (SI 103:3-10). outros nem fazer de conta que tudo está
Tendo recebido garantias do Senhor de bem. O Senhor também deu sabedoria para
que sua perseguição ao inimigo seria bem- que Davi discernisse as providências que
sucedida, Davi e seus homens montaram em deveria tomar e deu-lhe forças para fazer o
seus animais e percorreram os mais de vinte que era preciso. Davi e seus homens esta­
e cinco quilômetros até o ribeiro de Besor, vam cansados, mas o Senhor capacitou o
onde duzentos homens tiveram de parar, comandante e quatrocentos de seus valen­
pois estavam exaustos. (O termo hebraico tes de modo que perseverassem em sua
traduzido por "cansados" significa "exauri­ busca pelos invasores amalequitas. O Se­
dos".) Essa parada poderia ter levado Davi a nhor também forneceu a Davi as informa­
desanimar, porém ele e quatrocentos ho­ ções necessárias para que encontrasse o
mens seguiram viagem. Mas para onde de­ acampamento inimigo no meio de um imen­
veriam ir? O Senhor não lhes havia dito onde so deserto. Quando damos um passo de fé
os amalequitas encontravam-se acampados, e confiamos no Senhor, ele nos conduz
mas Davi confiou que Deus iria guiá-lo. Foi sempre que precisamos. Por fim, Deus deu
então que encontraram um escravo egípcio a Davi e a seus homens a força necessária
abandonado por seu senhor amalequita, pois para derrotar o inimigo e recuperar os pri­
estava doente. Aquele homem poderia ter sioneiros e os despojos.
morrido no deserto, mas Deus o preservou "Entrega o teu caminho ao S e n h o r , con­
por amor a seu servo Davi. E bem provável fia nele, e o mais ele fará" (Sl 37:5).
282 1 SA M U EL 27:1 - 28:2; 29 - 30

4. D avi dividiu os despojos Sul de Judá, lugares onde ele e seus ho­
(1 S m 30:21-31) mens haviam se escondido no tempo em
Quando Davi declarou a seus soldados: "Este que vagaram pela região (23:23). Os habi­
é o despojo de Davi" (1 Sm 30:20), não es­ tantes dessas cidades haviam ajudado Davi
tava tomando para si todas as riquezas dos a fugir de Saul, e Davi sentia que mereciam
amalequitas de maneira egoísta, mas ape­ algum tipo de pagamento por sua bonda­
nas declarando que providenciaria para que de. Afinal, se Saul tivesse descoberto o que
os espólios fossem distribuídos. Cada um de haviam feito, a essas pessoas poderiam ter
seus valentes recebeu sua parte, bem como sido mortas. No entanto, Davi não estava
os duzentos homens que haviam ficado can­ apenas agradecendo a esses líderes, mas
sados demais para continuar a perseguição. também preparando o caminho para a oca­
A generosidade de Davi perturbou alguns sião em que voltaria à terra deles como rei
dos "maus e filhos de Belial, dentre os ho­ de Israel.
mens que tinham ido com Davi" (v. 22), mas Apesar de a cidade ter sido queimada
Davi não lhes deu ouvidos. Determinou, com pelo inimigo, Davi voltou a Ziclague a fim
grande cortesia, a regra de que em seu exér­ de esperar por notícias da batalha entre Is­
cito os despojos fossem divididos entre to­ rael e os filisteus. Estava certo de que não
dos os homens, inclusive aqueles que não teria de esperar muito tempo, certeza logo
haviam lutado contra o inimigo. Afinal, o comprovada, pois as notícias chegaram no
Senhor é quem lhes dera a vitória, de modo terceiro dia (2 Sm 1:1, 2). Depois de ouvir
que ninguém tinha o direito de reivindicar o relato da morte de Saul e de seus filhos,
espólios para si como se fosse algo que o Davi buscou a orientação do Senhor, que
Senhor lhe devesse. Deus havia sido bondo­ o enviou a Hebrom (2:1-4). Davi reinou
so e generoso ao entregar o inimigo em suas sobre Judá durante sete anos e meio, ten­
mãos, e eles deviam ser bondosos e gene­ do Hebrom como sua capital (v. 11).
rosos ao dividir sua riqueza com outros. O Senhor havia cumprido sua promessa,
Davi também enviou presentes desses e as perambulações de Davi pelo deserto
espólios aos anciãos das cidades na região haviam chegado ao fim.

1. A designação "guarda pessoal", em 1 Samuel 28:1, também pode ser traduzida por "aquele que guarda minha cabeça". Será

que Aquis não se recordava de que Davi havia cortado fora e guardado a cabeça de Golias (17:54)? Os líderes de Aquis

estavam preocupados com o que Davi faria com a cabeça de seus soldados (29:4). Pode-se ver aqui outro paradoxo interessante.

Davi era guarda-costas de Saul (22:14), e Saul não confiava nele, mas Davi estava enganando Aquis, e o rei o havia nomeado
seu guarda-costas!

2. Davi separou-se do rei ao amanhecer (29:10,11), mas Saul foi encontrar-se com uma feiticeira ao anoitecer (28:8), rumando

para a derrota e a morte que o esperavam.


antes (7:7-14); em segundo lugar, Saul
12 encontrava-se em apuros, e Samuel não es­
tava a seu lado para transmitir-lhe o conse­
lho de Deus. Samuel havia dito a Saul e ao
O R ei E stá M orto povo que precisavam derrotar os filisteus
(7:3). Porém, a fé dos israelitas em Deus foi
1 Sam uel 28:3-25; 31; enfraquecendo gradativamente sob a lide­
1 C rônicas 10 rança do rei Saul, que, nesta passagem, pode
ser visto buscando deliberadamente a ajuda
do maligno. Israel estava no fundo do poço,
mas se o Senhor os havia abandonado, era
somente porque, antes de tudo, Saul havia
Livro de 1 Samuel começa com o nas­ abandonado o Senhor.
O cimento de Samuel, um bebê espe­
cial, e termina com a morte de Saul, um
O exército filisteu já se mobilizava, e Saul
e seus homens não estavam preparados para
homem culpado. Os primeiros capítulos confrontá-los. Quando viu o inimigo ajun­
giram em torno do tabernáculo, onde Deus tar-se, Saul se encheu de medo e estreme­
falou ao jovem Samuel, e os últimos capítu­ ceu. Os filisteus estavam reunidos em Afeca,
los concentram-se num homem abandona­ enquanto o exército de Israel encontrava-se
do com o qual Deus se recusou a falar. em Jezreel (29:1). Os filisteus deslocaram-se
Samuel orou e Deus derrotou os filisteus; para Jezreel (v. 11) e, por fim, para Suném
Saul buscou a ajuda de Deus, mas o Senhor (28:4), onde se prepararam para atacar o
não respondeu, e os filisteus derrotaram exército israelita posicionado no monte
Israel. 1 Samuel é o livro do rei escolhido Gilboa (v. 4; 31:1).
pelos homens e um registro da decadên­ Saul tentou entrar em contato com o
cia, derrota e morte de Saul. 2 Samuel é o Senhor por meio de sonhos, mas não obte­
registro da vida de Davi, o rei escolhido por ve resposta alguma. Ao contrário de Davi
Deus, e mostra como Deus transformou (22:5), Saul não estava acompanhado de um
um pequeno pastor de ovelhas num po­ profeta, sendo que Davi também tinha con­
deroso monarca. Os últimos dias de Saul sigo um sacerdote e uma estola (23:6). E
são relatados nesses dois capítulos finais de provável que o "Urim" mencionado em 28:6
1 Samuel. seja referência a uma nova estola feita para
Saul, uma vez que a estola do tabernáculo
1. U m a noite de dissim ulação e de encontrava-se com Davi. Não importava o
a fliç ã o (1 S m 28 :3-2 5) meio que Saul tentasse usar, não receberia
De todas as "cenas noturnas" da Bíblia - resposta alguma de Deus.' Porém, ao longo
que, aliás, não são poucas é possível que de grande parte de sua vida, não havia se
esta seja uma das mais estranhas e mais dra­ interessado pela vontade de Deus, pois de­
máticas. O espírito de um homem morto sejava fazer as coisas a seu modo. É de se
voltou para anunciar o fim de um rei desespe­ admirar que Deus abandonasse Saul no fi­
rado, que não conseguia achar uma saída. nal da carreira desse rei?
Samuel e Saul encontraram-se pela última "Então, me invocarão, mas eu não res­
vez, e não foi uma reunião feliz. ponderei; procurar-me-ão, porém não me
Saul não recebeu a ajuda de Deus (vv. hão de achar. Porquanto aborreceram o co­
3-6). Vimos anteriormente que Samuel ha­ nhecimento e não preferiram o temor do
via falecido (25:1), mas há, possivelmente, S e n h o r ; não quiseram o meu conselho e des­

dois motivos para que esse fato seja repeti­ prezaram toda a minha repreensão. Portan­
do aqui. Em primeiro lugar, Israel encon­ to, comerão do fruto do seu procedimento
trava-se em apuros, e Samuel não estava e dos seus próprios conselhos se fartarão"
presente para salvar o povo como havia feito (Pv 1:28-31).
284 1 SA M U EL 28:3-25;. 31; 1 C R Ô N IC A S 10

Saul desobedeceu à Palavra de Deus (w . texto, parece evidente que Samuel, de fato,
7-14). A informação, no versículo 3, sobre apareceu para a mulher, mas que e/a ficou
Saul haver expulsado de Israel todos os que espantada quando isso ocorreu. Samuel não
se dedicavam a práticas do espiritismo ser­ se manifestou do reino dos mortos em fun­
ve para nos preparar para o choque de ver ção da competência dessa médium, mas
Saul procurando a ajuda de uma médium. A porque foi da vontade de Deus que isso
lei de Moisés condenava todas as formas de ocorresse. Não se tratava de um demônio
espiritismo (Êx 22:18; Lv 19:31; 20:6; Dt 18:9­ imitando Samuel nem de truques astutos da
13), de modo que Saul havia feito o que era médium; do contrário, ela não teria ficado
certo ao mandar esses indivíduos embora, tão assustada. Seu grito alto deixou claro que
mas agiu errado quando buscou sua ajuda. a mulher não esperava que isso aconteces­
Ao ir atrás da médium, pecou deliberada­ se. Somente a médium viu Samuel (w. 13,
mente e foi um hipócrita. O fato de alguns 14), mas o profeta falou diretamente a Saul
servos saberem onde morava a médium in­ e não por intermédio da mulher. Samuel era
dica que a campanha de Saul para limpar um profeta de Deus e não precisava de "por­
Israel dessa gente não havia sido completa ta-voz" para transmitir a mensagem do Se­
e que nem todos os seus oficiais concorda­ nhor. Na verdade, o versículo 21 indica que
vam com o rei. Alguns deles conheciam uma a mulher nem estava perto de Saul enquan­
médium que Saul havia deixado passar em to Samuel comunicou a mensagem ao rei.
sua campanha. Saul tinha apenas uma pergunta a Sa­
Na noite anterior à batalha (1 Sm 28:19), muel: "O que devo fazer?" Os filisteus esta­
Saul disfarçou-se, despindo-se de todo sím­ vam prontos para atacar. Saul não passava
bolo de realeza e vestindo-se com roupas de um homem fraco e preocupado, e tudo
comuns. Do monte Cilboa até Endor, teria o que havia feito para descobrir a vontade
de percorrer dezesseis quilômetros e passa­ de Deus não havia funcionado. "Deus se
ria bem perto das linhas filistéias, de modo desviou de mim". Em sua breve mensagem,
que não lhe convinha ser reconhecido como Samuel usou sete vezes a designação "Se­
rei de Israel. Além disso, não desejava que a n h o r ", ao lembrar a Saul que Deus o havia

médium soubesse quem ele era. Saul come­ deixado porque ele se recusara a obedecer
çou seu reinado no amanhecer do dia em à vontade de Deus. O Senhor arrancou o
que foi ungido rei pelo profeta Samuel (9:26), reino das mãos de Saul, pois o rei não havia
mas terminou seu reinado saindo durante a obedecido à ordem de exterminar os
noite para visitar uma médium. Quebrou amalequitas (15:28), e, pela primeira vez,
exatamente a mesma lei que havia tentado Samuel anunciou que Davi era o "com­
colocar em prática. panheiro" que herdaria o reino (28:17). A
A mulher não era fácil de enganar. Que­ notícia mais terrível, porém, era que, no dia
ria ter certeza de que não se tratava de uma seguinte, Saul e seus filhos seriam abatidos
armadilha para pegá-la e condená-la, pois o na batalha e se juntariam a Samuel no reino
espiritismo era considerado crime capital em dos mortos.2
Israel. Saul jurou usando o nome do Senhor, Sau l desesperou-se com sua situação
cuja lei estava transgredindo, que ela não (vv. 20-25). O rei estava assentado num leito
seria processada, de modo que a mulher próximo à parede e, quando ouviu as pala­
concordou em cooperar. Saul não apenas vras de Samuel, caiu estirado no chão, intei­
transgrediu a lei, como também incentivou ramente debilitado. Queria uma mensagem
a mulher a fazer o mesmo! Pediu que en­ do Senhor, mas, quando ela veio, não foi a
trasse em contato com Samuel, com o qual mensagem que desejava receber. Ao ouvir o
Saul não quis falar quando o profeta ainda anúncio de sua morte, estremeceu de medo
estava vivo. e se sentiu enfraquecido pela fome. O que
Saul descobriu o plano de Deus (vv. 15­ levaria um general a jejuar antes de uma
19). Considerando o sentido expresso do batalha estratégica? Saul estava tentando
1 S A M U E L 28:3-25;. 31; 1 C R Ô N IC A S 10 285

comprar a ajuda do Senhor como havia fei­ carreira com grande sucesso; afinal, o povo
to anteriormente (14:28)? Alguns estudio­ cantava: "Saul feriu os seus milhares". A de­
sos acreditam que os médiuns exigiam que cadência de Saul começou na ocasião em
se jejuasse antes de consultar os mortos, que deixou de eliminar todos os amalequitas.
de modo que talvez fosse esse o caso de Quando Davi entrou em cena, a inveja que
Saul. De qualquer modo, suas ações foram Saul sentia do sucesso do rapaz obcecou-o
insensatas, pois jejuar não torna pessoa al­ de tal modo que o rei tornou-se paranóico e
guma merecedora das bênçãos do Senhor, perigoso. Saul possuía muitas qualidades
caso seu coração não esteja em ordem com excelentes, mas estas não incluíam a fé hu­
Deus. milde e obediente a Deus. Saul perdeu tudo
A médium assumiu um papel maternal e em função de seu orgulho e desobediência.
implorou que o rei comesse algo. Tinha dian­ Saul perdeu o exército (1 Sm 31:1; 1 Cr
te de si uma longa viagem de volta para o 10:1). Os soldados de Saul não estavam à
acampamento e, no dia seguinte, deveria altura do exército filisteu, com suas grandes
comandar seus soldados na batalha contra divisões e inúmeros carros. Alguns deserta­
os filisteus. Como havia feito insensatamen­ ram, outros morreram no campo de bata­
te em outras ocasiões, Saul tentou mostrar- lha. Os filisteus preferiam lutar em terrenos
se valente e se fazer de herói, substituindo a planos, pois dependiam de seus carros, en­
sanidade por bravatas, mas as súplicas insis­ quanto Israel tentava atraí-los para a região
tentes da médium e dos homens do rei fo­ montanhosa ao redor do monte Gilboa. Is­
ram mais persuasivas. É bem provável que a rael estava em menor número e era inferior
médium fosse uma mulher de posses, uma em capacidade, mas, mesmo que houvesse
vez que tinha em casa um bezerro cevado, demonstrado força superior, o exército
pois essa era a dieta dos ricos, uma iguaria israelita teria sido derrotado. Havia chega­
rara para o povo em geral. Sem dúvida, foi do a hora do julgamento de Saul. Sem as
uma refeição digna de um rei, mas também orações de Samuel e sem a liderança ungida
foi sua "última ceia" antes de deixar esta vida. de Davi, o exército de Israel estava destina­
A declaração final deste capítulo nos lembra do à derrota.
do que aconteceu com Judas: "Ele, tendo Saul perdeu a vida (1 Sm 31:2-7; 1 Cr
recebido o bocado, saiu logo. E era noite" 10:1-6). Uma das primeiras regras da guerra
(Jo 13:30). na Antiguidade era "matar o rei inimigo!"
Não podemos deixar de sentir pena de (ver 1 Rs 22:31). Saul encontrava-se no cam­
Saul e, ao mesmo tempo, de admitir que ele po de batalha com três de seus quatro fi­
trouxe sobre si essa triste sina. Se tivesse lhos; por algum motivo, Isbosete (também
obedecido ao Senhor, não teria perdido o conhecido como Esbaal) não estava com eles
reino, e se tivesse parado de perseguir Davi, (2 Sm 2:8; 1 Cr 8:33; 9:39). Os três filhos
investindo o tempo em desenvolver seu exér­ morreram primeiro e, em seguida, Saul foi
cito, estaria muito mais capacitado a enfren­ atingido por uma flecha, que o feriu mor­
tar os filisteus em Jezreel. Apesar de todas talmente, e o rei pediu que seu escudeiro
as bênçãos que Deus deu a Saul e de todas o matasse. Os filisteus eram famosos por
as oportunidades que o rei teve de crescer abusar de suas vítimas e por humilhá-las,
espiritualmente, não estava preparado para especialmente no caso de oficiais e de reis.
liderar, nem para lutar e nem para morrer. Saul temia ser torturado até a morte, de
modo que, quando o rapaz não atendeu à
2. Um DIA DE VERGONHA E DE DERROTA sua súplica, ele próprio caiu sobre sua es­
(1 S m 31:1-10; 1 C r 10) pada e morreu.3 Logo em seguida, o rapaz
0 registro militar de Saul é resumido em se matou, e toda a guarda pessoal de Saul
1 Samuel 14:47, 48. Trata-se de um registro bem como os oficiais a seu redor acaba­
louvável, que apresenta Saul como general ram morrendo. Foi uma vitória absoluta para
conquistador e herói nacional. Começou a os filisteus.
286 1 S A M U EL 28:3-25;. 31; 1 C R Ô N IC A S 10

O reinado de Saul foi trágico, e tudo indi­ e o bracelete reais, o amalequita (que talvez
ca que sua morte era inevitável, mas como fosse mercenário de um dos exércitos) de­
é triste que três de seus filhos tenham mor­ veria ter removido o corpo do campo de
rido com ele no campo de batalha! Jônatas batalha para um lugar seguro e tê-lo protegi­
havia sonhado em ser co-regente de Davi do até que pudesse receber sepultamento
(1 Sm 23:16-18), sonho que nunca se reali­ adequado. O amalequita pensou que seus
zou. Quantas vezes o pecado de um causa atos de heroísmo conquistariam a aprova­
o sofrimento e até a morte de outros. "E há ção de Davi, mas, em vez disso, foram sua
pecado para a morte" (1 Jo 5:16). Os peca­ sentença de morte.
dos tanto de Saul quanto de Eli (1 Sm 4:1­ Em função de seus pecados, Saul per­
18) custaram-lhes a própria vida e a de seus deu, em primeiro lugar, sua dinastia (1 Sm
filhos. Deus não faz acepção de pessoas. 13:11-14), depois, perdeu seu reino (15:24­
Saul perdeu a honra (1 Sm 31:8-10; 1 Cr 31) e, por fim, sua coroa. Podemos aplicar,
10:8-10). Depois da batalha, o exército aqui, a advertência do Senhor em Apocalipse
vitorioso ocupava-se principalmente em hu­ 3:11: "Venho sem demora. Conserva o que
milhar os prisioneiros e os que estavam mor­ tens, para que ninguém tome a tua coroa".
rendo e em despojar os mortos, uma vez que "Acautelai-vos, para não perderdes aquilo
os espólios da batalha constituíam parte im­ que temos realizado com esforço, mas para
portante do pagamento dos soldados por receberdes completo galardão" (2 Jo 8).
haverem arriscado a vida. Os filisteus tiveram
grande prazer em humilhar o corpo de Saul. 3. Um m o m en t o de o u sa d ia e de d ev o ç ã o
Despiram-no de sua armadura e cortaram fora (1 Sm 31:11-13; 1 C r 10:11-13)
sua cabeça; depois de exibirem ambos em Enquanto os filisteus comemoravam a der­
vários lugares de sua terra (1 Cr 10:9), colo­ rota de Israel e humilhavam Saul e os filhos,
caram-nos em seus templos. A armadura foi os homens de Jabes-Gileade ficaram saben­
colocada no templo de sua deusa Astarote, e do da tragédia e organizaram uma missão
a cabeça no templo do deus Dagom. Por fim, de resgate. A primeira grande vitória do rei
exibiram em público os corpos mutilados de Saul havia sido a libertação de Jabes-Gileade
Saul e de seus filhos no muro externo de Bete- dos amonitas (1 Sm 11:1-11), de modo que
Seã, cidade controlada pelos filisteus no vale o povo da cidade sentiu a obrigação de vin­
de Jezreel. Para um israelita, deixar de rece­ dicar a memória de Saul. Todos os seus ho­
ber sepultamento adequado era tanto uma mens valentes percorreram durante a noite
humilhação quanto um sacrilégio, e ter o cor­ o caminho de vinte e cinco a trinta quilôme­
po mutilado e depois exibido era ainda mais tros até a cidade de Bete-Seã e tomaram os
escandaloso. Os filisteus estavam declaran­ quatro corpos mutilados e em decomposi­
do a seu povo e a seus ídolos que haviam ção. A fim de fazer essa viagem, tiveram de
conquistado uma grande vitória sobre seu atravessar o rio Jordão e de passar por terri­
maior inimigo, o povo de Israel. Dagom ha­ tório inimigo. Saul não havia sido um líder
via triunfado sobre Jeová! espiritual, mas foi um comandante corajoso
Sau l perdeu a coroa (2 Sm 1:1-10). O e o primeiro rei de Israel. Mesmo que não
relato da morte de Saul transmitido a Davi sejamos capazes de respeitar o homem,
pelo amalequita foi, em grande parte, uma devemos demonstrar respeito por seu cargo.
mentira. O homem viu-se "por acaso" no Os homens arriscaram a vida novamente
local da batalha - o que, na verdade, signifi­ e levaram os corpos para Jabes-Gileade. Lá,
cava que se encontrava no local para rou­ cremaram os corpos para remover a carne
bar os despojos - e tomou duas insígnias mutilada e decomposta e deixaram os ossos
reais do corpo de Saul. Não dera o golpe de para que fossem sepultados. Essa cremação
misericórdia em Saul, pois o rei havia tirado não foi realizada por uma questão de tradi­
a própria vida e já estava morto quando o ção, pois os israelitas não costumavam cre­
homem chegou. Depois de remover a coroa mar os mortos. Em casos de emergência,
1 SA M U E L 28:3-25;. 31; 1 C R Ô N IC A S 10 287

queimavam-se corpos mutilados e decom­ Em várias ocasiões, Saul julgou causas


postos a ponto de não poderem ser devida­ sob uma árvore em Ramá (1 Sm 22:6), e foi
mente lavados e ungidos para o enterro, de sepultado junto com seus filhos sob uma
modo que os ossos recebessem sepultamen- árvore próxima a Jabes-Gileade. Posterior­
to digno. Depois que o povo de Jabes- mente, Davi exumou os ossos de Saul e de
Gileade sepultou os ossos, os habitantes da Jônatas e providenciou para que fossem se­
cidade jejuaram por sete dias, num tributo a pultados no túmulo de sua família em
Saul e a seus filhos. Benjamim (2 Sm 21:13, 14).

1. Não há contradição alguma entre 1 Samuel 2 8 :6 : "Consultou Saul ao S e n h o r " e 1 Crônicas 10:13, 14: "consultara uma

necromante e não ao S e n h o r" . São empregadas duas palavras hebraicas diferentes. Em 1 Samuel 2 8, o termo usado é sha'al,

que significa "pedir, solicitar" e, em 1 Crônicas 10, o termo usado é daresh, que significa "buscar com cuidado". De fato, Saul

pediu ajuda, mas não o fez com um coração sincero nem buscou o auxílio de Deus constantemente como Davi e Samuel. Viu-

se em apuros e, portanto, clamou ao Senhor.

2. Os hebreus usavam o termo sheol para descrever a cova, em si, e também o reino dos mortos. O termo equivalente em grego

é hades. Os corpos tanto dos que são salvos quanto dos que não o são vão para a cova, mas as almas têm destinos diferentes.

Lucas 16:19-31 dá a entender que o sheol / hades era dividido em duas áreas: um lugar de descanso e de bênçãos para os

justos e outro de sofrimento para os perversos. Em sua ascensão, Cristo esvaziou a parte equivalente ao paraíso e levou essas

almas consigo para o céu. Hoje, quando os cristãos morrem, vão imediatamente para a presença do Senhor (2 Co 5:1-8).

No julgamento do grande trono branco, o hades será esvaziado dos espíritos de perdidos e a cova entregará os corpos (Ap

20:11-18). Os que não são salvos serão considerados culpados e lançados no inferno, o lago de fogo. Hades é a "casa de

detenção", mas o inferno é a "penitenciária" de onde ninguém foge.

3. Saul é um dos sete homens nas Escrituras que tirou a própria vida: Abimeleque (Jz 9:54); Sansão (Jz 16:26*30); Saul (1 Sm

31:4); o escudeiro de Saul (1 Sm 31:5); Aitofel {2 Sm 17:23); Zinri (1 Rs 16:18); e Judas (M t 27:6).
começou com Ana, uma mulher humilde
J3_ cuja submissão e fé em Deus são um exem­
plo a ser seguido.

Q uatro S ucesso s e 1. A na , u m a m u l h e r p ie d o s a
O nome Ana significa "graça", e, sem dúvi­
T rês F r a c a s s o s
da, ela fez jus a seu nome. Deus lhe deu a
R ecapitulação de 1 S amuel graça de que precisava para suportar os in­
sultos que sofria de Penina, a segunda espo­
sa de Elcana, bem como a vergonha e a dor
de não ter filhos. Recebeu a graça necessá­
ria para falar de modo bondoso e amável

Q
uando Benjamim Franklin, estadista com aqueles que não a entenderam e criti­
norte-americano, assinou a Declaração caram (Cl 4:6). Deus lhe deu a graça de con­
de independência, no dia 4 de julho de ceber um filho, de consagrá-lo ao Senhor e,
1776, fez o seguinte comentário: "Devemos depois, de cantar sobre o que havia feito! O
permanecer unidos ou, sem dúvida alguma, cântico de Ana foi tão lindo e cheio de sig­
seremos, um a um, eliminados". O caminho nificado que Maria o tomou emprestado
percorrido desde a assinatura de um do­ quando louvou ao Senhor por sua graça para
cumento até a conquista da unidade nacio­ com ela (Lc 1:46-55).
nal foi longo e árduo, mas, a seu tempo, os Ana era uma mulher de "fé e longanimi­
Estados Unidos da América surgiram no ce­ dade" (Hb 6:12), que se entregou a Deus,
nário político, onde se encontram desde pediu um filho e esperou no Senhor que ele
então. Seus dois lemas resumem o milagre respondesse a seu modo e em seu tempo.
realizado: "E pluribus unum: De muitos, um Foi paciente em casa, enquanto suportava
só" e "Em Deus confiamos". O primeiro lema os ataques verbais de Penina, e foi paciente
refere-se ao que aconteceu, e o segundo, à com Eli, quando ele a acusou falsamente de
maneira como isso ocorreu. estar embriagada. Para sua felicidade, teve
A nação de Israel tinha diante de si de­ um marido dedicado que a amou e que a
safio semelhante. Depois da morte de Josué, encorajou a obedecer ao Senhor. Houve
Israel se transformara, gradualmente, numa momentos em que a vida foi muito difícil
nação dividida. Em vez de confiar no Senhor, para Ana, mas ela perseverou em fé, espe­
os israelitas começaram a adorar os deuses rança e amor e, por fim, alcançou a vitória.
de seus vizinhos pagãos, e os laços espiri­ Ana percebeu aquilo que muitos de nós
tuais que uniam as tribos começaram a en­ esquecemos: Deus trabalha na vida de "pes­
fraquecer e a romper-se. Logo, cada um fazia soas comuns" e por intermédio delas para
o que lhe parecia melhor, sem qualquer con­ cumprir seus propósitos. O Senhor não pe­
sideração pela aliança firmada com o Senhor. diu a Ana que comandasse um exército,
Então, o povo pediu um rei, alguém que como fez com Débora (Jz 4 - 5), nem que
unisse a nação e conduzisse o exército à intercedesse junto a um rei, como fez com
vitória. Deus atendeu ao pedido e lhes deu Ester. Simplesmente, pediu-lhe que atendes­
Saul, mas não o fez para resolver os proble­ se ao desejo do seu coração e que desse à
mas do povo, e sim para provar aos israelitas luz um filho. "Agrada-te do S e n h o r , e ele sa­
que sua maior necessidade era confiar em tisfará os desejos do teu coração" (SI 37:4).
Deus e obedecer à sua Palavra. Foi somente Tudo o que Ana queria era ser uma mulher
quando Davi entrou em cena que os aconte­ consagrada a Deus e obediente a sua von­
cimentos nacionais começaram a tomar ou­ tade. Desse modo, ajudou a salvar a nação
tro rumo, surgindo uma luz no fim do túnel. de Israel.
Davi foi ungido por Samuel, filho de Há tanta traição, matança e confusão
Elcana e de Ana, de modo que a história registradas em 1 Samuel que é animador
1 SA M U EL 289

encontrar, logo no início do livro, uma mu­ lhe aprouver" (1 Sm 3:18). Não é fácil deter­
lher que representa o que Deus tem de minar se essa declaração foi uma confissão
melhor para dar. Os líderes de Israel haviam de resignação impotente ou uma submissão
fracassado, de modo que Deus procurou honrável, mas não devemos julgar Eli sem
uma mulher que pudesse usar para ajudar a saber de todos os fatos. Ao ver Deus ope­
trazer a verdade, a paz e a ordem a seu povo. rando na vida do jovem Samuel, é bem pro­
Ela serviu a Deus sendo simplesmente uma vável que Eli o tenha incentivado e orado
mulher fazendo o que uma mulher poderia por ele. Não há registro algum de que inve­
fazer: dar à luz um bebê e consagrando essa jasse o menino pelo fato de as mensagens
criança ao Senhor. de Deus estarem sendo transmitidas por
"Faz que a mulher estéril viva em família intermédio dele. Bem-aventurados são os
e seja alegre mãe de filhos. Aleluia!" (SI cristãos mais idosos que ajudam a nova ge­
113:9). ração a conhecer a Deus e a viver para ele!
Por mais que Eli tenha fracassado com rela­
2. E li, u m sac erd o te c o n d esc en d en t e ção aos filhos, ajudou Samuel a tomar o rumo
Eli foi um pai tolerante que, por vezes, re­ certo, algo que beneficiou toda a nação.
preendeu os filhos pelos pecados que co­ O último dia do ministério de Eli foi difí­
metiam, mas que não tomou providências cil: seus dois filhos morreram, a arca da alian­
para disciplinar esses homens e, muito me­ ça foi capturada pelo inimigo e sua nora
nos, para colocar outros em seu lugar. O faleceu dando à luz um filho, Icabô, "foi-se
trabalho do tabernáculo seguia certa rotina, a glória de Israel". Porém, Deus ainda esta­
mas não havia qualquer poder espiritual evi­ va assentado no trono, e o jovem Samuel
dente nem uma palavra vivificadora do Se­ continuava se preparando para preencher a
nhor. O retrato que vemos de Eli é de um brecha e para exercer liderança espiritual
homem obeso, idoso, assentado em sua sobre Israel. Eli não havia sido um grande
cadeira especial, enquanto dirigia o taberná­ líder espiritual, mas foi um pequeno elo na
culo, fingindo, entrementes, não ver o que cadeia que levou à unção de Davi e, por
se passava a seu redor e fazendo ouvidos fim, ao nascimento do Redentor.
moucos ao que escutava. Era o líder da reli­
gião de Israel e precisava desesperadamen­ 3. S a m u e l , u m ser v o fiel
te de uma experiência revigorante com o Samuel nasceu numa época em que a na­
Senhor. ção e sua religião encontravam-se encalha­
No entanto, foi louvável o sacerdote ter das numa poça de água parada, mas logo
abençoado o pedido de oração de Ana (1 Sm ele se viu tentando navegar em meio a um
1:17) e ter recebido de braços abertos o mar tempestuoso. Havia um clima de mu­
pequeno Samuel, quando ela o consagrou dança no ar, e os sacerdotes eram treinados
ao Senhor. Os filhos de Eli não eram a me­ a proteger a tradição, não a promover trans­
lhor companhia para um menino inocente, formações. Os líderes israelitas queriam um
mas o Senhor e Eli cuidaram para que Sa­ rei, alguém que pudesse unificar o povo e
muel não fosse contaminado. Eli ensinou a protegê-lo das nações a seu redor. Samuel
Samuel as verdades da Palavra de Deus e o considerou essa atitude um desprezo à so­
instruiu quanto ao trabalho e os costumes berania de Jeová, mas o Senhor instruiu-o a
do tabernáculo. Samuel nasceu no sacerdó­ fazer o que o povo estava pedindo e ungir
cio, mas, posteriormente, Deus o chamou Saul como rei. Samuel esforçou-se ao máxi­
para ministrar como profeta e juiz. mo para informar o povo sobre como seria
Ainda podemos elogiar outra atitude de a vida sob um regime monárquico, mas, ao
Eli. Quando o Senhor enviou sua mensagem que parece, suas palavras não fizeram dife­
ao jovem Samuel, Eli aconselhou o menino rença alguma.
a escutar a mensagem e a sujeitar-se à von­ Pela votação do povo, Samuel havia sido
tade de Deus. "É o S e n h o r ; faça o que bem deposto de sua posição de juiz, mas ainda
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era o sacerdote e profeta de Deus e ajudou o dinheiro antes do ministério. A única man­
Saul a começar bem seu reinado. Samuel cha em sua reputação foi a cobiça de seus
conduziu Israel a uma renovação de sua dois filhos, que usaram o ministério deles
aliança com o Senhor. Quando Saul liber­ para encher os próprios bolsos. As Escrituras
tou o povo de Jabes-Gileade, Samuel fez um não dizem coisa alguma sobre a esposa de
discurso comovente de despedida, no qual Samuel, de modo que talvez tenha morrido
prometeu orar pela nação. Porém, não de­ jovem, privando os filhos de seus cuidados
morou a ficar evidente que Saul não pos­ e de sua instrução no temor do Senhor. Sa­
suía qualquer discernimento espiritual e que muel se ausentava de casa com freqüência,
estava usando o reinado para sua autopro­ ao percorrer o circuito que havia determina­
moção, não para ajudar o povo. Mentiu do para seu ministério, e é possível que os
sobre sua desobediência deliberada, perdeu meninos tenham passado tempo demais
o reino e mandou Samuel de volta para casa, sozinhos. De nada adianta criticar a história
em Ramá, com o coração partido. depois que já sabemos seu fim. Porém, de­
Os verdadeiros agentes de transformação pois de ver o que Samuel fez por Davi, tal­
não ficam parados reclamando e lembrando vez possamos perdoá-lo por aquilo que
os bons e velhos tempos. Quando Deus dis­ deixou de fazer pelos filhos.
se a Samuel para ir a Belém ungir um novo
rei, o profeta arriscou a vida e obedeceu. Foi 4. S a u l , u m rei instável
quando Davi entrou em cena. As Escrituras O maior problema de Saul era sua falta de
não dizem que instruções Samuel deu a Davi, alicerces espirituais sobre os quais construir
mas o profeta reconheceu que a mão de Deus uma vida piedosa. Ainda que fosse mais alto
estava sobre o menino e, sem dúvida, o ensi­ do que todo o resto do povo a seu redor,
nou sobre o Senhor e seu povo. Samuel foi o não passava de um anão, se comparado com
elo vivo de Deus entre o passado e o futuro Davi ou mesmo com seu filho Jônatas. Essa
de Israel e desempenhou com eficiência seu falta de experiência espiritual levou à sua se­
papel. Demonstrou sua amizade por Davi gunda deficiência: falta de confiança em si
quando o futuro rei estava em perigo, orou mesmo e no Senhor. A fim de encobrir essa
por ele e creu que Deus cuidaria dele. falha, o rei adotou um estilo de liderança ali­
Samuel é um exemplo para todos os cris­ mentado por seu ego e que mantinha todos
tãos de mais idade que têm a tendência de a seu redor em estado permanente de medo.
glorificar o passado e de resistir às mudan­ No início de seu reinado, quando deveria
ças no presente, tendo perdido a esperança encorajar o povo, escondia-se no meio da
no futuro. Sem abandonar o passado, Samuel bagagem! No entanto, durante seu reinado,
aceitou as transformações, esforçando-se ao manteve sempre consigo sua lança, não ape­
máximo para que tudo desse certo e, quan­ nas para se proteger, mas para lembrar a to­
do isso não aconteceu, confiou que Deus dos quem era o chefe. Acreditou em todas
traria um futuro melhor. Deus não abando­ as mentiras sobre Davi que lhe davam mo­
nou o reino, mas simplesmente escolheu um tivo para juntar seus soldados contra ele,
homem melhor do que Saul para colocar à esquecendo as necessidades de sua nação.
frente, e Samuel ajudou a instruir esse ho­ Davi não entrou em cena criando pro­
mem. Todo líder precisa de um Samuel, al­ blemas, mas apenas os trazendo à luz. Um
guém em contato com Deus, que confira o homem inseguro como Saul não conseguia
devido valor ao passado, mas que esteja dis­ suportar concorrência e competência e, por­
posto a seguir o Senhor até uma nova era, tanto, considerou Davi seu inimigo. O povo
uma pessoa de fé e coragem que veja a mão amava a Davi e o respeitava, o que serviu
de Deus operando onde os outros enxer­ apenas para fazer a paranóia de Saul cres­
gam apenas confusão. cer ainda mais rapidamente. O rei tornou-se
A consciência de Samuel não estava à ven­ um homem de mente dobre, "inconstante
da, e ninguém poderia acusá-lo de colocar em todos os seus caminhos" (Tg 1:8). Por
1 SA M U EL 291

um lado, perseguia Davi e tentava matá-lo pastor".2 Empunhou sempre uma lança, mas
e, por outro, chorava quando via Davi ou nunca segurou o cajado de pastor.
ouvia sua voz e tentava parecer arrependi­ Quando Deus chama as pessoas para
do e pesaroso. Seu coração era o solo raso servir, conhece sua capacidade de realizar
da parábola que Jesus contou sobre o Se­ o trabalho que coloca diante delas e jamais
meador. Não havia profundidade alguma, as as abandona, desde que creiam e obede­
lágrimas eram temporárias e nenhum fruto çam. Foi aí que Saul fracassou. Quando Deus
duradouro aparecia. é deixado de fora da equação, a resposta é
Por mais paradoxal que pareça, foi seu sempre zero.
sucesso que contribuiu para a ruína de Saul. Séculos depois, outro homem de nome
Charles de Gaulle, ex-presidente da França, parecido entrou em cena: Saulo de Tarso,
disse certa vez que: "o sucesso contém em que logo ficou conhecido como Paulo, "o
si a semente do fracasso e vice-versa". Essas pequeno".3 Ele declarou ser "o menor de
sementes de fracasso são plantadas pelas todos os santos" (Ef 3:8), em contraste gri­
mãos do orgulho, e o orgulho era um dos tante com o Saul do Antigo Testamento, com
pecados recorrentes de Saul. De uma hora toda sua estatura e porte físico vigoroso. O
para a outra, foi forçado a deixar o trabalho rei Saul se matou no campo de batalha, en­
previsível de lavrador e de criador de reba­ quanto Saulo morreu como um mártir fora
nhos para se dedicar ao trabalho imprevisível da cidade de Roma. Pouco antes de sua
de rei, responsabilidade para a qual não es­ morte, Saulo/Paulo escreveu a Timóteo:
tava preparado. O Senhor o teria ajudado, "Combati o bom combate, completei a car­
como fez com Moisés, Josué e Cideão, mas reira, guardei a fé" (2 Tm 4:7).
Saul escolheu fazer as coisas a sua maneira. Dez segundos depois de morrer, o rei
Quando o sucesso vem antes de estarmos Saul deve ter desejado poder dizer as mes­
preparados, pode nos destruir e tomar de mas palavras.
nós aquilo que constitui o verdadeiro su­
cesso. Saul não soube distinguir entre uma 5. J ôn atas , u m a m ig o g e n e r o s o
coisa e outra. Ceorge Matheson, pregador e compositor
Quando Saul fracassava, aprendeu a in­ inglês, estava certo quando chamou Jônatas
ventar desculpas em vez de confessar seus de "arco-íris em meio à tempestade".4 Não
erros, o que serviu apenas para enredá-lo encontramos Jônatas proferindo uma só pala­
ainda mais em suas mentiras. Sua vida e ser­ vra pessimista nem questionando a capaci­
viço real foram parte de uma triste farsa dade de Deus de levar a cabo aquilo que
aplaudida por bajuladores e abominada pelo precisava ser feito. Ele e seu escudeiro enfren­
Senhor. Saul não deu ouvidos a Moisés, a taram um posto avançado filisteu e venceram.
Samuel, a Jônatas nem a Davi, e uma vez Jônatas desafiou abertamente as instruções
que havia rejeitado a Palavra de Deus, a absurdas do pai e ensinou a seus soldados
única voz que lhe restou foi a do diabo. uma lição sobre a conduta militar correta.
"Não conheço personagem mais triste do Arriscou a vida para ajudar Davi a fugir e,
que Saul quando Deus o deixou", disse Charles depois, foi encontrar-se com ele no exílio, a
Haddon Spurgeon. "Mas, de algum modo, fim de poder animá-lo. Herdeiro natural do
não haveria angústia na alma de Saul que per­ trono, Jônatas despojou-se de suas vestes reais
sistisse se houvesse, verdadeiramente, conhe­ e de sua armadura, entregando-as a Davi.
cido o Senhor. Não creio que chegou a co­ Jônatas não se importava de ser o segun­
nhecer a Deus no mais íntimo de sua alma. do no poder. Amava Davi, e o amor sempre
Depois que Samuel o ungiu, Saul se 'transfor­ coloca as outras pessoas em primeiro lugar.
mou em outro homem', mas nunca veio a Jônatas fez uma aliança com Davi de acordo
ser um novo homem..."1 Nas palavras de C. com a qual se tornaria co-regente quando
Campbell Morgan: "No governo de Israel, foi Davi subisse ao trono, promessa que, infe­
um guerreiro e nada mais; Saul jamais foi um lizmente, Davi não pôde cumprir. Jônatas
292 1 SA M U EL

amou seu pai e sua nação até o fim e mor­ maior honra para ele - mais elevada do que
reu no campo de batalha, enquanto tentava a de ser rei - era ser servo do Senhor e cum­
defender o rei e o país. É triste que um prín­ prir os propósitos divinos na terra.
cipe tão nobre tenha morrido por causa da Primeiramente, Deus treinou Davi na
péssima liderança do pai, mas Deus não solidão, enquanto o rapaz cuidava do reba­
queria a linhagem de Saul e de Davi ocupan­ nho. No momento certo, trouxe-o para o
do a sala do trono ao mesmo tempo. primeiro plano e continuou a prepará-lo por
Jônatas deixou para trás um belo exem­ meio do sofrimento. Alguns de seus irmãos
plo do que a verdadeira amizade deve ser: o criticaram, o rei tentou matá-lo e os corte­
honesta, afetuosa, disposta a sacrificar-se em sãos mentiram a seu respeito, mas Davi le­
busca do bem-estar dos outros e sempre tra­ vou uma vida aberta diante do Senhor e
zendo esperança e ânimo quando a situa­ nunca olhou para trás. Não foi perfeito, nem
ção é difícil. Jônatas não conseguiu obter afirmou, em momento algum, que fosse, mas
uma coroa na terra, mas, sem dúvida, rece­ seu coração estava determinado, e seu de­
beu uma coroa no céu. "Sê fiel até à morte, sejo mais ardente era glorificar a Deus e
e dar-te-ei a coroa da vida" (Ap 2:10). completar seu trabalho.
Apesar de ter, ocasionalmente, vacilado
6. D avi , u m pastor c o r a jo s o em meio às dúvidas, Davi creu nas promes­
Oitavo filho e caçula da família, Davi tinha sas de Deus e nunca deu lugar à increduli­
tudo para viver e morrer no anonimato, mas dade. A dúvida é uma recaída temporária
foi um homem segundo o coração de Deus, do coração, mas a incredulidade é uma re­
e o Senhor colocou sua mão sobre ele. É pena beldia permanente da volição, e disso Davi
que, ao ouvir seu nome, as pessoas se lem­ jamais foi culpado. Mesmo durante o tem­
brem imediatamente de seu pecado com po em que permaneceu em território inimi­
Bate-Seba e do assassinato do marido dela, go, buscou maneiras de realizar algo para
pois, por mais terríveis que sejam esses peca­ fazer avançar o reino de Deus.
dos, Davi foi um grande homem e serviu a Davi foi uma combinação singular de
Deus de forma extraordinária. Também deve­ soldado e pastor, músico e tático militar, co­
mos nos lembrar de como ele construiu e pro­ mandante e homem comum. Apesar de seus
tegeu o reino de Israel, dos muitos salmos que pecados e falhas - que, aliás, todos nós te­
escreveu e dos sacrifícios que fez no campo mos-, foi o maior rei de Israel e sempre o
de batalha para juntar riquezas a fim de cons­ será, até que o Rei Jesus venha reinar no tro­
truir o templo. Deus perdoou Davi, e o rei no de Davi como Príncipe da Paz. Da próxi­
pagou caro por seus pecados, mas o Senhor ma vez que nos sentirmos tentados a enfatizar
jamais o desprezou nem recusou seu servi­ os aspectos negativos da vida de Davi, deve­
ço dedicado. "Assim, pois, cada um de nós mos nos lembrar de que Jesus não teve ver­
dará contas de si mesmo a Deus" (Rm 14:12). gonha de ser chamado "Filho de Davi".
Davi era um homem com sede de Deus. Quatro sucessos: Ana, uma dona de
Invejava os sacerdotes por terem o privilé­ casa; Samuel, profeta e sacerdote; Jônatas,
gio de habitar na casa do Senhor e de viver príncipe e amigo; e Davi, pastor.
perto de sua presença. No entanto, viu Deus Dois fracassos: Eli, sacerdote, e Saul, rei.
nas montanhas e rios tanto quanto em seu E o Senhor continua a nos dizer: "Per­
santuário e ouviu a voz de Deus no trovão. mita que Jesus seja o rei de sua vida. Seja
Para Davi, Deus estava por toda parte, e a bem-sucedido!"

1. Metropolitan Tabernacle Pulpit, vol. 48, p. 521.


2. The Westminster Pulpit, vol. 9, p. 17.
3. O nome "Paulo" vem do latim paulus, que significa "diminuto, pequeno".

4. M atheson , George. Representative Men of the O ld Testament: Ishmael to Daniel. Hodder and Stoughton, 1900, p. 173.

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