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Capa: FBA
CDU 172
Paginação:
João Félix – Artes Gráficas
Impressão e acabamento:
?????
EDIÇÕES 70
em
Setembro de 2017
(1997)
ISBN: 978-972-44-2019-6
ISBN da 1.ª edição: 972-44-0945-7
www.edicoes70.pt
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Prefácio
acima do nível conflitual das massas que podem tornar-se para elas
pontos de referência e de identificação.
Uma contradição, de três anos antes, entre o Freud da carta e o
Freud do mal-estar da civilização, foi apropriadamente sublinhada
por Erich Fromm. Num e noutro texto, Freud cita o preceito evan-
gélico: «Amar o próximo como a nós mesmos». Mas enquanto em
1929 tinha demonstrado a inconsistência deste preceito, porque está
contra qualquer princípio da razão, na carta, depois de ter citado
as palavras evangélicas, acrescenta que «a psicanálise não precisa
de se envergonhar» ao falar de amor. A variação poderia ser, como
afirma o notável comentador, o sintoma de uma incoerência entre o
cientista e o humanista, entre a mera dedução doutrinal e a autono-
mia da intuição provocada pela extrema seriedade do assunto. Freud
reconhece-se pacifista, como Einstein, porque necessita de «razões
orgânicas», que são mais fortes do que as argumentações da ciência.
Por isso, a última parte da sua carta é atravessada por uma suges-
tiva ambivalência, por uma inquietante oscilação entre o reconheci-
mento da fatalidade da guerra e o reconhecimento da possibilidade
de a eliminar para sempre da história do homem. Há uma passagem
à qual gosto de atribuir uma grande importância argumentativa: a
guerra, diz ele, «na forma que está destinada a assumir no futuro,
por causa do aperfeiçoamento dos meios de destruição, significaria
o extermínio de um, ou talvez de ambos os contendores». Se isto
é verdade, as duas funções típicas da civilização — «o reforço do
intelecto» e «a interiorização da agressividade», que podem ser
dirigidos a objetivos diferentes dos da guerra — poderiam também
encontrar, na qualidade modificada dos conflitos armados, o ponto
de apoio para uma transformação da dialética inconsciente pela qual
somos governados.
O facto é que «o aperfeiçoamento dos meios de destruição»,
hipótese posta por Freud em 1932, se verificou para além de qual-
quer possível previsão treze anos depois, nos laboratórios de Los
Alamos, onde foi fabricada a bomba que um mês depois seria expe-
rimentada no Japão. Desde então, a equação entre guerra e exter-
mínio universal atingiu foros de evidência científica e tornou-se
uma perceção geral. O tradicional lugar de confronto, até à última
P refácio 15
Ernesto Balducci
Apresentação
vida. Basta citar, junto aos dois primeiros escritos inseridos neste
volume, os importantíssimos ensaios teóricos reunidos sob o título
Metapsicologia.
O Considerações atuais sobre a guerra e a morte, escrito na
primavera de 1915 e publicado na revista «Imago» com o título
Zeitgemässes über Krieg und Tod, contém as reflexões de Freud
sobre os dois temas estreitamente inter-relacionados, cuja análise os
tempos sugeriam com dramática urgência. Já em 28 de dezembro de
1914, numa carta endereçada ao psicopatologista holandês Frederik
Van Eden, Freud recordara a trágica atualidade de duas importantes
asserções psicanalíticas; a primeira diz respeito à inextirpabilidade
dos «Impulsos primitivos selvagens e perversos da humanidade»,
a segunda à impossibilidade de o intelecto — «brinquedo e instru-
mento das nossas pulsões e dos nossos afetos» — os domar eficaz-
mente: «Repare naquilo que está a acontecer nesta guerra, repare
em quantas crueldades e injustiças se tornam responsáveis as nações
mais civilizadas, a má-fé com que se agarram às próprias mentiras e
iniquidades; e repare, enfim, como todos perderam a capacidade de
um julgamento sereno: teremos de admitir que ambas as asserções
da psicanálise eram exatas.» As argumentações contidas na primeira
«Consideração» retomam e ampliam estes temas à luz das aquisi-
ções da teoria psicanalítica desenvolvida sobretudo nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (1905) e em A Moral sexual e o nervo-
sismo moderno (1908). A tremenda desilusão provocada pela guerra
nos espíritos livres — acostumados a encarar com confiança serena
os destinos futuros da civilização ocidental — revela-se assim fruto
de uma ilusão perigosa, que teima em interpretar mal e ignorar a
verdadeira natureza das paixões humanas. Despontam aqui pela pri-
meira vez alguns temas de sucessivas e mais amplas reflexões sobre
os problemas da sociedade e da cultura contemporâneas: Psicologia
das massas e análise do Eu (1921), O futuro de uma ilusão (1927),
O mal-estar da civilização (1929).
tanto quanto eu de física, razão pela qual a nossa conversa foi muito
agradável.» E tinha escrito a Maria Bonaparte: «Aquele tipo tem
tido muito mais sorte do que eu; depois de Newton encontrou apoio
numa longa série de grandes predecessores; ao contrário, eu fui
obrigado a abrir clareiras sozinho numa selva intrincadíssima. Não
é por isso de admirar que o meu caminho não seja muito comprido
e que não tenha ido muito longe (3).
(6) Ibid.
(7) Einstein refere-se a Moisés e a religião monoteísta (1934-38).
Sigmund Freud
CONSIDERAÇÕES ATUAIS
SOBRE A GUERRA E A MORTE
(1915)
I
expressão das opiniões, que deixa sem defesa o ânimo dos assim
intelectualmente oprimidos face a toda a situação desfavorável e a
todo o boato desastroso. Desliga-se das garantias e dos convénios
que o vinculavam aos outros Estados, confessa abertamente a sua
avareza e a sua ânsia de poder que, em seguida, o indivíduo deve
sancionar por patriotismo.
Não se objete que o Estado não pode renunciar ao uso da
injustiça, porque se colocaria assim em situação desvantajosa.
Também para o indivíduo a adesão às normas morais, a renúncia
ao emprego brutal do poder é, em geral, muito desvantajoso, e o
Estado só raramente se mostra capaz de compensar o indivíduo
pelo sacrifício que dele exigiu. Não há também que espantar-se de
que o relaxamento de todas as relações morais entre os povos da
humanidade tenha suscitado uma ressonância na moralidade dos
indivíduos, pois a nossa consciência moral não é o juiz incorrup-
tível que os moralistas supõem; na sua origem, é apenas «angús-
tia social» e nada mais. Onde a comunidade se abstém de toda
a reprovação, cessa também a opressão dos maus impulsos, e os
homens cometem atos de crueldade, de malícia, de traição e bru-
talidade, cuja possibilidade se teria considerado incompatível com
o seu nível cultural.
Por isso, o cidadão do mundo civilizado, a que antes aludi,
encontra-se perplexo num mundo que se lhe tornou estranho, vendo
arruinada a sua pátria mundial, assoladas as possessões comuns
e divididos e rebaixados os seus concidadãos!
Haveria que submeter a uma consideração crítica tal deceção.
Em rigor, ela não é justificada, pois consiste na destruição de uma
ilusão. As ilusões são-nos gratas porque nos poupam sentimentos
displicentes e, em seu lugar, nos deixam gozar de satisfações. Mas
então devemos aceitar sem queixa que alguma vez embatam num
troço de realidade e se reduzam a frangalhos.
Duas coisas suscitaram nesta guerra a nossa deceção: a escassa
moralidade exterior dos Estados, que internamente se comportam
como guardiões das normas morais, e a brutalidade do comporta-
mento dos indivíduos, dos quais, como participantes na mais ele-
vada civilização humana, não se esperara coisa semelhante.
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 31
era-lhe todavia grata, pois em cada uma das pessoas amadas havia
também um elemento estranho. A lei da ambivalência dos sentimen-
tos, que ainda hoje domina as nossas relações sentimentais com as
pessoas por nós amadas, tinha decerto um domínio ainda mais irres-
trito nos tempos primitivos. Os mortos amados eram, no entanto,
também estranhos e inimigos, que tinham nele suscitado uma cota-
-parte de sentimentos hostis (5).
Os filósofos afirmaram que o enigma intelectual, proposto ao
homem primordial pela imagem da morte, o forçou à reflexão, e se
tornou o ponto de partida de toda a especulação. Creio que os filó-
sofos pensam a este respeito de um modo demasiado filosófico, têm
em muito pouca consideração os motivos primariamente eficazes.
Terei, pois, de restringir e de corrigir a afirmação anterior: diante
do cadáver do inimigo vencido, o homem primordial terá saboreado
o seu triunfo sem encontrar estímulo algum para pôr a sua cabeça
em água a propósito do enigma da vida e da morte. O que desa-
tou a indagação humana não foi o enigma intelectual, nem sequer
qualquer morte, mas o conflito sentimental que surgiu na morte das
pessoas amadas e, todavia, também estranhas e odiadas. Foi deste
conflito sentimental que nasceu a psicologia. O homem já não podia
manter de si afastada a morte, pois a experimentara na dor pelos
seus mortos; mas não a queria reconhecer, já que lhe era impossí-
vel imaginar-se morto. Chegou assim a um compromisso: admitiu a
morte também para si, mas contesta a significação da aniquilação da
vida, coisa para a qual lhe tinham faltado motivos perante a morte
do inimigo. Na presença do cadáver da pessoa amada, o homem
primordial inventou os espíritos, e o seu sentimento de culpabili-
dade pela satisfação que se mesclava com a dor fez que estes espí-
ritos primigénios se tornassem demónios perversos, que importava
recear. As transformações da morte sugeriram-lhe a dissociação do
indivíduo num corpo e numa alma — originariamente várias; o seu
caminho mental seguiu deste modo uma trajetória paralela ao pro-
cesso de desintegração que a morte inicia. A recordação duradoira
dos mortos tornou-se o fundamento da suposição de outras formas
para o resguardar do ódio que, por trás dele, está à espreita. Pode
dizer-se que as mais belas florações da nossa vida amorosa as deve-
mos à reação contra o impulso hostil, que percebemos no nosso
peito.
Em resumo: o nosso inconsciente é tão inacessível à represen-
tação da morte própria, tão sanguinário contra os estranhos e tão
ambivalente quanto à pessoa amada como o homem da Pré-história.
Mas quanto nos afastámos deste estado primitivo na nossa atitude
cultural e convencional face à morte!
É fácil dizer como a guerra interfere nesta dicotomia. Despoja-
-nos das ulteriores sobreposições da cultura e deixa de novo vir em
nós ao de cima o homem primitivo. Obriga-nos novamente a ser
heróis que não podem acreditar na sua própria morte; apresenta-
-nos os estranhos como inimigos, a quem devemos dar ou desejar
a morte; aconselha-nos a sobrepor-nos à morte das pessoas ama-
das. Mas é impossível acabar com a guerra: enquanto as condições
de existência dos povos forem tão distintas e as repulsas entre eles
tão violentas, terá de haver guerras. E surge então a pergunta: não
devemos ser nós os que cedem e a ela se ajustam? Não devemos nós
confessar que, com a nossa atitude cultural perante a morte, vivemos
psicologicamente acima da nossa condição e deveremos, portanto,
renunciar à mentira e declarar a verdade? Não seria melhor atribuir
à morte, na realidade e nos nossos pensamentos, o lugar que lhe
compete e deixar vir um pouco mais à superfície a nossa atitude
inconsciente diante da morte, que até agora tão cuidadosamente
reprimimos? Isto não parece constituir um progresso, mas, em cer-
tos aspetos, uma regressão; oferece, todavia, a vantagem de ter mais
em conta a veracidade e de tornar novamente mais suportável a vida.
Suportar a vida é, e será sempre, o primeiro dever de todos os viven-
tes. A ilusão torna-se sem valor, quando de tal nos impede.
Recordamos a antiga sentença: Si vis pacem, para bellum.
Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra.
Seria oportuno modificá-la assim: Si vis vitam, para mortem.
Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.
Sigmund Freud
CADUCIDADE
(1915)
Passeava eu, há algum tempo, pelos campos floridos de verão,
na companhia de um amigo taciturno e de um jovem mas já célebre
poeta que admirava a beleza da natureza envolvente, mas não conse-
guia alegrar-se por causa dela, pois preocupava-o a ideia de que todo
este esplendor estava condenado a perecer, de que já no inverno
vindouro teria desaparecido, como toda a beleza humana e todos os
produtos belos e nobres que o homem criou ou poderia criar. Tudo o
que teria amado e admirado, se não se interpusesse esta circunstân-
cia, afigurava-se-lhe desprovido de valor em virtude do destino de
perecer a que estava condenado.
Sabemos que esta preocupação pelo caráter perecível do belo e
do perfeito pode originar duas tendências psíquicas distintas. Uma
leva ao amargado desgosto do mundo que o jovem poeta sentia; a
outra, à rebelião contra essa pretensa fatalidade. Não! É impossível
que todo esse esplendor da natureza e da arte, do nosso mundo senti-
mental e do mundo exterior, esteja realmente condenado a desapare-
cer no nada! Acreditar em tal seria demasiado insensato e sacrílego.
Tudo isso há de conseguir subsistir de algum modo, subtraído a toda
a influência que ameace aniquilá-lo.
Mas esta pretensão de eternidade atraiçoa com demasiada cla-
ridade a sua filiação nos nossos desejos para que possa reivindicar
54 P ORQUÊ A GUE RRA?
pessoas viram inibido o seu gozo do belo pela ideia da sua índole
perecível.
Ao leigo afigura-se tão natural a pena pela perda de algo amado
ou admirado que não hesita em qualificá-lo de óbvio e evidente.
Para o psicólogo, pelo contrário, esta aflição representa um grande
problema, um daqueles fenómenos que, embora também incógni-
tos, servem para reduzir a eles outras incertezas. Imaginamos assim
possuir uma certa capacidade amorosa — chamada «libido» — que,
no começo da evolução, se orientou para o próprio Eu, para mais
tarde — embora, na realidade, muito precocemente — se dirigir
para os objetos, que desta sorte ficam de certo modo incluídos no
nosso eu. Se os objetos são destruídos ou se os perdemos, a nossa
capacidade amorosa (libido) volta a ficar em liberdade, e pode tomar
outros objetos como substitutos, ou regressar transitoriamente ao eu.
Todavia, não conseguimos explicar — nem podemos a tal respeito
aventar hipótese alguma — porque é que o desprendimento da libido
dos seus objetos tem de ser, necessariamente, um processo tão dolo-
roso. Comprovamos apenas que a libido se aferra aos seus objetos e
que nem sequer quando já dispõe de novos sucedâneos se resigna a
desprender-se dos objetos que perdeu. Eis aqui, pois, a pena.
A proposta que me foi feita pela Sociedade das Nações e pelo seu
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual de Paris, de convi-
dar uma pessoa de minha escolha para uma troca franca de opiniões
sobre um problema qualquer também escolhido por mim, oferece-me
a feliz oportunidade de dialogar consigo em torno de uma pergunta
que parece, na presente condição do mundo, ser a mais urgente entre
todas aquelas que se põem à civilização. A pergunta é: existe uma
maneira de libertar os homens da fatalidade da guerra? É sabido que,
com o progredir da ciência moderna, responder a esta pergunta tor-
nou-se uma questão de vida ou de morte para a civilização por nós
conhecida; e no entanto, apesar de toda a boa vontade, nenhuma ten-
tativa de solução deu qualquer resultado v isível.
Penso também que aqueles a quem compete encarar o problema
profissional e praticamente, tornam-se dia a dia mais conscientes
da sua impotência, e têm hoje um vivo desejo de conhecer as opi-
niões de pessoas absorvidas pela pesquisa científica, as quais por
isso mesmo estão em condições de observar os problemas do mundo
60 P ORQUÊ A GUE RRA?
Muito cordialmente
Albert Einstein
Carta de Freud a Einstein
Sigmund Freud
CRONOLOGIAS
Cronologia de Sigmund Freud
Sigmund Freud
CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A GUERRA
E A MORTE (1915)
I – O desapontamento perante a morte . . . . . . . . . . . . . . 25
II – A nossa atitude diante da morte . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Sigmund Freud
CADUCIDADE (1915) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
CRONOLOGIAS
Cronologia de Freud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Cronologia de Einstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
COLEÇÃO BIBLIOTECA 70