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Título original:

Freud e Einstein: Riflessioni a due sulle sorte del Mondo


© do prefácio: Ernesto Balducci
© desta tradução: Edições 70, Lda.
Tradução: Artur Morão

Capa: FBA

Depósito Legal n.º ????

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

FREUD, Sigmund, 1856-1939, e outro

Porquê a guerra? – Reflexões sobre o destino do Mundo


Sigmund Freud, Albert Einstein – (Biblioteca 70)
ISBN 978-972-44-2019-6
I - EINSTEIN, Albert, 1879-1955

CDU 172

Paginação:
João Félix – Artes Gráficas

Impressão e acabamento:
?????

EDIÇÕES 70
em
Setembro de 2017
(1997)

ISBN: 978-972-44-2019-6
ISBN da 1.ª edição: 972-44-0945-7

EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A.


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Prefácio

Agora que, de acordo com a razão, a guerra já não é uma pos-


sibilidade, porque a arma atómica lhe retirou as definições que a
tornavam, pelo menos em hipótese, uma extrema ratio da justiça
(a representação de uma guerra atómica equivale agora à represen-
tação do genocídio da espécie) surge cada vez mais frequentemente
a pergunta sobre se, e de que modo, o homem está em condições de
suportar uma condição histórica que o impeça de investir — como
acontecia «providencialmente» com a guerra — o coeficiente de
agressividade presente na sua estrutura constitutiva. Há quem leve
a questão ainda mais fundo: é de todo infundada a hipótese de que,
em analogia com as mutações vividas na sua longa história, a espé-
cie humana, sob a provocação da ameaça radical do fogo atómico,
tenha entrado numa nova mutação que a liberte para sempre do seu
resíduo pré-humano? Não dizia já Marx que o homem está ainda na
sua pré-história? Posto o pé no santuário onde se realiza a alterna-
tiva entre o ser e o não ser — tal é a potência da energia do átomo
—, não poderia o homo sapiens, numa combinação de todo inédita
entre postulado moral e instinto de sobrevivência, tornar-se em tudo
e por tudo humano?
O desenvolvimento alcançado neste pós-guerra pelas ciências
humanas, incluindo a etologia, trouxe-nos a convicção de que os
8 P ORQUÊ A GUE RRA?

comportamentos, até nos animais, não são produtos imutáveis de


uma natureza sempre igual a si própria, como a dos minerais, mas
são produtos históricos, inscrevem-se, no seu nascer e no seu defi-
nhar, num fluxo vital cujas variáveis se explicam com o variar do
contexto. Ora, a realidade atómica introduziu a vida do homem
num contexto de total contingência que era de todo desconhecido
pelos antigos metafísicos e pelos modernos positivistas. A liberdade
humana abria-se, antes daquele evento, para um horizonte limitado,
que dava por pressupostas e intangíveis algumas condições — por
exemplo, a continuidade da espécie e, para além da espécie, do fenó-
meno vida, com as suas expressões multiformes — que hoje tam-
bém entraram na área das livres escolhas. Não estão aquém, estão
para além do limiar da liberdade. Desta perceção de uma responsa-
bilidade desmesurada, da qual se não podia aperceber o preceituário
moral do passado, nasce um novo tipo de angústia, que modifica o
inconsciente coletivo desconjuntando os antigos equilíbrios e prepa-
rando talvez alguns novos.

Quem se interroga sobre o destino da espécie com esta radica-


lidade é capaz de compreender plenamente a atualidade da men-
sagem — sapiencial antes de científica — das páginas que aqui se
apresentam, que têm de facto o seu lugar generativo na pergunta
feita por Einstein a Freud: «Existe a possibilidade de dirigir a evolu-
ção psíquica dos homens de modo a que se tornem mais capazes de
resistir às psicoses do ódio e da destruição?» Não sei que outro epi-
sódio na história cultural do nosso século se possa comparar a este
confronto entre os dois máximos artífices da revolução científica da
qual somos filhos, sobre um tema destinado, como se disse, a tor-
nar-se um ­punctum crucis do debate intelectual e moral destes anos.
Quando os dois trocaram as suas cartas, em 1932, não tinha ainda
caído sobre a Alemanha a noite do nazismo, ainda não tinha reben-
tado a mais trágica guerra da história, ainda não tinha sido expe-
rimentada a bomba de urânio. Tudo estava ainda para acontecer.
Contudo, naquelas páginas está já a sabedoria amarga do depois,
não só porque o pressentimento das catástrofes as atravessa, mas
porque o encontro entre os dois acontece numa espécie de descida
P refácio 9

aos infernos, quer dizer, às obscuras raízes do homem, nas quais,


citando Vico, verum et factum convertuntur, a verdade conceptual-
mente definível é a forma ideal e eterna dos factos.
Embora tivesse escrito a carta por encomenda, Einstein instila
nela, com sobriedade, o desconforto intelectual e moral que estava
a viver no decurso daqueles meses, depois da Sociedade das Nações
ter demonstrado a sua incapacidade para garantir a paz e depois da
Conferência para o Desarmamento ter soçobrado em fúteis disputas
acerca das regras a seguir em caso de guerra! Também os movi-
mentos pacifistas, que reconheciam nele um mestre, lhe pareciam
cada vez mais inadequados para enfrentar a onda nacionalista que
submergia a Europa.
No fim daquele mesmo ano, Einstein teria que procurar refú-
gio fora da sua pátria. Freud fará o mesmo alguns anos mais tarde.
­Também ele estava, em 1932, no ponto certo para uma discussão
sobre a questão radical. Três anos antes, ao terminar o ensaio O mal-
-estar da Civilização, numa folga ao rígido controlo do seu intelecto
científico, tinha dado livre curso à sua ansiedade moral aflorando,
com uma capacidade de pressentimento verdadeiramente descon-
certante, a alternativa apocalíptica que somente nós conhecemos.
«O problema fundamental do destino da espécie humana parece-me
ser este: se, e até que ponto, a evolução civil conseguirá dominar as
agitações da vida coletiva provocadas pela pulsão agressiva e auto-
destrutiva dos homens. Neste aspeto, os tempos que correm mere-
cem particular atenção. Presentemente os homens aplicaram de tal
modo o seu poder sobre as forças naturais que, servindo-se delas,
seria fácil exterminarem-se mutuamente até ao último homem.
Sabem-no, e daí boa parte da sua presente angústia, infelicidade e
apreensão. Agora, espera-se que a outra das duas “potências celes-
tes”, o Eros eterno, faça um esforço para se afirmar na luta com o
seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever se terá
sucesso e qual será o desfecho?»
Não sei se é justo, como fez Erich Fromm, insistir no contraste
entre Freud científico e Freud humanista. Certo é que, contrariando
a imagem que dele se divulgou, a sua é uma personalidade dra­
mática, cindida profundamente por uma contradição que ­começou
10 P ORQUÊ A GUE RRA?

a ­manifestar-se fortemente devido a uma experiência direta da


guerra que, começada a 1 de agosto de 1914, marca a finis Austriae
e o fim, de certo modo, do Freud positivista. Oportunamente, este
livro oferece-nos, quase como um prelúdio distante da correspon-
dência epistolar de 1932, dois ensaios escritos por Freud em 1915,
no momento crítico da sua «conversão».
Já ninguém agora leva a sério a pretensão positivista da neu-
tralidade da ciência. Que durante a pesquisa científica o sujeito e o
objeto estejam em frente um do outro sem recíproco envolvimento,
é uma ficção metodológica necessária, mas sem correspondência na
realidade. Porque, quando o objeto não é um preparado químico,
mas a psique humana, a pretensão perde até a aparência de serie-
dade. Contudo, fora este o projeto de Freud: reduzir o estudo da
psique aplicando as regras das ciências físicas, segundo os modelos
mecanicistas. Ao levar a cabo um empreendimento deste género,
ele considerou-se o continuador das grandes revoluções modernas,
que tinham demolido a imagem do homem senhor do universo: a
de Copérnico, que expulsou o homem do centro do cosmos, e a de
Darwin, que feriu de morte a sua posição de privilégio na relação
com o mundo animal. Coube a Freud realizar esta revolução anti-
-humanista, demonstrando que a consciência do homem, o seu eu
racional, não é mais do que o produto de forças inconscientes, cujas
raízes são nada mais nada menos que a libido, a pulsão sexual. Até
aquele produto do homem coletivo de que tanto nos orgulhamos,
a civilização, nasce, segundo Freud, da repressão à qual a libido é
submetida. A um avanço de civilização corresponde um avanço de
repressão e, portanto, um avanço de neuroses. Não se trata, segundo
Freud, de pôr em causa a civilização — ele permanece sempre um
conservador, avesso às escolhas políticas orientadas para a mudança
social; o que é possível, até obrigatório, é apercebermo-nos das raí-
zes inconscientes do pensamento consciente e por essa via diminuir
o peso da patologia de qualquer tipo que envolve a preservação e
o incremento do viver civil. Esta era a antropologia freudiana nas
vésperas da Primeira Guerra Mundial. Foi a guerra que quebrou,
ou pelo menos modificou profundamente aquela sua doutrina, tão
homogénea ao positivismo do século passado. Este facto é digno
P refácio 11

de atenção, porque demonstra o que acima se dizia, isto é, que não


obstante a formal estranheza entre pesquisa científica e alternâncias
autobiográficas existe um estreito vínculo, ainda que oculto. O que,
se lança uma sobra sobre a objetividade das conclusões científicas,
torna plausível uma interrogação que repetiremos: que modificações
teria produzido em Freud a explosão da bomba de urânio de 6 de
agosto de 1945? Teríamos tido um «terceiro» Freud como tivemos
um «segundo»?

Freud tinha saudado com algum entusiasmo a entrada em guerra


dos impérios centrais, porque oferecia, segundo ele, uma boa oca-
sião para a definitiva superação do antissemitismo. Servindo a pátria
como todos os outros, os hebreus teriam conquistado, na consciên-
cia comum, o pleno direito de cidadania. Mas bastou pouco para
que a ilusão se transformasse em desilusão, e numa desilusão de
tais proporções que superou de longe as razões meramente pessoais.
A guerra tinha introduzido com força no campo visual de Freud a
potência destruidora da morte, obrigando o indefeso explorador da
psique a modificar o seu quadro de leitura do aparelho originário
dos atos pulsionais, de maneira a tornar inteligíveis comportamen-
tos individuais e coletivos que não era possível atribuir às pulsões
da libido. O espectro das suas observações dilata-se até abarcar os
grandes enigmas do mundo. A guerra, com as suas carnificinas mun-
diais, torna-se, aos seus olhos um apocalipse no sentido etimoló-
gico do termo, uma revelação da mentira construída em cada um de
nós pela civilização. Os valores humanos sublimados pelas cátedras
académicas e pelas tribunas políticas não são mais do que máscaras
de pulsões egoísticas, de entre as quais emerge uma, à qual ele ainda
não tinha dedicado a devida atenção: a violência. O que são os Esta-
dos, estes grandes protagonistas da guerra? Tão adversos, dentro das
próprias fronteiras, à violência do homem contra o homem, os Esta-
dos não conhecem limites ao uso da ferocidade quando entram em
guerra entre si, e favorecem e exaltam atrocidades que não encon-
tram justificação nem representam qualquer vantagem. O Estado
é gerador de violência, e se esta, habitualmente, não aparece onde
vigora um Estado de direito, é somente porque neste caso o Estado
12 P ORQUÊ A GUE RRA?

reivindica para si o monopólio da violência, como faz — a expres-


são é de Freud — para o sal e para o tabaco. O Estado não é mais
do que uma das muitas sedimentações que o pretenso progresso
acumulou sobre o homem primitivo, totalmente possuído pelas suas
pulsões egoísticas destrutivas: fazendo saltar estas sedimentações, a
guerra deixa campo livre ao homem primitivo que é, como o homem
de Hobbes, um lobo para o outro homem.

Freud era demasiado científico para se sentir satisfeito com estas


divagações que pertencem ao género literário da filosofia e da feno-
menologia. Ele queria compreender, e para compreender, segundo
um hábito seu, tinha necessidade de analisar os grandes fenómenos
da história em algumas investigações de casos em laboratório. E os
casos eram-lhe fornecidos pelas clínicas vienenses onde chegavam
os feridos das várias frentes de batalha, muitos deles afetados por
neuroses de origem traumática. Foi uma constante nas transferên-
cias terapêuticas destes doentes que lhe sugeriu uma nova pista de
pesquisa: em vez de afastarem os traumas dolorosos que estavam na
origem das suas doenças, como teria exigido o princípio do prazer,
os doentes empenhavam-se em repetir o episódio traumático, como
se estivessem sujeitos a uma necessidade muito mais radical do que
a da libido, a «coação para repetir» e repetir emoções de todo em
contraste com o princípio do prazer. Pois bem — assim explicará
Freud no ensaio Para além do princípio do prazer, de 1920 —, a
necessidade que existe antes da pulsão libidinal é a tendência de
voltar do estado orgânico ao inorgânico, ou seja a tendência para a
morte. Antes de Eros está Tanatos (o termo será usado pelos seus
discípulos), antes das pulsões que levam à procura do prazer, está
a pulsão que impele para o estado da inércia originário, como se a
vida fosse um episódio transitório sobre o qual triunfa o princípio da
morte, cuja expressão é o ódio, é a agressividade, que visa destruir
tudo aquilo que vive. Assim nasce a segunda «tópica» freudiana,
baseada não no conflito entre a libido e o Eu, mas no conflito entre
o princípio de morte e o princípio de vida. É a «doutrina mitológica
das pulsões» — assim lhe chama Freud — que constrói o método
psicanalítico, surgido como um capítulo de positivismo, às alturas
P refácio 13

sugestivas e ambíguas das explicações clássicas do mundo de um


Empédocles ou de um Platão. O período que vai de 1915 a 1932
— o ano da correspondência epistolar — e depois até 1939 — o
ano da sua morte — Freud viveu-o num constante confronto, mais
existencial do que teórico, com a progressão do princípio de morte.
A filha Sofia morre-lhe apenas com vinte e seis anos, atingida por
uma epidemia de gripe que tinha invadido a Europa do pós-guerra,
e pouco depois o neto de quatro anos, filho de Sofia, que o avô
amava ao extremo. No mesmo ano, em 1923, Freud é atingido por
um cancro na maxila contra o qual lutará até à morte. E à sua volta,
olhando as ruínas do império austro-húngaro e o grande panorama
da história, o seu olhar de honesto conservador vienense vê avançar
as hordas da morte, primeiro o bolchevismo e depois o nazismo.
As duas histórias, a privada e a pública, chegam a coincidir quando,
em 1938, lhe concedem, como um favor, pela intervenção conjunta
de Roosevelt e de Mussolini, poder deixar Viena para se refugiar
em Londres.

Quando recebe a carta de Einstein, Freud está portanto nas con-


dições mais adequadas para se deixar envolver na questão central
que ele levanta: se é possível conduzir a evolução do homem até à
superação da agressividade destrutiva. Se, ao responder, se tivesse
limitado a basear a resposta a partir da estrutura fundamental do
homem, da qual reinvocámos o esquema, Freud não teria podido
oferecer a Einstein nenhuma via de saída da desilusão; este não
tinha restabelecido a confiança na Sociedade das Nações, embora
apreciasse a intenção de substituir a autoridade coerciva da força,
pela autoridade (a seu modo também essa coerciva) dos princípios
ideais. Mas as instituições, quer se trate do Estado ou se trate de uma
Sociedade entre Estados, são um produto da violência e é vão espe-
rar dali uma ação eficaz para eliminar a guerra. A única iniciativa
em que seria possível confiar seria aquela em que os homens fossem
protagonistas enquanto tal, porque têm em si, em simultâneo, a pul-
são da agressividade, e também a pulsão unificadora do Eros, que
consegue prevalecer mercê do alargamento das ligações de natureza
afetiva e através da ação educativa da personalidade, de tal maneira
14 P ORQUÊ A GUE RRA?

acima do nível conflitual das massas que podem tornar-se para elas
pontos de referência e de identificação.
Uma contradição, de três anos antes, entre o Freud da carta e o
Freud do mal-estar da civilização, foi apropriadamente sublinhada
por Erich Fromm. Num e noutro texto, Freud cita o preceito evan-
gélico: «Amar o próximo como a nós mesmos». Mas enquanto em
1929 tinha demonstrado a inconsistência deste preceito, porque está
contra qualquer princípio da razão, na carta, depois de ter citado
as palavras evangélicas, acrescenta que «a psicanálise não precisa
de se envergonhar» ao falar de amor. A variação poderia ser, como
afirma o notável comentador, o sintoma de uma incoerência entre o
cientista e o humanista, entre a mera dedução doutrinal e a autono-
mia da intuição provocada pela extrema seriedade do assunto. Freud
reconhece-se pacifista, como Einstein, porque necessita de «razões
orgânicas», que são mais fortes do que as argumentações da ciência.
Por isso, a última parte da sua carta é atravessada por uma suges-
tiva ambivalência, por uma inquietante oscilação entre o reconheci-
mento da fatalidade da guerra e o reconhecimento da possibilidade
de a eliminar para sempre da história do homem. Há uma passagem
à qual gosto de atribuir uma grande importância argumentativa: a
guerra, diz ele, «na forma que está destinada a assumir no futuro,
por causa do aperfeiçoamento dos meios de destruição, significaria
o extermínio de um, ou talvez de ambos os contendores». Se isto
é verdade, as duas funções típicas da civilização — «o reforço do
intelecto» e «a interiorização da agressividade», que podem ser
dirigidos a objetivos diferentes dos da guerra — poderiam também
encontrar, na qualidade modificada dos conflitos armados, o ponto
de apoio para uma transformação da dialética inconsciente pela qual
somos governados.
O facto é que «o aperfeiçoamento dos meios de destruição»,
hipótese posta por Freud em 1932, se verificou para além de qual-
quer possível previsão treze anos depois, nos laboratórios de Los
Alamos, onde foi fabricada a bomba que um mês depois seria expe-
rimentada no Japão. Desde então, a equação entre guerra e exter-
mínio universal atingiu foros de evidência científica e tornou-se
uma perceção geral. O tradicional lugar de confronto, até à última
P refácio 15

gota de sangue, entre Tanatos e Eros, o campo de batalha, já não


está nas possibilidades da estratégia de destruição, que para se afir-
mar tem sempre necessidade de se dissimular com motivos ideais.
A batalha atómica seria um ato fulminante de puro aniquilamento,
que não deixaria nenhuma possibilidade de saída ao homem primi-
tivo que existe em nós, que goza com a carnificina e com o exer-
cício da ferocidade. Seria um aniquilamento estéril, realizado com
um gesto de laboratório, longe dos seus efeitos. Até aqueles que,
como os sequazes ortodoxos de Freud, sustentam que a pulsão de
­Tanatos é primordial e portanto omnipotente, não podem excluir que
os laços emotivos acentuados pela unidade de destino da espécie
adquirem uma dimensão planetária e provocam, precisamente por
esta razão, um incremento da eficácia dos dois processos de civili-
zação já mencionados, «o reforço do intelecto» e «a interiorização
da ­agressividade».
Mas existe realmente uma ortodoxia freudiana? Um dado ine-
quívoco é que na grande e também um tanto conflituosa república
dos psicanalistas de obediência freudiana, já não tem muito crédito
um aparelho psíquico tão unívoco como aquele que foi elaborado
pelo primeiro e pelo segundo Freud. Ficando laicamente à margem
das disputas de escola, e atribuindo a máxima importância ao peso
que tem nos comportamentos conscientes as razões inconscientes,
julgo que se pode dizer, com fundamento, que existem no homem
estruturas originárias muito mais complexas do que o par freudiano
Tanatos/Eros, que permaneceram submersas e inativas até serem
despertadas e trazidas à luz mercê da travessia do limiar atómico.
Não pode ficar sem efeito — ouso assim argumentar — a rápida
difusão da síndroma do fim do mundo, devido a repetidos traumas
(pense-se no de Chernobyl), que pela primeira vez trouxeram ao
âmbito da reflexão pública o nexo vital entre espécie humana e
­biosfera.
É de acreditar que quando Einstein, em 1955, na véspera da
sua morte, assinou o Manifesto que tem o seu nome, se recordasse
da carta que havia recebido de Freud tantos anos antes. No fim do
Manifesto propõe o critério do novo modo de pensar, agora neces-
sário ao homem, naquilo que poderemos chamar «consciência de
16 P ORQUÊ A GUE RRA?

espécie», que permaneceu submersa até hoje: «Dirigimo-nos como


seres humanos a seres humanos: recordai-vos da vossa humanidade
e esquecei todo o resto». A categoria amigo-inimigo, que condu-
ziu até agora a evolução da espécie, pôde subsistir porque a agres-
sividade que exprime e provoca, não equivalia ao triunfo total da
morte. Hoje, que esta equivalência é evidente, não poderia a catego-
ria amigo-inimigo ser sujeita a remoção definitiva como aconteceu
com a relação incestuosa? Vimos que nas últimas páginas da carta
de Freud perpassa um alento que atenua os rígidos confins do seu
esquema antropológico. Se tivesse sido testemunha da catástrofe
atómica, teria motivo para repensar no esquema, sem se envergo-
nhar de falar com mais segurança da potência positiva do amor.
As últimas palavras da sua carta estão iluminadas pela esperança
de que «num futuro próximo» as guerras desapareçam para sempre
do costume do género humano. O seu «futuro próximo» é o nosso
presente ou melhor, deve sê-lo, dado que é a última alternativa que
nos resta ao total afundamento do tempo.

Ernesto Balducci
Apresentação

A reação imediata de Freud à eclosão da Primeira Guerra Mun-


dial foi assinalada, no verão de 1914, por um fervoroso e juvenil
impulso patriótico que quase surpreende num hebreu refinado, no
limiar dos sessenta anos, espontaneamente alheio ao nacionalismo
e ao chauvinismo em todas as suas formas, desde sempre nutrido
de um ideal de vida iluminístico que no exercício paciente da inte-
ligência encontrara a sua única defesa (1). É de resto sabido que
não obstante o antissemitismo oficial dos Impérios centrais, muitos
judeus alemães, austríacos e húngaros participaram com entusiasmo
na grande guerra, na ingénua esperança de reencontrarem ou final-
mente conquistarem, nos seus países de eleição, a filiação a uma
pátria à qual se sentiam ligados em muitos aspetos. A horrível tragé-
dia que se abateu sobre o povo hebraico vinte anos depois lança um
manto sinistro sobre esta generosa ilusão.
Para Freud contudo tratou-se de um entusiasmo de curta duração,
a que se seguiu um desânimo repentino e, por isso, tanto mais dolo-
roso. Em 25 de novembro de 1914 Freud responde com uma carta

(1) A excitação apaixonada com que Freud acompanhou os primeiros


acontecimentos bélicos é referida e comentada minuciosamente por E. Jones,
Vida e Obra de Freud.
18 P ORQUÊ A GUE RRA?

desesperada e quase apocalíptica à amiga e discípula Lou Andreas-


-Salomé, que se mantinha face aos acontecimentos com ânimo firme e
sereno (2): «Não tenho dúvida de que a humanidade conseguirá resta-
belecer-se desta guerra também; todavia, sei com certeza que nem eu
nem os meus contemporâneos voltaremos a ver um mundo feliz. Tudo
é demasiado horrível; mas aquilo que é mais triste é que as coisas
vão exatamente como deveríamos tê-las imaginado na base de quanto
as expectativas suscitadas pela psicanálise nos ensinaram sobre
os homens e o seu comportamento. É esta atitude relativamente ao
género humano que me impediu de partilhar o seu sereno otimismo.
No segredo do meu íntimo chegara à conclusão de que, se reconhecer-
mos na nossa civilização atual, que é de todas a mais elevada, somente
uma hipocrisia gigantesca, torna-se evidente que não somos organi-
camente idóneos para esta civilização. Não nos resta senão abdicar, e
o Grande Desconhecido, pessoa ou coisa, que se esconde por trás do
Destino, repetirá no futuro a experiência com uma outra raça.»

Igualmente amarguradas são as palavras de uma carta enviada


a Jones no dia de Natal de 1914. Mas o pressentimento da iminente
retoma criativa de Freud já se exprime aqui, na preocupação de sal-
var da catástrofe o paciente trabalho de tantos anos: «O que ficou
do movimento depois do afastamento de Jung e Adler, está em vias
de desaparecer por causa do conflito entre os povos. Manter unida a
nossa Associação, como tudo aquilo que se define como internacio-
nal, é muito difícil... Não estou preocupado pelo futuro longínquo
da causa, pela qual o Amigo demonstra uma tão comovente dedica-
ção; mas o futuro próximo, o único que me diz respeito parece-me
desesperadamente obscuro... Estou a tentar reunir numa espécie de
síntese todos os contributos que possa ainda dar, e este trabalho já
me proporcionou bastantes coisas novas...»

«Bastantes» e «novos» foram os trabalhos que Freud escreveu


em 1915, um dos anos mais produtivos e fecundos de toda a sua

(2) O texto citado é extraído de S. Freud — Lou Andreas-Salomé, Eros e


conhecimento: cartas 1912-1936.
Apresentação 19

vida. Basta citar, junto aos dois primeiros escritos inseridos neste
volume, os importantíssimos ensaios teóricos reunidos sob o título
Metapsicologia.
O Considerações atuais sobre a guerra e a morte, escrito na
primavera de 1915 e publicado na revista «Imago» com o título
­Zeitgemässes über Krieg und Tod, contém as reflexões de Freud
sobre os dois temas estreitamente inter-relacionados, cuja análise os
tempos sugeriam com dramática urgência. Já em 28 de dezembro de
1914, numa carta endereçada ao psicopatologista holandês Frederik
Van Eden, Freud recordara a trágica atualidade de duas importantes
asserções psicanalíticas; a primeira diz respeito à inextirpabilidade
dos «Impulsos primitivos selvagens e perversos da humanidade»,
a segunda à impossibilidade de o intelecto — «brinquedo e instru-
mento das nossas pulsões e dos nossos afetos» — os domar eficaz-
mente: «Repare naquilo que está a acontecer nesta guerra, repare
em quantas crueldades e injustiças se tornam responsáveis as nações
mais civilizadas, a má-fé com que se agarram às próprias mentiras e
iniquidades; e repare, enfim, como todos perderam a capacidade de
um julgamento sereno: teremos de admitir que ambas as asserções
da psicanálise eram exatas.» As argumentações contidas na primeira
«Consideração» retomam e ampliam estes temas à luz das aquisi-
ções da teoria psicanalítica desenvolvida sobretudo nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade (1905) e em A Moral sexual e o nervo-
sismo moderno (1908). A tremenda desilusão provocada pela guerra
nos espíritos livres — acostumados a encarar com confiança serena
os destinos futuros da civilização ocidental — revela-se assim fruto
de uma ilusão perigosa, que teima em interpretar mal e ignorar a
verdadeira natureza das paixões humanas. Despontam aqui pela pri-
meira vez alguns temas de sucessivas e mais amplas reflexões sobre
os problemas da sociedade e da cultura contemporâneas: Psicologia
das massas e análise do Eu (1921), O futuro de uma ilusão (1927),
O mal-estar da civilização (1929).

Mas a profunda revolução que a guerra provocou no modo de


viver e morrer dos homens não pode deixar de influenciar a sua
atitude perante a morte. É o tema que Freud analisa na segunda
20 P ORQUÊ A GUE RRA?

«Consideração», com base em argumentações histórico-antropo-


lógicas desenvolvidas mais pormenorizadamente em Totem e tabu
(1912-13). Mostra assim, na atitude modificada que a guerra suscita
face à morte, a revivescência de um comportamento antiquíssimo,
demonstrado abertamente por usos e crenças dos povos primitivos.
Densa de pistas teóricas se revelará esta primeira meditação freu-
diana sobre o tema da morte; do primitivismo e indestrutibilidade
das pulsões agressivas humanas, Freud será induzido a repensar
radicalmente a sua teorização da dialética pulsional. A partir de
Para além do princípio do prazer (1920) vai fundamentá-la não só
nas pulsões sexuais que representam os esforços que os humanos
cumprem para com a vida, mas também nas inexoráveis tendências
destrutivas que cada um traz dentro de si desde o nascimento; a estas
tendências Freud dará o nome de «pulsões de morte».

No mês de novembro de 1915, Freud voltou ao tema da guerra


e da morte em Caducidade, um breve contributo que com o título
­Vergänglichkeit fez parte de uma miscelânea em honra de ­Goethe
organizada pela Associação goethiana berlinense, e publicada no ano
seguinte (Das Land Goethes 1914-16, Deustche Verlags-­ Anstalt,
Estugarda). A perturbação que nos poetas suscita a transitoriedade
de tudo aquilo que é belo não pode deixar de trazer à memória a
extrema e dolorosa fragilidade do viver em tempo de guerra, que
torna qualquer bem remanescente mais do que nunca precioso.
E embora sendo estas páginas sobretudo célebres pela elegância e
a clareza do estilo, deve acentuar-se que contêm alguns interessan-
tes apontamentos sobre o tema do «luto», tratado mais amplamente
por Freud no escrito metapsicológico Luto e melancolia, terminado
alguns meses antes mas só publicado dois anos depois.

Quando em 1933 foi publicada, em Paris, a correspondência


entre Freud e Einstein com o título Warum Krieg?, os dois grandes
homens tinham-se encontrado uma só vez, em Berlim, nos primei-
ros dias de 1927, em casa de Ernst, o filho mais novo de Freud.
Este tinha comentado com Ferenczi, gracejando acerca da visita de
Einstein: «É alegre, seguro de si, amável. Compreende de ­psicologia
Apresentação 21

tanto quanto eu de física, razão pela qual a nossa conversa foi muito
agradável.» E tinha escrito a Maria Bonaparte: «Aquele tipo tem
tido muito mais sorte do que eu; depois de Newton encontrou apoio
numa longa série de grandes predecessores; ao contrário, eu fui
obrigado a abrir clareiras sozinho numa selva intrincadíssima. Não
é por isso de admirar que o meu caminho não seja muito comprido
e que não tenha ido muito longe (3).

A oportunidade da correspondência Porquê a guerra? surgiu em


1931, fornecida pelo Comité permanente das letras e das artes da
Sociedade das Nações, que convidou o Instituto internacional para
a cooperação internacional a promover um debate epistolar sobre
temas de interesse geral entre os expoentes mais significativos da
cultura da época. Einstein foi dos primeiros a ser interpelado e indi-
cou como seu correspondente o nome de Freud. Assim, quando Leon
Steinig, secretário do Instituto, em junho de 1932, convidou Freud a
colaborar, este respondeu afirmativamente, embora com a seguinte
precisão (4): «É necessário não me colocar na posição do docente
solitário, e que seja conservado o caráter da discussão. Portanto,
mais do que responder simplesmente a uma pergunta de Einstein, é
meu desejo adotar o ponto de vista psicanalítico para responder às
suas argumentações.» Freud recebeu a carta aberta de Einstein em
agosto, e embora considerasse «aborrecido e estéril» aquele «pre-
tenso colóquio» (5), mandou a sua resposta no mês seguinte.
Das intervenções de Einstein e Freud emerge uma diferença de
fundo. Einstein, face à amarga conclusão da inextirpabilidade dos
instintos agressivos dos homens, sugere uma solução organizativa
de tipo coercitivo, que era a instituição de um organismo político
supranacional no qual cada Estado delegaria a autoridade de con-
ciliar os inevitáveis conflitos recíprocos. Por sua vez, Freud, que
neste escrito retoma brilhantemente alguns dos temas de fundo do

(3) A carta a Ferenczi de 2 de janeiro de 1927 e a escrita a Maria Bonaparte


poucos dias depois (11 de janeiro) são referidas por Jones, op. cit.
(4) Freud, Cartas 1873-1939, carta a Leon Steinig de 6 de junho de 1932.
(5) Freud exprimiu a Eitington esta opinião; o episódio é contado por
Jones, op. cit.
22 P ORQUÊ A GUE RRA?

Mal-estar da civilização (1929), limita-se a augurar que as guerras


tenham fim em virtude do progressivo aperfeiçoamento intelectual
e civil da humanidade.
A difusão da correspondência, traduzida simultaneamente
em três línguas, foi evidentemente proibida na Alemanha. Mas as
relações entre os dois grandes homens, longe de enfraquecerem,
­reforçaram-se, também por efeito do destino comum dos judeus per-
seguidos pelo nazismo. Uma afetuosa troca de cartas entre ­Einstein
e Freud deu-se em 1936, por ocasião do octogésimo aniversário
deste. E ainda em 1939, a poucos meses da sua morte, Freud recebeu
de Einstein a seguinte calorosa mensagem (6): «Admiro particular-
mente o seu Moisés (7), como de resto todos os seus escritos, de um
ponto de vista literário. Não conheço nenhum contemporâneo que
tenha apresentado as suas argumentações em língua alemã de modo
tão magistral. Sempre lamentei o facto de que para um profano...
seja quase impossível fazer uma ideia sobre a finalidade dos seus
trabalhos. Mas é aquilo que sucede a todas as conquistas científi-
cas... Com sincera admiração, seu Einstein.»

(6) Ibid.
(7) Einstein refere-se a Moisés e a religião monoteísta (1934-38).
Sigmund Freud

CONSIDERAÇÕES ATUAIS
SOBRE A GUERRA E A MORTE
(1915)
I

O desapontamento perante a morte

Arrastados pelo turbilhão desta época de guerra, informados de


modo unilateral, sem distância quanto às grandes transformações
que já se realizaram ou se começam a realizar e sem vislumbre do
futuro que já se está a configurar, andamos desencaminhados no sig-
nificado por nós atribuído às impressões que nos oprimem e no valor
dos juízos que formamos. Quer parecer-nos que jamais aconteci-
mento algum terá destruído tantos e tão preciosos bens comuns à
humanidade, transtornado tantas inteligências lúcidas e rebaixado
tão fundamente as coisas mais elevadas. Até a própria ciência per-
deu a sua imparcialidade desapaixonada; os seus servidores, profun-
damente amargados, procuram dela extrair armas para prestar um
contributo à luta contra o inimigo. O antropólogo declara inferior e
degenerado o adversário, e o psiquiatra profere o diagnóstico da sua
perturbação mental ou anímica. Mas, provavelmente, sentimos com
desmedida intensidade a maldade desta época e não temos direito
algum a compará-la com o mal de outras épocas que não vivemos.
O indivíduo que não se tornou combatente, transformando-se
assim numa partícula da gigantesca máquina bélica, sente-se emba-
raçado na sua orientação e obstruído na sua capacidade de realização.
Ser-lhe-á pois grata, a meu ver, toda a sugestão, embora pequena,
que lhe facilite a orientação, pelo menos no seu íntimo próprio.
26 P ORQUÊ A GUE RRA?

Entre os fatores responsáveis da miséria anímica dos que ficaram


em casa, e cuja superação lhes levanta problemas tão árduos, gosta-
ria de realçar dois, que neste lugar vou abordar: o desapontamento
que esta guerra suscitou e a mudança de atitude perante a morte
a que ela — como todas as outras guerras — nos obriga.
Quando falo do desapontamento, já todos sabem a que me refiro.
Não é necessário ser um fanático da compaixão; pode muito bem
reconhecer-se a necessidade biológica e psicológica do sofrimento
para a economia da vida humana e, no entanto, condenar a guerra
nos seus meios e objetivos e suspirar pela sua cessação. Afirmou-
-se, sem dúvida, que as guerras não poderão terminar enquanto os
povos viverem em tão diversas condições de existência, enquanto
as valorações da vida individual diferirem tanto entre uns e outros
e os ódios, que os separam, representarem forças instintivas aními-
cas tão poderosas. Estava-se, pois, preparado para que a humani-
dade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os
povos primitivos e os civilizados, entre as raças humanas diferen-
ciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluí-
dos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca,
dominadoras do mundo, às quais coube a direção da humanidade,
que se sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas
criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os
valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se
que soubessem resolver de outro modo as suas discórdias e os seus
conflitos de interesses. Dentro de cada uma dessas nações tinham-se
prescrito ao indivíduo elevadas normas morais, às quais devia ajus-
tar a sua conduta se pretendesse participar na comunidade cultural.
Estes preceitos, muitas vezes rigorosíssimos, exigiam muito dele:
uma ampla autolimitação e uma acentuada renúncia à satisfação das
pulsões. Estava-lhe sobretudo proibido servir-se das extraordinárias
vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta
com os outros homens. O Estado civilizado considerava estas nor-
mas morais como o fundamento da sua existência, saía abertamente
em sua defesa se alguém ousava infringi-las e, inclusive, declarava
como impraticável a sua sujeição ao exame do entendimento crítico.
Era, pois, de supor que ele próprio quisesse respeitá-las e que não
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 27

pensasse empreender contra elas algo que constituísse uma nega-


ção dos fundamentos da sua própria existência. Por último, pôde
­observar-se como dentro das nações civilizadas se encontravam
inseridos certos restos de povos que eram em geral incómodos e
que, por isso, só com relutância e com limitações eram admitidos
a participar na obra comum da cultura, para a qual se tinham reve-
lado suficientemente aptos. Mas era de crer que os grandes povos
tivessem alcançado uma tão grande compreensão dos seus elemen-
tos comuns e tanta tolerância face às suas diferenças que não con-
fundissem num só, como na antiguidade clássica, os conceitos de
«estrangeiro» e de «inimigo».
Confiando neste acordo dos povos civilizados, inumeráveis
homens trocaram a sua residência na pátria pelo domicílio no
estrangeiro e associaram a sua existência às relações comerciais
entre os povos amigos. Mas aquele a quem a necessidade de vida
não encadeava constantemente ao mesmo lugar podia formar para
si, com todas as vantagens e atrativos dos países civilizados, uma
nova pátria maior em que ele se comprazia sem obstáculos e suspei-
tas. Saboreava assim o mar azul e cinzento, a beleza das montanhas
nevadas e dos verdes prados, o encanto dos bosques do Norte e a
magnificência da vegetação meridional, a atmosfera das paisagens
sobre as quais pairam grandes recordações históricas, e a sereni-
dade da natureza intacta. Esta nova pátria era também para ele um
museu repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade
civilizada tinham criado e legado há muitos séculos. Ao deambu-
lar neste museu de sala em sala, pôde comprovar imparcialmente
quão diversos eram os tipos de perfeição que, entre os outros com-
patriotas seus, tinham sido criados pela mistura de sangues, pela
história e pela peculiaridade da mãe Terra. Aqui, desenvolvera-se
em grau máximo uma serena energia indomável; além, a arte gra-
ciosa de embelezar a vida; mais além, o sentido da ordem e da lei
ou qualquer outra das propriedades que fizeram do homem o senhor
da Terra.
Não esqueçamos também que todo o cidadão do mundo civi-
lizado criou para si um «Parnasso» especial e uma «Escola de
­Atenas». Entre os grandes pensadores, poetas e artistas de todas as
28 P ORQUÊ A GUE RRA?

nações, escolheu aqueles a quem julgava dever mais, e o que se


lhe tornou acessível em fruição e compreensão da vida, associou
na sua veneração os imortais da antiguidade e os mestres familia-
res do seu próprio idioma. Nenhum destes grandes homens se lhe
afigurou estranho por ter falado outra língua, nem o incomparável
investigador das paixões humanas, nem o apaixonado adorador da
beleza ou o profeta ameaçador, nem o engenhoso satírico, e jamais
se censurou por ter renegado a sua própria nação e a sua amada
língua materna.
O desfrute da comunidade civilizada era, por vezes, perturbado
por vozes que cautelosamente lembravam que, em virtude de anti-
gas diferenças tradicionais, também entre os membros da mesma
eram inevitáveis as guerras. Não se quis nelas acreditar; mas, ainda
supondo que tal guerra chegasse, como se haveria de representar?
Como uma ocasião de mostrar os progressos no sentimento comum
dos homens desde a época em que as anfictionias gregas tinham
proibido destruir as cidades pertencentes à Liga, decepar as suas
oliveiras e cortar-lhes a água. Como um recontro cavaleiresco que se
limitasse a estabelecer a superioridade de uma das partes, evitando
tanto quanto possível graves danos que em nada contribuíssem para
tal decisão, com total solicitude pelo ferido que tem de abandonar a
luta, e pelo médico e enfermeiro que se dedica à sua cura. E, natural-
mente, com toda a consideração pela parte não beligerante da popu-
lação, pelas mulheres, afastadas do ofício da guerra, e pelas crianças
que, uma vez crescidas, se deveriam tornar, de ambas as partes, ami-
gos e colaboradores. E igualmente com a manutenção de todos os
empreendimentos e instituições internacionais em que tomou corpo
a comunidade cultural dos tempos pacíficos.
Semelhante guerra já incluíra horrores suficientes e difíceis de
suportar, mas não teria interrompido o desenvolvimento das rela-
ções éticas entre os grandes indivíduos da humanidade, os Povos e
os Estados.
A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe
consigo a deceção. Não só é mais sangrenta e mais mortífera do
que todas as guerras passadas, por causa do aperfeiçoamento das
armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão cruel, exasperada
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 29

e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as restrições a que


os povos se obrigaram em tempos de paz — o chamado Direito
Internacional —, não reconhece nem os privilégios do ferido e do
médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico
da população, e viola o direito da propriedade. Derruba, com cega
cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não
houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens.
Desfaz todos os laços da solidariedade entre os povos combatentes
e ameaça deixar atrás de si uma exasperação que, durante longo
tempo, impossibilitará o reatamento de tais laços.
Tornou também patente o fenómeno, dificilmente concebível, de
que os povos civilizados se conhecem e compreendem entre si tão
pouco que podem virar-se, cheios de ódio e de repulsa, uns contra os
outros. Mais, que uma das grandes nações civilizadas é objeto de um
repúdio tão universal que se pode arriscar a tentativa de a excluir,
como «bárbara», da comunidade civilizada, embora tenha há muito
demonstrado, graças aos mais esplêndidos contributos, a sua aptidão
para tal comunidade. Alimentamos a esperança de que uma historio-
grafia imparcial fornecerá a prova de que precisamente essa nação,
em cuja língua escrevemos e por cuja vitória combatem os nossos
entes queridos, foi a que menos transgrediu as leis da civilização
humana. Mas, em tempos como estes, quem poderá apresentar-se
como juiz em causa própria?
Os povos são, até certo ponto, representados pelos Estados
que constituem, e estes Estados, por seu turno, pelos Governos
que os regem. O cidadão individual pode comprovar com espanto
nesta guerra o que já lhe ocorrera em tempos de paz, a saber, que o
Estado proibiu ao indivíduo o uso da injustiça, não porque pretenda
­aboli-la, mas porque quer monopolizá-la, como o tabaco e o sal.
O Estado combatente permite a si toda a injustiça e toda a violência
que desonraria o indivíduo. Não só utiliza contra o inimigo a astúcia
permissível (ruses de guerre), mas também a mentira consciente e o
engano intencional, e isto, claro está, numa medida que parece supe-
rar o usual em guerras anteriores. O Estado exige dos seus cidadãos o
máximo de obediência e de abnegação, mas incapacita-os mediante
um excesso de dissimulação e uma censura da ­comunicação e da
30 P ORQUÊ A GUE RRA?

expressão das opiniões, que deixa sem defesa o ânimo dos assim
intelectualmente oprimidos face a toda a situação desfavorável e a
todo o boato desastroso. Desliga-se das garantias e dos convénios
que o vinculavam aos outros Estados, confessa abertamente a sua
avareza e a sua ânsia de poder que, em seguida, o indivíduo deve
sancionar por patriotismo.
Não se objete que o Estado não pode renunciar ao uso da
injustiça, porque se colocaria assim em situação desvantajosa.
Também para o indivíduo a adesão às normas morais, a renúncia
ao emprego brutal do poder é, em geral, muito desvantajoso, e o
Estado só raramente se mostra capaz de compensar o indivíduo
pelo sacrifício que dele exigiu. Não há também que espantar-se de
que o relaxamento de todas as relações morais entre os povos da
humanidade tenha suscitado uma ressonância na moralidade dos
indivíduos, pois a nossa consciência moral não é o juiz incorrup-
tível que os moralistas supõem; na sua origem, é apenas «angús-
tia social» e nada mais. Onde a comunidade se abstém de toda
a reprovação, cessa também a opressão dos maus impulsos, e os
homens cometem atos de crueldade, de malícia, de traição e bru-
talidade, cuja possibilidade se teria considerado incompatível com
o seu nível cultural.
Por isso, o cidadão do mundo civilizado, a que antes aludi,
encontra-se perplexo num mundo que se lhe tornou estranho, vendo
arruinada a sua pátria mundial, assoladas as possessões comuns
e divididos e rebaixados os seus concidadãos!
Haveria que submeter a uma consideração crítica tal deceção.
Em rigor, ela não é justificada, pois consiste na destruição de uma
ilusão. As ilusões são-nos gratas porque nos poupam sentimentos
displicentes e, em seu lugar, nos deixam gozar de satisfações. Mas
então devemos aceitar sem queixa que alguma vez embatam num
troço de realidade e se reduzam a frangalhos.
Duas coisas suscitaram nesta guerra a nossa deceção: a escassa
moralidade exterior dos Estados, que internamente se comportam
como guardiões das normas morais, e a brutalidade do comporta-
mento dos indivíduos, dos quais, como participantes na mais ele-
vada civilização humana, não se esperara coisa semelhante.
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 31

Comecemos pelo segundo ponto e tentemos apreender numa


única frase concisa a ideia que pretendemos criticar. Como conce-
ber então o processo pelo qual um homem singular se eleva a um
grau superior de moralidade? A primeira resposta será, talvez, a de
que ele é bom e nobre por nascimento e desde o início. Tal resposta
não será aqui abordada. Uma segunda solução sugerirá a ocorrência
necessária de um processo evolutivo, e suporá que tal evolução con-
siste na erradicação das más inclinações do homem e na sua subs-
tituição, sob a influência da educação e da cultura ambiente, por
inclinações ao bem. Podemos então espantar-nos de que, no homem
assim educado, o mal torne a manifestar-se com tanto ímpeto.
Mas esta resposta encerra também a proposição que queremos
rebater. Na realidade, não há qualquer «erradicação» do mal. A inves-
tigação psicológica — em sentido mais estrito, a psicanalítica — m
­ ostra
antes que a mais profunda essência do homem consiste em impulsos
instintivos de natureza elementar, iguais em todos e tendentes à satis-
fação de certas necessidades primordiais. Estes impulsos instintivos
não são em si nem bons nem maus. ­Classificamo-los, e classificamos
as suas manifestações segundo a sua relação com as necessidades e
as exigências da comunidade humana. Deve ­conceder-se que todos os
impulsos proibidos pela sociedade por serem maus — tomemos como
representação sua os impulsos egoístas e os cruéis — se encontram
entre tais impulsos primitivos.
Estes impulsos primitivos percorrem um longo caminho evolu-
tivo até chegarem à manifestação no adulto. São inibidos, dirigidos
para outros fins e setores, misturam-se entre si, trocam de objeto e
viram-se, em parte, contra a própria pessoa. Desenvolvimentos rea-
tivos contra certas pulsões simulam a transformação intrínseca das
mesmas, como se o egoísmo se tivesse transformado em compaixão,
e a crueldade em altruísmo. Estes desenvolvimentos reativos são
favorecidos pela circunstância de que algumas moções pulsionais
surgem, quase de início, em pares antitéticos, circunstância nota-
bilíssima e estranha para o conhecimento popular, a que se deu o
nome de «ambivalência dos sentimentos». O que mais facilmente
se observa e é mais acessível à compreensão é o facto da frequente
coexistência de um intenso amor e de um ódio intenso na mesma
32 P ORQUÊ A GUE RRA?

pessoa. A psicanálise acrescenta ainda a tal que ambos os impulsos


sentimentais contrapostos tomam, não raro, também a mesma pes-
soa como objeto.
Só após a superação de todos estes «destinos da pulsão» se
apresenta o que denominamos o caráter de um homem, o qual,
como se sabe, só muito insuficientemente se pode classificar como
«bom» ou «mau». Um homem raras vezes é inteiramente bom ou
mau; em geral, é «bom» numa circunstância, e «mau» noutras,
ou «bom» em determinadas condições exteriores e decididamente
«mau» noutras. É interessante a experiência de que a preexistên-
cia infantil de intensas moções «más» é, muitas vezes, justamente
a condição de uma claríssima viragem do adulto para o «bem».
Os maiores egoístas infantis podem tornar-se os cidadãos mais
altruístas e abnegados; pelo contrário, os homens compassivos,
filantropos e protetores dos animais foram, na sua maioria, durante
a infância, pequenos sádicos e torturadores de animais.
A transformação das pulsões «más» é obra de dois fatores que
atuam em igual sentido, um interior e outro exterior. O fator inte-
rior consiste no influxo exercido sobre as pulsões más — dizemos,
egoístas — pelo erotismo, pela necessidade humana de amor, na
sua aceção mais ampla. As pulsões egoístas transformam-se, graças
à união das componentes eróticas, em pulsões sociais. Aprende-se
a apreciar o ser-se amado como uma vantagem, pela qual se pode
renunciar a outras. O fator exterior é a coerção da educação, que
representa as exigências da civilização circundante, e é em seguida
continuada pela ação direta do meio cultural. A civilidade foi adqui-
rida mediante a renúncia à satisfação pulsional e exige de todo o
novo indivíduo a repetição de semelhante renúncia. Durante a vida
individual tem lugar uma constante transformação da coação externa
em coerção interior. As influências culturais levam a que as aspira-
ções egoístas se transformem sempre mais, graças às alianças eróti-
cas, em tendências altruístas sociais. Pode, por fim, admitir-se que
toda a coerção interna que se faz sentir na evolução do homem foi
originariamente, isto é, na história da humanidade, apenas coerção
externa. Os homens que hoje nascem trazem já consigo uma certa
disposição para a transformação das pulsões egoístas em pulsões
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 33

sociais como organização herdada, a qual, obediente a leves estí-


mulos leva a cabo tal transformação. Outra parte desta metamorfose
pulsional deve realizar-se na própria vida. Deste modo, o indivíduo
não se encontra apenas sob a influência do seu meio cultural pre-
sente, mas está também submetido à influência da história cultural
dos seus antepassados.
Se à capacidade que advém a um homem de transformar, sob
o influxo do erotismo, as suas pulsões egoístas, chamarmos a sua
«disposição à cultura», poderemos afirmar que a mesma consta de
duas partes: uma inata e outra adquirida na vida, e que a relação
de ambas entre si e com a parte não transformada da vida pulsional
é muito variável.
Em geral, inclinamo-nos a valorizar excessivamente a parte inata
e, ademais, corremos o perigo de sobrestimar também a total dispo-
sição à cultura na sua relação com a vida pulsional, que permaneceu
primitiva, isto é, somos induzidos a julgar os homens «melhores»
do que, na realidade, são. Existe ainda, de facto, um outro fator que
turva o nosso juízo e falsifica, num sentido favorável, o resultado.
As moções pulsionais de outros homens subtraem-se, natural-
mente, à nossa perceção. Deduzimo-las das suas ações e do seu
comportamento, que atribuímos a motivos procedentes da sua vida
pulsional. Tal dedução erra necessariamente num grande número de
casos. As próprias ações «boas», do ponto de vista cultural, podem
derivar, umas vezes, de motivos «nobres», outras não. Os moralis-
tas teóricos chamam «boas» apenas às ações que são expressão de
moções pulsionais boas, e negam o seu reconhecimento às demais.
Mas a sociedade, guiada por propósitos práticos, não se preocupa
com tal distinção; contenta-se com que um homem oriente o seu
comportamento e as suas ações segundo as prescrições culturais,
e não se interroga sobre os seus motivos.
Vimos que a coerção externa, exercida sobre o homem pela edu-
cação e pelo meio ambiente, suscita uma ulterior transformação da
sua vida pulsional no sentido do bem, uma viragem do egoísmo para
o altruísmo. Mas este não é o efeito necessário ou regular da coação
exterior. A educação e o ambiente não se limitam a oferecer prémios
de amor, mas lidam também com prémios de outra natureza, com
34 P ORQUÊ A GUE RRA?

a recompensa e o castigo. Podem, pois, fazer que o indivíduo sub-


metido à sua influência se resolva a agir bem, no sentido cultural,
sem que nele tenha realizado um enobrecimento das pulsões, uma
mutação das tendências egoístas em tendências sociais. O resultado
será, no conjunto, o mesmo; só em circunstâncias especiais se tor-
nará patente que um age sempre bem, porque a tal o forçam as suas
inclinações pulsionais, mas o outro só é bom porque tal conduta
cultural traz vantagens aos seus intentos egoístas, e só enquanto e na
medida em que as procura. Nós, porém, com o nosso conhecimento
superficial do indivíduo, não temos meio algum de distinguir os dois
casos, e o nosso otimismo induzir-nos-á decerto a exagerar desme-
suradamente o número dos homens transformados pela cultura.
A sociedade civilizada, que exige a ação boa e não se preocupa
com o seu fundamento pulsional, ganhou, pois, para a obediência à
civilização um grande número de homens que nisso não seguem a
sua natureza. Animada por este êxito, deixou-se induzir a intensifi-
car em grau máximo as exigências morais, obrigando assim os seus
participantes a distanciar-se ainda mais da sua disposição instintiva.
A estes homens é imposta uma continuada opressão das pulsões,
cuja tensão se manifesta em notabilíssimos fenómenos de reação e
de compensação. No terreno da sexualidade, onde menos se pode
levar a cabo semelhante opressão, chega-se assim aos fenómenos
reativos das enfermidades neuróticas. A pressão da cultura noutros
setores não acarreta consequências patológicas, mas manifesta-se
em deformações de caráter e na disponibilidade constante das pul-
sões inibidas para abrir caminho na ocasião oportuna para a satis-
fação. Quem assim é forçado a reagir permanentemente no sentido
de prescrições que não são expressão das suas tendências pulsio-
nais vive, psicologicamente falando, muito acima dos seus meios
e pode qualificar-se objetivamente de hipócrita, seja ou não clara-
mente consciente desta diferença. É inegável que a nossa cultura
atual favorece com extraordinária amplitude este género de hipocri-
sia. Poderia arriscar-se a afirmação de que se baseia nela e teria de
se submeter a profundas transformações, se os homens decidissem
viver segundo a verdade psicológica. Há, pois, incomparavelmente
mais hipócritas da cultura do que homens verdadeiramente culturais,
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 35

e inclusive pode discutir-se o ponto de vista de se uma certa medida


de hipocrisia cultural não será indispensável para a conservação da
cultura, porque a aptidão cultural já organizada dos homens do pre-
sente não bastaria talvez para esta realização.
Por outro lado, a conservação da civilidade sobre tão equívoco
fundamento proporciona a perspetiva de iniciar, com cada nova
geração, uma mais ampla transformação pulsional, como substrato
de uma melhor civilização.
As elucidações até agora feitas dão-nos já a consolação de com-
provar que a nossa indignação e a nossa dolorosa deceção, por causa
da conduta incivilizada dos nossos concidadãos mundiais, são injusti-
ficadas nesta guerra. Baseiam-se numa ilusão em que nos ­enredámos.
Na realidade, tais homens não caíram tão baixo como temíamos,
porque também não tinham subido tão alto, como a seu respeito jul-
gávamos. O facto de os grandes indivíduos humanos, os povos e os
Estados, terem reciprocamente infringido as restrições morais foi para
eles um estímulo compreensível para se subtraírem por algum tempo
à pressão da cultura e permitirem uma satisfação passageira das suas
pulsões retidas. E não perderam assim, provavelmente, a sua morali-
dade relativa no seio da coletividade nacional.
Podemos ainda penetrar mais profundamente na compreensão
da mudança que a guerra suscitou nos nossos antigos compatriotas
e deparamos então com uma advertência a não cometermos qual-
quer injustiça para com eles. As evoluções psíquicas possuem, de
facto, uma peculiaridade que não ocorre em nenhum outro processo
evolutivo. Quando uma aldeia se torna cidade ou uma criança se
faz homem, a aldeia e a criança são absorvidas pela cidade e pelo
homem. Só a recordação pode delinear os antigos traços na nova
imagem; na realidade, os materiais ou as formas anteriores foram
deixados de lado e por outros substituídos. As coisas passam-se
de modo diferente numa evolução psíquica. Dada a falta de ter-
mos de comparação, limitar-nos-emos a afirmar que todo o estádio
evolutivo anterior persiste ao lado do ulterior, que dele derivou; a
sucessão condiciona uma coexistência, embora sejam os mesmos
­materiais em que decorreu toda a série de mutações. O estado psí-
quico anterior pode não se ter manifestado em muitos anos, no
36 P ORQUÊ A GUE RRA?

entanto, persiste de tal modo que em qualquer momento se pode


tornar de novo a forma expressiva das forças anímicas, e até a única,
como se todas as evoluções ulteriores se tivessem anulado ou regre-
dido. Esta plasticidade extraordinária das evoluções psíquicas não
é, na sua orientação, ilimitada; pode considerar-se como uma facul-
dade especial de involução — regressão — pois sucede por vezes
que um estádio evolutivo ulterior e superior, que foi abandonado,
já de novo se não pode alcançar. Mas os estados primitivos podem
sempre ser reconstituídos; o psíquico primitivo é, no sentido mais
pleno, ­imperecível.
As chamadas enfermidades mentais devem despertar no leigo a
impressão de que a vida mental e psíquica ficou destruída. Na reali-
dade, a destruição concerne apenas a aquisições e a desenvolvimen-
tos ulteriores. A essência da enfermidade mental consiste no retorno
a estados anteriores da vida afetiva e da função. O estado hípnico, a
que aspiramos todas as noites, fornece-nos um exemplo excelente da
plasticidade da vida anímica. Desde que aprendemos a interpretar
inclusive os sonhos mais absurdos e confusos, sabemos que, ao ador-
mecer, nos despojamos da nossa moralidade, tão trabalhosamente
adquirida, como de um vestido — e só de manhã de novo nela nos
envolvemos. Este desnudamento é, naturalmente, inócuo, já que o
estado hípnico nos paralisa e nos condena à inatividade. Só o sonho
nos pode dar notícia da regressão da nossa vida afetiva a um dos mais
antigos estádios evolutivos. Assim, por exemplo, é curioso que todos
os nossos sonhos sejam regidos por motivos puramente egoístas.
Um dos meus amigos ingleses (1) defendeu uma vez esta tese numa
reunião científica na América, e uma das senhoras presentes obje-
tou-lhe que tal coisa poderia talvez acontecer na Áustria, mas de si
mesma e dos seus amigos poderia afirmar que no sonho tinham igual-
mente sentimentos altruístas. O meu amigo ripostou energicamente
à senhora, baseado na sua própria experiência na análise dos sonhos.
Nestes, as nobres americanas são tão egoístas como as austríacas.
Assim, pois, a transformação das pulsões, em que se funda a
nossa capacidade de civilização, pode, em virtude das influências

(1) Ernest Jones.


considera ções atuais sobre a guerra e a morte 37

da vida, ficar anulada de um modo temporário ou permanente. Sem


dúvida, as influências da guerra integram-se naquelas forças que
podem provocar semelhante involução e, por isso, não precisamos
de negar a todos os que hoje se comportam de modo incivilizado a
disposição à cultura, e podemos esperar que as suas pulsões tornarão
a enobrecer-se em tempos mais serenos.
Mas talvez tenhamos descoberto nos nossos concidadãos mun-
diais um outro sintoma que não menos nos surpreendeu do que a sua
descida, tão dolorosamente sentida, da altura ética que haviam alcan-
çado. Refiro-me à falta de discernimento que se revela nas melhores
cabeças, à sua obstinação e impermeabilidade aos mais vigorosos
argumentos, à sua credulidade acrítica perante as afirmações mais
discutíveis. Tudo isto oferece, decerto, uma imagem triste, e quero
sublinhar expressamente que eu — que não sou um cego partidário
— de nenhum modo vejo todos os defeitos intelectuais só num dos
lados. Mas este fenómeno é ainda mais fácil de explicar e muito
menos alarmante do que o anteriormente discutido. Os psicólogos e
os filósofos ensinaram-nos já há muito que fazemos mal em consi-
derar a nossa inteligência como um poder independente e em passar
por alto a sua dependência da vida sentimental. O nosso intelecto só
poderia trabalhar corretamente quando se encontra subtraído à ação
de intensos impulsos emocionais; no caso contrário, comporta-se
simplesmente como um instrumento nas mãos de uma vontade e
produz o resultado de que esta última o encarrega. Por conseguinte,
os argumentos lógicos seriam impotentes face aos interesses afe-
tivos e, por isso, as contendas com razões («tão comuns como as
amoras», segundo a expressão de Falstaff [2]) são tão estéreis no
mundo dos interesses. A experiência psicanalítica sublinhou energi-
camente esta afirmação. Pode mostrar todos os dias que os homens
mais inteligentes se comportam de súbito sem discernimento,
como deficientes mentais, logo que o conhecimento exigido neles
tropeça com uma resistência sentimental, mas também recuperam
toda a compreensão, uma vez superada tal resistência. A cegueira
lógica, que esta guerra muitas vezes provocou nos nossos ­melhores

(2) Shakespeare, Henrique IV, parte I, ato 2, 4.ª cena.


38 P ORQUÊ A GUE RRA?

c­ oncidadãos do mundo, é, pois, um fenómeno secundário, uma con-


sequência da excitação sentimental, e é de esperar que esteja desti-
nada a com ela desaparecer.
Se deste modo voltarmos de novo a compreender, na sua estra-
nheza, os nossos concidadãos mundiais, suportaremos muito mais
facilmente a deceção que as grandes individualidades da Humani-
dade, os povos, nos causaram, pois a estes só podemos fazer exi-
gências muito mais modestas. Reproduzem talvez a evolução dos
indivíduos e mostram-se-nos hoje em estádios muito primitivos da
organização, da formação de unidades superiores. Correlativamente,
o fator educativo da coerção externa à moralidade, que tão eficiente
encontramos no indivíduo, é neles dificilmente percetível. Tínhamos
decerto esperado que a grandiosa comunidade de interesses criada
pelo comércio e pela produção seria o início de semelhante coer-
ção, mas parece que os povos obedecem agora muito mais às suas
paixões do que aos seus interesses. Quando muito, servem-se dos
interesses para racionalizar as paixões; antepõem os seus interesses
a fim de poderem fundamentar a satisfação das suas paixões. É, sem
dúvida, enigmático porque é que as individualidades coletivas, as
nações, se desprezam, odeiam e aborrecem umas às outras, inclusive
também em tempos de paz. Não sei que dizer. Neste caso sucede
precisamente como se todas as conquistas morais dos indivíduos
se desvanecessem, ao conglomerar-se uma multidão, constituída
por milhões de homens, e apenas perdurassem as atitudes psíqui-
cas mais primitivas, mais antigas e mais grosseiras. Estas lamen-
táveis circunstâncias serão, porventura, modificadas por evoluções
­posteriores. Mas um pouco mais de veracidade e de sinceridade, nas
relações dos homens entre si e os seus governantes, deveria aplanar
o caminho para tal transformação.
II

A nossa atitude diante da morte

O segundo fator de que deduzo que hoje nos sentimos deso-


rientados neste mundo, antes tão belo e familiar, é a perturbação da
atitude, até agora imutável, perante a morte.
Esta atitude não era sincera. Se alguém nos escutasse, estaríamos
naturalmente dispostos a afirmar que a morte era o desenlace necessá-
rio de toda a vida, que cada um de nós estava em dívida de morte para
com a Natureza e deveria estar preparado para pagar tal dívida, em
suma, que a morte era natural, indiscutível e inevitável. Na realidade,
porém, costumávamos comportar-nos como se fosse de outro modo.
Temos uma tendência patente a prescindir da morte, a eliminá-la da
vida. Tentámos silenciá-la; temos até o provérbio: pensamos em algo
como na morte. Como na própria, claro está! A morte própria é, pois,
inimaginável, e quantas vezes o tentámos pudemos observar que, em
rigor, permanecemos sempre como espectadores. Assim, foi possível
arriscar na escola psicanalítica esta asserção: no fundo, ninguém acre-
dita na sua própria morte ou, o que é a mesma coisa, no inconsciente,
cada qual está convencido da sua imortalidade.
No tocante à morte dos outros, o homem civilizado evitará cui-
dadosamente falar de tal possibilidade, quando o destinado a morrer
o possa ouvir. Só as crianças infringem esta restrição; ameaçam-se
sem pejo umas às outras com as probabilidades de morrer e chegam,
40 P ORQUÊ A GUE RRA?

inclusive, a dizer na cara de uma pessoa amada coisas como esta:


«Querida mamã, quando morreres, farei isto ou aquilo.» O adulto
civilizado não admitirá de bom grado nos seus pensamentos a morte
de outra pessoa, sem aparecer aos seus próprios olhos como insensí-
vel ou mau; a não ser que como médico, advogado, etc., tenha a ver
com a morte. E muito menos se permitirá pensar na morte de outro
quando a tal acontecimento está ligado um ganho de liberdade, de
fortuna ou de posição social. Naturalmente, esta nossa delicadeza
não evita as mortes, mas quando estas acontecem, sentimo-nos
sempre profundamente comovidos e como que abalados nas nossas
expectações. Acentuamos com regularidade a motivação casual da
morte, o acidente, a enfermidade, a infeção, a idade avançada, e
traímos assim o nosso empenho em rebaixar a morte de necessi-
dade a casualidade. Uma acumulação de casos mortais afigura-se-
-nos como algo de sobremaneira horrível. Diante do próprio morto
adotamos um comportamento peculiar, quase como de admiração
por alguém que levou a cabo algo de muito difícil. Excluímos a
crítica a seu respeito, fazemos vista grossa sobre qualquer injus-
tiça sua, determinamos que de mortuis nil nisi bene (3), e achamos
justificado que na oração fúnebre e na inscrição sepulcral ele seja
honrado e exaltado. A consideração para com o morto, de que ele já
não precisa, está para nós acima da verdade, e para a maioria de nós,
decerto também, acima da consideração para com os vivos.
Esta atitude convencional da nossa civilização perante a morte é
complementada pelo nosso total colapso quando a morte feriu uma
pessoa que nos é muito chegada, o pai ou a mãe, o esposo ou a
esposa, um filho, um irmão ou um amigo querido. Enterramos com
ele as nossas esperanças, as nossas aspirações e os nossos gozos,
não queremos consolar-nos e recusamo-nos a toda a substituição do
ente perdido. Comportamo-nos então como os «Asras», que morrem
quando morrem os que eles amam (4).

(3) «Dos mortos apenas se diz bem.»


(4) Os Asra são uma tribo árabe; cf. o poema de Heine «Der Asra» (no
Romancero, baseado numa passagem da obra de Stendhal, De l’amour): «... e a
minha tribo são aqueles Asra, que morrem, quando amam».
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 41

Esta nossa atitude face à morte exerce, porém, uma poderosa


influência na nossa vida. A vida empobrece-se, perde interesse,
quando a aposta máxima no jogo da vida, ou seja, a própria vida, se
não tem de arriscar. Torna-se tão insípida, vazia, como porventura
um flirt americano, no qual se sabe de antemão que nada pode acon-
tecer, diferentemente de uma relação amorosa continental em que
ambos os parceiros devem ter sempre presente a possibilidade de
graves consequências. Os nossos laços sentimentais, a intensidade
intolerável da nossa pena levam a desviar-nos dos perigos para nós
e para os nossos. Não nos atrevemos a ter em conta uma série inteira
de empreendimentos que são perigosos, mas inevitáveis, como
as tentativas dos aviadores, as expedições a terras longínquas, as
experiências com substâncias explosivas. Paralisa-nos o escrúpulo
de quem substituirá o filho ao lado da mãe, o homem ao lado da
mulher, o pai junto dos filhos, se suceder alguma desgraça. A ten-
dência para excluir a morte da conta da vida traz consigo muitas
outras renúncias e exclusões. E, todavia, o lema da Confederação
hanseática reza assim: Navigare necesse est, vivere non necesse!
Necessário é navegar, não viver!
Resta então apenas procurar no mundo da ficção, na literatura,
no teatro, a compensação do que na vida minguou. Aí encontra-
mos homens que sabem morrer, mais ainda, que conseguem tam-
bém matar os outros. Só aí se realiza também a condição sob a qual
poderíamos reconciliar-nos com a morte, a saber, a de que por trás
de todas as vicissitudes da vida nos ficou ainda uma vida intangível.
É demasiado triste que na vida venha a suceder como no xadrez,
onde uma falsa jogada nos pode forçar a dar por perdida a partida,
mas com a diferença de que já não podemos começar uma segunda
partida de desforra. No campo da ficção, deparamos com a plurali-
dade de vidas de que necessitamos. Morremos na identificação com
um herói, mas sobrevivemos-lhe e estamos dispostos a morrer outra
vez, igualmente indemnes, com outro herói.
É evidente que a guerra tem de excluir esta consideração con-
vencional da morte. Esta já não se deixa agora negar; importa nela
acreditar. Os homens morrem realmente, e já não um de quando em
quando, mas muitos, frequentemente dezenas de milhares num dia.
42 P ORQUÊ A GUE RRA?

Também não se trata de um acaso. Sem dúvida, parece ainda casual


que esta bala acerte num ou noutro; talvez uma segunda bala atinja
estoutro, mas a acumulação põe um termo à impressão de casuali-
dade. A vida tornou-se de novo interessante, recebeu de novo o seu
pleno conteúdo.
Importaria aqui estabelecer uma divisão em dois grupos, sepa-
rar os que dão a sua vida no combate dos que permaneceram em
casa e apenas têm de esperar vir a perder algum ente querido por
lesão, doença ou infeção. Seria, decerto, muito interessante estu-
dar as transformações que ocorrem na psicologia dos combatentes,
mas sei muito pouco a tal respeito. Limitar-nos-emos ao segundo
grupo, a que nós próprios pertencemos. Já afirmei que, na minha
opinião, a desorientação e a paralisia da nossa capacidade funcional,
sob a qual penamos, são essencialmente determinadas pela circuns-
tância de não conseguirmos manter a nossa anterior atitude face à
morte e de ainda não termos achado outra nova. Talvez nos seja de
ajuda dirigir a nossa investigação psicológica para outras duas ati-
tudes diante da morte: para aquela que podemos atribuir ao homem
primordial, ao homem da Pré-história, e para aquela que em todos
nós ainda se mantém, mas invisível e oculta à nossa consciência
nos estratos mais profundos da nossa vida anímica.
Naturalmente, só por inferência e mediante construções sabe-
mos como é que o homem da Pré-história se comportava perante a
morte, mas, a meu ver, estes meios proporcionam-nos dados assaz
fidedignos.
O homem primordial situou-se na presença da morte de um
modo muito notável. Não de uma forma unitária, antes repleta de
contradições. Por um lado, tomou a sério a morte, reconheceu-a
como supressão da vida e dela neste sentido se serviu; mas, por
outro, também a negou, reduziu-a a nada. Esta contradição tornou-
-se possível pela circunstância de o homem primordial ter adotado
face à morte dos outros, do estranho e do inimigo, uma atitude radi-
calmente distinta da que adotou diante da sua própria. A morte dos
outros era-lhe grata, supunha o aniquilamento do que era odiado,
e o homem primordial não tinha qualquer escrúpulo em provocá-
-la. Era, sem dúvida, um ser extraordinariamente apaixonado, mais
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 43

cruel e perverso do que os outros animais. Comprazia-se em matar,


e como se fosse uma coisa natural. Não precisamos de lhe atribuir
o instinto que impede os outros animais de matar seres da mesma
espécie e de os devorar.
A história primordial da Humanidade está, pois, cheia de assas-
sínio. Ainda hoje, o que os nossos filhos aprendem na escola como
História Universal é, no essencial, uma série de assassinatos de
povos. O obscuro sentimento de culpa que pesa sobre a Humanidade
desde os tempos primitivos, que em algumas religiões se condensou
na hipótese de uma culpa primigénia, de um pecado original, é pro-
vavelmente a expressão de uma culpa de sangue, que a Humanidade
primordial sobre si arrojou.
No meu livro Totem e Tabu (1912-13), seguindo as indicações
de W. Robertson Smith, Atkinson e Ch. Darwin, quis indagar a natu-
reza desta culpa antiga e opino que a hodierna doutrina cristã nos
possibilita a sua inferência. Se o Filho de Deus teve de sacrificar a
sua vida para redimir a Humanidade do pecado original, então este
pecado teve de ser, segundo a lei de talião, a retribuição por algo de
semelhante, uma morte, um assassinato. Só isto podia exigir como
expiação o sacrifício de uma vida. E se o pecado original foi uma
culpa contra Deus Pai, então o crime mais antigo da Humanidade
teve de ser um parricídio, a morte do pai primordial da primitiva
horda humana, cuja imagem mnésica foi mais tarde transfigurada
em divindade.
A morte própria era, certamente, para o homem primordial, tão
irrepresentável e inverosímil como hoje para cada um de nós. Mas
apresentou-se-lhe um caso em que convergiam e chocavam entre
si as duas atitudes opostas perante a morte, e este caso tornou-se
muito significativo e rico de consequências longínquas. Aconteceu
quando o homem primordial viu morrer um dos seus familiares, a
sua mulher, o seu filho, o seu amigo, que ele amava, certamente
como nós os nossos, pois o amor não pode ser muito mais jovem do
que o prazer assassino. Teve então, na sua dor, de fazer a experiência
de que também ele poderia morrer, e todo o seu ser se revoltou con-
tra tal concessão; cada um dos seres amados era, de facto, um frag-
mento do seu próprio eu amado. Por outro lado, semelhante morte
44 P ORQUÊ A GUE RRA?

era-lhe todavia grata, pois em cada uma das pessoas amadas havia
também um elemento estranho. A lei da ambivalência dos sentimen-
tos, que ainda hoje domina as nossas relações sentimentais com as
pessoas por nós amadas, tinha decerto um domínio ainda mais irres-
trito nos tempos primitivos. Os mortos amados eram, no entanto,
também estranhos e inimigos, que tinham nele suscitado uma cota-
-parte de sentimentos hostis (5).
Os filósofos afirmaram que o enigma intelectual, proposto ao
homem primordial pela imagem da morte, o forçou à reflexão, e se
tornou o ponto de partida de toda a especulação. Creio que os filó-
sofos pensam a este respeito de um modo demasiado filosófico, têm
em muito pouca consideração os motivos primariamente eficazes.
Terei, pois, de restringir e de corrigir a afirmação anterior: diante
do cadáver do inimigo vencido, o homem primordial terá saboreado
o seu triunfo sem encontrar estímulo algum para pôr a sua cabeça
em água a propósito do enigma da vida e da morte. O que desa-
tou a indagação humana não foi o enigma intelectual, nem sequer
qualquer morte, mas o conflito sentimental que surgiu na morte das
pessoas amadas e, todavia, também estranhas e odiadas. Foi deste
conflito sentimental que nasceu a psicologia. O homem já não podia
manter de si afastada a morte, pois a experimentara na dor pelos
seus mortos; mas não a queria reconhecer, já que lhe era impossí-
vel imaginar-se morto. Chegou assim a um compromisso: admitiu a
morte também para si, mas contesta a significação da aniquilação da
vida, coisa para a qual lhe tinham faltado motivos perante a morte
do inimigo. Na presença do cadáver da pessoa amada, o homem
primordial inventou os espíritos, e o seu sentimento de culpabili-
dade pela satisfação que se mesclava com a dor fez que estes espí-
ritos primigénios se tornassem demónios perversos, que importava
recear. As transformações da morte sugeriram-lhe a dissociação do
indivíduo num corpo e numa alma — originariamente várias; o seu
caminho mental seguiu deste modo uma trajetória paralela ao pro-
cesso de desintegração que a morte inicia. A recordação duradoira
dos mortos tornou-se o fundamento da suposição de outras formas

(5) Totem e Tabu, «O tabu e a ambivalência dos sentimentos».


considera ções atuais sobre a guerra e a morte 45

de existência e deu ao homem a ideia de uma sobrevivência depois


da morte aparente.
Estas existências posteriores foram inicialmente apenas pálidos
apêndices daquela que a morte encerrava; foram existências espec-
trais, vazias e escassamente apreciadas até épocas ulteriores. Recor-
demos o que a alma de Aquiles responde a Ulisses:

«Honrámos-te outrora, quando vivo, semelhante aos deuses,


nós Argivos; e agora, poderoso, mandas nos espíritos,
que aqui em toda a parte habitam. Por isso, Aquiles, não lamentes
[a morte.»
Assim eu falei; e logo ele respondeu, ripostando:
«Não me fales da morte com palavras consoladoras, nobre Ulisses!
Preferiria lavrar a terra como jornaleiro,
ser um homem necessitado, sem heranças e bem-estar próprio,
a reinar sobre toda a multidão desesperançada dos mortos.»

(Odisseia, XI, Versos 484-491)

Ou na vigorosa versão, amargamente parodística, de H. Heine:

O mais insignificante filisteu vivo


— de Stuckert junto ao Neckar — é muito mais feliz
do que eu, o Pelida, o herói morto,
o príncipe das sombras no Averno.

Só mais tarde é que as religiões conseguiram apresentar a exis-


tência póstuma como a mais valiosa e completa, e rebaixar a uma
simples preparação a vida encerrada pela morte. Em seguida, foi
apenas uma consequência prolongar também a vida para o passado,
inventar existências anteriores, a migração das almas e a reencarna-
ção, tudo com a intenção de despojar a morte da sua significação de
anulação da vida. Assim começou a negação da morte, negação que
qualificámos de atitude convencional e cultural.
Diante do cadáver da pessoa amada nasceram não só a teoria
da alma, a fé na imortalidade e uma poderosa raiz do sentimento de
46 P ORQUÊ A GUE RRA?

culpabilidade dos homens, mas também os primeiros mandamentos


éticos. O primeiro e principal mandamento da consciência emer-
gente foi: «Não matarás!» Surgiu como reação contra a satisfação
do ódio, oculta por trás da pena pela morte das pessoas amadas, e
estendeu-se pouco a pouco ao estranho não amado e, por fim, tam-
bém ao inimigo.
Neste último caso, o «Não matarás!» já não é percebido pelo
homem civilizado. Quando a luta cruel desta guerra tiver encon-
trado o seu desfecho, cada um dos combatentes vitoriosos regressará
apressadamente ao seu lar, para ao pé da mulher e dos filhos, sem
que o perturbe o pensamento dos inimigos que ele matou no com-
bate corpo a corpo ou com as armas de longo alcance. Note-se que
os povos primitivos ainda existentes na Terra, mais próximos do
que nós do homem primordial, se comportam neste ponto de modo
muito diferente — ou se comportaram, enquanto não sofreram a
influência da nossa cultura. O selvagem — australiano, bosquímane
ou o habitante da Terra do Fogo — não é nenhum assassino sem
remorsos; quando regressa vencedor da luta não lhe é lícito pisar a
sua aldeia nem tocar na sua mulher, antes de ter resgatado os seus
homicídios guerreiros com penitências, por vezes, longas e penosas.
Naturalmente, a explicação desta superstição é evidente; o selvagem
teme ainda a vingança dos espíritos dos mortos. Mas os espíritos dos
inimigos chacinados são apenas a expressão da sua má consciência
por causa dos seus homicídios; por trás desta superstição oculta-se
um fragmento de sensibilidade ética que nós, homens civilizados,
perdemos.
Não faltarão por certo almas piedosas que, preferindo conside-
rar estranho à natureza do homem tudo aquilo que é mau e vulgar,
pretenderão extrair da antiguidade e imperiosidade desta interdição
de homicídio conclusões otimistas acerca da intensidade dos impul-
sos éticos inatos em nós. No entanto, este argumento demonstra
justamente o contrário. Uma proibição tão forte só pode ­elevar-se
contra um impulso igualmente poderoso. O que nenhuma alma
humana deseja não precisa de ser proibido, exclui-se por si mesmo.
A acentuação do mandamento «Não matarás!» garante-nos justa-
mente que descendemos de uma longuíssima série de gerações de
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 47

assassinos, que tinham no sangue o prazer de matar, como talvez


ainda nós próprios. As aspirações éticas da humanidade, de cuja
força e importância não há que duvidar, são uma conquista da his-
tória humana e tornaram-se em seguida, embora infelizmente num
grau muito variável, uma propriedade herdada da humanidade atual.
Deixemos agora o homem primitivo e voltemo-nos para o incons-
ciente da nossa própria vida psíquica. Baseamo-nos no método de
investigação da psicanálise, o único que chega a tais profundezas.
Perguntamo-nos: como se comporta o nosso inconsciente perante
o problema da morte? A resposta rezará assim: quase exatamente
como o homem primordial. Neste aspeto, como em muitos outros,
o homem da Pré-história sobrevive imutável no nosso inconsciente.
Por isso, o nosso inconsciente não crê na própria morte, comporta-
-se como se fosse imortal. O que denominamos «inconsciente» —
os estratos mais profundos da nossa alma, constituídos por moções
pulsionais — não conhece, em geral, nada de negativo, nenhuma
negação — as contradições fundem-se nele — e, portanto, tam-
bém não conhece a própria morte, à qual só podemos dar um con-
teúdo negativo. Por conseguinte, nada de pulsional favorece em
nós a crença na morte. Talvez seja este até o segredo do heroísmo.
A fundamentação racional do heroísmo baseia-se no juízo de que
a vida própria não pode ser tão valiosa como certos bens abstra-
tos e gerais. Mas, a meu ver, o que com maior frequência acontece
é que o heroísmo instintivo e impulsivo prescinde de semelhante
motivação e menospreza o perigo, dizendo para si simplesmente:
«Nada te pode acontecer!», como na comédia Steinklopferhann de
­Anzengruber. Ou então aquela motivação serve apenas para desva-
necer as preocupações que poderiam inibir a reação heroica corres-
pondente ao inconsciente. A angústia da morte, que nos domina de
um modo mais assíduo do que advertimos, é, em contrapartida, algo
de secundário e deriva quase sempre do sentimento de culpa.
Por outro lado, aceitamos a morte para o estranho e o inimigo e
a eles a infligimos tão prontamente e sem escrúpulos como o homem
primordial. Surge aqui, decerto, uma diferença, que efetivamente
se considerará decisiva. O nosso inconsciente não induz ao assas-
sinato, apenas o pensa e deseja. Mas seria errado infravalorar esta
48 P ORQUÊ A GUE RRA?

realidade psíquica em comparação com a fáctica. Ela é significativa


e traz consigo consequências graves. Nas nossas moções pulsionais
suprimimos constantemente todos os que estorvam o nosso cami-
nho, que nos ofenderam e nos prejudicaram. A exclamação «Que vá
para o diabo!», que com tanta frequência acode aos nossos lábios
para encobrirmos jocosamente o nosso mau humor e que, de facto,
quer dizer «Que o leve a morte!», é, no nosso inconsciente, um
sério e violento desejo de morte. Sim, o nosso inconsciente mata
até por ninharias: como a antiga legislação ateniense de Drácon
não conhece, para todos os delitos, nenhuma outra pena a não ser
a morte, e tal com uma certa lógica, pois todo o dano causado ao
nosso omnipotente e despótico Eu é, no fundo, um crimen laesae
majestatis.
Assim também nós próprios, julgados pelas nossas moções
inconscientes, somos, como os homens primitivos, um bando de
assassinos. Felizmente, tais desejos não possuem a força que os
homens dos tempos primordiais ainda lhes atribuíam; de outro
modo, no fogo cruzado das maldições recíprocas, a humanidade, os
homens mais excelsos e sábios e também as mais belas e amorosas
mulheres já há muito teriam perecido.
Estas teses, que a psicanálise formula, deparam com a incredu-
lidade nos leigos. Rejeitam-se como calúnias insustentáveis perante
as afirmações da consciência, e passam-se habilmente por cima os
pequenos indícios com que também o inconsciente costuma manifes-
tar-se à consciência. Não é, portanto, inoportuno referir que ­muitos
pensadores, que não podiam ter sido influenciados pela psicanálise,
denunciaram claramente a prontidão dos nossos ­pensamentos secre-
tos para suprimir o que nos impede o caminho, com um absoluto
desprezo pela proibição de matar. Entre muitos outros, escolho a
este respeito um único exemplo que se tornou famoso.
Em Le Père Goriot, Balzac alude a uma passagem nas obras
de J.-J. Rousseau em que este pergunta ao leitor o que ele faria se
— sem deixar Paris e, naturalmente, sem ser descoberto — com
um simples ato de vontade, pudesse matar um velho mandarim
em Pequim, cuja morte lhe traria grandes vantagens. Rousseau dá
a entender que não considera nada segura a vida desse ­dignitário.
considera ções atuais sobre a guerra e a morte 49

«Tuer son mandarin» tornou-se, em seguida, proverbial como desig-


nação de tal disposição secreta, latente ainda no homem de hoje.
Há também um grande número de anedotas e historietas cíni-
cas que dão testemunho na mesma direção, como, por exemplo, a
expressão atribuída ao marido: «Se um de nós morrer, irei viver para
Paris!», Estes chistes cínicos não seriam possíveis se não tivessem
de comunicar uma verdade negada, à qual não se pode dar assenti-
mento quando é exposta a sério e de uma maneira declarada. Como
se sabe, no chiste até a verdade se pode dizer.
Como ao homem primitivo, também ao nosso inconsciente se
apresenta um caso em que as duas atitudes opostas face à morte,
chocam e entram em conflito, uma, que a reconhece como aniquila-
ção da vida, e a outra que a nega como irreal. E este caso é o mesmo
que na época primitiva: a morte ou o perigo da morte de um ente
querido, do pai ou da mãe, de um irmão, de um filho ou de um amigo
dileto. Estas pessoas amadas são para nós, por um lado, um patrimó-
nio íntimo, componentes do nosso próprio Eu; por outro, porém, são
em parte estranhos, e até inimigos. Todas as nossas relações amoro-
sas, mesmo as mais íntimas e ternas, implicam, salvo em raríssimas
situações, um fragmento de hostilidade que pode estimular o desejo
inconsciente de morte. Desta ambivalência já não nascem, como
outrora, o animismo e a ética, mas a neurose, a qual nos faculta vis-
tas profundas sobre o psiquismo normal. Os médicos que praticam
o tratamento psicanalítico depararam, muitas vezes, com o sintoma
de uma preocupação exacerbada pelo bem-estar dos familiares ou
com autocensuras totalmente infundadas após a morte de uma pes-
soa amada. O estudo destes casos não lhes deixou dúvida alguma
sobre a difusão e a importância dos desejos inconscientes de morte.
O leigo horroriza-se com a possibilidade deste sentimento e atri-
bui a tal repugnância o valor de um motivo legítimo para aceitar
com incredulidade as afirmações da psicanálise. Na minha opinião,
sem fundamento algum. Não se intenta qualquer depreciação da
vida afetiva, e não tem também semelhante consequência. Tanto a
nossa inteligência como o nosso sentimento resiste, decerto, a jun-
tar assim o amor e o ódio; mas a natureza, ao trabalhar com este
par antitético, consegue conservar sempre desperto e fresco o amor,
50 P ORQUÊ A GUE RRA?

para o ­resguardar do ódio que, por trás dele, está à espreita. Pode
dizer-se que as mais belas florações da nossa vida amorosa as deve-
mos à reação contra o impulso hostil, que percebemos no nosso
peito.
Em resumo: o nosso inconsciente é tão inacessível à represen-
tação da morte própria, tão sanguinário contra os estranhos e tão
ambivalente quanto à pessoa amada como o homem da Pré-história.
Mas quanto nos afastámos deste estado primitivo na nossa atitude
cultural e convencional face à morte!
É fácil dizer como a guerra interfere nesta dicotomia. Despoja­-
-nos das ulteriores sobreposições da cultura e deixa de novo vir em
nós ao de cima o homem primitivo. Obriga-nos novamente a ser
heróis que não podem acreditar na sua própria morte; apresenta-
-nos os estranhos como inimigos, a quem devemos dar ou desejar
a morte; aconselha-nos a sobrepor-nos à morte das pessoas ama-
das. Mas é impossível acabar com a guerra: enquanto as condições
de existência dos povos forem tão distintas e as repulsas entre eles
tão violentas, terá de haver guerras. E surge então a pergunta: não
devemos ser nós os que cedem e a ela se ajustam? Não devemos nós
confessar que, com a nossa atitude cultural perante a morte, vivemos
psicologicamente acima da nossa condição e deveremos, portanto,
renunciar à mentira e declarar a verdade? Não seria melhor atribuir
à morte, na realidade e nos nossos pensamentos, o lugar que lhe
compete e deixar vir um pouco mais à superfície a nossa atitude
inconsciente diante da morte, que até agora tão cuidadosamente
reprimimos? Isto não parece constituir um progresso, mas, em cer-
tos aspetos, uma regressão; oferece, todavia, a vantagem de ter mais
em conta a veracidade e de tornar novamente mais suportável a vida.
Suportar a vida é, e será sempre, o primeiro dever de todos os viven-
tes. A ilusão torna-se sem valor, quando de tal nos impede.
Recordamos a antiga sentença: Si vis pacem, para bellum.
Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra.
Seria oportuno modificá-la assim: Si vis vitam, para mortem.
Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte.
Sigmund Freud

CADUCIDADE
(1915)
Passeava eu, há algum tempo, pelos campos floridos de verão,
na companhia de um amigo taciturno e de um jovem mas já célebre
poeta que admirava a beleza da natureza envolvente, mas não conse-
guia alegrar-se por causa dela, pois preocupava-o a ideia de que todo
este esplendor estava condenado a perecer, de que já no inverno
vindouro teria desaparecido, como toda a beleza humana e todos os
produtos belos e nobres que o homem criou ou poderia criar. Tudo o
que teria amado e admirado, se não se interpusesse esta circunstân-
cia, afigurava-se-lhe desprovido de valor em virtude do destino de
perecer a que estava condenado.
Sabemos que esta preocupação pelo caráter perecível do belo e
do perfeito pode originar duas tendências psíquicas distintas. Uma
leva ao amargado desgosto do mundo que o jovem poeta sentia; a
outra, à rebelião contra essa pretensa fatalidade. Não! É impossível
que todo esse esplendor da natureza e da arte, do nosso mundo senti-
mental e do mundo exterior, esteja realmente condenado a desapare-
cer no nada! Acreditar em tal seria demasiado insensato e sacrílego.
Tudo isso há de conseguir subsistir de algum modo, subtraído a toda
a influência que ameace aniquilá-lo.
Mas esta pretensão de eternidade atraiçoa com demasiada cla-
ridade a sua filiação nos nossos desejos para que possa reivindicar
54 P ORQUÊ A GUE RRA?

que se lhe conceda valor de realidade. O que se revela doloroso


pode também ser certo; não consegui, pois, decidir-me a refutar a
generalidade do perecível nem a impor uma exceção para o belo e o
perfeito. Em contrapartida, neguei ao poeta pessimista que o caráter
perecível do belo implicasse a sua desvalorização.
É antes um incremento do seu valor! A qualidade de perecível
comporta um valor de rareza no tempo. As limitadas possibilida-
des de dele fruir tornam-no tanto mais precioso. Manifestei, pois, a
minha incompreensão de que a caducidade da beleza houvesse de
turvar o gozo que nos proporciona. Quanto à beleza da natureza,
depressa renasce de cada destruição invernal, e tal renascimento
pode, decerto, considerar-se eterno em comparação com o prazo da
nossa própria vida. No decurso da nossa existência vemos fenecer
para sempre a beleza do rosto e do corpo humanos, mas esta fuga-
cidade acrescenta aos seus encantos um novo. Uma flor não nos
parece menos esplêndida porque as suas pétalas só estão viçosas
durante uma noite. Não consegui também compreender porque é
que a limitação no tempo haveria de diminuir a perfeição e a beleza
da obra artística ou da produção intelectual. Surja uma época em
que se reduzam a pó os quadros e as estátuas que hoje admiramos;
suceda-nos uma geração de seres que já não compreendam as obras
dos nossos poetas e pensadores; tenha lugar ainda uma era geológica
que veja emudecida toda a vida na terra..., não importa; o valor de
todo o belo e perfeito que existe reside apenas na sua importância
para a nossa perceção; não é necessário que lhe sobreviva e, por
conseguinte, é independente da sua perduração no tempo.
Embora tais argumentos me parecessem sem objeção, pude
notar que não faziam mossa no poeta nem no meu amigo. Seme-
lhante fiasco levou-me a presumir que eles deveriam estar impe-
didos por um poderoso fator afetivo que turvava a clareza do seu
juízo, fator que mais tarde julguei ter encontrado. A revolta psí-
quica contra a aflição, contra a pena por algo perdido, deve ter-lhes
frustrado o gozo do belo. A ideia de que toda esta beleza seria efé-
mera suscitou em ambos, tão sensíveis, uma sensação antecipada
da aflição que lhes ocasionaria o seu aniquilamento, e uma vez que
a alma se afasta instintivamente de tudo o que é doloroso, estas
caducidade 55

pessoas viram inibido o seu gozo do belo pela ideia da sua índole
perecível.
Ao leigo afigura-se tão natural a pena pela perda de algo amado
ou admirado que não hesita em qualificá-lo de óbvio e evidente.
Para o psicólogo, pelo contrário, esta aflição representa um grande
problema, um daqueles fenómenos que, embora também incógni-
tos, servem para reduzir a eles outras incertezas. Imaginamos assim
possuir uma certa capacidade amorosa — chamada «libido» — que,
no começo da evolução, se orientou para o próprio Eu, para mais
tarde — embora, na realidade, muito precocemente — se dirigir
para os objetos, que desta sorte ficam de certo modo incluídos no
nosso eu. Se os objetos são destruídos ou se os perdemos, a nossa
capacidade amorosa (libido) volta a ficar em liberdade, e pode tomar
outros objetos como substitutos, ou regressar transitoriamente ao eu.
­Todavia, não conseguimos explicar — nem podemos a tal respeito
aventar hipótese alguma — porque é que o desprendimento da libido
dos seus objetos tem de ser, necessariamente, um processo tão dolo-
roso. Comprovamos apenas que a libido se aferra aos seus objetos e
que nem sequer quando já dispõe de novos sucedâneos se resigna a
­desprender-se dos objetos que perdeu. Eis aqui, pois, a pena.

A conversa com o poeta ocorreu durante o verão que precedeu


a guerra. Um ano depois, rebentou esta e roubou ao mundo todas
as suas belezas. Não só aniquilou a magnificência das paisagens
que percorreu e as obras de arte com que tropeçou no seu caminho,
mas também abateu o nosso orgulho pelos progressos conseguidos
na cultura, o nosso respeito perante tantos pensadores e artistas, as
esperanças que depuséramos numa superação definitiva das diferen-
ças que separam os povos e as raças entre si. A guerra enlameou a
nossa excelsa equanimidade científica, patenteou na sua crua nudez
a nossa vida pulsional, soltou os espíritos malignos que em nós
habitam e que supúnhamos definitivamente dominados pelos nossos
impulsos mais nobres, graças a uma educação multissecular. Encer-
rou de novo o recinto da nossa pátria e voltou a tornar longínquo e
vasto o mundo restante. Arrebatou-nos muito do que amávamos
e mostrou-nos a caducidade de muito que julgávamos estável.
56 P ORQUÊ A GUE RRA?

Não é de estranhar que a nossa libido, tão empobrecida de obje-


tos, fosse incidir com tanto maior intensidade naqueles que nos
ficaram; não espanta que de repente tenha aumentado o nosso amor
pela pátria, a ternura pelos nossos e o orgulho que nos inspira o que
em comum possuímos. Mas os nossos outros bens, agora perdidos,
ficaram porventura realmente desvalorizados aos nossos olhos só
porque se revelaram tão perecíveis e frágeis? Muitos de nós assim o
cremos; mas injustamente, segundo, mais uma vez, penso. Quer-me
parecer que aqueles que deste modo opinam e parecem estar dis-
postos a renunciar de uma vez por todas ao aprazível, simplesmente
porque não se revelou estável, se encontram apenas deprimidos pela
pena que lhes causou a sua perda. Sabemos que a amargura, por
mais dolorosa que seja, se consome espontaneamente. Logo que
tiver renunciado a tudo o que se perdeu esgotar-se-á por si mesma e
a nossa libido ficará outra vez em liberdade para substituir os obje-
tos perdidos por outros novos, possivelmente tão ou mais valiosos
que aqueles, sempre que formos ainda assaz jovens e conservar-
mos a nossa vitalidade. É de esperar que acontecerá a mesma coisa
com as perdas desta guerra. Superada a pena, notar-se-á que a nossa
elevada estima dos bens culturais não sofreu uma diminuição pela
experiência da sua fragilidade. Voltaremos a construir tudo o que a
guerra destruiu, talvez em solo mais firme e com maior perenidade.
PORQUÊ A GUERRA?
Reflexões a dois sobre o destino do mundo
(1932)
Carta de Einstein a Freud

Caputh (Potsdam), 30 de julho de 1932

Caro Senhor Freud

A proposta que me foi feita pela Sociedade das Nações e pelo seu
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual de Paris, de convi-
dar uma pessoa de minha escolha para uma troca franca de opiniões
sobre um problema qualquer também escolhido por mim, ­oferece-me
a feliz oportunidade de dialogar consigo em torno de uma pergunta
que parece, na presente condição do mundo, ser a mais urgente entre
todas aquelas que se põem à civilização. A pergunta é: existe uma
maneira de libertar os homens da fatalidade da guerra? É sabido que,
com o progredir da ciência moderna, responder a esta pergunta tor-
nou-se uma questão de vida ou de morte para a civilização por nós
conhecida; e no entanto, apesar de toda a boa vontade, nenhuma ten-
tativa de solução deu qualquer resultado v­ isível.
Penso também que aqueles a quem compete encarar o problema
profissional e praticamente, tornam-se dia a dia mais conscientes
da sua impotência, e têm hoje um vivo desejo de conhecer as opi-
niões de pessoas absorvidas pela pesquisa científica, as quais por
isso mesmo estão em condições de observar os problemas do mundo
60 P ORQUÊ A GUE RRA?

com suficiente distanciamento. Quanto a mim, o objetivo para o


qual se dirige habitualmente o meu pensamento não me ajuda a dis-
cernir os obscuros recessos da vontade e do sentimento humano. Por
conseguinte, com respeito a tal questão, procurarei limitar-me a pôr
o problema nos termos justos, permitindo-lhe assim, num terreno
liberto das soluções mais óbvias, utilizar o seu vasto conhecimento
da vida instintiva humana, para fazer alguma luz sobre o problema.
Existem determinados obstáculos psicológicos que, para quem não
conhece a ciência psicológica, não permitem explorar as correlações
e os limites, mesmo tendo deles algum conhecimento; estou con-
vencido de que poderão sugerir métodos educativos, mais ou menos
estranhos ao âmbito político, que eliminarão estes obstáculos.
Sendo imune a sentimentos nacionalistas, vejo pessoalmente
uma maneira simples de enfrentar o aspeto exterior, isto é organi-
zativo, do problema: os Estados criam uma autoridade legislativa e
judicial com o mandato de conciliar todos os conflitos que surjam
entre eles. Cada Estado assume a obrigação de respeitar os decretos
desta autoridade, de invocar as suas decisões em cada contenda, de
acatar sem reserva o seu julgamento e de pôr em prática todas as
medidas que forem julgadas necessárias para fazer aplicar as pró-
prias resoluções. Aqui nos debatemos com a primeira dificuldade:
um tribunal é uma instituição humana que, quanto menos está em
condições de fazer respeitar as próprias decisões, mais sucumbe
às pressões extrajudiciais. Existe aqui uma realidade da qual não
podemos prescindir: direito e força são inseparáveis e as decisões do
direito aproximam-se da justiça, à qual aspira a comunidade em cujo
nome e interesse são pronunciadas as sentenças, somente na medida
em que essa comunidade tem o poder efetivo de impor o respeito do
próprio ideal legalitário. Hoje, porém, estamos muito longe de pos-
suir uma organização supranacional que possa emitir veredictos de
autoridade incontestada e impor pela força a obediência à execução
das suas sentenças. Chego assim ao meu primeiro axioma: a procura
da segurança internacional implica que cada Estado renuncie incon-
dicionalmente a uma parte da sua liberdade de ação, o que equivale
a dizer à soberania, e é absolutamente claro que não existe outro
caminho para alcançar tal segurança.
porquê a guerra? 61

O insucesso, apesar de tudo, das tentativas empreendidas no


último decénio para alcançar esta meta leva-nos a concluir, sem
sombra de dúvida, que aqui intervêm fortes fatores psicológicos que
paralisam os esforços. Alguns destes fatores são evidentes. A sede
de poder da classe dominante é em cada Estado contrária a qualquer
limitação da soberania nacional. Este desmedido desejo de poder polí-
tico concilia-se com os objetivos de quem procura somente vantagens
mercenárias e económicas. Penso sobretudo no pequeno mas decisivo
grupo daqueles que, ativos em cada Estado e indiferentes a quaisquer
considerações e restrições sociais, veem na guerra, isto é, na fabrica-
ção e venda de armas, somente uma oportunidade para promover os
seus interesses pessoais e ampliar a sua autoridade p­ essoal.
Todavia, ao reconhecermos este aspeto irrefutável, demos
somente o primeiro passo para compreender o estado atual das coi-
sas, depara-se-nos imediatamente uma nova questão: como é possí-
vel que esta minoria consiga impor à massa do povo a sua cupidez,
povo que tem só a sofrer e a perder com uma guerra (falando da
maioria não excluo os soldados de qualquer patente que escolheram
a guerra como profissão, convencidos de contribuírem para a defesa
dos mais altos interesses da sua estirpe, e de que, o ataque é muitas
vezes o melhor método de defesa). Uma resposta óbvia a esta ques-
tão seria a de que a minoria daqueles que, de vez em quando, detêm
o poder, tem nas mãos, primeiro de tudo, a escola e a imprensa e,
na maior parte dos casos, também as organizações religiosas. Isto
é, é-lhes permitido organizar e desviar os sentimentos das massas,
tornando-as instrumentos da própria política.
E todavia esta resposta também não oferece uma solução com-
pleta e faz surgir uma outra questão: como é possível que as mas-
sas se deixem inflamar pelos meios referidos, até ao holocausto de
si próprias? Impõe-se uma única resposta: é porque o homem tem
dentro de si o prazer de odiar e de destruir. Em situações normais a
sua paixão está latente, e somente emerge em circunstâncias exce-
cionais; mas é muito fácil atiçá-la e elevá-la à altura de uma psicose
coletiva. Aqui reside, talvez, o núcleo do complexo de fatores que
procuramos destrinçar, um enigma que somente pode ser resolvido
por quem é perito no conhecimento dos instintos humanos.
62 P ORQUÊ A GUE RRA?

Chegamos assim à última pergunta. Existe a possibilidade de


dirigir a evolução psíquica dos homens de modo a tornarem-se capa-
zes de resistir às psicoses do ódio e da destruição? Não estou só
a pensar nas chamadas massas incultas. A experiência prova que
a chamada «inteligência» cede primeiro a estas desastrosas suges-
tões coletivas, dado que o intelectual não tem contacto com a rude
­realidade, mas vive-a através da sua forma recapitulativa mais fácil,
a da página impressa.
Concluindo: falei até agora só de guerras entre Estados, ou seja
de conflitos internacionais. Mas estou perfeitamente consciente do
facto de que o instinto agressivo também se manifesta de outras for-
mas e em outras circunstâncias (penso nas guerras civis, por exem-
plo, em certa altura devidas ao fanatismo religioso, hoje a fatores
sociais; ou ainda, às perseguições de minorias raciais). Mas a minha
insistência sobre a forma mais típica, cruel e louca de conflito entre
homem e homem, era desejada, porque tínhamos assim a melhor
ocasião de descobrir os meios e as maneiras mediante os quais se
tornassem impossíveis todos os conflitos armados.
Sei que nos seus escritos podemos encontrar respostas explíci-
tas ou implícitas a todas as interrogações postas por este problema,
que é ao mesmo tempo urgente e imprescindível. Seria todavia de
máxima utilidade para todos nós, se expusesse o problema da paz
mundial à luz das suas recentes descobertas, porque tal exposição
poderia indicar o caminho a novos e válidos modos de ação.

Muito cordialmente

Albert Einstein
Carta de Freud a Einstein

Viena, setembro de 1932

Caro Senhor Einstein

Quando me chegou aos ouvidos que se propunha convidar-me


para uma troca de ideias sobre um tema que ocupava o seu interesse
e que também lhe parecia ser digno do interesse de outros, de bom
grado concordei. Esperava que escolhesse um problema na fronteira
do nosso conhecimento atual, um problema em que cada um de nós,
o físico como o psicólogo, pudesse abrir um acesso especial de modo
que ambos, a partir de vertentes diversas, nos encontrássemos no
mesmo campo. Surpreendeu-me, pois, com a pergunta sobre o que
se poderia fazer para evitar aos homens o destino da guerra. Inicial-
mente, fiquei assustado sob a impressão da minha — quase dizia:
«da nossa» — incompetência, pois aquela afigurava-se uma tarefa
prática que incumbe aos homens de Estado. Mas compreendi logo
que me tinha feito a pergunta, não como investigador da natureza e
físico, mas como amigo da humanidade, respondendo ao convite da
Sociedade das Nações, à maneira de Fridtjof Nansen, o explorador
do Ártico, que tomou a seu cargo a assistência aos famintos e às
vítimas desalojadas da Guerra Mundial. Refleti, ademais, que não
64 P ORQUÊ A GUE RRA?

se me pedia a formulação de propostas práticas, mas que deveria


apenas delinear como se apresenta a uma consideração psicológica
o problema da prevenção das guerras.
Na sua carta, porém, já a este respeito disse quase tudo. De certo
modo, tirou-me o vento das velas, mas de bom grado navegarei na
sua esteira e limitar-me-ei a confirmar tudo o que enunciou, expli-
citando-o um pouco mais, segundo o meu saber — ou presunção.

Começa com a relação entre direito e poder. Tal é, sem dúvida,


o ponto de partida correto para a nossa investigação. Ser-me-á per-
mitido substituir a palavra «poder» pelo termo, mais rotundo e mais
duro, «força»? Direito e força são hoje, para nós, antagónicos. Não
é difícil mostrar que o primeiro brotou da segunda; se remontarmos
aos inícios primordiais e observarmos como tal primeiramente acon-
teceu, a solução do problema apresenta-se-nos sem esforço. Mas
desculpe-me se, no que se segue, digo coisas conhecidas e admitidas
como se fossem novidades. O contexto a tal me obriga.
Os conflitos de interesses entre os homens são, em princípio,
solucionados mediante o recurso à força. Assim acontece em todo o
reino animal, do qual o homem não se deveria excluir; mas, no caso
deste, acrescentam-se ainda conflitos de opiniões que atingem as
maiores alturas da abstração e parecem exigir uma outra técnica para
a sua solução. Mas isto é só uma complicação relativamente recente.
Inicialmente, na pequena horda humana, a maior força muscular era
a que decidia a quem deveria pertencer alguma coisa, ou a vontade
que se deveria levar a cabo. A força muscular cedo é reforçada e
substituída pelo uso de instrumentos; vence quem possui as melho-
res armas ou as emprega com maior habilidade. Com a introdução
das armas, a superioridade intelectual começa já a ocupar o lugar da
força muscular bruta, mas o objetivo final da luta persiste o mesmo:
pelo dano que se lhe inflige ou pela aniquilação das suas forças, uma
das partes em litígio é obrigada a abandonar as suas pretensões ou
a sua posição. Tal obtém-se do modo mais completo quando a força
do adversário é definitivamente eliminada, portanto, quando ele é
morto. Semelhante resultado oferece a dupla vantagem de o ini-
migo já não poder iniciar de novo a sua oposição e de o seu destino
porquê a guerra? 65

d­ esviar os outros de seguirem o seu exemplo. Além disso, a morte


do inimigo satisfaz uma tendência instintiva, que mencionarei mais
adiante. Ao propósito homicida pode opor-se a consideração de que,
poupando a vida do inimigo, e conservando-o atemorizado, ele pode
vir a ser utilizado para realizar serviços úteis. Assim, a força, em
vez de o matar, limita-se a subjugá-lo. Eis a origem do respeito pelo
inimigo, mas, desde então, o vencedor teve de contar com os desejos
latentes de vingança do vencido, de modo que perdeu uma parte da
sua própria segurança.
Tal é, pois, a situação originária: domina o maior poder, a força
bruta ou intelectualmente fundamentada. Sabemos que este regime
se modificou pouco a pouco no decurso da evolução, que um cami-
nho levou da força ao direito, mas qual? A meu ver, só podia ter
sido um: o que passava pelo facto de a força maior de um indiví-
duo poder ser compensada pela associação de vários mais débeis.
L’union fait la force. A violência é vencida pela união, o poder dos
unidos representa agora o direito, em oposição à força do indivíduo
isolado. Vemos, pois, que o direito é o poder de uma comunidade.
Continua a ser uma força disposta a dirigir-se contra qualquer indi-
víduo que se lhe contraponha; opera com os mesmos meios, perse-
gue os mesmos fins; na realidade, a diferença reside apenas em que
já não é o poder de um indivíduo a impor-se, mas o da comunidade.
Mas para que a transição da violência ao novo direito se leve a cabo,
deve cumprir-se uma condição psicológica: a unidade do grupo deve
ser permanente, duradoira. Se esta se formasse apenas para lutar
contra um indivíduo demasiado poderoso, e se, após a derrota deste,
se desmembrasse, nada se teria alcançado. O próximo a sentir-se
mais forte trataria novamente de dominar por meio da sua força, e
o jogo repetir-se-ia sem cessar. A comunidade deve manter-se per-
manentemente, deve organizar-se, criar prescrições que impeçam as
temidas insubordinações, deve definir órgãos que vigiem o cumpri-
mento das prescrições — leis — e há de tomar a seu cargo a exe-
cução dos atos de força legais. No reconhecimento de semelhante
comunidade de interesses surgem entre os membros de um grupo
humano unido vínculos afetivos, sentimentos comunitários, em que
assenta a sua verdadeira força.
66 P ORQUÊ A GUE RRA?

Com isto, penso eu, já temos o essencial: a superação da vio-


lência pela transferência do poder para uma unidade mais ampla,
mantida pelos vínculos afetivos dos seus membros. Tudo o mais
são explicitações e repetições. As condições são simples, enquanto a
comunidade constar apenas de um certo número de indivíduos igual-
mente fortes. As leis desta associação determinam então em que
medida o indivíduo há de renunciar à liberdade pessoal de exercer
violentamente a sua força, para que seja possível uma convivência
segura. Mas semelhante situação pacífica só é teoricamente conce-
bível, pois, na realidade, o estado de coisas complica-se em virtude
de a comunidade, desde o início, englobar elementos de poder desi-
gual, homens e mulheres, filhos e pais, e em seguida, por causa de
guerras e conquistas, também vencedores e vencidos, que se trans-
formam em senhores e escravos. O direito da comunidade torna-se
então uma expressão das desiguais relações de poder entre os seus
membros; as leis serão feitas por e para os governantes e concederão
escassos direitos aos subjugados. Há, doravante, na comunidade,
duas fontes de perturbação do direito, mas que ao mesmo tempo o
são igualmente de novas legislações. Primeiro, alguns dos senhores
tentarão elevar-se acima de todas as restrições vigentes, portanto,
abandonarão a esfera do direito para regressar ao domínio da violên-
cia; em segundo lugar, os oprimidos esforçar-se-ão constantemente
por alcançar maior poder e ver reconhecidas na lei estas modifica-
ções, portanto, que se caminhe do direito desigual para o direito
igual para todos. Esta última corrente tornar-se-á mais poderosa se,
no seio da entidade coletiva, se produzirem realmente deslocações
das relações de poder, como pode ocorrer na sequência de múltiplos
fatores históricos. O direito pode então adaptar-se paulatinamente
às novas relações de poder ou, o que acontece com maior frequên-
cia, a classe dominante negar-se-á a reconhecer a transformação e
chega-se à rebelião, à guerra civil, ou seja, à supressão transitória
do direito e a novas tentativas violentas que, após o seu desfecho,
podem suscitar uma nova ordem legal. Há ainda uma outra fonte de
transformação jurídica, que se manifesta apenas de forma pacífica: é
o desenvolvimento cultural dos membros da entidade coletiva, mas
esta pertence a um contexto que só mais tarde será abordado.
porquê a guerra? 67

Vemos, por conseguinte, que também dentro de uma entidade


coletiva se não pode evitar a solução violenta dos conflitos de inte-
resses. Mas as necessidades e os fins comuns que brotam da convi-
vência no mesmo solo são favoráveis a uma rápida terminação de
tais conflitos, de modo que nestas condições aumenta sem cessar
a probabilidade de uma solução pacífica. Uma olhadela à História
da Humanidade mostra, porém, uma série ininterrupta de conflitos
entre uma comunidade e outra ou várias, entre unidades maiores e
menores, entre cidades, comarcas, tribos, povos, reinos, conflitos
que quase sempre foram decididos pela prova de força da guerra.
Tais guerras terminaram ou no saque, ou na total submissão, na
conquista de uma das partes em luta. Não se podem julgar com o
mesmo critério todas as guerras de conquista. Algumas, como as
dos Mongóis e as dos Turcos, só causaram calamidades; outras,
pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em
direito, ao estabelecerem maiores entidades em cujo seio foi eli-
minada a possibilidade do uso da violência, solucionando-se os
conflitos mediante uma nova ordem legal. Assim, as conquistas dos
Romanos legaram a preciosa pax romana aos povos mediterrânicos.
O gosto da expansão dos reis franceses criou uma França pacifica-
mente unida e próspera. Embora se afigure paradoxal, deve admitir-
-se que a guerra poderia ser um meio apropriado para estabelecer a
anelada «paz eterna», já que é capaz de criar unidades tão grandes
que um forte poder central torna impossíveis outras guerras. Mas,
na realidade, a guerra não serve para tal fim, pois os resultados da
conquista não costumam ser duradoiros; as novas unidades criadas
voltam geralmente a desmembrar-se, por causa da escassa coesão
entre as partes unidas à força. Além disso, até agora, a conquista
só conseguiu suscitar uniões parciais, embora amplas, cujos confli-
tos favoreceram ainda mais as decisões violentas. Por isso, todos os
esforços bélicos só levaram a que a Humanidade trocasse numero-
sas e ainda incessantes guerras pequenas por conflagrações menos
frequentes, mas tanto mais devastadoras.
Aplicando as minhas reflexões à atualidade, chego ao mesmo
resultado que o senhor alcançou por um caminho mais curto. Uma
evitação segura da guerra só é possível se os homens se puserem
68 P ORQUÊ A GUE RRA?

de acordo em estabelecer um poder central, ao qual se conferiria a


solução de todos os conflitos de interesses. Aqui conjugam-se mani-
festamente duas exigências: a de que seja criada semelhante instân-
cia superior, e a de que se lhe outorgue o poder requerido. Uma só
não bastaria. Ora a Sociedade das Nações foi projetada como uma
instância desta espécie, mas não se realizou a outra condição: não
possui poder autónomo, e unicamente o obteria se os membros da
nova unidade, os Estados singulares, lho conferissem. Hoje, porém,
são muito escassas as probabilidades de que tal coisa aconteça.
­Julgar-se-ia mal a instituição da Sociedade das Nações se não se
reconhecesse que nela temos uma tentativa poucas vezes empreen-
dida na História da Humanidade — e talvez jamais intentada em
semelhante escala. É a tentativa para conseguir, mediante a invo-
cação de certas posições ideais, a autoridade — ou seja, o poder de
influir perentoriamente — que em geral se baseia na posse do poder.
Vimos que uma comunidade humana se mantém unida graças a
duas coisas: a coação da violência e os vínculos afetivos — tecnica-
mente as chamadas «identificações» — que ligam os seus membros.
Se faltar um destes momentos, o outro poderá possivelmente manter
unida a comunidade. Naturalmente, tais ideias só possuem um signi-
ficado, se expressarem importantes interesses comuns dos membros.
Perguntar-se-á então qual será a sua força. A História ensina que, na
realidade, exerceram o seu efeito. Assim, por exemplo, a ideia pan-
-helénica, a consciência de ser superior aos bárbaros vizinhos, ideia
tão poderosamente expressa nas anfictionias, nos oráculos e nos
jogos festivos, foi assaz forte para suavizar os costumes guerreiros
dos Gregos, mas não conseguiu impedir os conflitos bélicos entre os
pequenos agrupamentos do povo helénico, e nem sequer conseguiu
evitar que uma cidade ou confederação de cidades se aliasse com o
poderoso inimigo persa em prejuízo de um rival. De modo análogo,
o sentimento da comunidade cristã, sem dúvida poderoso, não foi
suficientemente forte para impedir que no Renascimento pequenos
e grandes Estados cristãos solicitassem, nas suas guerras mútuas, o
auxílio do sultão. Na nossa época, também não existe nenhuma ideia
a que se possa atribuir semelhante autoridade unificadora. O facto
de os ideais nacionais que dominam os povos levarem hoje a um
porquê a guerra? 69

efeito contrário é demasiado evidente. Há pessoas que predizem


que somente a aplicação geral do modo de pensar bolchevista pode-
ria acabar com a guerra, mas, decerto, ainda hoje nos encontramos
muito afastados de tal objetivo, e talvez só pudéssemos alcançá-lo
através de uma terrível guerra civil. Por conseguinte, parece que a
tentativa de substituir o poder real pelo poder das ideias está, atual-
mente, condenada ao fracasso. Faz-se um cálculo errado se não se
tiver em conta que o direito foi originariamente força bruta e que,
ainda agora, não pode renunciar ao apoio da força.
Posso agora passar a glosar algumas das suas proposições.
O senhor admira-se do facto de que seja tão fácil entusiasmar os
homens para a guerra, e suspeita que algo, uma pulsão do ódio e da
destruição, atua neles, facilitando tal incitamento. Mais uma vez,
não posso senão partilhar sem restrições a sua opinião. Acreditamos
na existência de semelhante pulsão e, justamente nos últimos anos,
esforçámo-nos por estudar as suas manifestações. Permita-me, pois,
que lhe exponha uma parte da teoria das pulsões a que chegámos
na psicanálise, após muitos tateios e vacilações. Supomos que as
pulsões do homem são apenas de dois tipos: umas que tendem a
conservar e a unir — denominamo-las «eróticas», inteiramente no
sentido do Eros do Banquete platónico, ou «sexuais», ampliando
deliberadamente o conceito popular da sexualidade —, e outras que
tendem a destruir e a matar: concebemo-las como a pulsão de agres-
são ou de destruição. Como o senhor adverte, trata-se apenas de uma
transfiguração teórica da antítese entre o amor e o ódio, universal-
mente conhecida e talvez relacionada primordialmente com a que
existe entre atração e repulsão, que desempenha um papel no seu
campo científico. Não nos apressemos a introduzir aqui os conceitos
valorativos de «bom» e «mau». Qualquer uma destas pulsões é tão
imprescindível como a outra, e da sua ação conjunta e antagónica
brotam as manifestações da vida. Ora parece que quase nunca uma
pulsão deste género pode atuar isoladamente, pois está sempre ligada
— como nós dizemos «fundida» — com um segmento determinado
da outra, que modifica o seu fim e que, em certas circunstâncias,
é o requisito ineludível para que tal fim se possa alcançar. Assim,
por exemplo, o instinto de conservação é certamente de natureza
70 P ORQUÊ A GUE RRA?

erótica, mas precisa de dispor da agressão, para efetuar o seu propó-


sito. De modo semelhante, a pulsão do amor objetal necessita de um
complemento do instinto de posse para conseguir apoderar-se do seu
objeto. A dificuldade de isolar ambas as pulsões nas suas manifes-
tações é que, durante tanto tempo, nos impediu de reconhecer a sua
existência.
Se estiver disposto a acompanhar-me um pouco mais, ficará a
saber que as ações humanas apresentam ainda uma outra compli-
cação de índole diversa da anterior. É raríssimo que uma ação seja
obra de uma única moção pulsional que, por outro lado, já deve estar
constituída em si mesma pelo Eros e pela destruição. Regra geral, é
necessário que coincidam vários motivos de estrutura análoga para
que a ação seja possível. Um dos seus colegas, um certo professor
G. Ch. Lichtenberg, que no tempo dos nossos clássicos ensinava
física em Gotinga, já o sabia; talvez porque era mais exímio psi-
cólogo do que físico. Descobriu a «rosa dos móbiles» ao afirmar:
«Os móbiles que induzem a fazer algo podem dispor-se como os
trinta e dois rumos da rosa dos ventos, e os seus nomes formam-se
de modo semelhante, por exemplo, pão-pão-glória, ou glória-glória-
-pão.» Por conseguinte, quando os homens são incitados à guerra
haverá neles um grande número de motivos — nobres ou baixos,
daqueles que se proclamam em voz alta, e outros que se silenciam
— que responderão afirmativamente. Mas não aproveitamos o ensejo
para os revelar todos aqui. Encontra-se decerto entre eles o prazer
da agressão e da destruição: inumeráveis crueldades da História e
do quotidiano confirmam a sua existência e a sua força. A fusão das
tendências destrutivas com outras eróticas e ideais facilita, natural-
mente, a sua satisfação. Por vezes, ao ouvirmos falar dos horrores
da História, temos a impressão de que os motivos ideais só servem
de pretexto para os desejos destruidores; outras vezes, por exemplo,
face às crueldades da Santa Inquisição, opinamos que os motivos
ideais predominaram na consciência, subministrando-lhes os destrui-
dores um reforço inconsciente. Ambas as coisas são possíveis.
Receio abusar do seu interesse, que gira à volta da prevenção
da guerra e não das nossas teorias. Contudo, gostaria de me deter
ainda um instante na nossa pulsão de destruição, cuja popularidade
porquê a guerra? 71

de nenhum modo corre paralela à sua importância. Com o emprego


de alguma especulação, chegámos a conceber que esta pulsão opera
em todo o ser vivo, suscitando a tendência de o levar à sua desinte-
gração, de reduzir a vida ao estado da matéria inanimada. Merece,
pois, com toda a seriedade, o nome de pulsão de morte, ao passo que
as pulsões eróticas representam as tendências para a vida. A pulsão
de morte torna-se pulsão destruidora quando, com a ajuda de órgãos
especiais, é dirigida para fora, para os objetos. O ser vivo protege
de certo modo a sua própria vida, destruindo a vida alheia. Mas
uma parte da pulsão de morte permanece ativa no interior do seio
vivo; tentámos explicar um grande número de fenómenos normais
e patológicos mediante esta interiorização da pulsão de destruição.
Chegámos até a cometer a heresia de atribuir a origem da nossa
consciência moral a semelhante orientação interna da agressão.
Como o senhor adverte, não deixa de ser inconveniente que este pro-
cesso adquira uma grandeza excessiva; é diretamente nocivo para a
saúde, ao passo que a orientação das ditas energias pulsionais para
a destruição no mundo externo alivia o ser vivo, e deve produzir-lhe
um benefício. Sirva isto de desculpa biológica de todas as tendên-
cias odiosas e perigosas contra as quais lutamos. Deve admitir-se
que são mais afins à natureza do que a nossa resistência contra elas,
a qual, por outro lado, também importa explicar. Talvez o senhor
tenha adquirido a impressão de que as nossas teorias são uma espé-
cie de mitologia; se assim fosse, nem sequer seria uma mitologia
aprazível. Mas não caminham todas as ciências naturais para uma
mitologia desta índole? Deparará, hoje, na física, com uma situação
distinta?
Do que precede tiramos para os nossos fins imediatos a con-
clusão de que seriam inúteis os propósitos para eliminar as tendên-
cias agressivas dos homens. Haverá em regiões muito felizes da
Terra, onde a natureza oferece prodigamente tudo o que o homem
necessita para a sua subsistência, povos cuja vida decorre pacifi-
camente, entre os quais se desconhece a força e a agressão: dificil-
mente posso acreditar em tal, e gostaria de indagar algo mais sobre
esses bem-aventurados. Também os bolchevistas esperam poder eli-
minar a agressão humana, garantindo a satisfação das necessidades
72 P ORQUÊ A GUE RRA?

materiais e ­estabelecendo a igualdade entre os membros da comu-


nidade. Creio que isso é uma ilusão. Entretanto, estão cuidadosa-
mente armados e mantêm unidos os seus partidários, em medida não
escassa, pelo ódio contra todos os estranhos. Por outro lado, como
adverte, não se trata de eliminar totalmente as tendências agressivas
humanas; pode tentar-se desviá-las, de modo que já não encontrem
a sua expressão na guerra.
A partir da nossa mitológica doutrina das pulsões, achamos
facilmente uma fórmula que contém os meios indiretos de combater
a guerra. Se a disposição à guerra é um produto da pulsão de des-
truição, o mais fácil será apelar para o antagonista desta pulsão, para
o Eros. Tudo o que estabelecer laços afetivos entre os homens deve
atuar contra a guerra. Estes laços podem ser de dois tipos. Primeiro,
os vínculos análogos aos que nos ligam ao objeto do amor, embora
sem objetivos sexuais. A psicanálise não precisa de se envergonhar,
quando aqui fala de amor, pois a religião diz o mesmo: «Ama o teu
próximo como a ti mesmo.» Isto é fácil de exigir, mas difícil de rea-
lizar. O outro tipo de laço afetivo é o que se leva a cabo por identi-
ficação. Tudo o que estabelece importantes elementos comuns entre
os homens desperta tais sentimentos de comunidade, identificações.
Neles se baseia, em grande parte, a estrutura da sociedade humana.
Lamenta-se dos abusos da autoridade, e tal fornece-me uma
segunda indicação para a luta indireta contra a tendência para a
guerra. Que os homens se dividam em dirigentes e dirigidos é uma
expressão da sua desigualdade inata e irremediável. Os últimos
formam a imensa maioria, precisam de uma autoridade que tome
para eles as decisões, às quais se submetem geralmente de um modo
incondicional. Deveria aqui acrescentar-se que importa empenhar-
-se mais em educar uma camada superior de homens dotados de
pensamento autónomo, inacessíveis à intimidação, que lutem pela
verdade e aos quais incumba a direção das massas dependentes. Não
é preciso demonstrar que os abusos dos poderes do Estado e a cen-
sura do pensamento pela Igreja de nenhum modo podem favorecer
esta educação. A situação ideal, claro está, seria a de uma comuni-
dade de homens que tivessem submetido a sua vida pulsional à dita-
dura da razão. Nada mais poderia suscitar uma unidade tão completa
porquê a guerra? 73

e resistente dos homens, embora se renunciasse aos laços afetivos


entre eles. Mas tal, com toda a probabilidade, não passa de uma
esperança utópica. Os restantes caminhos para evitar indiretamente
a guerra são, sem dúvida, mais acessíveis, mas, em contrapartida,
não prometem um resultado imediato. É difícil pensar em moinhos
cuja moagem é tão lenta que se poderia morrer de fome antes de se
ter a farinha.

Como vê, não é muito o que se consegue quando, ao tratar-se de


uma tarefa prática e urgente, se acode ao teórico afastado do mundo.
Será melhor que em cada caso particular se procure enfrentar o
perigo com os recursos disponíveis na altura. Mas gostaria ainda
de abordar uma questão que levanta no seu escrito e que particular-
mente me interessa. Por que nos indignamos tanto contra a guerra,
o senhor, eu e tantos outros? Por que não a aceitamos como mais
uma das muitas dolorosas misérias da vida? Parece natural; biolo-
gicamente bem fundada, praticamente inevitável. Não se indigne
com a minha pergunta. Tratando-se de uma indagação, pode decerto
adotar-se a máscara de uma superioridade que, na realidade, não se
possui. A resposta será que todo o homem tem o direito à sua pró-
pria vida; que a guerra destrói vidas humanas cheias de esperanças;
põe o indivíduo humano em situações degradantes; obriga-o a matar
outros, coisa que não quer fazer; destrói preciosos valores materiais,
produtos do trabalho humano, e muito mais. Além disso, a guerra,
na sua forma atual, já não proporciona a oportunidade de cumprir o
antigo ideal heroico, e uma guerra futura implicaria a eliminação de
um ou talvez de ambos os inimigos, devido ao aperfeiçoamento dos
meios de destruição. Tudo isto é verdade, e parece tão incontestável
que é de espantar que as guerras ainda não tenham sido condenadas
pelo conselho geral de todos os homens. É possível, todavia, discu-
tir alguns destes pontos. Poderia perguntar-se se a comunidade não
tem também um direito à vida do indivíduo; ademais, não se podem
condenar em igual medida todas as espécies de guerra; por fim,
enquanto houver Estados e Nações que estejam dispostos à destrui-
ção sem escrúpulos de outros, estes deverão estar preparados para a
guerra. Mas vou abandonar rapidamente estes temas, pois não é esta
74 P ORQUÊ A GUE RRA?

a discussão a que me convidou. Tenho em mira outra coisa muito


diferente; creio que a causa principal por que nos levantamos contra
a guerra é a de que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifis-
tas porque, por razões orgânicas, devemos sê-lo. Torna-se-nos então
fácil justificar com argumentos a nossa atitude.
Tal não é, decerto, compreensível sem uma explicação. E afirmo
o seguinte: desde tempos imemoriais, desenvolve-se na Humanidade
o processo da evolução cultural. (Sei que outros preferem chamar-
-lhe «civilização».) A este processo devemos o melhor que de nós
fizemos, e também uma boa parte do que sofremos. As suas causas e
as suas origens são incertas; a sua solução, duvidosa; alguns dos seus
rasgos, facilmente apreciáveis. Talvez leve ao desaparecimento da
espécie humana, pois inibe a função sexual em mais de um sentido, e
já hoje as raças e as camadas atrasadas da população se reproduzem
mais rapidamente do que as de cultura elevada. Tal processo pode,
porventura, comparar-se à domesticação de certas espécies animais.
Traz consigo, sem dúvida, modificações orgânicas, mas ainda não
podemos familiarizar-nos com a ideia de que esta evolução cultural
seja um processo orgânico. As modificações psíquicas que acom-
panham a evolução cultural são notáveis e inequívocas. Consistem
numa progressiva deslocação dos fins das pulsões e numa crescente
restrição das tendências pulsionais. Sensações que eram aprazíveis
para os nossos antepassados são-nos indiferentes ou até desagra-
dáveis; o facto de as nossas exigências ideais éticas e estéticas se
haverem modificado tem um fundamento orgânico. Entre os carate-
res psicológicos da cultura, há dois que parecem ser os mais impor-
tantes: o fortalecimento do intelecto, que começa a dominar a vida
pulsional, e a interiorização das tendências agressivas, com todas as
suas consequências vantajosas e perigosas. Ora as atitudes psíquicas
que nos foram impostas pelo processo da cultura são negadas pela
guerra do modo mais cruel e, por isso, erguemo-nos contra a guerra;
não a suportamos mais, e não se trata aqui de uma aversão intelectual
e afetiva; em nós, pacifistas, agita-se uma intolerância constitucional,
por assim dizer, uma idiossincrasia elevada ao máximo. E parece que
as degradações estéticas da guerra contribuem para a nossa rebelião
em não menor grau do que as suas atrocidades.
porquê a guerra? 75

Durante quanto tempo deveremos esperar até que os outros se


tornem também pacifistas? É difícil dizê-lo, mas talvez não seja
uma esperança utópica a de que estes dois fatores — a atitude cul-
tural e a angústia justificada face às consequências da guerra futura
— ponham fim aos conflitos bélicos num prazo previsível. É-nos
impossível adivinhar por que caminhos ou desvios se conseguirá tal
fim. Por agora, só podemos dizer: tudo o que fomente a evolução
cultural atua contra a guerra.

Saúdo-o cordialmente, e peço desculpa se a minha exposição


o desiludiu.

Sigmund Freud
CRONOLOGIAS
Cronologia de Sigmund Freud

1856 — Sigmund Freud nasce a 6 de maio em Freiberg, na


Morávia, de família hebraica, segundo filho de Jacob Freud e
­Amalie Nathanson. O pai tinha dois filhos de um anterior matrimó-
nio, Emanuel e Philipp, que viviam com ele e tinham mais ou menos
a mesma idade da jovem madrasta. Emanuel era casado e tinha um
filho, John, um ano mais velho que Sigmund.

1860 — Jacob Freud transfere-se definitivamente para Viena


com a sua família. Sigmund é educado segundo as mais importantes
tradições hebraicas. Além do alemão e do hebraico, aprende francês
e inglês e estudará sozinho espanhol e italiano.

1872 — Sigmund apaixona-se por Gisela Fluss, irmã de um


amigo de infância.

1873 — Completa brilhantemente o curso liceal e inscreve-se


na faculdade de medicina da Universidade de Viena. Frequenta tam-
bém cursos de biologia geral e de zoologia e um seminário de filo-
sofia dirigido por Franz Brentano.

1876 — Entra como aluno investigador no Instituto de Fisiolo-


gia dirigido por Ernst Wilhelm von Brücke (1819-1892).
80 P ORQUÊ A GUE RRA?

1881 — Licencia-se em medicina.

1882 — Brücke incentiva-o a abandonar os estudos teóricos


devido às dificuldades económicas em que se encontra a família
Freud. Sigmund conhece Martha Bernays, de uma família hebraica
de Hamburgo, de quem fica noivo secretamente. Entra como prati-
cante no Hospital Geral de Viena. Joseph Breuer põe-no ao corrente
do caso de Anna O., e honra-o com a sua proteção e com uma ami-
zade que durará até 1894.

1883 — Freud torna-se assistente de Theodor Meynert (1833-


-1892) e especializa-se em doenças nervosas.

1883-5 — Trabalhos sobre a medula e pesquisas sobre a


cocaína.

1885 — Obtém uma bolsa de estudo para seguir em Paris as


lições do grande neurólogo Jean-Martin Charcot (1825-1893).
Atraído pelas pesquisas que este estava a desenvolver com crité-
rios novos sobre formas histéricas, Freud muda radicalmente os seus
interesses, descobrindo o lado psicológico da neuropatologia.

1886 — Após uma estada em Berlim por motivos de estudo,


regressa a Viena e inicia a prática médica como especialista em
doenças nervosas. A 14 de setembro casa-se com Martha Bernays.

1887 — Conhece Wilhelm Fliess, o médico biólogo berlinense


com quem estreitará uma íntima amizade a partir de 1895. Nasce
Mathilde, a sua primeira filha.

1889 — Estada em Nancy, em casa de Hippolyte Bernheim


(1840-1919). Nasce o filho Martin.

1891 — Nasce Oliver. Publica os trabalhos sobre afasias e para-


lisias infantis.
cronologias 81

1892 — Escreve conjuntamente com Breuer Comunicação


Preliminar Sobre o Mecanismo dos Fenómenos Histéricos. Nasce
Ernst, ao qual se seguirá Sophie, no ano seguinte.

1895 — Publicação dos Estudos Sobre Histeria, com algumas


partes assinadas por Breuer e outras por Freud. Nos casos clínicos
de histeria Freud emprega pela primeira vez o método analítico das
associações livres. Nasce Anna, a sua última filha. Freud escreve o
Projeto de uma Psicologia.

1896 — Morre o pai.

1897 — Inicia a autoanálise.

1899 — Sai em novembro A Interpretação dos Sonhos, o livro


que inaugura a aplicação do método de exploração psicanalítica quer
a manifestações patológicas, quer normais. Identificando a lógica
e os mecanismos do trabalho onírico, Freud constrói um autêntico
modelo de acesso ao inconsciente.

1900 — Rutura com Fliess.

1901 — Estende o âmbito de pesquisa à Psicopatologia da Vida


Quotidiana. Redação do Caso Clínico de Dora. Primeira viagem a
Roma com o irmão.

1902 — Iniciam-se em casa de Freud as reuniões da «Sociedade


psicológica da 4.a feira», que em 1908 se tornará na «Sociedade psi-
canalítica de Viena».

1905 — Com os Três Ensaios Sobre a Teoria Sexual Freud


aplica o seu método analítico à dimensão sexual da existência.
­Paralelamente publica O Dito espirituoso e a Sua Relação com o
Inconsciente. A psicanálise sai do isolamento e começa a ser prati-
cada também no estrangeiro.
82 P ORQUÊ A GUE RRA?

1906 — Início da correspondência entre Freud e Carl Gustav


Jung, que o visitará no ano seguinte. Seguem-se outras visitas dos
primeiros seguidores da psicanálise.

1908 — Redação do Caso Clínico do Pequeno Hans. Primeiro


congresso internacional de psicanálise em Salzburgo. Karl Abraham
funda a «Sociedade psicanalítica de Berlim».

1909 — Publica o Caso Clínico do Homem dos Ratos sobre a


neurose obsessiva. Viagem à América com Jung e Sándor Ferenczi,
onde dá Cinco Conferências Sobre Psicanálise. Com a atribuição a
Freud do doutoramento Honoris causa em psicologia, a psicanálise
obtém o seu primeiro reconhecimento internacional.

1910 — Congresso de Nuremberga e fundação da ­Associação psi-


canalítica internacional. Uma Recordação de Infância de ­Leonardo;
Caso Clínico do Presidente Schreber.

1911 — A. A. Brill funda a Sociedade de Nova Iorque. Alfred


Adler demite-se da Sociedade Vienense. Congresso de Weimar.

1912 — Ernest Jones funda um «Comité» secreto de poucos


mas fiéis seguidores da psicanálise. Freud inicia a redação, que ter-
mina no ano seguinte, de Totem e Tabu, uma investigação psicanalí-
tica aplicada à história dos povos, tratada como uma psique coletiva.

1913 — Ferenczi funda a Sociedade de Budapeste e Jones a de


Londres. Congresso de Munique. Rutura entre Freud e Jung.

1914 — Jung demite-se da Associação Psicanalítica Interna-


cional. Freud publica Para a História do Movimento Psicanalí-
tico, uma apaixonada reconstrução dos princípios irrenunciáveis da
ortodoxia psicanalítica, e Introdução ao Narcisismo, um escrito de
importância fundamental para o desenvolvimento teórico da dou-
trina freudiana. Redação do Caso Clínico do Homem dos Lobos, a
última das grandes narrações clínicas.
cronologias 83

1915 — Redação de alguns ensaios de Metapsicologia que cons-


tituem a chave interpretativa unitária dos fundamentos da psicanálise.

1915-17 — Freud prepara para o seu último curso universitário


uma série de lições, a célebre Introdução à Psicanálise, que, mais
do que qualquer outro livro, contribuiu para a divulgação das suas
ideias no mundo.

1918 — Criação da «Internationaler Psychoanalytischer Verlag»,


a editora do movimento psicanalítico. Congresso de Budapeste.

1920 — Morre a sua filha Sophie. Com Para Além do Prin-


cípio de Prazer inicia uma nova fase de descobertas que definem
a pluralidade do sujeito, dividido entre os esforços construtivos e
unificadores das pulsões de vida e a atividade destrutiva das pulsões
de morte. Congresso de Haia.

1921 — Publica Psicologia das Massas e Análises do Eu, um


estudo sobre os comportamentos irracionais da psique coletiva.

1922 — Escreve Eu e o Ego sobre a estrutura da personalidade


psíquica que se articula em três instâncias fundamentais (Eu, Ego e
Superego). Congresso de Berlim.

1923 — Freud submete-se a duas operações devido a um cancro


na maxila. Morre o neto preferido, Heinz, filho de Sophie.

1925 — Fundação da Sociedade psicanalítica italiana. Inibição,


Sintoma e Angústia é um ensaio de posterior aprofundamento teó-
rico sobre os mecanismos em que assentam as neuroses. Anna Freud
entra para o «Comité».

1926 — Escreve O Problema da Análise Orientada por Não


Médicos. Celebrações pelo septuagésimo aniversário de Freud.
Fundação da Sociedade de Paris. Freud encontra-se em Berlim com
Einstein.
84 P ORQUÊ A GUE RRA?

1927 — O Futuro de Uma Ilusão. Dissolve-se o «Comité».

1929 — O Mal-estar da Civilização. Juntamente com o escrito


de 1927, contém reflexões atualíssimas sobre as ilusões, as hipocri-
sias e as violências em que se apoiam as instituições da convivência
humana.

1930 — Últimas férias fora de Viena. Recebe o «Prémio


­Goethe». Morre a sua mãe.

1932 — Sai o primeiro número da «Revista italiana de psica-


nálise» dirigida por Edoardo Weiss. Freud escreve a segunda série
de lições da Introdução à Psicanálise, uma atualização necessária
às lições de 1915-17 com as sucessivas aquisições fundamentais da
doutrina freudiana.

1934 — Primeira redação de Moisés e a Religião Monoteísta,


que terminará em 1938: um «romance histórico», segundo a expres-
são do próprio Freud, sobre as origens do povo hebraico.

1936 — Os nazis sequestram os armazéns da editora, em


­Leipzig. Thomas Mann escreve um discurso pelo octogésimo ani-
versário de Freud. Os ingleses nomeiam-no membro da «Royal
Society of Medicine». Primeira reincidência do cancro.

1938 — Viena é ocupada pelos nazis. Freud decide deixá-la para


se instalar em Londres. Última operação. Compêndio de Psicanálise
é a última obra de Freud, que ficou incompleta.

1939 — Sigmund Freud morre a 23 de setembro.


Cronologia de Albert Einstein

1879 — De Hermann Einstein e Pauline Koch nasce a 14 de


março, em Ulma, no Württemberg, Albert, o filho primogénito.

1886 — Albert frequenta a escola pública em Munique. Conse-


quência das disposições de leis relativas à educação religiosa são-
-lhe ensinados em casa os rudimentos do judaísmo.

1888 — Entra no «Luitpold Gymnasium». A educação religiosa


continua, agora na escola.

1891-95 — Albert familiariza-se com os elementos da matemá-


tica superior, incluindo o cálculo diferencial e integral.

1894 — A família muda-se para Itália, primeiro para Milão,


depois para Pavia e novamente para Milão. Albert permanece em
Munique para acabar os estudos.

1895 — Deixa o «Luitpold Gymnasium» sem ter terminado


os estudos e junta-se à família em Pavia. Chumbado no exame de
admissão ao Politécnico de Zurique, inscreve-se na secção indus-
trial da escola cantonal de Aarau.
86 P ORQUÊ A GUE RRA?

1896 — Renuncia à nacionalidade alemã, permanecendo apá-


trida durante cinco anos. Obtém o diploma da escola de Aarau, que
o habilita a inscrever-se no Politécnico de Zurique. Os seus compa-
nheiros de estudos são Marcel Grossman e Walter Ritz.

1897 — O conhecimento com Michele Angelo Besso assinala


o início de uma amizade destinada a durar toda a vida. São estes os
anos da sua formação cultural, na escola de mestres ilustres como
Hermann Minkowski.

1900 — Diplomou-se com nota máxima no Politécnico de Zuri-


que. Envia o seu primeiro trabalho à revista «Annalen der Physik».

1901 — Torna-se cidadão suíço.

1902 — Após algumas experiências desencorajadoras à procura


de um trabalho remunerado, em 16 de junho é admitido no Gabinete
de Patentes de Berna. A 10 de outubro o pai morre em Milão.

1903 — Einstein casa com Mileva Marie, sua colega de estu-


dos. Konrad Habicht, Maurice Solovine e Einstein fundam a «Aka-
demio Olympia». Einstein dá uma conferência na Naturforschende
Gesellschaft de Berna, sobre a teoria das ondas eletromagnéticas.

1904 — Nasce o primeiro filho, Hans Albert.

1905 — Apresenta a tese de doutoramento (Sobre Uma Nova


Determinação das Dimensões Moleculares) na Universidade de
Zurique. Entre março e dezembro daquele «ano admirável» ­Einstein,
somente com vinte e seis anos, publica os seus primeiros trabalhos
revolucionários: um sobre a hipótese do quanta de luz (De Um Ponto
de Vista Heurístico Sobre a Geração e a Transformação da Luz);
dois sobre temas brownianos (Sobre o Movimento das Partículas
em Suspensão num Fluido em Sossego, Como Previsto pela ­Teoria
Cinética do Calor e Sobre a Teoria do Movimento Browniano), e
as suas célebres memórias sobre a teoria da relatividade restrita
cronologias 87

(Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento e também A Inércia de


Um Corpo Depende do Seu Conteúdo Energético?). Neste último
escrito surge a relação E = mc2.

1906 — Completa um artigo sobre o calor específico dos sóli-


dos, o primeiro escrito sobre a teoria quantística do estado sólido:
Teoria de Planck da Irradiação e Teoria do Calor Específico.

1908 — É nomeado Privatdozent na Universidade de Berna.

1909 — Completa duas memórias: Sobre o Estado Atual do


­ roblema da Radiação e Evolução das Nossas Conceções Sobre a
P
Natureza e a Constituição da Radiação. A segunda é apresentada num
Congresso em Salzburg, o primeiro congresso de física em que ­Einstein
participa. Em julho demite-se do Gabinete de Patentes e abandona o
cargo de Privatdozent. Recebe o doutoramento Honoris causa na
­Universidade de Genebra, o primeiro de uma longa série. Começa a
trabalhar como professor agregado na Universidade de Zurique.

1910 — Nascimento do segundo filho, Eduard. Einstein termina


um artigo sobre a opalescência crítica, Teoria da Opalescência de
Fluidos Homogéneos e de Misturas Fluidas Próximas da Condição
Crítica; é o seu último trabalho importante no âmbito da física esta-
tística clássica.

1911 — É nomeado professor da Universidade Karl Ferdinand,


de Praga. Primeiro congresso Solvay; Einstein encerra-o com uma
comunicação sobre o tema: Estado Atual do Problema dos Calores
Específicos.

1912 — É nomeado professor do Politécnico de Zurique, cidade


para onde se muda em agosto.

1912-13 — Colabora com Grossman, que entretanto se tornara


professor de matemática no Politécnico, sobre os fundamentos da
teoria da relatividade geral.
88 P ORQUÊ A GUE RRA?

1913 — Oferecem-lhe em Berlim: um lugar de investigador na


Academia Prussiana das Ciências, uma cátedra na Universidade,
sem obrigação de lecionar, e a direção do Kaiser-Wilhelm-Institut
für Physik.

1914 — Muda-se para Berlim com a família. Pouco tempo


depois os Einstein separam-se. Mileva regressa a Zurique com os
filhos. A 26 de abril, no diário berlinense «Die Vossische Zeitung»,
aparece o primeiro artigo de divulgação, da autoria de Einstein sobre
a teoria da relatividade.

1915 — No início do ano, Einstein aceita um cargo temporá-


rio na Physikalisch-Technische Reichsanstalt de Berlim, onde, em
conjunto com Haas, prossegue experiências giromagnéticas. Está
entre os signatários de um «apelo aos europeus» para a constituição
de uma Liga que assegure a defesa dos valores culturais do Velho
Continente: provavelmente o primeiro documento político a que
emprestou o seu nome. Dá seis lições em Gotting sobre a teoria da
relatividade geral.

1916 — Publica Os Fundamentos da Teoria da Relatividade


Geral, a primeira exposição sistemática da sua teoria. Sucede a
Planck no cargo de presidente da Sociedade alemã de Física. Apre-
senta o seu primeiro trabalho sobre ondas gravitacionais: Integra-
ção Aproximada das Equações de Campo da Gravitação. A partir
de julho, e durante oito meses sucessivos, Einstein publicará três
escritos sobre a teoria quântica: o estudo Emissão e Absorção de
Radiação Segundo a Teoria Quântica e dois artigos intitulados Teo-
ria Quântica da Radiação. Em dezembro termina Relatividade:
Exposição Divulgativa, a sua obra mais conhecida, traduzida logo
em muitas línguas. É nomeado membro do conselho diretivo da
Physikalisch-Technische Reichsanstalt, cargo que ocupará de 1917
a 1933.

1917 — Einstein abre um novo capítulo da Física com as Consi-


derações Cosmológicas Sobre a Teoria da Relatividade Geral.
cronologias 89

1918 — Publicação do segundo estudo sobre as ondas gravita-


cionais.

1919 — Passa grande parte deste período em Zurique, onde dá uma


série de conferências na Universidade. Divorcia-se de Mileva. Em 29
de maio, um eclipse total do Sol permite medir a curvatura da luz, na
ilha do Príncipe e no Brasil setentrional. A 2 de junho Einstein casa
com a prima Elsa Lowenthal. Em novembro, durante uma reunião con-
junta da Royal Society e da Royal Astronomical Society, em Londres,
é anunciado que as observações de maio confirmam as previsões rela-
tivistas. É o início do mito Einstein, também junto do grande público.

1920 — Dá conferências na Noruega, na Dinamarca e em Leida.


De 1920 em diante, começa a publicar artigos de caráter não estri-
tamente científico.

1921 — Primeira visita aos Estados Unidos, juntamente com


Chaim Weizmann, com o objetivo de recolher fundos para o projeto
de uma universidade hebraica em Jerusalém. Em Chicago, Boston
e Princeton dá quatro lições sobre a teoria da relatividade, depois
publicadas com o título O Significado da Relatividade.

1922 — Termina o primeiro estudo sobre a teoria unitária dos


campos, escrita com Jakob Grommer. Aceita o convite para fazer
parte do Comité Internacional para a Cooperação Intelectual da
Sociedade das Nações, cargo que ocupará, salvo uma breve inter-
rupção, até 1932. A 9 de novembro é-lhe atribuído o Prémio Nobel
da Física, de 1921, «pelos seus contributos à física teórica e espe-
cialmente pela descoberta da lei do efeito fotoelétrico».

1923 — Participa na fundação da Associação Amigos da nova


Rússia e torna-se membro do seu comité executivo. Em Gotem-
burgo dá uma conferência intitulada Conceitos Fundamentais e
Problemas da Teoria Relativista, em sinal de agradecimento pelo
Prémio Nobel. Em dezembro é publicado o estudo Oferece a Teoria
de Campo Possibilidade de Solução do Problema Quântico?
90 P ORQUÊ A GUE RRA?

1924 — A última grande descoberta de Einstein: da análise


das flutuações estatísticas chega a uma conclusão independente
em favor da associação de ondas com a matéria. A condensação de
Bose-Einstein é também uma descoberta deste período.

1925 — Einstein assina (com Gandhi e outros) um manifesto


contra o serviço militar obrigatório.

1926 — Recebe a medalha de ouro da Royal Astronomical


Society.

1927 — Quinto congresso Solvay. Início do debate entre


­Einstein e Bohr sobre os fundamentos da mecânica quântica.

1929 — Recebe a primeira medalha Planck.

1930 — Assina o manifesto para o desarmamento mundial da


Women’s International League for Peace and Freedom. Segunda
estada de Einstein nos Estados Unidos, principalmente no Califor-
nia Institute of Technology (CalTech),

1931 — Terceira estada de Einstein nos Estados Unidos, de


novo no CalTech.

1932 — É oferecida a Einstein uma cátedra no Institute for


Advanced Study, de Princeton.

1933 — Os nacionalistas sobem ao poder na Alemanha.


Enquanto Einstein está nos Estados Unidos, as S. A. fazem uma
busca à sua residência de verão com o pretexto de procurar armas
escondidas pelos comunistas. Regressado à Europa, Einstein comu-
nica as suas demissões da Academia prussiana das Ciências. A corres-
pondência entre Einstein e Freud é publicada sob forma de opúsculo,
intitulado Porquê a guerra? Em outubro Einstein deixa a Europa e
instala-se com a mulher em Princeton, onde se torna professor do
­Institute for Advanced Study.
cronologias 91

1935 — Einstein faz o pedido formal para residir nos Estados


Unidos e recebe a medalha Franklin.

1938 — Juntamente com Infeld publica A Evolução da Física.

1939 — A dois de agosto escreve ao presidente Roosevelt


apoiando a construção da arma atómica.

1940 — Recebe a nacionalidade americana (mantendo também


a nacionalidade suíça).

1943 — Assina um contrato de consulta com a Marinha dos


Estados Unidos.

1945 — Em Nova Iorque faz um discurso sobre a paz.

1946 — É nomeado presidente do Emergency Comittee for Ato-


mic Scientists. Em outubro escreve uma carta aberta à Assembleia-
-geral das Nações Unidas, sugerindo a formação de um governo
mundial.

1949 — Publicação da Autobiografia Científica, uma síntese


retrospetiva na qual Einstein descreve o seu itinerário intelectual.

1950 — Einstein escolhe a Universidade hebraica de Jerusalém


como sede definitiva para conservar as suas cartas e os seus manus-
critos.

1952 — A presidência de Israel é oferecida a Einstein, mas ele


recusa-a.

1954 — A imprensa refere uma declaração de Einstein em


defesa de J. R. Oppenheimer, interrogado por presumíveis ativi-
dades antiamericanas. Último encontro entre Einstein e Bohr (em
Princeton).
92 P ORQUÊ A GUE RRA?

1955 — A 11 de abril Einstein associa-se ao apelo de Bertrand


Russell para o abandono das armas nucleares em todo o mundo.
A 18 de abril, em Princeton, Einstein morre de aneurisma da aorta.
ÍNDICE

Prefácio, de Ernesto Balducci . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7


Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Sigmund Freud
CONSIDERAÇÕES ATUAIS SOBRE A GUERRA
E A MORTE (1915)
I – O desapontamento perante a morte . . . . . . . . . . . . . . 25
II – A nossa atitude diante da morte . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Sigmund Freud
CADUCIDADE (1915) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

PORQUÊ A GUERRA? — Reflexões a dois sobre


o destino do Mundo (1932)
Carta de Einstein a Freud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Carta de Freud a Einstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

CRONOLOGIAS
Cronologia de Freud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Cronologia de Einstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
COLEÇÃO BIBLIOTECA 70

01. O Mistério da Saúde, Hans-Georg Gadamer


02. As Relações Internacionais desde 1945, Maurice Vaïsse
03. Actos de Significado, Jerome Bruner
04. Conceitos Sociológicos Fundamentais, Max Weber
05. As Relações Internacionais de 1918 a 1939, Pierre Milza
06. Tempos Cativos: As Crianças TV, Liliane Lurçat
07. Herança e Futuro da Europa, Hans-Georg Gadamer
08. Introdução à Psicologia Social Moderna, Giovanni Gocci e Laura Occhini
09. O Processo da Educação, Jerome Bruner
10. Questões de Retórica: Linguagem, Razão e Sedução, Michel Meyer
11. O Paroxista Indiferente, Jean Baudrillard
12. O Médico na Era da Técnica, Karl Jaspers
13. A Evolução Psicológica da Criança, Henri Wallon
14. Revolução Industrial e Crescimento Económico no Séc. XIX, Chantal
Beauchamp
15. As Relações Internacionais de 1871 a 1914, Pierre Milza
16. Introdução à Sociologia, Norbert Elias
17. O Nascimento do Tempo, Ilya Prigogine
18. A Filosofia da Educação, Olivier Reboul
19. As Relações Internacionais de 1800 a 1871, Benoît Pellistrandi
20. Psicanálise e Religião, Erich Fromm
21. A Interpretação das Afasias, Sigmund Freud
22. Para uma Sociologia da Ciência, Pierre Bourdieu
23. Esboço para uma Auto-Análise, Pierre Bourdieu
24. O que é o Ocidente?, Phillipe Nemo
25. História da Geografia, Paul Claval
26. Educação e Sociologia, Émile Durkheim
27. Teologia Política, Merio Scattola
28. Lições de Sociologia, Theodor W. Adorno
29. As Palavras e as Coisas, Michel Foucault

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