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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - CAMPUS DE CASCAVEL


CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LINGUAGEM E SOCIEDADE

LUIZ CARLOS MACHADO

MESTRADO

AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS E ENVIESADAS DO ROMANCE GRÁFICO


AQUI DE RICHARD MCGUIRE

CASCAVEL – PR
2021
LUIZ CARLOS MACHADO

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AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS E ENVIESADAS DO ROMANCE GRÁFICO


AQUI DE RICHARD MCGUIRE

Dissertação apresentada à Universidade Estadual do


Oeste do Paraná – UNIOESTE – para obtenção do
título de Mestre em Letras, junto ao Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de
Mestrado e Doutorado - área de concentração
Linguagem e Sociedade.

Linha de Pesquisa: Linguagem literária e interfaces


sociais: estudos comparados e literatura.

Orientador: Prof. Dr. Acir Dias da Silva

CASCAVEL – PR
2021

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Ficha catalográfica

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LUIZ CARLOS MACHADO

MESTRADO

AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS E ENVIESADAS DO ROMANCE GRÁFICO


AQUI DE RICHARD MCGUIRE

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em Letras e
aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras –
Nível de Mestrado, área de Concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Prof. Dr. Acir Dias da Silva
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Orientador

____________________________________________
Profa. Dr Norival Bottos Junior
Norival Bottos Júnior
Universidade Federal do Amazonas (UFAM
Membro Efetivo (convidado)

_____________________________________________
Profa. Dr Antonio Donizetti da Cruz
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Membro Efetivo

Cascavel, 11 de fevereiro de 2022

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A Seu Antônio, meu pai.


Primeiro artista intermidiático que conheci.
Conquistamos juntos, Pai.
Esse título é seu.

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“Não me considero um quadrinista, sempre me


senti livre para trabalhar com diferentes meios,
não quero me limitar a um.” (Richard
McGuire)

MACHADO, Luiz Carlos. As narrativas intermidiáticas e enviesadas do Romance


Gráfico Aqui de Richard McGuire Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-

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Graduação em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel,


2021.

Orientador(a): Acir Dias da Silva Defesa:

RESUMO

A pesquisa apresentada centrou-se no estudo da intermidialidade, conceito que designa os


entrelaçamentos de mídias e superação de fronteiras midiáticas, objetivando analisar as
narrativas enviesadas do Romance Gráfico Aqui (2014) de Richard McGuire. A partir dessa
proposta de análises desponta-se o questionamento: O Romance Gráfico, tomado pelo viés de
narrativa enviesada pode ser proposto como materialidade intermidiática que rompe as
fronteiras das mídias literárias e visuais e amplia as possibilidades de leitura? Com o
propósito de encontrar resposta a essa problematização, traça-se, como objetivo geral,
examinar as narrativas intermidiáticas do romance gráfico, a fim de compreender seus
recursos estéticos que objetivam transpor os limites das linguagens, suportes e hierarquia de
leitura. Na perspectiva de alcançar o objetivo proposto, sustenta-se a pesquisa nos
pressupostos teóricos da intermidialidade de Rajewsky (2012), Clüver (2011), Moser (2006),
o conceito de narrativas enviesadas de Canton (2009) e os estudos sobre História em
quadrinhos e Romance Gráfico de Eisner (1999) e McCloud (2005). Trata-se, portanto, de
uma pesquisa pautada na literatura comparada, de caráter qualitativo. Como resultado desse
processo de investigação, entendeu-se que Romance Gráfico parece ser uma materialidade
que propõe uma narrativa intermidiática e enviesada que oferece uma possibilidade de leitura
ampla, aberta e conceitual.

PALAVRAS-CHAVE: Intermidialidade. Narrativas. Romance Gráfico. Literatura comparada.

MACHADO, Luiz Carlos. The Intermediatics and Biaseds Narratives of the Graphic
Novel Here of Richard McGuire. Dissertation (Masters in Letters) - Graduate Program in
Letters, Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Cascavel, 2021.

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Advisor: Acir Dias da Silva Defense:

ABSTRACT

The research presented here focused on the study of intermediality, a concept that designates
the interweaving of media and overcoming media boundaries, aiming to analyze the biased
narratives of Richard McGuire's Graphic Novel Here (2014). From this proposed analysis, the
following question arises: Can the Graphic Novel, taken by the bias of a skewed narrative, be
proposed as an intermediate materiality that breaks the boundaries of literary and visual media
and expands reading possibilities? With the purpose of finding an answer to this questioning,
the general objective is to examine the intermediate narratives of the graphic novel, in order to
understand its aesthetic resources that aim to transpose the limits of languages, supports and
reading hierarchy. In the perspective of reaching the proposed objective, the research is
supported by the theoretical assumptions of intermediality by Rajewsky (2012), Clüver (2011),
Moser (2006), the concept of biased narratives by Canton (2009) and the studies on History in
comics and Graphic Novel by Eisner (1999) and McCloud (2005). It is, therefore, a research
based on comparative literature, of a qualitative nature. As a result of this research process, it
was understood that the Graphic Novel seems to be a materiality that proposes an intermediate
and biased narrative that offers a possibility of wide, open and conceptual reading.

KEYWORDS: Intermediality. Narratives. Graphic Novel. Comparative literature.

SUMÁRIO

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ANTES 10
PRIMEIRAMENTE: A INTERMIDIALIDADE DO ROMANCE GRÁFICO 16
1.1 Ontem e Hoje: Conceituações da intermidialidade 16
1.2. Juntos: Romance Gráfico como combinação de mídia 25
1.3 Além: um cruzamento de fronteiras entre Artes Visuais e Literatura 38
EM TEMPO: ROMANCE GRÁFICO COMO NARRATIVAS ENVIESADAS. 46
2.1 Através: o conceito de Narrativa enviesada 46
2.2 Sempre e nunca: uma narrativa não linear entre mídias 52
2.3 Dentro: os elementos compositivos como recursos midiáticos 59
3. POR FIM: AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS DO TEMPO E DO ESPAÇO 68
3.1 Onde e quando: as representações do tempo e do espaço em Aqui 68
3.2 Lá: as narrativas do canto de uma sala. 81
3.3 Aqui: é o Não-lugar 93
DEPOIS: CONSIDERAÇÕES 101
REFERÊNCIAS 106

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ANTES

Rajewsky (2012) debruça-se, em suas pesquisas, sobre o fenômeno denominado


intermidialidade, que se caracteriza pela inter-relação e interação entre mídias. Para a autora,
o conceito não é uma novidade, apesar do seu notório diálogo com a contemporaneidade e o
termo em si ser academicamente recente. Na esteira dessa discussão já se usou definições
como multilinguagem, hibridação e artes integradas. Todavia, cada um desses termos esbarra
nas limitações de suas próprias definições e nas demarcações próprias de cada mídia em
particular. Intermidialidade consegue ser um conceito “guarda-chuva” por ser edificado na
junção de dois termos já bem abrangentes: mídia, que pode ser compreendido como a própria
linguagem, os mecanismos ou a mensagem de uma determinada comunicação e inter, que
pode significar tudo que está entre as mídias; todas as trocas, compartilhamentos, referências
e reelaboração.
Sendo assim, apresenta-se esta pesquisa como um instrumento de debate sobre os
estudos da intermidialidade, sobretudo nas superações dos limites das linguagens artísticas
quando combinadas em uma obra que explora a combinação midiática. Sugere-se como
exemplo, o Romance Gráfico, subgênero mais conceitual das histórias em quadrinhos,
proposto em 1978 por Will Eisner sob a denominação em inglês de Graphic Novel1. A
primeira e mais notável característica deste estilo de história em quadrinhos está no fato de se
apropriar de elementos das artes visuais (imagem, linha, forma, cor, luz, volume) e da
literatura (palavra, texto, figura de linguagem) e adaptá-los nas suas páginas, um processo
analisado por Rajewsky (2003) e denominado remediação midiática.
No construto dessas obras, recursos advindos de mídias diferentes se reúnem para
definir tais narrativas, cada elemento se torna portador de um texto e de uma representação.
Canton (2009) propõe o conceito de “narrativas enviesadas” para descrever a maneira como
obras intermidiáticas contam histórias, o que, segundo a autora, é de um modo não linear e
vale-se de todos os elementos propostos pela obra. Desde os suportes, as linguagens, a poética

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Optou-se por usar o termo em português, como passou a ser usado no mercado de quadrinhos brasileiro a partir
dos anos 1990, pelo motivo de abordar dois conceitos mais acessíveis no estudo da literatura, o romance e no
estudo das artes visuais, o gráfico.

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do autor até a relação com o observador, tudo se torna mídia que não se delimitam em uma
ordem cronológica ou uma hierarquia de intenção.
Desse modo, propõe-se como objeto de análise desse estudo o romance gráfico Aqui
de Richard McGuire (2014), por se tratar de uma obra com caráter experimental que apresenta
uma narrativa desconstruída, não linear e múltipla. O quadrinista explora representações do
tempo e do espaço utilizando regências da literatura e das artes visuais e articulando todos os
ícones das suas páginas em elementos narrativos.
A partir disso, essa pesquisa propõe o seguinte questionamento: O romance gráfico,
tomado pelo viés de narrativa enviesada, pode ser proposto como materialidade intermidiática
que, ao romper as fronteiras das mídias, sobretudo da literatura e das artes visuais, apresenta
estratégias narrativas que ampliam, constitutivamente, os moldes convencionais e as
possibilidades de leitura?
Esta pergunta emerge diante de um necessário debate sobre linguagens artísticas que,
por figurarem em meio a cultura pop, ainda habitam um campo indefinido academicamente.
Os romances gráficos por serem história em quadrinhos, muitas vezes, parecem ser tomados
como subprodutos na relação com a literatura. Na biblioteca de teses e dissertação da
Unioeste (Universidade Estadual do Paraná), não foi encontrado nenhuma pesquisa específica
sobre romance gráfico, apenas alguns trabalhos sobre histórias em quadrinhos em geral e na
sua maioria, análises discursivas e não estéticas. Enquanto no catálogo da CAPES,
encontramos 12104 pesquisas, demonstrando ser um tema de bastante engajamento, tanto para
estudantes de letras/literatura, quanto de artes visuais. No entanto, em muitos trabalhos, o
termo aparece como sinônimo para histórias em quadrinhos.
E isso parece ocorrer também com outras linguagens geradas por combinações de
mídias como o cinema, as séries de TV e o vídeo game. Rajewsky apresenta a
intermidialidade como um conceito que busca articular as relações midiáticas, focando nas
fronteiras geradas pela tradição acadêmica e que determinam o campo de atuação de cada
área. E assim consolidando a individualidade de cada uma dessas novas mídias em uma
horizontalidade de importâncias às mídias tradicionais.
Pelo catálogo de dissertações e teses da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior) foram encontrados 261 resultados para intermidialidade, sendo
202 dissertações de mestrado e 59 teses de doutorados. No entanto, a maioria dos trabalhos
citam a intermidialidade como um dos elementos da interculturalidade e da intertextualidade e
não como um conceito independente. Pelo fato de ser um termo recente e pouco explorado

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pelas academias, muitas vezes é abordado de forma equivocada ou reducionista. Além disso,
percebe-se que é uma área de interesse maior para estudantes de Arte visuais e cinema, do que
letras e literatura.
Para Clüver (2007), as linguagens, técnicas, suportes e processos que integram o
panteão das artes são mecanismos portadores de mensagens, que se desenvolveram anexadas
à evolução da humanidade. Todas as mídias individuais e tradicionais foram também geradas
pela combinação e interação de outras que as precederam. Por isso, pensar nas linguagens
como mídias e que se inter-relacionam desde os primórdios do conhecimento humano é um
caminho factível.
A escolha do romance gráfico como objeto de estudo se dá por ser um gênero mais
experimental de histórias em quadrinho, que são combinações de mídia que melhor
desenvolvem o processo de remediação apresentado por Rajewsky. Desta forma, proporciona
um corpus que potencializa uma análise mais profunda do processo da quadrinização, pois
explora em sua construção todos os recursos e fundamentos deste meio de expressão.
Ademais, esta forma de arte em questão parece ser um tipo ideal do que Canton apresenta em
seu conceito de narrativas enviesadas. Por se tratar de trabalhos experimentais que escapa das
definições casuais de uma história em quadrinhos, oferece uma experiência narrativa única e
dialoga com as características das obras conceituais contemporâneas que abandonam as
divisas territoriais das linguagens.
O termo narrativas enviesadas de Canton consegue, também, sintetizar duas das
características mais intermidiáticas das Artes Visuais e da literatura contemporânea: a
transformação de todos os elementos da obra em mídias e o rompimento dos limites das
linguagens. Particularidades estas que se desenhavam desde os poemas tipográficos de
Mallarmé, desembocaram na libertação da representação do real das vanguardas modernas e
se concretizaram na arte conceitual contemporânea. Refletir a proposta da autora pode
contribuir na compreensão e definição dos processos de intermidialidade, sobretudo nos dois
pontos citados acima.
Esta pesquisa parece ser uma boa contribuição à área dos estudos comparados de
Literatura pois pretende descortinar as relações semióticas e discursivas que imagem e palavra
estabelecem na constituição de uma narrativa gráfica. Signos evocados nos procedimentos de
uma obra quadrinizada são comuns nas práticas tanto das Artes Visuais e Gráficas quanto na
literatura, que transitam entre o abstrato, a representação do real, o simbólico e o cultural.
Refletir sobre esses parâmetros é um sério tributo ao debate da Arte como teoria do

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conhecimento. Por isso, é importante salientar que uma forma de registro como quadrinhos
que é capaz de unir elementos de diversas linguagens precisa ter uma atenção mais
consistente da academia, sobretudo das escolas de letras e literatura.
Diante desses pressupostos, este trabalho apresenta como objetivo central: examinar os
processos intermidiáticos do romance gráfico, pela utilização do conceito de narrativas
enviesadas e a intermidialidade, a fim de compreender seus recursos estéticos que objetivam
transpor os limites das linguagens, suportes e hierarquia de leitura.
A partir disso, especificamente, procura-se estudar o aporte teórico sobre
intermidialidade, por meio de revisão bibliográfica, no intuito de verificar o cruzamento das
fronteiras da arte visual e a literatura no estudo do Romance Gráfico. Bem como, analisar as
configurações do Romance Gráfico em questão sob o olhar de Katia Canton em seu conceito
de narrativas enviesadas, a fim de problematizar a transformação de elementos compositivos
da obra em recursos midiáticos. E por fim, contrastar teorias narrativas da literatura e das artes
visuais no estudo dos recursos linguísticos e visuais utilizados no romance gráfico, no intuito
de verificar representações do tempo e do espaço.
Partindo do debate acerca das imbricações de mídias, boa parte das vertentes
científicas que exploram o fenômeno da inter-relação de linguagens artísticas se fundamentam
na perspectiva filosófica do hibridismo cultural. Burke (2003) compõe uma análise de
inúmeras formas de aglutinações que ocorreram e ocorrem na edificação das representações
culturais de nosso tempo, principalmente por efeito da globalização. Ademais, essas
apropriações de múltiplos meios, instrumentos, procedimentos e discursos, que alicerçam as
inter-relações de culturas, linguagens e áreas do conhecimento, se aproximam da compressão
de Derrida (1971) e seu conceito da bricolagem.
Além desses autores, todo o fundamento da pesquisa ancora-se nos estudos da
literatura comparada e das relações da Literatura com outras artes e mídias, principalmente
nas contribuições de Carvalhal (1994), buscando centralizar em teoria literária,
principalmente a intermidialidade, no trato das aproximações de literatura e história em
quadrinhos. O aporte teórico sobre intermidialidade é oferecido, além dos autores já citados,
por Clüver (2011), Moser (2006), Higgins (2012), Bruhn (2020), Morley (2020) e para o
embasamento sobre semiótica será utilizado os estudos de Santaella (1983). A análise de todos
os dados coletados pela pesquisa tem caráter qualitativo e a abordagem dos pressupostos
teóricos apresenta-se como base uma revisão bibliográfica sobre literatura comparada no
âmbito das relações da literatura com outras artes e mídias.

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A fim de ilustrar as relações intermidiáticas que um romance gráfico produz, propõe-


se uma análise da obra quadrinizada Aqui, de McGuire (2014), na qual o autor narra
paralelamente acontecimentos que ocorrem em tempos diferentes, mas no mesmo lugar: um
canto de uma sala de estar de uma casa, indo de 80 milhões de anos A.C até um futuro
apocalíptico. McGuire, como em todo romance gráfico, cria uma obra que estabelece um
ponto de encontro entre as artes visuais e a literatura, porém, em Aqui, a intermidialidade vai
além de imagem e palavra. Ao imprimir ritmo musical em suas páginas, o que Eisner (1999) e
McCloud (2005) já denunciava ser possível ao dizer que o tempo pode ser representado e até
mesmo desconstruído pela ordem, tamanho e espessuras dos requadros, quase como uma
pauta musical. O autor, que também é músico, joga com o tempo das cenas criando uma trilha
sonora visual e fazendo o leitor descobrir a elasticidade do tempo.
No intuito de desenvolver um debate que contemple a maioria das inquietações
levantadas pela presente pesquisa, este trabalho está dividido em três seções: A
intermidialidade do romance Gráfico, romance gráfico como narrativas enviesadas e as
narrativas gráficas do tempo e do espaço.
Na primeira parte deste trabalho é apresentado as contribuições de Rajewsky, Bruhn,
Higgins e Moser para a definição do conceito de Intermidialidade e como se consolida nos
estudos de literatura comparada e interartes, no paralelo com as ideias de Carvalhal. Em
seguida, é tratado sobre Romance Gráfico, tendo como objeto de estudo, o livro Aqui de
Richard McGuire, como combinação de artes visuais e literatura, ou seja, uma resultante de
uma das categorias de intermidialidade apresentado por Rajewsky, a combinação de mídias
Para tanto, traça-se um paralelo entre dois dispositivos da comunicação, a imagem e palavra,
utilizando os conceitos semióticos de Santaella e as verificações intermidiáticas de Simon
Morley, além das análises de quadrinhos de Will Eisner, Scott McCloud, Carlos Patati e
Flávio Braga.
Segue-se para o debate sobre as características intermidiáticas do romance Gráfico que
o aproxima do conceito de narrativa enviesada de Katia Canton. Propõe-se um paralelo com
as definições de narrativa de Benjamin e os conceitos de hibridação de Peter Burke e de
bricolagem de Jacques Derrida. A partir dos estudos intermidiáticos de Rajewsky, Clüver e
Higgins, verifica-se os aspectos de narrativa entre mídias do romance gráfico e como cada um
dos recursos se torna contador de história.
Por fim, analisa-se as representações filosóficas e sociológicas engendradas nas
narrativas que exploram o tempo e o espaço nas páginas do romance gráfico Aqui. Para tanto,

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debate-se os conceitos de devir de Heráclito e de Ritornelo de Deleuze e Guattari, além da


poética do espaço de Bachelard e ideia de não-lugar de Augé. Fechando com as últimas
contribuições e considerações no texto da conclusão.

1. PRIMEIRAMENTE: A INTERMIDIALIDADE DO ROMANCE GRÁFICO

Como ponto de partida deste estudo, propõe-se o exame histórico, estético e


técnico do subgênero de histórias em quadrinho, o Romance Gráfico, no intuito de entendê-lo
como uma materialidade intermidiática que combina elementos da literatura e das artes
visuais. Para tanto se faz necessário elencar definições apresentadas por alguns teóricos sobre
a intermidialidade e suas categorias, a fim de compreender como oferece parâmetros para
analisar os cruzamentos de fronteiras midiáticas.

1.1 Ontem e Hoje: Conceituações da intermidialidade

Desde sua inicial proposta no campo de pesquisa alemão, a intermidialidade perpassa


por uma constante reavaliação, seja pela necessidade de definições mais precisas do seu
campo de abrangência ou pela exigência de um conceito que dê conta dos cruzamentos de
fronteiras midiáticas das produções contemporâneas. Na esteira do debate da literatura
comparada e dos estudos interartes, Rajewsky (2020) verifica que muito dessas questões
intermidiáticas já eram abordadas, principalmente no que tange a similaridades midiáticas e as
adaptações literárias para outras mídias. No entanto, com surgimentos das mídias modernas,
principalmente as eletrônicas e digitais, certas problemáticas escaparam do raio de atuação
dos estudos comparados e interartes.
Apesar do intenso debate, que perdura há décadas, sobre as definições de linguagens
artísticas como a literatura e as artes visuais, seus campos de atuação e seus cânones,
convencionalmente, parece estar perfeitamente definido. As técnicas e narrativas de algumas
mídias em particular, como a pintura e a poesia, por exemplo, passaram por uma forma
sacralização ao longo da história. Mas, no final do século XIX e começo do XX, surgiram
algumas mídias que pareciam mesclar linguagens artísticas diferentes. Por conta dessas
produções contemporâneas, a intermidialidade apresenta-se como um novo campo de debate
acerca dos limites e definições midiáticas.
O termo foi usado pela primeira vez pelo teórico alemão Aage A. Hansen-Löve em
1983, a princípio como uma ideia que derivava da intertextualidade e que tentava dar conta de

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toda e qualquer referência para além do âmbito do verbal. No entanto, Higgins (2012) usou
um termo parecido em um artigo de 1965, revisitando a expressão “intermídia”, utilizada por
Samuel Taylor Coleridge em 1812. Intermídia foi usada para designar obras cuja
materialidade se consolidaram entre mídias conhecidas. Aos poucos, a necessidade da
definição de um conceito que tratasse tanto das referências, quanto das transposições e das
combinações de midialidade se tornava cada vez mais presente. Diante disso Rajewsky
apresenta que:

Desde o início, a “intermidialidade” tem servido como um termo guarda-


chuva. Várias abordagens críticas utilizam o conceito e, a cada vez, o objeto
específico dessa abordagem é definido de modo diferente, e a
intermidialidade é associada a diferentes atributos e delimitações
(RAJEWSKY, 2012, p.16).

A intermidialidade abre um leque conceitual amplo que abarca certos pontos que
propostas investigativas anteriores não conseguiam apresentar soluções. É importante deixar
claro, de antemão, que esse novo conceito também não obteve êxito absoluto sobre as
relações interartes, mas abriu novos caminhos a serem percorridos. O fato de utilizar o termo
mídia como base, a abrangência de sua atuação nas pesquisas se amplia, pois, linguagens,
suportes, recursos, técnicas e discursos passam a ser abordados de forma horizontal.
No entanto, o que, de certa forma, confere a intermidialidade uma vantagem diante dos
outros conceitos, também lhe imprime sua “maldição”. Sua característica abrangente foi
apontada por algumas pesquisas, nos anos 1990, como uma falta de precisão terminológica e
conceitual. O que gerou, muitas vezes, uma utilização equivocada em pesquisas e debates. Por
transitar no campo da intertextualidade e estudos interartes foi tomado apenas como um termo
da moda da literatura comparada e do hibridismo. Apesar disso, Rajewsky diz que

O emprego bastante amplo e confuso do termo “intermidialidade” não


causou entrave, entretanto, à sua capacidade de se impor. Apesar das críticas
e do ceticismo que atraiu desde seu surgimento, ele se desenvolveu a ponto
de se tornar “um dos termos mais produtivos no campo das humanidades”
(2012, p. 58).

Mesmo diante das críticas e dos equívocos nas aplicações, a intermidialidade


conquistou certa independência terminológica com passar do tempo e se consolidou como
campo de pesquisa. Com crescente números de estudos e publicações, que não se restringiram
ao campo de estudos germanófonos, enriquece-se ainda mais com termos e experiências que
não havia no contexto alemão. Ao expandir-se até ao campo anglófono, por exemplo, no qual

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teve uma recepção, inicialmente tímida e cautelosa, acabou abrindo caminho para debates
mais esclarecedores. Nos EUA, principalmente, encontrou nichos de discussões por conta da
longa tradição do estudo interartes, um campo da literatura comparada, que já foi chamado
por lá, de literatura e outras artes.
Entende-se por literatura comparada o campo de estudos literários que propõe análises
de uma obra em paralelo a outras produções ou outras áreas do conhecimento, da arte ou da
comunicação. Originou-se em meados do século XIX, como uma metodologia ligada à
história da literatura que visava compreender contrastes, referências e influências das criações
literárias de culturas e épocas diferentes. A verificação comparatista abarca desde regras
gramaticais e intertextualidade, até transposições de elementos linguísticos, estéticos e
narrativos, provenientes de nacionalidades, linguagens e áreas do conhecimento diferentes.
Destes estudos, derivou-se a subárea dos estudos interartes que se afunilou a pesquisa na
comparação da literatura com outras mídias artísticas.
Assim como em Hansen-Löve, nos estudos estadunidenses foram os debates no âmbito
da intertextualidade que geraram o surgimento da intermidialidade, sobretudo no contexto do
comparativismo da literatura com outras artes. Segundo Rajewsky, o que parece ocorrer logo
em seguida é o abandono do primeiro termo e a aceitação do novo como ideia chave para
soluções dos problemas gerados nessa comparação. Principalmente, porque a
intertextualidade, que foi apresentada pela pós-estruturalista Julia Kristeva em 1941, trata
estritamente das configurações do texto, da língua, enquanto as problemáticas encontradas nas
relações entre as linguagens abarcavam elementos estéticos e narrativos que não se
restringiam ao verbal. Por exemplo, ao comparar um texto teatral com sua montagem no
palco, há recursos da mídia teatro que escapam do campo de atuação da literatura e da língua.
Por conta disso, a necessidade da estruturação de um novo conceito e,
consequentemente, de uma área independente de pesquisa que tratasse especificamente dessas
comparações, referências e apropriações, tornou-se iminente. Nesse caso, o uso da
intermidialidade fez-se eficaz pois “serve para designar configurações, procedimentos e
processos implicando várias mídias, nos quais entra em jogo, portanto, um atravessamento das
fronteiras midiáticas” (RAJEWSKY, 2020, p. 64). A abrangência da atuação do conceito
atraiu pesquisadores dos estudos interartes, até mesmo aqueles que não eram especificamente
da área literária, lançando o como campo de investigação mais geral, apesar de ter suas raízes
fixadas na literatura.

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Segundo Tânia Franco Carvalhal, a própria literatura comparada, ponto de partida de


todas essas investigações, também foi tomada como mera comparação entre textos de
diferentes origens, o que foi chamado de estudo das fontes literárias. Todavia, com o passar do
tempo e com as produções científicas que se seguiram, percebeu-se que os procedimentos e
metodologias que os comparatistas lançaram mão, não se limitavam a análises puramente
textuais. Outras áreas do conhecimento, processos e mecanismo da comunicação social,
técnicas e linguagens artísticas também são alvos da análise comparatista, o que conferiu um
grau de abrangência maior ao arcabouço de investigação da literatura comparada.
Esse ecletismo metodológico do comparativismo literário também oferece uma
oportunidade de articulação científica a outras áreas das humanidades. Estudos
antropológicos, por exemplo, valem-se, quase sempre, de registros artísticos e literários para
compreender os construtos culturais de um determinado povo. A filosofia e a psicologia,
muitas vezes, erigiram seus conceitos na referência à mitologia e à literatura oral. Ou seja, as
metodologias comparatistas têm sido utilizadas tanto na análise de uma obra literária com seu
contexto sócio histórico e suas referências advindas de outras áreas, quanto no estudo de
outros campos do conhecimento e das artes que desembocam em uma produção da literatura.

Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na


atuação comparativista enquanto preserva sua natureza "mediadora",
intermediária, característica de um procedimento crítico que se move "entre"
dois ou vários elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se, em
definitivo, seu caráter "interdisciplinar " (CARVALHAL, 1991, p.10).

Essa interdisciplinaridade do comparativismo se edifica na própria capacidade da


literatura de apropriar e registrar experiências humanas, o que lhe confere a possibilidade de
transitar entre várias abordagens. A narrativa literária é essencialmente o construto de diversas
camadas de significações, representações e sensações e sendo assim pode ser a mediadora de
inúmeras reflexões. Carvalhal (1991) define que essa característica múltipla da literatura
comparada não é nova, mas certos pensamentos mais conservadores interessados em manter
certos cânones literários, acabaram por limitar seus debates.
Todavia, o crescimento dessa forma de abordagem, sobretudo nas interartes, exigiu do
comparativista algumas competências que lhe escapavam. Às vezes, as faltas do
conhecimento específico de um ramo artístico não literário explorado nas comparações,
ocasionaram alguns equívocos de termos e procedimentos. A autora atenta, em seu artigo
“Literatura comparada: A estratégia interdisciplinar”, a errônea atitude de simplesmente

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transpor nomenclatura de uma linguagem a outra numa mera citação, sem dar a justa medida
metafórica.
É nesse exato ponto que os estudos alemães edificaram o termo intermidialidade nas
lacunas apresentada pelos termos intertextualidade e estudos interartes, ambos pressupostos
da literatura comparada. A intermidialidade, apesar de ainda ser alvo de questionamentos e
abordagens equivocadas, parece estabelecer-se como um termo capaz de articular esses
espaços deixados pelos conceitos que lhe geraram. E assim como a literatura comparada,
talvez até em um grau ainda maior, se apresenta como um campo de estudo que não se
restringe ao pesquisador de literatura.
A vantagem do conceito se insere na própria construção do termo: a junção de “inter”
e “midialidade”. É importante salientar que, as duas abordagens que originaram o interesse a
esse tema apresentam em comum o prefixo inter, significando que o debate consistia em
relações.
Certamente, o prefixo “inter” destaca o momento de um “estar-
entre”, um “um interesse", também esse fato, entretanto, pode ser
interpretado de diferentes maneiras, como eloquentemente testemunha o
amplo campo que abrange a pesquisa em intermidialidade. Com efeito,
considerando-a no seu conjunto, constata-se que a atenção se voltou sobre as
ligações e rupturas (estéticas), sobre as porosidades entre as mídias, sobre os
processos de transformação midiática, sobre as interações e as referências
em geral (RAJEWSKY, 2020, p. 66).

Considerando que o termo se tornou veemente quando se percebeu que, nos processos
de comparação de literatura com outras artes, recursos estéticos que figuravam igualmente em
mídia diferentes e/ou eram transpostos de uma mídia para outra, não era possível ser analisado
apenas pelo viés literário. Elementos pictóricos utilizados nas histórias em quadrinhos não
eram elucidados ao serem tratados como mera representação imagética do verbal, por
exemplo. Não é difícil de se concluir que foi a necessidade de se elucidar conexões e trocas de
diversas naturezas evocaram o prefixo “inter”. Dentro do seu alcance de abordagem reside,
por exemplo, toda e qualquer similaridade entre mídias, como a natureza textual do roteiro
para cinema, teatro e ópera, toda a apropriação de recurso de uma mídia para outra, como a
métrica poética de uma música com letra e todas as combinações de recursos de mídia. como
o uso da linguagem visual e a linguagem textual nas histórias em quadrinhos.
Já midialidade evoca a ideia de um elemento mediador entre um remetente e um
receptor, ou seja, é o meio no qual a mensagem ocorre e ao mesmo, a própria mensagem.
Derivado das expressões inglesas medium e media, pode-se traduzi-la como meio de

8
820

expressão, veículo de comunicação e mensagem. É possível utilizá-lo para se referir ao som,


a imagem e ao verbal, a linguagens e obras artísticas, a áreas comunicativas como o jornal,
rádio, cinema, televisão, a mecanismos como televisor, computador, telefone, smartphone, a
suportes como tela, papel, madeira e a instrumentos como pincel, lápis, tinta e cinzel.
Bruhn (2020) entende midialidade como um cerne fenomenológico “instalado” entre
dois pontos no processo comunicativo, “[...] ou seja, entre o produtor e a mensagem e entre a
mensagem e o receptor [...]” (2020, p. 21). Dessa forma, no caso de uma história em
quadrinho, a midialidade da mensagem transmitida reside tanto no material utilizado, como
no suporte, na técnica, no traço, nas cores, na composição, e nas simbologias. Uma
articulação semiótica múltipla é gerada na tríade denominada pelo autor como Remetente-
Produto de mídia-Receptor, nessa conexão está resumida essencialmente a natureza da
midialidade. Segundo Bruhn:

Em termos pragmáticos, a habilidade do remetente de construir um produto


de mídia a partir do conhecimento e interesse em midialidade específicas é
posteriormente compensada pelo conhecimento do receptor sobre as
midialidades, que permite que ele ou ela reconheça e processe o produto de
mídia de uma forma que “corresponde” às intenções do emissor (BRUHN,
2020 p. 22).

Pensar em mídia, configura um objeto artístico, qualquer que seja, como um conjunto
de elementos comunicativos que são interpretados por um receptor. O jogo semiótico
estabelecido por um produto de mídia exige habilidades e entendimentos tanto do remetente
quanto do receptor acerca das midialidades apresentadas. Clüver afirma que “a nossa relação
com a mídia “música”, por exemplo, se dá através do nosso contato com signos emitidos pela
performance de uma peça musical — de um produto ou uma configuração da mídia “música”
(2007, p. 9). Ao ouvir uma música instrumental executada por instrumentos de corda como
violino, viola, violoncelo e piano, estabeleceu-se contato com texto sonoro que é modulado na
composição da peça, uma organização de notas, frequência, tempos, intervalos e repetição.
A materialização dessa mídia se configura pela habilidade do musicista de executar
esses elementos utilizando o instrumento musical, a capacidade de ouvir e decodificar os sons
emitidos e a sensibilidade de captar as expressões pretendidas na obra. Todavia, é importante
citar que uma leitura superficial do receptor não desqualifica a mídia, afinal as relações de
midialidade abarca a universalidade e a particularidade.
Ao discutir determinada mídia em particular, segundo Rajewsky, nunca se fala de uma
“mídia” enquanto tal, mas sim sua materialidade, ou seja, de uma obra específica. Por mais

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821

que algumas mídias, principalmente as que consideramos artísticas, se configuram,


convencionalmente, como representações determinadas e definitivas, sua concretização, de
fato, se dá na materialização de um produto de mídia. É evidente que no decorrer da história,
o conjunto das obras produzidas determinaram os parâmetros que classificam e definem uma
mídia em particular, no entanto, essas definições não devem ser entendidas como uma
ortodoxia. A mídia cinema, por exemplo, mesmo que sua vasta produção de mais de 100 anos
tenha estabelecido certos cânones, o produto de mídia que estabelece a relação remetente-
receptor é a obra cinematográfica e os recursos que o diretor decidiu utilizar.
Essas particularidades dos produtos de mídias por vezes são relacionais, ou seja, uma
mesma qualidade é comum em duas mídias ou mais. Recursos compartilhados por mais de um
meio se tornam reconhecidos com mais facilidade, passam a ser signos intrínsecos no
inconsciente coletivo e podem ser acessados quase que instintivamente. Diante desses
pressupostos, o termo intermidialidade parece oferecer uma compreensão mais ampla e
imediata ao debruçar-se sobre essas características interativas das mídias.
Serve, inclusive, para traçar uma análise da construção das mídias artísticas e
comunicativas que hoje conhecemos. Mesmo as práticas artísticas mais primordiais
desenvolvidas pelo homem se deram num processo relacional, num jogo de combinações
sensoriais e expressivas. Surgem da relação de ações cotidianas e instintivas que com o passar
dos anos vão se configurando como mídias particulares. Moser (2006) defende uma longa
tradição de relação entre as artes, segundo autor:

Sirvo-me desta expressão para me referir ao conjunto das interações


possíveis entre as artes que a tradição ocidental percebe como distintas e
diferenciadas, em especial pintura, música, dança, escultura, literatura e
arquitetura. Essa interação pode se situar nos níveis da produção, do artefato
em si mesmo (a obra) ou ainda dos processos de recepção e conhecimento
(2006, p. 43).

Essa visão transversal das mídias artísticas se fundamenta pelo fato de que a produção
artística se desenvolveu anexada à própria evolução humana, na medida que o homem
adquiria habilidades para materializar e para apreciar suas criações. Pintura, teatro, dança e
literatura, por exemplo, parecem ter sido geradas pela mesma prática primitiva: nas narrações
das caçadas do homem pré-histórico. A atitude de narrar as histórias utilizando o desenho na
parede, os gestos, as expressões e sua parca linguagem verbal, fundamentaram os paramentos
das narrativas que foram apropriados no construto de cada uma dessas mídias em particular.

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822

Figura 1: Exemplo de arte rupestre representando cena do cotidiano

Fonte:
Disponível em https://www.todamateria.com.br/arte-rupestre/ acesso em 04/2021

Mídias artísticas e comunicativas tiveram suas origens em atividade cotidianas, as


interações são elementos essenciais nas suas edificações, pois advêm do ordinário do ser
humano. Com o passar dos séculos, certas mídias foram sacralizadas, principalmente a partir
do Renascimento, quando se consagrou o termo “Belas Artes”. Essa sacralização encerrou
certos produtos de mídias como pintura, escultura, o teatro e a ópera, a espaços privilegiados e
inacessíveis a boa parte da sociedade. O mesmo processo que separou e classificou as mídias
foi o que as contrapuseram em patamares superiores e inferiores, desconectando-as e
afastando-as do cotidiano
Nesse sentido, Higgins advoga pelo diálogo com o popular e a vida cotidiana que um
trabalho intermídia pode desenvolver. Pois, ao conceber todos os componentes de uma
produção como mídia, abre-se a possibilidade de se apropriar de elementos advindos de
qualquer área do conhecimento humano, do cotidiano e da cultura popular. Dick Higgins fez
parte do Fluxus, grupo de arte experimental e performática que abalou os alicerces do mundo
das artes nos 1960, ao questionar produções extremamente mercadológicas.
Partindo dos Ready Mades de Duchamp, que dialoga com o cotidiano e concluindo
com os happenings, que reúne recursos de outras mídias, Higgins pretende apresentar as obras

8
823

que parecem estar entre mídias como meio de superar as separações e as hierarquias
midiáticas. Marcel Duchamp é considerado o precursor da arte conceitual ao propor
apropriações de objetos cotidianos no construto de obras que operam entre o mistério e a
reflexão. Na obra Roda de bicicleta (1913), Duchamp propõe uma ruptura na lógica da
convenção social, da proporção e da harmonia, ao fixar uma roda de uma bicicleta virada
sobre um banquinho.

Figura 2 - Roda de bicicleta (1913) de Marcel Duchamp

Fonte: Disponível em https://medium.com/@cristianemarcal/duchamp-e-a-apropria


%C3%A7%C3%A3o-do-cotidiano-452c34b3441a Acesso em Março de 2021

A atitude de Duchamp inaugurou uma série de experimentações artísticas que usavam


o mesmo recurso: apropriação de objetos de origens diversas e suas combinações a fim de
gerar inquietações estéticas. O maestro John Cage, por exemplo, em 1952 propôs uma música
composta de quatro minutos e 33 segundos de silêncio, na qual, frente a uma plateia, nem ele,
nem os músicos que o acompanhava sequer encostaram nos instrumentos. 4’33 é uma peça
musical que não se constitui de notas executadas convencionalmente, todos os ruídos da sala,
da plateia, das cadeiras do teatro e até mesmo o total silêncio fazem parte da composição.
Em meados de 1958, Rauschenberg seguindo o conceito das colagens que fazia no
início da década, nas quais unia desde tinta, papel e madeira a um bode empalhado, resolve se
apropriar de pessoas. A essa experimentação, Rauschenberg deu o nome de happening, uma
terra inexplorada que fica entre a colagem, a música e o teatro” (HIGGINS, 2012, p. 45).
Reunindo recursos dessas três mídias e de algumas outras (como pintura, dança e arquitetura),
o happening se apropria do seu entorno, das relações com o espectador, com o espaço e com o

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824

tempo. Explorando a efemeridade e o ineditismo do momento, do acontecimento, do presente


e de toda sua capacidade relacional. Desta forma, percebemos como a contemporaneidade no
intuito de superar a sacralização das obras de artes, reconectou-a com os seus primórdios.
Portanto, por meio da análise de Higgins é possível perceber como a intermidialidade
pode fornecer um olhar mais arqueológico das mídias, pois disseca todos os recursos
midiáticos presentes em uma obra. Além disso, Rajewsky (2020) postula o termo, em
primeiro lugar, como fenômeno cultural de base, capaz de analisar o construto das mídias
artística desde a sua primitiva proposta até as hibridações que ocorrem na contemporaneidade
por meio das combinações midiáticas.

1.2. Juntos: Romance Gráfico como combinação de mídia

Se o primeiro eixo de debate da intermidialidade é a análise das transformação das


mídias ao longo do tempo, uma arqueologia do funcionamento midiático, o segundo propõe o
termo como uma “categoria para análise concreta de configuração midiática” (RAJEWSKY,
2012, p. 73), isto é, como uma ferramenta de estudo dos elementos compositivos de práticas
artísticas e culturais. Como já citado anteriormente, uma mídia só pode ser analisada na sua
materialidade, na sua projeção como obra, a partir dos recursos e linguagens que apropria para
construir sua narrativa.
A fim de entender tanto o primeiro eixo, quanto o segundo, Rajewsky estabelece três
categorias de intermidialidade: transposição midiática, combinação de mídias e referência
intermidiática, embasando-se em como as regências superam as fronteiras estabelecidas pela
natureza de cada mídia. O ponto de partida sempre é o que a autora chama de mídias
individuais, que são as linguagens tradicionais que já fazem parte de certa forma de um
construto histórico das mídias. Aquelas que conseguem, convencionalmente, serem
discernidas por regras e definições bem precisas, por exemplo: a pintura e a poesia.
Transposição de mídia compreende o processo natural da apropriação de elementos de
outras origens transportados para uma mídia em particular, onde reside a adaptação teatral e
audiovisual de obras literárias, por exemplo. Combinação de mídias é a união de regências de
duas linguagens artísticas ou mais na edificação de uma outra mídia, como o cinema, a
história em quadrinhos, a instalação, o happening. E referência intermidiática consiste na
inserção de recursos de uma mídia em outra, por exemplo, o uso de projeções audiovisuais em

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825

espetáculos de palco. O presente trabalho se centra na segunda categoria e a partir dessa,


analisaram-se as outras práticas intermidiáticas. Segundo Rajewsky:

Intermidialidade no sentido restrito de combinação de mídias (Media


Kombination), que inclui fenômenos como ópera, filme, teatro, manuscritos
iluminados, iluminuras, instalação computadorizada e Sound Art, história em
quadrinhos, ou, noutra terminologia, as chamadas multimídia, de mescla de
mídias e intermidiáticas. (RAJEWSKY. 2012, p. 55)

A ideia de multimidialidade se materializa quando uma obra une recursos de outras


mídias, como no caso, a História em quadrinho que compreende regências próprias da
literatura e das artes visuais. Importante salientar, que no contexto da intermidialidade,
compreende-se essa mescla não apenas como mera junção, mas como conexão midiática, ou
seja, recursos de mídias diferentes são ressignificados na justaposição proposto na obra.
Elementos dessas duas áreas artísticas se fundem na narrativa das páginas de um quadrinho e
se tornam signos que referenciam tanto conceitos próprios da narrativa em questão, quanto
representações mais amplas de outras mídias. Sobre isso, Eisner (1999) afirma que:

A configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição


de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas
habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por
exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por
exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da
revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual
(1999, p. 8).

A sequência dos requadros organizados no layout das páginas, a posição dos


personagens, o design dos balões e requadros com textos, narrações e diálogos oferecem
representações do tempo, espaço, som e sensação. Ou seja, a composição quadrinizada
consegue proporcionar ao leitor uma representação eficaz dos fenômenos e experiências
humanas. Sendo assim, Histórias em quadrinhos é uma combinação intermidiática de Artes e
Visuais e literatura e articula seus elementos a fim de oferecer uma leitura mais ampla ao
leitor.

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826

Figura 3 - Página de “Yellow Kid” de Richard Felton Outcault

Fonte: PATATI, BRAGA, 2006 p. 74.

As histórias em quadrinhos, oficialmente, surgiram em 1896, com a publicação das


tiras de humor de um jornal estadunidense do personagem conhecido como The Yellow Kid de
Richard Felton Outcault. Segundo Braga e Patati (2006), houve produções antecessores ao
garoto Amarelo de Outcault que podem ser consideradas histórias em quadrinhos, mas esse
personagem se destaca porque “aprendeu a falar”. O termo cunhado por Eisner em 1985, arte
sequencial, que passou a ser muito utilizada nas academias e na indústria, talvez postule de
forma ligeira, a ideia de que a essência das HQs seja a justaposição de requadros com
imagens. O que levaria a concluir que a mídia em questão existe desde as pinturas rupestres,
passando pelos murais egípcios e tapeçarias persas, até os quadros das vias sacras nas igrejas
medievais.
No entanto, o que diferenciou a criação de Outcault de seus antecessores foi a
capacidade do Yellow Kid de conectar palavra e imagem, um processo essencial da
intermidialidade no âmbito da combinação midiática. O cartunista concebeu a história e o
personagem na tradição das charges sequenciais que era costume nos jornais dos EUA

8
827

naquela época. Basicamente, as HQs eram ilustrações com os textos e diálogos inseridos
abaixo do requadro como uma legenda, o leitor “lia” a imagem e em sequência lia as palavras.
Em uma das publicações, Outcault fez a fala de o garoto amarelo aparecer no seu camisolão
como em um discurso direto. Apenas por essa alteração, Yellow Kid ofereceu ao leitor uma
conexão intermidiática de palavras e imagens e converteu o texto em um ícone inserido nos
quadrinhos.
McCloud diz que “esse fenômeno de observar as partes, mas perceber o todo, tem um
nome. Ele é chamado de conclusão” (2005, p. 63). É a capacidade humana de segregar e
unificar partes de objetos e espaço que é muito estudada pela Gestalt, área da psicologia que
estuda as formas e as ilusões de ótica. A humanidade utiliza a habilidade de conclusão para
contemplar o mundo, tanto para capturar rapidamente uma cena, quanto para completar o que
está fora do seu campo de visão. Segundo McCloud a narrativa dos quadrinhos construída
entre mídias visuais e literárias é possível sobretudo pela conclusão.
Após Yellow Kid, outras tiras de jornais passaram a usar o mesmo recurso e
acrescentaram o balão como contêiner de texto e conector de personagem e fala. Apesar do
termo arte sequencial, o que diferencia a história em quadrinhos de outras narrativas visuais,
sejam elas sequenciais ou não, é o poder de converter todos seus elementos em signos que são
capturados pela conclusão. Dessa forma, o leitor capta de forma unificada e segregada todos
os elementos da quadrinização: requadros, ilustração, balão, diálogos, onomatopeias, toda a
composição de uma página se converte em recurso narrativo.
No entanto, com o crescimento popular das histórias em quadrinhos no começo do
século XX, principalmente no segmento de super-heróis, seu impacto na indústria cultural lhe
rendeu um status pejorativo de mídia barata e subproduto da literatura. Catapultando assim, as
produções quadrinizadas a meras histórias infantis clichês, o que gerou um atraso no interesse
da crítica artística e da academia. Patati e Braga (2006) relatam que Eisner aparece na cena
dos quadrinhos, em 1940, disposto a mudar essa sina ao empreender a fusão dos quadrinhos
de heróis com característica de conto policial, de suspense, de terror e ficção científica.
Criativo e experimental, Eisner dedica-se em seu personagem Spirit, uma das
iniciativas mais ousadas dos quadrinhos. As inovações e experimentações de Eisner não se
resumiam apenas ao contexto da história em si e suas possibilidades de uma produção mais
elaborada, mas também um estudo e articulação de todos os elementos iconográficos das
histórias em quadrinhos.

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828

Figura 3: Página final da história “A vida e a morte de Gerhard Snobble” em Spirit.

Fonte: EISNER, 1985, p. 9.

Um episódio de Spirit, por exemplo, narra a sina de Gerhard Snobble, um contador


que desde criança tem o poder de voar. Mas ao ser hostilizado pelo pai por conta dessa
característica extraordinária, se resigna ao ordinário da vida. Quando é demitido após anos de
trabalho em uma empresa, sobe no alto do prédio a fim de provar seu dom e é surpreendido
com o confronto entre Spirit e alguns bandidos. Em pleno voo, Snobble é atingido por uma
bala perdida e morre sem ser notado nem por Spirit, nem pelos bandidos, nem pela multidão
na rua.
Já no primeiro requadro, o personagem é atingido por tiro disparado por um dos
malfeitores enquanto Spirit espanca o outro. Já no segundo requadro, no momento que o herói
esmurra o autor dos disparos, Snobble cai abandonando apenas seu chapéu. Até aqui, alguns
fatores comuns e corriqueiros aos quadrinhos são apresentados, como a onomatopeia dos tiros
e as linhas de movimento dos personagens.

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829

Como apresentado na figura 3, sequência exige que o leitor rompa com a constante
da leitura da esquerda para direita, o olho segue a linha gerada pela corrente de ar que
Snobble descreve ao cair, passando pelo corpo fantasmagórico flutuando no meio da página
e despenca no corpo sólido do personagem no chão. Ao cruzar por essas duas ilustrações,
faz-se a leitura do texto que também precipita semioticamente. “O leitor tem de fazer uso
implícito de um conhecimento de leis físicas (isto é, gravidade, gases) para ler a passagem”
(EISNER, 1999, p. 10), demonstrando que, para narrativa visual funcionar, o interlocutor
deve se conectar com os atributos apropriados e não apenas como os particulares da
linguagem dos quadrinhos.
Todo esse processo de leitura que se apresenta muito complexo quando se tenta
descrever, configura a já citada captura completa, que ocorre de maneira imediata, mesmo
sendo formada de componentes tão distintos. E quanto maior habilidade do leitor de
compressão da narrativa e dos recursos da linguagem visual e verbal, mais involuntário será
o mecanismo de decodificação. Essa miríade de informação que apenas uma página pode
oferecer demonstra a capacidade de essa mídia de criar processos intermidiáticos.
Além disso, o próprio peso narrativo desse capítulo já demonstra como Eisner
consegue atribuir uma complexidade literária a sua produção. A metáfora do voo de Snobble
denota o extraordinário e o fantástico que lhe é negado na sua vida pacata e medíocre de
contador. Dentro da própria mise-en-scene da HQ, o personagem narra sua história em
paralelo às cenas de ação e suspense da perseguição de Spirit aos bandidos, representando a
falta de aventura do seu cotidiano. A morte acidental de Gerahd Snobble é apresentada como
um efeito colateral das peripécias do herói e revela um olhar humano e trágico do autor. O
homem que sabia voar morre ignorado pelo herói e o que resta é apenas a imaginação, a fé e
o sonho.
Essa complexidade estética aplicada por Eisner recoloca os quadrinhos num patamar
de mídia artística e gera um olhar mais sério dos pesquisadores de arte e literatura. E em
1978, Will Eisner lança ao mundo o amadurecimento dessas experimentações, a obra
conhecida por “O Contrato com Deus”, cuja capa trazia a expressão Graphic Novel e tinha a
intenção de definir o subgênero como algo mais próximo de uma obra literária que uma
revista em quadrinhos convencional. Romance Gráfico, termo que mais tarde passou a ser
usado no Brasil, designa mídias que seguem a tradição dos trabalhos de Eisner, obras mais
experimentais e artísticas.

8
830

Entre as produções quadrinizadas, o romance gráfico consolida-se ainda mais


intermidiático, primeiramente, por configurar-se uma relação mais aproximada de literatura e
artes visuais e por apresentar elementos e recursos apropriados de outras mídias. Por essa
preocupação mais artística, não necessita responder às exigências mais industriais do mercado
de quadrinhos, criando possibilidades de explorar narrativas mais sofisticadas.
Nessas produções, os autores revisitam e desconstroem os conceitos do universo dos
quadrinhos. Por exemplo, a ideologia dos justiceiros encapuzados e o conceito do bem e do
mal são questionados por Alan Moore e Dave Gibbons em Watchmen, uma série de doze
edições de 1987. Moore e Gibbon (1987) apresentam super-heróis como indivíduos
verossímeis, que enfrentam problemas éticos e psicológicos, lutando contra neuroses e
defeitos em uma Nova York em plena Guerra Fria. Watchmen questiona como seria o mundo
se seres superpoderosos de uniformes coloridos realmente existissem ou se o cidadão comum
colocasse uma fantasia e saísse pelas ruas, espancando bandido. A pergunta mais perturbadora
reside no personagem Dr. Manhattan, que vitimado por um acidente nuclear, recebe poderes
de um deus na Terra, capaz de desintegrar pessoas com um simples gesto, ou tele transportar
uma multidão revoltada para suas respectivas residências em fração de segundo. A dúvida que
se planta na cabeça do leitor é se seria possível confiar em um humano que tivesse tamanho
poder, se os conceitos humanos como religião, liberdade e democracia seriam os mesmo com
a existência de tal criatura.
De modo superficial, poderia-se concluir que se trata apenas de uma produção
quadrinizada com assuntos mais sérios voltada para um público mais exigente. E que tomando
por referência apenas essa perspectiva, separar artisticamente e midiaticamente os romances
gráficos de outras histórias convencionais seria apenas um juízo de valor. E sendo um
subgênero de história em quadrinhos, no seu substrato já reside elementos próprios do texto,
assim como o teatro, a ópera e o cinema. Desse modo, apenas pelo fato de o romance gráfico
transpor recursos da narrativa literária para as suas páginas ilustradas, como qualquer outro
quadrinho, seria o suficiente para considerá-lo como intermidialidade.
Todavia, um romance gráfico não fundamenta sua construção narrativa apenas nos
recursos textuais, toda configuração de uma história em quadrinhos: layout, requadros, balões,
recordatório, onomatopeias, linhas de movimentos e índices de temperamento são explorados,
reelaborados e se tornam portadores de mensagens. As experimentações e os cruzamentos da
linguagem visual e verbal produzidos nas páginas de um romance gráfico conseguem articular
processos semióticos muito mais sofisticados que qualquer outra narrativa ilustrada.

8
831

Na obra Aqui de 2014, McGuire, propõe-se uma narrativa visual bem diferente, tanto
no processo da quadrinização, quanto na cronologia da própria história que é narrada. O autor
oferece ao leitor, em um layout de página inteira dupla, representação da perspectiva oblíqua
de duas paredes de uma sala e viaja na dimensionalidade paralela do tempo, no intuito de
narrar os acontecimentos daquele espaço em questão.
A história não se limita ao intervalo de tempo em que a casa existe, também apresenta
cenas ocorridas nesse lugar há milhares de anos no passado e no futuro. Todavia, a sequência
das páginas não segue uma cronologia linear, encarregando o leitor de criar sua ordem de
leitura, neste anacronismo, McGuire explora a metáfora do advérbio “aqui” nas relações de
tempo e lugar.
McGuire chegou a produzir uma primeira versão da sua obra policrônica em 1989
como um exercício de desconstrução da lógica narrativa dos quadrinhos. Nessa inicial
tentativa, publicada na vanguardista revista em quadrinhos Raw nos EUA, o artista foi um
pouco mais conservador na construção da sua narrativa, respeitando certos padrões estéticos
dos quadrinhos. Essa pequena mostra de Aqui foi publicada no Brasil na edição nº 14 da
revista Piratas do Tietê da cartunista Laerte na extinta editora Circo em 1992.

Figura 4: Primeira versão de Aquí (1989)

8
832

Fonte: PIRATAS do Tietê. São Paulo. nº 14, p. 10, abril, 1992

Na nova versão, McGuire foi mais inovador e ousado, pois a narrativa abarca todos os
elementos do romance gráfico, desde seu projeto gráfico até a formatação de suas páginas. No
intuito de oferecer essas dimensionalidades paralelas, joga com a capacidade de
simultaneidade das informações que uma página de quadrinhos pode oferecer. Como já citado
anteriormente, uma das vantagens dos quadrinhos em relação a outras narrativas visuais é a
possibilidade de estabelecer uma captura unificada de recursos visuais diversos: requadros,
imagens, balões, textos, recordatórios e onomatopeias são lidos simultaneamente. A
sobreposição de requadros que narram pequenos fragmentos de cenas de anos diferentes
oferece ao leitor uma experiência de multidimensionalidade.

Figura 5 - Página de “Aqui” de Richard McGuire

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833

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

No jogo semiótico e metalinguístico que McGuire exprime em sua obra, pode-se


perceber a capacidade de articulação de elementos apropriados de mídias diferentes e sua
reelaboração na materialidade do romance gráfico. Recursos próprios dos quadrinhos,
imagens e palavras são explorados na musicalidade visual na composição da página, o leitor

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834

captura visualmente o todo e depois codifica cada parte separadamente, colhendo


significações e sensações múltiplas.
Rajewsky diferencia combinações intermidiáticas que ocorrem nos romances gráficos
daquelas de uma produção multimídia comum, pois nas primeiras, os recursos das mídias se
mesclam e não são apenas apresentados lado-a-lado como nas segundas. Em algumas mídias
mistas, os elementos de cada forma artística figuram exatamente como no seu construto de
origem, o espectador consegue distinguir tranquilamente o que é cada uma delas e como
funcionam. É uma peça de teatro em que o diretor utiliza montagens audiovisuais projetadas
como pano de fundo, na qual, os recursos do vídeo não são incorporados como parte da
narrativa, mas apenas elementos cenográficos, é possível distinguir facilmente o que é teatral
e o que é audiovisual.
Rajewsky apresenta a ópera como exemplo dessas obras multimídias em que mídias
diferentes coexistem na materialidade da obra apenas como uma justaposição. Na ópera, há a
literatura, o teatro, a música e a dança coexistindo na mesma peça, em nenhum momento eles
se fundem completamente. Em contradição, pode-se afirmar que música, teatro e poesia se
fundem na prática do canto, no entanto, essas duas já estavam essencialmente unidas desde o
aparecimento das primeiras músicas com letras, muito antes da ópera. Além disso, a expressão
teatral não natural que os cantores de ópera lançam mão na execução do seu canto, acaba
sendo apreciada mais como performance musical.
Materialidades multimídias que não reelaboram os recursos, recorrendo apenas a
simples citação midiática, residem na superfície da pesquisa da intermidialidade. Do
contrário, como se pode perceber em Aqui, romances gráficos conseguem fazer emergir algo
de “novo” na junção de mídias diferentes, ocorre uma transformação das mídias originais e o
leitor já não consegue distingui-las. Textos, onomatopeias e outros recursos literários são
agrupados à linha, ao plano, à cor e ao volume que são recursos visuais, mas no mise-en-
scène da página, tudo transmuta em recursos de quadrinhos.
A essa transformação denominada remediação, que seria, segundo Rajewsky, essa
elaboração de algo novo no cruzamento de fronteiras midiáticas. Basicamente, pela análise no
âmbito da remediação intermidiática, busca-se compreender como a caraterística estética de
uma determinada mídia individual opera no construto de uma mídia diferente. Por exemplo,
uma onomatopeia em um conto literário tem o objetivo de representar um som por meio de
um fonema, é uma figura de linguagem muito recorrente. Quando transposta para as páginas
de um quadrinho, esse fonema se transforma em uma representação gráfica, no qual o

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835

ilustrador busca exprimir outros atributos do fenômeno sonoro como a intensidade e o timbre.
No conto, o autor precisa do fonema e a descrição detalhada desses aspectos para uma
compreensão maior da natureza do som; nos quadrinhos, tudo se torna semiótico e o leitor
consegue decodificar todas essas informações instantaneamente.

A depender de como se estabelece as relações intermidiáticas, esse tipo de


interação ora põe à vista, uma síntese ou fusão de modos diferentes de
articulação midiática, ora apresenta-nos um “entre-lugar” oscilante, algo
situa entre duas ou mais formas midiáticas (RAJEWSKY. 2012, p. 65)

Esse entre-lugar constitui, de certa forma, a essência do pensamento intermidiático,


por se estabelecer como a verdadeira prática de reconfiguração das referências midiáticas que
supera a mera justaposição. Cada recurso midiático atua de forma específica dentro da
materialidade de cada obra e quando ocorrem os cruzamentos de fronteiras, certos elementos
só podem ser emulados ou reconfigurados por estarem atrelados aos fundamentos da sua
mídia de origem. Dessa forma, Rajewsky argumenta que alguns produtos de mídias remediam
os recursos de mídias particulares e um processo de “como se”, ou seja, o recriam dentro dos
atributos da obra em si.
Nas páginas de um romance gráfico, requadros com imagens referenciam práticas de
outras artes pictóricas como a pintura, a fotografia e o cinema. O objetivo básico do requadro
é apresentar o ângulo e o enquadramento da cena, assim como ocorre nessas outras formas de
artes, mas na configuração do layout da página de uma história em quadrinhos também gera
outros processos narrativos.

O formato (ou ausência) do requadro pode se tornar parte da história


em si. Ele pode expressar algo sobre a dimensão do som e do clima
emocional em que ocorre a ação, assim como contribuir para a atmosfera da
página como um todo. O propósito do quadro não é tanto estabelecer um
palco, mas antes aumentar o envolvimento do leitor com a narrativa
(EISNER, 1999, p. 46).

O enquadramento pictórico é remediado dentro do contexto dos quadrinhos porque se


une a outros elementos, ampliando a função apenas óptica da composição. O quadro
convencional, estabelecido em outras mídias imagéticas, cria um estado de contenção da cena,
o envolvimento do espectador limita-se a essa compressão visual. Nos quadrinhos, pelo fato
de poder ser vazado pela imagem ou por não apresentar linhas de limitação, irrompe na
direção do leitor, aumentando seu grau de envolvimento. Além de que, por serem requadros

8
836

sequenciais produzem um ritmo e seu formato e tamanho podem gerar dimensões temporais e
atmosfera.
Na obra de McGuire, o requadro exerce diversas funções que vão muito além de
contenção pictórica e ângulo de apreciação, no contexto da história serve como “janelas
dimensionais” que se sobrepõe e ou são justapostas a fim de gerar uma visão simultânea de
tempos diferentes. Além disso, a conversão da página inteira em requadro que não possui
linhas de limitação parece tentar abraçar o leitor, envolvê-lo e inseri-lo no espaço
representado.

Figura 6- Página de “Aqui” de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

Para Rajewsky (2012), o processo de remediação no contexto da intermidialidade é


sempre uma remodelação midiática, nesse caráter “como se” reside a capacidade de
ressignificar as práticas das formas artísticas ao serem transportadas entre mídias. É fato que
nenhum recurso opera da mesma forma quando inserido em outro contexto, pois as conexões
semióticas e o funcionamento prático são particulares em cada mídia. Um autor literário, pode
lançar mãos de configurações cinematográficas como o zoom da câmera para criar atmosfera
para sua narrativa, mas não poderá ir muito além do contexto do verbal para exprimir essa
representação visual. Mesmo assim, é necessário enfatizar que o resultado dessa descrição do

8
837

movimento de câmera é algo diferente do que ocorre no cinema, é algo novo, algo que reside
entre as mídias literárias e cinematográficas.
Sendo assim, o jogo semiótico dos romances gráficos que emerge da junção de
elementos visuais com recursos literários, parece ser um exercício preciso de remediação
midiática, por reforçar esse aspecto de entre mídias na sua materialidade. Tanto imagem,
quanto palavras são reelaborados no cerne da narrativa gráfica.

1.3 Além: um cruzamento de fronteiras entre Artes Visuais e Literatura

Partindo do princípio de que romances gráficos são, como toda história em


quadrinhos, uma mídia que mescla artes visuais e literatura, ou seja, alia imagem e palavra,
faz-se necessário um breve paralelo entre esses dois conceitos, a fim de traçar um limite da
atuação de cada um e o que reside na intermídia. À primeira vista, parece ser um trabalho
facilitado, pois suas fronteiras aparentam estarem bem discerníveis para o conhecimento
humano, mas o pictórico e o verbal, muitas vezes, atuam de maneira muito semelhante.

A história em quadrinhos lida com dois importantes dispositivos de


comunicação, palavras e imagens. Decerto, trata-se de uma separação
arbitrária. Mas parece válida, já que no moderno mundo da comunicação
esses dispositivos são tratados separadamente. Na verdade, eles derivam de
uma mesma origem, e no emprego habilidoso de palavras e imagens
encontra-se o potencial expressivo do veículo (EISNER, 1984, p. 13).

As mídias individuais, expressão citada por Rajewsky, tanto visuais quanto verbais, se
tornam distintas quando se separa a capacidade humana de ver e de ler. Quando se conclui,
superficialmente, que a palavra é próprio da leitura e imagem é próprio da apreciação visual, o
debate se encerra na aparência das coisas. Do contrário, pode-se pensar tanto na leitura de
imagem, quanto na palavra com poder imagético.
Assim como a história em quadrinhos não foi a primeira mídia a usar narrativa
sequencial, também não foi a primeira a criar uma junção da imagem e palavra, outras mídias
anteriores tentaram o mesmo feito. A diferença notória é o potencial de unificação do visual e
verbal que os mecanismos dos quadrinhos são capazes de produzir. E isso ocorre, porque as
distinções dos processos de compreensão de cada dispositivo são superadas e a percepção os
abarca de forma horizontal.

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838

Figura 7– Página de “Aqui” de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p..

Na página acima, McGuire (2014) explora a habilidade do leitor de conectar


ilustração, requadros, texto e balão no mesmo esforço perceptivo, cada dispositivo aqui age
igualmente como meio de informação. A transparência dos requadros, os papéis voando, as
taças se partindo, transmitem a atmosfera etérea e fantasmagórica da ilusão do tempo. Os
xingamentos nos balões, aliados a recordatórios com os anos demonstram que esse espaço foi
alvo de muitas brigas, discussões e objetos se partindo. Toda essa narrativa disposta nesse
layout de página inteira é capturada de forma igual pelo leitor pelo uso da conclusão
Para esse debate sobre a percepção, Morley afirma que:

O tipo de jogo com percepção e concepção – Imagem e texto –pode, de fato,


ser localizado dentro de um esquema tipológico amplo que traça o verbal e o
visual através de tipos de relações cada vez mais complexas e íntimas. Como
o filósofo americano Charles Spencer Peirce sugeriu no final do século XIX,
palavras e imagens são signos e podem ser reduzidas a três tipos básicos: o
“icônico”, o “símbolo” e o “indicial” (2020, p.170).

Ao evocar Peirce, Morley converte imagem e palavra em signo e traça um paralelo


muito pertinente: uma mídia pode ser considerada um signo na medida que se coloca como

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839

instrumento de conexão entre remetente e receptor. O signo é uma representação que busca
representar um objeto, um fenômeno. Santaella diz que “o signo não é o objeto''. Ele apenas
está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e
numa certa capacidade” (1983, p. 12). Nesse caso, a imagem e a palavra recorrem a
referências fenomenológicas reconhecíveis pela pessoa que lê, tudo que é projetado na
narrativa busca se adequar às constantes já preestabelecidas pela experiência com o mundo e
seus fenômenos.
A pergunta fenomenológica, articula um debate sobre a relação entre conhecimento
humano e os estímulos, o trabalho mais penoso da ciência é tratar daquilo que é indizível. A
experiência com os fenômenos é um processo tão imediato que muitas correntes científicas se
debateram no decorrer da história para tentar quantificá-la. Com a Semiótica, essa deliberação
afunilou na percepção dos signos e assim ofereceu um campo de pesquisa mais restrito de
investigação, sendo possíveis algumas definições, principalmente do que toca a representação
pictórica e verbal
A classificação do signo se configura pela característica dessa substituição, ou seja,
como a imagem e/ou a palavra conecta o receptor ao objeto que se quer representar. Ícone é o
signo que se parece imageticamente com a coisa representada, por isso, é fácil supor que
imagens são icônicas. Já a palavra, parece estar mais próxima do símbolo, porque se relaciona
com objeto por uma convenção estabelecida por um grupo de pessoas, por exemplo, o verbete
cavalo alude ao animal, para lusófonos. Por fim, o índice se relaciona por caráter causal ou
existencial, sendo assim, está mais para sinais e fenômenos físicos como o som.
Dito isso, volta-se ao exemplo da onomatopeia que, a princípio, é uma figura de
linguagem que indica um som, por isso seria um índice. O autor ao utilizar esse recurso quer
indicar um acontecimento: o barulho de um vidro se quebrando indica que um copo caiu ao
chão ou uma janela foi estilhaçada. Muitas onomatopeias, por seu uso recorrente e sua relação
sociocultural, tornaram-se simbólicas: o som de batidas na porta no Brasil é representado por
“toc-toc”, enquanto nos EUA se usa “knock-knock”. E, nos quadrinhos, a onomatopeia vira
um desenho de letras que busca exprimir, além da modulação, a intensidade e o timbre. Ou
seja, é um signo iconográfico, simbólico e indicial ao mesmo tempo, o que ocorre com quase
todos os fenômenos representados nas histórias em quadrinhos.
Na figura abaixo, McCloud apresenta como o tempo pode ser representado e ao
mesmo tempo desconstruído na narrativa de uma história em quadrinhos. Nessa sequência de
imagens, as ações representadas ocorrem ou ao mesmo tempo ou em intervalos de fração de

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840

segundos. A leitura visual da esquerda para direita faz ler cada situação em momentos
distintos, mas como tudo está dentro de um mesmo requadro, ocorre uma unificação pela
conclusão. Por figurarem no mesmo espaço, a cena ocorre simultaneamente e
sequencialmente ao mesmo tempo. O que não ocorreria se cada ação fosse separada em
requadros diferentes, os espaços entre os requadros, que o Eisner chama de calha e McCloud
de sarjeta, funcionam como pausa de leitura semelhante a vírgula.

Figura 8: Requadro ilustrado por McCloud

Fonte: MCCLOUD, 2005, p. 95.

Essa compreensão do requadro é tão imediata e mecânica que ao tentar articular uma
explicação verbal, soa de maneira incompleta e ineficaz. Moser (2006) evoca Lessing (1766)
para traçar uma arqueologia das artes visuais e literatura ao tratar das relações da pintura e da
poesia. Na perspectiva do autor, pintura é a arte do espaço, enquanto a poesia é a arte do
tempo. Em uma pintura os elementos representados se organizam em um plano bidimensional
que são captados em conjunto pelo observador simultaneamente, por isso, sua realização
abrange o coexistente e a justaposição. A poesia, por sua vez, ao descrever em suas frases e
expressões em uma sequência de cenas e sensações, consegue gerar um sentimento de
passagem de tempo. Por ser a combinação dessas duas mídias individuais, a história em
quadrinhos pode ser considerada a arte do tempo e do espaço.
Lessing principia sua análise do ponto de vista da midialidade das duas linguagens e
não na sua estética em si, em outras palavras, não avalia os processos técnicos, mas sim os
efeitos da representação, o que é representado e como é representado. Trata-as como a via das

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841

mensagens que se quer exprimir e sendo assim, leva-se em conta, como é representado, quais
signos evoca e como é percebido pelo espectador. Essa distinção das duas linguagens focadas
na sua materialização e na sua captura, nos permite perceber o cerne da sua pesquisa de Moser
quando as toma como veículo da conexão do artista e do poeta com seu público.
Cada um dos artífices, à sua maneira, almeja ativar a percepção do receptor,
produzindo em anexo outros fenômenos que são compreendidos segundo a regência de cada
mídia. O pintor, por saber que o espectador poderá ver apenas um instante e um ângulo do
fato que está narrando, precisa escolher o que Lessing denomina um momento “fértil” ou
“conciso e denso”. Ao recorrer a essa cena suspensa, mas impactante, abona o público com
uma visão que lhe instiga imaginar o antes e depois da cena, completando as informações da
obra com sua experiência e conhecimento.

Entretanto, ao impor ordem entre as artes, ele criou problemas adicionais.


Pois quem legisla dessa maneira binária, quem brinca com a inclusão e a
exclusão, cria, necessariamente, zonas cinzentas, objetos recalcitrantes,
restos e dejetos que se recusam a entrar dentro dessa ordem. E Lessing é um
observador e pensador flexível demais para não admitir isso. Já que legislou,
ele deve, portanto, se ocupar das transgressões à sua lei. E ele fará isso de
maneira bastante ordenada, como se quisesse trazer as transgressões para
dentro da própria lei (MOSER, 2006, p. 46).

É a partir desse ponto que Moser, alerta das proximidades entre as duas mídias verbais
e picturais, o pintor escolhe um momento estático no tempo que desperta o olhar do
observador de forma mais sensível e imaginativa que poderíamos até dizer que se trata de
momento poético. Lessing dá o exemplo da obra do pintor Rafael Sanzio que ao utilizar linhas
sinuosas no drapejamento dos tecidos das vestes dos personagens tenta simular o movimento
da cena. Ao fazer isso o artista renascentista desloca a imaginação do público para uma ação
no tempo, possibilitando coexistir dois momentos ou mais em um só. No Barroco, a escolha
da cena mais impactante com intuito de chocar o espectador irá produzir imagens mais
dramáticas e mais dinâmicas, superando de certas formas as representações mais estáticas dos
períodos anteriores como o Renascimento. Jacopo Tintoretto ao pintar a última ceia, ao
contrário de Da Vinci, escolhe um enquadramento mais oblíquo e inclinado, imprimindo mais
dinamismo à cena, e ao representar diversos acontecimentos da mesma noite ocorrendo
simultaneamente, cria narrativas paralelas no mesmo espaço e obriga o espectador a
sequenciá-las para compreender o todo da obra.

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842

Figura 9: A última ceia de Jacopo Tintoretto

Fonte: Disponível em http://www.casthalia.com.br/a_mansao/obras/tintoretto_ceia.htm


Acesso em 04/2021

Do lado da poesia, Homero se aventura na realização do pintor ao falar do escudo de


Aquiles em Ilíada, e sendo o relato de um objeto, corresponde exatamente a função da pintura
que seria descrever um corpo formado por distintas partes que são justapostas em um espaço e
é oferecido ao espectador para que o capture em sua totalidade com apenas um olhar. No
entanto, o poeta grego traduz essa prática para as regências próprias da poesia, pois descreve
em canto a proeza da fabricação do objeto bélico pelo deus Vulcano.
Lessing admite que esses exemplos não são exceções à regra, mas que são fenômenos
bem corriqueiros nas práticas das duas mídias. O autor nem imaginava, ao escrever esse
tratado, que anos depois surgiriam movimentos da pintura, como Cubismo e o Futurismo, que
buscavam representar o movimento e a passagem do tempo na superação das formas do
objeto, desconstruindo o espaço e a perspectiva. Além da Poesia concreta, que conceberia
versos, palavras e estrofes como objetos visuais, projetados em um espaço.
A remediação quadrinizada de imagens e palavras parece realocar as relações de
tempo e espaço que foram definidas pelas ideias de Lessing, o fato de cenas, requadros, falas,
balões coexistirem na configuração do layout de uma página, fez a percepção verbal e visual
ser ressignificada. A simultaneidade do espaço próprio de artes visuais como a pintura e a

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sequencialidade do tempo representado na métrica e na ordenação de palavras comum na


literatura passa a ser desconstruídas na reelaboração de um romance gráfico.

Figura 10: Página de “Aqui” de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

Nas páginas representadas na figura acima, demonstra a capacidade de articulação do


tempo e espaço de um romance gráfico. Na sala de Aqui, há uma festa que ocorre em 1971, na
qual se vê algumas pessoas conversando. Sobreposto a essa cena, dois quadros retratam
eventos de 1954 e 1955, que inclusive não estão em uma sequência cronológica. Os requadros
escondem a identidade das primeiras pessoas que falam e a configuração do balão cria a
ilusão que o diálogo parte do passado. O leitor segue a ordem da leitura dos balões, mas
ocorre uma interrupção da interpretação lógica do diálogo por conta dessas sobreposições.
Toda essa captura ocorre em paralelo e simultaneamente ao mesmo tempo.
A diálogo travado pelos dois personagens ocultos gera uma reflexão sobre tempo,
espaço, percepção e memória: um dos personagens diz que houve um momento que todos
estava junto na mesma sala, o que pode ser interpretado como algo da memória do
personagem ou uma metáfora do próprio quadrinho sobre a sobreposição de épocas diferente.
A resposta do outro personagem afirmando que esse encontro foi por um momento, mas
ninguém notou, parece fazer referência ao potencial da obra em questão de criar ilusões de
superação dos mecanismos do tempo e do espaço.

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844

2. EM TEMPO: ROMANCE GRÁFICO COMO NARRATIVAS ENVIESADAS.

O conceito de Canton (2009) é um olhar acerca de obras contemporâneas que não


encerra a construção de suas narrativas apenas na gramática convencional das mídias. Sua
elaboração abarca todos os elementos compositivos da obra, estabelecendo uma narrativa
intermidiática e não linear que reconfigura noções de leitura e materialidade. Nesta seção,
apresenta-se essa perspectiva como modo de analisar a narrativa do Romance Gráfico Aqui.

2.1 Através: o conceito de Narrativa enviesada

Esse experimentalismo do Romance Gráfico que é comum à arte e a literatura


contemporânea se apresenta como ponto de partida deste livro\objeto\experimento que é a
obra Aqui. A natureza conceitual de romance gráfico se consolida na comparação às obras
contemporâneas que abandonam a simples representação do real figurativo e que utilizam na
comunicação de suas histórias todos seus elementos, recursos, suportes, materiais e
metalinguagens. A proposta de Canton (2009) de nominar essa característica peculiar de
narrativas enviesadas consegue suscitar alguns debates tanto sobre a intermidialidade, quanto
para o romance gráfico.

As narrativas enviesadas contemporâneas também contam histórias, mas de


modo não linear. No lugar do começo-meio-fim tradicional, elas se
compõem a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições,
deslocamentos. Elas narram, porém não necessariamente resolvem as
próprias tramas (CANTON, 2009, p. 15).

Contar histórias sempre foi processo quase instintivo da humanidade, desde os


primeiros desenhos rupestres, à expressão corporal e vocal dos povos primitivos até os
registros iniciais com advento da escrita. Toda a tradição literária e artística muniu o
imaginário coletivo de possibilidades narrativas que foram formatadas, desconstruídas e re-
elaboradas ao longo da história. A ideia de Canton reflete o pensamento contemporâneo
resultante de uma sociedade de fragmentações e sobreposições de representação.

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845

Ao afirmar que “as palavras, a memória, a herança e a tradição são elementos que
passam a ser revalorizados num mundo inundado por imagens fosforescentes [...] ( 2009, p.
37) dialoga com Benjamin, que em seus ensaios “O Narrador” (1936) e “Experiência e
pobreza” (1933), afirma que a história contemporânea esgotou esse sentimento da
experiência. Afligida por conflitos, crises e epidemias, as comunidades humanas se
esvaziaram de narrativas, restando fragmentos de uma tradição perdida e arruinada.
Narrativa, para Benjamin, é o lugar da experiência, é o compartilhar de memórias,
vivências, sensações e sentimentos de um agente, o narrador. Não é o simples relato com
intuito de informar um ouvinte de um fato, é a comunicação do que é próprio da existência
humana e que, muitas vezes, tem como finalidade o próprio ato de narrar. A narrativa não
oferece apenas uma explicação ou informação, abre um campo polissêmico, o espectador é
convidado a alcançar um de seus pontos de significação.

A informação só tem valor no momento que é nova. Ela só vive nesse


momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem
que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo, ainda é capaz de se
desenvolver (BENJAMIN, 1987, p. 204).

É próprio da narrativa o abandono da linearidade e do objetivismo, pois é o reflexo do


fluxo de pensamento humano, que não é organizado e hierárquico, é imerso no emaranhado
das infinitas tramas da consciência. Para o autor, é a experiência que passa de pessoa a pessoa
e vai adquirindo camadas de representações cada vez que é recontada.
Todavia, Benjamin lamenta a narrativa estar em vias de extinção, pois o homem
contemporâneo é fruto de uma cultura que se funda na barbárie e, por não vivenciar uma
experiência mais profunda, é incapaz de passar adiante histórias mais poéticas. “No final da
guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais
ricos, e sim mais pobres em experiências comunicativas” (BENJAMIN, 1987, p.198). A visão
de um mundo arruinado e sem perspectiva bloqueou a capacidade da sociedade de abstrair,
afixando, assim, o imaginário coletivo nas superfícies dos acontecimentos e das
representações.
Canton, por sua vez, relata que também foi um período pós-guerra o ponto de partida
da busca por uma narrativa que não se baseava nas experiências ordinárias da vida,
consideradas, naquele momento, trágicas e que levaram o mundo a derrocada, mas sim nas
relações primordiais da compreensão. Logo após a segunda guerra mundial, artistas de Nova

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846

York passam a propor pinturas que abandonam o legado figurativo da arte clássica e seguem
tendências abstratas já inauguradas na década de 1920 por movimentos artísticos como o
Neoplasticismo holandês e o Suprematismo russo. O que os autores passaram a chamar de a
busca pelo “novo absoluto”.
A proposição se fundamentava em uma narrativa dos elementos compositivos da obra
como a própria pincelada, consolidando a natureza pictórica desvinculada de qualquer outra
significação posterior que não fosse a própria composição. Culminando no “desenraizamento
dos artifícios da narrativa do cotidiano para alocar o observador em mundo sintético, puro e
transcendente: o mundo da arte abstrata” (CANTON, 2009, p. 22). O mundo, no qual ponto,
linha, plano, cor, volume e luz se bastam para criar possibilidades expressivas.
As abstrações puras contribuíram para um estudo da expressividade de uma pintura
alicerçada em seus elementos visuais básicos, ou seja, demonstrou que a narrativa principia já
na base do conteúdo expressivo. Essa pesquisa visual já havia sido iniciada com os
movimentos vanguardistas como Cubismo, Futurismo e o Fauvismo, que abdicaram da
representação figurativa da natureza, explorando ângulos, dinamismos e sensações,
adentrando no campo da sugestão. É certo dizer que os artistas visuais buscavam não a
representação de uma cena, mas oferecer uma experiência ao espectador, o que dialoga com a
ideia de narrativa de Benjamin.
Também nessa perspectiva, segundo Ostrower (1987), o conteúdo expressivo de uma
obra depende objetivamente dos processos gerados pelo movimento visual que um artífice
propõe em um plano. E que isso não é uma novidade vanguardista do século XX, mas algo
natural em composições desde o Renascimento.

A calma aceitação de Leonardo da Vinci ou o movimento frenético de


Kandinsky podem ainda significar mil coisas para cada um de nós. Na
interpretação pessoal, nosso subjetivo junta-se ao objetivo, pois cada um de
nós entra com sua própria experiência de vida, seus valores e suas
aspirações. E como cada pessoa constitui um ser único, com sua experiência
de vida também única, as interpretações que dará serão sempre diferentes
das de as de outra pessoa (OSTROWER, 1987, p. 42).

A disposição no plano de linhas, formas e cores, por si só, constituem uma narrativa
que opera no nível primordial da compreensão humana. O que é objetiva e concreta para todas
as pessoas, no entanto, não é possível verbalizá-la por ser tão arraigada a um certo
pensamento primitivo, termo usado aqui para se referir ao que está no inconsciente e não se

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847

materializa em palavras. Por isso, cada pessoa experimenta essa narrativa primordial e a
personaliza a partir da sua visão de mundo e segundo a sua própria experiência.
Além disso, há composições abstratas que acabam não atuando num campo
absolutamente visual por estar impregnado de representações semióticas de um determinado
grupo cultural. Em 1955, Jasper Johns se apropriou das listras, cores e símbolos da bandeira
estadunidense para propor um debate de como imagens abstratas podem gerar significações
que são posteriores ao formal, mas que são percebidas a priori, quase como uma figuração.
Em Flag (1955), o espectador não consegue se desvencilhar das relações simbólicas que
aquela composição abstrata lhe oferece; toda história, todo o ufanismo, toda a construção
geopolítica conectada aos EUA são percebidos primeiro.
O artista apresentou a obra sem nenhum comentário posterior e sem nenhuma
alteração da composição oficial, ou seja, não acrescentou nada ao que já era conhecido sobre a
bandeira estadunidense. Johns apenas almejava que o espectador tivesse uma experiência
óptica com os elementos formais organizados naquele plano, todavia o que se percebeu foi “o
poder das imagens midiáticas de gerar narrativas próprias” (CANTON, 2009, p. 25).
Aparentemente, a insistência figurativa da consciência coletiva é capaz de criar significações
que são bem difíceis de serem superadas.

Figura 11: Flag (1955) de Jasper Johns

Fonte: Disponível em https://www.moma.org/collection/works/78805

Flag abre caminho para as apropriações de mídia populares nos 1950 e 1960, base da
pesquisa estética da pop Art, na qual, artistas valem-se de objetos cotidianos e imagens da
televisão, cinema e história em quadrinhos para composição de suas obras. Seguindo a

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848

tradição dos ready-made de Duchamp, a arte visual da segunda metade do século XX


encorpou o ordinário como elemento preponderante na construção de uma estética que supera
a separação da arte e o mundo real.
Nesse mesmo processo, de explorar as narrativas formais e sígnicas de artefatos
cotidianos e mídias populares, que se deu o desenvolvimento da arte conceitual na década de
1960 e 1970. No entanto, diferentemente daquelas que pretendiam transitar no campo da
abstração, essas produções almejavam extrair de elementos corriqueiros, as representações
simbólicas impressas pelas construções socioculturais no qual está submerso. Nessa
empreitada, o experimentalismo na combinação de mídias artísticas e artifícios de diversos
campos do conhecimento e da vida passou a ser o caminho mais percorrido pelas propostas
artísticas.

Em vez de uma arte per se, potente em si mesmo, capaz de transcender os


limites da realidade, a arte contemporânea penetra as questões cotidianas
espelhando e refletindo exatamente aquilo que diz respeito à vida
(CANTON, 2009, p. 35).

E dentro desse contexto, nas transformações e desconstruções da arte contemporânea,


é possível pensar o conceito das narrativas enviesadas, por meio da materialidade destas obras
abertas e experimentais que articulam todos seus elementos compositivos como ferramenta
para contar histórias. Todas as camadas formais e conceituais de uma composição da obra são
mídias potentes que possibilitam essa experiência não linear, fragmentada e indireta com
significações diversas concernente ao humano.
Por esse caráter intermidiático e experimental, aqui parece se configurar como um
exemplo ideal de narrativas enviesadas, desde a premissa do argumento até seu processo de
quadrinização que explora a metalinguagem. McGuire tem como fundamento de seus
quadrinhos, as experiências vividas em um espaço do mundo ao longo do tempo, fragmentos
de histórias cotidianas e singulares, mas ricas em significados.
O autor percorre um gigantesco intervalo compreendido entre 3 bilhões a.C. até 2126
d.C., partindo desde muito antes da construção da casa, até um futuro em que a construção é
apenas uma lembrança e uma projeção holográfica. Durante todo esse período, vê-se a
natureza intacta,o aparecimento de povos originários, a chegada dos colonizadores europeus,
o período colonial nos EUA, a construção da casa em 1907 e as diversas pessoas que ali
moravam. No entanto, McGuire deixa claro que o foco não são as histórias dos personagens
que passaram por esse pequeno espaço enquadrado no tempo, mas como suas vidas e ações

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849

afetaram o lugar. Cronologicamente, a narrativa se inicia muito antes da existência humana e


segue apresentando momentos importantes e corriqueiros, todavia, a ordenação das páginas
no livro não segue uma sequência lógica e organizada, isso ocorre também com os requadros
e os recordatórios.

Figura 12: Página de Aqui de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

Essa natureza fortuita de Aqui é uma das características mais marcantes e o que mais
lhe confere o status de narrativa enviesada, pois oferece ao leitor diversos percursos de leitura.
Podendo, assim, selecionar e aprofundar-se em algumas histórias específicas seguindo os
indicativos cronológicos que são sugeridos pelos recursos quadrinizados. Por exemplo, a
história do idoso que cai e quebra o quadril, não podendo subir as escadas que dão para o seu
quarto e por isso precisa repousar no sofá-cama da sala em 2005, ou o encontro de nativos
norte-americanos e colonizadores holandeses em 1624 (cf. figura 12). Outra possibilidade é
deixar-se levar pela ordem das páginas oferecidas na diagramação do livro, o que produziria
uma experiência imersa no aleatório. Na verdade, mesmo que o leitor faça a primeira escolha
acima, outras narrativas enviesarão à sua apreciação, por meio da sobreposição de quadros e
imagens que o autor propõe a cada layout da página.
O tempo aparece fragmentado e reinventado no projeto de McGuire, repetindo a ação
de artistas desde meados do século XIX que questionavam as relações simétricas e o

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850

ordenamento racional do tempo e espaço. A narrativa viaja milhares de anos nesse espaço
específico indo e vindo no tempo, escavando a memória da casa e daquele espaço,
experimentando uma multidimensionalidade.
Como nas narrativas enviesadas, cada um desses elementos opera semioticamente nos
requadros e páginas e se ordena para produzir a significação das cenas, como um instante
único vivido na casa. Porém ao serem expostos simultaneamente na narrativa, gerando
comparações e contraste, essas representações se tornam uma simbologia mais ampla dos
costumes, tradições, sentimentos e anseios de toda uma sociedade. Aproximando-se das
definições do narrador em Benjamin (1936), os eventos e objetos na casa são pequenos
fragmentos e retratos da história que ao serem reunidos nos oferecem um panorama das
experiências humanas.

2.2 Sempre e nunca: uma narrativa não linear entre mídias

Como já foi supracitado, Rajewsky considera duas formas de abordagem do estudo


intermidiático: como “um fenômeno cultural de base” (2020, p.71) e como “categoria para
análise concreta de configurações midiáticas” (2020, p. 73). Isto é, a primeira pressupõe que
intermidialidade é o processo natural e inerente às mídias, enquanto a segunda implica em
tomá-la como fundamento de averiguação das interrelações dos produtos midiáticos e de
mídias individuais. Destas duas, a autora deriva uma terceira possibilidade, focada no
fenômeno intermidiático em si, ou seja, na materialidade específica de uma produção.
Rajewsky não está interessada em criar um estudo histórico e ontológico, mas sim,
compreender como se dá às construções de uma obra gerada por transposições, referências e
combinações midiáticas.
Da mesma forma, Canton apresenta o conceito de narrativa enviesada como uma
forma particular de contar histórias, não se configurando como um termo classificatório de
produto de mídias. É uma forma de compreender o processo de construção de um “tipo de
obra ou o texto que dá indícios de contar uma história, mas se recusa a criar uma narrativa
cujo sentido seja fechado em si mesmo, ou seja, que possa ter linearidade” (CANTON, 2009,
p. 16). Tanto Rajewsky quanto Canton não procuram criar categorias de arte contemporânea,
mas sim comentar os fenômenos intermidiáticos, sobrepostos e fragmentados de uma
determinada materialidade.

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Em Aqui, a proposta de McGuire é um exercício singular de intermidialidade e


narrativas enviesadas, fruto de uma articulação admirável com os recursos da quadrinização,
processos picturais e elementos literários. Atingindo um grau ainda mais elaborado de
combinação de mídias, pois suas imbricações não operam apenas na junção formal de
regências midiáticas distintas, mas são fundamentos preponderantes na edificação de sua
narrativa.
Logo, ao manusear as primeiras páginas, percebe-se que McGuire irrompe com a
configuração clássica da ordenação de quadros que consolidou a estética dos quadrinhos e que
lhe conferiu status de arte sequencial. Eisner e outros artistas já haviam explorado o potencial
narrativo da grade tradicional das páginas de quadrinhos, subvertendo a ordem de leitura,
propondo hierarquias visuais, gerando sensações rítmicas e criando ilusões de ótica. Mas, de
certa forma, sempre respeitou o percurso de leitura comum desta forma de arte gráfica.

Figura 13: Configuração de uma grade tradicional de layout de página

Fonte: EISNER, 1999, p. 41

Eisner afirma que, de certa forma, há dois contêineres de imagem: a página total ou o
layout que pode conter vários requadros ou um único, no caso dessa última forma
diagramação é chamado de “layout de página inteira” e o próprio requadro em si. Como pode
se perceber na figura acima, o percurso da leitura para qual o leitor foi treinado ordena uma
varredura da esquerda para direita, de cima para baixo, capturando cada quadro e página
independentemente.

Este, idealmente, é o fluxo normal do olhar do leitor. Na prática, porém, essa


norma não é absoluta. Frequentemente o espectador dá primeiro uma olhada

8
852

no último quadrinho. Contudo, o leitor obrigatoriamente acabará voltando ao


padrão convencional (EISNER, 1999, p. 41).

Inconscientemente, o espectador ocidental, impulsionado pela dinâmica de leitura


advinda da diagramação de qualquer produção de texto tradicional (cartas, artigos,
documentos, matérias, poemas, contos, romances), acabam seguindo esse padrão
convencional, mesmo que seja tentado a rompê-lo. Essa tendência se aplica, também, à leitura
de um plano pictórico: desenhos, pinturas, gravuras e fotografias. A ordem ótica de captura
dos elementos organizados numa composição pictural é gerada pelos mesmos fundamentos
textuais, embora nosso campo de visão nos ofereça a ideia de totalidade. Sendo assim, uma
história em quadrinhos que se configura como uma combinação de mídias textuais e
pictoides, parece ter a apreciação de suas páginas afetadas incondicionalmente por essas
tendências.
Na primeira versão de Aqui, McGuire não rompeu com a estética tradicional dos
quadrinhos, construindo a narrativa dentro de uma grade de seis quadros e mantendo um
percurso de leitura natural. A não linearidade nesse caso é explorada por uma continuidade
quebrada entre os requadros e a sobreposição de requadros menores dentro dos
enquadramentos.

Figura 14: Página da primeira versão de Aquí (1989)

8
853

Fonte: PIRATAS do Tietê. São Paulo, nº 14, p. 13, abril de 1992.

McCloud afirma que essa transição de requadros separados pela calha ou sarjeta é um
dos fundamentos mais importante dos quadrinhos, um dos desdobramentos da conclusão. “Do
arremesso de uma bola ao extermínio de um planeta, a conclusão deliberada e voluntária do
leitor é o método básico pro quadrinho simular tempo e movimento” (McCloud, 2005, p. 69).
O espectador pode compreender que a transição remedia o ritmo da vida, a sarjeta pode
encurtar ou aumentar o tempo. Se um personagem arremessa uma bola à uma vidraça é
natural que no requadro seguinte, se veja: ou o artefato voando em direção a seu alvo ou o
vidro se estilhaçando ou até mesmo o dono da janela indo tirar satisfações com o vândalo.
Uma ação pressupõe um resultado, o leitor espera uma conclusão na sequência dos quadros.
Segundo McCloud, existem cinco tipos básicos de transição: momento-a-momento,
ação-para-ação, tema-para-tema, cena-a-cena, aspecto-para-aspecto e non-sequitur, cada uma
delas é gerada pela relação entre as duas cenas que são apresentadas em sequência. A
transição mais usada nesse caso, foi a non-sequitur, “que não oferece nenhuma sequência
lógica entre os quadros” (2005, p. 72), pois os acontecimentos não estão em uma ordem
cronológica linear. Em segundo lugar, se usou a cena-a-cena, “que nos leva através de
distâncias significativas do tempo e espaço” (2005, p. 71). Ao leitor é oferecido uma

8
854

experiência de rompimento da linearidade, pois as transições de requadros não possuem uma


lógica natural, exigindo um processo de conclusão muito maior de sua parte.

Figura 15: Página de Aqui de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

Benjamin ao afirmar que narrativa é não linear e muitas vezes inconclusiva, ilustra a
possibilidade de instigar a mente humana ao desconstruir o lógico e consequente das
representações. Pela capacidade de conclusão, o leitor impulsionado automaticamente pelas
construções arraigadas pelas constantes do dia-a-dia, de certa forma, quando as transições
seguem um padrão corriqueiro, mantém-se uma atmosfera do ordinário e repetitivo.
Transições como a non-sequitur e a cena-a-cena, as mais utilizadas em Aqui, desafiam a
capacidade de conclusão e estimulam a imaginação.
A transição na composição das páginas acima gera um questionamento, a conexão das
imagens justapostas e/ou sobrepostas não é instintivamente resolvida, impelindo o leitor a
buscar respostas possíveis para a conclusão. Os saltos no tempo que compõem as transições
cena-a-cena, que aparentemente são arquitetados de forma aleatória, instiga-o, por conta d e
uma consciência lógica, a encontrar correlações racionais entre os anos, levando-o, até, a
folhear as outras páginas para encontrar algum padrão. E a falta de linearidade das transições
non-sequitur é ainda mais intrigante, pois a inquietante pergunta da relação entre um abraço,
um criança dormindo no sofá, um homem contando sobre ter um tirado uma soneca, uma

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855

pessoa vestida de “fantasma” com um lençol lhe cobrindo a cabeça e dois homens lutando
amplia a narrativa à outra camada.
O ligeiro apelo ao automatismo psíquico próprio do onírico, uma característica muito
explorada pelo surrealismo, é reforçado, nesta página em questão, pela criança que dorme no
sofá e pelo único balão de diálogo que diz: “Eu tirei uma soneca. E quando acordei, não sabia
onde estava”. Primeiramente, esses dois requadros que ocorrem, respectivamente, em 1941 e
1990, são as únicas cenas que possuem uma certa correlação mais direta e lógica. Mas, o fato
de um dos personagens está dormindo e outro falar de uma soneca, remete ao campo próprio
do sonho e do inconsciente, além de que ao dizer que não sabia onde estava denota mais
fortemente o automatismo não racional das transições.
Essa formatação escolhida por McGuire para compor a nova versão de Aqui,
diferentemente da versão original, desconstrói de várias maneiras a composição corriqueira
dos quadrinhos e das próprias conexões da vida. Essa configuração articula de forma distinta a
hierarquia de captura do espectador, uma vez que acaba sendo influenciado pelos
fundamentos do plano pictórico, mas tem esse fluxo de leitura visual interrompido pelos
elementos sobrepostos a esse enquadramento maior.
Ademais, os limites do requadro alargado até às margens da página dupla conduz o
espectador a sensação de estar frente a uma tela de proporções enormes como um mural, ou
seja, produz uma imersão maior. Os requadros menores com momentos distintos sobrepostos
ao requadro maior são capturados na conclusão gerando uma experiência de simultaneidade.
Essa estratégia compositiva imprime de forma definitiva, a natureza enviesada desse romance
gráfico.
A intermidialidade proposta nas páginas de Aqui é resultado do amadurecimento da
ideia McGuire acerca da narrativa quadrinizada. Na sua primeira ideia, as relações se deram
apenas intramidiático, ou seja, articulou apenas os recursos próprios dos quadrinhos,
mantendo a estética dentro de conceitos mais convencionais. Do contrário, a versão mais
recente aglutinou muitas outras construções advindas de outras mídias. Essa imbricação de
linguagens que o autor se propõe a explorar é um reflexo das transformações das mídias por
meio da constante humana que passou a ser chamada por alguns autores de hibridismo
cultural.
A visão de Burke (2003) sobre essas intersecções culturais alicerça as discussões sobre
intermidialidade, pois afirma “[...] que devemos ver as formas híbridas como o resultado de
encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos

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856

adicionem novas elementos à mistura, quer reforcem os antigas elementos [...]” (BURKE,
2003, p. 31). Esses encontros são a base da pesquisa dos estudos intermidiáticos, tanto de um
modo amplo, no sentido que toda mídia individual foi gerada por combinações de atividades
humanas, quanto num modo estrito, no cruzamento intermidiático no cerne de uma
materialidade.
É certo que toda construção da humanidade que pode ser chamada de manifestação
cultural foi produzida por entrelaçamentos de inúmeros grupos sociais, a própria história em
quadrinhos é o resultado de incontáveis exercícios narrativos de diversos períodos históricos,
combinando imagem e texto e explorando a sequencialidade. Cada década e cada sociedade
contribuiu com alguma inovação para edificação dessa mídia em questão. Essa mesma
constante pode ser aplicada para diversas representações socioculturais: linguagem,
gastronomia, vestuários, religiosidade, arquitetura e tecnologia.
Em se tratando de hibridações de mídias, o processo parece ser até mais intrínseco que
qualquer outra área das humanidades, pois possui uma base comum que é a midialidade, ou
seja, a própria comunicação. Como já foi supracitado, toda mídia tem como objetivo principal
a transmissão de uma mensagem, de um signo, desta forma, as porosidades entre essas
materialidades nasce da sua própria natureza comunicativa mesmo com todas suas distinções
formais.
Por exemplo, a história em quadrinhos, mesmo sendo distinta de outras mídias visuais
ou verbais, carrega certas configurações que estão arraigadas a seu processo de decodificação
sígnica. Um requadro não é uma pintura, sua leitura visual assume outros parâmetros
narrativos, principalmente porque depende de outros recursos justapostos na composição da
página. No entanto, como as duas mídias compartilham os mesmos princípios do plano
pictórico, muito da sua narrativa deriva do entendimento desse fundamento da linguagem
visual.
Seguindo essa lógica, não é difícil concluir que as imbricações das mídias ocorrem
quase que naturalmente. Foram essas as práticas que levaram a criação das mídias individuais
da tradição históricas, que geraram as novas linguagens na contemporaneidade e que
possibilitaram a produção de materialidades que cruzam fronteiras midiáticas.
Ademais, essas apropriações de múltiplos meios, instrumentos, procedimentos e
discurso que alicerçam as inter relações de culturas, linguagens e áreas do conhecimento se
aproximam da compressão de Derrida (1971) e seu conceito da bricolagem. Segundo o Autor:

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857

O bricoleur. diz Lévi-Strauss, é aquele que utiliza "os meios a mão", isto é,
os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão
ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão
servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando
em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao
mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas etc.
(DERRIDA, 1971, p. 239).

A lógica estrutural e linear que a muito acompanhou o pensamento ocidental, erigido


sobretudo nas compreensões clássicas greco-romanas, são aqui abandonadas para dar lugar ao
provisório e ao múltiplo. Essa prática da colagem desconstruída que não permite, muitas
vezes, uma leitura única e definitiva é a uma analogia pertinente a esse estudo, principalmente
no trato das narrativas não lineares.

2.3 Dentro: os elementos compositivos como recursos midiáticos

Ao utilizar o conceito de mídia, é possível reconfigurar todos os elementos de uma


obra em mecanismos capazes de transportar uma mensagem. Na perspectiva de Canton, a
narrativa de um produto midiático se desdobra no suporte, no dispositivo, nas relações com o
espectador, oferecendo leituras amplas e múltiplas. Nesse contexto, materialidades, que se
constroem nos processos, nos entrelaçamentos, na intermidialidade, nas conexões, são
produções que nunca estão encerradas e fechadas em si, sempre estão abertas a intervenções.
A pintura, que passou por incontáveis transformações desde as primeiras práticas do
homem primitivo, encontrou na Renascença sua plenitude, figurando entre as chamadas
“belas artes”. A narrativa pictural renascentista, apesar de explorar cores, linhas e
composições num processo bastante matemático, se centra nas imagens que eram produzidas:
religiosas, mitológicas e históricas. O espectador capta a mensagem que os elementos visuais,
encerrados pelos limites do campo pictural, buscam transmitir. A tela, a tinta, a moldura, e em
certos casos até mesmo o traço do artista, são apenas suportes, não narram, não transmitem
nenhuma mensagem ao espectador. São apenas os dispositivos que carregam a informação.
O contraditório é que a pintura, que nasceu como uma das poucas formas de
comunicação do homem da pré-história, tem na sua origem uma relação intrínseca a seu
suporte primeiro, a caverna. A pintura rupestre se constitui como uma extensão da caverna
pré-histórica, não é apenas decorativo, são elementos narrativos importantes para
compreender a cultura e a mentalidade dos primitivos. Higgins é taxativo ao dizer que a
pintura ao se tornar “belas artes” se transmuta em meros objetos confinados “às velhas

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funções da arte, da decoração e da sugestão e grandeza, qualquer que seja o conteúdo


detalhado das intenções do artista” (2012, p. 42)
Por esse fato, a pintura apresentada como objeto decorativo, sacralizado, ressoa como
uma relíquia sagrada e sendo assim, a única coisa que tem valor é o que está dentro do
relicário e não o relicário em si. Clüver, ao contrário, ao articular o termo mídia, apresenta um
entendimento de mecanismo portador de narrativas muito mais abrangente e potente em
significados.

A língua inglesa, onde o uso de medium e média tem uma longa tradição,
oferece um leque de significados, entre os quais medium of communication e
physical or technical médium são os mais relevantes para o discurso sobre
intermidialidade, além de public media, que se refere a jornais e revistas,
rádio, cinema e televisão. Os meios físicos e/ou técnicos são as substâncias
como também os instrumentos ou aparelhos utilizados na produção de um
signo em qualquer mídia — o corpo humano; tinta, pincel, tela; mármore,
madeira; máquina fotográfica; televisão; piano, flauta, bateria; voz; máquina
de escrever; gravador; computador; papel, pergaminho; tecidos; palco; luz,
etc. (CLÜVER, 2011, p. 6).

Essas distinções se baseiam na própria natureza da mídia que a diferencia como


técnica, ferramenta, dispositivo ou suporte. É tarefa fácil distinguir uma tela de um televisor e
uma tela para pintura, apesar de ambas transmitirem imagens. Qualquer mídia, ao mesmo
tempo que cumpre seu papel de veículo de informação, também é portadora de narrativas que
estão impregnadas à sua própria natureza, à sua própria história. Por exemplo, se um artista
visual pretende propor uma videoarte transmitida por uma velha televisão de tubo, será quase
impossível desvincular a materialidade audiovisual das significações históricas e culturais que
esse antigo televisor carrega.
Jaime Lauriano, artista paulistano, propõe obras que debatem o colonialismo na
América Latina e seus reflexos na contemporaneidade que na maioria das vezes se constituem
como temas traumáticos. Seus últimos trabalhos se voltam para um olhar em relação às
narrativas da violência no Brasil, principalmente as relacionadas à população preta e
periférica, articulando um arco temporal que parte do tráfico negreiro à resistência atual das
comunidades quilombolas.

Figura 16 e 17: Obra Brinquedo de furar moletom (2018) de Jaime Lauriano

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Fonte: Disponível em <https://pt.jaimelauriano.com/brinquedo-de-furar-moletom>. Acesso


em:13/08/21.

Para tanto, Lauriano se apropria de artefatos, objetos, espaços e iconografias que


remetem a essas representações históricas de injustiças e abusos. Exemplo disso é a obra
proposta para ocupação da varanda do Museu MAC Niterói que possui uma vista para a baía
de Guanabara, cartão postal do Rio de Janeiro. Lugar de batalhas e invasões no período
colonial e que hoje, tomado como representação da beleza natural da cidade, oculta problemas
sociais sobretudo nas comunidades pretas e periferias.
Uma pequena barricada ou muralha edificada com tijolos que são popularmente
conhecidos por “tijolos coloniais”, produtos de olarias quase artesanais, que lembram a feitura
das mãos dos africanos escravizados na indústria da construção civil brasileira. Esse muro de
tijolos coloniais, que serve como suporte para peças de chumbos, já relata, por meio da sua
iconografia, uma mensagem. Se conecta ao papel da população preta e periférica na
edificação da história do Brasil: a de suporte. Sobre esse muro que se estende por três galerias
do museu, são dispostas várias miniaturas de meios transportes relacionados ao militarismo, à
defesa e à violência.

Três caravelas, um tanque de guerra, um avião de guerra e vinte e sete


miniaturas de carros da polícia militar pousam sobre os tijolos como se
defendesse o espaço interno do museu. Essa ronda feita com miniaturas
representam as vinte e sete capitais do Brasil e tiveram seus modelos
extraídos de modelos de automóveis comumente utilizados pela polícia
militar: o caveirão (Rio de Janeiro), a base móvel da Polícia Militar de São
Paulo e quatro modelos populares (Palio, Gol, Fiat Uno e pick-up). Balas de
armas utilizadas por agentes da polícia militar foram coletadas em diferentes
cidades do Brasil e constituem o ferro que compõem a matéria dessas
réplicas (ADORJÁN, 2018. s/ p.).

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Todos os elementos da obra de Lauriano são mídias: o espaço escolhido para instalá-
la, o muro feito de tijolos coloniais, cada uma das miniaturas e até mesmo o chumbo extraído
de munição na confecção das peças. A narrativa se desdobra nas iconografias colhidas pelo
artista visual, cada uma delas é fundamental para edificar a composição. Nenhum dos recursos
utilizados está ali apenas como veículo da mensagem, pois também é a mensagem.
O título da instalação, Brinquedo de furar moletom, foi inspirada na música Vida loka
parte 1, do grupo paulistano de hip hop Racionais MCs, do álbum Nada como um dia após o
outro dia, de 2002. Lauriano apresenta uma narrativa sobre as relações da violência histórica
para com as comunidades pretas e periféricas e a infância, contrastando a inofensiva e lúdica
representação do brinquedo inspirado em artefatos bélicos e uma realidade de abusos, descaso
e injustiça social.
Da mesma forma, McGuire oferece uma materialidade, cuja narrativa não se esgota na
projeção imagética nas páginas do Romance Gráfico. Toda sua proposta gráfica auxilia na
composição das mensagens colhidas pelo leitor e o insere no processo de significação do
produto midiático. Inclusive, essa característica múltipla, aberta e não linear dialoga com a
natureza multidimensional do argumento da História em Quadrinho em questão.
Os processos narrativos de Aqui se iniciam no próprio projeto gráfico do livro, logo na
capa e na contracapa se tem uma importante construção imagética que direciona significação
para o andamento da história que é contada. A capa traz a representação de uma janela aberta
pela qual apenas se vê uma cortina branca, pois o interior é ocultado por um fundo escuro,
como se as luzes estivessem apagadas. Janelas, de certo modo, representam um pequeno
panorama do interior da casa que se encontra na parte externa, no livro, por estar oculto, soa
como um convite ao espectador a conhecer os segredos que se encontram na parte interna.

Figura 18 e 19: Capa e contracapa de Aqui de Richard McGuire

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Fonte: McGuire, 2014.

Já na contracapa, se apresenta uma parede de tijolos a vista como se fosse a parte


externa da casa. Quando o livro está aberto as duas capas formam o canto externo da casa,
estratégia que dialoga com elementos da arquitetura, fornecendo a impressão de uma projeção
tridimensional. É importante citar que em algumas páginas e alguns quadros que representam
períodos anteriores a 1907, que é quando a casa foi construída, a edificação desaparece. O
leitor experimenta uma ilusão arquitetônica, recurso esse que se conecta com a premissa de
toda obra: as ilusões do tempo e espaço.
Além disso, essa construção oblíqua edifica visualmente o lado externo das duas
paredes perpendiculares que é vista pelo espectador dentro das páginas do Romance Gráfico.
Esse recurso, em particular, que parece ser apenas uma solução visual, determina um fator
importante para a narrativa de toda a obra. Apesar de o leitor ser abonado de uma visão
multidimensional, o ponto de vista que a formatação das páginas fornece é sempre o mesmo:
uma perspectiva oblíqua.

Figura 20: Ilusão arquitetônica criada pelas duas páginas de Aqui de Richard McGuire.

Fonte: McGuire, 2014.

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A analogia da estrutura perpendicular de um livro aberto com a perspectiva oblíqua de


um canto de uma sala é uma das mais criativas características de Aqui. McGuire utiliza no
miolo do livro como a linha vertical central no qual os dois planos oblíquos se encontram. Os
dois planos que equivalem as duas paredes da casa se materializam nas duas páginas,
formatando a ilusão arquitetônica dessa narrativa enviesada
Perspectiva é uma das regras de pinturas e desenho mais explorada nas práticas
acadêmicas de representação mecânica, basicamente, configura-se na sugestão de
tridimensionalidade em uma composição bidimensional por meio linhas e pontos. No geral, as
composições se constituem de linhas verticais paralelas ao observadores e linhas horizontais
que convergem para eixos chamados pontos de fuga. Perspectiva de projeção de espaço se
divide em paralelas paralelas e oblíquas, a primeira utiliza um ponto de fuga, e a segunda,
dois pontos. Na perspectiva paralela, a mais comum é a central, na qual o ponto de fuga está
no centro e na altura dos olhos do observador
No estudo da perspectiva como elemento narrativo, Ostrower apresenta que no
Renascimento prevaleceu a perspectiva paralela central, na qual “encontra-se o homem
configurado como eixo do mundo” (1987, p. 93, grifo da autora). No pensamento
antropocêntrico da renascença, é o homem que ocupa a posição central nos acontecimentos da
história e é por meio do seu olhar que as memórias são construídas. Por isso, a maior parte das
pinturas renascentistas possuem um mesmo ângulo, na altura dos olhos humanos, pois a
humanidade é a testemunha ocular da vida.
Nesta perspectiva, o ponto de vista oferece uma varredura panorâmica como num
cenário teatral, o espectador consegue visualizar três planos de forma bem completa. Gerando
a ilusão do contemplar de fora, tendo o controle de todos os detalhes oferecidos pela
composição. Já a perspectiva oblíqua, por gerar uma campo de visão em diagonal, desabona o
espectador do panorâmico da cena entregando apenas dois planos e criando alguns mistérios.
Ao escolher utilizar uma perspectiva oblíqua, McGuire desarticula o leitor do centro
dos acontecimentos da narrativa proposta em sua obra e o configura como nada mais que um
daqueles tantos indivíduos passageiros diante da história daquele espaço. Do contrário da
perspectiva central, no qual o eixo de convergência (ponto de fuga) está dentro do campo de
visão do espectador, a perspectiva oblíqua desloca esses eixos para fora do controle do olhar
humano.

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863

É difícil renunciar a visão como a que prevaleceu no Renascimento, visão


antropocêntrica e, ao mesmo tempo, altamente afirmativa para a
humanidade. E ainda hoje é difícil reconhecer e aceitar que esse espaço não
seja mais nosso, que não corresponda à realidade que vivemos agora
(OSTROWER, 1987, p. 93).

Por meio da perspectiva oblíqua, o observador é desapropriado do controle do que


contempla, sua visão é remodelada por pontos convergentes que não lhe pertencem, que estão
fora do seu plano de ação. Durante toda narrativa, o ponto de vista não se altera, apesar de lhe
se conferindo diversos segredos da epopeia daquele espaço, existem elementos que o autor
decide ocultar do leitor. O leitor recebe fragmentações do tempo gerada pelos requadros, que
atuam como janelas dimensionais e esses recortes se dão mediante a uma perspectiva. Pois, os
ângulos nos requadros, também, nunca se alteram.
Lukács (1965) tece um comentário pertinente às diferenças entre narrar ou descrever
uma cena, ao comparar duas cenas de romances distintos que tratam de um mesmo assunto,
uma corrida de cavalo. Em Naná, Émile Zola descreve com esmero uma corrida, desde a
forma que são preparados os cavalos até detalhes da torcida da arquibancada. É um exemplo
de virtuosismo na arte de descrever elementos picturais, abonando o leitor com
minuciosidades da cena. Essa descrição, de certa forma, se assemelha à visão panorâmica
teatral que a perspectiva central projeta, pois parte da mesma premissa: do observador que
contempla de fora.

No entanto, esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma
digressão dentro do conjunto do romance. Os acontecimentos da corrida são
apenas debilmente ligados ao entrecho e poderiam facilmente ser
suprimidos, de vez que o ponto de conexão consiste no fato que um dos
muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em consequência da trama.
(LUKÁCS. 1965, p. 44)

Apesar da corrida ter algumas relações com a trama, não se desdobra de maneira importante a
ponto de ser indispensável, de modo que o trecho apenas se constitui como uma demonstração de
habilidade de ato de descrever de Zola. O autor poderia ter apenas citado o acontecido, resolve se
alongar apenas por um exercício de escrita, o que faz com maestria e acaba imprimindo uma certa
qualidade artística à passagem.
Todavia, mesmo que fosse um acontecimento caro ao romance, Lukács atenta ao fato de que
Zola, ao ofertar uma cena completa em todos os seus meandros, acaba por limitar a narrativa, pois não
deixa perguntas a serem feitas. Ora, se o leitor consegue contemplar um cenário no qual todos os
planos são revelados de maneira direta e panorâmica, não será instigado pelos mistérios e a cena não se
alojará em sua cabeça.

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Do contrário, em Ana Karenina, de Leon Tolstói, apresenta eventos relacionados a uma corrida
de cavalo que, primeiramente, se constitui como algo bem mais crucial para o enredo do romance, pois
afetam irreversivelmente a vida da personagem-título, e gera um processo narrativo mais instigante .
Da mesma forma que Zola, Tolstói narra toda a sequência da corrida, porém com duas diferenças:
apresenta o ocorrido pelo olhar dos personagens e oculta alguns detalhes do leitor. A corrida de cavalo
é uma efemeridade diante do drama da vida dos personagens, “Tolstói não descreve uma coisa: narra
acontecimentos humanos” (LUKÁCS, 1965, p. 43)
Tolstói narra os incidentes da corrida de cavalos articulando-os com o psicológico dos
personagens principais da trama, por isso narra duas vezes, tendo dois pontos de vista diferentes sobre
a mesma cena. Na segunda narração, Ana nem se atém muito aos acontecimentos da corrida como um
todo, mas apenas o que ocorre ao seu amante e cono isso a afeta. Essa visão parcial, assim como a
perspectiva oblíqua, estimula o leitor a utilizar sua capacidade de conclusão para tentar compreender os
mistérios gerados por elementos que não são oferecidos diretamente na narrativa.
Sendo assim, na oposição da visão plena e da captura completa produzida pelo panorama da
descrição minuciosa e da perspectiva central, o olhar fragmentado da perspectiva oblíqua oferece uma
narrativa ainda mais enviesada. McGuire cria uma obra narrativa em um arco temporal baseado
em significações iconográficas. As tramas de Aqui são produzidas pelo entrelaçamento de
mídias visuais, literárias, físicas e mecânicas e geram camadas semióticas que propicia uma
experiência a partir da memória, do espaço e da iconografia.

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3. POR FIM: AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS DO TEMPO E DO ESPAÇO

Neste terceiro capítulo, a proposta é debater as nuances filosóficas e sociológicas


estabelecidas pela narrativa intermidiática e enviesada do romance gráfico Aqui,
principalmente no trato das representações da memória, tempo e espaço. Assim, pretende-se
comparar as construções narrativas de McGuire com conceitos de pensadores contemporâneos
a fim de atestar a profundidade desta obra quadrinizada.

3.1 Onde e quando: as representações do tempo e do espaço em Aqui

A essa altura do debate, a definição de história em quadrinhos como linguagem


intermidiática que aglutina elementos visuais e literários e, por conta disso, articula narrativas
do tempo e do espaço, parece estar bastante estabelecida. E que, pela preocupação dos autores
de produzir uma obra mais madura, o romance gráfico se consolida como um cruzamento de
fronteiras ainda mais elaborado. Sendo assim, é possível pensar que esse sub gênero de
quadrinhos tenha transformado a realidade dessa mídia e exposto seu potencial artístico.
No entanto, um cenário mais constante de produções em quadrinhos com uma

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866

natureza criativa mais ambiciosa ainda é uma projeção e a visibilidade oferecida pela
comunidade artística e acadêmica ainda é muito tímida. McCloud (2006), apesar de manter-se
sempre bastante cético, é ligeiramente otimista com a ideia de que uma grande revolução
artística dos quadrinhos está sendo esboçada,sobretudo, pela geração de criadores surgidos a
partir dos anos 1990, “cujas histórias exploravam os meios de maneira afirmativa e
descontraída, sem a necessidade de reiterar constantemente aquilo que eles não eram”
(McCLOUD, 2006, p.30, grifos do autor). Pois, muitas vezes, produtores e instituições, para
legitimar quadrinhos como uma forma de arte, tentaram torná-los próximos a uma
materialidade mais consagrada.
McCloud alerta que mensurar os avanços da pesquisa artística em torno da mídia
quadrinhos pode, muitas vezes, ser movido por juízos de valor ao se comparar,
superficialmente, com o que se considera alta literatura. De certa forma, até mesmo o termo
romance gráfico já configura como uma tentativa dessa sacralização, pois ambiciona a
condição de livro, uma mídia popularmente mais aceita como uma obra mais séria. Todavia, o
que imprime qualidade artística a uma narrativa quadrinizada não é seu flerte com o romance
e/ou o livro, mas a possibilidade de oferecer uma composição com mais virtudes literárias.

A profundidade é uma dessas virtudes. Os quadrinhos há muito são vistos


como uma forma linear, movida pelo roteiro, carente da capacidade prosa
de manipular camadas de sentidos ㇐ subtextos ㇐ dentro da história.
Patinando pela superfície sem nunca sondar o que há por baixo. Mas,
muitas obras, nos anos recentes, apresentaram novas estratégias
especialmente adequadas para os quadrinhos, que podem ajudar a vida
dupla de uma história emergir visualmente (McCLOUD, 2006, p. 31. grifos
do autor).

Essa leitura superficial que, por muitos anos, se fez dos quadrinhos, leva em
consideração apenas as primeiras camadas de uma narrativa quadrinizada, tomando como base
apenas o roteiro, os diálogos e as ilustrações. McCloud afirma que autores de história em
quadrinhos que se propuseram a explorar estratégias que articulam subtextos, conseguiram
demonstrar que essas propostas narrativas eram bem diferentes das de outras linguagens, como
as literárias e as cinematográficas, por exemplo.
McGuire, com toda certeza, se enquadra entre esses autores, pois, em Aqui, consegue
propor uma obra quadrinizada com essa profundidade supracitada. McCloud cita McGuire, em
seu Reinventando os quadrinhos, como autor de uma obra que produz “efeitos tão
exclusivamente seus, que impedem comparações com qualquer outra forma” (2006, p.
39). Todavia, o trabalho citado é a Aqui original, a pequena história publicada em RAW em

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867

1989 e Piratas do Tietê em 1992, pois o livro com a nova versão seria publicado apenas em
2014. E é justamente nesse segundo trabalho, que McGuire parece ter alcançado o que
McCloud espera de uma história revolucionária.
O romance gráfico Aqui consegue criar narrativas potentes em camadas de sentidos,
principalmente em suas representações acerca do tempo e do espaço, pelas quais é possível
discorrer algumas discussões filosóficas e sociológicas, além das que foram realizadas no
âmbito da literatura e da arte. É claro que essa áreas do conhecimento são indissociáveis, no
entanto, muitas vezes, um trabalho opera em demasia apenas no seu aspecto formal e métrico,
não oferecendo muitos debates além desta camada formalista.
Tomando como exemplo, o uso de um advérbio como título reflete o fato de que
McGuire procura concentrar sua estratégia narrativa na modulação do acontecimento, nos
fenômenos do desvelamento do lugar que se apresenta aos olhos do leitor. A escolha de um
advérbio de lugar e não de tempo, à primeira vista, parece ser apenas uma preocupação de
representar o espaço e as transformações naquele fragmento do mundo. Todavia, o
condicionamento do espaço é, primeiramente, causalidade do desdobramento do tempo e isso
é evidenciado na ordenação das páginas indicando anos diferentes. E, em segundo lugar, todo
ponto de vista significa um instante de contemplação, ou seja, um recorte de um espaço em um
recorte de tempo.
Sendo assim, mesmo que McGuire tivesse optado, apenas, em estampar um único
enquadramento de momentos diferentes em cada página, ainda estaria referenciando o tempo
por trás da ideia do advérbio aqui. Mas, ainda há a sobreposição e a justaposição de requadros
com fragmentos de representações de anos diferentes, que remetem a ideia de simultaneidade
de distintos “aqui”.

Figura 21: Página de Aqui de Richard McGuire

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868

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

Pelas projeções fortuitas de Aqui, o leitor é instigado a refletir as modulações do


momento presente no contexto da virtualidade, ou seja, como condição efêmera da
sequencialidade do tempo. O enquadramento maior gerado pela layout de página dupla,
elemento que mais se repete no projeto gráfico do livro, pode ser tomado como a visão do
presente e os requadros menores, como memórias que enviesam a realidade. Todavia, nessa
página retratada pela Figura 21, o enquadramento maior que apresenta a sala vazia em 1972, é
rompido na sua parte superior por uma cena de 3450 A.C, momento muito anterior à
construção da casa, representando a virtualidade do próprio presente. Além disso, de certa
forma, essa característica em particular fornece mais argumento ao uso de um advérbio de
lugar, pois mesmo que a narrativa transite por milhares de anos, o espaço é sempre o mesmo.
Cada um dos requadros, sejam maiores ou menores, oferecem ao leitor um vislumbre
de como se materializa aquele espaço em cada um dos momentos e cada uma das composição
acrescenta uma camada a mais na narrativa múltipla dessa história. Essa particularidade traz à
tona um ponto importante a ser debatido: o movimento contínuo das transformações do lugar
sublinhado por essa ritmada representação dos anos, que algumas vezes parecem ser
ordenados como uma música e em outras, remete ao caos.
Essas sucessivas modulações do espaço ao longo do tempo aproximam-se de um

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869

conceito muito debatido da filosofia, o devir ou o vir-a-ser. É um debate antigo da filosofia,


mais precisamente do período pré-socrático, do qual Heráclito de Éfeso foi um dos primeiros a
tratar.
O tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não
parou na expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de um
ente, deduz-se disto que primeiro tinha que oferecer-se a forma do tempo;
pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo é o primeiro que
se oferece como o devir; é a primeira forma do devir (HEGEL, 1996. p.
115).

Para Heráclito, o devir é a concretização, no sensível e no material, dos efeitos do


tempo: toda criação, toda transformação, toda deterioração e toda a memorização. O tempo é
uma ideia não-substancial, que só pode ser quantificado quando mediado por algum
mecanismo físico, nesse sentido, criando a necessidade de formalizar o tempo, de torná-lo
palpável. Devir é esse plano de visibilidade do ritmo contínuo e ao mesmo tempo, contingente
de um mundo que está sempre em mutação, é a materialidade do tempo em transição.
Nas páginas duplas de Aqui é apresentado o fluxo contínuo das modificações do
espaço onde se materializa aquele canto de sala estar, no qual, é retratado o antes e depois da
construção da casa. O devir não dá conta apenas das mutações do passado e do presente, mas
também daquilo que o ente virá a ser, as potencialidades que podem se tornar realidade com o
passar do tempo. Essa questão é verificada na composição da página que imprime fragmentos
quadrinizados de épocas diferentes, como se fossem projeções e lembranças.
O fato é que, pelo caráter virtual da narrativa, não é possível determinar o que é
expressão da realidade e o que é projeção, lançando todos os requadros ao campo das
potencialidades do devir. As páginas da obra de McGuire abrem janelas dimensionais, pelas
quais pode-se visualizar enquadramentos de determinada época do passado, presente e futuro,
não importando o tamanho de cada requadro no layout, pois tudo é virtualidade. O leitor é
impelido a questionar as configurações do real gerado pelo sensível e como se conecta com o
mundo, levando em consideração as camadas de nossa consciência.
Além disso, a dança dos requadros com datas diferentes estimula o questionamento
acerca da ordenação lógica das representações. O ritmo visual dos enquadramentos flerta com
um processo musical, o que leva a pensar num padrão, já que uma música possui uma
sequencialidade harmônica. McGuire, que também é músico, possivelmente tenha pensado
num arranjo que flerta com a musicalidade, uma vez que esta é uma característica natural da
temporalidade dos quadrinhos, além de ser uma das formas de se pensar concretamente o

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870

devir.
Deleuze e Guattari (1997) propõem um conceito que, ao mesmo tempo, discute as
implicações do devir e formula uma metáfora relacionada à música: a ideia de ritornelo.
Ritornelo pode ser tanto a marcação em uma pauta musical que utiliza um traço vertical e dois
pontos para delimitar uma repetição de uma composição, quanto a característica cíclica da
música em si. De um modo geral, seria uma estratégia de condicionamento mnemónico
arquitetada por padrões musicais repetitivos no intuito de ativar antecipação. E nessa
abordagem filosófica, pretende-se referenciar alegoricamente a natureza intermitente do
desvelar da realidade e dos elementos que constituem essa condição. Em suma, é uma forma
de pensar a sequencialidade e repetição do tempo.
Deleuze e Guattari consideram que “o ritornelo tem três aspectos, e os torna
simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora” (1997, p. 102). O primeiro aspecto é o próprio devir
como fenômeno da transição; o segundo é a materialização desse devir por meio dos
mecanismos criados pela cultura humana; e o terceiro é a representação dessas construções por
meio da expressão artística. Apesar de ser possível pensá-los separados, os três aspectos não
são sucessivos e tripartidos, são conectados e se fundem em uma só ideia. Cada aspecto
interdepende do outro, de modo que os primeiros ritornelos só podem ser visualizados pela
solidificação empírica dos segundos e os terceiros nascem das tentativas de desconstrução
artística tanto dos primeiros, quanto dos segundos.
Nas páginas intermidiáticas de Aqui, o ciclo sem fim do tempo é remediado pela
repetição das páginas, requadros e os recordatórios que indicam os anos. Esses elementos
criam o que Deleuze e Guattari chamam de territórios: “o território é o produto de uma
territorialização dos meios e dos ritmos” (1997, p. 105), é o resultado das combinações dos
elementos que compõem toda a narrativa. É tanto a camada externa que pode ser percebida
pelo leitor, quanto o que se desdobra no interior da composição, nos subtextos.

Um território lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os


(embora permaneça frágil frente a intrusões). Ele é construído com aspectos
ou porções de meios. Ele comporta em si mesmo um meio exterior, um meio
interior, um intermediário, um anexado (DELEUZE, GUATTARI, 1997, p.
105).

É por meio do território que um ritornelo se materializa, no jogo dos seus meios,
ritmos e repetições. O leitor cria uma constante gestáltica e semiótica pelas repetições
estabelecidas nas páginas dos quadrinhos e esse condicionamento auxilia no processo de

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conexão de imagens e palavras e nas transições entre os requadros. Sendo assim, o meio
externo é o requadro como um todo; o meio interno é os elementos visuais e literários que
compõem esse mesmo requadro; o meio intermediário é a calha; e os meios anexados são os
requadros sequentes e o layout.
Aqui concebe uma narrativa múltipla, não linear, como já foi dito, e ao mesmo tempo,
cíclica. Ao repetir cenas e combinações de cenas, ações e temas, apesar dessa repetição ser
pronunciada sem um padrão aparente, a conclusão supõe um ritmo e impele o leitor a criar um
território. “A marcação de um território é dimensional, mas não é uma medida, é um ritmo”
(DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 106).
No caso da figura 22, o ritmo é sugerido como um elemento de composição, uma
referência visual e uma construção mnemônica. A sequência e os tamanhos dos requadros
sugerem um encontro de temporalidade, como já visto em McCloud e Eisner, no qual as
personagens que se movem graciosamente evocam dança e parecem seguir a mesma música
executada pela personagem ao piano. Por fim, a composição oferece uma experiência de
movimento que se completa com a capacidade do leitor de imaginar a música e o ritmo da
dança ao rememorar territórios conhecidos.

Figura 22: Página de Aqui de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/ p.

Essa estratégia se enquadra também no “como se” de Rajewsky, a remediação da

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música mídia dentro das práticas dos quadrinhos, denota “um tipo particular de relação
intermidiática, através do processo de remodelação midiática” (2012, p. 34). A natureza
rítmica e dinâmica da música é referenciada por recursos gráficos que ativam reminiscências
musicais, em outras palavras, ouve-se uma música sem estímulos sonoros, ou, pelo menos, não
no sentido empírico do sonoro.
Essa musicalidade é um fator valioso na narrativa de McGuire, uma vez que a rítmica
é intrínseca aos quadrinhos e, segundo, porque a sequencialidade proposta, que à primeira
vista soa como caótica, remete a esse padrão repetitivo próprio do Ritornelo de Deleuze e
Guattari. De fato, não há uma sequência lógica dos anos que aparecem nos recordatórios de
Aqui, como já foi dito, nem mesmo na ordenação das páginas e muito menos na transição dos
requadros, no entanto, a repetição da perspectiva, das situações coincidentes e dos padrões de
decoração da sala, oferecem uma sensação de dejá vu.
Esse componente mnemônico faz projetar periodicidade ao devir que é, por sua
natureza, indeterminado. É própria da vida e da consciência humana essa projeção, homens e
mulheres vivem seus dias conduzidos pelo imprevisível e pelo causal, no entanto, planos e
expectativas são delineados tomando como base o antecedente. O calendário cíclico e os
padrões estabelecidos pelos eventos antecessores concebem uma certa mensuração subjetiva
do que virá e auxiliará no trato com o devir. E é por meio destas mesmas previsões imprecisas
que se arquiteta uma dinâmica de leitura no percorrer das páginas incontínuas de Aqui.
De um modo geral, é do jogo de contraste - da exploração da memória e da projeção,
do ritmo e do contingente, do panorâmico e do fragmentado - que se fundamenta a estrutura
básica da narrativa enviesada e intermidiática desse romance gráfico. Deleuze e Guattari
atentam que um ritmo simples produz condicionamento, enquanto a quebra de padrões gera
questionamento, pois “os motivos territoriais formam rostos ou personagens rítmicos e que os
contrapontos territoriais formam paisagens melódicas'' (1997, p. 109, grifos dos autores).
Nesse caso, as paisagens melódicas de McGuire se desdobram tanto externamente, quanto
internamente, as colagens visuais geram estímulos sensíveis e os subtextos produzem o
mistério.
A melodia das paisagens de Aqui conduz o leitor a uma desterritorialização, um
deslocamento, um contemplar de fora, ainda que fragmentada, própria dos terceiros ritornelos.
“Agora, enfim, entre abrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos
alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos.” (DELEUZE, GUATTARI.
1997, p. 101). De fato, nunca se está inteiro em um tempo-lugar, a mente guiada por

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873

memórias, projeções e devaneios se desloca e gera uma certa intermitência, rompendo a


permanência no presente.
Essas paisagens melódicas e misteriosas se assemelham a obra de Giorgio de Chirico,
pintor nascido na Grécia, mas de família italiana, que uniu suas múltiplas raízes à
desconstrução modernista e fundou um movimento conhecido como Pintura Metafísica.
Considerado precursor do Surrealismo, de Chirico cria paisagens que operam no campo do
onírico e do misterioso, unindo elementos arquitetônicos clássicos greco-romanos,
renascentistas e modernos em uma colagem que debate a essência da pintura e da
representação.
Figura 23: Piazza d’Itália de Giorgio de Chirico

Fonte: Disponivel em https://pt.wahooart.com/@@/8XY4SG-Giorgio-De-Chirico-Pra


%C3%A7a-d%27Italia acesso em out/2021

A princípio, o que mais salta os olhos na pintura de de Chirico, e que se configura


como ponto crucial do paralelo a Aqui e ao ritornelo, é a justaposição de figuras arquetípicas
que remetem a vários períodos fundamentais da história ocidental. Na mesma paisagem se vê
construções greco-romanas com seus arcos e colunas caneladas, um templeto renascentista e
um trem a vapor que singra o horizonte. Assim, como no romance gráfico de McGuire, é
possível visualizar os fragmentos da história e do devir por meio de uma narrativa que explora
o tempo e o espaço.

A transfiguração dos cenários urbanos permite ao pintor inserir-se em


continuamente com a história, de modo instintivo e natural, sem hiatos ou

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874

fraturas: há, de fato, uma sincronia entre o passado e presente, mas sua
maneira de sentir a cidade lança raízes em um húmus existencial antigo, que
remonta aos gregos, em cujo centro se ergue o homem de espírito e poesia,
isto é, o sujeito dotado simultaneamente de psyché e techné (d’ALFONSO,
2011, p, 16, grifos da autora).

Essa colagem desordenada pode ser compreendida tanto pela visão do automatismo
psíquico, fundamento fartamente explorado pelo surrealismo, que se desdobra nas relações
com a memória e o imaginário, quanto pela visão da própria composição arquitetônica e
urbana das cidades. A primeira reflete a forma que Canton pensa o nosso fluxo de consciência:
movido pelo fenômeno do presente, pelas memórias do passado, projeções do futuro e do
devaneio do nosso pensamento incrustado excessivamente por imagens. A segunda, projeta a
cidade como um plano arquitetônico real que revela as transformações urbanas, as mudanças
dos estilos de construções, o progresso e a deterioração.
Cidades como São Paulo, por exemplo, são um mosaico de estilos arquitetônicos,
onde é possível encontrar, na mesma quadra, um condomínio moderno, um casarão
neoclássico e um prédio barroco. Essa costura descontínua assinala a história da cidade, seu
tempo de vida, mas também, os elementos e simbologias que determinam a atmosfera da vida
contemporânea, sobretudo no que tange os contrastes sociais. Muitas dessas construções mais
antigas, se encontram em ruínas e se deterioram lentamente com os efeitos do tempo.
Esses aspectos da justaposição e da deterioração, de certa forma, ditam o tom das
narrativas que traduzem as experiências vividas nesses espaços urbanos. O narrador que nasce
imerso a essas fragmentações do devir é próprio da visão de Benjamin, pois é aquele que colhe
suas histórias e meios aos detritos da civilização como um coletor de sucatas. De Chirico e
McGuire seguem a tradição desse contador de histórias fragmentadas, porque repensa a
construção histórica por meio de uma visão não linear e dispersa. São narradores conduzidos
por territórios desterritorializados, descompassados, que perderam o fio condutor do ritmo e da
métrica.
No centro da praça registrada na pintura de de Chirico (ver figura 23), há uma
escultura ao estilo clássico que remete ao mito de Ariadne, a princesa de Cnossos que auxiliou
Teseu, o matador do Minotauro, a sair do labirinto ao presenteá-lo com novelo de linha que era
desenrolado para indicar o caminho.

Ela simboliza o limiar da revelação, onde a racionalidade é convertida em


espontaneidade e a subsequente descoberta do inconsciente. Sem ela (ou
pelo menos a sugestão de Ariadne) não pode haver jornada (D’ALFONSO,

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875

2011, p. 51, grifos da autora).

Adriane, que é retratada em um estado inerte, que pode ser entendido por estar
adormecida ou em meditação, revela que a princesa está presente, mas que sua ação de
resolução do labirinto não se concretiza. Nesse caso, Ariadne é sugerida, mas não se configura
como um sujeito ativo na elaboração de uma estrutura lógica da narrativa. O novelo de linha
que guia o narrador pelos meandros da história, da memória e da imaginação não é
desenrolado. O resultado é uma jornada repleta de sobressaltos, na qual o mistério e o enigma
são fundamentos principais.
De Chirico inicia uma tradição de artistas que justapõem elementos contrastantes e/ou
subvertem a ordem natural das conexões lógicas, seguida por pintores como Renè Magritte,
Salvador Dalí, Max Ernst e Frida Kahlo. A proposta é sempre o mistério, o enigma, a
inquietação, e o deslocar o observador para um espaço em que não tenha pressuposto definido,
pois é nesse estado de incômodo que a reflexão filosófica é estabelecida.

O enigma dequiriquiano, inspirado na mitologia grega, contém em si, além


da relação com a história, o problema da representação presente na questão
que a Esfinge submete a Édipo, ou seja, uma divindade monstruosa à
inteligência humana. O enigma é resolvido pela habilidade, toda humana, de
conferir forma figurativa a própria existência, Mas, o enigma também é um
jogo, jogo de inteligência, e é justamente o jogo que pode subverter o sentido
lógico e a ordem aparente da realidade (D’ALFONSO, 2011, p. 20).

E é justamente nesse jogo de desarticular as aparências do real que essas paisagens


melódicas sobrepostas, justapostas e fragmentadas se materializam, nesse momento-lugar
carregado de perguntas e provocações. É o momento-lugar da Esfinge, desafiando aquele que
faz e refaz sua jornada sem o novelo de linha da Ariadne. De Chirico, assim como McGuire,
oferece uma composição capaz de romper a estagnação dos ritornelos segundos, num jogo de
desconstrução e reorganização de novos ritornelos. Pelos quais, o observador é impulsionado a
tentar desvendar os mistérios ocultos nas lacunas temporais e espaciais.
McGuire mergulha nessa virtualidade do tempo e do espaço no intuito de extrair mais
e mais camadas de mistério, inserindo metalinguagens da sua própria obra no enredo das
narrativas. Em uma das histórias que se passa em dois requadros que datam de 2050, por
exemplo, dois idosos sentados na sala da casa com um dispositivo que projeta alguns
quadrados holográficos no ar. No primeiro requadro, um dos idosos aponta para um dos
hologramas e diz “tente esse aqui”, no segundo requadro, o outro personagem posiciona sua
cabeça através do quadrado holográfico e se vê como uma criança.

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876

Há uma clara referência intramidiática nessa passagem, pois os quadrados flutuantes


remetem aos requadros sobrepostos e justapostos do próprio romance gráfico. Os hologramas
fazem referência à própria virtualidade das paisagens fragmentadas de Aqui e o fato de o idoso
se ver em outra época da vida remete as janelas dimensionais do espaço tempo exploradas em
toda a narrativa. Além disso, por se tratarem de idosos que manipulam um aparelho moderno
que gera janelas do tempo-espaço, há aqui uma alegoria que se conecta com a ideia do
narrador experiente, que tem muitas histórias para contar.
Aqui, em sua versão e-book, possui um recurso na qual se pode embaralhar mais ainda
a ordem das páginas duplas, o que, de certa forma, joga mais ainda com a desconstrução do
ritmo e do ordenamento. E concretiza intermidiaticamente a virtualidade das páginas e
requadros deste romance gráfico, percebe-se, assim, o esforço de McGuire como criador de
narrativas que superam os limites da mídia história em quadrinhos.

Figura 24: Páginas de Aquí de Richard McGuire.

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

Em um outro momento do livro, novamente, essa projeção virtual e simultânea de

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877

vários momentos é concretizada como parte da história. Dessa vez, de uma maneira muito
direta, quase um pastiche das premissas desse romance gráfico. No ano de 2213, o lugar está
muito modificado, apresenta um solo pantanoso e uma passarela no formato de, o que parece
ser, um deque de madeira. Ali um grupo de pessoas é recepcionado por uma espécie de guia
turístico que utiliza, também, um dispositivo holográfico, em forma de leque, chamado
“programa de reconstrução e visualização''. A guia revela aos visitantes que por meio do
dispositivo foi possível concluir que havia uma casa naquele local, construída no século 20.
Esse episódio em questão possui uma atmosfera peculiar que mescla surrealismo e
ficção científica, pois toda cena soa como algo fantástico e ao mesmo tempo provável. O
dispositivo parece reconstruir o fenômeno físico das cenas do passado, provavelmente, a luz
que os objetos refletiam naquele dado momento. Soa como um debate sobre a percepção e o
tempo, já que luz refletida é o que os olhos capturam e configuram como presente.
O formato de leque do dispositivo é uma alegoria extremamente pertinente, primeiro
por referenciar a própria narrativa enviesadas e as diversas tramas que uma obra intermidiática
pode oferecer e, em segundo lugar, por recriar dentro da própria história para os personagens,
a mesma experiências das paisagens sobrepostas e justapostas. O dispositivo abre um leque de
visualizações de diversos ritornelos que descortinam o devir e submergem na simultaneidade.
Por fim, a cena é uma alegoria da própria obra, como se a guia fosse McGuire que
recebe o leitor neste momento-lugar das páginas de Aqui, abre seu leque de reconstrução e
visualização e oferece uma visão múltipla e fragmentada das transformações daquele espaço.
McGuire ainda permite uma última provocação ao leitor acerca da percepção, tempo e
virtualidade, antes de fechar essa pequena parte: um personagem pertencente ao grupo de
visitantes comenta “Até parece verdade”.
A potência das narrativas de Aqui claramente o coloca como um exemplo da produção
revolucionária que compõe a visão de McCloud para as histórias em quadrinhos, pois, parece
alcançar um patamar de obra artística que provoca, por meio de seus recursos, perturbações no
leitor que o fazem refletir as próprias percepções acerca da realidade. E consegue esse feito
sendo quadrinhos, apesar de ser fruto de intermidialidades de artes visuais e literatura,
consegue produzir efeitos que não ocorrem nem na pintura, nem no cinema, nem na literatura,
nem em qualquer outra mídia precedente e/ou semelhante. McGuire oferece uma obra, como
disse McCloud, sem igual e potente em questionamentos artísticos, filosóficos e sociais.

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3.2 Lá: as narrativas do canto de uma sala.

Benjamin (1987) declara que a fonte de toda boa história é a experiência passada de
pessoa a pessoa e que as melhores narrativas são sempre aquelas que estão próximas ao
primitivo, ao narrador oral. Certas narrativas, por assumirem um ambicioso nível de
“sofisticação”, acabaram por perder o poder poético e sentimental que as histórias contadas de
pai para filho possuem. O narrador oral e primitivo carrega em si a potência das experiências
vividas de maneira natural, doméstica, cotidiana, simples e verdadeira.
A exigência de se gerir uma produção artística e literária de alto padrão impulsionou
um afastamento daquilo que é próprio do cotidiano e do popular, assumindo fundamentos que
passaram por processos de sacralização. Os grandes romances e a pintura, por exemplo, muitas
vezes, abandonaram as representações do homem comum, adotando cenas romantizadas para
narrar os grandes feitos da história. Na mesma medida, as experiências humanas mais simples
e verdadeiras se esvaziam.
McGuire pretende um caminho inverso dessas grandes narrativas ao arquitetar as
páginas de Aqui, pois parte das experiências particulares que ocorrem neste espaço. Embora
seja uma história que percorre um imenso período de tempo, não há uma preocupação de
narrar grandes realizações. Para tanto, cria-se um microcosmo neste enquadramento oblíquo e
dentro deste, um microcosmo menor ainda, centrado nas experiências domésticas de uma casa.
Inserindo o leitor nesse meio para que cada personagem que transita por ali possa lhe
transmitir os momentos vividos nesse momento-lugar. Essa é uma das características mais
cruciais das narrativas enviesadas, pois segundo Canton:

Hoje, no lugar das metanarrativas temos as pequenas histórias, que são


contadas e recontadas de formas muito singulares. Escorregando e
reconstruindo em meio ao mundo onde tempo e espaço se refazem
mutuamente, procuramos ressignificar o mundo por intermédio das histórias
(2009, p. 37).

São essas pequenas histórias colhidas por McGuire que compõem a narrativa sobre
esse enquadramento do mundo: a atuação dos personagens e do tempo sobre o espaço e a
atuação do tempo e do espaço sobre os personagens. Cada história em si é apenas um atributo,
um ritornelo, diante da macro história do lugar, que se estende por milhares de anos. Da
mesma forma, todos os personagens que são apresentados nesse momento-lugar também se
constituem como uma efemeridade dessa narrativa fragmentada.

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879

Nesse sentido, é necessário aqui salientar alguns pontos específicos para compreender
como se configura a narrativa de Aqui na relação com seus personagens e os eventos.
Primeiro, as histórias cotidianas narradas no romance gráfico parecem ser geradas não pela
memória dos personagens, mas pela memória do próprio lugar. A questão é como um lugar
pode ter memórias, senão aquelas que são projetadas por seus personagens, a menos, é claro,
que o lugar passe por um processo de personificação.
No entanto, nem uma coisa nem outra ocorre. Essas memórias são projeções virtuais
latentes e potentes do lugar que são acessadas pelo narrador e oferecidas ao leitor. Na
passagem do “programa de reconstrução e visualização”, citado anteriormente (cf. figura 24),
o dispositivo parece reconstruir a projeção das luzes refletidas em diversos momentos da
história do lugar. Num sentido físico, o dispositivo parece acessar as ondas eletromagnéticas
dispersas naquele espaço e assim como na mente, o acesso e a reconstrução desse fenômeno é
fragmentado.
Sendo assim, o lugar não é um personagem, é um meio, é o tabuleiro onde são
posicionadas as peças do jogo. É um meio à mercê do devir, que se refaz a cada momento e se
apresenta, a cada passagem, de uma forma, ora diferente, ora igual. “Cada meio é vibratório,
isto é, um bloco de espaço-tempo constituído pela repetição periódica do componente”
(DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 103). Basicamente, o conhecimento que se tem das coisas
se compõem daquilo que os sentidos capturam em um dado momento, e, se as coisas estão em
eterno devir, a compreensão acerca delas também está.
Então, esse meio que é momento-lugar no qual o leitor vivencia as experiências
cotidianas e particulares da casa é a premissa de toda a narrativa. Os componentes que
integram essa trama são os personagens e as modulações do espaço, pois articula o jogo dos
ritornelos expressivos que são capturados na leitura do romance gráfico. E dentre essas
repetições periódicas, a projeção do canto da sala é a mais frequente, o que leva a concluir
que o período que a sala da casa se materializou nesse espaço é a medula espinhal dessa
narrativa. O autor deixa claro que o centro do interesse é a casa, tanto que todos os elementos
e signos utilizados no livro todo, remetem a materialidade da edificação. Todavia, é importante
salientar que mesmo sendo o cerne da narrativa, a casa também é eventual e, sendo assim,
virtual.
O interesse de McGuire ao narrar essa história, não importando a época, está nos
acontecimentos cotidianos mais comuns e simples, o que parece ser uma tentativa de extrair
poética do ordinário. Exemplos: Uma mulher caminha pela sala em 1957, tentando lembrar o

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que estava procurando; em 1907, um homem trabalha na construção dos alicerces da casa; em
1968, um rádio toca a música Is that all there is? de Georgia Brown; e em 1620, um nativo
americano caminha com seu arco na mão, possivelmente se preparando para sua caçada diária.
Todos esses eventos são situações corriqueiras que passariam despercebidas nas maioria das
vezes, McGuire lança um olhar sobre elas, para que o leitor possa questionar seus significados.

Figura 25: Página de Aqui de Richard McGuire.

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

McGuire deposita pequenos elementos narrativos escondidos que podem passar


batidos por um leitor menos atento, por exemplo, o rádio em 1968 toca a música Is that all
there is? de Georgia Brown que, de certa forma, faz referência à singularidade e ao ordinário
do cotidiano. A narrativa da música se centra no relato de uma mulher que viveu vários
momentos marcantes e únicos, mas que parece não se surpreender com nenhum deles. A
seguir, um trecho da música traduzida para análise:

Eu me lembro que quando eu era uma menininha, nossa casa pegou fogo. Eu
nunca vou esquecer o olhar no rosto de meu pai quando ele me pegou no
colo e correu através do prédio em chamas para a calçada. Eu fiquei ali
tremendo de pijama e vi todo o mundo arder em chamas. E quando tudo

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acabou eu disse a mim mesma: Isso é tudo, um incêndio? Isso é tudo? Isso é
tudo? Se isso é tudo, meus amigos, então vamos continuar dançando. Vamos
trazer a bebida e fazer uma festa. Se isso é tudo (LEIBER, STOLLER, 1969,
tradução nossa).

A canção cuja a interpretação possui um tom teatral, pois as estrofes são recitadas e só
o refrão é cantado, foi gravada pela cantora Peggy Lee em 1969 e se tornou um grande sucesso
mundial. Mas, pela data que aparece no requadro, a gravação é anterior, sendo provavelmente
de Georgia Brown, uma cantora e atriz britânica. O uso da música também tece diversas
camadas narrativas relacionadas ao tempo e o cotidiano, primeiramente, a marcação com a
data denota que a música não é a versão famosa que o mundo inteiro conhece, o que confere
uma certa singularidade para citação. Além disso, McGuire novamente recorre a uma
referência intermidiática musical para criar um ritornelo, ao citar a música, invocando diversos
elementos concernentes à época.
E a própria letra da música narra situações que não são tão corriqueiras como um
incêndio em uma casa, que é relatado como um espetáculo de chamas e destruição, no entanto
a protagonista se apresenta tão desiludida com a vida que não se espanta com coisa alguma.
Apenas se rende a condição que tudo não passa de um acontecimento como todos da sua vida
e isso que deve ser celebrado.
Nessa corrida desenfreada que é a vida contemporânea, um fato corriqueiro se perde
em meio ao emaranhado de informações que a realidade oferece. Em Aqui, o leitor é
convidado a prestar atenção nos acontecimentos domésticos que, muitas vezes, têm pouca
importância. Segundo Canton, “no momento que se perde a confiança no excesso de imagens
que varre o mundo, contar histórias se transforma em um jeito de se aproximar do outro e, na
troca entre ambos, de gerar sentido em si e nesse outro” (2009, p. 37). Dentro da dança dos
ritornelos expressivos deste romance gráfico, esses pequenos momentos possuem uma beleza
inigualáveis, ora por serem únicos, ora por serem repetições inexplicáveis, de qualquer forma,
são repletos de mistérios.
No entanto, é importante registrar também que McGuire revela suposta importância
histórica para o terreno que é construída a casa, mas cogita esse fato no campo do rumor e da
fragmentação. Algumas passagens revelam que uma das casas da rua teria pertencido a
Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos EUA. Em uma sequência, apresenta-se um
sobrado no estilo colonial neoclássico, onde ocorre o encontro de um homem chamado
William com seu pai e seu filho, os quais não se viam há alguns anos. Com a chegada da
diligência dos dois visitantes, pode se ver que o pai se parece muito com as descrições e

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882

retratos de Benjamin Franklin, no entanto não é revelado seu nome.


Outro fato também sugere que os personagens são realmente essas importantes figuras
históricas: durante o encontro, um embate político é travado por William e seu pai, revelando
divergências acerca da independência estadunidense. Historicamente, Benjamin e Willian
Franklin estavam em lados contrários nessa questão política, o primeiro era um dos líderes
patriotas, favoráveis à independência e o segundo, líder dos legalistas, defensores da
manutenção das colônias sob o jugo da coroa inglesa. Todavia, independente da veracidade ou
não dos rumores, é importante salientar que dois supostos personagens importantes da história
dos EUA aparecem em Aqui em uma situação corriqueira e familiar, reforçando o caráter
ordinário da narrativa.
Em todo caso, McGuire realmente não confirma a identidade dos personagens, o que
gera dúvida ao leitor. Além disso, o sobrado, que supostamente teria pertencido ao filho de
Benjamin Franklin e não ao próprio, aparece em chamas em 1783 e nos requadros de anos
posteriores não figura mais entre as residências da rua. Todas essas sugestões e contradições
criam um ar de rumor e mistério a esse fato de importância histórica, jogando, de certa forma,
para o campo da ficcionalidade.
Em outro momento, em 1986, uma senhora recebe três pessoas pertencentes a uma
sociedade arqueológica, que cogitam que o terreno onde foi construída a casa seja um sítio
arqueológico que contenha registro de civilizações nativas estadunidenses. Esse fato sim é
confirmado por McGuire, pois em outros requadros datados no século XIV, XV e XVI, a
presença dos nativos é apresentada. O que se conecta a premissa da narrativa de Aqui é que os
arqueólogos relatam ter interesse pelos eventos cotidianos e o domésticos ocorridos nesse
espaço no período durante a presença dos nativos.
Não é atoa que a medula espinhal dessa narrativa seja o canto da sala da casa que é
construída em 1907, pois confere um restringimento visual ao microcosmo narrativo e encerra
os acontecimentos ao âmbito do doméstico. O meio, no qual as cenas são projetadas, dita não
só a atmosfera da narrativa, mas, muitas vezes, são elementos cruciais para sua construção.
Lukács comenta que Balzac, ao descrever um teatro em Ilusões perdidas, relaciona os dramas
dos personagens com as condições dos ambientes em que estão inseridos:

Este é um caso extremo, é claro. Os objetos do mundo que circunda os


homens não são sempre e necessariamente tão ligados às experiências
humanas como neste caso. Podem ser instrumentos da atividade e do
destino dos homens e podem ser ― como aqui se passa com Balzac ―
pontos cruciais das experiências vividas pelos homens em suas relações

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883

sociais decisivas (1965, p. 47).

Balzac faz refletir o contexto sócio-histórico do teatro nas implicações psicológicas


dos personagens, citando-as como metáforas das condições e das relações humanas em uma
sociedade capitalista. McGuire, por sua vez, enclausura a narrativa nesse canto de sala no
intuito de aprofundar as experiências humanas vividas nesse ambiente particular, ordinário e
repleto de significações poéticas. Muitas dessas simbologias conectam-se com o primitivo,
com o materno, com as primeiras vivências, porque uma casa é, como afirma Bachelard
(2008), “nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do
termo” (p. 200). As primeiras compreensões do mundo, da vida e das relações humanas se dão
nesse microcosmo que é a casa.

Figura 26: Página de Aqui de Richard McGuire

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

O leitor é confrontado com representações que evocam construções mnemónicas que


superam o visual ou o verbal, pois se entrelaçam com outras sensações de som, de cheiro, de
gostos. “A casa natal, mais que um protótipo de casa, é um corpo de sonhos” (BACHELARD,
2008 p. 207). McGuire no intuito de reforçar essas memórias, sobrepõem requadros que não
são tão aleatórios, apesar de serem de momentos diferentes, se conectam pelo imagético da

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infância, das particularidades das etapas de crescimento e desenvolvimento. Como no


requadro acima, fica claro o contexto da maternidade, do cuidado, das primeiras sensações,
acessando registros latentes e inconscientes.
Nos ritornelos expressivos invocados por McGuire, pode-se ver diversas crianças que
brincam, correm, dançam, dão piruetas, usam fantasia dos dias das bruxas, choram, sorriem e
acampam nesta sala. O leitor acompanha o desenvolvimento de cinco irmãos desde a infância
até a vida adulta por meio de requadros que reproduzem fotografias que foram tiradas de 1959
a 1983. Festas de aniversário, festas de Natal, festas do dias das bruxas, celebrações e
conquistas cotidianas, essas sequências cíclicas vão buscar elementos psicológicos que operam
no devaneio da intimidade e da simplicidade.

Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos
maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os
sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o
devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes,
dinamismos que frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes
estimulando-se um ao outro (BACHELARD, 2008, p. 201)

O conceito do devaneio, que já foi debatido neste trabalho, é uma atribuição da


consciência humana responsável pelas maioria dos processos de sobreposição e justaposição
de imagens e memórias. É essa faculdade mental que transforma meras paredes e mobiliários
em construções imagéticas geradas pelas lembranças e sentimentos, que transpassam o físico e
adentram no onírico. Nesse processo, a casa onírica é projetada como um misto das memórias
da infância, dos eventos diários e cotidianos e das transformações do espaço ao longo do
tempo.
McGuire parece compreender bem isso ao centralizar sua narrativa no cenário de uma
casa, pois é nele que se pode extrair elementos semióticos que refletem a poesia profunda
presente na mente humana. Em um requadro de 2007, um homem relata ter sonhado com seu
pai é o mesmo personagens da história do idoso que cai e quebra o quadril (cf. figura 12). ele
conta que adentra uma mansão e seu pai está deitado em uma cama, vestido um pijama de seda
branca e com uma mulher nua ao seu lado. O personagem pergunta o nome da mulher e ela
responde: “Aqui todo mundo tem o mesmo nome”.
Inicialmente, o sonho é uma clara menção a outro fragmento da vida desse
personagem ao ver o pai deitado na sala, reforçando a ideia das repetições periódicas dos
ritornelos expressivos da narrativa de Aqui. Mas, também, reflete as representações da casa

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885

como o espaço dos sonhos e das memórias, pois o personagem se recorda do tempo que o pai
teve que acampar na sala por não poder subir para o quarto por conta do quadril contundido. E
a frase da mulher parece significar tanto a falta de identidade dos personagens que transitam
pelos cenários do romance gráfico, quanto o tempo e a fatalidade da vida, pois entende-se que
o pai está morto.
Sendo assim, constituído desses devaneios, cada canto da casa é dotado de
significações psicológicas da vida íntima que são arquitetadas durante o período de estada
nesse espaço e os acontecimentos que o acompanharam: alegrias, aprendizados, traumas e
medos. Bachelard denomina a análise que estuda as influências psíquicas de uma casa em uma
pessoa de topoanálise, “seria então o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de
nossa vida íntima” (2008, p.202). Os devaneios relacionados a casa natal são responsáveis por
boa parte da construção da personalidade de uma pessoa e assim como a mente instala certas
memórias em partes específicas do cérebro, cada representação se instala num canto desta casa
mnemônica.

Eis o ponto de partida de nossas reflexões: todo canto de uma casa, todo
ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos de nos
esconder, de confabular conosco mesmos, é, para a imaginação,uma solidão,
ou seja, o germe de um aposento, o germe de uma casa (BACHELARD,
2008, p. 286).

Memórias, na maioria das vezes, são constituídas por fragmentos de imagens e


sensações, da mesma forma, a casa mnemônica não é completa, é fragmentada. Cada canto de
aposento representa um fragmento de nossa vida, uma vida intimista, que não é externada, e
assim não se conecta com uma história universal e mantém-se no particular. A escolha de
McGuire de dar ênfase ao particular e cotidiano revela o intuito de oferecer ao leitor uma
narrativa do momento, do estático, que não está interessada na dinâmica do mundo externo.
É nessa imobilidade da vida momentânea, articulada no acontecimento presente que se
define o existir, o devir abona a consciência de memórias e de projeções, mas todas essas
representações se instalam no imóvel. “Inicialmente, o canto é um refúgio que nos assegura
um primeiro valor de ser: a imobilidade. Ele é a certeza local, o local próximo da minha
imobilidade” (BACHELARD, 2008, p. 286). Todas essas camadas da consciência humana se
agrupam nesse momento imóvel, é a dinâmica do tempo representado no estático da vida.
Por conta disso, a medula espinhal da narrativa de Aqui, a casa, é apresentada
reduzidamente e fragmentada em um canto oblíquo, pois consegue exprimir essas existência

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886

conectado com a intimidade e o momento efêmero. Não há um grande panorama da vida e da


história, há um olhar íntimo e sincero para as representações que se desdobram nas camadas
da consciência em um espaço reduzido. Há o enquadramento da página dupla, dentro dele há a
casa, dentro da casa há um canto que “é uma espécie de meia-caixa, metade paredes, metade
portas” (BACHELARD, 2008, p. 286). E como se McGuire, na tentativa de resolver os
ritornelos expressivos gerados pela memória e as mensurações subjetivas, reduzisse o espaço
de projeções e criasse um refúgio mais intimista.
Diante dessa estratégia narrativa , a topoanálise é tomada como uma forma de oferecer
parâmetros para assim compreender os territórios dos devaneios e sonhos que, apesar de todos
os enigmas e mistérios armazenados no inconsciente, se fundamentam na necessidade de criar
uma zona de repetições reconhecíveis. “A casa é um corpo de imagens que dão ao homem
razões ou ilusões de estabilidade” (BACHELARD, 2008, p. 208). Isso, de certa forma, tece
um padrão para as projeções aleatórias que é impresso nestes quadrinhos, uma padrão de
devaneios, mas ainda assim, um padrão.
Os padrões se constituem muitas vezes como ritualidades do dia-a-dia,
sequecialiadades cotidianas dentro das casas que seus moradores lançam mão para determinar
as mensurações subjetivas e assim domar o devir. Em 1959, uma mulher pergunta ao marido
se pegou suas chaves, os relógio e a carteira, essa cena se repete várias vezes com os mesmo
personagens por anos. Outros personagens, em épocas diferentes, se preocupam também em
não esquecer os mesmos objetos, representando ser uma preocupação de vários moradores da
casa ao longo do tempo.
Figura 27: Página de Aqui de Richard McGuire.

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887

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

A chave, o relógio e a carteira são signos que conseguem configurar de forma bem
precisa a tentativa dessa estabilidade e controle. A chave que tranca, protege propriedades e
permite a entrada nesses espaços confinados, o relógio que auxilia no controle do tempo e do
devir e a carteira com documentos e dinheiro. McGuire reforça a importância desses três
objetos na passagem do “programa de reconstrução e visualização”, quando a guia usa o
dispositivo para projetá-los no céu e explicar suas funções.
Essas representações de seguranças configuradas pelas paredes da casa refletem a
volúpia humana de refugiar-se dentro da própria mente, aninhado-se nas memórias seguras e
aconchegantes. Pois, “as lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das
lembranças da casa” (BACHELARD, 2008, p. 201). Embora, muitas vezes, o mundo exterior
se lança para dentro das zonas de conforto.
Por exemplo, em uma sequência, um nativo, em 1609, conta a história de um fera
selvagem que devora pessoas; na mesma página, em 1997, um homem no escuro adentra pela
janela furtivamente. O nativo continua contando a história nas próximas páginas, e em 1998,
uma adolescente lê seu livro sentada no sofá da sala, enquanto um pássaro canta

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888

incessantemente. A menina coloca a cabeça para fora, grita com o animal que invade a sala e a
personagem foge assustada.
As paredes arquitetadas da casa, reais ou virtuais, oferecem a sensação de fortaleza e
proteção para com as experiências externas, aquilo que é de fora sempre assusta mais, porque
está mergulhado no incerto. Todavia, a experiência interna, por ser fragmentada e dispersa,
também está imersa no aleatório e no incerto, tudo aquilo que se edifica para domar o devir é
ilusão. McGuire representa bem isso em suas páginas quando sobrepõe requadros que recriam
ritornelos de tempos em que a casa nem existia ou não existirá mais e o espaço interno é
invadido pelas forças do mundo externo.
Dessa forma, as páginas de Aqui, que recriam o funcionamento da consciência
humana, sobrepondo e justapondo memórias e devaneios, criando ritornelos territoriais que
resultam em uma narrativa enviesadas, são enclausuradas periodicamente no espaço de uma
casa na tentativa de domar o devir inconstante da realidade. Nesse meio de projeção, o leitor
“vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos''
(BACHELARD, 2008, p. 201).
McGuire encontrou soluções para sua história em quadrinhos que a torna uma
narrativa com ramificações sígnicas e intermidiáticas tão abrangentes que se lançam muito
além das fronteiras da mídia quadrinhos. Nas construções semióticas do canto da sala as
relações com arquitetura, por exemplo, que já foram debatidas anteriormente, dialogam com
outra mídia artística contemporânea, a instalação. Instalação é uma linguagem artística que se
caracteriza pela apropriação de um ambiente e a criação de um espaço de interação com o
espectador. Essa aproximação com a proposta de Aqui se dá tanto pelas articulações
arquitetônicas, quanto pela inserção do leitor dentro das paredes da casa.
A instalação, que se tornou umas das mídias artísticas mais difundidas em meados do
século XX, apareceu pela primeira vez em uma proposta de Kurt Schwitters em 1923, que
transformou seu apartamento utilizando fragmentos de madeiras e papel em uma obra abstrata
chamada Casa Merz. É uma materialidade intermidiática que combina elementos da artes
visuais e da arquitetura e propõe experiências tridimensionais, bidimensionais e sensoriais.
Sua base de construção se centra nas narrativas edificadas em torno dos discursos do espaço e
da estética arquitetônica, e nas definições históricas e sociais dos lugares.
A arquitetura, de um modo geral, sempre se configurou como uma obra tridimensional
produzida e organizada como forma de delimitação de espaços de convivência e para práticas
de atividades domésticas e íntimas dos indivíduos. O objetivo básico da instalação é a imersão

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889

do espectador nas experiências propostas pelo artista, a narrativa se constrói não só pelos
objetos instalados neste espaço, mas também, sua configuração geométrica e ergonômica.
Tendo em vista as possibilidades intermidiáticas desta narrativa enviesada, McGuire
propôs transpor as páginas de Aqui em instalações para o museu Angewandte Kunst em
Frankfurt, Alemanha, no ano de 2016. A instalação recebeu o nome de Tempo espaço, depois
de “Aqui” (tradução nossa). A página dupla do romance gráfico foi materializada em duas
paredes oblíquas reais e os requadros sobrepostos e justapostos foram remediados em formas
de telas. O espectador consegue adentrar no espaço e interagir com os elementos organizados
no canto da sala.

Figura 28: Instalação Time Space, After “Here” de Richard McGuire no Museum
Angewandte Kunst de 2016.

Fonte:
Disponível em https://www.richard-mcguire.com/new-page-4 acesso e 07/11/2021

Essa transposição midiática atesta as possibilidades narrativas da premissa de Aqui,


pois se fundamenta em elementos tão arraigados na consciência humana. A instalação oferece
a mesma experiência de simultaneidade de tempo e espaço em outra materialidade,
basicamente, as mesmas potencialidades semiológicas são acessadas. No entanto, é importante
salientar que a virtualidade é mais potente nas páginas dos quadrinhos que na instalação.
O canto da sala como medula espinhal é o que confere dicotomicamente uma

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singularidade e uma universalidade para as representações dessa narrativa enviesada. Pois


registra momentos únicos em tempos tão diferentes, ricos em significação, mas que estão
imersos no ordinário e particular. Assim, McGuire cria uma grande narrativa nesse romance
gráfico que se ocupa em exaltar a beleza das pequenas coisas da vida, pois é disso que a
verdadeira história da humanidade é feita.

3.3 Aqui: é o Não-lugar

Se o uso do advérbio de lugar como título no Romance Gráfico de McGuire pretende


determinar uma localização, tanto física quanto metafórica, as múltiplas projeções na
composição das páginas que dançam frente aos olhos do leitor, do contrário, parecem lançá-lo
ao indeterminado. Essas duas proposições dicotômicas estabelecem um dos fatores mais
intrigantes dessa história em quadrinhos, pois cogitam esse lugar virtual e multidimensional
que oscila entre o existente e o imaginário.
Ainda que se possa insistir que McGuire determina sim um lugar fixo, pois apesar das
múltiplas projeções de tempo, o espaço é sempre o mesmo. E de fato, é sempre o mesmo
enquadramento que se oferece ao leitor e é nesse plano que os elementos narrativos são
organizados. No entanto, quando se fala de espaço e de lugar, não se refere exatamente à
mesma coisa, essas palavras, dependendo da maneira que são lidas, não são sinônimos.

O termo espaço em si mesmo é mais abstrato do que o de lugar, por cujo


emprego referimo-nos, pelo menos, a um acontecimento (que ocorreu), a um
mito (lugar-dito) ou a uma história (lugar histórico). Ele se aplica
indiferentemente a uma extensão, uma distância entre duas coisas ou dois
pontos deixa-se um "espaço" de dois metros entre cada moirão de uma
cerca), ou a uma grandeza temporal ("no espaço de uma semana") (AUGÉ,
1994, p. 77).

Espaço é um construto formal, determinado geometricamente por pontos e linhas, é o


plano da composição anterior a própria composição, já o lugar é um espaço figurado,
perpassado por um discurso, por uma representação e por algumas falas. A construção da
cultura de qualquer povo parte da designação de identidade de lugares, ou seja, de espaços que
se tornam referenciais de memórias, práticas e pertencimento. “O lugar se completa pela fala,
a troca alusiva de algumas senhas, na conivência e na intimidade cúmplice dos locutores”
(AUGÉ, 1994, p. 73).
Neste sentido, espaços de convivências e de atividades humanas, com o passar do

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891

tempo, transmutaram-se em lugares carregados de significados que narram a história de cada


comunidade. A ocupação das cavernas pelo homem primitivo, que nasce da necessidade de
proteção e abrigo e aos poucos se torna um espaço de identificação e pertencimento, denota a
construção do discurso em torno da definição de lugar. Com o decorrer dos séculos, lugares se
tornaram territórios retóricos que carregam mensagens que estão além de seu construto
material, geométrico e formal.
Em uma comparação com a gramática dos quadrinhos, o requadro e a página no
sentido formal, enquanto extensão e plano, podem ser considerados espaços. É sobre esses
meios geométricos que o quadrinista propõe seu território expressivo, ou seja, a composição
das cenas e diálogos dentro desses espaços estabelecem os lugares dos quadrinhos. Como já
foi debatido, é pelo reconhecimento desses territórios que o leitor determina os parâmetros da
conclusão, na captura dos ritornelos produzidos pelos requadros e pelo layout de páginas.
Seguindo esse raciocínio, McGuire, ao que tudo indica, procura traçar um comentário
aprofundado sobre lugares, principalmente no que tange à desterritorialização. Ao representar
em páginas duplas, simultaneamente, distintas modulações de um espaço, cria uma
composição não convencional das histórias em quadrinhos, e assim desloca e desconstrói
meios e elementos da narrativa quadrinizada. Aqui gera ao leitor, contraditoriamente, o
reconhecimento e o estranhamento de territórios, uma construção ambígua e contraditória que
produz uma experiência de não-lugar.
Augé (1994) propõe o termo “não-lugar” para o espaço que não se torna identitário,
pois a relação que estabelece com o indivíduo é efêmera e contraditória a ponto de não
desenvolver um sentimento de pertença. É o espaço cujo discurso não se constitui como algo
arraigado nas construções culturais, sociais e históricas e se estabelece apenas no âmbito do
acontecimento, do momento, do passageiro. Segundo Augé:

Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um


espaço que não pode se definir como identitário, nem como relacional, nem
como histórico, definirá um não lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a
supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são
em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade
baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes repertoriados,
classificados e promovidos a "lugares de memória", ocupam aí um lugar
circunscrito e específico (1994, p. 73).

Em tempos em que debates sobre mobilidade urbana, falta de moradia, refugiados e


ciberespaço se tornaram muito frequentes, a noção de pertencimento aos lugares passa a ser

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um fator ou problemático ou ignorado. Cidades que, ao longo do tempo, estabeleceram


elementos mnemônicos que refletem sua história e suas tradições, passam aos poucos por uma
espécie de desapropriação. Diante do crescimento urbano desordenado, as tentativas de
reurbanização que, muitas vezes, recorrem a processos de gentrificação, resultam em uma
desapropriação de boa parte dos seus moradores e o apagamento de memórias.
Além disso, Augé afirma que a supermodernidade, termo que o antropólogo utiliza
para se referir a uma modernidade de excessos, produz “um mundo assim prometido à
individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero” (1994, p. 74). Espaços
como aeroportos, rodoviárias, estações de metrôs, franquias de hotéis, redes de supermercados
e albergues estabelecem com os seus habitantes uma relação contratual gerada por bilhetes,
ingressos e documentos. Não se cria um pertencimento permanente e determinante, não
gerando experiências capazes de produzir grandes narrativas.
A condição sígnica desse habitante provisório e passageiro do não-lugar dialoga com a
ideia de Benjamin do narrador que constrói sua história pelos fragmentos das civilizações,
principalmente, por não se configurar nem como o viajante que colhe as experiências de
muitos lugares, nem como o camponês que conhece todas as memórias do lugar no qual está
afixado. O não-lugar não é definitivamente infértil de experiências, mas a conexão
estabelecida com seus habitantes não produz mais do que narrativas fragmentadas e não
lineares.
A força do discurso, seja fruto de uma particularidade ou de uma memória coletiva,
que transforma um espaço em lugar, elabora um construto semiótico que não se esgota
facilmente. Uma construção destinada a espaço de fé, mesmo que depois de um tempo deixe
de servir a esse propósito, sempre carregará a iconografia religiosa incrustada em suas paredes.
“O lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente
apagado e o segundo nunca se realiza totalmente ― palimpsestos em que se reinscreve. sem
cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação” (AUGÉ, 1994, p. 74). Neste sentido, o
lugar é o patrimônio de uma comunidade, estabelecido por uma condição histórica e o não-
lugar ou é anterior a um fenômeno cultural ou não define parâmetros significativos a ponto de
gerar pertencimento.
De fato, por uma perspectiva mais coloquial e básica, espaços primitivos ou anteriores
à presença humana são ligeiramente determinados como não-lugares, por não se configurarem
como lugares supostamente civilizados. Pois, não há ali elementos mnemônicos suficientes
para serem reconhecidos como constructos simbólicos e históricos de uma comunidade ou

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893

civilização.

Figura 29: Página de Aqui de Richard McGuire.

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

Como na imagem acima, em algumas composições de páginas, McGuire projeta


lugares ermos anteriores ou posteriores à construção da casa em Aqui. No objetivo de narrar
uma história que vai além dos acontecimentos da casa, McGuire apresenta alguns momentos
em que o espaço se configura apenas como um terreno vazio ou quando era habitado por
nativos norte-americanos ou até muito antes de haver vida na Terra. Aparentemente, a ideia é
demonstrar como o lugar que ocorre a narrativa é, antes de tudo, apenas um espaço, num
sentido abstrato e de primeiridade.
As representações de paisagens de bilhões de anos antes de Cristo, quando não havia
nem mesmo atmosfera, apenas um espaço vazio, sem forma de vida, remete a essa paisagem
primordial, com o potencial de gerar toda a natureza, mas que ainda jaz no silêncio e na não
existência. Essas cenas abstratas, nas quais há apenas cores e formas, rascunhos do que virão a
ser paisagens naturais, configuram-se como não-lugar na medida em que não oferecem
elementos a serem rememorados e significados, pois a história e a cultura ainda não os

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894

alcançaram. Compreende-se essa oposição, pois Augé se refere ao “lugar do sentido inscrito e
simbolizado, o lugar antropológico” (1994, p. 76), enquanto que essas paisagens são
desprovidas dessa influência antrópica.
No entanto, por conta da natureza múltipla e simultânea da narrativa de Aqui, pela
qual se observa mais de uma dimensão temporal no mesmo enquadramento, possibilita-se ao
leitor contemplar virtualmente a presença humana em um cenário em que a vida não seria
possível. Deste modo, essa capacidade de gerir condições ambivalentes de presença e da
ausência é mais um dos fatores que torna a narrativa enviesada proposta nas páginas dessa
história em quadrinhos propícia a cogitar o não-lugar. Mas, também não se esgota apenas
nessa característica.
Pois, mesmo em cenários em que a presença humana é verificada, seja tanto num
sentido inicial e primitivo, como no caso dos nativos norte-americanos, quanto no auge da
civilização contemporânea, como no momento em casa figura como ponto central, a relação
do leitor com as informações desses lugares ainda é efêmera e fragmentada. Como já citamos
anteriormente, McGuire, ao propor uma narrativa que não se solidifica plenamente e opera no
campo da sugestão, consolida, tanto personagens, quanto leitor, como visitantes passageiros
dessa longa história desse espaço.

O espaço como prática dos lugares e não do lugar procede, na verdade, de


um duplo deslocamento: do viajante, é claro, mas também. paralelamente,
das paisagens, das quais ele nunca tem senão visões parciais, "instantâneos",
somados confusamente em sua memória e, literalmente, recompostos no
relato que ele faz delas ou no encadeamento dos slides com os quais, na
volta, ele impõe o comentário a seu círculo (AUGÉ, 1994, p. 80).

O narrador de Benjamin é mais uma vez invocado, tanto no conceito do viajante,


quanto no coletor de sucatas, uma vez que McGuire designa essa condição aos personagens e
ao leitor que transitam entre as páginas de maneira passageira e parcial. Essa múltipla projeção
descontinuada, somada à perspectiva oblíqua, oferece ao leitor um vislumbre fragmentado dos
lugares enquadrados nas páginas duplas, nas quais as informações não são completas,
lançando-as ao mistério. Do contrário do lugar da memória construído por discursos culturais
e históricos, esses espaços são desapropriados dos viajantes (personagem e leitor), pois seus
elementos não se definem por completo.

Figura 30: Página de Aqui de Richard McGuire.

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895

Fonte: McGUIRE, 2014, s/p.

Sendo assim, essa narrativa provisória, efêmera e fragmentada se configura tanto no


conjunto de requadros com histórias múltiplas e simultâneas, quanto nas parcas informações
que cada requadro oferece. Portanto, o conceito do não-lugar está presente no requadro da
paisagem de 3,5 bilhões de anos, pois há apenas o vazio, bem como na cena da mulher que
nada no rio que havia ali em 1352, pois não há informações a mais sobre esse personagem, e
na cena da janela em 1999, porque a cortina oculta a paisagem. Em todas essas situações, o
leitor vive uma experiência de deslocamento, pois ao colher os escassos elementos de cada
lugar, aprofundam-se nas narrativas a partir dos seus ritornelos particulares, ou seja, conclui as
histórias por meio de sua memória.
De certa forma, portanto, em Aqui, nem personagem, nem leitor habitam as páginas a
ponto de gerar pertencimento, estando ambos de passagem por este espaço. Augé define de
maneira bastante precisa sua ideia ao afirmar que “por não-lugar designamos duas realidades
complementares. porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte,
trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços” (1994, p.
87). Ou seja, são lugares de passagens com objetivos precisos e a relação com os indivíduos se
dá por condição eventual a ponto de não se arraigar culturalmente.
Nesse paralelo, a ideia de habitar as páginas e dela se apoderar é algo desapropriado

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896

do leitor por McGuire, já que a fragmentação e a não linearidade dessa narrativa enviesada
deslocam o controle absoluto de leitura. É claro que essa é uma afirmação um tanto arbitrária,
uma vez que o leitor ou um espectador, diante de uma obra, se apropria de seus elementos e os
reconfigura segundo sua experiência externa. Mas, esse processo, de fato, se torna muito mais
facilitado em um texto em que as descrições das cenas são detalhadas e diretas ou uma pintura
com uma perspectiva central, isto é, em uma narrativa linear.
Segundo Canton, é próprio das narrativas enviesadas essa construção de tramas que
não se resolvem facilmente e que não tenham seus sentidos fechados em si mesmo, o que torna
a leitura da composição um pouco mais complexa. E desse modo, o habitar nas páginas, que é
fruto de uma captura e decodificação mais ampla dos elementos, não ocorre plenamente. Por
isso, é possível traçar esse paralelo entre o não-lugar de Augé, esses lugares de passagem, no
quais os viajantes não se apoderam do discurso do espaço com as páginas de Aqui, nas quais o
leitor é também um viajante e se apodera do que pode dessa narrativa fragmentada e parcial.
Além disso, em se tratando do romance gráfico de McGuire, as definições do não-
lugar partem tanto da construção das páginas virtuais e multidimensionais quanto da própria
materialidade intermidiática da obra. De certo modo, pensar em intermidialidade é pensar em
um não-lugar das mídias, pois ao cruzar fronteiras midiáticas, as materialidades passam a
ocupar um lugar que não é aquele estabelecido pela tradição e a academia.
E é nesse não-lugar midiático que a obra de McGuire se insere, na apropriação e
remediação de elementos e recursos das literatura e das artes visuais em uma narrativa
enviesada que debate a história humana focando no cotidiano e doméstico. É nesse não-lugar,
fora das hierarquias midiáticas, deslocada da necessidade de afirmação artística das histórias
em quadrinhos que o romance gráfico Aqui encontra seu lugar como materialidade que supera
os moldes convencionais de leitura.

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DEPOIS: CONSIDERAÇÕES

Por recorrer ao conceito da intermidialidade, o estudo comparativo das linguagens


artísticas se torna, de certo modo, um tanto facilitado, principalmente pelo fato que
determinadas hierarquias são superadas. A análise horizontal das materialidades, ao serem
compreendidas no conceito de mídia, oferece um entendimento desprovido da sacralização
presente em outros momentos da história da arte e da literatura. E a partir dessa abordagem, é
possível pensar obras literárias e artísticas produzidas a partir de fontes não tradicionais e/ou
acadêmicas.
Por conta dessa perspectiva, as histórias em quadrinhos, que desde sempre ocuparam
um lugar estritamente relacionado à cultura pop e assim, sendo relegadas, muitas vezes, a
mero subproduto da literatura e da arte, recebem o olhar analítico mais apurado. Isso ocorre,
principalmente, após o advento do romance gráfico, pois a liberdade de criação que dispõe os
criadores desse sub gênero dos quadrinhos que, por não estarem vinculados de forma tão
sistemática ao mercado, oferece a possibilidade de explorar experiências narrativas mais
impactantes. No entanto, essa condição não deve, de modo algum, gerar uma segregação aos
quadrinhos mais convencionais. Do contrário, deve servir como pressuposto para estudos mais
sérios sobre histórias em quadrinhos em geral, desprovidos de um olhar hierarquizante,

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898

levando em consideração o potencial das narrativas quadrinizadas.


O objetivo deste estudo é arquitetar um panorama teórico e analítico dos quadrinhos
por meio da materialidade do romance gráfico, mas em nenhum momento deve se tomar essas
produções como únicas representantes de uma arte genuína em detrimento da revista em
quadrinho mensal ou quinzenal. A atitude de Eisner ao cunhar esse termo foi uma tentativa de
atribuir peso literário aos quadrinhos, todavia, é necessário salientar que as histórias em
quadrinhos em geral não necessitam de legitimação artística.
A abordagem embasada nos estudos de Eisner e McCloud sobre os quadrinhos oferece
um clareamento acerca dos pressupostos estéticos da narrativa gráfica, por exemplo, os
desdobramentos sígnicos e rítmico da composição das páginas e as articulações intermidiáticas
na combinação das artes visuais e da literatura. Essas construções, como já esclarecido ao
longo do texto, não são exclusividade dos romances gráficos, mas sim de toda a produção
quadrinizada. E, sendo assim, os quadrinhos já possuem um aporte teórico para defini-lo como
uma mídia artística genuína e completa.
O romance gráfico é tomado aqui como corpus por se tratar de um categoria que
potencializa as narrativas enviesadas das histórias em quadrinhos, por propor processos
intermidiáticos ainda mais experimentais. Por essa natureza experimental, transita na esteira da
arte híbrida e conceitual, uma tendência cada vez mais explorada na contemporaneidade. Pelas
concepções dessa vertente artística, a materialidade das produções contemporâneas se
legitimam não por um viés categórico (por ser literatura, por ser artes visuais, por ser história
em quadrinhos), mas sim por uma viés existencial. São narrativas que possuem auras e
existem no aqui e agora, criam e recriam tramas que se conectam com a vivência do leitor e do
espectador, gerando experiências estéticas únicas e verdadeiras.
McCloud afirma que os quadrinhos talvez sejam a forma de arte que mais ficou
fechada em uma caixa reduzida nos últimos cem anos e que, nesse momento, em meio às
experimentações intermidiáticas da contemporaneidade, os quadrinhos podem alcançar o
potencial artístico a que foram destinados. Muito antes da criação de Yellow Kid, as artes
sequenciais já habitavam o imaginário visual das civilizações, dos murais egípcios à coluna de
Trajano, dos folhetos medievais com as histórias dos santos aos manuscritos dos samurais.
Desde muito tempo, artistas, artesãos e escribas seguiram explorando as potencialidades do
que viria ser os quadrinhos. Todavia, no mesmo momento que essa prática narrativa é
nominada e classificada, seu campo de atuação e criação é também restrito e limitado.
Ainda há muito a ser feito para que os quadrinhos consigam verdadeiramente deixar o

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patamar de arte secundária, tanto no imaginário popular, quanto na comunidade acadêmica. Há


um avanço lento, mas contínuo, do debate acerca desta mídia em questão com pressupostos
mais sérios que demonstram uma preocupação mais contundente de incentivar a prática e a
difusão dos quadrinhos.
Mesmo com produções inovadoras e vanguardistas como Little Nemo in the
Slumberland de Winsor McCay e Spirit de Will Eisner, a força mercadológica dos quadrinhos
de aventura e de super-heróis encerrou a compreensão das narrativas quadrinizadas a mera
sub-literatura voltada para crianças e adolescentes. Sendo assim, o romance gráfico, para além
de uma tentativa de elitização, deve ser uma tentativa de ampliar o horizonte dos processos
criativos das histórias em quadrinhos. E um caminho factível é explorar cada vez mais os
cruzamentos de fronteiras engendrados pelos processos intermidiáticos naturais dos próprios
quadrinhos.
Pois, apesar de ter gerado essa condição de objetos apenas vendáveis, o mercado de
quadrinhos também contribuiu para a consolidação desta mídia como objeto de percepção de
certas condições humanas. Por exemplo, ao utilizar o imaginário do cidadão comum como
base fundamental para edificação de seus personagens, o mercado lançou os alicerces para
essas alegorias que podem ser encaminhadas para um debate mais agudo sobre a sociedade
contemporânea, seus medos, seus anseios e suas representações. Dessa imitação social, foi
possível a linguagem gerar arquétipos que se configuraram em uma nova mitologia moderna
que remete a conceitos antropológicos ancestrais.
Ao difundir popularmente os elementos da mídia em questão, tornaram-se
identificáveis a ponto de se arraigar no inconsciente coletivo e, com isso, abriram-se as portas
para os criadores se apropriarem de outros elementos advindos da ciência, da filosofia e de
outras áreas da Arte. Abrangendo essa miríade de informação, e por se tratar de uma prática
que une palavra e imagem, os quadrinhos alcançam um nível de abstração e síntese da
fenomenologia que, talvez, seja mais difícil para outra linguagem. A conexão de artes visuais e
literatura se torna inconsciente, oferecendo ao leitor uma probabilidade vasta da captura dos
elementos distintos na composição, que são unificados nesse processo gestáltico.
Desta forma, este estudo, ao analisar a obra de Richard McGuire, possibilita
descortinar as relações intermidiáticas nos cruzamentos das linguagens literárias e visuais nas
práticas de comunicação do tempo e do espaço. Pois, percebeu-se que certas construções
próprias da ordenação sequencial da literatura e da justaposição enquadrada da pintura podem
ser desconstruídas e ressignificadas nas páginas de uma história em quadrinhos, tanto

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8100

convencional, quanto em um romance gráfico. Em Aqui, a articulação dos elementos que


compõem o vocabulário próprio dos quadrinhos em prol da simultaneidade dos fragmentos de
momentos distintos em uma mesma perspectiva, consegue remediar as representações e
compreensões do tempo e do espaço.
McGuire oferece, por meio de sua narrativa não linear e múltipla, ao desconstruir
sequencialidade cronológica e a hierarquia de leitura do requadros, uma experiência de
multidimensionalidade do tempo, na qual o leitor contempla cenas de anos diferentes no
mesmo enquadramento. O leitor, assim como todos os personagens que transitam naquele
espaço representado em Aqui, é um mero observador de acontecimentos que em suas
particularidades podem ser considerados únicos, mas que, diante da História são apenas
efemeridades.
Esse caráter corriqueiro e efêmero se solidifica na edificação da casa que figura por
alguns anos nesse espaço selecionado por McGuire, o que evidencia a narrativa extraída das
experiências cotidianas. O canto da casa invoca representações conectadas à intimidade do
caseiro, imagens que operam na simplicidade e no instintivo, na busca de ver a beleza em
momentos únicos. A casa oferece elementos mnemônicos que fazem o leitor rememorar suas
próprias vivências, suas próprias histórias caseiras, sua própria casa onírica.
A casa onírica é uma configuração rica em processos narrativos, pois é a matéria
prima de muitos sonhos. O autor deste texto, por exemplo, por anos teve sonhos recorrentes
sobre mudanças de casa e residências que viveu. E quase todos os sonhos, havia a lembrança
de outras casas que se sobrepunha àquela casa na qual se encontrava. A casa onírica é a própria
solidificação arquitetónica da nossa memória.
As páginas de Aqui projetam uma experiência estética que dialoga com o
funcionamento da consciência humana e que aglutina a captura sensível do momento e dos
ritornelos invocados pela memória. O funcionamento da mente e as articulações com o devir
das modulações do espaço-tempo é arquitetado de uma maneira intrigante e fascinante. E esse
fato impulsiona o leitor a questionar, dentro da narrativa, o que se considera real e presente,
tornando o título do romance gráfico quase contraditório.
É por conta dessa característica específica que a narrativa funciona de forma única nas
páginas de uma história em quadrinhos, pelo fato de que imagens, palavras e elementos
gráficos podem ser justapostos, sobrepostos e serem agrupados pela capacidade de conclusão e
conexão gestáltica. McGuire até produziu outras materialidades com a mesma premissa de
Aqui (como foi no caso das instalações no museu Angewandte Kunst) que propiciaram bons

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exercícios estéticos, no entanto, nas páginas dos quadrinhos a projeção virtual e a captura
gestálticas dos elementos tornam a experiência ainda mais potente. Uma vez que toda a
formatação do romance gráfico tanto no layout das páginas, quanto no projeto gráfico colabora
para a construção dessa narrativa enviesada.
A força da narrativa quadrinizada construída por McGuire parece ser a concretização
do que McCloud acredita que uma história em quadrinhos deve alcançar. Pois se consolida
como uma materialidade que oferece uma narrativa aprofundada nas relações humanas e nas
potencialidades intermidiáticas. É nesse caminho, fortalecendo-se como obra artística única e
autêntica, sem necessitar pagar tributo a nenhuma outra mídia, que as histórias em quadrinhos
poderão ser vistas com a seriedade que merecem.
Sendo assim, espera-se que tanto o romance gráfico Aqui , quanto esta pesquisa abram
as portas para um olhar mais apurado da academia, da comunidade artística, dos produtores de
cultura e de gestores escolares acerca do estudo e difusão das histórias em quadrinhos. Pois,
conclui-se com este trabalho que se trata, sem dúvida, de uma mídia que amplia o conceito de
leitura ao descortinar as relações intermidiática de artes visuais e literatura.

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