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MESTRADO
CASCAVEL – PR
2021
LUIZ CARLOS MACHADO
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CASCAVEL – PR
2021
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Ficha catalográfica
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MESTRADO
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em Letras e
aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras –
Nível de Mestrado, área de Concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Acir Dias da Silva
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Orientador
____________________________________________
Profa. Dr Norival Bottos Junior
Norival Bottos Júnior
Universidade Federal do Amazonas (UFAM
Membro Efetivo (convidado)
_____________________________________________
Profa. Dr Antonio Donizetti da Cruz
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Membro Efetivo
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RESUMO
MACHADO, Luiz Carlos. The Intermediatics and Biaseds Narratives of the Graphic
Novel Here of Richard McGuire. Dissertation (Masters in Letters) - Graduate Program in
Letters, Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Cascavel, 2021.
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ABSTRACT
The research presented here focused on the study of intermediality, a concept that designates
the interweaving of media and overcoming media boundaries, aiming to analyze the biased
narratives of Richard McGuire's Graphic Novel Here (2014). From this proposed analysis, the
following question arises: Can the Graphic Novel, taken by the bias of a skewed narrative, be
proposed as an intermediate materiality that breaks the boundaries of literary and visual media
and expands reading possibilities? With the purpose of finding an answer to this questioning,
the general objective is to examine the intermediate narratives of the graphic novel, in order to
understand its aesthetic resources that aim to transpose the limits of languages, supports and
reading hierarchy. In the perspective of reaching the proposed objective, the research is
supported by the theoretical assumptions of intermediality by Rajewsky (2012), Clüver (2011),
Moser (2006), the concept of biased narratives by Canton (2009) and the studies on History in
comics and Graphic Novel by Eisner (1999) and McCloud (2005). It is, therefore, a research
based on comparative literature, of a qualitative nature. As a result of this research process, it
was understood that the Graphic Novel seems to be a materiality that proposes an intermediate
and biased narrative that offers a possibility of wide, open and conceptual reading.
SUMÁRIO
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ANTES 10
PRIMEIRAMENTE: A INTERMIDIALIDADE DO ROMANCE GRÁFICO 16
1.1 Ontem e Hoje: Conceituações da intermidialidade 16
1.2. Juntos: Romance Gráfico como combinação de mídia 25
1.3 Além: um cruzamento de fronteiras entre Artes Visuais e Literatura 38
EM TEMPO: ROMANCE GRÁFICO COMO NARRATIVAS ENVIESADAS. 46
2.1 Através: o conceito de Narrativa enviesada 46
2.2 Sempre e nunca: uma narrativa não linear entre mídias 52
2.3 Dentro: os elementos compositivos como recursos midiáticos 59
3. POR FIM: AS NARRATIVAS INTERMIDIÁTICAS DO TEMPO E DO ESPAÇO 68
3.1 Onde e quando: as representações do tempo e do espaço em Aqui 68
3.2 Lá: as narrativas do canto de uma sala. 81
3.3 Aqui: é o Não-lugar 93
DEPOIS: CONSIDERAÇÕES 101
REFERÊNCIAS 106
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ANTES
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Optou-se por usar o termo em português, como passou a ser usado no mercado de quadrinhos brasileiro a partir
dos anos 1990, pelo motivo de abordar dois conceitos mais acessíveis no estudo da literatura, o romance e no
estudo das artes visuais, o gráfico.
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do autor até a relação com o observador, tudo se torna mídia que não se delimitam em uma
ordem cronológica ou uma hierarquia de intenção.
Desse modo, propõe-se como objeto de análise desse estudo o romance gráfico Aqui
de Richard McGuire (2014), por se tratar de uma obra com caráter experimental que apresenta
uma narrativa desconstruída, não linear e múltipla. O quadrinista explora representações do
tempo e do espaço utilizando regências da literatura e das artes visuais e articulando todos os
ícones das suas páginas em elementos narrativos.
A partir disso, essa pesquisa propõe o seguinte questionamento: O romance gráfico,
tomado pelo viés de narrativa enviesada, pode ser proposto como materialidade intermidiática
que, ao romper as fronteiras das mídias, sobretudo da literatura e das artes visuais, apresenta
estratégias narrativas que ampliam, constitutivamente, os moldes convencionais e as
possibilidades de leitura?
Esta pergunta emerge diante de um necessário debate sobre linguagens artísticas que,
por figurarem em meio a cultura pop, ainda habitam um campo indefinido academicamente.
Os romances gráficos por serem história em quadrinhos, muitas vezes, parecem ser tomados
como subprodutos na relação com a literatura. Na biblioteca de teses e dissertação da
Unioeste (Universidade Estadual do Paraná), não foi encontrado nenhuma pesquisa específica
sobre romance gráfico, apenas alguns trabalhos sobre histórias em quadrinhos em geral e na
sua maioria, análises discursivas e não estéticas. Enquanto no catálogo da CAPES,
encontramos 12104 pesquisas, demonstrando ser um tema de bastante engajamento, tanto para
estudantes de letras/literatura, quanto de artes visuais. No entanto, em muitos trabalhos, o
termo aparece como sinônimo para histórias em quadrinhos.
E isso parece ocorrer também com outras linguagens geradas por combinações de
mídias como o cinema, as séries de TV e o vídeo game. Rajewsky apresenta a
intermidialidade como um conceito que busca articular as relações midiáticas, focando nas
fronteiras geradas pela tradição acadêmica e que determinam o campo de atuação de cada
área. E assim consolidando a individualidade de cada uma dessas novas mídias em uma
horizontalidade de importâncias às mídias tradicionais.
Pelo catálogo de dissertações e teses da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior) foram encontrados 261 resultados para intermidialidade, sendo
202 dissertações de mestrado e 59 teses de doutorados. No entanto, a maioria dos trabalhos
citam a intermidialidade como um dos elementos da interculturalidade e da intertextualidade e
não como um conceito independente. Pelo fato de ser um termo recente e pouco explorado
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pelas academias, muitas vezes é abordado de forma equivocada ou reducionista. Além disso,
percebe-se que é uma área de interesse maior para estudantes de Arte visuais e cinema, do que
letras e literatura.
Para Clüver (2007), as linguagens, técnicas, suportes e processos que integram o
panteão das artes são mecanismos portadores de mensagens, que se desenvolveram anexadas
à evolução da humanidade. Todas as mídias individuais e tradicionais foram também geradas
pela combinação e interação de outras que as precederam. Por isso, pensar nas linguagens
como mídias e que se inter-relacionam desde os primórdios do conhecimento humano é um
caminho factível.
A escolha do romance gráfico como objeto de estudo se dá por ser um gênero mais
experimental de histórias em quadrinho, que são combinações de mídia que melhor
desenvolvem o processo de remediação apresentado por Rajewsky. Desta forma, proporciona
um corpus que potencializa uma análise mais profunda do processo da quadrinização, pois
explora em sua construção todos os recursos e fundamentos deste meio de expressão.
Ademais, esta forma de arte em questão parece ser um tipo ideal do que Canton apresenta em
seu conceito de narrativas enviesadas. Por se tratar de trabalhos experimentais que escapa das
definições casuais de uma história em quadrinhos, oferece uma experiência narrativa única e
dialoga com as características das obras conceituais contemporâneas que abandonam as
divisas territoriais das linguagens.
O termo narrativas enviesadas de Canton consegue, também, sintetizar duas das
características mais intermidiáticas das Artes Visuais e da literatura contemporânea: a
transformação de todos os elementos da obra em mídias e o rompimento dos limites das
linguagens. Particularidades estas que se desenhavam desde os poemas tipográficos de
Mallarmé, desembocaram na libertação da representação do real das vanguardas modernas e
se concretizaram na arte conceitual contemporânea. Refletir a proposta da autora pode
contribuir na compreensão e definição dos processos de intermidialidade, sobretudo nos dois
pontos citados acima.
Esta pesquisa parece ser uma boa contribuição à área dos estudos comparados de
Literatura pois pretende descortinar as relações semióticas e discursivas que imagem e palavra
estabelecem na constituição de uma narrativa gráfica. Signos evocados nos procedimentos de
uma obra quadrinizada são comuns nas práticas tanto das Artes Visuais e Gráficas quanto na
literatura, que transitam entre o abstrato, a representação do real, o simbólico e o cultural.
Refletir sobre esses parâmetros é um sério tributo ao debate da Arte como teoria do
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conhecimento. Por isso, é importante salientar que uma forma de registro como quadrinhos
que é capaz de unir elementos de diversas linguagens precisa ter uma atenção mais
consistente da academia, sobretudo das escolas de letras e literatura.
Diante desses pressupostos, este trabalho apresenta como objetivo central: examinar os
processos intermidiáticos do romance gráfico, pela utilização do conceito de narrativas
enviesadas e a intermidialidade, a fim de compreender seus recursos estéticos que objetivam
transpor os limites das linguagens, suportes e hierarquia de leitura.
A partir disso, especificamente, procura-se estudar o aporte teórico sobre
intermidialidade, por meio de revisão bibliográfica, no intuito de verificar o cruzamento das
fronteiras da arte visual e a literatura no estudo do Romance Gráfico. Bem como, analisar as
configurações do Romance Gráfico em questão sob o olhar de Katia Canton em seu conceito
de narrativas enviesadas, a fim de problematizar a transformação de elementos compositivos
da obra em recursos midiáticos. E por fim, contrastar teorias narrativas da literatura e das artes
visuais no estudo dos recursos linguísticos e visuais utilizados no romance gráfico, no intuito
de verificar representações do tempo e do espaço.
Partindo do debate acerca das imbricações de mídias, boa parte das vertentes
científicas que exploram o fenômeno da inter-relação de linguagens artísticas se fundamentam
na perspectiva filosófica do hibridismo cultural. Burke (2003) compõe uma análise de
inúmeras formas de aglutinações que ocorreram e ocorrem na edificação das representações
culturais de nosso tempo, principalmente por efeito da globalização. Ademais, essas
apropriações de múltiplos meios, instrumentos, procedimentos e discursos, que alicerçam as
inter-relações de culturas, linguagens e áreas do conhecimento, se aproximam da compressão
de Derrida (1971) e seu conceito da bricolagem.
Além desses autores, todo o fundamento da pesquisa ancora-se nos estudos da
literatura comparada e das relações da Literatura com outras artes e mídias, principalmente
nas contribuições de Carvalhal (1994), buscando centralizar em teoria literária,
principalmente a intermidialidade, no trato das aproximações de literatura e história em
quadrinhos. O aporte teórico sobre intermidialidade é oferecido, além dos autores já citados,
por Clüver (2011), Moser (2006), Higgins (2012), Bruhn (2020), Morley (2020) e para o
embasamento sobre semiótica será utilizado os estudos de Santaella (1983). A análise de todos
os dados coletados pela pesquisa tem caráter qualitativo e a abordagem dos pressupostos
teóricos apresenta-se como base uma revisão bibliográfica sobre literatura comparada no
âmbito das relações da literatura com outras artes e mídias.
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toda e qualquer referência para além do âmbito do verbal. No entanto, Higgins (2012) usou
um termo parecido em um artigo de 1965, revisitando a expressão “intermídia”, utilizada por
Samuel Taylor Coleridge em 1812. Intermídia foi usada para designar obras cuja
materialidade se consolidaram entre mídias conhecidas. Aos poucos, a necessidade da
definição de um conceito que tratasse tanto das referências, quanto das transposições e das
combinações de midialidade se tornava cada vez mais presente. Diante disso Rajewsky
apresenta que:
A intermidialidade abre um leque conceitual amplo que abarca certos pontos que
propostas investigativas anteriores não conseguiam apresentar soluções. É importante deixar
claro, de antemão, que esse novo conceito também não obteve êxito absoluto sobre as
relações interartes, mas abriu novos caminhos a serem percorridos. O fato de utilizar o termo
mídia como base, a abrangência de sua atuação nas pesquisas se amplia, pois, linguagens,
suportes, recursos, técnicas e discursos passam a ser abordados de forma horizontal.
No entanto, o que, de certa forma, confere a intermidialidade uma vantagem diante dos
outros conceitos, também lhe imprime sua “maldição”. Sua característica abrangente foi
apontada por algumas pesquisas, nos anos 1990, como uma falta de precisão terminológica e
conceitual. O que gerou, muitas vezes, uma utilização equivocada em pesquisas e debates. Por
transitar no campo da intertextualidade e estudos interartes foi tomado apenas como um termo
da moda da literatura comparada e do hibridismo. Apesar disso, Rajewsky diz que
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teve uma recepção, inicialmente tímida e cautelosa, acabou abrindo caminho para debates
mais esclarecedores. Nos EUA, principalmente, encontrou nichos de discussões por conta da
longa tradição do estudo interartes, um campo da literatura comparada, que já foi chamado
por lá, de literatura e outras artes.
Entende-se por literatura comparada o campo de estudos literários que propõe análises
de uma obra em paralelo a outras produções ou outras áreas do conhecimento, da arte ou da
comunicação. Originou-se em meados do século XIX, como uma metodologia ligada à
história da literatura que visava compreender contrastes, referências e influências das criações
literárias de culturas e épocas diferentes. A verificação comparatista abarca desde regras
gramaticais e intertextualidade, até transposições de elementos linguísticos, estéticos e
narrativos, provenientes de nacionalidades, linguagens e áreas do conhecimento diferentes.
Destes estudos, derivou-se a subárea dos estudos interartes que se afunilou a pesquisa na
comparação da literatura com outras mídias artísticas.
Assim como em Hansen-Löve, nos estudos estadunidenses foram os debates no âmbito
da intertextualidade que geraram o surgimento da intermidialidade, sobretudo no contexto do
comparativismo da literatura com outras artes. Segundo Rajewsky, o que parece ocorrer logo
em seguida é o abandono do primeiro termo e a aceitação do novo como ideia chave para
soluções dos problemas gerados nessa comparação. Principalmente, porque a
intertextualidade, que foi apresentada pela pós-estruturalista Julia Kristeva em 1941, trata
estritamente das configurações do texto, da língua, enquanto as problemáticas encontradas nas
relações entre as linguagens abarcavam elementos estéticos e narrativos que não se
restringiam ao verbal. Por exemplo, ao comparar um texto teatral com sua montagem no
palco, há recursos da mídia teatro que escapam do campo de atuação da literatura e da língua.
Por conta disso, a necessidade da estruturação de um novo conceito e,
consequentemente, de uma área independente de pesquisa que tratasse especificamente dessas
comparações, referências e apropriações, tornou-se iminente. Nesse caso, o uso da
intermidialidade fez-se eficaz pois “serve para designar configurações, procedimentos e
processos implicando várias mídias, nos quais entra em jogo, portanto, um atravessamento das
fronteiras midiáticas” (RAJEWSKY, 2020, p. 64). A abrangência da atuação do conceito
atraiu pesquisadores dos estudos interartes, até mesmo aqueles que não eram especificamente
da área literária, lançando o como campo de investigação mais geral, apesar de ter suas raízes
fixadas na literatura.
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transpor nomenclatura de uma linguagem a outra numa mera citação, sem dar a justa medida
metafórica.
É nesse exato ponto que os estudos alemães edificaram o termo intermidialidade nas
lacunas apresentada pelos termos intertextualidade e estudos interartes, ambos pressupostos
da literatura comparada. A intermidialidade, apesar de ainda ser alvo de questionamentos e
abordagens equivocadas, parece estabelecer-se como um termo capaz de articular esses
espaços deixados pelos conceitos que lhe geraram. E assim como a literatura comparada,
talvez até em um grau ainda maior, se apresenta como um campo de estudo que não se
restringe ao pesquisador de literatura.
A vantagem do conceito se insere na própria construção do termo: a junção de “inter”
e “midialidade”. É importante salientar que, as duas abordagens que originaram o interesse a
esse tema apresentam em comum o prefixo inter, significando que o debate consistia em
relações.
Certamente, o prefixo “inter” destaca o momento de um “estar-
entre”, um “um interesse", também esse fato, entretanto, pode ser
interpretado de diferentes maneiras, como eloquentemente testemunha o
amplo campo que abrange a pesquisa em intermidialidade. Com efeito,
considerando-a no seu conjunto, constata-se que a atenção se voltou sobre as
ligações e rupturas (estéticas), sobre as porosidades entre as mídias, sobre os
processos de transformação midiática, sobre as interações e as referências
em geral (RAJEWSKY, 2020, p. 66).
Considerando que o termo se tornou veemente quando se percebeu que, nos processos
de comparação de literatura com outras artes, recursos estéticos que figuravam igualmente em
mídia diferentes e/ou eram transpostos de uma mídia para outra, não era possível ser analisado
apenas pelo viés literário. Elementos pictóricos utilizados nas histórias em quadrinhos não
eram elucidados ao serem tratados como mera representação imagética do verbal, por
exemplo. Não é difícil de se concluir que foi a necessidade de se elucidar conexões e trocas de
diversas naturezas evocaram o prefixo “inter”. Dentro do seu alcance de abordagem reside,
por exemplo, toda e qualquer similaridade entre mídias, como a natureza textual do roteiro
para cinema, teatro e ópera, toda a apropriação de recurso de uma mídia para outra, como a
métrica poética de uma música com letra e todas as combinações de recursos de mídia. como
o uso da linguagem visual e a linguagem textual nas histórias em quadrinhos.
Já midialidade evoca a ideia de um elemento mediador entre um remetente e um
receptor, ou seja, é o meio no qual a mensagem ocorre e ao mesmo, a própria mensagem.
Derivado das expressões inglesas medium e media, pode-se traduzi-la como meio de
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Pensar em mídia, configura um objeto artístico, qualquer que seja, como um conjunto
de elementos comunicativos que são interpretados por um receptor. O jogo semiótico
estabelecido por um produto de mídia exige habilidades e entendimentos tanto do remetente
quanto do receptor acerca das midialidades apresentadas. Clüver afirma que “a nossa relação
com a mídia “música”, por exemplo, se dá através do nosso contato com signos emitidos pela
performance de uma peça musical — de um produto ou uma configuração da mídia “música”
(2007, p. 9). Ao ouvir uma música instrumental executada por instrumentos de corda como
violino, viola, violoncelo e piano, estabeleceu-se contato com texto sonoro que é modulado na
composição da peça, uma organização de notas, frequência, tempos, intervalos e repetição.
A materialização dessa mídia se configura pela habilidade do musicista de executar
esses elementos utilizando o instrumento musical, a capacidade de ouvir e decodificar os sons
emitidos e a sensibilidade de captar as expressões pretendidas na obra. Todavia, é importante
citar que uma leitura superficial do receptor não desqualifica a mídia, afinal as relações de
midialidade abarca a universalidade e a particularidade.
Ao discutir determinada mídia em particular, segundo Rajewsky, nunca se fala de uma
“mídia” enquanto tal, mas sim sua materialidade, ou seja, de uma obra específica. Por mais
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Essa visão transversal das mídias artísticas se fundamenta pelo fato de que a produção
artística se desenvolveu anexada à própria evolução humana, na medida que o homem
adquiria habilidades para materializar e para apreciar suas criações. Pintura, teatro, dança e
literatura, por exemplo, parecem ter sido geradas pela mesma prática primitiva: nas narrações
das caçadas do homem pré-histórico. A atitude de narrar as histórias utilizando o desenho na
parede, os gestos, as expressões e sua parca linguagem verbal, fundamentaram os paramentos
das narrativas que foram apropriados no construto de cada uma dessas mídias em particular.
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Fonte:
Disponível em https://www.todamateria.com.br/arte-rupestre/ acesso em 04/2021
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que parecem estar entre mídias como meio de superar as separações e as hierarquias
midiáticas. Marcel Duchamp é considerado o precursor da arte conceitual ao propor
apropriações de objetos cotidianos no construto de obras que operam entre o mistério e a
reflexão. Na obra Roda de bicicleta (1913), Duchamp propõe uma ruptura na lógica da
convenção social, da proporção e da harmonia, ao fixar uma roda de uma bicicleta virada
sobre um banquinho.
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naquela época. Basicamente, as HQs eram ilustrações com os textos e diálogos inseridos
abaixo do requadro como uma legenda, o leitor “lia” a imagem e em sequência lia as palavras.
Em uma das publicações, Outcault fez a fala de o garoto amarelo aparecer no seu camisolão
como em um discurso direto. Apenas por essa alteração, Yellow Kid ofereceu ao leitor uma
conexão intermidiática de palavras e imagens e converteu o texto em um ícone inserido nos
quadrinhos.
McCloud diz que “esse fenômeno de observar as partes, mas perceber o todo, tem um
nome. Ele é chamado de conclusão” (2005, p. 63). É a capacidade humana de segregar e
unificar partes de objetos e espaço que é muito estudada pela Gestalt, área da psicologia que
estuda as formas e as ilusões de ótica. A humanidade utiliza a habilidade de conclusão para
contemplar o mundo, tanto para capturar rapidamente uma cena, quanto para completar o que
está fora do seu campo de visão. Segundo McCloud a narrativa dos quadrinhos construída
entre mídias visuais e literárias é possível sobretudo pela conclusão.
Após Yellow Kid, outras tiras de jornais passaram a usar o mesmo recurso e
acrescentaram o balão como contêiner de texto e conector de personagem e fala. Apesar do
termo arte sequencial, o que diferencia a história em quadrinhos de outras narrativas visuais,
sejam elas sequenciais ou não, é o poder de converter todos seus elementos em signos que são
capturados pela conclusão. Dessa forma, o leitor capta de forma unificada e segregada todos
os elementos da quadrinização: requadros, ilustração, balão, diálogos, onomatopeias, toda a
composição de uma página se converte em recurso narrativo.
No entanto, com o crescimento popular das histórias em quadrinhos no começo do
século XX, principalmente no segmento de super-heróis, seu impacto na indústria cultural lhe
rendeu um status pejorativo de mídia barata e subproduto da literatura. Catapultando assim, as
produções quadrinizadas a meras histórias infantis clichês, o que gerou um atraso no interesse
da crítica artística e da academia. Patati e Braga (2006) relatam que Eisner aparece na cena
dos quadrinhos, em 1940, disposto a mudar essa sina ao empreender a fusão dos quadrinhos
de heróis com característica de conto policial, de suspense, de terror e ficção científica.
Criativo e experimental, Eisner dedica-se em seu personagem Spirit, uma das
iniciativas mais ousadas dos quadrinhos. As inovações e experimentações de Eisner não se
resumiam apenas ao contexto da história em si e suas possibilidades de uma produção mais
elaborada, mas também um estudo e articulação de todos os elementos iconográficos das
histórias em quadrinhos.
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Como apresentado na figura 3, sequência exige que o leitor rompa com a constante
da leitura da esquerda para direita, o olho segue a linha gerada pela corrente de ar que
Snobble descreve ao cair, passando pelo corpo fantasmagórico flutuando no meio da página
e despenca no corpo sólido do personagem no chão. Ao cruzar por essas duas ilustrações,
faz-se a leitura do texto que também precipita semioticamente. “O leitor tem de fazer uso
implícito de um conhecimento de leis físicas (isto é, gravidade, gases) para ler a passagem”
(EISNER, 1999, p. 10), demonstrando que, para narrativa visual funcionar, o interlocutor
deve se conectar com os atributos apropriados e não apenas como os particulares da
linguagem dos quadrinhos.
Todo esse processo de leitura que se apresenta muito complexo quando se tenta
descrever, configura a já citada captura completa, que ocorre de maneira imediata, mesmo
sendo formada de componentes tão distintos. E quanto maior habilidade do leitor de
compressão da narrativa e dos recursos da linguagem visual e verbal, mais involuntário será
o mecanismo de decodificação. Essa miríade de informação que apenas uma página pode
oferecer demonstra a capacidade de essa mídia de criar processos intermidiáticos.
Além disso, o próprio peso narrativo desse capítulo já demonstra como Eisner
consegue atribuir uma complexidade literária a sua produção. A metáfora do voo de Snobble
denota o extraordinário e o fantástico que lhe é negado na sua vida pacata e medíocre de
contador. Dentro da própria mise-en-scene da HQ, o personagem narra sua história em
paralelo às cenas de ação e suspense da perseguição de Spirit aos bandidos, representando a
falta de aventura do seu cotidiano. A morte acidental de Gerahd Snobble é apresentada como
um efeito colateral das peripécias do herói e revela um olhar humano e trágico do autor. O
homem que sabia voar morre ignorado pelo herói e o que resta é apenas a imaginação, a fé e
o sonho.
Essa complexidade estética aplicada por Eisner recoloca os quadrinhos num patamar
de mídia artística e gera um olhar mais sério dos pesquisadores de arte e literatura. E em
1978, Will Eisner lança ao mundo o amadurecimento dessas experimentações, a obra
conhecida por “O Contrato com Deus”, cuja capa trazia a expressão Graphic Novel e tinha a
intenção de definir o subgênero como algo mais próximo de uma obra literária que uma
revista em quadrinhos convencional. Romance Gráfico, termo que mais tarde passou a ser
usado no Brasil, designa mídias que seguem a tradição dos trabalhos de Eisner, obras mais
experimentais e artísticas.
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Na obra Aqui de 2014, McGuire, propõe-se uma narrativa visual bem diferente, tanto
no processo da quadrinização, quanto na cronologia da própria história que é narrada. O autor
oferece ao leitor, em um layout de página inteira dupla, representação da perspectiva oblíqua
de duas paredes de uma sala e viaja na dimensionalidade paralela do tempo, no intuito de
narrar os acontecimentos daquele espaço em questão.
A história não se limita ao intervalo de tempo em que a casa existe, também apresenta
cenas ocorridas nesse lugar há milhares de anos no passado e no futuro. Todavia, a sequência
das páginas não segue uma cronologia linear, encarregando o leitor de criar sua ordem de
leitura, neste anacronismo, McGuire explora a metáfora do advérbio “aqui” nas relações de
tempo e lugar.
McGuire chegou a produzir uma primeira versão da sua obra policrônica em 1989
como um exercício de desconstrução da lógica narrativa dos quadrinhos. Nessa inicial
tentativa, publicada na vanguardista revista em quadrinhos Raw nos EUA, o artista foi um
pouco mais conservador na construção da sua narrativa, respeitando certos padrões estéticos
dos quadrinhos. Essa pequena mostra de Aqui foi publicada no Brasil na edição nº 14 da
revista Piratas do Tietê da cartunista Laerte na extinta editora Circo em 1992.
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Na nova versão, McGuire foi mais inovador e ousado, pois a narrativa abarca todos os
elementos do romance gráfico, desde seu projeto gráfico até a formatação de suas páginas. No
intuito de oferecer essas dimensionalidades paralelas, joga com a capacidade de
simultaneidade das informações que uma página de quadrinhos pode oferecer. Como já citado
anteriormente, uma das vantagens dos quadrinhos em relação a outras narrativas visuais é a
possibilidade de estabelecer uma captura unificada de recursos visuais diversos: requadros,
imagens, balões, textos, recordatórios e onomatopeias são lidos simultaneamente. A
sobreposição de requadros que narram pequenos fragmentos de cenas de anos diferentes
oferece ao leitor uma experiência de multidimensionalidade.
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ilustrador busca exprimir outros atributos do fenômeno sonoro como a intensidade e o timbre.
No conto, o autor precisa do fonema e a descrição detalhada desses aspectos para uma
compreensão maior da natureza do som; nos quadrinhos, tudo se torna semiótico e o leitor
consegue decodificar todas essas informações instantaneamente.
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sequenciais produzem um ritmo e seu formato e tamanho podem gerar dimensões temporais e
atmosfera.
Na obra de McGuire, o requadro exerce diversas funções que vão muito além de
contenção pictórica e ângulo de apreciação, no contexto da história serve como “janelas
dimensionais” que se sobrepõe e ou são justapostas a fim de gerar uma visão simultânea de
tempos diferentes. Além disso, a conversão da página inteira em requadro que não possui
linhas de limitação parece tentar abraçar o leitor, envolvê-lo e inseri-lo no espaço
representado.
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movimento de câmera é algo diferente do que ocorre no cinema, é algo novo, algo que reside
entre as mídias literárias e cinematográficas.
Sendo assim, o jogo semiótico dos romances gráficos que emerge da junção de
elementos visuais com recursos literários, parece ser um exercício preciso de remediação
midiática, por reforçar esse aspecto de entre mídias na sua materialidade. Tanto imagem,
quanto palavras são reelaborados no cerne da narrativa gráfica.
As mídias individuais, expressão citada por Rajewsky, tanto visuais quanto verbais, se
tornam distintas quando se separa a capacidade humana de ver e de ler. Quando se conclui,
superficialmente, que a palavra é próprio da leitura e imagem é próprio da apreciação visual, o
debate se encerra na aparência das coisas. Do contrário, pode-se pensar tanto na leitura de
imagem, quanto na palavra com poder imagético.
Assim como a história em quadrinhos não foi a primeira mídia a usar narrativa
sequencial, também não foi a primeira a criar uma junção da imagem e palavra, outras mídias
anteriores tentaram o mesmo feito. A diferença notória é o potencial de unificação do visual e
verbal que os mecanismos dos quadrinhos são capazes de produzir. E isso ocorre, porque as
distinções dos processos de compreensão de cada dispositivo são superadas e a percepção os
abarca de forma horizontal.
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instrumento de conexão entre remetente e receptor. O signo é uma representação que busca
representar um objeto, um fenômeno. Santaella diz que “o signo não é o objeto''. Ele apenas
está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e
numa certa capacidade” (1983, p. 12). Nesse caso, a imagem e a palavra recorrem a
referências fenomenológicas reconhecíveis pela pessoa que lê, tudo que é projetado na
narrativa busca se adequar às constantes já preestabelecidas pela experiência com o mundo e
seus fenômenos.
A pergunta fenomenológica, articula um debate sobre a relação entre conhecimento
humano e os estímulos, o trabalho mais penoso da ciência é tratar daquilo que é indizível. A
experiência com os fenômenos é um processo tão imediato que muitas correntes científicas se
debateram no decorrer da história para tentar quantificá-la. Com a Semiótica, essa deliberação
afunilou na percepção dos signos e assim ofereceu um campo de pesquisa mais restrito de
investigação, sendo possíveis algumas definições, principalmente do que toca a representação
pictórica e verbal
A classificação do signo se configura pela característica dessa substituição, ou seja,
como a imagem e/ou a palavra conecta o receptor ao objeto que se quer representar. Ícone é o
signo que se parece imageticamente com a coisa representada, por isso, é fácil supor que
imagens são icônicas. Já a palavra, parece estar mais próxima do símbolo, porque se relaciona
com objeto por uma convenção estabelecida por um grupo de pessoas, por exemplo, o verbete
cavalo alude ao animal, para lusófonos. Por fim, o índice se relaciona por caráter causal ou
existencial, sendo assim, está mais para sinais e fenômenos físicos como o som.
Dito isso, volta-se ao exemplo da onomatopeia que, a princípio, é uma figura de
linguagem que indica um som, por isso seria um índice. O autor ao utilizar esse recurso quer
indicar um acontecimento: o barulho de um vidro se quebrando indica que um copo caiu ao
chão ou uma janela foi estilhaçada. Muitas onomatopeias, por seu uso recorrente e sua relação
sociocultural, tornaram-se simbólicas: o som de batidas na porta no Brasil é representado por
“toc-toc”, enquanto nos EUA se usa “knock-knock”. E, nos quadrinhos, a onomatopeia vira
um desenho de letras que busca exprimir, além da modulação, a intensidade e o timbre. Ou
seja, é um signo iconográfico, simbólico e indicial ao mesmo tempo, o que ocorre com quase
todos os fenômenos representados nas histórias em quadrinhos.
Na figura abaixo, McCloud apresenta como o tempo pode ser representado e ao
mesmo tempo desconstruído na narrativa de uma história em quadrinhos. Nessa sequência de
imagens, as ações representadas ocorrem ou ao mesmo tempo ou em intervalos de fração de
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segundos. A leitura visual da esquerda para direita faz ler cada situação em momentos
distintos, mas como tudo está dentro de um mesmo requadro, ocorre uma unificação pela
conclusão. Por figurarem no mesmo espaço, a cena ocorre simultaneamente e
sequencialmente ao mesmo tempo. O que não ocorreria se cada ação fosse separada em
requadros diferentes, os espaços entre os requadros, que o Eisner chama de calha e McCloud
de sarjeta, funcionam como pausa de leitura semelhante a vírgula.
Essa compreensão do requadro é tão imediata e mecânica que ao tentar articular uma
explicação verbal, soa de maneira incompleta e ineficaz. Moser (2006) evoca Lessing (1766)
para traçar uma arqueologia das artes visuais e literatura ao tratar das relações da pintura e da
poesia. Na perspectiva do autor, pintura é a arte do espaço, enquanto a poesia é a arte do
tempo. Em uma pintura os elementos representados se organizam em um plano bidimensional
que são captados em conjunto pelo observador simultaneamente, por isso, sua realização
abrange o coexistente e a justaposição. A poesia, por sua vez, ao descrever em suas frases e
expressões em uma sequência de cenas e sensações, consegue gerar um sentimento de
passagem de tempo. Por ser a combinação dessas duas mídias individuais, a história em
quadrinhos pode ser considerada a arte do tempo e do espaço.
Lessing principia sua análise do ponto de vista da midialidade das duas linguagens e
não na sua estética em si, em outras palavras, não avalia os processos técnicos, mas sim os
efeitos da representação, o que é representado e como é representado. Trata-as como a via das
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mensagens que se quer exprimir e sendo assim, leva-se em conta, como é representado, quais
signos evoca e como é percebido pelo espectador. Essa distinção das duas linguagens focadas
na sua materialização e na sua captura, nos permite perceber o cerne da sua pesquisa de Moser
quando as toma como veículo da conexão do artista e do poeta com seu público.
Cada um dos artífices, à sua maneira, almeja ativar a percepção do receptor,
produzindo em anexo outros fenômenos que são compreendidos segundo a regência de cada
mídia. O pintor, por saber que o espectador poderá ver apenas um instante e um ângulo do
fato que está narrando, precisa escolher o que Lessing denomina um momento “fértil” ou
“conciso e denso”. Ao recorrer a essa cena suspensa, mas impactante, abona o público com
uma visão que lhe instiga imaginar o antes e depois da cena, completando as informações da
obra com sua experiência e conhecimento.
É a partir desse ponto que Moser, alerta das proximidades entre as duas mídias verbais
e picturais, o pintor escolhe um momento estático no tempo que desperta o olhar do
observador de forma mais sensível e imaginativa que poderíamos até dizer que se trata de
momento poético. Lessing dá o exemplo da obra do pintor Rafael Sanzio que ao utilizar linhas
sinuosas no drapejamento dos tecidos das vestes dos personagens tenta simular o movimento
da cena. Ao fazer isso o artista renascentista desloca a imaginação do público para uma ação
no tempo, possibilitando coexistir dois momentos ou mais em um só. No Barroco, a escolha
da cena mais impactante com intuito de chocar o espectador irá produzir imagens mais
dramáticas e mais dinâmicas, superando de certas formas as representações mais estáticas dos
períodos anteriores como o Renascimento. Jacopo Tintoretto ao pintar a última ceia, ao
contrário de Da Vinci, escolhe um enquadramento mais oblíquo e inclinado, imprimindo mais
dinamismo à cena, e ao representar diversos acontecimentos da mesma noite ocorrendo
simultaneamente, cria narrativas paralelas no mesmo espaço e obriga o espectador a
sequenciá-las para compreender o todo da obra.
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Ao afirmar que “as palavras, a memória, a herança e a tradição são elementos que
passam a ser revalorizados num mundo inundado por imagens fosforescentes [...] ( 2009, p.
37) dialoga com Benjamin, que em seus ensaios “O Narrador” (1936) e “Experiência e
pobreza” (1933), afirma que a história contemporânea esgotou esse sentimento da
experiência. Afligida por conflitos, crises e epidemias, as comunidades humanas se
esvaziaram de narrativas, restando fragmentos de uma tradição perdida e arruinada.
Narrativa, para Benjamin, é o lugar da experiência, é o compartilhar de memórias,
vivências, sensações e sentimentos de um agente, o narrador. Não é o simples relato com
intuito de informar um ouvinte de um fato, é a comunicação do que é próprio da existência
humana e que, muitas vezes, tem como finalidade o próprio ato de narrar. A narrativa não
oferece apenas uma explicação ou informação, abre um campo polissêmico, o espectador é
convidado a alcançar um de seus pontos de significação.
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York passam a propor pinturas que abandonam o legado figurativo da arte clássica e seguem
tendências abstratas já inauguradas na década de 1920 por movimentos artísticos como o
Neoplasticismo holandês e o Suprematismo russo. O que os autores passaram a chamar de a
busca pelo “novo absoluto”.
A proposição se fundamentava em uma narrativa dos elementos compositivos da obra
como a própria pincelada, consolidando a natureza pictórica desvinculada de qualquer outra
significação posterior que não fosse a própria composição. Culminando no “desenraizamento
dos artifícios da narrativa do cotidiano para alocar o observador em mundo sintético, puro e
transcendente: o mundo da arte abstrata” (CANTON, 2009, p. 22). O mundo, no qual ponto,
linha, plano, cor, volume e luz se bastam para criar possibilidades expressivas.
As abstrações puras contribuíram para um estudo da expressividade de uma pintura
alicerçada em seus elementos visuais básicos, ou seja, demonstrou que a narrativa principia já
na base do conteúdo expressivo. Essa pesquisa visual já havia sido iniciada com os
movimentos vanguardistas como Cubismo, Futurismo e o Fauvismo, que abdicaram da
representação figurativa da natureza, explorando ângulos, dinamismos e sensações,
adentrando no campo da sugestão. É certo dizer que os artistas visuais buscavam não a
representação de uma cena, mas oferecer uma experiência ao espectador, o que dialoga com a
ideia de narrativa de Benjamin.
Também nessa perspectiva, segundo Ostrower (1987), o conteúdo expressivo de uma
obra depende objetivamente dos processos gerados pelo movimento visual que um artífice
propõe em um plano. E que isso não é uma novidade vanguardista do século XX, mas algo
natural em composições desde o Renascimento.
A disposição no plano de linhas, formas e cores, por si só, constituem uma narrativa
que opera no nível primordial da compreensão humana. O que é objetiva e concreta para todas
as pessoas, no entanto, não é possível verbalizá-la por ser tão arraigada a um certo
pensamento primitivo, termo usado aqui para se referir ao que está no inconsciente e não se
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materializa em palavras. Por isso, cada pessoa experimenta essa narrativa primordial e a
personaliza a partir da sua visão de mundo e segundo a sua própria experiência.
Além disso, há composições abstratas que acabam não atuando num campo
absolutamente visual por estar impregnado de representações semióticas de um determinado
grupo cultural. Em 1955, Jasper Johns se apropriou das listras, cores e símbolos da bandeira
estadunidense para propor um debate de como imagens abstratas podem gerar significações
que são posteriores ao formal, mas que são percebidas a priori, quase como uma figuração.
Em Flag (1955), o espectador não consegue se desvencilhar das relações simbólicas que
aquela composição abstrata lhe oferece; toda história, todo o ufanismo, toda a construção
geopolítica conectada aos EUA são percebidos primeiro.
O artista apresentou a obra sem nenhum comentário posterior e sem nenhuma
alteração da composição oficial, ou seja, não acrescentou nada ao que já era conhecido sobre a
bandeira estadunidense. Johns apenas almejava que o espectador tivesse uma experiência
óptica com os elementos formais organizados naquele plano, todavia o que se percebeu foi “o
poder das imagens midiáticas de gerar narrativas próprias” (CANTON, 2009, p. 25).
Aparentemente, a insistência figurativa da consciência coletiva é capaz de criar significações
que são bem difíceis de serem superadas.
Flag abre caminho para as apropriações de mídia populares nos 1950 e 1960, base da
pesquisa estética da pop Art, na qual, artistas valem-se de objetos cotidianos e imagens da
televisão, cinema e história em quadrinhos para composição de suas obras. Seguindo a
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Essa natureza fortuita de Aqui é uma das características mais marcantes e o que mais
lhe confere o status de narrativa enviesada, pois oferece ao leitor diversos percursos de leitura.
Podendo, assim, selecionar e aprofundar-se em algumas histórias específicas seguindo os
indicativos cronológicos que são sugeridos pelos recursos quadrinizados. Por exemplo, a
história do idoso que cai e quebra o quadril, não podendo subir as escadas que dão para o seu
quarto e por isso precisa repousar no sofá-cama da sala em 2005, ou o encontro de nativos
norte-americanos e colonizadores holandeses em 1624 (cf. figura 12). Outra possibilidade é
deixar-se levar pela ordem das páginas oferecidas na diagramação do livro, o que produziria
uma experiência imersa no aleatório. Na verdade, mesmo que o leitor faça a primeira escolha
acima, outras narrativas enviesarão à sua apreciação, por meio da sobreposição de quadros e
imagens que o autor propõe a cada layout da página.
O tempo aparece fragmentado e reinventado no projeto de McGuire, repetindo a ação
de artistas desde meados do século XIX que questionavam as relações simétricas e o
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ordenamento racional do tempo e espaço. A narrativa viaja milhares de anos nesse espaço
específico indo e vindo no tempo, escavando a memória da casa e daquele espaço,
experimentando uma multidimensionalidade.
Como nas narrativas enviesadas, cada um desses elementos opera semioticamente nos
requadros e páginas e se ordena para produzir a significação das cenas, como um instante
único vivido na casa. Porém ao serem expostos simultaneamente na narrativa, gerando
comparações e contraste, essas representações se tornam uma simbologia mais ampla dos
costumes, tradições, sentimentos e anseios de toda uma sociedade. Aproximando-se das
definições do narrador em Benjamin (1936), os eventos e objetos na casa são pequenos
fragmentos e retratos da história que ao serem reunidos nos oferecem um panorama das
experiências humanas.
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Eisner afirma que, de certa forma, há dois contêineres de imagem: a página total ou o
layout que pode conter vários requadros ou um único, no caso dessa última forma
diagramação é chamado de “layout de página inteira” e o próprio requadro em si. Como pode
se perceber na figura acima, o percurso da leitura para qual o leitor foi treinado ordena uma
varredura da esquerda para direita, de cima para baixo, capturando cada quadro e página
independentemente.
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McCloud afirma que essa transição de requadros separados pela calha ou sarjeta é um
dos fundamentos mais importante dos quadrinhos, um dos desdobramentos da conclusão. “Do
arremesso de uma bola ao extermínio de um planeta, a conclusão deliberada e voluntária do
leitor é o método básico pro quadrinho simular tempo e movimento” (McCloud, 2005, p. 69).
O espectador pode compreender que a transição remedia o ritmo da vida, a sarjeta pode
encurtar ou aumentar o tempo. Se um personagem arremessa uma bola à uma vidraça é
natural que no requadro seguinte, se veja: ou o artefato voando em direção a seu alvo ou o
vidro se estilhaçando ou até mesmo o dono da janela indo tirar satisfações com o vândalo.
Uma ação pressupõe um resultado, o leitor espera uma conclusão na sequência dos quadros.
Segundo McCloud, existem cinco tipos básicos de transição: momento-a-momento,
ação-para-ação, tema-para-tema, cena-a-cena, aspecto-para-aspecto e non-sequitur, cada uma
delas é gerada pela relação entre as duas cenas que são apresentadas em sequência. A
transição mais usada nesse caso, foi a non-sequitur, “que não oferece nenhuma sequência
lógica entre os quadros” (2005, p. 72), pois os acontecimentos não estão em uma ordem
cronológica linear. Em segundo lugar, se usou a cena-a-cena, “que nos leva através de
distâncias significativas do tempo e espaço” (2005, p. 71). Ao leitor é oferecido uma
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Benjamin ao afirmar que narrativa é não linear e muitas vezes inconclusiva, ilustra a
possibilidade de instigar a mente humana ao desconstruir o lógico e consequente das
representações. Pela capacidade de conclusão, o leitor impulsionado automaticamente pelas
construções arraigadas pelas constantes do dia-a-dia, de certa forma, quando as transições
seguem um padrão corriqueiro, mantém-se uma atmosfera do ordinário e repetitivo.
Transições como a non-sequitur e a cena-a-cena, as mais utilizadas em Aqui, desafiam a
capacidade de conclusão e estimulam a imaginação.
A transição na composição das páginas acima gera um questionamento, a conexão das
imagens justapostas e/ou sobrepostas não é instintivamente resolvida, impelindo o leitor a
buscar respostas possíveis para a conclusão. Os saltos no tempo que compõem as transições
cena-a-cena, que aparentemente são arquitetados de forma aleatória, instiga-o, por conta d e
uma consciência lógica, a encontrar correlações racionais entre os anos, levando-o, até, a
folhear as outras páginas para encontrar algum padrão. E a falta de linearidade das transições
non-sequitur é ainda mais intrigante, pois a inquietante pergunta da relação entre um abraço,
um criança dormindo no sofá, um homem contando sobre ter um tirado uma soneca, uma
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pessoa vestida de “fantasma” com um lençol lhe cobrindo a cabeça e dois homens lutando
amplia a narrativa à outra camada.
O ligeiro apelo ao automatismo psíquico próprio do onírico, uma característica muito
explorada pelo surrealismo, é reforçado, nesta página em questão, pela criança que dorme no
sofá e pelo único balão de diálogo que diz: “Eu tirei uma soneca. E quando acordei, não sabia
onde estava”. Primeiramente, esses dois requadros que ocorrem, respectivamente, em 1941 e
1990, são as únicas cenas que possuem uma certa correlação mais direta e lógica. Mas, o fato
de um dos personagens está dormindo e outro falar de uma soneca, remete ao campo próprio
do sonho e do inconsciente, além de que ao dizer que não sabia onde estava denota mais
fortemente o automatismo não racional das transições.
Essa formatação escolhida por McGuire para compor a nova versão de Aqui,
diferentemente da versão original, desconstrói de várias maneiras a composição corriqueira
dos quadrinhos e das próprias conexões da vida. Essa configuração articula de forma distinta a
hierarquia de captura do espectador, uma vez que acaba sendo influenciado pelos
fundamentos do plano pictórico, mas tem esse fluxo de leitura visual interrompido pelos
elementos sobrepostos a esse enquadramento maior.
Ademais, os limites do requadro alargado até às margens da página dupla conduz o
espectador a sensação de estar frente a uma tela de proporções enormes como um mural, ou
seja, produz uma imersão maior. Os requadros menores com momentos distintos sobrepostos
ao requadro maior são capturados na conclusão gerando uma experiência de simultaneidade.
Essa estratégia compositiva imprime de forma definitiva, a natureza enviesada desse romance
gráfico.
A intermidialidade proposta nas páginas de Aqui é resultado do amadurecimento da
ideia McGuire acerca da narrativa quadrinizada. Na sua primeira ideia, as relações se deram
apenas intramidiático, ou seja, articulou apenas os recursos próprios dos quadrinhos,
mantendo a estética dentro de conceitos mais convencionais. Do contrário, a versão mais
recente aglutinou muitas outras construções advindas de outras mídias. Essa imbricação de
linguagens que o autor se propõe a explorar é um reflexo das transformações das mídias por
meio da constante humana que passou a ser chamada por alguns autores de hibridismo
cultural.
A visão de Burke (2003) sobre essas intersecções culturais alicerça as discussões sobre
intermidialidade, pois afirma “[...] que devemos ver as formas híbridas como o resultado de
encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos
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adicionem novas elementos à mistura, quer reforcem os antigas elementos [...]” (BURKE,
2003, p. 31). Esses encontros são a base da pesquisa dos estudos intermidiáticos, tanto de um
modo amplo, no sentido que toda mídia individual foi gerada por combinações de atividades
humanas, quanto num modo estrito, no cruzamento intermidiático no cerne de uma
materialidade.
É certo que toda construção da humanidade que pode ser chamada de manifestação
cultural foi produzida por entrelaçamentos de inúmeros grupos sociais, a própria história em
quadrinhos é o resultado de incontáveis exercícios narrativos de diversos períodos históricos,
combinando imagem e texto e explorando a sequencialidade. Cada década e cada sociedade
contribuiu com alguma inovação para edificação dessa mídia em questão. Essa mesma
constante pode ser aplicada para diversas representações socioculturais: linguagem,
gastronomia, vestuários, religiosidade, arquitetura e tecnologia.
Em se tratando de hibridações de mídias, o processo parece ser até mais intrínseco que
qualquer outra área das humanidades, pois possui uma base comum que é a midialidade, ou
seja, a própria comunicação. Como já foi supracitado, toda mídia tem como objetivo principal
a transmissão de uma mensagem, de um signo, desta forma, as porosidades entre essas
materialidades nasce da sua própria natureza comunicativa mesmo com todas suas distinções
formais.
Por exemplo, a história em quadrinhos, mesmo sendo distinta de outras mídias visuais
ou verbais, carrega certas configurações que estão arraigadas a seu processo de decodificação
sígnica. Um requadro não é uma pintura, sua leitura visual assume outros parâmetros
narrativos, principalmente porque depende de outros recursos justapostos na composição da
página. No entanto, como as duas mídias compartilham os mesmos princípios do plano
pictórico, muito da sua narrativa deriva do entendimento desse fundamento da linguagem
visual.
Seguindo essa lógica, não é difícil concluir que as imbricações das mídias ocorrem
quase que naturalmente. Foram essas as práticas que levaram a criação das mídias individuais
da tradição históricas, que geraram as novas linguagens na contemporaneidade e que
possibilitaram a produção de materialidades que cruzam fronteiras midiáticas.
Ademais, essas apropriações de múltiplos meios, instrumentos, procedimentos e
discurso que alicerçam as inter relações de culturas, linguagens e áreas do conhecimento se
aproximam da compressão de Derrida (1971) e seu conceito da bricolagem. Segundo o Autor:
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O bricoleur. diz Lévi-Strauss, é aquele que utiliza "os meios a mão", isto é,
os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão
ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão
servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando
em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao
mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas etc.
(DERRIDA, 1971, p. 239).
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A língua inglesa, onde o uso de medium e média tem uma longa tradição,
oferece um leque de significados, entre os quais medium of communication e
physical or technical médium são os mais relevantes para o discurso sobre
intermidialidade, além de public media, que se refere a jornais e revistas,
rádio, cinema e televisão. Os meios físicos e/ou técnicos são as substâncias
como também os instrumentos ou aparelhos utilizados na produção de um
signo em qualquer mídia — o corpo humano; tinta, pincel, tela; mármore,
madeira; máquina fotográfica; televisão; piano, flauta, bateria; voz; máquina
de escrever; gravador; computador; papel, pergaminho; tecidos; palco; luz,
etc. (CLÜVER, 2011, p. 6).
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Todos os elementos da obra de Lauriano são mídias: o espaço escolhido para instalá-
la, o muro feito de tijolos coloniais, cada uma das miniaturas e até mesmo o chumbo extraído
de munição na confecção das peças. A narrativa se desdobra nas iconografias colhidas pelo
artista visual, cada uma delas é fundamental para edificar a composição. Nenhum dos recursos
utilizados está ali apenas como veículo da mensagem, pois também é a mensagem.
O título da instalação, Brinquedo de furar moletom, foi inspirada na música Vida loka
parte 1, do grupo paulistano de hip hop Racionais MCs, do álbum Nada como um dia após o
outro dia, de 2002. Lauriano apresenta uma narrativa sobre as relações da violência histórica
para com as comunidades pretas e periféricas e a infância, contrastando a inofensiva e lúdica
representação do brinquedo inspirado em artefatos bélicos e uma realidade de abusos, descaso
e injustiça social.
Da mesma forma, McGuire oferece uma materialidade, cuja narrativa não se esgota na
projeção imagética nas páginas do Romance Gráfico. Toda sua proposta gráfica auxilia na
composição das mensagens colhidas pelo leitor e o insere no processo de significação do
produto midiático. Inclusive, essa característica múltipla, aberta e não linear dialoga com a
natureza multidimensional do argumento da História em Quadrinho em questão.
Os processos narrativos de Aqui se iniciam no próprio projeto gráfico do livro, logo na
capa e na contracapa se tem uma importante construção imagética que direciona significação
para o andamento da história que é contada. A capa traz a representação de uma janela aberta
pela qual apenas se vê uma cortina branca, pois o interior é ocultado por um fundo escuro,
como se as luzes estivessem apagadas. Janelas, de certo modo, representam um pequeno
panorama do interior da casa que se encontra na parte externa, no livro, por estar oculto, soa
como um convite ao espectador a conhecer os segredos que se encontram na parte interna.
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Figura 20: Ilusão arquitetônica criada pelas duas páginas de Aqui de Richard McGuire.
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No entanto, esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma
digressão dentro do conjunto do romance. Os acontecimentos da corrida são
apenas debilmente ligados ao entrecho e poderiam facilmente ser
suprimidos, de vez que o ponto de conexão consiste no fato que um dos
muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em consequência da trama.
(LUKÁCS. 1965, p. 44)
Apesar da corrida ter algumas relações com a trama, não se desdobra de maneira importante a
ponto de ser indispensável, de modo que o trecho apenas se constitui como uma demonstração de
habilidade de ato de descrever de Zola. O autor poderia ter apenas citado o acontecido, resolve se
alongar apenas por um exercício de escrita, o que faz com maestria e acaba imprimindo uma certa
qualidade artística à passagem.
Todavia, mesmo que fosse um acontecimento caro ao romance, Lukács atenta ao fato de que
Zola, ao ofertar uma cena completa em todos os seus meandros, acaba por limitar a narrativa, pois não
deixa perguntas a serem feitas. Ora, se o leitor consegue contemplar um cenário no qual todos os
planos são revelados de maneira direta e panorâmica, não será instigado pelos mistérios e a cena não se
alojará em sua cabeça.
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Do contrário, em Ana Karenina, de Leon Tolstói, apresenta eventos relacionados a uma corrida
de cavalo que, primeiramente, se constitui como algo bem mais crucial para o enredo do romance, pois
afetam irreversivelmente a vida da personagem-título, e gera um processo narrativo mais instigante .
Da mesma forma que Zola, Tolstói narra toda a sequência da corrida, porém com duas diferenças:
apresenta o ocorrido pelo olhar dos personagens e oculta alguns detalhes do leitor. A corrida de cavalo
é uma efemeridade diante do drama da vida dos personagens, “Tolstói não descreve uma coisa: narra
acontecimentos humanos” (LUKÁCS, 1965, p. 43)
Tolstói narra os incidentes da corrida de cavalos articulando-os com o psicológico dos
personagens principais da trama, por isso narra duas vezes, tendo dois pontos de vista diferentes sobre
a mesma cena. Na segunda narração, Ana nem se atém muito aos acontecimentos da corrida como um
todo, mas apenas o que ocorre ao seu amante e cono isso a afeta. Essa visão parcial, assim como a
perspectiva oblíqua, estimula o leitor a utilizar sua capacidade de conclusão para tentar compreender os
mistérios gerados por elementos que não são oferecidos diretamente na narrativa.
Sendo assim, na oposição da visão plena e da captura completa produzida pelo panorama da
descrição minuciosa e da perspectiva central, o olhar fragmentado da perspectiva oblíqua oferece uma
narrativa ainda mais enviesada. McGuire cria uma obra narrativa em um arco temporal baseado
em significações iconográficas. As tramas de Aqui são produzidas pelo entrelaçamento de
mídias visuais, literárias, físicas e mecânicas e geram camadas semióticas que propicia uma
experiência a partir da memória, do espaço e da iconografia.
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natureza criativa mais ambiciosa ainda é uma projeção e a visibilidade oferecida pela
comunidade artística e acadêmica ainda é muito tímida. McCloud (2006), apesar de manter-se
sempre bastante cético, é ligeiramente otimista com a ideia de que uma grande revolução
artística dos quadrinhos está sendo esboçada,sobretudo, pela geração de criadores surgidos a
partir dos anos 1990, “cujas histórias exploravam os meios de maneira afirmativa e
descontraída, sem a necessidade de reiterar constantemente aquilo que eles não eram”
(McCLOUD, 2006, p.30, grifos do autor). Pois, muitas vezes, produtores e instituições, para
legitimar quadrinhos como uma forma de arte, tentaram torná-los próximos a uma
materialidade mais consagrada.
McCloud alerta que mensurar os avanços da pesquisa artística em torno da mídia
quadrinhos pode, muitas vezes, ser movido por juízos de valor ao se comparar,
superficialmente, com o que se considera alta literatura. De certa forma, até mesmo o termo
romance gráfico já configura como uma tentativa dessa sacralização, pois ambiciona a
condição de livro, uma mídia popularmente mais aceita como uma obra mais séria. Todavia, o
que imprime qualidade artística a uma narrativa quadrinizada não é seu flerte com o romance
e/ou o livro, mas a possibilidade de oferecer uma composição com mais virtudes literárias.
Essa leitura superficial que, por muitos anos, se fez dos quadrinhos, leva em
consideração apenas as primeiras camadas de uma narrativa quadrinizada, tomando como base
apenas o roteiro, os diálogos e as ilustrações. McCloud afirma que autores de história em
quadrinhos que se propuseram a explorar estratégias que articulam subtextos, conseguiram
demonstrar que essas propostas narrativas eram bem diferentes das de outras linguagens, como
as literárias e as cinematográficas, por exemplo.
McGuire, com toda certeza, se enquadra entre esses autores, pois, em Aqui, consegue
propor uma obra quadrinizada com essa profundidade supracitada. McCloud cita McGuire, em
seu Reinventando os quadrinhos, como autor de uma obra que produz “efeitos tão
exclusivamente seus, que impedem comparações com qualquer outra forma” (2006, p.
39). Todavia, o trabalho citado é a Aqui original, a pequena história publicada em RAW em
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1989 e Piratas do Tietê em 1992, pois o livro com a nova versão seria publicado apenas em
2014. E é justamente nesse segundo trabalho, que McGuire parece ter alcançado o que
McCloud espera de uma história revolucionária.
O romance gráfico Aqui consegue criar narrativas potentes em camadas de sentidos,
principalmente em suas representações acerca do tempo e do espaço, pelas quais é possível
discorrer algumas discussões filosóficas e sociológicas, além das que foram realizadas no
âmbito da literatura e da arte. É claro que essa áreas do conhecimento são indissociáveis, no
entanto, muitas vezes, um trabalho opera em demasia apenas no seu aspecto formal e métrico,
não oferecendo muitos debates além desta camada formalista.
Tomando como exemplo, o uso de um advérbio como título reflete o fato de que
McGuire procura concentrar sua estratégia narrativa na modulação do acontecimento, nos
fenômenos do desvelamento do lugar que se apresenta aos olhos do leitor. A escolha de um
advérbio de lugar e não de tempo, à primeira vista, parece ser apenas uma preocupação de
representar o espaço e as transformações naquele fragmento do mundo. Todavia, o
condicionamento do espaço é, primeiramente, causalidade do desdobramento do tempo e isso
é evidenciado na ordenação das páginas indicando anos diferentes. E, em segundo lugar, todo
ponto de vista significa um instante de contemplação, ou seja, um recorte de um espaço em um
recorte de tempo.
Sendo assim, mesmo que McGuire tivesse optado, apenas, em estampar um único
enquadramento de momentos diferentes em cada página, ainda estaria referenciando o tempo
por trás da ideia do advérbio aqui. Mas, ainda há a sobreposição e a justaposição de requadros
com fragmentos de representações de anos diferentes, que remetem a ideia de simultaneidade
de distintos “aqui”.
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devir.
Deleuze e Guattari (1997) propõem um conceito que, ao mesmo tempo, discute as
implicações do devir e formula uma metáfora relacionada à música: a ideia de ritornelo.
Ritornelo pode ser tanto a marcação em uma pauta musical que utiliza um traço vertical e dois
pontos para delimitar uma repetição de uma composição, quanto a característica cíclica da
música em si. De um modo geral, seria uma estratégia de condicionamento mnemónico
arquitetada por padrões musicais repetitivos no intuito de ativar antecipação. E nessa
abordagem filosófica, pretende-se referenciar alegoricamente a natureza intermitente do
desvelar da realidade e dos elementos que constituem essa condição. Em suma, é uma forma
de pensar a sequencialidade e repetição do tempo.
Deleuze e Guattari consideram que “o ritornelo tem três aspectos, e os torna
simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora” (1997, p. 102). O primeiro aspecto é o próprio devir
como fenômeno da transição; o segundo é a materialização desse devir por meio dos
mecanismos criados pela cultura humana; e o terceiro é a representação dessas construções por
meio da expressão artística. Apesar de ser possível pensá-los separados, os três aspectos não
são sucessivos e tripartidos, são conectados e se fundem em uma só ideia. Cada aspecto
interdepende do outro, de modo que os primeiros ritornelos só podem ser visualizados pela
solidificação empírica dos segundos e os terceiros nascem das tentativas de desconstrução
artística tanto dos primeiros, quanto dos segundos.
Nas páginas intermidiáticas de Aqui, o ciclo sem fim do tempo é remediado pela
repetição das páginas, requadros e os recordatórios que indicam os anos. Esses elementos
criam o que Deleuze e Guattari chamam de territórios: “o território é o produto de uma
territorialização dos meios e dos ritmos” (1997, p. 105), é o resultado das combinações dos
elementos que compõem toda a narrativa. É tanto a camada externa que pode ser percebida
pelo leitor, quanto o que se desdobra no interior da composição, nos subtextos.
É por meio do território que um ritornelo se materializa, no jogo dos seus meios,
ritmos e repetições. O leitor cria uma constante gestáltica e semiótica pelas repetições
estabelecidas nas páginas dos quadrinhos e esse condicionamento auxilia no processo de
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conexão de imagens e palavras e nas transições entre os requadros. Sendo assim, o meio
externo é o requadro como um todo; o meio interno é os elementos visuais e literários que
compõem esse mesmo requadro; o meio intermediário é a calha; e os meios anexados são os
requadros sequentes e o layout.
Aqui concebe uma narrativa múltipla, não linear, como já foi dito, e ao mesmo tempo,
cíclica. Ao repetir cenas e combinações de cenas, ações e temas, apesar dessa repetição ser
pronunciada sem um padrão aparente, a conclusão supõe um ritmo e impele o leitor a criar um
território. “A marcação de um território é dimensional, mas não é uma medida, é um ritmo”
(DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 106).
No caso da figura 22, o ritmo é sugerido como um elemento de composição, uma
referência visual e uma construção mnemônica. A sequência e os tamanhos dos requadros
sugerem um encontro de temporalidade, como já visto em McCloud e Eisner, no qual as
personagens que se movem graciosamente evocam dança e parecem seguir a mesma música
executada pela personagem ao piano. Por fim, a composição oferece uma experiência de
movimento que se completa com a capacidade do leitor de imaginar a música e o ritmo da
dança ao rememorar territórios conhecidos.
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música mídia dentro das práticas dos quadrinhos, denota “um tipo particular de relação
intermidiática, através do processo de remodelação midiática” (2012, p. 34). A natureza
rítmica e dinâmica da música é referenciada por recursos gráficos que ativam reminiscências
musicais, em outras palavras, ouve-se uma música sem estímulos sonoros, ou, pelo menos, não
no sentido empírico do sonoro.
Essa musicalidade é um fator valioso na narrativa de McGuire, uma vez que a rítmica
é intrínseca aos quadrinhos e, segundo, porque a sequencialidade proposta, que à primeira
vista soa como caótica, remete a esse padrão repetitivo próprio do Ritornelo de Deleuze e
Guattari. De fato, não há uma sequência lógica dos anos que aparecem nos recordatórios de
Aqui, como já foi dito, nem mesmo na ordenação das páginas e muito menos na transição dos
requadros, no entanto, a repetição da perspectiva, das situações coincidentes e dos padrões de
decoração da sala, oferecem uma sensação de dejá vu.
Esse componente mnemônico faz projetar periodicidade ao devir que é, por sua
natureza, indeterminado. É própria da vida e da consciência humana essa projeção, homens e
mulheres vivem seus dias conduzidos pelo imprevisível e pelo causal, no entanto, planos e
expectativas são delineados tomando como base o antecedente. O calendário cíclico e os
padrões estabelecidos pelos eventos antecessores concebem uma certa mensuração subjetiva
do que virá e auxiliará no trato com o devir. E é por meio destas mesmas previsões imprecisas
que se arquiteta uma dinâmica de leitura no percorrer das páginas incontínuas de Aqui.
De um modo geral, é do jogo de contraste - da exploração da memória e da projeção,
do ritmo e do contingente, do panorâmico e do fragmentado - que se fundamenta a estrutura
básica da narrativa enviesada e intermidiática desse romance gráfico. Deleuze e Guattari
atentam que um ritmo simples produz condicionamento, enquanto a quebra de padrões gera
questionamento, pois “os motivos territoriais formam rostos ou personagens rítmicos e que os
contrapontos territoriais formam paisagens melódicas'' (1997, p. 109, grifos dos autores).
Nesse caso, as paisagens melódicas de McGuire se desdobram tanto externamente, quanto
internamente, as colagens visuais geram estímulos sensíveis e os subtextos produzem o
mistério.
A melodia das paisagens de Aqui conduz o leitor a uma desterritorialização, um
deslocamento, um contemplar de fora, ainda que fragmentada, própria dos terceiros ritornelos.
“Agora, enfim, entre abrimos o círculo, nós o abrimos, deixamos alguém entrar, chamamos
alguém, ou então nós mesmos vamos para fora, nos lançamos.” (DELEUZE, GUATTARI.
1997, p. 101). De fato, nunca se está inteiro em um tempo-lugar, a mente guiada por
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fraturas: há, de fato, uma sincronia entre o passado e presente, mas sua
maneira de sentir a cidade lança raízes em um húmus existencial antigo, que
remonta aos gregos, em cujo centro se ergue o homem de espírito e poesia,
isto é, o sujeito dotado simultaneamente de psyché e techné (d’ALFONSO,
2011, p, 16, grifos da autora).
Essa colagem desordenada pode ser compreendida tanto pela visão do automatismo
psíquico, fundamento fartamente explorado pelo surrealismo, que se desdobra nas relações
com a memória e o imaginário, quanto pela visão da própria composição arquitetônica e
urbana das cidades. A primeira reflete a forma que Canton pensa o nosso fluxo de consciência:
movido pelo fenômeno do presente, pelas memórias do passado, projeções do futuro e do
devaneio do nosso pensamento incrustado excessivamente por imagens. A segunda, projeta a
cidade como um plano arquitetônico real que revela as transformações urbanas, as mudanças
dos estilos de construções, o progresso e a deterioração.
Cidades como São Paulo, por exemplo, são um mosaico de estilos arquitetônicos,
onde é possível encontrar, na mesma quadra, um condomínio moderno, um casarão
neoclássico e um prédio barroco. Essa costura descontínua assinala a história da cidade, seu
tempo de vida, mas também, os elementos e simbologias que determinam a atmosfera da vida
contemporânea, sobretudo no que tange os contrastes sociais. Muitas dessas construções mais
antigas, se encontram em ruínas e se deterioram lentamente com os efeitos do tempo.
Esses aspectos da justaposição e da deterioração, de certa forma, ditam o tom das
narrativas que traduzem as experiências vividas nesses espaços urbanos. O narrador que nasce
imerso a essas fragmentações do devir é próprio da visão de Benjamin, pois é aquele que colhe
suas histórias e meios aos detritos da civilização como um coletor de sucatas. De Chirico e
McGuire seguem a tradição desse contador de histórias fragmentadas, porque repensa a
construção histórica por meio de uma visão não linear e dispersa. São narradores conduzidos
por territórios desterritorializados, descompassados, que perderam o fio condutor do ritmo e da
métrica.
No centro da praça registrada na pintura de de Chirico (ver figura 23), há uma
escultura ao estilo clássico que remete ao mito de Ariadne, a princesa de Cnossos que auxiliou
Teseu, o matador do Minotauro, a sair do labirinto ao presenteá-lo com novelo de linha que era
desenrolado para indicar o caminho.
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Adriane, que é retratada em um estado inerte, que pode ser entendido por estar
adormecida ou em meditação, revela que a princesa está presente, mas que sua ação de
resolução do labirinto não se concretiza. Nesse caso, Ariadne é sugerida, mas não se configura
como um sujeito ativo na elaboração de uma estrutura lógica da narrativa. O novelo de linha
que guia o narrador pelos meandros da história, da memória e da imaginação não é
desenrolado. O resultado é uma jornada repleta de sobressaltos, na qual o mistério e o enigma
são fundamentos principais.
De Chirico inicia uma tradição de artistas que justapõem elementos contrastantes e/ou
subvertem a ordem natural das conexões lógicas, seguida por pintores como Renè Magritte,
Salvador Dalí, Max Ernst e Frida Kahlo. A proposta é sempre o mistério, o enigma, a
inquietação, e o deslocar o observador para um espaço em que não tenha pressuposto definido,
pois é nesse estado de incômodo que a reflexão filosófica é estabelecida.
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vários momentos é concretizada como parte da história. Dessa vez, de uma maneira muito
direta, quase um pastiche das premissas desse romance gráfico. No ano de 2213, o lugar está
muito modificado, apresenta um solo pantanoso e uma passarela no formato de, o que parece
ser, um deque de madeira. Ali um grupo de pessoas é recepcionado por uma espécie de guia
turístico que utiliza, também, um dispositivo holográfico, em forma de leque, chamado
“programa de reconstrução e visualização''. A guia revela aos visitantes que por meio do
dispositivo foi possível concluir que havia uma casa naquele local, construída no século 20.
Esse episódio em questão possui uma atmosfera peculiar que mescla surrealismo e
ficção científica, pois toda cena soa como algo fantástico e ao mesmo tempo provável. O
dispositivo parece reconstruir o fenômeno físico das cenas do passado, provavelmente, a luz
que os objetos refletiam naquele dado momento. Soa como um debate sobre a percepção e o
tempo, já que luz refletida é o que os olhos capturam e configuram como presente.
O formato de leque do dispositivo é uma alegoria extremamente pertinente, primeiro
por referenciar a própria narrativa enviesadas e as diversas tramas que uma obra intermidiática
pode oferecer e, em segundo lugar, por recriar dentro da própria história para os personagens,
a mesma experiências das paisagens sobrepostas e justapostas. O dispositivo abre um leque de
visualizações de diversos ritornelos que descortinam o devir e submergem na simultaneidade.
Por fim, a cena é uma alegoria da própria obra, como se a guia fosse McGuire que
recebe o leitor neste momento-lugar das páginas de Aqui, abre seu leque de reconstrução e
visualização e oferece uma visão múltipla e fragmentada das transformações daquele espaço.
McGuire ainda permite uma última provocação ao leitor acerca da percepção, tempo e
virtualidade, antes de fechar essa pequena parte: um personagem pertencente ao grupo de
visitantes comenta “Até parece verdade”.
A potência das narrativas de Aqui claramente o coloca como um exemplo da produção
revolucionária que compõe a visão de McCloud para as histórias em quadrinhos, pois, parece
alcançar um patamar de obra artística que provoca, por meio de seus recursos, perturbações no
leitor que o fazem refletir as próprias percepções acerca da realidade. E consegue esse feito
sendo quadrinhos, apesar de ser fruto de intermidialidades de artes visuais e literatura,
consegue produzir efeitos que não ocorrem nem na pintura, nem no cinema, nem na literatura,
nem em qualquer outra mídia precedente e/ou semelhante. McGuire oferece uma obra, como
disse McCloud, sem igual e potente em questionamentos artísticos, filosóficos e sociais.
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Benjamin (1987) declara que a fonte de toda boa história é a experiência passada de
pessoa a pessoa e que as melhores narrativas são sempre aquelas que estão próximas ao
primitivo, ao narrador oral. Certas narrativas, por assumirem um ambicioso nível de
“sofisticação”, acabaram por perder o poder poético e sentimental que as histórias contadas de
pai para filho possuem. O narrador oral e primitivo carrega em si a potência das experiências
vividas de maneira natural, doméstica, cotidiana, simples e verdadeira.
A exigência de se gerir uma produção artística e literária de alto padrão impulsionou
um afastamento daquilo que é próprio do cotidiano e do popular, assumindo fundamentos que
passaram por processos de sacralização. Os grandes romances e a pintura, por exemplo, muitas
vezes, abandonaram as representações do homem comum, adotando cenas romantizadas para
narrar os grandes feitos da história. Na mesma medida, as experiências humanas mais simples
e verdadeiras se esvaziam.
McGuire pretende um caminho inverso dessas grandes narrativas ao arquitetar as
páginas de Aqui, pois parte das experiências particulares que ocorrem neste espaço. Embora
seja uma história que percorre um imenso período de tempo, não há uma preocupação de
narrar grandes realizações. Para tanto, cria-se um microcosmo neste enquadramento oblíquo e
dentro deste, um microcosmo menor ainda, centrado nas experiências domésticas de uma casa.
Inserindo o leitor nesse meio para que cada personagem que transita por ali possa lhe
transmitir os momentos vividos nesse momento-lugar. Essa é uma das características mais
cruciais das narrativas enviesadas, pois segundo Canton:
São essas pequenas histórias colhidas por McGuire que compõem a narrativa sobre
esse enquadramento do mundo: a atuação dos personagens e do tempo sobre o espaço e a
atuação do tempo e do espaço sobre os personagens. Cada história em si é apenas um atributo,
um ritornelo, diante da macro história do lugar, que se estende por milhares de anos. Da
mesma forma, todos os personagens que são apresentados nesse momento-lugar também se
constituem como uma efemeridade dessa narrativa fragmentada.
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Nesse sentido, é necessário aqui salientar alguns pontos específicos para compreender
como se configura a narrativa de Aqui na relação com seus personagens e os eventos.
Primeiro, as histórias cotidianas narradas no romance gráfico parecem ser geradas não pela
memória dos personagens, mas pela memória do próprio lugar. A questão é como um lugar
pode ter memórias, senão aquelas que são projetadas por seus personagens, a menos, é claro,
que o lugar passe por um processo de personificação.
No entanto, nem uma coisa nem outra ocorre. Essas memórias são projeções virtuais
latentes e potentes do lugar que são acessadas pelo narrador e oferecidas ao leitor. Na
passagem do “programa de reconstrução e visualização”, citado anteriormente (cf. figura 24),
o dispositivo parece reconstruir a projeção das luzes refletidas em diversos momentos da
história do lugar. Num sentido físico, o dispositivo parece acessar as ondas eletromagnéticas
dispersas naquele espaço e assim como na mente, o acesso e a reconstrução desse fenômeno é
fragmentado.
Sendo assim, o lugar não é um personagem, é um meio, é o tabuleiro onde são
posicionadas as peças do jogo. É um meio à mercê do devir, que se refaz a cada momento e se
apresenta, a cada passagem, de uma forma, ora diferente, ora igual. “Cada meio é vibratório,
isto é, um bloco de espaço-tempo constituído pela repetição periódica do componente”
(DELEUZE, GUATTARI, 1997, p. 103). Basicamente, o conhecimento que se tem das coisas
se compõem daquilo que os sentidos capturam em um dado momento, e, se as coisas estão em
eterno devir, a compreensão acerca delas também está.
Então, esse meio que é momento-lugar no qual o leitor vivencia as experiências
cotidianas e particulares da casa é a premissa de toda a narrativa. Os componentes que
integram essa trama são os personagens e as modulações do espaço, pois articula o jogo dos
ritornelos expressivos que são capturados na leitura do romance gráfico. E dentre essas
repetições periódicas, a projeção do canto da sala é a mais frequente, o que leva a concluir
que o período que a sala da casa se materializou nesse espaço é a medula espinhal dessa
narrativa. O autor deixa claro que o centro do interesse é a casa, tanto que todos os elementos
e signos utilizados no livro todo, remetem a materialidade da edificação. Todavia, é importante
salientar que mesmo sendo o cerne da narrativa, a casa também é eventual e, sendo assim,
virtual.
O interesse de McGuire ao narrar essa história, não importando a época, está nos
acontecimentos cotidianos mais comuns e simples, o que parece ser uma tentativa de extrair
poética do ordinário. Exemplos: Uma mulher caminha pela sala em 1957, tentando lembrar o
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que estava procurando; em 1907, um homem trabalha na construção dos alicerces da casa; em
1968, um rádio toca a música Is that all there is? de Georgia Brown; e em 1620, um nativo
americano caminha com seu arco na mão, possivelmente se preparando para sua caçada diária.
Todos esses eventos são situações corriqueiras que passariam despercebidas nas maioria das
vezes, McGuire lança um olhar sobre elas, para que o leitor possa questionar seus significados.
Eu me lembro que quando eu era uma menininha, nossa casa pegou fogo. Eu
nunca vou esquecer o olhar no rosto de meu pai quando ele me pegou no
colo e correu através do prédio em chamas para a calçada. Eu fiquei ali
tremendo de pijama e vi todo o mundo arder em chamas. E quando tudo
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acabou eu disse a mim mesma: Isso é tudo, um incêndio? Isso é tudo? Isso é
tudo? Se isso é tudo, meus amigos, então vamos continuar dançando. Vamos
trazer a bebida e fazer uma festa. Se isso é tudo (LEIBER, STOLLER, 1969,
tradução nossa).
A canção cuja a interpretação possui um tom teatral, pois as estrofes são recitadas e só
o refrão é cantado, foi gravada pela cantora Peggy Lee em 1969 e se tornou um grande sucesso
mundial. Mas, pela data que aparece no requadro, a gravação é anterior, sendo provavelmente
de Georgia Brown, uma cantora e atriz britânica. O uso da música também tece diversas
camadas narrativas relacionadas ao tempo e o cotidiano, primeiramente, a marcação com a
data denota que a música não é a versão famosa que o mundo inteiro conhece, o que confere
uma certa singularidade para citação. Além disso, McGuire novamente recorre a uma
referência intermidiática musical para criar um ritornelo, ao citar a música, invocando diversos
elementos concernentes à época.
E a própria letra da música narra situações que não são tão corriqueiras como um
incêndio em uma casa, que é relatado como um espetáculo de chamas e destruição, no entanto
a protagonista se apresenta tão desiludida com a vida que não se espanta com coisa alguma.
Apenas se rende a condição que tudo não passa de um acontecimento como todos da sua vida
e isso que deve ser celebrado.
Nessa corrida desenfreada que é a vida contemporânea, um fato corriqueiro se perde
em meio ao emaranhado de informações que a realidade oferece. Em Aqui, o leitor é
convidado a prestar atenção nos acontecimentos domésticos que, muitas vezes, têm pouca
importância. Segundo Canton, “no momento que se perde a confiança no excesso de imagens
que varre o mundo, contar histórias se transforma em um jeito de se aproximar do outro e, na
troca entre ambos, de gerar sentido em si e nesse outro” (2009, p. 37). Dentro da dança dos
ritornelos expressivos deste romance gráfico, esses pequenos momentos possuem uma beleza
inigualáveis, ora por serem únicos, ora por serem repetições inexplicáveis, de qualquer forma,
são repletos de mistérios.
No entanto, é importante registrar também que McGuire revela suposta importância
histórica para o terreno que é construída a casa, mas cogita esse fato no campo do rumor e da
fragmentação. Algumas passagens revelam que uma das casas da rua teria pertencido a
Benjamin Franklin, um dos pais fundadores dos EUA. Em uma sequência, apresenta-se um
sobrado no estilo colonial neoclássico, onde ocorre o encontro de um homem chamado
William com seu pai e seu filho, os quais não se viam há alguns anos. Com a chegada da
diligência dos dois visitantes, pode se ver que o pai se parece muito com as descrições e
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Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos
maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os
sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o
devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes,
dinamismos que frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes
estimulando-se um ao outro (BACHELARD, 2008, p. 201)
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como o espaço dos sonhos e das memórias, pois o personagem se recorda do tempo que o pai
teve que acampar na sala por não poder subir para o quarto por conta do quadril contundido. E
a frase da mulher parece significar tanto a falta de identidade dos personagens que transitam
pelos cenários do romance gráfico, quanto o tempo e a fatalidade da vida, pois entende-se que
o pai está morto.
Sendo assim, constituído desses devaneios, cada canto da casa é dotado de
significações psicológicas da vida íntima que são arquitetadas durante o período de estada
nesse espaço e os acontecimentos que o acompanharam: alegrias, aprendizados, traumas e
medos. Bachelard denomina a análise que estuda as influências psíquicas de uma casa em uma
pessoa de topoanálise, “seria então o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de
nossa vida íntima” (2008, p.202). Os devaneios relacionados a casa natal são responsáveis por
boa parte da construção da personalidade de uma pessoa e assim como a mente instala certas
memórias em partes específicas do cérebro, cada representação se instala num canto desta casa
mnemônica.
Eis o ponto de partida de nossas reflexões: todo canto de uma casa, todo
ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos de nos
esconder, de confabular conosco mesmos, é, para a imaginação,uma solidão,
ou seja, o germe de um aposento, o germe de uma casa (BACHELARD,
2008, p. 286).
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A chave, o relógio e a carteira são signos que conseguem configurar de forma bem
precisa a tentativa dessa estabilidade e controle. A chave que tranca, protege propriedades e
permite a entrada nesses espaços confinados, o relógio que auxilia no controle do tempo e do
devir e a carteira com documentos e dinheiro. McGuire reforça a importância desses três
objetos na passagem do “programa de reconstrução e visualização”, quando a guia usa o
dispositivo para projetá-los no céu e explicar suas funções.
Essas representações de seguranças configuradas pelas paredes da casa refletem a
volúpia humana de refugiar-se dentro da própria mente, aninhado-se nas memórias seguras e
aconchegantes. Pois, “as lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das
lembranças da casa” (BACHELARD, 2008, p. 201). Embora, muitas vezes, o mundo exterior
se lança para dentro das zonas de conforto.
Por exemplo, em uma sequência, um nativo, em 1609, conta a história de um fera
selvagem que devora pessoas; na mesma página, em 1997, um homem no escuro adentra pela
janela furtivamente. O nativo continua contando a história nas próximas páginas, e em 1998,
uma adolescente lê seu livro sentada no sofá da sala, enquanto um pássaro canta
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incessantemente. A menina coloca a cabeça para fora, grita com o animal que invade a sala e a
personagem foge assustada.
As paredes arquitetadas da casa, reais ou virtuais, oferecem a sensação de fortaleza e
proteção para com as experiências externas, aquilo que é de fora sempre assusta mais, porque
está mergulhado no incerto. Todavia, a experiência interna, por ser fragmentada e dispersa,
também está imersa no aleatório e no incerto, tudo aquilo que se edifica para domar o devir é
ilusão. McGuire representa bem isso em suas páginas quando sobrepõe requadros que recriam
ritornelos de tempos em que a casa nem existia ou não existirá mais e o espaço interno é
invadido pelas forças do mundo externo.
Dessa forma, as páginas de Aqui, que recriam o funcionamento da consciência
humana, sobrepondo e justapondo memórias e devaneios, criando ritornelos territoriais que
resultam em uma narrativa enviesadas, são enclausuradas periodicamente no espaço de uma
casa na tentativa de domar o devir inconstante da realidade. Nesse meio de projeção, o leitor
“vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos''
(BACHELARD, 2008, p. 201).
McGuire encontrou soluções para sua história em quadrinhos que a torna uma
narrativa com ramificações sígnicas e intermidiáticas tão abrangentes que se lançam muito
além das fronteiras da mídia quadrinhos. Nas construções semióticas do canto da sala as
relações com arquitetura, por exemplo, que já foram debatidas anteriormente, dialogam com
outra mídia artística contemporânea, a instalação. Instalação é uma linguagem artística que se
caracteriza pela apropriação de um ambiente e a criação de um espaço de interação com o
espectador. Essa aproximação com a proposta de Aqui se dá tanto pelas articulações
arquitetônicas, quanto pela inserção do leitor dentro das paredes da casa.
A instalação, que se tornou umas das mídias artísticas mais difundidas em meados do
século XX, apareceu pela primeira vez em uma proposta de Kurt Schwitters em 1923, que
transformou seu apartamento utilizando fragmentos de madeiras e papel em uma obra abstrata
chamada Casa Merz. É uma materialidade intermidiática que combina elementos da artes
visuais e da arquitetura e propõe experiências tridimensionais, bidimensionais e sensoriais.
Sua base de construção se centra nas narrativas edificadas em torno dos discursos do espaço e
da estética arquitetônica, e nas definições históricas e sociais dos lugares.
A arquitetura, de um modo geral, sempre se configurou como uma obra tridimensional
produzida e organizada como forma de delimitação de espaços de convivência e para práticas
de atividades domésticas e íntimas dos indivíduos. O objetivo básico da instalação é a imersão
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do espectador nas experiências propostas pelo artista, a narrativa se constrói não só pelos
objetos instalados neste espaço, mas também, sua configuração geométrica e ergonômica.
Tendo em vista as possibilidades intermidiáticas desta narrativa enviesada, McGuire
propôs transpor as páginas de Aqui em instalações para o museu Angewandte Kunst em
Frankfurt, Alemanha, no ano de 2016. A instalação recebeu o nome de Tempo espaço, depois
de “Aqui” (tradução nossa). A página dupla do romance gráfico foi materializada em duas
paredes oblíquas reais e os requadros sobrepostos e justapostos foram remediados em formas
de telas. O espectador consegue adentrar no espaço e interagir com os elementos organizados
no canto da sala.
Figura 28: Instalação Time Space, After “Here” de Richard McGuire no Museum
Angewandte Kunst de 2016.
Fonte:
Disponível em https://www.richard-mcguire.com/new-page-4 acesso e 07/11/2021
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civilização.
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alcançaram. Compreende-se essa oposição, pois Augé se refere ao “lugar do sentido inscrito e
simbolizado, o lugar antropológico” (1994, p. 76), enquanto que essas paisagens são
desprovidas dessa influência antrópica.
No entanto, por conta da natureza múltipla e simultânea da narrativa de Aqui, pela
qual se observa mais de uma dimensão temporal no mesmo enquadramento, possibilita-se ao
leitor contemplar virtualmente a presença humana em um cenário em que a vida não seria
possível. Deste modo, essa capacidade de gerir condições ambivalentes de presença e da
ausência é mais um dos fatores que torna a narrativa enviesada proposta nas páginas dessa
história em quadrinhos propícia a cogitar o não-lugar. Mas, também não se esgota apenas
nessa característica.
Pois, mesmo em cenários em que a presença humana é verificada, seja tanto num
sentido inicial e primitivo, como no caso dos nativos norte-americanos, quanto no auge da
civilização contemporânea, como no momento em casa figura como ponto central, a relação
do leitor com as informações desses lugares ainda é efêmera e fragmentada. Como já citamos
anteriormente, McGuire, ao propor uma narrativa que não se solidifica plenamente e opera no
campo da sugestão, consolida, tanto personagens, quanto leitor, como visitantes passageiros
dessa longa história desse espaço.
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do leitor por McGuire, já que a fragmentação e a não linearidade dessa narrativa enviesada
deslocam o controle absoluto de leitura. É claro que essa é uma afirmação um tanto arbitrária,
uma vez que o leitor ou um espectador, diante de uma obra, se apropria de seus elementos e os
reconfigura segundo sua experiência externa. Mas, esse processo, de fato, se torna muito mais
facilitado em um texto em que as descrições das cenas são detalhadas e diretas ou uma pintura
com uma perspectiva central, isto é, em uma narrativa linear.
Segundo Canton, é próprio das narrativas enviesadas essa construção de tramas que
não se resolvem facilmente e que não tenham seus sentidos fechados em si mesmo, o que torna
a leitura da composição um pouco mais complexa. E desse modo, o habitar nas páginas, que é
fruto de uma captura e decodificação mais ampla dos elementos, não ocorre plenamente. Por
isso, é possível traçar esse paralelo entre o não-lugar de Augé, esses lugares de passagem, no
quais os viajantes não se apoderam do discurso do espaço com as páginas de Aqui, nas quais o
leitor é também um viajante e se apodera do que pode dessa narrativa fragmentada e parcial.
Além disso, em se tratando do romance gráfico de McGuire, as definições do não-
lugar partem tanto da construção das páginas virtuais e multidimensionais quanto da própria
materialidade intermidiática da obra. De certo modo, pensar em intermidialidade é pensar em
um não-lugar das mídias, pois ao cruzar fronteiras midiáticas, as materialidades passam a
ocupar um lugar que não é aquele estabelecido pela tradição e a academia.
E é nesse não-lugar midiático que a obra de McGuire se insere, na apropriação e
remediação de elementos e recursos das literatura e das artes visuais em uma narrativa
enviesada que debate a história humana focando no cotidiano e doméstico. É nesse não-lugar,
fora das hierarquias midiáticas, deslocada da necessidade de afirmação artística das histórias
em quadrinhos que o romance gráfico Aqui encontra seu lugar como materialidade que supera
os moldes convencionais de leitura.
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DEPOIS: CONSIDERAÇÕES
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exercícios estéticos, no entanto, nas páginas dos quadrinhos a projeção virtual e a captura
gestálticas dos elementos tornam a experiência ainda mais potente. Uma vez que toda a
formatação do romance gráfico tanto no layout das páginas, quanto no projeto gráfico colabora
para a construção dessa narrativa enviesada.
A força da narrativa quadrinizada construída por McGuire parece ser a concretização
do que McCloud acredita que uma história em quadrinhos deve alcançar. Pois se consolida
como uma materialidade que oferece uma narrativa aprofundada nas relações humanas e nas
potencialidades intermidiáticas. É nesse caminho, fortalecendo-se como obra artística única e
autêntica, sem necessitar pagar tributo a nenhuma outra mídia, que as histórias em quadrinhos
poderão ser vistas com a seriedade que merecem.
Sendo assim, espera-se que tanto o romance gráfico Aqui , quanto esta pesquisa abram
as portas para um olhar mais apurado da academia, da comunidade artística, dos produtores de
cultura e de gestores escolares acerca do estudo e difusão das histórias em quadrinhos. Pois,
conclui-se com este trabalho que se trata, sem dúvida, de uma mídia que amplia o conceito de
leitura ao descortinar as relações intermidiática de artes visuais e literatura.
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REFERÊNCIAS
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cultura. Obras escolhidas; volume 1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora
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