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Tic tac.
Tic tac.
Tic tac.
É tudo o que eu escuto enquanto encaro o relógio pregado à minha
frente, em cima do quadro. O professor de Cálculo segue dando aula da
forma mais clara e calma possível, e por mais que eu tente prestar atenção
no conteúdo, não consigo focar. A minha sorte é que domino a área muito
bem, porque se dependesse de hoje para eu ir bem na matéria,
provavelmente estaria ferrado, afinal, minha mente não consegue pensar em
nada que não seja na festa que vai acontecer em uma das repúblicas da
Maevis University, daqui a algumas horas. É uma festa à fantasia com tema
geek e algo me diz que há chances de Kayla aparecer nessa festa, mesmo
estando sumida do campus e de qualquer coisa que tenha relação com a
vida universitária desde o tal acontecimento há, agora, quase dois meses.
Sim, isso mesmo, já faz alguns dias desde que vi aquele vídeo do seu
novo visual no Instagram.
E eu consigo visualizar perfeitamente ela se interessando pelo tema,
ou talvez, Elsa a arrastando para a república para que possam aproveitar
juntas. Soube que a turma de Música em peso foi convidada, parece que a
namorada do carinha que está organizando a festa é uma das estudantes
famosinhas do curso, então ela meio que fez questão de se aparecer
exigindo convites especialmente para todos eles, o que só pode significar
que Elsa Castillo está muito bem informada e muito bem inclusa nisso.
E, por mais que Elsa não seja lá uma grande fã de festa, tão pouco
Kayla, sei que existe uma porcentagem de chance de estarem no mesmo
ambiente que eu essa noite. Pode ser uma porcentagem bem pequena, mas
existe.
Se fosse há um tempo, eu ficaria aterrorizado com a possibilidade,
porém não é o que está acontecendo agora, não depois do que eu vi e do que
eu coloquei na minha cabeça sobre Kayla Benson. Ela não merece mais
nada meu, a não ser o meu desprezo e a minha raiva. Ela não pode e não vai
ter mais nenhum efeito sobre mim e sobre as minhas emoções. Eu não vou
mais lhe dar o gostinho da minha tristeza e das minhas lágrimas, não
quando estava esbanjando sorrisos e despreocupações por aí. Já passei
tempo suficiente me martirizando, me castigando, me culpando e me
amaldiçoando, agora já chega, já deu, para mim aquilo foi o basta que eu
estava precisando. Eu estava mesmo necessitado de um banho de realidade
para acordar e, no fim, fico feliz que aconteceu.
Antes tarde do que nunca, é como dizem.
Não que eu esteja curado ou que eu tenha superado, não que eu ainda
não sinta o meu coração doer ou qualquer uma das coisas que se sente
quando se é traído pela pessoa que ama, não, nada disso, eu ainda estou no
vazio, só que é diferente agora. O meu vazio está sendo preenchido por uma
outra coisa. Uma coisa até então desconhecida e particularmente nada
bonita e genuína. E foi com esse sentimento novo que não pensei duas
vezes assim que os meninos apareceram contando sobre a festa, que estava
deixando a universidade inteira em polvorosa e animada. Eles supuseram
que eu não gostaria de ir, decidiram até que não iriam também, só por isso,
entretanto eu fiz questão de dizer que estava bem, que nós merecíamos um
pouco de diversão e que sim, estávamos confirmados e que era para
arranjarmos fantasias de nerds o mais rápido possível.
Eles ficaram tão felizes ao me escutarem que inventaram um abraço
em grupo e depois, Justin Harris passou a fazer uma lista de ideias para
cada um de nós, vibrando internamente e externamente por finalmente estar
sendo exaltado, palavras dele. Agora todos nós já tínhamos nossas fantasias
e estávamos só esperando o momento que eu intitulava de “O Retorno”,
porque a partir dessa festa eu voltarei a ser o Sebastian Skalbeck de sempre,
só que agora numa versão não mais besta e inocente. Porque se a dor não te
mata, pelo menos ela te ensina algumas lições importantes que você nunca
mais irá esquecer.
Tamborilo as pontas dos dedos na mesa, olho mais uma vez para o
relógio e, cerca de cinco minutos depois, o alarme soa de forma estridente
para me fazer soltar um suspiro de alívio junto com todos os meus colegas,
que também pareciam ansiosos por esse momento. O professor dá seu
último recado, nos indicando um dos seus incontáveis documentários
favoritos e em seguida, nos libera da sala com um sorriso polido. Parecendo
ensaiado, tanto eu quanto os meus colegas nos levantamos de forma
apressada, juntamos os nossos materiais e deixamos tudo para trás em
menos de um minuto, como se o mundo inteiro lá fora estivesse caindo e
precisássemos fugir. Pelo menos é assim que eu me sinto, desesperado para
fugir desse ambiente e ir diretamente para casa.
Falando assim parece até que eu não gosto de estudar, mas eu gosto,
minhas notas continuam milagrosamente ótimas e eu continuo sendo
destaque, o problema é que hoje, especialmente hoje, eu não quero saber
nada de Física.
Ando segurando as alças da mochila, serpenteio por alguns alunos no
corredor, aceno para os que gritam meu nome e rapidamente saio do bloco
onde costuma acontecer minhas aulas, dando de cara com Justin assim que
passo pela porta. Não é algo que me deixa surpreso, entretanto. Ele cursa
Astrofísica e nós sempre acabamos nos trombando por essa parte da
universidade.
— Rá! Olha só quem está aqui! — Justin parece mesmo feliz ao
perceber minha figura e isso soa engraçado para mim, porque parece que
não nos vimos, nem nos falamos há algumas horas. Duas, mais
especificamente. Ele faz com que nossas mãos deem toques camaradas e
depois dá um passo para trás, ainda sorrindo à medida que me encara. Não
há óculos de grau nem camiseta de anime compondo seus trajes hoje, o que
é um milagre. Digo sobre a camiseta, óbvio, pois ele continua sem usar
óculos fora de casa e não é nenhuma surpresa que esteja de lentes de
contato, exibindo ainda mais o tom bonito de azul dos seus olhos. Harris
está usando um moletom laranja com somente o símbolo de raposa na
frente, calça jeans, que deve custar mais do que eu posso imaginar, e
sapatos, que eu posso apostar que é de alguma marca milionária, mas que
ele faz questão de fazer parecer que é simples e bem humilde, pois não tem
nenhum símbolo ou nome aparente. Esse é um riquinho mimado
diferenciado. Enquanto os outros tentam esfregar na nossa cara que
possuem boas condições, Justin, que é herdeiro de uma fortuna das boas,
gosta de parecer casual. A verdade é que ele também não precisa mostrar
nada para ninguém, todo mundo sabe muito bem de quem ele é filho e isso
basta. — Já está indo para casa? — pergunta, agora andando ao meu lado.
— Já sim e você?
Ele vira sobre os ombros e eu dou risada da expressão quase
assustada que cobre seu rosto.
— Claro! Preciso experimentar minha fantasia antes de ir. Sabe como
é, só por segurança.
Mais uma risada me escapa.
— Você já a experimentou umas, sei lá, duzentas vezes. Que
diferença vai fazer?
Justin dá de ombros.
— Não sei, só preciso estar perfeito.
Estreito os olhos e um vinco se forma entre as minhas sobrancelhas.
— Por acaso tá a fim de alguém?
Quase voo para o lado no instante em que ele decide empurrar seu
ombro no meu, dizendo logo em seguida:
— Sou atleta e gostoso, no entanto ainda sou um grande nerd. A única
coisa que eu quero com a minha fantasia é impressionar o meu eu interior.
Não tem garota nenhuma envolvida, pode acreditar.
— Ainda bem, se não já ia ter que te dar um conselho sobre como
elas parecem extremamente inofensivas e na verdade, são extremamente
cruéis.
— Não é muito sábio generalizar. — Bufo de brincadeira pelo seu
jeito diplomático e ele me dá outro empurrão. O empurro de volta e todas as
pessoas ao nosso redor param para nos olharem, só que não ligamos e
continuamos andando e rindo. — Estou falando sério, Seb. Não coloque
isso na sua cabeça. É errado todas pagarem por culpa de uma.
No fundo, eu sei, contudo ainda acho cedo demais bancar o maduro.
— Por falar nela, por onde Kayla Benson está andando?
Paraliso por um segundo, porque é a primeira vez que falam o seu
nome em voz alta perto de mim. Era sempre ela, aquela garota, nunca
Kayla, quem dirá, Kayla Benson. Para tocar no assunto já era difícil,
mencioná-la dessa forma tão vívida era algo impossível, por isso que me
espanta e me deixa um pouco desnorteado que ele fale assim tão
diretamente, meu pomo-de-adão desce e sobe conforme engulo em seco.
Não estava mais acostumado com o som dessas palavras. Por mais que eu
ainda mencionasse em minha mente, em nada se compara ouvi-las em voz
alta depois de quase dois meses, é simplesmente esmagador e sufocante,
capaz de roubar todo o meu fôlego.
Imediatamente fecho a mão em punho e cravo as unhas na palma com
força, sentindo raiva. Conto até dez mentalmente para me livrar dessa
sensação súbita, trago uma grande quantidade de ar para os meus pulmões e
abro a minha mão, me livrando do aperto em mim mesmo.
Justin provavelmente percebe o que fez, pois encolhe os ombros,
como se tivesse se arrependido, e estala os lábios antes de soltar:
— Desculpa, eu não deveria ter perguntado nada disso, óbvio que
você não sabe por onde ela anda, que coisa mais estúpida. — Ele bate
levemente em sua testa. — Você pode me dar um soco se quiser. Os
meninos disseram que o nome dela era proibido e eu acabei de mencionar
como um maldito boca grande.
Enfio as mãos dentro dos bolsos da frente da minha calça e rio fraco.
— Não acredito que vocês decretaram uma coisa dessas.
— Sim, decretamos. Tipo Voldemort.
Parece que tinha sido algo combinado, mas não acredito que
realmente tenha sido.
— Quem foi que deu a ideia?
— Lionel e Maddox. Juntos.
Reviro os olhos ao balançar a cabeça de um lado para o outro.
Claro que foram eles.
Lionel e Maddox fazem tudo juntos, não me surpreende que pensaram
a mesma coisa sobre isso.
— Deixa eu adivinhar, Kellan não estava nessa hora, certo?
— Óbvio que não, ela ainda continua sendo a irmãzinha dele, apesar
de tudo. Sei que Kellan permanece triste e repudiou totalmente o que Kayla
fez, ainda assim, ela é a sua família e a gente respeita isso.
Fico em silêncio, desvio a minha atenção para os meus tênis em
movimento e me concentro no que meu amigo acabou de me dizer.
A minha situação com Kellan é mais complexa do que qualquer outra
e não sei dizer muito bem como estamos, tudo aconteceu como um baque
para nós dois. Ele não esperava que eu e a irmã dele estivéssemos o
enganando, muito menos esperava que Kayla estivesse me usando para algo
tão patético e infantil quanto uma aposta, essa sendo revelada da forma que
fora, me humilhando totalmente. Sei que ele ficou com raiva de mim, no
fundo, talvez ainda esteja, todavia não houve socos, brigas, ofensas e muito
menos gritos. Quando nos encontramos, na semana em que eu deixei a
minha porta aberta pela primeira vez, ele parecia tão abatido e tão abalado
quanto eu, era visível a sua tristeza e o quanto aquilo estava o destruindo
externamente e internamente. Foi como encarar um espelho, coisa que eu
não estava fazendo naquele momento. Sua dor e sua decepção pareciam
com as minhas, então foi rápido de perceber que nós dois estávamos
machucados e não tínhamos forças para mais nada, por isso passamos uns
bons minutos olhando um para o rosto do outro, falando coisas que não
éramos capazes de falar em voz alta, até que tivéssemos coragem para pôr
para fora o que estávamos sentindo.
Automaticamente minha mente me recorda da cena.
— Me desculpe — sibilei baixinho, já sentindo lágrimas escorrerem
por minhas bochechas. Olhar para ele naquele momento era terrível.
Primeiro, porque me lembrava dela, de quem eu queria esquecer para
sempre. Segundo, porque eu sentia vergonha de ter feito o que eu fiz,
agindo como um adolescente imaturo e egoísta, pensando apenas nas
minhas vontades e nos meus sentimentos, como se minhas ações não
pudessem o afetar, alguém que estava se tornando próximo e importante
para mim e para todos os outros meninos, meus irmãos. Eu menti, o
enganei, o fiz de idiota e agora me arrependo amargamente. Não posso ser
hipócrita, fiz tudo de forma consciente, eu tinha noção e ciência de cada
passo e de cada atitude que tomava, porém naqueles momentos nada
importava, porque eu estava apaixonado e seria capaz de fazer qualquer
coisa para tê-la, até mesmo esconder e enganar. Mas agora vejo que cada
escolha minha me levou para o buraco, para um poço sem fundo que não
posso sair, pois não há escapatória. Se fosse só a mim, tudo bem, porém
ainda tinha Kellan e ele estava no mesmo lugar que eu, arrastado para
dentro do caos, que eu tive a minha parcela de culpa em ter criado. — Por
tudo. Eu... eu me apaixonei perdidamente pela sua irmã no exato segundo
em que a vi. Antes que pense que foi no jantar, não foi, foi bem antes, em
uma linda manhã onde o sol estava quente e radiante, fazendo-a brilhar
para mim. Ela era a mulher dos meus sonhos e eu a queria, não
importando as consequências. Só... me desculpe, Kellan, agora percebo o
quão errado tudo isso foi. Agora percebo o quanto tudo estava
predestinado a acabar assim, do jeito que me encontro. Nenhuma relação
consegue ser construída em cima de mentiras. E foi só isso que eu e Kayla
fomos, mentiras e mentiras. — Soluço e mordo o canto do meu lábio
inferior antes de continuar: — E, se vale de alguma coisa, eu ia te contar.
Eu ia te chamar para conversar, contar toda a nossa história, te pedir
desculpas e também, em forma de respeito, pedir a mão da sua irmã em
namoro antes mesmo de pedir para ela. Infelizmente, não tive tempo. Não
tive tempo de fazer nenhuma dessas coisas.
Escondi o rosto entre as minhas mãos, simplesmente sem aguentar
tamanha vergonha. No entanto, em um determinado momento, me ergui
porque senti sua mão sendo repousada em meu ombro, apertando a região
como forma de apoio.
— Me desculpe também. — Sua voz saiu embargada e os seus olhos
brilharam com água cristalina, mas eu me neguei a aceitar suas desculpas,
ele não tinha culpa de nada. — Sim, eu tenho — garantiu. — Ela é minha
família e saber que ela brincou assim com você, com seu coração, me
envergonha. Então me desculpe.
Foi apenas isso que conversamos. Kellan foi embora logo após me
dar um abraço de conforto, como se realmente estivesse se desculpando
pela sua irmã, ciente, provavelmente, de que ela seria incapaz de tomar essa
atitude. Tínhamos muito mais para discutir, conduto acredito que nem eu,
nem ele, estávamos prontos e com disposição para abrirmos ainda mais
aquela ferida. O pouco que falamos foi suficiente para que ambos
entendessem seus arrependimentos e a culpa que estávamos cultivando
dentro do peito. Ele poderia estar bravo, porém percebeu o quanto eu a
amava de verdade e o quanto, para mim, nossa história era real e não apenas
algo libertino e leviano, feito na surdina apenas com intenções sujas. Ele
sabia que eu estava mal e também estava se sentindo mal por isso, mal por
ter sido a sua irmã a fazer algo assim. E eu jamais o culparia. Foi então que,
nesse e em outros momentos, percebi que sua maior angústia não foi nem
ter sido enganado por mim, mas sim por Kayla, sua melhor amiga, sua
garotinha, sua família e o seu maior tesouro. Ele jamais poderia imaginar
que ela faria qualquer coisa parecida com o que fez, afinal, sempre foram
confidentes, sempre foram carne e unha, não havia nada que eles fizessem
que um não partilhasse com o outro. E ainda tinha a aposta, para piorar
tudo, para quebrar de vez com o que costumava achar da sua irmã.
Provavelmente o seu baque foi muito maior que o meu. Não tinha
comparação.
Não sei como os dois estão agora, entretanto Kellan ainda continua
distante e triste. Por isso que digo que tudo é complexo ainda. Por mais que
tenhamos pedido perdão um para o outro, por mais que ainda estejamos
morando juntos e por mais que tenhamos uma convivência tranquila, na
medida do possível, não somos mais os mesmos. Nem eu nem ele. Mesmo
depois desse tempo todo, não nos aprofundamos mais nesse assunto e
sempre fingimos, quando estamos juntos, que não há um elefante ocupando
o espaço entre nós dois. É tudo muito respeitoso e muito normal, no
entanto, não há mais aquele brilho na amizade, e eu sinceramente entendo.
A confiança foi perdida e ainda é muito cedo para restaurá-la. Ainda é
muito cedo para querer algo além do que estamos tentando ter,
simplesmente. O que eu digo para mim mesmo é que eu deveria ficar feliz
pelo jeito que estamos lidando um com o outro, poderia ter sido muito pior
e muito mais feio se Kellan realmente quisesse descontar suas emoções em
mim.
Um passo de cada vez.
— Você tem razão, Harris. — Engancho meu braço em seu pescoço e
o faço andar bem junto a mim, depois de ficar um tempinho preso em
minha própria cabeça, bagunçando os fios do seu cabelo como se ele fosse
meu cachorrinho. — Agora deixa essas coisas para lá, vamos para casa,
vamos nos preparar para a festa mais tarde.
— Sim, senhor capitão. — Ele sorri. — É assim que a gente gosta de
ouvir você falar.
Faz algumas horas desde que descobri que a minha melhor amiga ama
e leva muito a sério suas fantasias, seja em festas com o tema ou em
Halloween, porque ela deu a sua vida toda para montar a de hoje. Por mais
que eu já tenha a visto vestida na fantasia enquanto andava pelo dormitório
de um lado para o outro, ainda fico besta. Tão logo estacionamos em frente
à república e saímos do carro, ficamos uma de frente para a outra para
conferirmos se está tudo certo com as nossas roupas.
Tudo mais do que perfeitamente certo, na verdade.
Elsa está vestida com um collant de corpo inteiro, azul e de listras,
simbolizando um Avatar, como nos filmes. Ela até colocou cauda e fez
maquiagem do pescoço para cima, ficando toda azul, isso depois de passar
horas de frente para o espelho assistindo tutorial no Youtube. Foi
extremamente trabalhoso, porém ela ficou igualzinha, além de linda, claro.
Uma prova disso é que quem passa por nós agora, a elogia e a parabeniza
pela caracterização.
Isso porque ela teve pouco tempo para pensar na fantasia, imagina se
ficasse sabendo da festa antes. Seu cartão de crédito ia pedir a morte.
Ao contrário dela, eu estou simples, contudo, a minha fantasia é
significativa, especial e também dentro do tema. As pessoas saberão quem
sou assim que puserem os olhos em minhas roupas, as quais tentei encontrar
mais parecidas possíveis, para fazer jus à minha personagem.
De repente, tremo.
É a primeira vez que penso na possibilidade de Sebastian e o restante
das raposas estarem aqui esta noite. Meu sexto sentido diz que, sim, eles
estarão aqui, se é que já não estão espalhados pela casa.
Merda.
Não tive tempo de refletir sobre isso antes, com tantas coisas sobre as
pessoas, a fantasia e o maldito horário para não atrasar, tomando conta da
minha cabeça. O mais importante, de fato, deixei passar.
Inspira. Expira. Inspira. Expira.
— É a ansiedade? — Sobressalto assim que percebo Elsa ao meu
lado, com a mão em meu ombro, porque não a vi se aproximar. — Vamos
voltar para o dormitório agora mesmo.
A impeço, fazendo-a refrear seus movimentos, que já estavam
próximos de nos levar de volta ao seu carro.
— Não é uma crise, só fiquei nervosa porque não tinha me dado conta
até então de que Sebastian pode estar lá dentro. Não sei como reagir se isso
acontecer.
— O máximo que pode acontecer é vocês trocarem olhares. Duvido
que ele vá querer fazer uma cena aqui ou até mesmo pedir para conversar
num ambiente nada propício como esse. É só você respirar, agir com
tranquilidade e confiar em mim e no meu poder de diversão. Te prometo
que estará tão entretida em mim, que não se lembrará de mais nada.
Promessa de dedinho. — Ergue o mindinho no ar. — Confia ou não confia?
— Confio. — Mordo um sorriso ao enganchar nossos mindinhos
como duas crianças. — Vou focar em nós duas e mais nada.
— É isso aí, garota.
Então ela me empurra para frente e começa a andar comigo para
dentro da festa. No segundo em que passamos pela porta, uma onda de calor
sobe pela minha espinha e sinto olhos queimando, às minhas costas e por
todos os lados. Como Elsa sabe que é um momento difícil, faz questão de
chamar minha atenção e contar algo engraçado sobre a sua turma de
Música, que em peso está por ali, fazendo a própria festa enquanto cantam e
dançam juntos. Minhas írises estão nelas, minha atenção também, mas
ainda sinto sensações esquisitas percorrendo a base da minha coluna. Eu sei
que estão cochichando e falando sobre mim, talvez até mesmo sobre a
minha nova aparência e sobre o que estou pensando para ter colocado os
pés aqui. E também sei que, merda, ele está aqui em algum lugar, eu posso
senti-lo. O ambiente está diferente, o ar está crepitando e as minhas mãos
estão suando tanto que só pode significar sua presença em algum canto
desta sala colorida, barulhenta e movimentada.
Ainda posso chutar que está me observando na surdina, suas írises
soltando lasers mortais em minha direção, como se pudesse me desintegrar.
Basta uma olhada para a frente, mais especificamente para o fundo, e
tudo para.
As pessoas, a música, tudo ao meu redor congela. Inclusive eu.
A única coisa em movimento é a luz vermelha, que clareia todo o seu
rosto e a sua figura escondida em um canto da parede, com um quadro
pendurado acima de sua cabeça. Ele está segurando com força o copo de
cerveja ao passo que seus olhos gélidos encaram os meus, que saltam diante
do seu escrutínio nada gentil. Meu coração vai parar na boca e a única coisa
que consigo pensar é em como Sebastian está diferente da última vez que o
vi, perto do meu dormitório depois da consulta com a doutora Ella. Ele
parece fisicamente bem e estável, não mais com aquela aparência péssima
de quem estava claramente passando por um momento difícil. Sua postura
voltou, bem como todo o seu jeito que eu conhecia e costumava admirar,
deixando-o igual ao capitão de sempre. Ainda assim, mesmo com a mesma
aparência, Skalbeck me parece diferente, talvez pela mandíbula cerrada,
pelos olhos frios, severos, incompreensíveis ou até mesmo pela raiva
oscilando em cada centímetro da sua face. Enquanto ele me fita, em nada
me faz lembrar as outras vezes. Não há luz. Não há brilho. Não há sorrisos.
Não há amor. Não há resquícios do que vivemos. À medida que ele me fita,
nesse exato momento, a única coisa que há é tormento. Frio. Gelo. Neve
congelando e fazendo cada osso do meu corpo doer com seu claro desprezo.
Não sei o que estava esperando encontrar em seus olhos castanhos
quando ficássemos frente a frente, só que isso, oh Deus, isso é demais para
suportar. Eu vi a sua tristeza e agora estou vendo a sua raiva sendo formada.
Tudo o que ele um dia sentiu por mim, se transformou nisso que ele está
tentando transmitir em silêncio: mágoa, remorso, revolta, dor, profundezas
caóticas. Coisas bonitas se transformaram em coisas feias. Momentos lindos
foram manchados por erros e tudo o que vivemos foi afetado, distorcido, até
possivelmente apagado. Estávamos ambos cruelmente quebrados.
“Deus, ele pode me odiar agora, eu aceito, só... por favor, faça esse
sentimento ser passageiro. Não porque eu quero me beneficiar com isso,
mas sim porque não posso viver sabendo que sua bondade e sua fé foram
consumidas pela escuridão. Simplesmente não posso viver sabendo que, de
alguma forma, mudei sua personalidade tão única e tão inspiradora,
arrancando o amor que ele emanava ao mundo”, é o que eu oro à medida
que serpenteio os alunos, com Elsa ainda em meu encalço tentando
conversar comigo, mesmo que eu acredite que ela tenha percebido a
grandiosidade do que está acontecendo entre mim e o garoto nos fundos,
que já não mais reconheço.
Espera, por falar em reconhecer, agora que me dou conta da sua
fantasia. A semelhança é nítida e mesmo tendo noção disso, me faz chocar
os cílios, como se eu quisesse ter mesmo certeza do que está diante de mim.
A coincidência me assusta, bem como o peso do significado desse
momento.
Lá está Sebastian, vestido de Peter K., ao passo que eu estou de Lara
Jean.
Aquele moletom é completamente reconhecível, o mesmo que
Kavinsky usou no final do filme quando a Lara Jean foi ler a carta no meio
do campo de lacrosse.
Se é de coincidência que estamos falando, aqui vai mais uma, eu
também estou vestida com a roupa dessa cena. Que ótimo.
Assim que Elsa me falou que o tema da festa era geek, eu logo quis
me fantasiar como alguma personagem de livro e Lara Jean Song Covey foi
a primeira que me veio à mente, porque ela significa muito para mim,
principalmente depois de Sebastian ter lido o livro comigo em ocasião tão
difícil. Era algo não tão difícil e totalmente reconfortante. Estar com as
roupas dela era como, no fundo, estar de volta ao dormitório, de volta aos
nossos encontros, de volta aos nossos apelidos, de volta a nós dois. Espero
que ele não pense que isso aqui é uma provocação, porque não é isso que
estou pensando da dele. Quero acreditar que, assim como eu, também
decidiu, de alguma forma, nos homenagear.
Posso estar me iludindo? Posso, porém, continuarei presa a isso até
que Sebastian diga ou prove o contrário, o que sei que não acontecerá.
Desvio a minha atenção da dele quando uma garota passa por mim
empurrando meu ombro de propósito, guincho com a dor e com a falta de
educação. Troco olhares de descrença com Elsa e, no segundo em que
decido voltar àquele ponto, não há mais ninguém na parede. Sebastian
simplesmente desapareceu.
Ou será que foi a minha mente que imaginou tudo?
— Você vai querer dançar agora? — minha amiga grita por cima da
música da Halsey. — Ou vai esperar por um reggaeton? Juro que nesse
ritmo eu dou aula.
Sorrio, tendo a certeza que sim, já que ela dança o tempo todo sempre
que põe suas músicas para fazerem barulho dentro do nosso apartamento.
— Será que vai tocar? — retruco na mesma altura. — Essa festa está
me parecendo muito... Estados Unidos da América.
Ela entreabre os lábios e põe a mão na cintura.
— Merda, tem razão, vou ter que dar um jeito nisso.
Rio.
— Tipo como?
— Tipo procurando a pessoa responsável pelas músicas.
Estadunidenses que me perdoem, mas eles não sabem como dar festas. A
latina aqui vai ter que ensinar. Você vem comigo?
Faço que não e cruzo os braços, achando graça.
— Vai lá, latina gostosa, eu te espero aqui.
Uma piscadela é lançada em minha direção.
— Não saia daqui, ok? Volto em cinco minutos com CNCO tocando
no fundo. Nem que seja a versão com Little Mix, entretanto eles vão ter que
colocar.
Essa garota é persuasiva, com certeza vai conseguir o que deseja com
um sorriso e com sua carinha meiga de boneca.
Como não estou no meio das pessoas, graças a Deus, e sim em uma
parte com pouco movimento e também próxima a um canto afastado,
decido passar meu tempo mexendo em meu celular. Cinco minutos e ela
estará de volta. Cinco minutos e nós dançaremos juntas uma de suas
músicas favoritas. Cinco minutos e seremos só nós duas nessa festa, sem
mais ninguém para atrapalhar nossa primeira saída como duas jovens
universitárias. Entro nas mensagens, não vejo nada de especial —
obviamente porque não há mais ninguém para me mandar coisas que façam
minha barriga encher de borboletas — e decido escorregá-lo de volta para o
bolso da minha saia no instante exato em que alguma coisa, ou melhor,
alguém se aproxima de mim por trás, fazendo com que eu me arrepie da
cabeça aos pés por sentir a familiaridade do cheiro, da presença e da sua
magnitude.
Prendo a respiração em meus pulmões e fecho as minhas mãos em
punho, nervosa.
— Olha só para você. — A voz impassível de Sebastian me desperta
um turbilhão de emoções, que fazem a minha barriga doer e a merda da
república girar. Comprimo os lábios quando o sinto se aproximar ainda
mais, desfazendo a nossa distância para me aprisionar e fazer com que eu
me sinta bem, bem pequena, do tamanho de uma formiguinha. — De Lara
Jean. É algum tipo de piada? Provocação? — Rapidamente nego, assustada
e ele ri anasalado, sem humor. — O que você fez já não foi o suficiente para
me quebrar? Agora tinha que aparecer, depois de quase dois meses, justo...
assim?
A pontada de dor em seu timbre me quebra ainda mais.
Eu sabia que ele poderia entender tudo errado no segundo em que se
desse conta.
— Mas você está de Peter — consigo dizer. — Por quê?
Mais uma vez, ele ri.
— Está pedindo por explicações? — Suas palavras gotejam sarcasmo.
— Não deveria ser o contrário? Ah, desculpe, meio tarde para isso. — Não
posso vê-lo, contudo posso imaginar que está com aquela mesma expressão
de minutos atrás, tão fria quanto a droga do Alasca.
Lágrimas.
Preciso sair daqui ou vou chorar em sua frente.
— Estou indo embora.
— Sim, vá, é o que você sempre faz.
Fecho os olhos e desapareço com a única lágrima solitária que
escorre, inspirando profundamente para conseguir dar o primeiro passo.
Todavia, não consigo. A verdade é que quero me virar, tocar em seu rosto,
pedir perdão e implorar para voltar, porém não posso, esse não é o momento
certo. Não foi desse jeito que imaginei nossa primeira conversa e não posso
agir por impulso, não depois de ter feito isso tantas e tantas vezes. Por mais
que a minha saudade seja grande, por mais que a minha vontade de poder
falar tudo seja ainda maior, preciso me lembrar que tudo tem seu tempo.
Essa festa não é sobre ele, não é sobre nós, é sobre mim e Elsa.
— Você ainda entenderá cada ação minha — falo mais para mim do
que para ele, no entanto, acredito que possa ter escutado cada palavra. —
Você ainda entenderá tudo, eu prometo.
Há um silêncio desconcertante, até que Skalbeck o quebra,
mencionando algo quando já estou me movimentando para sair desse
espaço.
— Belo visual. — Sua língua parece estalar no céu da boca. — As
tranças combinaram com você. Fisicamente falando, claro, porque eu não te
conheço. A propósito, em algum momento eu conheci?
É, já deu, não vou me maltratar ainda mais ouvindo essas coisas.
Tenho coragem de virar sobre os ombros, mas só para dizer uma
única coisa, a minha voz já embargada.
— Tchau, Sebastian.
O calor inunda meu corpo e eu estou dançando com Elsa na pista
improvisada, porque sim, ela conseguiu pôr uma música da sua banda
favorita para tocar. Na verdade, não só isso como também exigiu qual que
queria. Honey Boo do CNCO foi a escolhida da vez, deixando essa pequena
Avatar, à minha frente, completamente animada e, claro, agindo como uma
fã adolescente orgulhosa de seus ídolos. Ela dança sem se importar em
parecer normal, com os braços balançando no ar e eu tento seguir seus
passos como uma boa amiga, que não quer deixá-la passar vergonha
sozinha na frente de tantas pessoas curiosas, que ficam observando
enquanto Elsa canta a plenos pulmões com o seu espanhol impecável,
seguindo o ritmo da música, que para mim já é conhecida.
— Nadie tiene más sex appeal que tú — grita e aponta para mim,
sorrindo, como se estivesse me dedicando essa parte da canção. Bom, eu
sorrio de volta, mesmo não sabendo o que significa. — Y por donde pasas
eres el boom...
Então continua cantando, fazendo seu show particular e atraindo cada
vez mais olhares e cada vez mais pessoas ao nosso redor. Eu me retraio um
pouco e a deixo brilhar, afinal, acho que esse aqui é o seu momento, e eu
também não estou na melhor das alegrias depois do meu rápido e desastroso
encontro com Sebastian. Não contei nada à Elsa para não atrapalhar nossa
noite e nem para sobrecarregá-la com os meus problemas, por isso que
estou aqui na pista, tentando. Tentando por ela e pelo que eu já havia
prometido, não querendo decepcioná-la. Mas a verdade é que a minha
vontade é de sumir desse lugar, porque, mesmo não o vendo agora, sei que
ele está em algum canto dessa festa, talvez até me observando e pensando
coisas, que não são nem um pouco verdadeiras, ao meu respeito. Eu sabia
que seria difícil dividir o mesmo ambiente que ele, porém não sabia que
seria tanto, muito menos sabia que iria encontrá-lo do jeito que está, cheio
de raiva e pronto para jogar coisas, as quais ele não entende, na minha cara.
Foi difícil manter a compostura e não desabar, vendo-o tão diferente e tão
distante. E eu ainda sinto o gelo esmagador que emanava do seu corpo em
minha espinha. Eu ainda sinto o seu desprezo e o seu remorso em cima de
mim, gotejando como ácido, abrindo ainda mais e mais feridas em minha
pele, cortando até mesmo o meu mais profundo âmago. Eu ainda estou
escutando sua voz cortante bem às minhas costas, soltando frases
articuladas para mostrar como sou a vilã da nossa história e como, até
agora, não fiz questão de procurá-lo para me desculpar e, quem sabe, me
explicar.
Como eu disse mais cedo, ainda vou conseguir explicar tudo, eu só
espero que ele tenha paciência e calma. Se é que isso é possível. Depois de
hoje, tenho as minhas dúvidas de que Sebastian vá conseguir me esperar.
Ou, se assim que for possível conversarmos, vai estar tão de saco cheio de
toda essa merda, que não vai querer mais me ouvir, que já vai ter partido
para outra e até mesmo superado. Sua tristeza evoluiu para raiva e disso,
para simplesmente não sentir mais nada, é muito rápido, o que me deixa
apavorada. Só em pensar que podemos seguir desse jeito, separados e com
assuntos inacabados, sem um ponto e vírgula ou até mesmo um ponto final,
sinto calafrios de tanto medo.
Porque Sebastian ainda sente algo por mim, nem que seja raiva, só
que até quando?
Até quando eu estarei ocupando a sua mente e o seu coração?
Pode ser até daqui um mês, daqui um ano ou até mesmo somente
hoje. Amanhã o capitão do Maevis Fox pode acordar muito bem, não
querendo mais se desgastar comigo e seguirá o seu caminho, enquanto eu
ainda permanecerei aqui, na espera do momento certo. E se ele nunca
chegar? E se eu nunca me sentir preparada? E se eu nunca, sob hipótese
alguma, melhorar? São perguntas que me faço agora, pois não tinha
pensado nelas até então, não tinha me dado conta de que, dependendo do
tempo que levar, não vai adiantar mais nada. As desculpas não serão mais
importantes e eu muito menos. Posso perdê-lo para sempre, se é que já não
aconteceu, e tenho que começar a colocar isso na minha cabeça para
preparar meu psicológico, caso venha a ter a confirmação concreta. No
entanto, mesmo sabendo disso, ainda tenho que me agarrar a um fio de
esperança e continuar pensando em mim, na minha recuperação e no meu
novo propósito, sem querer apressar as coisas por colocá-lo à frente das
minhas necessidades só por medo. Já fiz muito isso e não é justo comigo
mesma, nem com Sebastian.
Eu preciso manter a minha promessa e é isso mesmo que vou fazer.
Cruzo dois dedos atrás das minhas costas, fecho os olhos por um
instante e rezo para que dê tudo certo no fim. Que a raiva dele seja
momentânea. Que ele ainda me ame. Que ele ainda queira ser meu melhor
amigo.
Abro os olhos e então percebo que passei tempo demais dentro da
minha própria mente, sem reparar o que estava acontecendo ao meu redor,
pois agora Elsa está presa dentro de um pequeno grupo enquanto dança e eu
estou presa dentro de outro, em uma roda um tanto quanto conhecida.
Franzo as sobrancelhas por alguns segundos diante da cena e depois, sem
graça, ergo meus lábios em um sorriso fraco para Lionel Prince, Daniel
Maddox e Justin Harris, que estão ao meu redor, completamente estoicos,
de braços cruzados, com semblantes típicos de Guardas da Família Real e,
ainda por cima, vestidos de Caça-Fantasmas. Eles parecem que acabaram
de encontrar o monstro que tanto estavam procurando, porque todos os
pares de olhos me encaram com um brilho perverso nas írises, um brilho
que claramente indica o quanto estavam esperando por essa oportunidade,
para me colocarem dentro da toca, à força.
E lá vamos nós de novo.
Até aprumo os meus ombros para me preparar para as balas que todos
eles irão atirar em meu corpo.
— Ahnnn, olá — é o que escapole da minha boca quando essa troca
de olhares começa a me deixar incomodada, envergonhada e sem saber o
que fazer. Todos os amigos de Sebastian se entreolham, ainda sérios, e
depois voltam a fixar os olhares em mim, como se ainda estivessem
estudando a hipótese de me responder ou não. Diante dessa reação, que só
me deixa ainda mais embaraçada e querendo fugir, solto um pigarro, limpo
o suor das palmas das minhas mãos na barra da minha saia e começo a olhar
para o lado com o pescoço esticado, tentando achar uma brecha para
escapar para onde a minha melhor amiga está. Bufo de forma frustrada para
mim mesma e retorno a atenção para os meninos do Maevis Fox, sorrindo,
novamente, de forma forçada e que me faz parecer uma idiota. — Quanto...
tempo, não? — Péssima coisa a se dizer, Kayla. Limpo a garganta pela
segunda vez. — Foi ótimo ver vocês. Tenham uma ótima festa. Se me
permitem, estou indo bem ali.
Antes que eu possa fazer menção de apontar ou até mesmo de me
movimentar, os três, de forma sincronizada, dão dois passos em minha
direção e me deixam presa diante da muralha enorme que eles se tornam à
minha frente, me impossibilitando de sair dessa merda de lugar. Se antes eu
adorava futebol americano, agora eu odeio, esse esporte não deveria exigir
jogadores tão altos, tão fortes e tão... brutamontes. Eles não me pareciam
tão ameaçadores assim quando éramos amigos e eu frequentava a casa
deles. Lionel era como um adolescente engraçado e louco por atenção,
Justin era sorridente, meigo e amigável e, por mais que Daniel sempre tenha
carregado o ar de bad boy encrenqueiro, nunca vi, com os meus próprios
olhos, algo que fizesse jus a sua fama sem ser a sua óbvia aparência.
Contudo, aqui estão eles, querendo provar para mim que, embora eu tenha
conhecido o lado bom deles, agora conhecerei e terei que lidar com o lado
ruim, porque ninguém mexe com uma das raposas sem que afete o grupo
inteiro, ninguém mexe com uma das raposas e sai impune ou sem ao menos
ver do que eles são capazes.
Por isso que são os melhores de Montana e se destacam dentre todos
por um motivo; união.
Posso estar ferrada agora, o que me deixa sinceramente muito triste,
porém algo dentro de mim, o que se importa e sempre irá se importar com
Sebastian Skalbeck, meu primeiro amigo, meu primeiro amor, fica feliz por
ver que ele nunca estará sozinho. Mesmo sem mim, Sebastian está
protegido, cercado por amor e rodeado de pessoas que o respeitam e que
fariam qualquer coisa por ele. Seus amigos são a força e o alicerce que ele
precisa e sempre irá precisar. Justin, Lionel, Daniel e até mesmo Kellan,
junto dos seus outros companheiros de time, nunca o deixarão cair e isso
me deixa um pouco confortada, saber que, não importa quanto tempo o seu
luto e as fases dele durem, Sebastian viverá uma vida plena, feliz e
saudável, ao lado de pessoas tão boas quanto ele.
Ainda que eu perca oficialmente minha chance de protegê-lo, confio
plenamente nos que ficaram para exercer essa função. Isso tudo que está
acontecendo é só uma prova do que eu já imaginava. Eles nunca largarão a
mão dele. Eles nunca o machucarão como eu fiz. Sim, os meninos são
amigos do capitão deles de verdade e é muito bonito de ver essa irmandade.
Pestanejo e paro de pensar tão logo um deles dá mais um passo, e me
assusto ao perceber que é o meu irmão no meu campo de visão.
Mas que diabos...?
— Kellan — seu nome escorrega com um tom de surpresa e preciso
tombar um pouco a cabeça para trás, na intenção de olhar dentro dos seus
olhos castanhos esverdeados. Meu coração se agita em saudade e a única
coisa que sinto vontade é de me agarrar à sua camiseta, chorar e nunca mais
lhe soltar, porque o amo tanto que estar longe dele, nem que seja por pouco
tempo, agora sendo mais tempo que o normal, é como a morte. Não há
como viver uma vida normalmente sabendo que estamos abalados e com a
confiança estremecida. Ele comigo, no caso, porque confio muito mais nele
do que em mim mesma e isso desde sempre. Eu não o esperava aqui, pois
não tinha o visto em lugar nenhum nessa festa desde que cheguei. Porra, eu
nem ao menos o vi se aproximar. — O que... o que... como? — Nem eu
mesma sei o que estou querendo questionar. Balanço a cabeça de um lado
para o outro quando noto que também está fantasiado como os outros. Mais
tristeza me inunda. — Por que está com eles e não comigo, Kellan? Por que
ouviu o Sebastian e não quer me ouvir?
Minhas perguntas cheias de dor, talvez até sem direito de serem
expressadas, saem baixinho só para que ele escute, dor sendo evidenciada
em cada letra. Não tenho certeza se ele escutou Sebastian, não tenho certeza
se ele o perdoou ou qualquer coisa parecida, mas é algo que posso presumir
pelas coisas que estou vendo e ouvindo durante algumas semanas. Kellan
está saindo e andando normalmente com Sebastian, parece até que nada
aconteceu entre os dois e isso me machuca profundamente, pois comigo o
que está acontecendo, até o presente momento, é o contrário disso. Nos
falamos esporadicamente e não sentamos para conversamos, de fato, sobre
tudo o que aconteceu. Meu irmão alegou que não estava preparado, que eu
havia o traído, traído todas nossas promessas e toda a nossa história,
principalmente porque mentira era algo totalmente abominável em nossa
relação e sempre mantivemos o diálogo acima de qualquer coisa, porque
éramos a única família um do outro, éramos melhores amigos, confidentes,
almas gêmeas e especiais demais para que escondêssemos algo. Ele falou
diversas coisas e eu aceitei que ele tivesse seu tempo para processar todo o
ocorrido. Acontece que já se passaram praticamente dois meses e não
saímos do lugar. Acontece que eu o vejo o tempo todo com seus amigos,
como se estivesse seguindo a sua vida normalmente, enquanto comigo, que
sou a sua irmã, nada foi resolvido. Toda essa merda está me deixando cada
vez mais nervosa, provavelmente deve ter sido por isso que acabei soltando
o que soltei dessa forma, sem colocar em pauta que a única errada aqui sou
eu. Não é como se eu pudesse estar exigindo explicações, eu sei, só que
simplesmente não consigo fingir que não estou magoada com a sua maneira
de agir a respeito de nós dois.
É sufocante e ao mesmo tempo desesperador saber que ninguém,
ninguém, consegue enxergar o quanto estou arrependida e o quanto sinto
muito. Por tudo.
— Seja lá o que eles falaram para você, desconsidere, nenhum deles
irá lhe infernizar — meu irmão fala alto, virando sobre os ombros,
provavelmente para que Lionel, Justin e Daniel, que estão próximos,
escutem. Os garotos dão de ombros e quando Kellan se vira para me fitar,
com suas írises tentando entender as minhas, vejo de esguelha os três
sorriem ironicamente, em um recado muito explícito de que, caso eu dê
mole, vão me infernizar, sim. Só não estou entendo por que Kellan Benson
está dizendo isso justamente agora. Por acaso é preocupação? Eu não sei,
achei que simplesmente estivesse se esforçando para mostrar que não está
querendo mais se importar comigo. De repente, começo a bater os pés no
chão de uma forma que descarregue a minha fúria, porque estou muito
tentada a empurrar meu irmão mais velho para trás enquanto pergunto que
cacete ele acha que está fazendo agindo dessa forma. Não é algo que eu
faço, entretanto. Apenas respiro fundo, cruzo os braços em frente ao peito e
sustento seu olhar. — E o que está fazendo aqui, Kayla? — Seu tom é de
repreensão.
Me seguro para não liberar uma risada irônica.
— Acho que eu te fiz uma pergunta primeiro.
— E eu ouvi — ele retruca. — Esse só não é o lugar.
— Pronto, você tocou no ponto chave. Por isso que estou nesse lugar.
É uma festa. Uma f-e-s-t-a. Minha amiga quis a minha companhia e eu vim.
Não vou me esconder, se é isso que você quis sugerir.
Kellan entreabre os lábios pronto para me responder, porém não
consegue falar nada, pois, quando percebemos, Lionel se aproxima para
poder resmungar:
— Bem, querida, sinto muito em dizer, mas você estava fazendo isso.
Olho para ele.
— Fazendo o quê?
— Se escondendo. — Dá de ombros. — Você sumiu, se escondeu
pelo campus e todo mundo sabe disso.
— Exatamente — agora é a vez de Daniel entrar na conversa. —
Curioso você voltar a aparecer justo no momento em que o Sebastian está
melhorando e se recuperando, huh? — Sua expressão se torna ainda mais
fria, e o seu rosto, que já parece naturalmente bravo, consegue ficar ainda
mais, se é mesmo possível. Diante do escrutínio de Maddox, posso virar
cinzas a qualquer segundo. — Qual o próximo passo? Testemunhar uma
nova recaída dele? Ou, quem sabe, você ser a causadora disso uma segunda
vez?
Se antes as pessoas da festa estavam ocupadas demais nos seus
próprios mundos, agora elas percebem que há algo de errado acontecendo
por aqui, porque alguns param de fazer suas coisas, olham para cá, depois
se entreolham e passam a prestar atenção na tensão, totalmente palpável,
instaurada entre nós. Discutir no meio de uma festa, ainda mais em uma
maldita pista improvisada, claro que iria atrair atenção. No entanto, não é
com isso que me incomodo agora e sim, com o fato de estar sendo julgada
mais uma vez. Já não basta Sebastian, agora vieram os seus amigos para me
atacar. Não que eu esteja querendo reclamar, eu mereço toda e qualquer
acusação, bem como xingamentos, apontamentos e qualquer coisa ruim que
queiram me oferecer, afinal, até agora só mostrei que realmente agi da pior
forma possível e entendo que estão com raiva, que estão magoados,
decepcionados e querendo arduamente defender e proteger seu amigo da
ameaça que acreditam que eu seja, ainda assim, é difícil ter que escutar
coisas que não são verdades e que me levam de volta ao fundo do poço, de
onde tanto luto para sair. É difícil ver, ouvir e sentir a hostilidade, a mágoa,
a dor e a falsa interpretação de pessoas que haviam se tornado tão
importantes e tão essenciais em minha vida.
Na verdade, para ser sincera, a maior dificuldade de todas é perceber
que, nesse caso, nenhum de nós está certo. Estamos errados. De diferentes
formas, estamos todos falhando. De diferentes formas, estamos todos
seguindo caminhos contrários, caminhos que, no fim, machucam a quem
está indo e a quem está ficando. Não há nenhuma alma capaz de sair
vitoriosa, porque, assim que a verdade vier à tona, estaremos todos nós
mergulhados em escolhas erradas, precipitadas e que achávamos corretas,
visando nossos propósitos.
Por isso, como não quero piorar ainda mais as coisas, fico calada e
não dou uma reposta a Maddox e nem a nenhum deles, que estão esperando
só mais um deslize meu para poderem me crucificar de vez.
— Já deu, rapaziada. Vamos embora — chama Justin, que foi o único
que não quis me dirigir a palavra. Por mais que ele esteja no meio, é o
único, também, que parece muito mais triste do que com raiva. — Isso aqui
não vai levar ninguém a lugar nenhum. A Kayla já não é mais nossa
prioridade e isso não fomos nós quem decidimos.
Ouch.
— Sim, porque ela é uma falsa, uma manipuladora — Lionel guincha.
— Você não tem noção do que causou ao Sebastian. Até coisas simples,
como comer, para ele se tornaram difíceis e cada um de nós estava lá para
apoiá-lo. Entretanto, onde estava você, Kayla? Onde estava você e a sua
empatia? — Dou alguns passos para trás com o impacto de suas palavras
severas. — Foda-se que você não se apaixonou, foda-se que você estava o
usando, usando a todos nós, foda-se tudo, eu só quero saber isso: onde
estava você quando ele passou semanas sofrendo por ser humilhado na
frente da universidade inteira? Eu nem sou uma pessoa inteligente e mesmo
assim sei que havia coisas humanas a serem feitas por você. Mas não foi o
que aconteceu. Ao invés de procurar se retratar, você fugiu, se escondeu,
mudou de visual e a primeira grande aparição decidiu que seria em uma
festa, para mostrar mesmo o quanto não se importa. — O choro entala na
minha garganta e, tão logo percebo, meu irmão está o afastando de mim,
mesmo assim escuto Prince soltar, para todo mundo na república ouvir: —
Falsa do caralho!
— Já chega! — Kellan grita com ele, dando-lhe um empurrão, que o
faz se desequilibrar e um espaço se formar na pista. — Eu mandei todos
vocês ficarem longe dela, porra!
Os dois continuam falando um com o outro, agora somente entre eles,
porém não parecem brigar verbalmente ou quererem se atacar, o que me
deixa aliviada. Ouço meu nome sendo gritado do outro lado e viro sobre os
ombros, assistindo Elsa se espremendo entre as pessoas, agora mais
aglomeradas, e vindo até mim de maneira assustada, com seu cabelo
desgrenhado e suor salpicando sua testa e o seu colo azul, exposto pela
fantasia. Quando nossa distância se torna extremamente pequena, ela põe a
mão em meu ombro e, provavelmente percebendo o estado em que me
encontro, me puxa para perto, me envolve em seus braços e passa as mãos
pelas minhas costas.
— Minha Kay-Kay, o que foi que eles fizeram com você? — a
preocupação sendo proferida baixinho em meu ouvido, quase me faz soltar
as lágrimas que estou prendendo, mas me forço a segurar mais um pouco,
não quero chorar aqui, na frente dessas pessoas que tanto me julgam. — Me
perdoa, amiga, me perdoa, eu não deveria ter te deixado sozinha. Fiquei tão
animada com a música, realmente achei que estivesse ao meu lado esse
tempo todo.
— Tudo bem, foram apenas cinco minutos — balbucio. — E acho
que eu que acabei me afastando de você, no final das contas.
Nós duas nos desgrudamos e olhamos uma para o rosto da outra, Elsa
se contorcendo de culpa por uma coisa que nem estava ao seu alcance. Tiro
os fios do seu cabelo castanho do seu rosto e os coloco atrás da orelha,
depois aperto seu queixo com meus dedos em pinça e a faço sorrir, para
tirar a expressão de enterro do seu rosto. Não quero que ela se culpe por
absolutamente nada.
— Vir a essa festa foi uma péssima ideia, Kay-Kay.
— Nisso eu tenho que concordar, Frozen.
— Vamos embora — ela decreta. — Que tal passarmos no Starbucks
para tomarmos um café?
— Sim, por favor, sua melhor amiga está precisando de um
cappuccino de canela urgentemente para afogar as mágoas.
Elsa confirma com a cabeça e engancha nossos braços.
— Assim que chegarmos lá, vai me contar direito o que aconteceu?
Eu definitivamente não entendi nada. Estou preocupada com o seu irmão
também.
É, somos duas.
Logo que estou pronta para puxar minha amiga para fora, alguém que
eu não esperava ver nesse momento, vem caminhando em nossa direção,
chegando cada vez mais e mais perto, fazendo meu coração voltar a bater
mais forte.
— Tem um quarto lá em cima vazio, Kayla. Depois do que aconteceu,
nós dois precisamos conversar. Agora.
É o que Sebastian exige de forma autoritária.
Quando eu acho que as emoções já vão acabar, percebo que elas estão
só começando e eu automaticamente cedo às suas vontades, porque é o que
precisamos.
O caminho da pista de dança até o quarto, que Sebastian reservou
para nós dois, é silencioso, constrangedor e carrega uma carga um tanto
quanto pesada, para dizer o mínimo. Eu fico o tempo todo olhando para
baixo, muito concentrada em não embolar um pé no outro na hora de subir
os degraus, do tamanho que é o meu nervosismo e a minha euforia,
mentalizando que a minha decisão de aceitar tentar conversar com ele esta
noite tenha sido uma boa ideia, diante de tudo que se desencadeou lá
embaixo enquanto dançávamos ou pelo menos tentávamos. Sua aparição
me pegou desprevenida, sua fala ainda mais e, por mais que a minha melhor
amiga tenha tentado me impedir ao colocar a mão no meu braço, para
perguntar se eu achava que sabia o que estava fazendo, genuinamente
querendo me proteger de mim mesma, não consegui não fazer outra coisa a
não ser aceitar. Por isso que assenti para Elsa, pedi que ela me esperasse no
carro e a argentina concordou em prontidão, dizendo que confiava em mim,
que era para eu manter a calma e que todas as peças se encaixariam mais
cedo ou mais tarde. Aposto que, nesse momento, a Frozen deve estar
rezando para que nós dois consigamos resolver nossos problemas.
Confesso que não tenho a mínima ideia de qual será o teor dessa
conversa, mas acho muito difícil que seja pacífica e apaziguadora, não
quando seus amigos quase se desentenderam por minha causa, embora eu
não tenha arrumado confusão com nenhum deles e sim, eles comigo.
Também não é como se eu fosse me abrir para Sebastian ou implorar para
voltar agora, quando sei que ainda sequer comecei o meu processo. Posso
tentar melhorar as coisas, posso tentar pedir perdão, posso até tentar mostrar
o que ele não quer enxergar, no entanto, definitivamente não posso e não
devo enchê-lo de esperanças se eu ainda nem ao menos sei como as coisas
se desenrolarão com a doutora Ella, se eu ainda nem ao menos sei se terei
conserto.
Sim, estou desesperadamente querendo ter, querendo viver bem para
mim e para as pessoas ao meu redor, querendo honestamente sair do buraco
negro para qual fui sugada ainda muito nova, com determinação e muita
força de vontade se acumulando em minha alma para poder mudar, para
poder me reerguer e lutar pelas coisas que acredito merecer, mas também
preciso pôr os pés no chão para agir sabiamente e não meter os pés pelas
mãos, o iludindo, o prometendo coisas que, no fim, talvez eu não consiga
cumprir. Pode ser errado o meu pensamento, porém prefiro que o garoto ao
meu lado, que também anda cabisbaixo e com as mãos no moletom azul
escuro do Peter Kavinsky, continue com raiva de mim do que me escute, me
dê mais uma chance e eu acabe, eventualmente, o machucando outra vez.
Eu simplesmente não suportaria carregar mais uma culpa em meus ombros,
sabendo que agi de forma egoísta e imatura de novo, quando tinha a chance
de mudar e aprender com o meu erro. Eu simplesmente não suportaria que
ele colocasse fé em mim de novo para que depois, com muito mais dor,
visse que eu não valho a pena, que eu não valho toda a bondade e amor que
fica depositando em nosso relacionamento. Eu simplesmente não suportaria
o quebrar de novo, o machucar de novo e transformar, de novo, o nosso
relacionamento em um ciclo interminável de vai e volta cada vez mais
tóxico, lhe proporcionando o mesmo vazio que o meu, até mesmo, quem
sabe, lhe fazendo acreditar, como um dia cheguei a pensar, que o amor não
existe e que as pessoas estão destinadas a sofrerem umas com as outras.
Porque eu quero estar minimamente bem comigo mesma para poder
me abrir de corpo e alma, já que, querendo ou não, ainda dói e ainda é
difícil como o inferno compartilhar os meus traumas sem desmoronar, sem
sentir todas as dores físicas e psicológicas que já me fizeram sentir um dia.
Eu quero estar minimamente preparada para encerrar o meu passado
totalmente, me concentrando no meu futuro, no que realmente importa.
Enquanto eu estiver presa lá, a minha vida aqui não anda, estará sempre
estagnada como um trem velho esperando o seu maquinista. É por isso que
ainda bato na tecla de que não posso me precipitar se o meu desejo é um só:
fazê-lo feliz pelo resto da vida. Quero que Sebastian me olhe e tenha a
certeza de que fez o melhor por nós dois me concedendo o seu perdão e
uma segunda chance, uma que vou fazer questão, hora por hora, minuto por
minuto, de que seja infinitamente bem aproveitada. Sei que eventualmente
vou errar, assim como ele também, afinal, somos seres humanos e não
somos perfeitos, sei que vou cometer deslizes e que vamos, possivelmente,
brigar em algum momento, entretanto sei que, não importa o que seja,
nunca mais será por mentiras ou, de certa forma, enganação.
Seremos saudáveis e daremos um jeito.
Pelo menos é nisso que estou depositando toda a fé que habita em
meu coração.
Se for da vontade do universo que fiquemos separados, pelo menos
vou pôr a cabeça no travesseiro e poder dormir tranquila e sem peso na
consciência, porque vou ter certeza que o que cabia a mim, eu fiz. Eu me
arrependi, eu busquei mudança, eu tentei e ficarei pronta para seguir o meu
destino, bem como ele também.
Solto uma lufada densa de ar assim que alcançamos o corredor e
balanço as mãos ao lado do corpo, tentando aliviar a tensão. Mesmo não
sabendo o que realmente vai acontecer daqui a pouco e o que Sebastian
Skalbeck realmente quer, minha única reação antes de entrar no quarto,
quando o capitão ordena com a sua voz grave para que eu entre ali, é
implorar para que não termine em briga.
Dou alguns passos para dentro do abatedouro, me coloco no centro do
quarto da república e olho as paredes repletas de posters de bandas de punk
rock, com uma grande estante de livros de Direito e também de romance
bem ao meu lado. Paro de prestar atenção nos detalhes e estremeço quando
ouço o clique da porta sendo trancada, abafando o som da música e das
vozes lá fora.
Se antes eu já estava com medo, agora me sinto em pânico.
Respira. Inspira. Respira. Inspira.
“Calma, Kayla, é Sebastian, seu melhor amigo, ele não pode te
machucar”, meu subconsciente tenta me tranquilizar, mas acho que ele
esqueceu que sim, Sebastian pode, porque eu que fiz isso com ele primeiro.
Porra, estremeço mais uma vez, agora com a respiração quente do
jogador do time de futebol americano batendo com força contra a minha
orelha.
— Causando tumulto, linda? — O apelido que ele traz à tona me faz
fechar os olhos, porque, diferente de antes, está encharcado de uma ironia
dolorosa, perfurante, como uma faca cravada em minhas costas para ele
ficar girando, girando e girando como bem entender, afinal, sabe muito bem
cada um dos meus pontos fracos. — Você é mesmo a porra de um problema
ambulante, hein, garota? — A risada que ele dá não me parece engraçada e
eu abro os olhos, virando apenas um pouquinho a minha cabeça para
acompanhar seus próximos movimentos. — Sabe, eu sempre me achei
muito inteligente. Ótimas notas na escola, na faculdade, sempre destaque no
esporte, nas amizades, na vida. Eu passei muito tempo sabendo que achava
o que estava fazendo dela, tomando sempre as melhores decisões para me
proporcionar um futuro digno e o qual sempre sonhei, só que aí veio você e
eu não sei se fiquei burro, se me deixei levar ou se só fui ingênuo demais
para perceber, porém caí como um patinho bem na pior decisão de todas, a
decisão que me levaria para o fundo, para bem longe, para um lugar que até
hoje eu estou tentando entender como se habita. — Sebastian para, talvez
pensando em suas próximas palavras, ainda sem se mexer, bem atrás de
mim, como se para me amedrontar ou até mesmo para conseguir reunir
forças, que não conseguiria caso estivesse olhando dentro dos meus olhos.
Engulo em seco e tento me livrar da massa de concreto que parece estar
alojada em minha garganta. — Quando você está sozinha, presa em seu
dormitório, você dá risada ao pensar em mim? Quando pensa em todas as
coisas que eu fiz, todas as coisas que eu te falei, a porra da minha
virgindade que eu te entreguei? Ah sim, aposto que você pensa — murmura
assim que me vê negar com a cabeça várias e várias vezes, querendo
desmentir cada um dos seus pensamentos. — Até porque eu não passei de
uma aposta. Uma aposta. — Outra risada. — Achei que essa merda só
acontecesse em filme ou em livro. Inclusive, foi em algum deles que você
se inspirou? Me diga, Kayla. Se explique. Por Deus, fale alguma coisa, nem
que seja mais uma de suas mentiras.
Meu peito sobe e desce como se eu estivesse correndo uma maratona.
— Não, não foi. Para de dizer essas coisas. Por favor — choramingo.
No entanto, ele me ignora.
— Como foi descobrir que eu era mesmo virgem? Qual foi o
pensamento sádico que passou pela sua cabeça?
— Para — digo outra vez, mãos invisíveis apertando a minha
garganta. — Não fale assim.
— Era tudo mentira? — Ele começa a passear no quarto, sem ficar
em minha frente e eu permaneço como uma estátua, toda empertigada como
pedra. — Seu passado que você dizia ser conturbado? Sua crise? Suas
falas? Seus gostos? Seus sonhos? — Cada pergunta, uma punhalada e uma
dor diferente. Preciso sorver o ar para que o mesmo faça seu caminho trivial
até os meus pulmões, o que parece estar sendo bastante difícil, já que sinto
como se todo o oxigênio tivesse desaparecido de toda face da Terra. — Não
consigo entender. Parecia tudo tão... real. Como você conseguiu mentir e
fingir tão bem? Você nem me queria no começo de tudo, Kayla. Eu estava
lá e eu lembro de cada detalhe. Você me deu foras seguidos de foras, até
que um dia decidiu não dar mais. Por acaso também fazia parte do plano, se
fazer de difícil para que eu insistisse e nunca percebesse nada? Fazia parte
do plano aquela manhã em que invadiu o estádio e disse que não sabia que
tinha alguém lá dentro? — Uma única lágrima, que eu estava obviamente
segurando, desliza pela minha bochecha e eu passo o dorso da mão na
região, piscando os cílios em seguida. — Rá, aqui estou eu, fazendo essas
perguntas, provando o meu ponto de que sou mesmo burro. Pode rir. Vá em
frente, linda, eu aceito as suas risadas, sou mesmo um idiota de ainda querer
cogitar o contrário, como se você fosse abrir a boca para desmentir, para
provar que há uma explicação para tudo, que você jamais mentiria,
enganaria e quebraria o coração do seu melhor amigo, do seu quase
namorado. É, pois é, quase. Você sabia que eu estava prestes a te pedir em
namoro? Sim, eu estava, ia pedir a sua mão ao seu irmão e tudo, como um
cavalheiro. Ainda bem que não deu tempo de eu me prestar a mais uma
humilhação. Só por curiosidade... você teria aceitado só para brincar
comigo mais um pouco? Ou você... sei lá, acharia que era o momento certo
de rir bem na minha frente e dizer: Oh, querido Sebastian, não se ajoelhe,
se levante daí, eu só me aproximei de você porque queria sentar no pau que
todos diziam que era intacto, eu queria mesmo ver se era verdade e
consegui, agora estou indo embora como a vadia arrasadora de corações
que sou.
Não.
Não, não e não.
Esse é o meu limite e já deu.
Segurando um soluço, com um pouco de raiva crepitando em cada
centímetro da minha pele, giro nos calcanhares e me bato justamente contra
seu peitoral, que se aproximou logo que me virei. Eu aproveito e espalmo
minhas duas mãos em seu peito, usando de toda a minha força para
empurrá-lo, pegando-o de surpresa e o fazendo quase tropeçar em seus tênis
brancos.
— Para, Sebastian, para! Eu mandei você parar! — grito assim que o
empurro novamente, agora lhe socando no braço e em todo lugar que vejo
que posso acertar. Óbvio que não dói, eu sei disso, jamais teria forças para
machucá-lo e nem é isso que verdadeiramente quero, mas, mesmo assim,
continuo, porque me sinto exausta e a um fio de entrar em colapso mental.
Estou sendo atacada de todos os lados e estou aguentando calada, porque
sei que eles têm o direito de expressarem a sua raiva e as suas mágoas, mas
não vou ficar aqui quieta enquanto ele me ofende, eu não mereço isso, eu
definitivamente não mereço ser linchada, eu não sou um monstro e, merda,
ninguém consegue enxergar isso. — Não fale coisas assim sobre mim. Não
na minha frente. Me machuca, me fere, dói. — Bato no meu peito agora, à
medida que falo e nesse momento eu já não estou mais aguentando segurar
nada, então deixo que as lágrimas caiam para que ele veja o quanto também
estou quebrada, o quanto sim, há alguma coisa errada e que não posso
contar agora. Sebastian, parecendo um pouco assustado, arregala os olhos e
um pequeno V se forma entre as suas sobrancelhas, como se ele estivesse
tentando processar a cena diante de si, uma que talvez pensou que nunca
fosse conseguir ver. Ele estava esperando risadas, que eu concordasse com
cada palavra proferida, não isso, meu choro, deixando-o confuso e
deslocado. No minuto seguinte, está vindo para cima de mim, me fazendo
recuar, todavia não me fazendo parar de falar. — Eu não sou uma vadia e
você sabe disso. Nunca mais fale isso para mim ou para mulher nenhuma.
Sebastian balança a cabeça.
— Não foi no sentido literal. Foi modo de dizer e você sabe disso. —
Seu dedo em riste é apontado para mim, nossa distância é encurtada e
minha cabeça tomba para sustentar seu olhar mortal. Desde que estamos
aqui, é a primeira vez que estamos assim, de frente para o outro, tão
próximos e ao mesmo tempo tão distantes. Exatamente como eu, seu peito
sobe e desce e ele parece visivelmente destruído, sua camada protetora de
mais cedo caindo como um véu, que eu acabei puxando sem querer. Está
despido e a bagunça que vejo ainda é muito grande. De repente, me sinto
culpada por ter gritado de volta, por ter feito uma outra interpretação de
suas palavras quando, no fundo, sei que ele não quis realmente dizer aquilo.
Pouco a pouco, baixo a minha guarda e controlo a minha respiração, porque
não quero mais causar cenas para vê-lo desse jeito. Se eu estou quebrada,
exausta, psicologicamente instável, Sebastian também está, porque me
lembro muito bem de Lionel falando lá embaixo, na pista de dança, que o
seu amigo não estava nem conseguindo fazer coisas básicas, como se
alimentar. Isso me destrói mais do que qualquer coisa que possa me dizer e
eu não vou ficar lhe cutucando e entrando na sua provocação, lhe dando
margens para que sofra mais e para que tenha ainda mais perguntas. — Se
as coisas que eu te digo te machucam, o que você fez em mim causa o quê?
— insiste. — Você acha que não dói saber que eu te amei e você não me
amou, nem por um segundo, de volta? Você acha que não dói saber que o
que vivemos, que me parecia a melhor coisa que tinha acontecido comigo
em anos, não passou de uma mentira? Você acha que não dói perder a
melhor amiga e o seu grande amor assim, logo de uma vez, na frente da
universidade inteira? Você acha que não dói ficar com saudade de você e ter
que colocar na minha cabeça que acabou, que nunca mais seremos nós?
Que nunca mais conversaremos, que nunca mais nos beijaremos e que
nunca mais te chamarei de minha? — Seus olhos brilham e eu tenho certeza
que são lágrimas, o que faz meu coração afundar no peito de tanta culpa,
tendo mais um pouco de ciência da sua dor, diante das suas palavras e de
como se encontra desolado. Eu só queria... abraçá-lo. Chamá-lo de meu e
dizer que ainda sou e que sempre serei sua, desde o primeiro segundo em
que nos esbarramos. Eu só queria poder apagar tudo ou, quem sabe, tê-lo
conhecido em outra época, uma mais lá na frente, na vida completamente
adulta e estabelecida. Mas eu sei que todo esse sofrimento veio para que
uma coisa muito grande lá na frente aconteça, para ambos. E eu sei que,
mesmo querendo consolá-lo em meus braços e mesmo querendo me afogar
em seu corpo uma outra vez, preciso me manter quieta enquanto ele
desabafa e põe para fora o que estava segurando há praticamente dois
meses. Se isso vai fazê-lo se sentir melhor, agora eu percebo que aguento.
— Eu estou sentindo raiva de você, Kayla, muita, muita raiva. Tanto que
não estou aguentando olhar para esse seu rosto. E deixa eu te dizer, isso
também dói. Dói porque o amor era lindo, porém a raiva é feia. Feia como
você é por dentro e eu definitivamente não quero ter nada em comum com
você, uma pessoa egoísta e mentirosa.
Pisco os olhos e fecho uma mão em punho.
— E o que mais eu sou?
— Egocêntrica. — Ele dá um passo, roubando todo o meu fôlego e
me empurrando cada vez mais para trás, até que as minhas costas se
colidem com a estante de livros, que se mexe com o impacto. Não tenho
medo dos livros caírem, porque estou ocupada demais presa; nos seus
olhos, na sua boca, no seu calor e no seu perfume, que me envolvem e que
me deixam acorrentada a ele. Empino o queixo e peço para que continue,
para que coloque para fora, mesmo que eu esteja claramente sentindo que o
ambiente, bem como seu tom de voz, tenham dado um giro de 180 graus. —
Você é narcisista, calculista e fria.
— Mais alguma coisa?
Suas írises me queimam como brasas.
— Eu nunca vou te entender.
— Nem eu.
— E eu nunca, nunca, vou me envolver com você novamente.
— Tudo bem.
Sebastian arfa e fecha os olhos, colocando uma de suas mãos acima
da minha cabeça, ficando cada vez mais perto, seu corpo como um imã se
juntando ao meu. Agora é ele quem está mentindo. Sua boca diz que não
me quer, mas seu corpo, nesse exato momento, está provando o contrário. O
capitão não está suportando ficar no mesmo cômodo que eu e isso é nítido,
está extravasando por todos os seus poros. Ele está tentando lutar contra os
seus impulsos, no entanto está falhando, está falhando miseravelmente
porque ainda me ama e ainda é louco por mim. Exatamente como eu sou
por ele.
Em uma atitude impensada, com uma das minhas mãos coçando para
tocá-lo, aproximo a direita em um lado da sua bochecha, sentindo sua pele
contra minha palma, meus dedos escovando a maçã do seu rosto
deliberadamente. Ainda de olhos fechados, ele geme e morde os lábios,
reprimindo seus sons com raiva.
— Sinto sua falta — profiro baixinho, também mordendo a minha
boca para evitar chorar. — Eu não quero brigar com você. Eu não gosto
disso. Nós não somos assim, Sebastian.
— Por que você está falando como se ainda existisse um nós?
Ele permanece de olhos fechados e posso apostar que é porque quer
aproveitar o máximo disso, pois sabe que assim que sairmos por aquela
porta, acabou.
— Porque sempre haverá um nós — respondo sinceramente. — Não
há como apagar o que um dia já foi escrito diante das estrelas. Elas guiam o
nosso destino.
Um silêncio recai sobre nós por conta do que eu digo, só o barulho
das nossas respirações descompassadas se torna audível. Contudo, aqui
estou eu, sabendo que não posso estar fazendo isso, porém fico na ponta dos
pés e me aproximo muito do seu rosto, gravando cada detalhe dele enquanto
sinto a maciez da sua pele, agora arrastando meus dedos em seu nariz,
descendo-os pelo contorno da sua boca, fazendo a minha salivar de desejo e
saudade. É nesse momento que Sebastian abre os olhos com tudo, suas
pupilas dilatam-se e seus lábios se separam, deixando uma pequena fresta
aberta. Parece uma mistura conflitante de sentimentos, que guerreiam entre
si para ver qual vai vencer e predominar, só assim para que saiba como
prosseguir e qual será seu próximo passo. Acho que está assustado, com
medo de que eu o beije, com medo de não ser forte o suficiente para me
afastar e não me beijar de volta.
Por mais que eu queira muito fazer o que ele está pensando, não foi
para isso que fiquei na ponta dos pés. Eu apenas quero olhá-lo para ver
como irá reagir com as minhas próximas palavras. Encaro sua alma e
respiro fundo.
— Do fundo do meu coração, eu sinto muito, Sebastian. — Tum.
Tum. Tum. Tum. É o barulho do meu coração zumbindo em meus ouvidos.
— Eu sinto muito por hoje, por esses quase dois meses e principalmente por
aquele dia.
Como se tivesse levado um choque, ele recua rapidamente e nega
com a cabeça diversas vezes, seus olhos enchendo-se ainda mais e mais de
água.
O que eu imaginava que iria acontecer, aconteceu, o que eu acabei de
dizer acabou de despertá-lo, acabou de retira-lo da fantasia que estava
criando em sua própria mente e o trouxe de volta à realidade, àquela em que
estamos brigados e que ele, como disse agora há pouco, está sentindo muita,
muita raiva de mim.
Foi bom enquanto durou, Seb.
— Não, você não sente — menciona de forma rápida e acusatória. —
Você não sente absolutamente nada, porque você é incapaz de sentir. E já é
tarde demais. Você, Kayla, teve quase dois meses para dizer algo, para fazer
algo, mas optou por se manter calada, optou por ir cuidar de si, como se
você não tivesse deixado alguém para trás. — Aponta para as minhas
tranças, então me dou conta que, como seu amigo, também acredita que eu
estava me embelezando por aí ao invés de estar preocupada com o que eu
fiz. Ah, se ele soubesse como a história é de verdade... — E eu não quero
nada seu. Se pareceu que eu estava querendo, me desculpe, não fui objetivo.
Eu não te chamei aqui em cima para resolvermos nossas pendências ou para
te propor um novo joguinho sádico, que eu sei que você adora. Eu te
chamei aqui para te dar alguns avisos. — A postura inabalável volta, seus
ombros se aprumam e ele faz questão de empinar o queixo, para se mostrar
superior, para mostrar que não está afetado com nada que acabou de
acontecer aqui dentro. Eu apenas, mais uma vez, o observo em silêncio,
ainda encostada à estante para ter uma garantia de que continuarei em pé,
não importa o que Sebastian diga. — Seu irmão ama você e ele está
sofrendo pra um caralho. A única coisa que posso imaginar que é verdade,
dentre todas as coisas que me contou um dia, é seu amor por ele também,
portanto não haja como uma covarde, não espere que ele dê o primeiro
passo, não foi ele que errou com você. — E lá vai outro tapa na minha cara.
— Segundo e não menos importante, por favor, evite de estar no mesmo
lugar que eu e as raposas. Nós não queremos arrumar mais confusão por sua
causa. Já estamos de saco cheio de repararmos a sua bagunça.
Quando percebo que não vai falar mais nada, assinto.
Sebastian se vira e começa a andar para destrancar a porta e ir
embora, porém antes de completar a ação ele se vira, trocando um último
olhar comigo.
— Adeus, Kayla.
Então olha para o chão e some.
Espero alguns segundos, para dar tempo de ele descer, depois corro
porta e escada a fora, rumo à saída e ao carro vermelho de Elsa para
sairmos desse lugar, que não me pertence, de uma vez por todas.
Eu ainda tenho pesadelos todas as noites. Diferente do que se costuma
ver em livros, a mocinha ou o mocinho encontrando alguém que ama e tudo
mudando, eu ainda permanecia com eles mesmo estando ao lado de
Sebastian. Com menos frequência, sim, mas ainda existia o assombro. O
assombro de Cora, do meu pai e do fantasma da minha mãe, porque,
embora eu não tenha sequer memórias dela, muito menos do dia em que nos
abandonou, por eu ainda ser uma bebê, minha mente perversa faz questão
de reproduzir a cena como num filme, com a Kayla adulta sendo a
telespectadora do dia em que, mais tarde, decidiria todo o seu futuro e de
toda a sua família. Eu vejo Cecília indo embora sem nem olhar para trás e
vejo todo o percurso que levou ao acidente e à sua morte. Acordo todas as
madrugadas com o clarão e o barulho da explosão, chamas percorrendo
cada perímetro, levando consigo o corpo, a vida e toda a história da minha
mãe.
E por mais que o exato segundo de abrir os olhos na madrugada seja
desesperador, não se compara com o momento em que a minha ficha cai,
um dia após o outro, de que tudo aquilo foi real. Não são cenários criados,
inventados e manipulados, são cenários reais, que aconteceram com uma
pessoa que deveria ser importante para mim, para o meu irmão, para o meu
pai... com uma pessoa que ainda deveria estar aqui, existindo, cuidando da
sua família. No entanto, não foi isso que aconteceu e eu sinceramente não
sei como me sinto sobre isso. Óbvio que não fico bem, ninguém fica bem
sabendo que foi abandonada por sua própria mãe ainda com poucos meses
de vida, deixando o caminho livre para que outra mulher, que poderia ser
má, e realmente foi, chegasse perto dos seus filhos, que deveriam ser sua
maior riqueza. Óbvio que, tão logo eu soube do seu abandono, a culpei por
muito tempo. Na minha cabeça, ela era a culpada por tudo de ruim que
havia se instalado sobre nossa família, até mesmo seu acidente havia
acontecido porque ela o provocou, o karma chegando muito mais cedo do
que ela, ou qualquer outra pessoa, poderia imaginar.
Meio duro de se pensar? Sim, eu sei, porém ninguém pode culpar a
mente ferida de uma garota ferida, não há ninguém capaz de ser salvo, todo
mundo é culpado, até mesmo ela por sentir as consequências de ainda
querer respirar.
Contudo agora, depois do mal que acabei fazendo a tantas pessoas,
minha percepção mudou um pouco. Eu já não sei mais se a minha mãe é a
vilã ou a vítima por conta de uma única escolha. Ela escolheu ir embora, só
que eu não sei se ela se arrependeu no minuto seguinte, eu não sei se ela
teria voltado para casa e pedido perdão, eu nunca vou saber, porque Cecília
não conseguiu nem sair da estrada aquele dia, ela não teve uma chance e
talvez, se pararmos para pensar, o destino tenha sido ainda mais cruel com
ela do que com as pessoas que deixou para trás. Nós nunca vamos saber o
que a levou a essa decisão, nós nunca vamos saber seus pensamentos após
seus últimos suspiros e nós nunca vamos saber como seria sua vida caso
tivesse chegado até a outra cidade. Ela teria conseguido realizar seu sonho?
Ela faria uma turnê de sucesso? Ela teria voltado para buscar Kellan e eu?
Ou, quem sabe, veria que mesmo amando a música, o palco, os shows, o
seu lugar sempre foi ao lado dos seus filhos e do homem que amava? Ela
teria se arrependido e implorado perdão? Ou ela teria mesmo vivido como
se nós nunca tivéssemos existido um dia? São perguntas que também nunca
teremos uma resposta e isso dói. Dói saber que todo mundo saiu ferido. Dói
finalmente perceber o quanto escolhas impactam, não somente nas nossas
vidas, como nas vidas de quem está ao nosso redor. Dói saber que uma
decisão impensada pode ser fatal ou até mesmo ter o típico efeito dominó,
onde um cai primeiro, depois o outro, depois o outro e assim
sucessivamente, até não restar mais nenhum apoio para te manter firme, até
não restar mais ninguém em pé.
Ficar ou sair. Dizer uma mentira ou contar a verdade. Ir por esse
caminho ou ir por aquele. Aceitar ou recusar. Agradecer ou reclamar. Se
importar ou não se importar. Fazer agora ou esperar. Escolhas. Nossa vida
se baseia em escolhas o tempo todo, desde o minuto em que abrimos os
olhos e decidimos sair da cama até o minuto em que retornamos para
dormir. Cada pequena ação gera uma consequência e muitas vezes nem nos
atentamos aos detalhes, porque estamos ocupados demais com alguma coisa
lá na frente, sem prestar atenção ou dar valor ao que realmente importa, que
é o agora. E é por isso que eu não sei mais se há algo em mim querendo
julgar a minha mãe. Sinceramente, seria hipocrisia da minha parte, porque
também fiz muitas coisas erradas. Óbvio que talvez não tenha o mesmo
peso, todavia, no fim, machuquei e feri pessoas como ela. Eu também feri
Kellan. A julguei tanto, a condenei tanto e agora estou aqui, chafurdada na
merda por também ter sido egoísta e só pensado em mim e nos meus
sentimentos. A única diferença é que eu tive a chance de perceber o erro e
de querer mudar. A única diferença é que estou empenhada em ser melhor e
não agir mais por impulso, sem pensar nas pessoas que amo. A única
diferença é que eu tive uma segunda chance do universo e não quero mais
falhar.
Cecília não.
Cecília teve apenas tempo de tomar a pior decisão de todas e errar.
Errar tanto que custou a sua vida, os seus sonhos e a sua memória aqui na
Terra, sendo condenada a esse seu único erro para sempre, afinal, para nós,
tudo que ela havia feito de bom antes fora apagado a partir do momento em
que decidiu sair por aquela porta. Para o meu pai, ela não era mais o amor
da sua vida, a mulher que ele construiu um lar, uma família, uma história
junto, ela era uma traidora, uma mera desconhecida sem coração. Para mim
e para o meu irmão, ela não era a nossa mãe, ela era apenas a genitora que
nos abandonou para sempre, sem vínculo, sem lembranças, sem carinho,
sem amor. Sua existência foi reduzida e, sinceramente, agora estou
verdadeiramente me questionando se agimos errado esse tempo todo
também, já que o pior para ela, a morte, veio e lhe arrancou todas as
chances de uma realidade em que poderia, pelo menos, tentar consertar
todos os seus erros. Ninguém sabe se conseguiria, mas Cecília pelo menos
poderia tentar e poderia, pouco a pouco, se redimir e voltar às nossas vidas
caso se esforçasse bastante, até porque todo mundo merece perdão, todo
mundo merece uma chance de recomeçar, se for mesmo da sua vontade e do
seu coração. E eu até posso estar sendo muito ingênua e sonhadora aqui,
pensando que a minha mãe teria voltado atrás caso chegasse na outra
cidade, ou até mesmo depois de algum tempo vivendo do seu sonho,
contudo é válida a reflexão sobre os famosos “e se”, pois muita coisa
poderia ter acontecido caso o destino não tivesse sido tão cruel com todos
nós: eu, Kellan e meu pai.
É por isso que agora eu acredito que nós não fazemos escolhas, as
escolhas que nos fazem. E assim que você escolhe dar seu próximo passo
para a frente, tem que estar ciente que algo ficará para trás, porque essa é a
lei básica da vida. Não há como ganhar sem perder. Não há como se
levantar sem cair. Toda escolha é uma renúncia, quando se vai por um lado,
automaticamente se abre mão do outro.
Afirmo isso porque tenho propriedade para falar. Uma única escolha e
acabei perdendo todos os lados. Deve ser por isso que fico pensando na
minha vida desde então. Foi preciso que algo muito ruim acontecesse com
as pessoas que eu amo para perceber que nem tudo é preto no branco, o
mundo, a vida, as pessoas e as escolhas são bastante complexas, às vezes,
nem a própria pessoa entende. É difícil julgar quando você passa a ser alvo
de tantos julgamentos. É difícil querer impor determinados comportamentos
nas pessoas quando você mesma, na maioria das vezes, não consegue nem
agir da forma que gostaria.
É por isso que eu digo, viver é muito difícil.
Não que seja ruim, mas é difícil, principalmente quando você cresce
em uma família disfuncional, em um lar violento e ao lado de pessoas
podres e omissas. É automático o mundo se tornar diferente, não se tem
como saber o que é certo e o que é errado, você não foi criada para somar,
para agregar. Na verdade, você nem ao menos foi criada, você foi largada,
você foi ameaçada, você foi espancada. Sua percepção foi alterada e seus
sentidos são diferentes. Abuso muitas vezes parece afeto, não se importar
parece estar se importando, não querer conhecer pessoas parece a melhor
decisão, se isolar parece o certo, ser grosseira significa normalidade e
afastar o amor, bem como as coisas boas, parece proteção. Eu vivi assim
por muito tempo. Bem, eu vivi assim até meses atrás, até o instante em que
eu larguei a minha antiga vida, mudei de cidade e percebi que havia
milhares de coisas que eu não conhecia ou distorcia.
Foi preciso que eu entendesse o que é o amor da forma mais bonita e
natural possível para que eu percebesse que ele não dói, que ele não
machuca e que ele não torna ninguém fraco. Foi preciso que eu conhecesse
Sebastian, Elsa e até mesmo os garotos do Maevis Fox para que eu
finalmente me desse conta de que viver uma vida sozinha não se compara,
nem um pouco, a viver uma vida cercada de pessoas que têm os mesmos
objetivos que você; ser feliz.
E eles me fizeram feliz.
Eles me fazem feliz e vão me fazer feliz por uma vida inteira, porque
eu os amo.
E depois da festa na república, que aconteceu há três dias, eu decidi
que não iria mais chorar ou pensar de forma negativa. Eu pensei isso no
exato minuto em que entrei no carro de Elsa, mais especificamente. Eu
segurei forte no banco, respirei fundo, afastei as lágrimas, afastei o nó na
minha garganta e ergui a minha cabeça na hora de contar o que tinha
acontecido na pista e o que tinha acontecido no andar de cima, entre mim e
Sebastian. Minha amiga me deu forças e falou que não poderíamos culpá-
lo, pois aquela era a única verdade que Sebastian tinha e eu concordei, já
que em momento algum o procurei para me explicar e para contar a minha
versão dos fatos. Sei que poderia não melhorar as coisas, sei que também
não justifica, mas há uma explicação para o meu comportamento e para as
minhas ações. Sem contar o fato de que vivi nossos momentos
intensamente, retribuindo cada uma das suas emoções da forma mais
sincera e genuína possível, caindo e me apaixonando por ele
verdadeiramente, com todo meu coração e a minha alma. E o capitão do
time me tratou daquela forma porque ainda acredita que eu seja uma
mentirosa, uma farsante, uma pessoa perversa e sem escrúpulos, que é
capaz de tudo para conseguir o que quer. Sebastian está quebrado, ferido e
os seus ataques são compreensíveis. Ele pensa que me odeia, ele talvez até
queira, porém não consegue fazer por completo, eu percebi assim que me
deixou tocá-lo no quarto, me correspondendo ao fechar os olhos e vacilar e
a única saída viável que encontrou, para também me quebrar, foi me
ofender com suas palavras e com o desprezo que está disposto a mostrar
para mim.
Fiquei o caminho todo dizendo para mim mesma que não era pessoal,
era só o reflexo da sua dor. Fiquei o caminho todo me lembrando que só
mais alguns dias e as minhas sessões de terapia com a doutora Ella
começariam e eu poderia finalmente desabafar sobre a minha infância, os
meus traumas e os meus erros.
Rezei tanto para que esse dia chegasse, que ele chegou em um piscar
de olhos, e definitivamente não conseguiu me deixar menos nervosa.
Encaro meus dedos, quase cobertos pela manga do meu moletom cor
de gelo, e vejo o quanto o frio da recepção da clínica em que Ella Pratt
atende está tornando-os esbranquiçados. Meu queixo está tremendo nesse
exato instante, só que não sei distinguir se é o maldito ar-condicionado
congelante ou os meus nervos à flor da pele. Como cheguei bastante
adiantada para a minha primeira consulta, por não estar conseguindo
esperar pelos arredores do campus, acredito que posso buscar um café para
me esquentar e para me acalmar enquanto aguardo a minha vez chegar.
Solto o ar acumulado pela fresta entre meus lábios com gloss, flexiono os
joelhos e me levanto da cadeira acolchoada, avisando à secretária à minha
frente que vou dar uma voltinha bem rápida, só para que não pense que
desisti. A mulher de meia idade rapidamente assente de forma positiva e eu
giro nos calcanhares, andando pelo corredor até encontrar a máquina de
café, que parece ter sido mudada de lugar desde a última vez que estive aqui
com Elsa.
Tão logo a vejo encostada à parede, me aproximo, faço um bico de
lado e procuro cappuccino entre as opções após pegar um copo e colocar no
lugar indicado para esperar a bebida descer. Levo o dedo até o botão, espero
alguns segundos e nada acontece, o que faz com que um vinco se forme
bem na minha testa. Aperto com mais força o botão e mais uma vez nada
acontece. Dobro um pouco a minha coluna, olho para um lado, olho para o
outro, verifico se ela está ligada e bufo de frustração ao ver a luz verde
indicando que sim, ela está ligada e funcionando perfeitamente. Tento uma
outra vez, reviro os olhos e preciso de todo autocontrole e paz do mundo
para não chutar essa maldita máquina.
Prestes a desistir e dar meia volta, paraliso quando alguém aparece ao
meu lado de repente, visivelmente achando graça da minha falta de tato. O
rapaz, provavelmente da minha idade ou um ou dois anos mais velho, não
faz nem questão de esconder o sorriso arteiro que quase rasga suas
bochechas na hora em que olha para mim e depois para a máquina às
minhas costas.
— Dificuldades? — Suas sobrancelhas escuras e grossas dançam
sugestivamente, e eu não lhe dou nenhuma resposta, pois sei que está sendo
bastante irônico com algo que está claramente óbvio. Como me mantenho
calada e séria, ele comprime os lábios e tenta se manter em uma postura
relativamente respeitável para poder me ajudar. Bem, é o que eu acho que
vai fazer. Por favor, que seja isso, eu só quero poder tomar meu cappuccino
em paz. — Uh, tudo bem, essa coisa é mesmo difícil, não é sua culpa. Só é
engraçado ver todo mundo quebrar a cabeça, quase como se estivessem
diante de um enigma de vida ou morte.
Mais uma vez, eu não o respondo e ele também não parece querer
uma resposta, porque nem espera e vai logo bisbilhotar a máquina de café,
como se fosse um grande sabichão cheio de poderes para resolver os
problemas do Universo. Rá! Aposto que nem vai conseguir. Fico esticando
o pescoço para acompanhá-lo e assisto, um pouco impressionada, confesso,
quando só dá um breve e certeiro tapa ao lado da máquina, em seguida
apertando o botão da opção. Não passa nem um segundo e um bipe soa,
indicando que o café já está sendo preparado. Rápido, simples e de um jeito
que me faz parecer muito, muito burra.
— E todos sempre fazem essa mesma cara depois — menciona ao
apontar para o meu rosto, voltando com aquele sorriso. — Já estou
acostumado, entretanto é sempre divertido.
Subo e desço o queixo em uma confirmação, quase imperceptível, e
corro para pegar o meu copo assim que um novo bipe se espalha pelo
ambiente para me avisar que acabou de encher. O envolvo entre os meus
dedos, o aproximo do meu rosto e fico muito feliz ao ver que é o meu sabor
favorito. Não sei se esse garoto conseguiu perceber, mesmo de longe, onde
eu estava tentando apertar ou se foi só mera coincidência, mas fico feliz de
ele ter acertado. Sorrio comigo mesma pela minha sorte, assopro o líquido
quente em um tom quase caramelo, aproximo a minha boca da borda e
beberico um pouco do cappuccino, isso tudo com ele ainda olhando para
mim.
Abaixo o copo e sorrio sem descolar os lábios.
— Obrigada.
— Não precisa me agradecer — diz e também pega um café para si.
— O que você pode fazer por mim, é fazer uma queixa na recepção, vai ver
que com mais gente reclamando, eles arranjam coragem de mudar. Já
consegui, no mínimo, umas dez pessoas para embarcar nessa causa comigo.
Jovem que é jovem não compactua com o retrocesso que é essa máquina.
Até a minha mãe é mais nova que ela.
— Por acaso está tentando implantar uma revolução das máquinas?
Então, como se eu tivesse dito a coisa mais inteligente do mundo,
ergue as sobrancelhas e entreabre os lábios em surpresa.
— Como adivinhou?
Faço beicinho e chacoalho os ombros para fingir indiferença.
— Não sei, você me parece adepto à Revolução Industrial e métodos
de produção modernos.
No momento em que me escuta, abaixa o copo, que estava muito
perto de alcançar seus lábios, e diz:
— Por acaso está me chamando de capitalista?
Merda, agora estou me segurando para não dar risada.
— Por quê? Isso soa como uma ofensa para você?
— Não sei, isso me soa como um assunto muito delicado e eu não sei
se meu QI vai conseguir continuar essa conversa por muito tempo. Você me
parece inteligente.
— Você literalmente acabou de pegar café para mim porque eu não
sabia. Como é que isso pode parecer inteligente?
Ele dá de ombros.
— Eu já disse, essa máquina não é parâmetro para nada. Nem Albert
Einstein saberia manuseá-la.
— Mas você sabe — acuso.
— É, só que não por inteligência e sim, porque fui forçado.
— Obrigada à pessoa que te forçou, então. — Levanto o copo do meu
cappuccino em uma espécie de brinde e o garoto, que até agora não sei o
nome, faz o mesmo. — Eu precisava muito disso agora. Estava a um passo
de congelar lá na recepção. Vou me lembrar de nas próximas vezes passar
no Starbucks antes para já vir aquecida e pronta para aguentar a doutora
chegar.
— É uma viciada em café também?
— Totalmente — respondo logo depois de beber mais um gole. — É
tipo a minha droga.
— Ah, então você veio se juntar a nós? — Acho que percebe a
interrogação pairando acima da minha cabeça, porque completa: — Os
Coffeeaholic’s Anônimos.
Diante de tamanha seriedade, desconfio se realmente há algo assim
por aqui, no entanto paro de pensar no mesmo segundo em que ele explode
em gargalhadas ao ver que eu estava mesmo levando a sério. Não consigo
me segurar e o acompanho nessa, sentindo raiva de mim mesma por, mais
uma vez, ser tão tapada.
— Me desculpe — pede e eu balanço a cabeça para mostrar que está
tudo bem. — A propósito, nem me apresentei. Sou o Waylen. Waylen Pratt.
— Pratt? Do tipo Ella Pratt? — Faz que sim ao confirmar e eu não
consigo esconder a minha surpresa pela coincidência. — Então vocês são
parentes?
— Sim. Mãe e filho.
— Ela é sua mãe? — Tenho certeza que a minha voz aumenta uns
bons decibéis. — Uau. — Mesmo sabendo a sua idade, 38 anos, a doutora
me parece ainda mais jovem em minha cabeça. Eu nunca imaginaria que ela
teria um filho assim, alto, relativamente forte, do tipo não cheio de
músculos, porém definido e ainda mais velho. Quer dizer, da minha idade,
mas dá para entender. Se fosse para chutar, eu diria que a doutora Ella teria
um bebê ou uma criança de, no máximo, cinco anos. E agora percebo que
não notei as semelhanças dos dois. Waylen tem muito da mãe, embora não
carregue o mesmo tom de cabelo, obviamente. Ele é loiro, em um tom
puxado para o mel, alguns fios do seu cabelo caem sobre seus olhos
castanhos extremamente claros e quase dourados e sua pele é bem branca,
do tipo que faz as suas bochechas ficarem rosadas com frequência, quase
como se estivesse o tempo todo com vergonha, o que eu sei que não é o
caso nesse momento. Está usando camisa xadrez, camiseta branca lisa por
baixo, jeans surrados e All Star amarelo com frases na ponta,
provavelmente escritas com canetinha preta. Me parece… fofo. — Estou
realmente chocada.
— Por que? Esperava que o filho dela tivesse nascido com o cabelo
tingido de vermelho também? — Antes que eu abra a boca para falar,
Waylen me corta, dando risada. — Estou brincando, eu sei que ela não
parece ter um filho dessa idade. Agora deixa eu adivinhar, nova paciente?
— Está tão na cara assim?
— Pelas mãos tremendo, sim.
Droga.
A mão que não está segurando o copo, enfio dentro do bolso do
moletom que estou usando.
— Culpada. — Finjo ter sido pega no flagra. — E meu nome é Kayla
Benson.
Waylen sorri, e agora que noto suas covinhas.
— Seja bem-vinda, Kayla.
— Obrigada. — Olho para um lado, depois para o outro e decido
perguntar: — Você trabalha aqui?
— Ahn, não, apenas passo tempo demais aqui. Quando não se tem
muito o que fazer depois de passar horas na faculdade, perturbar a sua mãe
se torna uma ótima ideia.
Algo clareia em minha mente.
— Por acaso você estuda na Maevis University?
— Sim! Você também?
— Também! Eu faço Literatura…
Minha conversa com Waylen, o garoto do café, é interrompida assim
que a secretária da doutora Ella aparece para me avisar que a hora da minha
consulta chegou. Aceno que já estou indo para a senhora, bebo o meu café
de uma vez, o jogo no lixo bem ao lado e respiro uma boa quantidade de ar,
virando para olhá-lo nos olhos logo depois.
— Tenho que ir. Obrigada pela ajuda e pela distração.
— De nada. A gente se vê por aí?
— Claro, a gente se vê por aí.
Lhe direciono um último sorriso de gratidão antes de dar as costas,
correndo para não perder a minha sessão. Até parece que a gente vai se ver
por aí. O garoto parece legal e tudo, só que o campus é enorme, não sei se
nos trombaremos em outro lugar, a não ser na clínica.
A propósito, que curso que ele faz? Agora fiquei curiosa
Paro de pensar nisso assim que vejo a porta do consultório da doutora
Ella se abrir, a revelando para mim. Ela me cumprimenta com um sorriso e
pede para que eu entre e me sinta confortável. Eu atendo ao seu pedido,
entro em seu consultório, que é muito acolhedor, a propósito, e a vejo se
sentar em uma cadeira confortável, cruzando as pernas logo em seguida.
— Por favor, querida, sente-se. — Aponta com o queixo para o
pequeno sofá à sua frente, e eu, como um robô, faço novamente o que me
pede e sento com uma postura, que tento fazer ser impecável. Ella coloca os
óculos, pega um pequeno caderno, uma caneta, olha para mim e abre o
maior sorriso. — Você pode colocar os pés para cima, se quiser. Fique à
vontade caso queira deitar ou ficar do jeito que preferir, Kayla. Aqui vocês
estão em casa e não precisam ter vergonha de nada.
— Agradeço, mas estou bem assim.
As coisas são uma loucura, huh? Antes com frio, agora suando frio.
— Como já nos conhecemos antes, que tal começarmos a nossa
sessão com você me contando a sua memória favorita?
Bem, uau, ok, deixe-me ver. Não é difícil. Automaticamente tenho a
resposta, porque a cena me vem à mente e me faz sorrir. Eu, Sebastian,
Kellan, Elsa, Justin, Lionel e Daniel no aniversário do próprio Justin Harris.
Com direito a brincadeiras, chapéus engraçados na cabeça, fotos e um
encontro só com pessoas importantes, que com toda certeza do mundo,
conseguiram derreter meu coração.
Sim, é essa.
Essa é a minha memória favorita.
A minha primeira sessão de terapia foi... intensa. Eu já imaginava que
eu teria que falar muito, mas, uau, minha nossa, acho que nunca falei por
tanto tempo assim antes, ainda mais só sobre mim e sobre a minha vida. Foi
uma experiência nova, diferente e que me tirou totalmente da minha zona
de conforto, o que eu já sabia que iria acontecer, por isso que vim um
pouquinho preparada para isso, ciente de que eu precisaria me abrir para
uma completa estranha, que começaria a me ajudar e a me guiar diante das
minhas infinitas dificuldades e claro, traumas.
Sim, eu sei, a doutora Ella conversou comigo antes da consulta e foi
extremamente gentil em querer ter esse primeiro contato para que eu
pudesse me sentir mais à vontade e também gostei dela logo de cara, só que
não muda o fato de que ela continua sendo uma desconhecida para quem eu
devo deixar visível a minha parte mais feia e vulnerável. É realmente muito
estranho, pelo menos para mim, que sempre guardei tudo aqui dentro, ter
que sentar e reviver cada maldita dor, cada maldito abuso, cada maldito
bullying, omissão, crítica, ausência e todas as outras merdas com que tive
que lidar ao longo da minha infância e adolescência, com os sentimentos se
misturando, enchendo o meu coração até o topo, quase transbordando, e
uma outra pessoa assistindo de camarote o meu tormento se inflando.
Porque revisitar memórias dolorosas é como juntar fogo e gasolina, você
sabe que é perigoso, você sabe que pode levar à destruição e você sabe que
não há como controlar o impacto das chamas, porém você também sabe que
tem que passar por elas caso queira sair vivo do ambiente desesperador em
que se encontra. Você tem que ser forte, você tem que ser fênix e a pessoa
que lhe estenderá a mão no fim — a doutora Ella, no meu caso —, tem que
estar ciente de cada ferimento para poder lhe ajudar no processo de
cicatrização.
Não há como ter arco-íris sem chuva, foi o que Sebastian me disse
uma vez.
E eu me apeguei a isso, mesmo sendo extremamente difícil, confiei na
minha terapeuta porque era o que eu tinha que fazer, revivi algumas
memórias e passei pelo fogo. Falei um pouco sobre o meu pai, sobre a
minha madrasta, sobre o meu irmão, sobre Sebastian, sobre meus amigos,
sobre meu futuro e tudo que veio à minha cabeça naqueles minutos que se
seguiram. Foi uma bagunça de informações, uma hora eu mencionava uma
coisa e na outra eu já estava mencionando outra, entretanto acho que a
doutora Pratt conseguiu conduzir muito bem com suas perguntas pessoais e
até mesmo enigmáticas. Óbvio que não deu tempo de abordar sobre todos
os pontos essenciais, óbvio que não deu tempo de eu contar todos os meus
acontecimentos traumáticos, nem metade deles, na verdade, até porque foi o
meu primeiro dia, mas acho que foi o suficiente para eu entender como
funciona e assim, ir me acostumando nas próximas vezes.
Eu só sei que eu saí do consultório um pouco mais... esperançosa,
acreditando que sim, há uma luz no fim do túnel me aguardando. Também
fiquei muito orgulhosa de mim mesma, orgulhosa por ter dado esse grande
passo. Enquanto muitos me xingam e até mesmo me demonizam, sem nem
saberem um terço da minha história, eu estou aqui lutando e correndo atrás
de uma evolução. Eu estou aqui me desfazendo dos preconceitos da antiga
Kayla, para lidar com a verdade, para dar importância à minha saúde mental
e para finalmente dar um basta naquilo em que Cora me transformou.
Continuar aceitando e pensando tão pouco de mim era o que ela gostaria
que eu fizesse, e eu definitivamente não vou mais aceitar isso, eu não vou
mais viver uma vida moribunda, até porque estar no lixo sempre foi o que
aquela mulher desejou para mim e Cora Benson não vai sair vitoriosa. Eu
vou.
Eu sou a protagonista da minha história. Ela é a vilã. O final feliz será
meu.
Não importa o que falem, não importa o quanto o inimigo tente me
intimidar e me fazer desistir, eu, Kayla Marie Benson, irei dar a volta por
cima.
É aquela coisa, tenha medo de uma pessoa ferida, no entanto tenha
ainda mais daquela que foi ferida e mesmo assim decidiu se reerguer. Está
nela a maior força de todas.
E bem, apesar dos pesares, acho que estou ansiosa para a próxima
sessão e para as novas descobertas.
Deixo o assunto terapia guardado no fundo da minha mente e arrumo
os meus materiais, pois a professora acaba de nos liberar da aula. Faço uma
nota mental para gravar a informação de que temos um novo trabalho para
entregar nos próximos dias. Uma rápida e pequena produção textual. Ainda
não tenho nenhuma ideia concreta, porém acredito que farei um conto de
romance. Talvez natalino. Ou que envolva música, porque Elsa pode muito
bem me ajudar nisso, sendo a talentosa entendedora do assunto que é. Ou...
merda, quem eu quero enganar, quero escrever uma história parecida com a
minha e a de Sebastian, para que, pelo menos no papel, pelo menos na
ficção e em uma realidade alternativa, tenhamos dado certo ao fazermos
tudo diferente. Quero colocar para fora meus desejos e ser uma garota
sonhadora, criando outros cenários para nós dois. Se eu fosse seguir o
caminho da escrita, o que não vai ser o caso, já que meu sonho é trabalhar
somente em uma editora, todo o meu trabalho seria dedicado a ele. Meus
personagens teriam que ter um pouquinho do Sebastian, porque ele sempre
seria o meu ideal de homem perfeito, aquele por quem eu sempre me
apaixonaria e me basear nele e em sua personalidade, seria inevitável. Não
importa em que realidade seja, seja nesse ou em outro universo, ele sempre
será minha maior fonte de inspiração e o meu maior significado de amor.
Escrever seria ainda mais prazeroso porque eu o teria o tempo todo em
mim, mais do que de costume. Os leitores se assustariam com tamanha
realidade, bem como implorariam por um homem, na vida real, como os
dos meus livros, mas eu apenas riria, muito segura e honrada, e diria que
não há mais nenhum no mundo, afinal de contas, o único que realmente
importa eu peguei só para mim.
Engulo em seco assim que aperto meus livros de literatura contra meu
corpo.
É bom sonhar, só que a realidade é como um belo chute na bunda.
Estou fazendo juras de amor para um cara que age como se me odiasse
agora. Porcaria.
Ele foi fofo comigo o tempo todo em que estivemos juntos e agora,
no momento em que mais desejo retribuir, já é tarde demais.
Agora vejo que o ditado é mesmo real, nós só damos valor quando
perdemos.
Lambo os lábios, balanço a cabeça para dissipar os pensamentos e
serpenteio por um pequeno grupo de alunos concentrado no meio da sala de
aula, sibilando um pedido de licença quase inaudível, porque sim, ainda
sinto medo de ser alvejada com insultos por pessoas desse campus, mesmo
que eu agora não esteja mais querendo me importar tanto com isso. Minha
conversa com Elsa foi mesmo esclarecedora e importante. Com a cabeça
erguida, não mais olhando para baixo como antes, ando pelo corredor
normalmente e não como se eu estivesse fugindo da polícia após ter
cometido um crime. Já comecei a fazer isso há uns dias, a propósito. Alguns
me encararam no começo, não como se estivessem me provocando, apenas
como se estivessem se perguntando por onde andei boa parte do tempo ou
até mesmo o que diabos tinha acontecido na festa da república, já agora...
bem, agora parece que eu voltei a ser a novata desconhecida, o que é ótimo,
sem julgamentos.
Não é da Maevis University que preciso de uma opinião ou
aprovação, eles não podem me intimidar. Pelo menos não mais como antes.
Quando estou chegando perto das portas da saída do prédio, observo
as pessoas com guarda-chuva lá fora e então percebo que está chovendo.
Não, pior, está caindo um dilúvio nessa cidade, coisa que não acontece com
muita frequência pelo clima daqui ser bem estável. A água está
encharcando tudo lá fora, o céu está repleto de nuvens cinzas e aposto que
está relampejando, o que me deixa um pouco apavorada, confesso. Sempre
tive medo de trovão e de relâmpago desde pequena, sei que não há um
motivo plausível para continuar com ele, mas Jesus, não consigo não pensar
em como tudo soa bizarro e apavorante. E merda, como isso pode estar
acontecendo justo agora? Como na sala de aula ninguém prestou atenção?
Ou será que só fui eu que não reparei no tempo fechado? Sendo que não faz
nem duas horas que saí do dormitório, não faz nem duas horas que tudo
estava tranquilo, sem nenhum sinal no céu que teríamos esse... ahn,
contratempo.
Eu nem ao menos tenho um guarda-chuva.
Quer dizer, eu nem ao menos trouxe um guarda-chuva na mudança.
E céus, está frio, minha regata em nada me ajuda.
Rio fraco ao ver o quão azarada sou.
Eu estou sempre usando moletom ou com um dentro da bolsa quando
está, às vezes, o maior calor possível e hoje, justamente hoje, no dia em que
preciso, decidi esquecer em cima da minha cama. É por essas e outras que
eu penso que o universo realmente faz questão de me mostrar o quanto me
odeia.
Enfio os livros que estão na minha mão dentro da minha ecobag,
abraço meu próprio corpo para tentar me proteger das rajadas de vento e
dou alguns passos para perto da porta, a fim de espiar o que está
acontecendo lá fora. E me parece um sinal de que o mundo está acabando.
Como disse, pelos meses que estou morando aqui, nunca presenciei esse
caos antes. Não sei se fico aqui para esperar a chuva diminuir ou se apenas
dou o meu melhor na corrida, tomando um belo banho de chuva até chegar
aos dormitórios. O pior é que me parece que não vai passar tão cedo e tenho
certeza que ninguém aqui vai se disponibilizar a me dar uma carona em
seus guarda-chuvas. Estou ferrada.
Gangorreio com meus tênis e coloco a cabeça para fora, sentindo
algumas gotas gordas de água caírem em minhas tranças. Semicerro os
olhos para tentar encontrar alguma solução lá fora, olho para um lado, olho
para o outro e de repente acho que encontro uma pessoa conhecida a ponto
de passar pelo meu prédio.
E ela está com guarda-chuva!
Talvez o mundo não me odeie tanto assim.
Levanto os braços e começo a chamar sua atenção de uma forma
enlouquecida. É Waylen, o garoto do café, o filho da doutora Ella Pratt,
pronto para ser meu salvador. O chamo várias vezes e ele, com certeza
achando tudo muito esquisito e vergonhoso, acelera o passo e começa a
caminhar mais rápido, também com os olhos semicerrados na intenção de
me enxergar. Agora que vejo que está muito perto de se aproximar, fico
com vergonha e me aquieto no meu lugar, os braços caindo ao lado do
corpo.
Aperto a minha têmpora e fecho os olhos por alguns segundos,
perguntando que merda eu penso que estou fazendo com uma pessoa que
mal conheço. Mas dane-se. Sinceramente, eu não quero me molhar e
também não quero correr o risco de pegar um resfriado e ficar doente por
dias, eu só quero me enfiar debaixo das cobertas e esperar essa coisa toda
passar, sã, salva e no conforto da minha cama.
Waylen me ajudou com a máquina de café outro dia, não custa nada
me ajudar em mais essa. Tenho certeza que é o que a sua mãe gostaria
também.
— Ah, meu Deus, é você?! — é a primeira coisa que diz assim que
sobe as poucas escadas do prédio e fica a poucos centímetros de distância,
ainda pegando chuva. Ele definitivamente parece surpreso pela
coincidência. Eu também estou, no entanto. É a primeira vez que estamos
nos vendo na universidade depois de termos nos conhecido e olha que ela é
enorme, a gente sabe que poderíamos nunca ter nos trombado. Sorrio para
Waylen e confirmo sua pergunta com um acenar de cabeça, depois
finalmente presto atenção no garoto loiro à minha frente, que está vestido
com uma capa transparente de chuva, duas vezes protegido do dilúvio, já
que também está de guarda-chuva. Fricciono os lábios e tento não dar
risada, porque acho que, assim como eu, Pratt tem medo da chuva ou de se
molhar. — Puxa, caramba, estou feliz em vê-la novamente. E por que está
me olhando com essa cara? — Ergue uma de suas sobrancelhas e depois
acompanha meu olhar, que ainda está brincando de ping pong entre a sua
capa e o seu guarda-chuva. — Ah, claro, você também está me julgando. —
Faço que não, ainda tentando não rir, só que antes que eu possa falar
qualquer coisa, ele sai na frente: — Qual é, Kayla, isso não tem graça. A
minha mãe ela é meio protetora e merda, sensitiva também, porque me
disse que ia chover hoje e me obrigou a levar essas duas coisas na mochila,
embora eu não tenha acreditado. Ela disse que se eu não usasse, eu iria ficar
doente como da última vez que peguei chuva. E eu quase tive pneumonia,
sabia?
— Então deixa eu ver se eu entendi — brinco ao cruzar os braços. —
Decidiu usar os dois por garantia?
— Claro — ele dispara. — Ela já tinha acertado a previsão da chuva,
poderia muito bem acertar a previsão de que eu ficaria doente. Não duvido
de absolutamente mais nada agora.
Estalo a língua no céu da boca e ergo meus lábios em um sorriso.
— Será que a doutora Pratt já está sabendo das coisas que vão
acontecer comigo ou isso só funciona com o filho dela?
Waylen faz biquinho e parece pensar, mesmo que eu saiba que está só
de graça para o meu lado. Tenho certeza do meu pensamento quando ele
para, dá risada e responde:
— Só comigo. Desconfio eu que seja só para me atormentar.
— É uma pena. — Contorço o meu rosto em uma expressão de
decepção. — Eu também queria que funcionasse comigo. Estou precisando
seriamente de ajuda.
— De que tipo de ajuda você está falando?
“Bem, de muitas, sua mãe que o diga”, logo penso, porém não coloco
nada para fora. Aproveito do gancho perfeito e decido falar sobre o motivo
de tê-lo chamado aqui.
— Nesse exato momento, Waylen, eu preciso de uma carona até os
dormitórios. Será que cabe mais um aí? — Aponto para o lugar que quero
ocupar ao seu lado, bem embaixo do seu guarda-chuva, e junto as mãos em
frente ao rosto, para pedir-lhe por favor. — Você não vai querer que eu
fique doente no seu lugar, vai?
O filho da minha terapeuta dá risada.
— Claro que não. — Parece sincero. — Mas você sabe que, a partir
de hoje, está me devendo dois favores, certo?
Mordo os lábios.
— Que tal um café depois? — sugiro, para compensar todas as vezes
em que me arrancou de uma fria. Literalmente, pensando no agora. — Será
por minha conta.
— Aceito. Mas café agora, Kayla, não depois. Preciso de algo quente.
Ok, já percebi que essa proposta é inegociável.
— Então tá, café agora. Só que você precisa me prometer que me
deixará na frente do meu dormitório, caso ainda continue chovendo.
Ele levanta a mão.
— Promessa de escoteiro.
Dou risada da sua fala e logo escorrego para debaixo do seu guarda-
chuva, finalmente sendo protegida. Seguro no cabo junto com Waylen e
começo a me movimentar logo que ele dá o primeiro passo, pronto para
seguir o caminho do Starbucks, que é aqui mesmo próximo ao campus.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, só com o barulho da chuva
caindo contra o material acima de nós, e aceleramos cada vez mais a nossa
caminhada à medida que vamos percebendo que não dá para andar devagar
e despretensiosamente nesse monte de água. No momento em que viramos
a rua, Pratt decide puxar assunto.
— Eu vou querer caramelo macchiato e você?
O fito sobre os ombros, já com a resposta na ponta da língua.
— Capuccino com canela.
— Hmm, boa escolha.
— Claro que sim, é o meu favorito.
Ele sorri para mim, como se me entendesse.
— Eu meio que já tinha uma noção disso.
Retribuo o seu sorriso e então somos envoltos por mais silêncio.
Minha garganta coça e me vejo na obrigação de falar mais alguma coisa.
— Obrigada — solto de repente. — Obrigada pela ajuda. Fiquei tão
desesperada que nem ao menos perguntei se você estava livre ou se estava
ocupado. Não quero atrapalhar seu dia, Waylen.
— Se você me agradecer novamente, vou te largar na chuva. Estou
falando muito sério. — Então tenta parecer bravo e só parece mais fofo,
com as bochechas coradas e tudo. — Eu te ajudei com aquela máquina
infernal, te dei uma carona na chuva e você agora vai me pagar um café...
acho que isso nos faz tecnicamente meio que amigos.
— E a sua mãe ainda me conhece — emendo, para que não esqueça
de mais esse fato. — E estudamos no mesmo lugar.
— Porra, sim e sim. — Rimos juntos. — É, Kayla, acho que somos
mesmo amigos. Ou pelo menos temos tudo para sermos.
Sim, é verdade.
E olha só, mais uma evolução, eu aqui estou eu fazendo mais um
amigo e com zero medo disso.
— Qual curso você faz, hein?
— Advinha?
— Engenharia? — chuto e Waylen arregala os olhos, surpreso. — O
quê? Eu acertei?
— Sim — assente. — Eu sou tão previsível assim ou foi a máquina?
— Definitivamente a máquina.
Tombo a cabeça para trás com a gargalhada que escuto vindo dele, o
acompanhando.
— Escuta as minhas palavras, Kayla, eu ainda vou demolir aquilo.
— Vá em frente, querido, tem todo o meu apoio.
Não sei se o loiro ao meu lado iria falar alguma coisa, no entanto, fica
calado assim que chegamos na calçada do Starbucks. Meu estômago revira
de ansiedade por conta do cheiro de café que atinge minhas narinas,
acredito que com Waylen acontece o mesmo, pois mexemos a cabeça ao
mesmo tempo e corremos para empurrar a porta do estabelecimento, um
querendo competir com o outro para ver quem chega primeiro. O sino que
avisa a ilustre presença dos clientes é tocado quando nós dois entramos e o
cheiro conhecido fica ainda mais forte agora, uma vez que estamos aqui
dentro.
— Vou fazer nosso pedido — informo já olhando para a pequena fila.
— E eu vou pegar um lugar para nós.
Cinco minutos depois, estou com os nossos copos de café nas mãos,
me direcionando para a mesa de dois lugares onde ele já se sentou. É perto
da entrada e da grande janela de vidro, dando livre visão da chuva. Só aqui
que o ambiente fica bonito, porque combina com toda a vibe.
— Olha, me desculpe, mas a moça escreveu seu nome errado. —
Arrasto a cadeira para trás, me sento nela e lhe entrego o copo de café. —
Pelo menos me parece errado.
Ele vira o copo e verifica seu nome escrito com canetinha preta,
depois rola os olhos.
— Eu gosto de ver como eles sempre inovam.
— São criativos — murmuro, o meu café perto da minha boca. —
Acontece comigo direto. Aqui não, porque já sou freguesa, mas sempre
vinha Kylie, Kailey, Kailee, Kara, Karen e nunca Kayla.
— Ah, merda. Já percebeu que o fácil eles tornam difícil?
— Muitas vezes.
Mais uma vez, estamos rindo e é nesse momento que o sino do
Starbucks toca novamente. Institivamente meu olhar se volta para lá,
provavelmente o de Waylen também, por estarmos tão próximos, e meu
coração para por um segundo, para depois bater com extrema força,
dançando contra minha caixa torácica assim que todo o meu corpo
reconhece aquela figura.
Sebastian Skalbeck.
Molhado da chuva, com o cabelo penteado para trás e pingando. Sua
camiseta, obviamente encharcada, gruda em todos os seus músculos e eu
sinto meu interior contrair juntamente com as minhas coxas.
Muito, muito gostoso, a minha maior perdição e a minha queda.
Minha boca fica seca com a imagem e o meu sorriso automaticamente
evapora do meu rosto, porque o capitão, uma das maiores raposas de
Maevis, entra na cafeteria e seu olhar cruza com o meu em questão de
milésimos. Suas sobrancelhas se unem por um segundo, porém, como se
finalmente tivesse percebido que há algo de errado no ambiente, suas írises
sagazes escorregam para o garoto que toma café comigo e que segue
falando alguma coisa enquanto ri e toca na minha mão para pegar meu
copo, acho que para ver se escreveram certo o meu nome dessa vez.
Só basta essa atitude e eu vejo. É quase imperceptível, entretanto eu
flagro o instante em que um osso tensiona na mandíbula de Sebastian.
Algo me diz que essa sua pequena demonstração de fúria não tem
nada a ver com o frio que acometeu essa cidade.
Eu não esperava ficar encharcado da chuva após um treino com os
garotos do Maevis Fox, muito menos esperava encontrá-la na cafeteria justo
agora. Bem que a minha intuição estava me mandando dar o fora daqui
antes mesmo que eu entrasse, porque óbvio que o Starbucks me lembraria
Kayla e o seu incontrolável vício pelo cappuccino, só que mesmo assim fui
teimoso e adentrei o estabelecimento sem nem pesar os prós e os contras.
Agora estou diante do seu escrutínio e com chamas percorrendo cada
centímetro da minha pele, minha mandíbula tensionada e as minhas mãos
fechadas em punho ao lado do corpo, sentindo coisas, que nunca senti antes,
atravessando o meio do meu peito de uma forma que quase me faz rosnar
como um animal. Não estou entendendo nada da porcaria dessa cena.
Meus olhos arregalados, que tentam fazer meu cérebro compreender os
acontecimentos desse momento, rapidamente pulam da garota de tranças
para o garoto com roupas xadrez na cadeira à sua frente, a coluna dele
inclinada para poder alcançar a mão dela, ainda dando risada nesse meio
tempo, como se fosse muito íntimo ou qualquer merda parecida.
Finco ainda mais as unhas na palma e prendo uma risada totalmente
sem humor na minha garganta ao pensar somente uma coisa: de que buraco
ele saiu e quem diabos ele pensa que é para estar tão próximo assim dela?
Céus, acho que estou perdendo a minha respiração, o meu
autocontrole e a porra do mantra, que estava tentando enfiar na minha
cabeça, sobre não me importar nem um pouco com ela ou com o que decide
fazer da vida. Acho que estou a um passo de enlouquecer, pois me sinto
diante de um fogo cruzado. Ao mesmo tempo que quero arrancá-lo de cima
dela e arrastá-la para longe daqui junto comigo, quero dar as costas, correr e
tomar chuva novamente, para ver se a água gelada, batendo contra a minha
cabeça, traz o meu juízo de volta.
Eu deveria odiá-la, eu não deveria ficar com raiva se Kayla está
saindo com outro homem, mesmo que esse seja um loiro apático e sem
graça. Eu deveria ficar contente, não deveria? Só assim ela finalmente
estará longe de mim, só assim ela finalmente irá me esquecer como tanto
desejo, correto? Não, errado! Porque não é isso que estou sentindo. Estou
furioso e porra, pronto para perguntar para esse garoto, seja lá quem ele for,
se ele não tem amor à vida ou se não faz ideia dos boatos que circularam na
faculdade sobre ela ser um grande problema com carinha inofensiva. Se ele
não faz ideia, então que bom, estou pronto para me juntar à mesa para poder
informá-lo sobre todas as coisas que ela fez comigo, só para que a odeie e
nunca mais volte a olhá-la uma outra vez.
E cacete, Kayla nunca gostou de mim mesmo, huh? Só isso explica
querer que a fila ande tão rápido.
Ou... espera, talvez ele seja a sua próxima vítima, o próximo coração
partido que colocará na prateleira, junto da sua coleção infeliz.
Independentemente do que seja, não vou ficar aqui assistindo, eu vou
agir.
Arregaço as mangas da jaqueta do time e piso duro até eles, vendo o
corpo de Kayla se retesar e suas mãos ficarem esbranquiçadas à medida que
segura, com certa força, o seu copo de café, claramente vendo eu me
aproximar. Aposto que está mesmo com medo agora, com medo que eu
estrague todos os seus planos e os seus joguinhos sádicos. E é o que eu vou
fazer. Não vou deixar que ela maltrate outra pessoa e saia impune mais uma
vez. Não vou deixar que fique de gracinha com outro garoto enquanto está
tramando por suas costas da forma mais feia e cruel possível. E também não
vou deixar que faça nenhuma dessas coisas na minha frente, porque, mesmo
não gostando de admitir, me machuca e me transforma em um ser irracional
capaz de entrar em confusão.
Maldita seja essa pequena parte de mim que ainda sonha, achando
que ela é minha.
Me infiltro entre a mesa deles, pego uma cadeira vazia próxima e
coloco-a bem entre os dois, ignorando os olhares que recebo de um e de
outro.
Sei que Kayla está prestes a me chutar daqui, mas ela não vai me
intimidar.
— Uau, que chuva que está caindo lá fora, não? — Forço um sorriso
para eles e troco um olhar com o garoto, até então desconhecido, que me
encara com as sobrancelhas arqueadas, uma interrogação muito nítida
pairando acima da sua cabeça. Ele olha para Kayla, em busca de respostas,
porém a única coisa que ela é capaz de fazer é se manter calada em sua
espécie de transe. Ou seria em sua espécie de bolha prestes a ser
estourada? — Nossa, desculpe. — Rio ao bater a palma da minha mão
levemente contra a minha testa. — Estou atrapalhando o encontro de vocês?
— Sim.
— Ah não, não — o garoto se apressa em falar logo depois de Kayla,
que decidiu me atingir de primeira. — Posso estar enganado, mas você não
é o capitão do time de futebol americano? — Parece mesmo curioso,
fincando o braço na mesa e estreitando os olhos em minha direção.
Rá! Garoto esperto.
— O próprio. — Estufo o peito e estendo a mão para me apresentar,
mesmo que eu ainda não tenha decidido se fui com a cara dele ou não. Bem,
levando em consideração que ele está aqui, nessas condições, com ela, acho
que não, não fui. — E você é...?
— Ninguém da sua conta.
— Waylen — responde ele, depois de trocar um olhar com Kayla,
totalmente sem jeito e também sem entender os motivos da sua grosseria.
— Ahn... vocês se conhecem? — Alterna o olhar entre nós dois à medida
que passeia seu dedo indicador para os lados.
Ah bom, agora estamos indo por um caminho mais divertido.
Minha boca se abre em um sorriso e sei que ela reconhece que é
maldoso.
— Eu diria que sim.
Kayla revira os olhos e bufa quando me escuta.
— Acho que quero ir embora, Waylen.
Projeto o lábio inferior para baixo e faço a minha melhor expressão
de tristeza.
— Mas já? — Ela me olha como se fosse voar no meu pescoço,
embora, no fundo, seus olhos me pareçam tristes. Está fingindo. Tudo o que
Kayla Benson faz é fingir. Eu não acredito mais em nada que venha dela. —
Qual é, linda, não vai contar quem eu sou para o Waylen?
— Para, Sebastian. — Tanto sua boca quanto suas írises suplicam, só
para que eu escute. — Mais uma vez, por favor, para.
Medo, medo e medo, é tudo o que eu vejo.
Covarde.
— Não vai contar? — insisto. — Vamos, Kayla, eu quero ouvir você
dizer.
Waylen a olha, a incentivando.
Eu não sei se ele está fingindo, porém me parece realmente querer
saber e de uma forma ingênua, como se estivesse esperando uma grande
revelação muito legal da nossa parte.
Parecendo cansada e prestes a desistir, ela bufa mais uma vez.
— Um amigo — diz ao dar o braço a torcer. — Sebastian é um
amigo.
— Não. Negativo. Sou seu ex-namorado.
— Ex-namorado?! — Waylen soa incrédulo. — Ah merda! Garota,
você me meteu em apuros? — Sua pergunta é direcionada à Kayla, que me
encara como se quisesse dizer: tá vendo só o que você acabou de fazer.
Mais uma vez, dou de ombros e a ignoro.
— Por que? Você estava querendo assumir o posto de atual? Se a
resposta for sim, sinto muito, teremos alguns problemas. E não só por
minha causa, a propósito. Ela é meio... instável — sussurro a última
palavra. — Você parece fofo e adorável, e se quer um conselho de alguém
que passou pelas mãos de Kayla Benson, fuja enquanto é tempo. Para bem
longe. E não olhe para trás.
— Eu não... — Seja lá o que ele gostaria de falar, sua frase morre
bem no meio do caminho, sua boca abrindo e fechando na mesma
proporção que seus olhos piscam, assustados. — Eu...
Sem deixá-lo completar, Kayla, movida pela raiva de eu ter estragado
seu grande dia, bate com o copo de café na mesa e arrasta sua cadeira para
trás de uma forma tão brusca, que quase todos os olhares do
estabelecimento recaem sobre nós.
Isso não é motivo para ela parar, entretanto.
— Que porra você quer de mim, Sebastian? — esbraveja e a sua fúria,
tão palpável, me faz segurar os braços da cadeira em que me encontro, meu
pomo-de-adão desce e sobe no momento em que ela decide vir para cima de
mim, muito próxima. — Você foi muito claro naquele dia na festa, disse que
não queria que eu cruzasse o seu caminho e o caminho dos seus amigos,
uma coisa que estou fazendo, então por que está aqui agora, querendo você
ficar perto de mim? — Rilho os dentes ao vê-la ainda mais brava, me
fazendo perguntas que não sei responder, deixando-me parecer um idiota,
que agora estou realmente achando que sou. — Eu não te procurei, eu não
te provoquei, eu não fiz porra nenhuma! — cospe as palavras com o dedo
apontado para o meu nariz. — Escolha o que você quer de mim e me diga,
porque eu juro que não sei mais, estou exausta. Parece que tudo o que eu
faço é errado, não importa as minhas intenções. Se eu fico longe, estou
errada, se eu fico perto, estou ainda mais. Se eu tento fazer novos amigos e
seguir com a minha vida sem incomodar a sua, você se aproxima e tenta me
derrubar e me deixar no chão, como se eu já não estivesse nele. Então me
diz, o que você quer de mim? — Kayla arfa com força e dá alguns bons
passos para trás, como se tivesse tomado um choque ao se colocar tão perto
de mim. Ela olha para um lado, olha para o outro e se dando conta da cena
que acabou de fazer diante de tantos telespectadores, empina o queixo,
pisca os cílios longos, deixando que algumas lágrimas deslizem pela pele da
sua bochecha, e sopra em um fio de voz: — Eu me senti tão especial
quando você me notou naquela manhã, Sebastian. Eu me senti nas nuvens.
Você era requisitado, você era o sonho das meninas e foi a mim que você
quis. No fundo, eu fiquei nas nuvens. Mas agora eu vejo que eu preferia ter
continuado no chão. Agora eu vejo que eu preferia que você nunca, nunca,
tivesse me notado.
Dito isso, Kayla pega suas coisas e dispara para fora da cafeteria, sem
nem olhar para trás, correndo em meio à chuva, que ainda está caindo com
força lá fora.
Movido pela raiva e por um turbilhão de sentimentos tumultuados,
direciono um último olhar a Waylen, flexiono os meus joelhos, arrasto os
meus tênis pelo Starbucks, empurro a porta e corro atrás dela, que não foi
muito longe. Sentindo a chuva me molhar por inteiro, serpenteio pelas
pessoas, que me olham como se eu fosse um lunático e chamo pelo seu
nome, várias e várias vezes.
Inferno, é óbvio que ela tem que acelerar o passo e ficar cada vez
mais longe.
Contudo, eu estou em forma, sou um atleta e consigo alcançá-la num
piscar de olhos.
Corro pela calçada e, quando a vejo dobrar a esquina, acelero,
pegando-a desprevenida ao empurrá-la na parede do beco em que acabamos
de entrar, escutando seu gritinho abafado pela minha mão. Com o peito
arfando e o cabelo pingando, a impossibilito de se mover ao encostar nossos
corpos, água nos envolvendo por todos os lados e molhando nossos pés.
Kayla busca por ar e eu retiro minha mão da sua boca, vendo-a entreabrir os
lábios e empinar o queixo para olhar dentro dos meus olhos, agora com nós
dois protegidos da chuva torrencial. Não sei se ainda chora ou já parou, no
entanto, em uma atitude comandada pela pequena parte minha que se
importa, raspo as pontas dos meus dedos em sua bochecha e retiro as
gotículas acumuladas por ali, sentindo-a vibrar sob meu toque, seus olhos se
fechando conforme seu corpo sente o efeito dessa minha carícia.
— Eu não sei o que eu quero. — Encosto minha testa na sua e
também fecho os meus olhos. Assim que a vejo tremer por conta do frio,
não consigo pensar mais em nada, apenas a envolvo em meus braços para
tentar aquecê-la. Depois de alguns segundos querendo relutar, sua cabeça
bate contra meu peito, suas mãos envolvem a minha cintura, como se nunca
mais fosse me largar, e o meu coração metralha o seu ouvido, dando
cambalhotas em meu peito por tê-la de volta perto dele. Afundo os incisivos
no meu lábio inferior e reprimo um xingamento por, mesmo depois de tudo,
ainda me sentir em casa junto a ela. Não tem estranhamento, não tem
sensação ruim, não tem desconhecimento, apenas... familiaridade. — Porra,
eu realmente não sei. Você não tem noção do que fez e faz comigo, Kayla.
Você não tem noção de como me senti quando te vi com outro. Você não
tem noção de como me destruiu falando sobre como não queria que eu
tivesse a notado naquela manhã. — A aperto mais contra meu corpo e sinto
seus mamilos pontiagudos roçarem meu peitoral, fazendo-me arfar e gemer
com o atrito que tanto senti saudade. É baixinho, mas sinto quando também
geme e se inclina mais para mim, infiltrando seus dedos, agora ásperos pelo
banho de chuva, dentro da minha camiseta, tateando minha barriga. Paro de
abraçá-la e a empurro novamente contra a parede de tijolos, prendendo seus
braços acima da sua cabeça e enfiando uma das minhas pernas no meio das
suas, sua intimidade, protegida pelo seu short jeans, roça em minha coxa,
fazendo com que, tanto eu quanto ela, abramos a boca para murmurarmos
frases e palavras desconexas. — Você o beijou? Você se deitou com ele?
Você realmente quis dizer o que disse, linda?
— Não, não e sim.
Meu maxilar trava e eu decido provocá-la, movendo minha coxa em
sua boceta, apenas um pouco, quase nada. Ela morde os lábios e não deixa
que eu escute seus gemidos, porque é claro que isso é o suficiente para
atiçá-la.
Kayla pode até não ter me entregado seu coração, porém me entregou
seu corpo e sei que ele adora cada pequena coisa que faço com ele. Está na
cara da desgraçada. Olhos espremidos, arquejos, pelos eriçados e boca
pronta para a minha. E eu estou salivando pela dela, como nunca antes.
Isso aqui, isso que está acontecendo entre nós, é a merda de uma
roleta-russa e eu quero, pelo menos um pouco, brincar entre a vida e a
morte. Até porque, Kayla Benson sempre será a minha perdição. Até os fins
dos tempos. E eu a odeio ainda mais por isso. A odeio por simplesmente
não conseguir odiá-la de verdade e com a força necessária para me manter
longe.
Eu realmente pedi que ela não se colocasse mais no meu caminho e
eu acredito mesmo que isso seja o melhor, afinal, não temos mais solução,
só que simplesmente não consigo vê-la, ainda mais com outro, e ficar
quieto. Eu também não tenho sangue de barata. Também não sou santo,
perfeito e ajo sempre da melhor forma possível. Minha vida está toda fodida
e errada desde que a conheci, o que me faz cometer loucura atrás de
loucura. Tenho a plena noção que, desde a cafeteria até aqui, estou
cometendo erros que meus amigos me matariam se soubessem. Erros que
depois eu vou querer me matar.
Fique longe dela.
Era apenas isso que eu deveria fazer e olha só onde me enfiei por
ciúme.
Foda-se, não acredito que admiti isso para mim mesmo.
— Por quê? — questiono depois de algum tempo, cheirando seu
pescoço e depois ficando a centímetros de distância da sua boca. Kayla
desgruda a cabeça da parede e nossos narizes se tocam, seus lábios
resvalam nos meus e sorrio ao ver que quer se aprofundar. Me afasto e
balanço a cabeça em negação, ainda querendo saber. — Por que desejou
que nunca tivesse me conhecido se foi você que quis brincar comigo? Eu
posso até ter insistido, mas você que apostou, linda. Não há sentido no que
você falou. É como se estivesse... como se estivesse machucada. Pareceu da
mesma forma na república. Como se o que eu falo ou faço te atingisse
tanto, que você não consegue suportar. Mas como, se não foi recíproco?
Como, se eu não fui nada para você? Como, Kayla, como? Está querendo
mexer novamente comigo, é isso?
— Eu estava quieta, você que me procurou — desvia do assunto e
tenta se desprender do meu aperto, contudo eu não deixo. — Você que veio
me ofender e fazer a cabeça do menino contra mim. Estávamos nos
conhecendo e você provavelmente estragou tudo. Ele estava querendo ser
meu amigo, sabia?
— O caralho que estava — rosno. — E você não sabe ser amiga de
ninguém.
Há mágoa no seu olhar.
— Vai começar a me ofender de novo?
Solto uma lufada de ar ao passo que balanço a cabeça.
— Só estou apenas dizendo a verdade.
— A verdade pode ser distorcida.
Tombo a cabeça para o outro lado, observando-a de outro ângulo,
minhas sobrancelhas unidas.
— Como? — questiono.
— Você nunca entenderia.
— Claro — quase grito. — Porque você não me diz nada, você foge,
você não é clara, você fica soltando enigmas. Você é a porra de uma
confusão.
— E você gosta. — Sinto o golpe certeiro de suas palavras. —
Sempre te achei masoquista e você está provando novamente que tive razão
esse tempo todo. Se eu te mandar embora agora, dizendo que não quero
mais nada com você, você vai ou você fica? — Aperto suas mãos no topo
da sua cabeça, sentindo meu peito se preencher de fúria outra vez e acho
que ela gosta de ter tomado as rédeas da situação, porque se remexe contra
a minha coxa e, pouco a pouco, aproxima-se da minha boca, o hálito quente
lambendo meu rosto e fazendo meu pau inchar dentro das calças. — Se eu
acabar com a nossa distância e te beijar, você vai me afastar ou me devorar?
Engulo em seco e murmuro:
— O que você acha?
— Eu acho que você ainda me ama.
— Então faça o teste. — Libero suas mãos e a deixo à vontade para
fazer o que quiser. — Me pegue e veja.
Kayla assente, vindo de fininho até mim, quase como um felino, seus
olhos fazendo com que Maevis, que está na sua temperatura mais fria em
todo o ano, fique parecendo o inferno de tão quente. Eu a puxo em um
solavanco para acabar logo com isso, nossos corpos se colidem e ela infiltra
sua mão pela minha nuca, alcançando meus fios molhados e me
empurrando para a frente, direto para seus lábios, que pressionam os meus
em uma explosão que vai direto para meu coração, passando a bombear
sangue ainda mais rápido e fazendo o beco, em que estamos, se tornar ainda
mais apertado e ainda mais claustrofóbico.
Kayla fecha os olhos, entretanto eu não consigo.
Suas mãos agora envolvem cada lado do meu rosto e, no segundo em
que está prestes a pedir passagem com a sua língua, para sair apenas desse
colar de lábios, faço o que nunca pensei que conseguiria fazer, a empurro
delicadamente para longe.
Ela me olha sem entender nada por um bom tempo e depois a ficha
parece cair, embaraço deixa suas maçãs do rosto coradas, envergonhada
pela rejeição.
— Eu posso até te amar — começo, a voz embargada. —, no entanto
você não me manipula mais. Eu faço as minhas próprias escolhas agora e
você não deveria parecer tão confiante.
— Achei que...
— Não. Não vou me deixar ser enganado de novo.
Lágrimas novamente retornam às suas írises castanhas.
— Sabe, Kayla, meu coração é gigante, mamãe costuma dizer isso
com frequência, acho até que já te disse isso uma vez. E se você tivesse me
contado antes, se você tivesse mostrado qualquer tipo de arrependimento
sobre o que tinha feito, eu poderia ter te perdoado. Fiquei com esse
pensamento durante as primeiras semanas, desde que a verdade fora
revelada. Contudo, você não apareceu e até mesmo agora, diante de mim,
não consegue me explicar nada. Como espera que eu fique, te beije e te
devore se estou completamente no escuro? Eu realmente não menti quando
disse que não sei mais quem é você.
— Eu sou... — sibila, o queixo tremendo. — Eu sou a mesma Kayla.
A sua Kayla.
— E eu talvez não seja mais aquele Sebastian. — Inspiro fundo e viro
para trás, vendo que o tempo deu uma estiada, embora permaneça
chuviscando. Volto a olhá-la. — Preciso ir.
— Tá.
— Você vem comigo.
— Quê? Não vou, não.
— Vai sim. Nem fodendo que vou te deixar aqui.
Automaticamente seus olhos duplicam de tamanho e ela parece
indignada.
— Por que você se importa?
— Porque sou um idiota, porque não tenho nem um pingo de
vergonha na cara e porque sou um sadomasoquista.
Kayla troca o peso dos pés e cruza os braços em frente ao peito,
escondendo a transparência do tecido após ficar molhado.
— Por acaso está sendo sarcástico? — Solta um muxoxo. — Uh, eu
não estou entendendo você e nem essas nossas brigas.
— Quem entender, morre. — Dou de ombros, também me sentindo
patético e começo a tirar a jaqueta do time do meu corpo para lhe entregar.
— Veste isso.
— Pra quê?
Reviro os olhos.
— Você não vai querer voltar para o dormitório de farol aceso, vai?
— Aponto para seus mamilos duros e Kayla geme de desgosto, se cobrindo
ainda mais com os braços. — Está gostosa, só que não quero que fiquem te
olhando assim.
Com um bufo, opta por pegar minha jaqueta do Maevis Fox e sai
andando na minha frente, porém não sem antes dizer para si mesma:
— Eu, hein, vai entendê-lo.
Tão logo passo pela porta e entro em casa, a primeira coisa que noto
é que meus amigos estão todos reunidos jogando vídeo game, com
cobertores para todos os lados, enquanto bebem chocolate quente para
aproveitarem o tempo chuvoso. As janelas e as cortinas estão todas
fechadas e o ambiente completamente no escuro.
Fricciono os lábios para não rir.
Eles sempre fazem isso.
Toda vez que chove, se juntam na sala para uma espécie de evento de
inverno fora de época.
— Olha só, é o Sebastian! — Escuto a voz de Lionel anunciando para
os outros a minha presença, quando já estou tirando os tênis no hall de
entrada. Minhas roupas secaram um pouco no caminho até aqui, mas ainda
estão grudando em meu corpo e isso está me incomodando muito, acho que
por conta do frio, talvez. — Onde você se enfiou, cara? — pergunta e assim
como ele, Justin, Kellan e Maddox viram seus rostos para me lançarem
olhares curiosos à medida que me medem de cima à baixo e depois de baixo
até em cima. — Puts, acho que você pegou chuva.
— Você acha? — ironizo para Prince. — Não está claro o suficiente?
— Para mim está bastante claro — Justin sai na frente ao enfatizar
com um assobio. — Sua camiseta está molhada e está grudando no seu
tanquinho. — Parece impressionado ao analisar os gominhos no meu
abdômen e eu, querendo saber se algo mudou em meu corpo, olho para o
mesmo lugar que ele. Nada. Mesmo corpo perfeito de sempre. — Porra,
esse cara é muito gostoso, ele não deveria andar assim. — Dou risada ao
vê-lo se virar para poder reclamar com os meninos, como se eu não
estivesse aqui e como se a sua indignação fosse mesmo válida. — Por isso
que eu não trago nenhuma garota para essa casa. Elas vão olhar para o
Sebastian e pensar: merda, acertei o ninho, só que errei o passarinho. Seria
uma vergonha.
Simplesmente não tem como se manter sério depois dessa, por isso
que explodimos em gargalhadas. Menos Justin Harris, claro, porque parece
mesmo convicto do seu ponto de vista.
Então, do nada, Lionel dá um tapa na nuca dele, fazendo-o se
encolher com o susto e claro, com a dor.
— Mas que merda?
— É para você aprender a não alimentar o ego alheio — diz o nosso
linerback. — E também pela sua mentira. Se uma garota fosse pensar isso
olhando para alguns dos meninos, todo mundo sabe que seria olhando para
mim. Eu sou irresistível.
— Não, você é um vagabundo — Justin o provoca. — Entretanto,
você também é um grande motivo pelo qual não trago ninguém para cá, se
quer mesmo saber.
— Ah, é?
— Sim. Você pode muito bem enfiar o pau nela às minhas costas.
— Há, Há, Há. Que engraçado. — Lionel Prince bufa ao cruzar os
braços. — Essa piada é velha. Vocês precisam atualizar o repertório,
ninguém aguenta mais essa de que eu como pessoas comprometidas. Já
falei com Deus, mudei de vida, não irei mais cobiçar a mulher do próximo.
— Todos nós olhamos para ele com aquele ar de descrença, no entanto,
acho que ele não nota ou só não liga. — Se bem que, se formos parar para
pensar, estamos no século XXI, monogamia deveria ser vista como algo
retrógrado. Na verdade, nem retrógrado, porque antigamente, bem
antigamente, era normal. Não que eu seja a favor, por favor, não pensem
isso, estou só comentando para gerar um debate.
— Se bem que você não falou besteira agora — o garoto de óculos
menciona e eu me aproximo, por trás do sofá em que eles estão, pronto para
ouvir a discussão que chegou de forma aleatória. — Há um fato engraçado
sobre isso. Não sou muito bom em História, porém me lembro que isso tudo
começou na Idade Média. Parece que o casamento poliafetivo era comum
na época, para manter o poder do rei, contudo a Igreja Católica, interessada
em se beneficiar, se meteu no meio e decretou a monogamia, porque se o rei
não tivesse herdeiro, as terras ficariam para a Igreja. Daí veio o casamento e
a proibição do divórcio. Enfim, realmente não é a minha área de
conhecimento favorita, não posso me aprofundar muito, mas só foi para
contextualizar que, dessa vez, Lionel Prince acertou em cheio. Monogamia
é mais atual do que a gente pensa.
Um grande sorriso floresce no rosto do moreno.
— Sendo assim, algum dia voltarão atrás nessa decisão. O mundo
perfeito está chegando, senhoras e senhores.
— Você não acabou de dizer que não era a favor? — eu me intrometo.
— Está feliz por quê?
— Porque meu coração é empático e cheio de respeito por qualquer
forma de amor. — Dá de ombros. — A vida é uma só e todo mundo deveria
vê-la como eu. O importante é beijar na boca e ser feliz. Ninguém deveria
encher a porra do saco de ninguém.
— Tá. — Daniel Maddox limpa a garganta para chamar atenção. —
Bonito o papo e tudo o mais, só que o que isso tem a ver com a chegada do
Sebastian? Não sei vocês, porém eu ainda quero saber onde ele esteve esse
tempo todo. Estamos o esperando há, no mínimo, duas horas. E duas horas
de puro tédio para mim, inclusive, ninguém consegue me vencer no FIFA.
— Chacoalha o controle do vídeo game ao passo que os garotos o
empurram, tentando tomar dele o seu bem mais precioso. Falando sério
mesmo, Maddox tem razão, ninguém consegue vencê-lo no FIFA ou em
qualquer outro jogo que coloca para nós jogarmos. Ele é um verdadeiro
gamer fanático e esses últimos meses só vem provando mais isso, porque
está gastando ainda mais seu dinheiro e seu tempo com essas coisas. E o
único que consegue lhe dar um pouco mais de trabalho, digamos assim, sou
eu. É por isso que está mencionando sobre o tédio desde que estive fora,
pois, ao meu lado, consegue colocar todos os seus conhecimentos e
habilidades para fora, já que com os outros ele nem se esforça tanto. Não
que Lionel, Justin e Kellan sejam ruins, eles são mesmo bons, mas não no
nível de Daniel e eu. Vou lembrar de agradecer meu irmão gêmeo mais
tarde, porque se não fosse sua vontade de jogar até tarde da noite em nosso
quarto, escondido dos nossos pais, e também a minha vontade de agradá-lo,
eu não teria nem um pouco de experiência como esses caras. — Não se
aproximem de mim! — Nosso amigo bad boy afasta nossos amigos com a
sua carranca de malvadão e os garotos voltam a seus lugares, curvando-se
para frente ao darem risadas porque gostam de perturbá-lo, mesmo que não
tenham, de fato, sequer tocado nele ou em seu controle, apenas ameaçado.
Daniel bufa, revira os olhos e decide ignorá-los assim que volta a me fitar.
— Você por acaso está mudo? A chuva levou sua voz?
Faço que não com a cabeça e levanto os ombros.
— Estou só observando vocês, é bom vê-los se matarem.
— Onde esteve?
Maddox volta a perguntar e preocupação, pouco a pouco, ganha
espaço nas expressões do seu rosto, até mesmo do seu olhar, que prescruta o
meu com grandes doses de intensidade, tentando encontrar alguma coisa
suspeita. No fim, mesmo sempre fazendo graça e tentando me deixar o mais
à vontade possível, meus melhores amigos não conseguem esconder o fato
de ainda estarem sob vigília, todos eles, ainda de olho em mim. Consigo
entender que ficam com medo de eu ter uma piora significativa, mesmo que
eu diga que estou melhorando e com muita vontade de seguir em frente. Até
o meu lance com a comida melhorou. Ainda tenho alguns enjoos por conta
do estresse e ainda vou para o banheiro achando que vou vomitar, mas,
felizmente, são poucas as vezes em que isso acontece, pois percebi que é
medo e coisa da minha cabeça, já que não vomito mais. Posso ainda estar
tentando ter aquela fome de antes, porém já consigo seguir certinho a minha
dieta, me alimentando normalmente nos horários que devo e claro,
treinando para compensar o tempo que perdi. Graças a Deus que os dois
quilos que foram embora já voltaram e que também não foi forte o
suficiente para alterar minha estrutura corporal. A questão é que eles ficam
com medo e eu entendo. Mal posso imaginar como foi para Daniel, Justin,
Lionel e até mesmo Kellan, me verem naquele estado deplorável, quando eu
sempre fui o centrado, o focado, o saudável, o líder e o que sabia resolver
todos os problemas que poderiam acontecer entre nós. De repente, da noite
para o dia, os papéis se inverteram e eles tiveram que me acudir e tomar a
rédea da situação, como nunca antes. Foi angustiante e um pesadelo para
todos nós.
É por isso que digo, se não fosse pelas minhas raposas, o processo
teria sido muito mais doloroso e muito mais dilacerante.
Por essa razão que entendo a pergunta, se a preocupação já existia
antes, voltou com ainda mais força desde a noite da festa da república,
quando vimos Kayla pela primeira vez depois de tanto tempo. Lionel e
Kellan se desentenderam naquele momento e o irmão da garota, que
quebrou meu coração, também ficou um pouco chateado com os meninos
por terem ido coagir a menina no meio da pista de dança, mas eles não
brigaram para valer na festa. Nem em nenhum outro lugar, a propósito.
Assim que eu fiquei sabendo do acontecido, fui tirar satisfação com Kayla
e, assim que chegamos em casa, disse que queria conversar com todos na
hora em que estivessem sóbrios. Foi o que aconteceu no dia seguinte, juntei
todo mundo na sala, conversei sobre não ter achado certo o que fizeram, já
que o problema foi entre mim e ela — e também porque, querendo ou não,
Kayla é uma Benson, como Kellan, eles são família, e a gente tem que
respeitar a posição dela na vida dele, não devemos insultá-la diretamente, é
como se estivéssemos fazendo isso com ele e o garoto é nosso amigo, é uma
raposa como nós —, disse que não iria admitir que pegassem as minhas
dores, embora eu agradecesse por estarem dispostos a enfrenta-la por mim e
que também não iria aceitar de jeito nenhum, qualquer mal estar nessa casa,
o que fez com que Lionel levantasse a mão, assumisse que extrapolou na
festa e pedisse sinceras desculpas a Kellan. Os outros fizeram o mesmo e o
nosso novato, que não é mais tão novato assim, aceitou as desculpas,
também pediu perdão por ter gritado, porém disse que sua reação sempre
será protegê-la, independentemente de qualquer coisa.
Eu achei bonita a sua honestidade.
Mesmo não aceitando os erros da irmã mais nova, ele a ama e sempre
irá amar. Eu também agiria da mesma forma por Bryan.
E, puta merda, agora que a minha ficha cai.
Fecho os olhos e a mão em punho, por um segundo.
Eu estava com ela agora a pouco, brigando em um beco, debaixo da
chuva, quase a beijando, quase a possuindo, levando-a até seu dormitório
com a jaqueta do time em suas costas, porque simplesmente estava
querendo morrer só de pensar em outros garotos vendo-a com a blusa
transparente, com os seios empinados expostos, enquanto ela desfilava pelo
campus sozinha, à mercê de olhares que estariam a cobiçando.
Não houve uma conversa daquele ponto em que estávamos até o seu
dormitório, eu deixei que ela caminhasse na frente e fiquei atrás, como um
cão de guarda idiota, a vigiando para ver se chegaria bem. Pronta para subir
e me deixar para trás, Kayla me entregou de volta a jaqueta, murmurou um
“obrigada” de forma cabisbaixa e girou nos calcanhares. Fiquei me
questionando o que diabos passava por sua cabeça à medida que caminhava
sem a minha presença a afetando. Sinto como se estivesse pensando sobre o
beijo que não retribui, se amaldiçoando por ter falado e por ter feito o que
fez. Sinto como se tivesse recuperado a vergonha que sentiu quando foi, de
certa forma, rejeitada. Porque, céus, aposto que se sentiu assim, rejeitada,
ignorada, humilhada.
Embora não tenha sido minha intenção, também foi desse jeito que
me senti naquele dia, às quatro da tarde, na hora em que falou, para a
universidade inteira, sobre o motivo de ter se aproximado do capitão. Foi
assim que eu me senti, se não pior, e me sinto um pouco vingado por tê-la
deixado da mesma forma, por mais que, repito, não fora a minha intenção
em nenhum momento, por mais que eu tenha detestado o ardor em meu
peito só em imaginá-la triste por uma ação minha. O que é completamente
errado e vai contra as coisas que penso sobre ela, sobre mim, sobre eu e ela,
sobre como ela me quebrou e ficou por isso mesmo, sem tentar vir atrás de
mim para absolutamente nada, só que não consigo evitar e acho que ficou
bastante claro desde a festa e inclusive no nosso encontro hoje. Por mais
que eu queira odiá-la, por mais que eu queira tratá-la do jeito que merece,
do mesmo jeito que me tratou, esse sou, no final das contas. Sou apenas um
garoto que gostaria de ter entendido tudo, sem mágoas, sem ressentimentos,
sem dor. Só parece tarde demais, entretanto. As coisas ficaram feias,
tumultuadas e, principalmente, sem confiança. Eu sinto como se eu não a
conhecesse de verdade. Eu sinto como se tivesse realmente fantasiado tudo,
vivido uma realidade paralela, enquanto a minha linda não era minha e sim,
de qualquer outra pessoa que não fosse eu. E agora as coisas ficaram ainda
mais bagunçadas, porque ela transmite no olhar, age e fala como se
partilhasse da mesma dor que eu, até do mesmo amor, sendo que não faz
nenhum sentido, diante de tudo que aconteceu entre nós.
Eu sou a mesma Kayla. A sua Kayla.
Foi o que me disse, mas como poderia ser?
Acho que essa foi uma das razões pela qual escolhi empurrá-la na
hora do beijo, para que pensasse que eu não sou tão fácil assim, para que
pensasse que não há mais como me enganar, que não há como me
manipular, pois realmente não sou mais o antigo Sebastian, alguma coisa
muito bonita e importante se perdeu dentro de mim, morreu. Ela não tem
mais tanto poder assim sobre mim, como provavelmente acha, não depois
de tudo, não depois de me usar como um objeto para os seus próprios
prazeres estranhos. Confesso que eu estava caindo em seu papo, no entanto,
logo que a ouvi falar com tanta convicção que eu ainda a amava, com
aquele seu jeito, me instigando a tomá-la novamente, fiquei com raiva,
decepcionado e quis mostrar que estava por cima, muito mais esperto e
sagaz do que quando me deixou, há dois meses. Kayla precisava perceber
que eu mudei, que ela me mudou. Ela tinha que sentir o gostinho de tudo o
que eu passei e ainda passo, e não a corresponder foi a forma que encontrei,
naquele momento, para isso. Confessar a ela que ainda a amo, não me
tornou fraco, me tornou forte diante daquela situação, porque eu podia amá-
la, entretanto amava de uma forma diferente, de uma forma que não me
fazia mais cego e sim, muito observador, cauteloso e querendo o meu
melhor. Eu não ia jogar tudo para o alto e implorar para que me amasse de
volta, e ela também sabia disso. O amor que eu sempre senti por ela
continua aqui, corroendo meu peito, borbulhando minhas veias e
impossibilitando a minha respiração. Ele continua aqui, forte, quente,
impiedoso, inquestionável e brutal, o que faz com que tê-la longe doa ainda
mais, contudo ele também está aqui, ainda ferido e cheio de buraco.
Eu posso a amar, porém também me amo e eu sei que não podemos
mais sermos nós. É por amá-la também, que decidi, muito tempo depois,
deixa-la longe, afastada, livre, sem mim, para que encontre no meio do
caminho o que não conseguiu adquirir nos seus quase vinte anos de vida. É
por também me amar que só quero o que tiver que ser meu. Meu de
verdade. Não quero nada forçado e com pena. Quero algo natural e bonito,
como o dos meus pais.
Ser forte é reconhecer suas fraquezas e Kayla Marie Benson, até o
momento, é a minha. Mas não por muito tempo, até porque, é da nossa
fraqueza que devemos extrair a nossa maior força e, consequentemente,
nossa superação.
E então, quando eu menos perceber, chegará um dia em que eu não
sentirei mais nada.
Bem, pensei demais agora, resumindo toda essa merda, não posso
nem a pau comentar com os meus amigos que o motivo da minha demora
foi porque decidi que precisava levar minha ex-namorada — que não é
oficialmente minha ex-namorada — até o seu dormitório depois de um
pequeno surto que tive após vê-la tomando café com outro. E para piorar,
ainda teve a porcaria da chuva e da blusa. Definitivamente não posso
mencionar nada disso.
“E que merda, Sebastian, por que você teve que ir atrás dela,
afinal?” pergunto para mim mesmo ao ver que passei do ponto da idiotice.
Nem ela, nem ninguém vai levar a sério o que você quer para sua vida, se
continuar agindo desse jeito.
Foi a primeira e a última vez. Não vou fazer nada do tipo nunca mais.
Kayla pode estar ao lado do Papa que eu vou estar me importando
menos. Sua vida não é mais da minha conta. Nós acabamos naquela tarde e
é isso.
Se ela voltar à minha frente e falar qualquer coisa, vai entrar em um
ouvido e sair pelo outro. Meu pedido na festa da república ainda continua
de pé.
— Estava vindo para casa quando a chuva começou, aí avistei o
Starbucks perto do campus e decidi esperar lá dentro — respondo com uma
mentira, não tão mentira assim, porque bem, foi exatamente isso que eu fiz.
Apenas omito todo o resto para poupar ainda mais problemas,
principalmente por Kellan estar aqui, com seus grandes olhos atentos
fincados em mim. Não é como se ele estivesse demonstrando saber bem
onde eu estava nessas duas horas, ainda assim, me dá um pouco de nervoso
estar novamente seguindo um caminho de esconder coisas. Estou com
trauma dessa porra, sendo bem sincero. — Estou bem, papais, obrigado pela
preocupação — decido mudar o ambiente ao lançar uma brincadeira, da
qual faço questão de rir, só para descontrair e quase solto uma lufada de
alívio quando vejo eles darem risada. — Vou lá em cima tomar um banho
quente, trocar de roupa, botar essas aqui na máquina e depois desço. Me
esperem aqui. E Daniel... — Aponto em sua direção com o dedo em riste e
ele quase se assusta com o tom imperioso da minha voz. — Se prepare,
porque vou matar você na próxima partida. Caso queira chorar, a hora é
agora.
Um uivo de “uhhhhh” de Kellan, Justin e Lionel ressoa pela sala,
bem no instante em que eu dou as costas a todos eles, e deixo que escutem
minha risada.
— Contando vitória antes do tempo? — grita para mim quando estou
subindo as escadas, nitidamente se sentindo ofendido. — Você é o capitão,
você sabe que quem ri por último, ri melhor.
Não consigo segurar o riso em minha garganta outra vez, então lhe
direciono meu dedo médio, como ele mesmo tem costume de fazer ao ficar
emburrado.
Uma vez no andar de cima, me direciono até o meu quarto, abro a
porta, ligo a luz e ando até perto da cama, retirando as minhas peças de
roupa e balançando a cabeça de um lado para o outro, meio que sem
acreditar, quando jogo a minha jaqueta do time junto das peças sujas que
tenho que lavar assim que terminar o banho. O flashback é automático e eu
me vejo bufando sozinho logo que, por um mísero segundo, penso o quão
bonita aquela desgraçada ficou com a grande raposa laranja em suas costas.
Ela já tinha usado minha camiseta do Maevis Fox e outras roupas minhas
depois do sexo, mas não a jaqueta, a jaqueta fora a primeira vez e isso me
faz esboçar um pequeno sorriso de lado.
Fala sério, que dia mais doido.
Meu celular, que eu tinha deixado ao lado da calça, também em cima
da cama, começa a vibrar e o nome de Bryan Skalbeck logo pisca, para me
deixar alegre.
Pego o aparelho entre as mãos e rapidamente atendo a vídeo
chamada.
— E aí, gêmeo — o cumprimento com uma saudação assim que vejo
seu rosto, parecido com o meu, preencher o visor do meu iPhone. — A que
devo a honra?
— Oi, Seb. — De repente, seu nariz fica bem próximo da câmera e
me parece que ele está tentando enxergar alguma coisa do outro lado da
tela. — Espera... você por acaso tá pelado?
— Sim. — Sorrio como costumava fazer quando éramos crianças. —
Quer que eu coloque a câmera um pouquinho mais para baixo para você
poder se certificar?
— Vá, siga em frente, faça isso — incentiva, mesmo que o seu rosto
esteja franzido em uma careta. — Coloque seu pau no caralho do meu
celular e eu juro que tiro print e faço a foto rodar em Montana, em
Michigan e em todos os estados possíveis dos Estados Unidos.
— Nossa, não precisa ficar tão bravo, eu achava que você já tinha
superado o fato do meu ser maior que o seu.
Bryan revira os olhos.
— Babaca — sibila cada sílaba. — Só porque você falou isso não vou
te dizer o motivo da minha ligação.
— Nossa, você é afetado mesmo por conta desse assunto, né? — o
provoco uma última vez, antes da minha curiosidade falar mais alto, me
obrigando a dizer: — Tá, desculpa, mano, fala logo. Qual a novidade?
— Estou indo para Maevis em alguns dias — solta de forma
desenfreada, quase não se fazendo ser entendido. Coloco a mão na boca e
seguro meu grito de entusiasmo. — Sim, porra! Isso mesmo que você
ouviu.
— Meu Deus, não creio que a gente vai se ver... Como? Por quê? E os
jogos?
— Justamente por causa disso. Tenho um jogo em Helena, na capital,
e ele vai cair numa sexta-feira. Teremos o final de semana todo para nós.
Novamente um sorriso me sobe ao rosto.
— A mãe e o pai, eles já sabem?
Vejo ele balançar a cabeça positivamente.
— Sim, falaram que querem uma foto nossa. Estão morrendo de
saudade.
E eu morrendo de saudade deles. Do meu irmão também.
Só Bryan, com essa notícia, para mudar o rumo do meu dia mesmo.
Então, no mesmo segundo, me recordo que não contei toda a história
entre mim e Kayla para ele. Apenas disse que não havíamos dado certo por
sermos incompatíveis e mesmo diante de tantos questionamentos e falas
sobre como parecíamos perfeitos e apaixonados, Sebastian acreditou. Acho
que, no fundo, fiquei com vergonha de contar para o meu irmão a verdade.
O que eu poderia falar?
Ei, Bryan, você não sabe. Não tem a Kayla? Pois é, estava comigo só
para descobrir se eu era mesmo virgem como dizia, acredita?
Ah, o que? Você quer saber como fiquei sabendo? Pois é, nem te
conto, na frente de toda a universidade.
Muito humilhante.
Só que agora ele virá para cá, ficará com os meus amigos, irá gostar
de saber mais e eu não posso mais esconder. Sei que sempre quero lhe
impressionar, mas essa é a verdade, foi o que aconteceu, eu não posso mais
omitir.
Acho que meu rosto perde a cor e o meu sorriso some, pois ele está
me chamando, perguntando se aconteceu alguma coisa e se eu estava bem.
Faço minha melhor expressão de tranquilidade e aceno.
— Sim, tudo perfeito, continue falando. Me conte mais sobre o jogo,
quem vocês vão enfrentar?
Bryan se empolga com o rumo da conversa, continua falando sem
parar e eu concordo com uma coisa ou outra, ainda preso na informação de
que ele virá me ver. Apesar da vergonha, estou morrendo de saudade e a
informação de que o terei ao meu lado, simplesmente melhora tudo.
Nada como meu irmão gêmeo, minha outra metade, para preencher o
vazio que ficou.
Se há mesmo alguém aí em cima torcendo por mim, aqui vai meu
muito obrigado.
Se ontem estava chovendo, hoje está fazendo o maior sol na cidade,
como se toda aquela água não tivesse passado de apenas um fruto da nossa
imaginação. Antes fosse isso. Mas o sol está quente do jeito que eu gosto,
propício para um bom dia, o que fez com que eu me levantasse pela parte da
manhã para poder correr cinco milhas com os fones plugados em minhas
orelhas, a música silenciando o mundo e os meus pensamentos frenéticos, e
agora, algumas horas depois de queimar os meus pulmões como se eles não
fossem nada, estou na academia a fim de completar a minha rotina
costumeira nesse horário e, claro, para encontrar com os meninos para a
nossa batalha na musculação.
No fundo, todo mundo quer ser o melhor, mas acho que esse posto
ainda é meu.
— Atenção, uma pergunta importante aqui. — Kellan deixa seus
halteres de lado e caminha até ficar novamente próximo de todos nós. Paro
meu exercício no meio, acho que os outros fazem o mesmo também, e fico
meio deitado e meio sentado no banco, o encarando sem camisa, de short de
malha lá embaixo, de uma forma que mostra a barra da sua cueca, tênis e
boné virado para trás, com gotas gordas de suor deslizando por todo seu
peitoral, fazendo sua pele preta refletir ainda mais as definições dos seus
músculos nessa fase do pump. Um segundo depois, seu rosto se contorce em
uma careta quando parece se lembrar de algo. — Mais alguém tomou aquele
shake que prepararam mais cedo?
— Sim. — O gosto automaticamente retorna à minha língua e eu quase
gorfo. — Eles me enfiaram goela abaixo. Aconteceu isso com vocês
também?
— Falaram que era saudável — Justin, com sua regatava cavada do
Homem-Aranha do Tobey Maguire, responde também parecendo relembrar
do momento que, com toda certeza do mundo, foi traumatizante. — E pode
até ser, mas tinha gosto da bala de vômito do Harry Potter.
— Acho que já tomei três litros de água e o gosto não desaparece. —
Kellan balança a cabeça e leva a mão à boca. — Das outras vezes era ruim,
mas essa se superou. Nunca mais tomo nada que oferecerem.
— Parecia merda — Lionel diz, provando que realmente ninguém
gostou. — O que será que tinha ali dentro?
Penso um pouco.
— Não faço ideia. — Chego à conclusão depois de perceber que não
senti gosto de nada em específico, só que era ruim, muito ruim. — Eu só
percebi que ele era verde.
— Eu voto em brócolis. — Prince declara ao querer tentar adivinhar.
— Ou beterraba. Se bem que, no meio daquela misturada toda, algo me
parecia bom e doce. Com certeza deve ter tido uma fruta. Sim, fruta! — Uma
lâmpada parece acender em sua cabeça. — Meu paladar está me dizendo que
era banana.
Banana? Não sei, não...
— O quê? Nada a ver, cara, não tinha banana, não — Justin põe para
fora o mesmo pensamento que o meu, só que com muito mais confiança e
indignação. — Eu acho que era abacaxi. Por que você pensou em banana?
Antes que nosso amigo possa responder, uma risadinha maliciosa, que
vem de Daniel, irrompe do nosso meio e ele pega uma anilha de 20kg antes
de falar:
— Porquê de banana Lionel entende. — Segundas intenções gotejam
de cada sílaba e nos faz rir. — Ué, não entendi, é a fruta favorita dele. Eu tô
mentindo por acaso? — questiona ao garoto que faz cara de poucos amigos,
mas que acaba negando a contragosto, porque sabe que é verdade. — E vocês
estão tudo maluco. Já tomamos shake com banana e shake com abacaxi na
semana passada. Essa só tinha coisa verde, tipo verdura mesmo.
— Não, Maddox, tinha banana, você precisa acreditar em mim. —
Lionel aponta para o próprio peito e, meu Deus, o assunto parece mesmo ter
se tornado sério. E eles realmente são assim no dia a dia, não sei por que
ainda me surpreendo. Qualquer assunto, por menor e mais besta que seja,
meus amigos o pegam para si e o tornam em uma discussão importante,
como agora. É engraçado de ver. Eu sempre fico rindo e assistindo de
camarote, só para ver até onde chegam. Ninguém, repito, ninguém, volta
atrás e dá o braço a torcer nesses momentos. A conversa sempre fica em um
looping até que alguém se ofereça a interromper. No caso, esse papel é
sempre meu. No entanto, esse aqui vou deixar rolar, estou mesmo precisando
de momentos engraçados para relaxar de vez. — Eu posso afirmar que eu
senti o gosto. Vocês não me levam a sério, mas é verdade.
— Cara — Justin começa logo após ouvi-lo, paciente e calmo —, eu
não sei onde diabos você enfiou essa língua antes de experimentar o shake,
mas não tinha algo doce, tinha algo meio ácido. Era abacaxi.
— Santo Deus, Harris, não me faça falar que eu enfiei a minha língua
na sua mãe. Era banana.
— Ah, de mãe ele também entende — Maddox acrescenta à discussão,
e eu aperto os lábios um no outro para conter minha risada, porque
simplesmente não consigo segurar quando Daniel resolve brincar com a
própria desgraça. — Quase que ele enfia a banana na minha.
Puta merda, se alguém falar mais alguma coisa sobre isso, não vou
aguentar.
Alterno o meu olhar entre Lionel, Justin e Maddox e vejo que, no
fundo, também estão achando engraçado. Nunca que vão admitir, entretanto.
— Já que você entrou nessa questão, seu desgraçado, está aí outra coisa
doce. Sua mãe. — Os lábios de Prince se erguem em um sorriso de malandro,
que só ele tem a habilidade de parecer tão verdadeiro. Esse garoto sempre
será um perigo. Pode passar dias, meses, até mesmo anos, mas ele nunca vai
mudar, será eternamente um galinha de marca maior. — Diferente do shake,
ela estava gostosa naquele dia, quando eu a provei.
Os olhos de Daniel Maddox escurecem e ele parece prestes a jogar a
anilha de 20kg na cabeça do seu melhor amigo.
Oh-oh.
Acho que o meu momento de entrar em cena e acabar com a discussão
chegou.
— Garotos, não sei se vocês sabem, mas se ficar descansando demais
entre as séries, o treino não rende. Não adianta de nada ficarmos tentando
deduzir o que tinha dentro daquela bomba, o importante é que a gente bebeu
e não morreu. Ainda — faço questão de alertar só para brincar, e eles
concordam. — Vamos aproveitar enquanto dá. Ninguém sabe quanto tempo
resta até fazer efeito.
— Nosso capitão tem razão — Justin Harris me ajuda, e eu lhe lanço
uma piscadela em agradecimento. — Vamos, guerreiros, vamos malhar até o
último minuto de nossas vidas.
Sorrio e volto à minha posição anterior, porém ainda consigo assistir
quando Maddox passa por Lionel e o acerta um tapa na nuca, um aviso para
ficar esperto. Pelo menos não foi o peso de 20kg.
— Se encostar em mim de novo, a próxima banana que eu vou enfiar
vai ser no seu ouvido.
— Você estava falando da minha mãe, otário.
— Porque você começou — Lionel grunhe. — Quem fala o que quer,
escuta o que não quer.
Maddox revira tanto os olhos que, por um segundo, penso que eles não
vão ser capazes mais de voltar ao normal.
— Crianção.
— Sim, tudo com ão — o outro provoca. — Lindão, gostosão,
pauzão...
— Ah, meu Deus, eu vou me matar — nosso nerd choraminga baixinho
ao passo em que tapa os ouvidos. — Se o shake não fizer nada comigo, eu
mesmo faço.
— Olha, vocês me desculpem — Kellan entra na conversa depois de
um tempo calado. — Mas dá próxima, vou pensar bem antes de fazer uma
pergunta.
Um silêncio recai entre nós, porém, no minuto seguinte em que nos
entreolhamos, nossas risadas, todas ao mesmo tempo, explodem no ar.
— Ei, vocês. — Um garoto que parece ser do time de basquete se
aproxima, do nada, nos fazendo ficar sérios à medida em que unimos as
sobrancelhas só para olhá-lo com aquela questão pairando no ar: de onde ele
acabou de sair? — Não queria escutar a conversa de vocês, mas escutei.
Tinha mesmo banana no shake. Eles prepararam o mesmo para a nossa
equipe também.
— Eu disse! — Lionel grita, entusiasmado, e dá um soco no ar. —
Caralho, eu sabia! Agora vocês, seus idiotas, me devem dez dólares. Cada
um.
— Desde quando estávamos apostando? — eu pergunto. — Eu nem ao
menos sabia o que tinha naquela merda.
— Não interessa, vocês me descredibilizaram, eu mereço uma
recompensa. Principalmente de você, Harris, com aquele papo de abacaxi
sem pé nem cabeça.
Justin dá de ombros.
— Pago 20 dólares, se quiser. Dinheiro não é um problema.
Nós nos entreolhamos novamente e fica nítido que pensamos a mesma
coisa.
Filhinho de papai desgraçado.
O voo para Seattle dura um pouco mais de quatro fucking horas, o que
me deixa beirando o tédio e sem o que fazer. Temos um jogo importante
hoje fora de casa, mas a única coisa com que sou capaz de ficar preocupado
é com a mensagem que recebo de Kayla.
Megera linda: Eu, Elsa e Waylen estamos tomando conta da casa
para vocês. A gente só consegue se perguntar como vocês podem ser tão
bagunceiros.
Megera linda: Ah, encontrei uma das suas camisetas do time no seu
guarda-roupa. Resolvi vestir para assistir ao jogo mais tarde.
Uma foto aparece logo embaixo dessa sua mensagem. A abro, tendo
que manter o gemido na porra da minha garganta ao vê-la no espelho do
meu banheiro, de costas, enquanto usa apenas a minha camiseta do Maevis
Fox, meu número e o meu sobrenome bem grande por ali. A megera foi
sagaz, ela fez de propósito, achou um bom ângulo para me mostrar a polpa
da sua bunda e o vislumbre da sua calcinha de renda branca. Ela só pode
estar maluca se acha que isso me ajuda em alguma coisa. Não vou poder
jogar se só ficar pensando em chegar em casa para lhe ver pessoalmente
desse mesmo jeitinho.
Eu: Se perdermos o jogo, se considere culpada, terei morrido de
tesão.
Megera linda: Go, foxes!
Ah, Kayla Benson, você me paga.
Eu: Você vai ver a raposa quando eu chegar. Me espere amanhã.
Chego depois do almoço.
Megera linda: Eu já ia te esperar de qualquer jeito. Acho que estou
necessitando daquele nosso outro tipo de amizade.
Eu: Que coincidência, eu também. Ainda bem que temos um ao outro.
Muito bons amigos.
Megera linda: Sim, ainda bem que temos um ao outro. Bom jogo,
amigo. Estarei te vendo pela tv.
Rio comigo mesmo, desacreditando de como ela se tornou uma
provocadora nata.
Me assusto assim que Lionel agarra meu telefone, querendo ver o que
estou fazendo.
— Está conversando com a Kayla? Ah, porra, não me diga que você
estava ao meu lado fazendo sexo através de mensagens?
Puxo meu braço de volta, guardando meu celular e me ajeitando mais
na poltrona.
— E o que te interessa? Vai cuidar da sua vida.
O avião fretado só com os jogadores não dá certo. É muito homem
grande e pesado junto. Ninguém tem espaço e paz para absolutamente nada.
— A mim não interessa, mas o Kellan tá logo ali atrás e ele ouviu
tudo.
— É, ouvi — grita Benson. — Infelizmente, porque agora a ideia de
pular desse avião me parece maravilhosa.
Balanço a cabeça e rio com o drama, eu nem estava fazendo nada
demais.
Éramos só eu e Kayla, cada vez mais próximos, sendo apenas nós.
Depois do nosso encontro no campo de futebol americano, tivemos
mais um e foi na sua cafeteria favorita da cidade. Ela até ganhou um selo de
cliente fiel.
É como digo, as coisas estão voltando ao eixo e eu só quero ganhar o
jogo, voltar para casa e ter a minha melhor amiga comigo de novo.
FIM
Colocar aquelas três letrinhas indicando o fim de Kayla Benson e
Sebastian Skalbeck foi bem difícil. E por vários motivos. É difícil escrever
um casal cheio de camadas, que requer cuidado, que requer atenção, que
requer estudo e também que requer muito de mim e do meu tempo. Eles me
sugaram, todos esses personagens desse universo e eu fiquei muito tempo
presa com eles, abdiquei até de várias coisas da minha rotina e do meu dia a
dia, querendo dar o meu melhor tanto para vocês, que estão lendo, quanto
para eles, que mereciam o melhor final possível. Tive vários imprevistos,
tive que adiar o lançamento, tive que me virar nos trinta, mesmo com
contratempos e tudo parecendo querer dar errado, mas não pensei em
desistir em nenhum momento, porque eles ficavam na minha cabeça,
“vamos, Luana, você consegue, você é capaz, segura na nossa mão que a
gente segura na sua”.
E aí, com muito empenho, dedicação, suor e lágrimas, o final chegou
e também foi difícil. Dizer adeus é sempre muito difícil, eles se tornam
parte da gente e saber que essa aventura com o quarterback e sua megera
chegou ao fim, me deixa um pouco vazia. Porém, como a Kayla disse sobre
sua terapia, eu me sinto com aquela sensação de dever cumprido. Eu sei que
eu fiz tudo por eles. Eu sei o quanto eu fiz por eles. Os dois são, sem
dúvidas, o meu casal mais bem desenvolvido e mais bem explorado. Eu
amei cada segundo. Óbvio que me irritei em vários outros também, mas faz
parte do processo, é o que o torna tão real e o que o torna a minha maior
fonte de prazer. Mesmo na dificuldade, meus personagens e a minha escrita
me tornam mais fortes. Espero que vocês tenham conseguido captar isso e
também a minha evolução diante desses dois atos.
Depois dessa história, existe uma outra Luana Oliveira dentro de mim
e sei que ela é capaz de muita, muita coisa. Coisa que eu não tinha nem
noção que eu era capaz de fazer.
Então eu gostaria de começar agradecendo a Deus, por ter me dado
forças e por ter sempre me mostrado um caminho quando eu mais
precisava. Deus é poderoso e Ele age na minha vida de uma maneira tão
grande, que eu consigo o sentir em cada detalhe. Também gostaria de
agradecer ao meu pai, a estrela mais brilhante dessa galáxia que, através da
nossa foto que eu deixo guardada perto de mim quando eu escrevo, sempre
me dá inspiração e me traz conforto. Na verdade, a sua memória sempre me
conforta, em qualquer ocasião da minha vida. Eu o amo muito e se hoje eu
estou aqui escrevendo e enchendo vocês, com as histórias que moram na
minha mente, é por causa dele, meu maior incentivador.
Mãe, também não poderia deixar de agradecer você, minha fã número
um. Obrigada por me apoiar tanto, sendo essa quase bookstan incrível. Eu
juro, quando ela menos perceber, já que ama esse mundo literário e as
autoras nacionais, será uma leitora tão voraz quanto a filha.
Irmãos, primos, minha família no geral, que é bem grande por sinal,
eu vou estar sempre aqui dando orgulho para vocês.
Carol e Rary, vocês continuam sendo as melhores amigas desse
mundo, obrigada.
Reh, minha beta, minha Elsa, minha Frozen da vida real, você sabe,
eu não tenho palavras para você. Se eu ficar falando sobre a nossa amizade,
vou ficar escrevendo, escrevendo e escrevendo, me estendendo muito e
sendo cansativa, mas saiba que cada coisa dita por Kayla à Elsa, fui eu
dizendo a você. Obrigada por estar comigo em mais uma jornada. Seremos
sempre nós duas, exatamente igual a elas.
Stephany, minha revisora, eu sei que eu te coloco em várias
enrascadas, me perdoa, mas você é incrível e eu fico muito feliz de ter te
encontrado. Obrigada por me ajudar tanto e por ser sempre tão paciente
comigo, com a minha escrita e com os meus personagens. Seus conselhos
eu vou levar para a vida.
E por último, mas de jeito nenhum menos importante, eu gostaria de
agradecer às minhas leitoras, as minhas raposas, que transformaram Kayla e
Sebastian em um sucesso e o meu direct em um completo caos. Obrigada
por sempre me mandarem tanto amor e por nunca, nunquinha, desistirem de
mim. Saibam que eu nunca vou desistir de vocês também. Espero que
tenham gostado dessa jornada e que ela tenha sido cheia de ensinamentos
como foi para mim. Espero que tenham sorrido, chorado, se emocionado,
ficado com raiva e que tenham vivido cada parte muito intensamente.
Espero que as raposas tenham deixado uma marca laranja no coração de
cada uma de vocês.
Mas e agora, será que acabou?
Fica aí o questionamento, não é mesmo?
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