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OUVIR

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”


– Paulo Freire

Por meio de palavras faladas essa história A narrativa conta como os grupos
transcorreu gerações de índios Kaingang, Kaiurucré e Kamé, de líderes
até chegar, através do cacique Arakxô, homônimos, resistiram às adversidades
aos ouvidos de Telêmaco Borba que, em naturais. Ao final, percebem que para
1908, a transcreveu e cuja versão foi garantir a sobrevivência de seus povos,
adaptada para este livro. eles deveriam superar suas diferenças e
O mito de origem dos Kaingang, tribo Jê se unirem.
Meridional, ocorre nas proximidades da Da mesma forma, essa reflexão se aplica
Serra do Mar e apresenta os fatores que às relações atuais entre os vários grupos
determinaram sua cultura e tradição. sociais que constituem nossa nação.
Dividida em dois grupos – os Kaiurucré Quero, então, usar esse espaço acadêmico
e os Kamé – este povo concebe o mundo para dar voz a um povo que precisa
natural e social como duas partes de um ser ouvido. Disseminar sua cultura
todo, cujas características remetem a para estreitar nossas relações e, assim,
uma das metades cosmológicas. libertarmo-nos em comunhão.
Dedico aos meus pais.
“Deus ordenou que as névoas, e que as nuvens
Errassem no inconstante, aéreo seio;
Que os ventos o habitassem, produtores
Dos penetrantes frios que estremecem,
E os raios, os trovões que o mundo aterram”

Ovídio
Em tempos imemoráveis deu-se um dilúvio
que cobriu a terra inteira, habitada pelos antepassados dos Kaingang. Somente o cume da Serra Krinjinjimbé se sobressaía das águas diluviais.
Os Kaingang, Kaiurucré e Kamé
n a d a va m n a d i r e ç ã o d a s e r r a ,
cada um com um luminoso tição
entre os dentes.
Os Kaiurucré e Kamé cansaram, afundaram-se e pereceram.
Suas almas foram habitar o interior da montanha,
Os Kaingang e uns poucos Curutons
atingiram com dificudade o cume da serra
Krinjinjimbé, onde permaneceram uns no chão e
outros nos ramos das árvores, porque não acharam mais lugar.
Lá passaram uns dias, sem que as águas decaíssem e sem alimento.
Já esperavam a morte quando ouviram o
canto das saracuras, que traziam cestinhos
de terra que deitavam nas águas.
As á guas
re c u ava m
dev agar.
Em p ouc o temp o c ons eguiram formar uma planície espa ç osa no monte, que dava bastante camp o aos Kaingang.
Os Kaingang foram transformados em
Com exceção daqueles que
monitós ou macacos, e os Curutons em
tinham se refugiado às árvores.
caroias ou macacos urradores.
Desaparecida a grande inundação, os Kaingang
estabeleceram-se nas proximidades da Serra do Mar.
Na abertura de onde saíram os Kaiurucré, teve sua
nascente um belo arroio e lá não havia pedras;
por isso eles têm os pés pequenos.

Pelo contrário, o caminho dos Kamé levava sobre o terreno


pedregoso, de sorte que feriram os pés e estes durante a
marcha inchavam; por isso eles têm os pés compridos.
No caminho que os
Kamé tinham aberto
não havia água.
Sofreram sede e
viram-se obrigados a
pedi-la a Kaiurucré,
que lhes concedeu
a água necessária.
Na noite em que saíram da abertura da
serra, acenderam fogo e Kaiurucré formou
de cinzas e carvão, tigres, e lhes disse:
“Ide e devorai homens e animais!”.
E os tigres foram rugindo.
Não tendo mais carvão Kaiurucré estava outra vez
para pintar, Kaiurucré fez formando um animal.
então de cinzas as antas e Quando apontou o dia, e
ordenou-lhes: não tendo mais força, pôs-
“Ide e procurai caça!”. lhe depressa uma vara na
A estas, porém tinham boca e disse -lhe:
saído mal os ouvidos e não “Não tendo dentes, vive de
entenderam a ordem. formigas!”
Kaiurucré, que estava a Isto é a razão por que o
formar outro animal, gritou- tamanduá é animal não
lhes zangado: acabado e imperfeito.
“Ide e comei folhas e ramos!”.
Desta vez entenderam a
ordem e se foram.
Esta é a razão porque as
antas se alimentam de
semente, folhas, ramos e
frutos silvestres.
Na noite seguinte Kaiurucré continuou e
formou muitos animais.
Ao mesmo tempo que Kaiurucré produzia
estes bichos, Kamé também fez alguns,
porém diversos, para combater aqueles.
Ele fez os leões americanos, as cobras
venenosas e as vespas.
Acabado este trabalho, marcharam Depois de todos terem passado, Assim fez Kamé. Quando, porém, os tigres urravam e
para se unirem com os Kaingang. Kaiurucré disse a Kamé que, quando os Dos tigres, uns caíram na água e mostravam os dentes, sentiu medo e
Viram, porém, que os tigres eram muito tigres passassem pela ponte, retirasse-a afundaram-se; outros, porém, pularam deixou-os subir à terra.
ferozes e devoravam muita gente. com toda a força, a fim de que eles à margem e seguraram-se com as Por isso os tigres podem viver tanto na
Então, para atravessar um rio profundo, garras. Kamé quis precipitá-los na água. água como na terra.
caíssem na água e se afogassem.
lançaram nele um tronco de árvore.
Depois de terem chegado a uma grande Tendo restado ainda muitos jovens,
planície, reuniram-se e aconselharam-se casaram-nos com as filhas dos Kaingang.
como deviam casar seus filhos. Casaram Desde então, os Kaiurucré, os Kaingang e
primeiro os Kaiurucré com as filhas dos os Kamé são parentes e amigos.
Kamé e vice-versa.
O POVO KaInGanG

Kaingang é um povo indígena


pertencente ao tronco linguístico
Macro-Jê. Segundo o Censo brasileiro
de 2010, os Kaingang são o terceiro
maior povo indígena em tamanho de
população.
A tribo se localiza nos territórios
correspondentes aos ecossistemas do
Planalto Sul-Brasileiro, em reservas
distribuídas nos estados de São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul.

Figura 1 - Mapa das terras indígenas Kaingang.


Fonte: Wilmar D’Angelis, 2010.
Disponível em: <http://www.portalkaingang.
org/index_aldeia_mapa_geral_2010.htm>.
Acesso em: 01.06.2017.
A organização social dos Kaingang, duas famílias, herdando seus atributos Como é narrado no mito de origem, a
bem como todo o seu modo de físicos e comportamentais. estrutura social Kaingang é baseada
perceber o mundo, fundamenta-se na A percepção visual é essencial na for- na exogamia (casamento entre mem-
crença de que o universo é constituído ma de compreender e sistematizar esta bros de hordas diferentes) e na patri-
e regido por duas forças opostas e sociedade. Resumidamente, a metade linearidade (os descendentes seguem
complementares. Tais forças são Kaiurucré se encontra representada a linha paterna), ou seja, os cônjuges
personificadas nos gêmeos ancestrais na natureza e nos grafismos Kaingang não podem vir da mesma horda e seus
Kaiurucré e Kamé, que dão nome por padrões circulares e fechados, filhos pertencerão ao grupo familiar
aos dois grupos que formam a tribo conhecidos como “ror”, enquanto a me- do pai.
Kaingang. tade Kamé é reconhecida pelos sinais
Dessa forma, todos os seres vivos, lineares e abertos, chamados de “téi”.
objetos e fenômenos naturais Quando ocorre a mistura entre os dois
encontram-se agrupados em uma das padrões, usa-se o termo “iãnhiá”.
Glossário

Curuton: Etimologicamente, Kuru = rou- Relaciona-se à noite, à lua, ao leste e ao anterior, a palavra designa no texto tanto tas que possuem folhas compridas per-
pa, ton = sem. Telêmaco Borba os identi- feminino. o líder quanto o seu grupo. tencem a esse grupo.
fica como sendo um povo dos Arés que Fisicamente, apresenta corpo fino, pelu- Conta-se que Kamé teria saído do chão
falam “Guarani um pouco corrompido”1. do, frágil e pés pequenos. depois de Kaiurucré. Macaco urrador: primata do gênero
Seus movimentos e resoluções são rápi- Está relacionado ao dia, ao sol, ao oeste e Alouatta; bugio.
Kaiurucré: Uma das metades clânicas dos dos, e é menos persistente. ao masculino.
Kaingang. Apresenta outras variações Sua pintura corporal é grafada com cír- Seu corpo é grosso, sem pelos, forte e Krinjinjimbé: Nome dado pelos Kain-
gráficas: Kainru, Kanhru, Kairu. Optou- culos ou manchas – motivos redondos. possui pés compridos. É lento em seus gang à Serra do Mar. Também encontra-
se por manter a grafia original do texto. São desse grupo os animais manchados e movimentos e resoluções, mas é mais se grafado como Crinjinjimbé.
No texto, o termo pode aparecer denomi- as plantas com folhas arredondadas. persistente.
nando tanto o líder quanto o grupo. A pintura corporal dessa patrimetade é Tigre: gato malhado2.
De acordo com o mito, Kaiurucré foi a Kamé: A outra metade clânica dos Kain- grafada com traços – motivos compridos.
primeira pessoa a sair do chão. gang. Assim como no caso do verbete Animais que apresentam listras e plan-

1. BORBA, 1904, p. 57 apud FREITAS, 2005, p. 446. 2. JAHN, TETTAMANZY, FREITAS, 2007.
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