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Por meio de palavras faladas essa história A narrativa conta como os grupos
transcorreu gerações de índios Kaingang, Kaiurucré e Kamé, de líderes
até chegar, através do cacique Arakxô, homônimos, resistiram às adversidades
aos ouvidos de Telêmaco Borba que, em naturais. Ao final, percebem que para
1908, a transcreveu e cuja versão foi garantir a sobrevivência de seus povos,
adaptada para este livro. eles deveriam superar suas diferenças e
O mito de origem dos Kaingang, tribo Jê se unirem.
Meridional, ocorre nas proximidades da Da mesma forma, essa reflexão se aplica
Serra do Mar e apresenta os fatores que às relações atuais entre os vários grupos
determinaram sua cultura e tradição. sociais que constituem nossa nação.
Dividida em dois grupos – os Kaiurucré Quero, então, usar esse espaço acadêmico
e os Kamé – este povo concebe o mundo para dar voz a um povo que precisa
natural e social como duas partes de um ser ouvido. Disseminar sua cultura
todo, cujas características remetem a para estreitar nossas relações e, assim,
uma das metades cosmológicas. libertarmo-nos em comunhão.
Dedico aos meus pais.
“Deus ordenou que as névoas, e que as nuvens
Errassem no inconstante, aéreo seio;
Que os ventos o habitassem, produtores
Dos penetrantes frios que estremecem,
E os raios, os trovões que o mundo aterram”
Ovídio
Em tempos imemoráveis deu-se um dilúvio
que cobriu a terra inteira, habitada pelos antepassados dos Kaingang. Somente o cume da Serra Krinjinjimbé se sobressaía das águas diluviais.
Os Kaingang, Kaiurucré e Kamé
n a d a va m n a d i r e ç ã o d a s e r r a ,
cada um com um luminoso tição
entre os dentes.
Os Kaiurucré e Kamé cansaram, afundaram-se e pereceram.
Suas almas foram habitar o interior da montanha,
Os Kaingang e uns poucos Curutons
atingiram com dificudade o cume da serra
Krinjinjimbé, onde permaneceram uns no chão e
outros nos ramos das árvores, porque não acharam mais lugar.
Lá passaram uns dias, sem que as águas decaíssem e sem alimento.
Já esperavam a morte quando ouviram o
canto das saracuras, que traziam cestinhos
de terra que deitavam nas águas.
As á guas
re c u ava m
dev agar.
Em p ouc o temp o c ons eguiram formar uma planície espa ç osa no monte, que dava bastante camp o aos Kaingang.
Os Kaingang foram transformados em
Com exceção daqueles que
monitós ou macacos, e os Curutons em
tinham se refugiado às árvores.
caroias ou macacos urradores.
Desaparecida a grande inundação, os Kaingang
estabeleceram-se nas proximidades da Serra do Mar.
Na abertura de onde saíram os Kaiurucré, teve sua
nascente um belo arroio e lá não havia pedras;
por isso eles têm os pés pequenos.
Curuton: Etimologicamente, Kuru = rou- Relaciona-se à noite, à lua, ao leste e ao anterior, a palavra designa no texto tanto tas que possuem folhas compridas per-
pa, ton = sem. Telêmaco Borba os identi- feminino. o líder quanto o seu grupo. tencem a esse grupo.
fica como sendo um povo dos Arés que Fisicamente, apresenta corpo fino, pelu- Conta-se que Kamé teria saído do chão
falam “Guarani um pouco corrompido”1. do, frágil e pés pequenos. depois de Kaiurucré. Macaco urrador: primata do gênero
Seus movimentos e resoluções são rápi- Está relacionado ao dia, ao sol, ao oeste e Alouatta; bugio.
Kaiurucré: Uma das metades clânicas dos dos, e é menos persistente. ao masculino.
Kaingang. Apresenta outras variações Sua pintura corporal é grafada com cír- Seu corpo é grosso, sem pelos, forte e Krinjinjimbé: Nome dado pelos Kain-
gráficas: Kainru, Kanhru, Kairu. Optou- culos ou manchas – motivos redondos. possui pés compridos. É lento em seus gang à Serra do Mar. Também encontra-
se por manter a grafia original do texto. São desse grupo os animais manchados e movimentos e resoluções, mas é mais se grafado como Crinjinjimbé.
No texto, o termo pode aparecer denomi- as plantas com folhas arredondadas. persistente.
nando tanto o líder quanto o grupo. A pintura corporal dessa patrimetade é Tigre: gato malhado2.
De acordo com o mito, Kaiurucré foi a Kamé: A outra metade clânica dos Kain- grafada com traços – motivos compridos.
primeira pessoa a sair do chão. gang. Assim como no caso do verbete Animais que apresentam listras e plan-
1. BORBA, 1904, p. 57 apud FREITAS, 2005, p. 446. 2. JAHN, TETTAMANZY, FREITAS, 2007.
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