Você está na página 1de 43

(:/\ P1TULO I .

DEFINIÇÃO DO FENÔMENO RELIGIOSO


r'; DA RELIGIÃO!

Para saber qual a religião mais primitiva e mais sim-


ples que a observação nos permite conhecer, é preciso
primeiro definir o que convém entender por religião, caso
contrário correríamos o risco de chamar de religião um
sistema de idéias e de práticas que nada teria de religioso,
)ll de deixar de lado fatos religiosos sem perceber sua
verdadeira natureza. O que mostra bem que o perigo na-
Ia tem de imaginário e que de modo nenhum se trata de
li m vão forrnalísmo metodológico é que, por não haver
tornado essa precaução, um estudioso, a quem não obs- 1<"":"
tn nte a ciência comparada das religiões deve muito, o sr. ,(N)Y-"~fJ'
l'razer, não soube&econhecer o caráter profundament<; jtl(lrl
religioso das crenças e dQs....ri.to ue serão estudados mais
tldlanteê que, para nós, constituem o _erme inicial da vi
Ia religiosa da huma 'dad . Há aí, ortanto, uma questão
que P~<:.~~ ..-º-J1!!gª-mento_e q~e deve ser tratada antes de)
llJal~utra! Não que possamos pensar em atingir des-
I<.; já as características profundas e verdadeiramente expli-
çnl ivas da religião: elas só podem ser determinadas ao tér-
mlno da pesquisa. Mas o que é necessário e possível é in-
,11(";1 r um certo número de sinais exteriores, facilmente
4 AS FORMAS ELEMENTARES DA WDA REliGIOSA )UESTÕES PRELIMINARES
5

perceptíveis, que permitem reconhecer os fenômenos re- falta para que a melhor forma de estudar a religião seja
ligiosos onde quer que se encontrem, e que impedem nsiderá-la de preferência sob a forma que apresenta
que os confundamos com outros. É a essa operação preli- nos povos mais civilizadosa,
minar que iremos proceder. Mas, para ajudar o espírito a libertar-se dessas con-
Mas para que ela dê os resultados esperados, deve- 'cpções usuais que, por seu prestígio, podem impedi-Io
mos começar por libertar nosso espírito de toda idéia pre- le ver as coisas tais como são, convém, antes de abordar
concebida. Os homens foram obrigados a criar para si I questão por nossa conta, examinar algumas das defini-
uma noção do que é a religião, bem antes que a ciência s mais correntes nas quais esses preconceitos vieram
das religiões pudesse instituir suas comparações metódi- xprimir.
cas. As necessidades da existência nos obrigam a todos,
crentes e incrédulos, a representar de alguma maneira as
coisas no meio das quais vivemos, sobre as quais a todo
momento emitimos juízos e que precisamos levar em con-
ta em nossa conduta: Mas como essas pré-noções se for- Uma noção tida geral~nt. orno característica de
maram sem método, segundo os acasos e as circunstâncias tudo o que é religioso é a de-.SDb..rgrultura.Entende-se por
da vida, elas não têm direito a crédito e devem ser manti- sso toda ordem de coisas que ultrapassa o alcance de
das rigorosamente à distância do exame que iremos' em- nosso entendimento; o sobrenatural é o mundo do místé-
preender. Não é a nossos preconceitos, a nossas paixões, rio, do incognoscível, dO-iricompreen~ívei. A religião se-
a nossos hábitos que devem ser solicitados os elementos rln, portanto, uma esp&ie de especulação sobre tudo o
da definição que necessitamos; é a realidade mesma que rue escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensa-
se trata de definir. mento claro. "As religiões, dizILSQencei) diametralmente
~~mo-nos, pois7-diª-nte=dessa~alidade. Dei- tas por seus dogmas, concordam em reconhecer taci-
xando de ladoioda concepção da religião em geral, con- tnmente que o mundo, com tudo que contém e tudo que
siderernos as re'y'giões em sua r~alidade concreta e procu- () ccrca,~-dPistério qye pede uma explicação"; portan-
remos destaca~ue elas poaem ~r _em c.9murril pois a 10, ele as faz conSIStir essencialmente na "crença na oni-
religião só pode ser definida em função das características pl·csen~d~.Eguma coiSa que vai além da inteligência"3.
que se encontram por toda parte onde houver religião. I)C:) mesmo modõ:-Max Müller ~ toda religião "um
Introduziremos portanto nessa comparação todes os siste- •.sforço para conceber o inconcebível, para exprimir o
mas religiosos que podemos conhecer, os do presente e ücxprimível, uma aspiração ao infíníto'<,
os do passado, os mais simples e primitivos assim como É certo que o sentimento do mistério não deixou de
os mais recentes e refinados, pois não temos nenhum di- Ilu/lcmpenhar um papel importante em certas religiões,
reito e nenhum meio lógico de excluir uns para só reter pccialmente no cristianismo. Mas é preciso acrescentar
os outros. Para aquele que vê na religião uma manifesta- 11I<.! a importância desse papel variou singularmente nos
ção natural da atividade humana, todas as religiões são dll'erentes momentos da história cristã. Há períodos em
instrutivas, sem exceção, pois todas exprimem o homem fllI\.! essa noção passa ao segundo plano e se apaga. Para
à sua maneira e podem assim ajudar a compreender me- I).~ homens do século XVII, por exemplo, o dogma nada
lhor esse aspecto de nossa natureza. Aliás, vimos o quan- 111111:1 de perturbador para a razão; a fé conciliava-se sem
AS FORMAS ELEMENTARES DA VTDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 7

Hflculdade com a ciência e a filosofia, e pensadores co- Ios mesmos procedimentos; mas, para aquele que crê ne-
1110 Pascal, que sentiam com intensidade o que há de pro- las, não são mais ininteligíveis do que o são a gravidade
fundamente obscuro nas coisas, estavam em tão pouca u a eletricidade para o físico de hoje. Veremos aliás, ao
harmonia com sua época que permaneceram incompreen- longo <!ç:.sKl-Qhl:a,_q~ª-o de forç-ª5~nat1J.fais...derivou
dídos por seus contemporâneos>. Portanto, poderia ser uito provavel~nte da..noçãc.de-forças •.religiosas.zassím,
precipitado fazer, de uma idéia sujeita a tais eclipses, o não poderia haver entre estas e aquelas o abismo que se-
lemento essencial ainda que apenas da religião cristã. para o racional do irracional. Mesmo o fato de as forças
Em todo caso, o que é certo é que essa noção só religiosas serem geralmente pensadas sob a forma de en-
aparece muito tarde na história das religiões; ela é total- tidades espirituais, de vontades conscientes, de maneira
mente estranha não somente aos povos chamados primiti- nenhuma é uma prova de sua irracionalidade. À razão
vos, mas também a todos os que não atingiram um certo não repugna a priori admitir que os corpos ditos inanima-
grau de cultura intelectual. É verdade que, quando os ve- dos sejam, como os corpos humanos, movidos por inteli-
mos atribuir a objetos-insigmficantes .virtu?es extraordi.ná- gências, ainda que a ciência contemporânea dificilmente
rias, povoar o universo com pnncipros singulares, feitos se acomode a essa hipótese. Quando Leibniz propôs con-
dos elementos mais díspares, reconhecemos de bom gra- ceber o mundo exterior como uma imensa sociedade de
do nessas concepções um ar de mistério. Acreditamo~ESiIC espíri~s entre os quais não havia e não podia haver se-
que os homens só puderam se resignar a idéias tão per- ' não relações espirituais, ele entendia agir como racionalis-
turbadoras para nossa razão moderna por incapacidade ta e não via nesse animismo universal nada capaz de
te encontrar outras que fossem mais racionais. Em reali ofender o entendiment _.~_- _
dade, porém, essas explicações que nos surpreendem afi- Aliás, a idéia de sobrenaturaDtal como a entende-
uram-se ao primitivo as mais simples do mundo. Ele não mos, data de OnteTIl:~sue2.e, com efeito, a idéia contrá- ~c.-i()l\lP\\" _
vê nelas uma espécie de ultima ratio a que a ínteíígêncía ria, da qual é a negaçao e gue nada tem de primitiva,! Para ""I" cP·{f~ ,I
s6 se resigna em desespero de causa, mas sim a maneira que s~.pud~Qize'i=Cie cer'tãSfatoL,que J,ão sobreiíãtll- 1>1-~\::~Óqil
mais imediata de representar e compreender o que obser- rais, era precisof~ ~r Q sentimento de 9~e .~xiste_1!!D.fl or- SOOIl
va a seu redor. Para ele, não há nada de estranho em po- dem natural das coisas, ou .s~ja, gue os fenômen
ler-se, com a voz. ou o gesto, comandar os elementos, ~o estã~ ITgãdos 'entre si,seg!!.!l<:Erelações ne~s~-
deter ou precipitar o curso dos astros, provocar a chuva !~l1ai'i'iãctas leis U& v:eudguirido esse p!incíp!o,Jp.-
li pará-Ia, etc. Os ritos que emprega para assegurar a fer- fÕÕCiüêTri~essas leis devia necessariarneflte apare-
tJlldade do solo ou a fecundidade das espécies animais de cer como extenor a natureza e, por consegüência, à ra7
ue se alimenta não são, a seus olhos, mais irracionais do iãà: pois 2,.9ue é ,?atural ness~_s_elltLd.Q:iDa~
são, aos nossos, os procedimentos técnicos que os llíf ta.i.§relações necessi!rias não fazendQ..S..eFlãe-€.x'j!)J.im.1r.
a~l'é'l)omOS utilizam para' a mesma finalidade. As potências a mane.ira J;l.f1L qual as coisas se encadeiam IQgicamen~.
I~I(,)ele põe em jogo por esses diversos meios nada lhe Mas essa noção ao aeterminismo universal é de origem
1)[\ rocem ter de especialmente misterioso. São forças que recente; mesmo os maiores pensadores da Antiguidade
IIFcl'I..!lIl,
certamente, daquelas que o conhecedor moder- clássica não chegaram a tomar plenamente consciência
110 ('OI1C'(.'bee cujo uso nos ensina; elas têm uma outra dela. É uma conquista das ciências positivas; é o postula-
de comportar-se e não se deixam disciplinar pe-
11lll'IWll':l do sobre o qual repousam e que elas demonstraram por
AS FORMAS ELEMENTARES DA VTDA RELIGIOSA )IJIJ~S'7'é)ESPRELIMINARES 9
8

seus progressos. Ora, enquanto ele inexistia ou ainda não -em a coisa mais clara do mundo; é que não percebem
se estabelecera solidamente, os acontecimentos mais mara- lia obscuridade real; é que. não reconheceram ainda a
vilhosos nada possuíam que não parecesse perfeitamente nccessídade de recorrer aos procedimentos laboriosos das
concebível. Enquanto não se sabia o que a ordem das coi- :lGncias naturais para dissipar progressivamente essas tre-
sas tem de imutável e de inflexível, enquanto nela vas, O mesmo estado de espírito encontra-se na raiz de
, ~ se via a- muitas êrenças religiosas que nos surpreendem por seu
obra de vontades contin _entes, devia-se achar natural que
essas vonta es ou outras udessem modificá-Ia arbitraria- strnplísmo. Foi a ciência, e não a religião, qge ensinou
~te. É.s por ..9.ueas intervenções rníracu osas que os an- nos homens que as coisas são complexas_e_difí.ceis_Qê-
tigos atribUlam a seUsãeuses não efã~seu entender, mpreenaw '
~dêffiãC1a palavra. Para eles, eram Mas, responde jevonss, o espírito humano não tem
~Jlos belo;: saro~r~eis,!35jerc5s de surprêsãe necessidade de uma cultura propriamente científica para
de maravilhamento/(8aú/+a'ta, mirabilia, miracula); mas notar que existem entre os fatos seqüências determinadas,
~m nisso u~~cie dêã~o aurn una ordem constante de sucessão, e para observar, por
mundo misterioso gue a razão não pode penetrar. I . utro lado, que essa ordem é freqüentemente perturbada,
Odemos c~preender tamo meIfior essa mentalida- Acontece que o sol se eclipse bruscamente, que a chuva
de na medida em que ela não desapareceu completamen- falte na época em que é esperada, que a lua demore a res-
te do meio de nós. Se o princípio do determinismo está surgir após seu desaparecimento periódico, etc.Como es-
hoje solidamente estabelecido nas ciências físicas e natu- tão fora do curso ordinário das coisas, esses acontecimen-
rais, faz somente um século que ele começou a introdu- tos são atribuídos a causas extraordinárias, excepcionais,
zir-se nas ciências sociais, e sua autoridade é ainda con- ou seja, em suma, extrariaturais. É sob essa forma que a
testada. Apenas um pequeno número de espíritos está idéia de sobrenatural teria nascido desde o início da histó-
convencido da idéia de que as sociedades estão submeti- ria, e foi assim que, a partir desse momento, o pensamen-
das a leis necessárias e constituem um reino natural. Daí a to religioso se viu munido de seu objeto próprio.
crença de que nelas sejam possíveis verdadeiros .mílagres. Mas, em primeiro lugar, o sobrenatural não se reduz
Admite-se, por exemplo, 'que o legislador pode criar uma de modo algum ao imprevistQ.. O novõfu,? parte ~
instituição do nada por uma simples injunção de sua von- Te~a.,~~m_comG-setl-Gontrágg; Se constatamos que, em
tade, transformar um sistema social em outro, assim como geral, os fenômenos se sucedem numa ordem determina-
l os crentes de tantas religiões admitem que a vontade divi- da, observamos igualmente que essa ordem é sempre
na criou o mundo do nada ou pode arbitrariamente trans- aproximada, que não é idêntica duas vezes seguidas, que
mutar os seres uns nos outros, No que concerne aos fatos comporta todo tipo de exceções, Por menor que seja nos-
\1 sa experiência, estamos habituados à frustração freqüente
I sociais, temos ainda uma mentalidade de primitivos, No
entanto, se, em matéria de sociologia, tantos contemporâ- de nossas expectativas e essas decepções retomam muito
neos apegam-se ainda a essa concepção antiquada, não é seguidamente para que as vejamos como extraordinárias,
que a vida das sociedades lhes pareça obscura e misterio- Uma certa contingência é um dado da experiência, assim
sa; pelo contrário, se se contentam tão facilmente com tais como uma certa uniformidade; portanto, não há razão pa-
explicações, se se obstinam nessas ilusões que a experiên- ra relacionar uma a causas e forças inteiramente diferen-
cia desmente sem cessar, é que os fatos sociais lhes pare- tes daquelas de que depende a outra, Assim, para que te-
10 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA REliGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 11

.nhamos a idéia do sobrenatural, não é suficiente que seja- idéia contrária. Por isso, ela só ocorre num pequeno nú-
, v mos testemunhas de acontecimentos inesperados; é preci- mero de religiões avançadas. Não se pode, portanto, fazer
fi
\'; (}so, além disso, que estes sejam concebidos como impossí- dela a característica dos fenômenos religiosos sem excluir
II 1\ veis, isto é, como inconciliáveis com uma ordem que, cer- da definição a maioria dos fatos a definir.
ta ou errada, nos parece necessariamente implicada na,
.' natureza das coisas. Ora, essa noção de uma ordem ne-
0 V;'fi' cessária, foram as ciências positivas ~pouco
c~uírãm,
aPOuco
portanto a noção contrária não poder~s
~\ Jadt II .

i ser anteaor,
r=------- Além disso, seja como for que os homens tenham se
, , ,j y1 Uma outra idéia pela qual se tentou com freqüência
definir a religião é a da divindade. "A reli~é-
representado as novidades e as contingências que a expe- vílle, é a_Qe.terminação da vida humana Re~Umento
\\ ()" riência revela, não há nada nessas representações que cl.e..umvínculÇl que une o espírito humanO ao ~sp1rito mis-
"Y;' I, possa servir para caracterizar a religião. Pois as concepções r§rioso no qual reconhece a dominação sobre o mundo e
_ .) .111 religiosas têm por objeto, acima de tudo, expnmir e expU- so~r~o, é ao qiíal êle quer sentir-se unido:"9 É
U'\ , (~r c1ff, não-o-que irá de excepcional e anoriiIãÍnas coisas, verdade que, se entendemos a palavra divindade num.
,i ( sentido preciso e estrito, a definição deixa de fora grande
rr' ;(
,n'Â{ mas, ao contrári~
,\A ~ monstruosidades,
que elas têm de constante e regular:
@ase semIlLe_,OLde.uses_ser-y_em menos para explicar
extravagâncias, anomalias, do que a I
In') quantidade de fatos manifestamente religiosos, As ~~
dos mortos, os espíritos de toda espécie e de toda ordem,
Qj\I'\ 1 marcha habitual do universo, do movimento dos astros, cÕllLqlle_a~~~eligio§a d_etantos povos diversos.
l f,}" A. do ritmo das estações, do crescimento anual da vegeta- povoou a natureza, são sempre objeto de ~, às vezes,
i (<J ção, da perpetuidade das espécies, ete. Por~to, a n<?Ç-ª-º. ruko
até de um regular; no entanto nao se trata de deuses
~(l do religioso está longe de coincidir com aão extraordinâ- no sentido próprio da palavra.' Mas, para que a definição
rio e do imprevisto. ]evons responde que essa concepção os compreenda, basta substituir a, palavra deus pela de ser
. das forças religiosas não é primitiva. No começo, estas te- espiritual, mais abrangente. Foi "0 que fez Tylor: "O pri-
riam sido imaginadas para justificar desordens 'e aciden- /(Jf meiro ponto essencial quando se trata de estuaar sistema-
tes, e só depois utilizadas para explicar as uniformidades II. -li ticamente as religiões das raças inferiores, é, ~e, ~
da natureza", Mas não se percebe o que teria levado os nir e precisar o que se entende por religião. Se se conti-
homens a atribuir sucessivamente a elas funções tão mani- -iruàrTazenao entenderess-a-pãlavra como a crença numa
festamente contrárias. Além disso, a hipótese segundo a divindade suprema ... um certo número de tribos estará
qual os seres sagrados teriam sido confinados de início excluído do mundo religioso. Mas essa definição demasia-
num papel negativo de perturbadores, é inteiramente arbi- do estreita temo defeito de identificar a religião com al-
trária. Veremos, com efeito, que; desde as religiões mais guns de seus desenvolvimentos particulares ... Parece p~e~
simples que conhecemos, eles tiveram por tarefa essencial ferível colocar simplesmente como definição mínima da
manter, de uma maneira positiva, o curso normal da vida", religião a crença em seres espirituais."1O Pos-seres ~~J2iri-
Assim, a idéia do mistério nada tem de original. Ela tuais, devemos entender sujeitos conscientes, dotadosdc;
não foi dada ao homem: foi o homem que a forjou com poderes superiores aos que possui o comum dos homens;
suas próprias mãos, ao mesmo tempo que concebia a essa qualificação convém, portanto, às almas dos mortos,
dI'
/11
\
12 AS FORMAS ELEMENTARES DA VlDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 13

aos gênios, aos demônio , tanta quanta às divindades pas pelas quais é precisa passar para chegar a essa su-
propriamente ditas. É im artante notar, de imediata, a pressão: a retidão, a meditação. e, enfim, a sabedoria, a
concepção particular da r ígião que está implicada nessa plena passe da doutrina. Atravessadas essas três etapas,
definição. O única comé cio. que podemos manter com chega-se ao. término. da caminha, à Iíbertação, à salvação.
seres dessa espécie se acha determinada pela natureza pela Nirvana.
que lhes é atribuída. São. seres conscientes, não. podemos, Ora, em nenhum desses princípios está envolvida a
portanto, agir sobre eles, senão. cama agimos sobre as divindade. O budista não. se preocupa em saber de ande
consciências em geral, isto. é, por procedimentos psicoló- vem esse mundo. da devir em que ele vive e sofre, torna-o
gicas, tratando. de convencê-los ou de comovê-Ios, seja cama um fator? e todo a seu esforço está em evadir-se
por meia de palavras (invocações, preces), seja par ofe- dele. Par outro lado, para essa abra de salvação, ele só
rendas e sacrifícios.cE já-Q1Lea ~igiãa!eria por ab~ pode cantar consigo mesma: "não. tem nenhum deus para
gulaLnassas_t:cla~ões com esses seres especiais, só pode- agradecer, assim cama, na combate, não. chama nenhum
.ria.lMtver religião. ;rurehá-pr~ces, sacrifícios, ritos p~ia- deus em seu auxília"ls. Em vez de rezar, na sentida usual
tórios, ete. Teríamos, assim, um critério muitõSTríiples que da palavra, em vez de voltar-se para um ser superior e im-
'permiTIRa distinguir a que é religioso da que não. é. É a plorar sua assistência, concentra-se em si mesma e medi-
esse critério. que se referem sistematicamente Prazer!' e, ta. Isso. não. significa "que negue frontalmente a existência
com ele, várias etnógrafosi-. de seres chamadas Indra, Agni, Varunaw, mas julga que
Contudo, par mais evidente que passa parecer essa não. lhes deve nada e que não. precisa deles", pais a po-
definição, em conseqüência de hábitos de espírita que der desses seres sópode estender-se sobre as bens deste
devemos à nossa educação. religiosa, há muitas fatos aos mundo, as quais, para a budista, são. sem valor. EQI.t<mta,...
q~J1àD_éJ-pMvel e g~,_lli2..entan~~i-· ~Ie e at"k0]na sentidOaeaesinteressar-seãa questão. de
to.ao damínin..dª,-r~!i_giã.a. - saber se existem ou não. deuses. Aliás, mesma se existis-
Em primeiro lugar, existem grandes religiões em que sem e estivessem investidos de algum poder, a santa, a li-
\ \'" a idéia de deuses e espíritas está ausente, nas quais, pela bertada, julga-se superior a eles; pais a que faz a dignida-
(J~
'I,j\ menos, el~ desempenha tão-só um papel secundária e de dos seres não. é a extensão. da ação. ~e..
'dI ~ apagado,..-E-G-Gas.Q.Q9budismo.. O budismo, diz Burnauf, -ªs,S9isa?, é exclusivamente a grau de seu avans;:a na ca-
\ \ "apresenta-se, em oposição ao. bramanismo, cama uma Tinh$ ..gvÚíh~iç;[~<y -- .
~~ moral sem deus e um ateísmo. sem Natureza'<s. "Ele não. E verdade que a Buda, pela menos em certas divisões
recanhece um deus da qual a hamem dependa, diz da Igreja budista, acabou par ser considerado uma espé-
Barth; sua doutrina é absolutamente atéia"14, e Oldenberg, cie de deus. Tem seus templos; tornou-se abjeta de um
por sua vez, chama-a "uma religião. sem deus">. De fato, culta que, par sinal, é muita simples, pais se reduz essen-
a essencial da budismo. cansis,te em quatro proposições cialmente à oferenda de algumas flores e à adoração de \
que as fiéis chamam as quatro nobres verdades-c. relíquias ou imagens consagradas. Não. é muita mais da
A primeira coloca a existência da dor cama ligada ao. que um culta da lembrança. Mas essa dívínízação da Bu-
perpétua fluxo. das coisas; a segunda mostra na deseja a da, supondo-se que a expressão. seja exata, primeiramen-
causa da dor; a terceira faz da supressão. da deseja a úni- te é particular ao. chamada budismo. setentrional. "Os bu-
ca meia de supr~mir a dar; a quarta enumera as três eta- distas da Sul, diz Kern, e as menos avançadas entre as
"

14 I)
AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 15

budistas do Norte, podemos afirmar com base nos dados


hoje conhecidos, falam do fundador de sua doutrina co-
mo se fosse um homem."21 Certamente, eles atribuem ao
t nheça e pratique a boa doutrina. Claro que ela não pode-
ria ter sido conhecida se o Buda não tivesse vindo revelá-
~\ Ia; mas, uma vez feita essa revelação, a obra do Buda es-
Buda poderes extraordinários, superiores aos que possui ,~ tava cumprida. A partir desse momento, ele deixou de ser
o comum dos mortais; mas era uma crença muito antiga .,~ um fator necessário da vi.da religiosa. A prá.tica das quatro
na Índia, e aliás muito comum numa série de religiões di- ~" verdades sagradas seria possível ainda que a lembrança
versas, que um grande santo é dotado de virtudes excep- ~ ",-.daquele que as fez 'conhecer se apagasse das memóríasw,
cíonaís-e, não obstante, um santo não é um deus, como Algo bem. diferente Ocorre com o cristianismo, que, sem a __ ~
tampouco um sacerdote ou um mágico, a despeito das fa- idéia sempre presente e o culto sempre praticado de tris-
culdades sobre-humanas que geralmente lhes são atribuí- to, é inconcebível; pois é por Cristo sempre vivo e a cada
das. Por outro lado, segundo os estudiosos mais autoriza- dia imolado que a comunidade dos fiéis continua a comu-
dos, essa espécie de teísmo e a mitologia complexa que nicar-se com a-fonte suprema da vida espírítualo.
costuma acompanhá-l o não seriam senão uma forma deri- Tudo o que precede aplica-se igualmente a uma ou-
vada e desviada do budismo. A princípio, Buda teria sido tra grande religião da Índia, o jainismo. Aliás, as duas
considerado apenas como "o mais sábio dos homens">. doutrinas .têm sensivelmente a mesma concepção do
"A concepção de um Buda que não seria um homem que mundo e da vida. "Como os budistas, diz Barth, os jainis-
alcançou o.rnais alto grau de santidade, diz Burnouf, não tas são ateus. Não admitem criador; para eles, o mundo é
pertence ao círculo das idéias que constituem o fundo eterno, e negam explicitamente que possa haver um ser
mesmo dos Sutras símples'<s, e,' acrescenta o mesmo au- perfeito para toda a eternidade. ]aina tornou-se perfeito,
tor, "sua humanidade permaneceu um fato tão incontesta- mas não o era o tempo todo+Assim como os budistas do
velmente reconhecido de todos que os autores de lendas, Norte, os jainistas, ou pelo menos alguns deles, se volta-
aos quais custavam tão pouco os milagres, não tiveram ram porém a uma espécie de deísmo; nas inscrições do
sequer a idéia de fazer dele um deus após sua morte'<>. Decão, fala-sede um ]inapati, espécie de ]aina supremo,
Assim, cabe perguntar se alguma vez ele chegou a despo- que é chamado o primeiro criador; mas tal linguagem, diz
jar-se completamente desse caráter humano, e se ternos.o o mesmo autor, "esta em contradição com as declarações
direito de assimilâ-Io completamente a' um deus>. Em to- mais explícitas de seus escritores mais autorizados'w.
do caso, seria um deus de uma natureza muito particular Aliás, se essa indiferença pelo divino desenvolveu-se
e cujo papel de modo nenhum se assemelha ab das ou- ~ a tal 'ponto no budismo e no jainismo, é que ela já estava
tras personalidades divinas. Pois um deus é, antes de tu- em germe no bramanismo, do qual derivaram ambas as re-
do, um ser vivo com o qual o homem deve e pode con- ligiões. Ao menos em algumas de suas formas, a especula-
tar; ora, o Buda morreu, entrou no Nirvana, nada mais ção bramânica culminava em "uma explicação francamen- .
pode sobre a marcha dos acontecimentos humanos-". te materialista e atéia do uníverso?». Com o tempo, as
xiT1ClNtl. Enfim, e não importa o que se pense da diVindade\ múltiplas divindades que os povos da Índia haviam de iní-
u.Di'STA do Buda, o fato é que essa é uma concepção inteiramente cio aprendido a adorar acabaram como que se fundindo
"''<-lsTA exterior ao que há de realmente essencial. no budismo .. numa espécie de princípio uno, impessoal e abstrato, es-
Com efeito, o budismo consiste, antes de tudo, na noção sência de tudo o que existe. Essa realidade suprema, que
de salvação, e a salvação supõe unicamente que se co- nada mais possui de uma personalidade divina, o homem
16 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA L QUESTÕES PRELIMINARES 17

contém em si, ou melhor, identifica-se com ela, uma vez É verdade que esses ritos são puramente negativos;
que nada existe fora dela. :ear.a-êfl{;Gntrá,.,,--1a--e-:u~a, ~ ?eix~ desef religiosos. Arem disso, há outros
e).e...nãe-)31'eei-s-a..,...-peFta-&tG.,--buscar
fora de si mesmo ne- que reclamam do fiel prestações ativas e positivas, e que,
p~m apoio exterior; basr.a concentrar-se e1E-si e medJ!..ar. no entanto, são da mesma natureza. Eles atuam por si
"Quando, diz Oldenberg, o budismo lança-se nesse gran- mesmos, sem que sua eficácia dependa de algum poder
de empreendimento de imaginar um mundo de salvação divino; suscitam mecanicamente os efeitos que são sua ra-
em que o homem salva-se a si mesmo e de criar uma reli- zão de ser. Não consistem em preces, nem em oferendas
gião sem deus, a especulação bramânica já havia prepara" dirigidas a um ser a cuja boa vontade o resultado espera-
do à terreno para essa tentativa ..A noção de divindade re- do se subordina; esse resultado é obtido pela execução
cuou gradativamente; as figuras dos antigos deuses pouco automática da operação ritual. Tal é o caso, em particular,
a pouco se apagam; o Brama pontifica em sua eterna quie- do sacrifício na \religião vêdica. "O sacrifício; diz Bergaig-
tude, muito acima do mundo terrestre, e resta apenas uma ne, exerce uma Influência direta sobre os fenÔmenos ce-
única pessoa a tomar parte ativa na grande obra da liberta- lestes"36; ele é onipotente por si mesmo e sem nenhuma
ção: o homem."32 Eis, portanto, uma porção considerável influência divina. Foi ele, por exemplo, que rompeu as
'1;
da evolução religiosa que consistiu, em suma, num recuo . portas da caverna onde estavam encerradas as auroras e
progressivo da idéia de ser espiritual e de divindade. Eis aí fez brotar a luz do dia37. Do mesmo modo, foram hinos
grandes religiões em que as invocações, as propiciações, apropriados que, por uma ação direta, fizeram cair sobre
os sacrifícios, as preces propriamente ditas, estão muito a terra as águas do céu, e isto apesar dos deuses». A práti-
longe de ter uma posição preponderante e que, portanto, -, ca de certas austeridades tem a mesma eficácia. E mais:
não apresentam o sinal distintivo no qual se pretende re- "O sacrifício é de tal forma o princípio por excelência,
conhecer as manifestações propriamente religiosas. T:l:e ~ ele é relacionada não somente a origem dos ho-
Mas, mesmo no interior das religiões deístas, encon- mens, mas também a dos deuses. Tal concepção pode,
tramos um grande número de ritos que são completamen- com razão, parecer estranha. No entanto, ela se explica
te independentes de toda idéia de deus ou de seres espi- como uma das últimas conseqüências da idéia da onipo-
rituais. Antes de mais nada, há uma série de interdições. A tência do sacrifício. "39Assim, em toda a primeira parte do
Bíblia, por exemplo, ordena à mulher viver isolada todo trabalho de Bergaigne, só são abordados sacrifícios em
mês durante um período determinadoõe; obriga-a a um que as divindades não desempenham nenhum papel.
isolamento análogo durante o partoõ+; proíbe atrelar jun- Esse fato não é particular à religião védica, sendo, ao
tos o jumento e o cavalo, usar um vestuário em que o câ- contrário, de grande generalidade. Em todo culto há práti-
nhamo se misture com o linho», sem que seja possível cas que atuam por si mesmas, por uma virtude que lhes é
perceber que papel a crença em jeová pode ter desempe- própria e sem que nenhum deus se intercale entre o indi-
nhado nessas interdições; PO\S ele está ausente de todas víduo que executa o rito e o objetivo buscado. Quando,
as relações assim proibidas e não poderia estar interessa- ria festa dos Tabernáculos, o judeu movimentava o ar agi-
do por elas. O mesmo se pode dizer da maior parte das tando ramos de salgueiro _segundo um certo rítmó.Iefà pa-
interdições alimentares. E essas proibições não são parti- :çafazero vento levantar-se e a chuva cair; e il,Çr~~ht.aYa-se
culares aos hebreus, mas as encontramos, sob formas di- o
que_ fenômeno desejado resultasse automaticamente do ~
versas e com o mesmo caráter, em numerosas religiões. ri~~ contanio que este fosse executadõõ"élorma correta".
~-
BIBUOTECA DA PUC· M~
I 18 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA I, QUESTÕES PRELIMINARES 19

Aliás, é isso o que explica a importância primordial dada esforçou-se por absorvê-l os e assimilá-los; imprimiu-lhes
por quase todos os cultos à parte material das cerimônias. uma cor cristã. Todavia, muitos deles persistiram até uma
Esse formalismo religioso, muito provavelmente a forma data recente ou persistem ainda com uma relativa autono-
primária do formalismo jurídico, advém de que a fórmula mia: festas da árvore de maio, do solstício de verão, do car-
a pronunciar, os movimentos a executar, tendo em si mes- naval, crenças diversas relativas a gênios, a demônios lo-
mos a fonte de sua eficácia, a perderiam, se não se confor- cais, ete. Embora o caráter religioso desses fatos vá se apa-
massem exatamente ao tipo consagrado pelo sucesso. gando, sua importância religiosa, não obstante, é tal que
Assim há ritos sem deuses e, inclusive, há ritos dos permitiu a Mannhardt e sua escola renovarem a ciência das
quais deri;am os- deuses. Nem todas as virtudes religiosas religiões. Uma definição que não levasse isso em conta não
emáiiamde personalidades divinas, e há relações cultu- compreenderia, portanto, tudo o que é religioso.
rais que visam outra coisa que não unir, o homem a uma ,
d1vinaade. Portanto, a religião vai além da idéia de deuses
ou de espíritos, logo não pode se definir exclusivamente
Os fenômenos religiosos classificam-se naturalmente
em duas categõri-ª~ fUrldameritai~: as crenças e os ritos, As
primeiras são estados da opinião, consistem em represen-
-*
em ~nção desta última. ~, tações; os segundos são modos de ação determinados.
Entre -esses dois tipos de fatos há exatamente a diferença
que separa o pensamento do movimento.
III Os ritos só podem ser definidos e distinguidos das
outras práticas humanas, notadamente das práticas mo-
Descartadas essas definições, é nossa vez de nos co- rais, pela natureza especial de seu objeto. Com efeito,
locarmos diante do problema. uma regra moral, assim como um rito, nos prescreve ma-
Em primeiro lugar observemos que, em todas essas neiras de agir, mas que se dirigem a objetos de um gêne-
fórmulas, é a natureza da religião em seu conjunto que se ro diferente. Portanto, t-o objeto do rito que precisaría-
tenta exprimir diretamente. Procede-se como se a religião mos caracterizar para odermos caracteriz~-
formasse uma espécie de entidade indivisível, quando ela to. Ora, é na crença ~e a natureza especia aesse objeto-
~ um todo formado de-.partes; tt
um sistema mais ou me- rse exprim~ssim, só se Eode definir ~o após se ter-
nosçomplexo.de mitQs,_de dogmas,-º~rit0s., de e.e.timQ- definido a crenças/ ~
~s-Ora, u~ não pode ~er definido senão em rela- - Todas as cref!.Ç!;lsreligiosas conhecidas, sejam sim-
ção às artes que o formam. mais metódico, portanto, ples óil complexas, a~m um~o caráter CG.::..
procurar caracterizar os enomenos elementares dos quais mum: supõem uma classi icação das coisas, reais ou id~ais
toda religião resulta, antes do sistema produzido por sua ~ os homens cõí1êeDem-lem auãsClasses, ·em aois gê-
união. Esse método impõe-se sobretudo pelo fato de exis- peros opostos~gnados eralment~ oi- dOiS termos •~
tirem fenômenos religiosos que não dizem respeito a ne- distintos que as palavras_~tanQ-e~sa·rada aduzem bas-
nhuma religião determinada. _É-O.s_asodos que constituem tãiiteõt:ur-ktliVíSãõ do mundo em dois dómíni~e
amatêría do.folclere. Em geral, são restos de rellgiões de- compreendem, !lm, tudo o qlle é s~grad~, outro, !2:;do~.
sapareci~vências inorganizadas; mas há outros que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento reli-
também que se formaram espontaneamente sob a influên- giOso: as crenças, os mitos, os gnomos., as lendas, são re-
cia de causas locais. Nos países europeus, o cristianismo .E..resent-ações ou sist~m~~ d~entações que exE!l:
20 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 21

~tureza das coisas sagradasJ as virtudes e os po- segunda seja sagrada em relação à primeira. Os escravos
deres que lhes são atribuídos, suãl'i:lstória suas relações dependem de seus senhores, os súditos deseu rei, os sol-
IllúJuas e com as coisas profanas. Mas, pOr coisas sagra- dados de seus comandantes, as classes inferiores das clas-
9, convém não entender simplesmente esses s ee-pes- ses dirigentes, assim como o avarento depende de seu
soais que chamamos deuses ou espíritos: um rochedo, ouro e o ambicioso, do poder e das mãos que o detêm;
~~QYma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, ora, se dizemos às vezes de um homem que ele tem a re-

P ~ ~agrada.
(J,~~
V!
~,rJ) uma casa em a palavra, uma coisa qualquer pode ser
rito pode ter esse caráter; inclusive, não exis-
te rito qu nã o tenha em algum grau. Há palavras, fra-
ligião dos seres ou das coisas aos quais atribui, assim, um
valor eminente e uma espécie de superioridade em rela-
ção a si próprio, é claro que, em todos esses casos, a pa-
S ses, fórmulas que só podem ser I?ronunciadas p~la boca lavra é tomada num sentido metafórico e que não há na-
de personagens consagrados; ha gestos e movimentos da, nessas relações, que seja propriamente religioso-ê.
que não podem ser executados por todo o mundo. Se o Por outro lado, convém não perder de vista que há
sacrifício védíco teve tal eficácia, se inclusive, segundo a coisas sagradas de todo tipo e que há aquelas diante das
mitologia, foi gerador de deuses, ao invés de ser apenas quais o homem se sente relativamente à vontade. Um
um meio de conquistar seus favores, é que ele possuía amuleto tem um caráter sagrado, no entanto o respeito
uma virtude comparável à dos seres mais sagrados. O cír- que inspira nada tem de excepcional. Mesmo diante de
culo dos objetos sagrados não pode, portanto, ser deter- seus deuses, o homem nem sempre se encontra numa po-
minado de uma vez por todas; sua extensão é infinita- sição de acentuada inferioridade" pois muitas vezes exer-
mente variável conforme as religiões. E~que_m~ ce sobre eles uma verdadeira coerção física para obter o
o budisrnQ.....é_umaJ...elig~..Q.ue.,....1la.lalta...cLe deu.s.e~ que deseja. Bate-se no fetiche com o qual não se está
admite a existência de coisas sagradas, que são as guatro contente, reconciliando-se com ele caso venha a se mos-
verdades sàntas e ãSprática§..QlIe delas derivam", trar mais dócil aos desejos de seu adoradoré. Para obter a
Mas limitamo-nos até aqui a enumeraf;à título de chuva, lançam-se pedras na fonte ou no lago sagrado on-
exemplos, um certo número de coisas sagradas; cumpre de se supõe residir o deus da chuva; acredita-se, deste
agora indicar através de que características gerais elas se modo, obrigá-I o a sair e a se mostrar+. Aliás, se é verdade
distinguem das coisas profanas. que o homem depende de seus deuses, a dependência ~
Poderíamos ser tentados a defini-Ias, de início, pelo rêéípra-ca. TaITlbém os deuses têm necessidadedo ho-
'"
~ -:----......-. - ;;;.,~' ---.., ' . i

lugar que geralmente lhes é atribuído na hierarquia dos mem: sem as oferendas e os sacrifícios, eles morreriam.
seres. Elas costumam ser consideradas como superiores Teremos ocasião de mostrar que essa dependência dós
em dignidade e em poderes às coisas profanas e, em par- deuses em relação a seus fiéis mantém-se inclusive nas re-
ticular, ao homem, quando este é apenas um homem e ligiões mais idealistas.
nada possui, por si próprio, de sagrado. Com efeito, o ho- Mas, se uma distinção puramente hierárquica é um
memé representado ocupando, em relação a elas, uma si- critério ao mesmo tempo muito geral e muito impreciso,
tuação inferior e dependente; e essa representação por não nos resta outra coisa para defin~grª-dº- em ~- ~
certo não deixa de ser verdadeira. Só que nisto não há na- ~çào ap~~,-ª-.E;~o ~er sua heteroge~~ida_d~ E ~ que
da-que seja realmente característico do sagrado. Não basta torna.essa-heterogeneídade sufíeíente.para caracterísar.se-
que uma coisa seja subordinada a uma outra para que a ~elhante classificação das coisas e distingui-Ia de qual-
V' .' .\(,. 'V'..,.. ~ l" - AI-"
rJ/ \1 r \ 'l rVJ " I:}
1i J/',."',l
0'; '\~' '1.11 'I.I:I.}·
d.J
.
~\', IJ'

"lP< lJt \.nn ~fi


r
22

h tu
AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES '1. If' 23
10
,I;, (\~Ji!'"
lI" ~ iJl.ffO 9€.
uer outra é justamente o fato de ela ser muito particl!Lar: re, que a pessoa determinada que ele era cessa de existir ,,.;'c,p.«;.c;,\
--"* .ela é absoluta. Não existe na história do pensamento hu-
~-
~tra~stantaneamente,
1
substitui a preceaert- PJ' I\.~.?-~h~
-' '-- ~Cl""''-
mano um outro exemplo de duas categorias de coisas tão e. Ele renasce SOID uma nova forma.rGenstdera-se que ce- I" tv.flft..tO
profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas rlmônias apropriadas realizam essa morte e esse renasci- 1'~.
uma à outra. A oposição tradicional entre o bem e o mal mento, entendiqbs não num sentido simplesmente simbó-
não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal são duas es- lico, mas toma~s ao pé da lerra=. tl!o é isso uma prova (,
pécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim co- d~ q1!o~. l).'ª.501 ão de çs,:mtinuidade entre o-ser-pftrãi1õ SJVI [,
mo a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferen-
tes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o
sagrado e o profano foram sempre e em toda parte conce-
lte_ele~;;...e,o ser religioso ém que se: torna?
Essa heter geneidade inclusive é tal.que-rrãõráro
genera num verdadeiro@!ili[gonis]0.
_ .~OI

Os dois mun.dos
j:)
de-t ~
bidos' pelo espírito humano como gêneros' separados, co- não são apen~ncebidos como separados, mas como_
mo dois mundos entre os quais nada existe em comum. As hoSl'iSêfivãIS um do outro. Como só pode pertencer ple-
energias que se manifestam num não são simplesmente as namente a um se tiver sãido inteiramente do outro, o ho-
que se encontram no outro, com alguns graus a mais; são mem é exortado a retirar-se totalmente do profano, para
de outra natureza. Conforme as religiões, essa oposição foi levar uma vida exClusiVamente rel@osa. Daí a vida mo-
concebida de maneiras diferentes. Numa, para separar es- nástica que, ao lado e fora do meio natural onde viveo
ses dois tipos de coisas, pareceu suficiente localizá-Ias em. homerneomüm, organiza artíflclalmente um o~eio,
regiões distintas do universo físico; noutra, algumas delas fechadó -ao' primeiro e que uase sempre tende ~ ser o
são lançadas num meio ideal e transcendente, enquanto o seu opostoj Daí ascetismo rriístico cujo objeto é extirpar
mundo material é entregue às outras em plena proprieda- dõl10mem tudo o que nele pode permanecer aeapeg
de. Mas, se as formas do contraste são variâveis+>, o fato ao mundo prõfaiío" Daí, enfim, todas as formas de suicí-
mesmo do contraste é universal. dio religtoso, coroamento lógico desse ascetismo, pois a
Isso não significa; porém, que um ser jamais possa única maneira de escapartotalI!J.ent~ à vida profana é
passar de um desses mundos para o outro; mas a maneira última instância, evadír-se totalmente da VIda
como essa passagem se produz, quando ocorre, põe em A oposição desses dois gêneros trá, aliás, traduzir-se
evidência a dualidade essencial dos dois reinos. A passa- exteriormente por um signo visível que permita reconhe-
gem implica, com efeito, uma verdadeira metamorfose. É cer com facilidade essa classificação muito especial, onde
o que demonstram particularmente os ritos de iniciação, quer que ela exista. Como a noção de sagrado está, no
tais como são praticados por uma quantidade de povos. A pensamento dos homens, sempre e em toda parte separa-
iniciação é uma longa série de cerimônias que têm por da da noção de profano, como concebemos entre elas
objeto introduzir o jovem na vida religiosa: ele sai pela uma espécie de vazio lógico, ao espírito repugna invenci-
primeira vez do mundo puramente profano onde trans- veílnente que as coisas côrrespondentes sejam confundi-
correu sua primeira infância para entrar no círculo das das ou simplesmente postas em contato, pois tal promis-
coisas sagradas. Or~ssa mudança d.::.-e~~.Ç.onceb!::. cuidade ou mesmo uma contigüidade demasiado direta
da, não como <2...§iQ!.pl"êS"efegularaesenv.Q!Yim..ent2 de contradizem violentamente o estado de dissociação em
germes preexistentes, mas como uma transformação totius
- . ~.-----
substantiae. Diz-se que, naquele momento, o jovem mor-
-- - --
9ue se achª-Dl tais idéias nas Collscrê~claS)AcOísasagra~
e, por excelência, aguela <Lueo profano não deve e não po-
_.- -. - - -- '-
24 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 25

de impunemente tocar. Claro que essa interdição não po- me as circunstâncias em que se aplica, seria, no fundo,
deria chegar ao ponto de tornar impossível toda comuni- por toda parte, idêntico a si mesmo: <trªta-se de um todco
cação entre os dois mundos, pois, se o profano não pu- Ifõ'rmado de partes distintas e relativamente indívidualizg-
desse de maneira nenhuma entrar em relação com o sa- dasJCada grupo homogêneo de coisas sagradas, ou mes-
grado, este de nada serviria. Mas esse relacionamento, mo cada coisa sagrada de alguma importância, constitui
além de ser sempre, por si mesmo, uma operação delica- um centro organizador em torno do qual gravita um gru-
da, que requer precauções e uma iniciação mais ou me- po de crenças e de ritos, um culto particular; e não há re-
nos complicada+, de modo nenhum é possível sem que o ligião, por mais unitária que seja, que não reconheça uma
profano perca suas características específicas, sem que se pluralidade de coisas sagradas. Mesmo o cristianismo, pe-
torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa lo menos em sua forma católica, admite, além da persona-
medida. Os dois gêneros não podem se aproximar e con- lidade divina - aliás, tripla ao mesmo tempo que una -, a
servar ao mesmo tempo sua natureza própria. Virgem, os anjos, os santos, as almas dos mortos, ete.
Temos, desta vez, um primeiro critério das crenças Assim, uma religião não se reduz geralmente a um
religiosas. Claro que, no interior desses dois gêneros fun- culto único,mas consiste em um sistema de cultos dota-
damentais, há espécies secundárias que, por sua vez, são dos de certa autonomia. Essa autonomia, por sinal, é variá-
mais ou menos incompatíveis umas com as outrasw. Mas vel. Às vezes, os cultos são hierarquizados e subordinados
o característico do fenõmeno religioso é que ele supõe a um culto predominante, no qual acabam inclusive por
sempre uma divisão bipartida do universo conhecido e ser absorvidos; mas ocorre também estarem simplesmente
conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o justapostos e confederados. A religião que iremos estudar
que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas nosfornecerá justamente um exemplo desta última orga-
sagradas são aquelas que as proibiçõesprotegem e iso- nização.
lam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas Ao mesmo tempo, explica-se que possa haver grupos
proibições e que devem permanecer à distância das pri- de fenômenos religiosos que não pertencem a nenhuma
meiras. As(crenças religíosãs-são representações que ex- religião constituída: é que eles não estão ou não mais' es-
primem a natureza das coisas sagradas e as relações que tão integrados num sistema religioso. Se um dos cultos
elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas. em questão conseguir manter-se por razões especiais
Enfim, os ritos são regras de conduta que prescrevem co- quando o conjunto do qual fazia parte desaparece, ele irá
mo o homem deve comportar-se com as coisas sagradas. sobreviver apenas no estado desintegrado. Foi o que
Quando um certo número de coisas sagradas man- aconteceu a tantos cultos agrários que sobreviveram a si
tém entre si relações de coordenação e de subordinação, próprios no folclore. Em certos casos, não é sequer um
de maneira a formar um sistema dotado de uma certa uni- culto, mas uma simples cerimônia, um rito particular que
dade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro persiste sob essa forma-s. .
sistema do mesmo gênero, o conjunto das crenças e dos . Embora essa definição seja apenas preliminar, ela já
ritos correspondentes constitui uma relígíão. Vê-se, por permite entrever em que termos se deve colocar o proble-
_ essa definição, que uma religião não corresponde neces- ma que domina necessariamente a ciência das religiões.
sariamente a uma única e mesma idéia, não se reduz a Quando se acredita que os seres sagrados só se distin-
um princípio único que, embora diversificando-se confor- guem dos demais pela maior intensidade dos poderes que
26 AS FORMAS ELEMENTARES DA WDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 27

lhes são atribuídos, 51 guestão de~r de gue maneira os


homens ~eram ter a idéia desses seres) é bastantesIffi-
ples: basta examinar quais são as forç~s que, .eor sua ex-
c_epcio~l ~gg, foram capazes de imQressionar tãQ.Yi-
vamente ~ espírito humano parg ins.eirar sentimento~li-

r
giO' Mas se, como tentamos estabelecer, as coisas sa-
~\h.1 gra as diferem em natureza das coisas profanas, se são de
)\\ _MO- /~ ?utra essência, o proble:,na é muito mais complexo.
J ~(1' ~ e preCiso Qerguntar entao o que levou o homem a
)~ ,ver no mundo dois J;llundos heterogéiiêos e incompará-
\\ ~~ veis, quando nada na expedencI.a sensível parecia dever
lje,h-Ihe a idéia de uma d.!!J!.liãâdetão rndica1.J

IV

Entretanto, essa definição nã~é ainda completa, pois


~ualmente_a duas ordens de-fatos que, embora
ª,p~~dos e~t~: si, p~s: !rª-ta.:se d
agIa e aa rehgIa!J~-- ------..:c.
'" \ I I
Tãmoe-'a ma ia é feita de cren as e de ritos Assim ,I) 1'0[(
como a religiao, ~e.us mitQ.L~s-dQ§fl1as) eles são fIV" " ,
apenas mais rudimentares, certamente porque, buscando ri
I\ r'
fins técnicos e utilitários a agia não perde seu tempo 'uJ{
Y li
com especulações. Ela tem i. ualmente suas cerimõnias,
s~us sacrifícios, suas puri icações; suas preces, ~-
'to~~ças.
'Çãsq~ãO
Os seres que o -mágIco invoca, as for-
são apenas da mesma natureza 9.,ue
.'
~ forças e os seres aos quai.§ se dIrí~ a relIgião; com mui-
ta.freqüêncía, são exatamente os me~Ãssim, desde
as sociedades mais inferiores, as almas dos mortos são
coisas essencialmente sagradas e são objeto de ritos reli-
~. Ao mesmo tempo, porém, elasjesempenharam
na magia }lm papel consid~ Tanto na Austrália50 co-
-, 'fi1õl1ãMêíai1esIa51, tanto na Grécia como nos povos cris-
~!, a?aImas dos mortos,SU;;;s ossadas, seus cabelos,
estão entrêOSmtefii.1e'éIITrios muitas vezes utilizados pelo
-
-, --'--~-
29
\t,---
Si ,
r
28
AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES

I, I~
X'' "r
~~nçasll2!Q,P...riamente
'11' religi~!.o sempre co- uma mesma vida, Não existe igrei!!:.mágica. Entre o mági-
,',f UII};l SO etividade determinada, que declara aderir co e os indivíduos que o consUltam, como também entr
,\\~
\I
l ,;'
I" ~

a elas e 12.r~icar os ritos que lhes são soIIaários. Tais cren:


ças não são apenas admitidas, a título individual, por to-
J.~
esses indivíduos, não há víns:.!!.losduráveis que façam de-
les os membros de um mesmoçorpo moral, comparável
,1 \1 \ dos os membros dessa coletividade, mas são próprias do àquele formado pelos fiéis de um mesmo deus," pelos pra-
1
" 1\ grupo e fazem sua unidade. O~indiyídl,l.Q2..9.ue compõem ticantes de um mesmo culto. O mágico t~m uma clientela,
,\t .~ cole'i.vid~de seI!!:,em-=s~ligados uns aQi-QWjQs P"?1"0 '011 não uma ígreja, ,e seus clientéspodem perfeitamente não
,\\ simflk'}s.fatQ~de...te.[eULumª fé comum. Uma sociedade cujos> J \O~ manter entre'sh1ephum rélâclôiiâmento, ao .ponto dê sé .:
membros estão unidos por se representarem da mesma OQ Iv J ignorarem Ul}S aos outros.imesiiio as relações que estabe~
maneira o mundo sagrado e por traduzirem essa repre- r~ &Q ./ lecem com o mágico são,~rri..:geral,acidentais e passagei-
sentação comum em práticas idênticas, é isso a que cha-)I'
~mamos uma~Ora, não encontramos,~ história, ~- r:
\ff ]:a.§isão em tuao semelfiantes às de urrl"CIõente com seu
~. O caráter oficial e público com que às vezes ele é
Jigi~9sem igreja. As vezes a igreja é estritamente nacional,) investido não modifica em nada a situação; o fato de
\~ outras vezes estende-se para além das fronteiras; ora exercer sua função abertamente não o une dê maneIra
abrange um povo inteiro (Roma, Atenas, o povo hebreu), E1áis ;!.gylar ~ durável aos...sL';!,e
recorrem- a seus serviç;s;
ora compreende apenas uma de suas frações (as socieda- E verdade que, ~m c~rtos caso~ QS mágicos f~
des cristãs desde o advento do protestantismo); ora é diri- entre si sociedades: acontece de se reunirem mais ou me-
\ gida por um corpo de sacerdotes, ora f= mais ou menos -fios períoaicamente para celebrarem em comum certos rio.
'- ) desprovida de qualquer órgão dirigente ofícialv. Mas, on- !Q§; conhecemos o lugar que ocupam as reuniões (fêreiti~
t de quer qpe o~~rvemQs uma vida relig!Q§a, ela tem por ceiras no folclore europeu.-Mas, antes de mais nada, no-
''I
s~~ru o definid0Mesmo os cultos ditos priva- tar-se-á que tais ,+ssociaçõ~s'de modo nenhum são indis-
dos, como o culto doméstico ou o culto corporativo, satis- ensª,veis ao funcionamento d~agía; são incluSIVe raras
fazem essa condição, pois são sempre celebrados por e bastante excepcionaís.j O mágico não tem ã meriOr ile:
uma coletividade - a família ou a corporação. Aliás, assim cessicIade, para praticar sua arte, de unir-se a seus confra-
como essas religiões particulares são, na maioria das ve- des. Ele é sobretudo um isolaçlo; em geral, longe de bus-
zes, apenas formas especiais de uma religião mais geral _car asociédade, a evit~Mes~o em relação-a seus cole- OU dl~~j'
que abarca a totalidade da vida59, essas igrejas restritas, na gas, conserva sempre uma atitude re!')ervada."61Ao contriq 1),.v!1...,
realidade, não são mais que capelas de uma igreja mais rio, a religião é ínse arável da idéia de i re·. 05 esse Lj"/J\çj)':>
vasta, a qual,_p.o.r~mesma, merece primeIro aspecto, já existe entreâ~mágia e religião uma
â

ainda mai[ser chamada por ..esse nome60. diferença essencíal.iálém do mais, e sobretudo, essas so-
Algo bem diferente se dá com a magia. Claro que as ciedades mágicas, quando se formam,' jamais compreen-
crenças mágicas jamais deixa~ de ter alguma generalida- dem, muito pelo contrário; todos os adeptos da ~,
de; com freqüência estão dífusas em largas camadas de mas apenas os mágicos; os leigos, se é possível chamá-l os
população e há inclusive muitos povos em que seu nú- assim, ou seja, a..Qudes em pro~ito dos g.Qais os ritos são
mero de praticantes não é menor que o da religião pro- celebrados, aqueles, em suma, g~~resentam os fiéis
priamente dita. Mas elas não têm por efeito ligar uns aos ~egulare~, são excluídos desses encontros. Ora,
outros seus adeptos e uni-los num mesmo grupo, vivendo <? mágico está 12ara.JLITl.flgiaassim como o sacerdote para
30 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA QUESTÕES PRELIMINARES 31

a religião, e um colégio de sacerdotes não é uma igreja, ro de religiões americanas, assim como da religião rorna-
como tampouco o seria uma congregação religiosa que na CPafa citar apenas dois exemplõsT;- pois ela é, co.!!2Q..
prestasse a algum santo, na sombra do claustro, um culto veremos mais adiante, estreitamente solidária à idéia de
particular. Uma igreja não é simplesmente uma confraria ~e ajd~ia- de alma não é.si.JlSque posSãm ser inteira-
sacerdotal.ê a comunidª-de moral formada por todos os mente abandonadas ~_arQillio dos 12articulares) Em uma
crentes de uma mesma fé" tanto os fiéis como os sacerdo- palavra, é a igreja da qual ete é membro Que ensina ao in-
tes. Uma sOClJdaçe desse gênero normalmente não se ve- divíduo oque São_e.s5_esde1Js~ pessoais, qual é seu pa-
rifica na magfê ~ d~q~aneira deve entrar ~to com eles) de
Mas, se introduzimos a noção de igreja na definição que maneira deve hon@-los~Quando analisamos metodi-
de religião, não estaremos excluindo dela, ao mesmo tem- camente as doutrinas dessa igrelã. seja ual for, sur e um
po, as religiões individuais que o indivíduo institui parasi momento em Clue é11fontr_amos~oJ~illeto ague -ª,s_queA.iJ
mesmo' e celebra por conta própria? Ora, há poucas socie- ~respefto aos c(flros especiãiS) Portanto, não temos aí
dades em que estas não ocorram~da Ojib~, como V;=- 'tias religiões de tipos dITeieOtes e voltadas em sentidos
remos mais adiante, tem seu rnanitú pessoa que ele pró- opostos, mas sim, de ambos os lados, as mesmas idéias e
prio escolhe e ao qual presta deveres religiosos particula- os mesmosJ2rincípiosJ aplicados aqui às circunstâncias
res; o melanésio nas ilhas Banks tem seu tamantu/s, o ro- ue interessam à ccletividaq~ em seu conjunto, ali, vida
à

mano tem seu geniusr-; o cristão, seu santo padroeiro e do indivíduo. .á.QlidariedageJé inclusive tão estreita gge,
seu anjo da guarda, etc. Todos esses cultos parecem, por em alguns povos66, as cerimônias através das quais o fiel
definição, independentes da id~ia de grup_o. E essas reli- entra pela primeira vez em comunicação com seu gênio
giões individuais não apenas são muito freqüentes na his- protetor se misturam a ritos de caráter público incontestá-
tória: alguns se perguntam hoje se elas não estão destina- vel, a saber, 9s ritos de iniciação67.
das a se tomar a forma eminente da vida religiosa e se não Restam as aspirações contemporâneas a uma religião
chegará o dia em que não haverá outro culto senão' aquele que consistiria inteiramente em estados interiores e subje-
que cada um celebrará livremente em seu foro interior=. tivos, e que seria livremente construída por cada um de
Mas, deixando provisoriamente de lado essas especula- nós. Mas, por mais reais que sejam, elas não poderiam
ções sobre o futuro, se nos limitarmos a considerar as reli- afetar nossa-definição, pois esta só pode aplicar-se a fatos
iões tais como são no presente e tais como foram no' conhecidos e 'realizados, não a virtualidades incertas. Po-
p.as.s~ aparece com evidência que~ cultos indivi- demos definir as religiões tais como são ou tais como fo-
duais constituem, não sistemas religiosos distintos e autô- ram, não tais como tendem mais ou menos vagamente a
'2Q!!!9s, mas simples aspectos da religião comum a toda ser. É possível que esse individualismo religioso seja des-
igreja da qual os indivíduos fazem parte.{o santo padroei-
ro dos crtsfãos e escolhido na lista oficia dos santos reco-
nhecidos pela igreja católica, e são igualmente regras ca-
que """'-_
tinado a traduzu-se nos fa~mas,

que elementos é
para poder dizer em .
~ medida, s.etla )2reciso já saber o que é a rel~gião,~_
feita, de quecausãSTeSü:lta, que função>
nônicas que prescrevem de que maneira cada fiel deve -reenche; questões todas essas cuja soluçãô" não se pode
cumprir esse culto particular. Do mesmo modo, a idéia de prejulgar enquanto não se tiver ultrapassado 'o limiar da
que cada homem tem necessariamente um ênià rotetor pesquisa. É somente ao cabo desse estudo que podere-
mos tratar de antecipar o futuro.
--
está, sob formas 1 erentes, na base de um grande núme-
-,
32 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA

Chegamos, pois, à seguinte definição: uma ..!§.ligião§. CAPÍTULO II


.-J:!:!!! sistema solidáriQ de crerJ:.~ !,de J2I{tticas rela~ AS PRINCIPAIS CONCEPÇÕES
co~radas,_istoé, s_epafadas, proibidas, crenças e
p~q11e reúnem numa mesma comjtnLd~l,
DA RELIGIÃO ELEMENTAR
chamada-.ig!$..a, todos aq,ueles ÇJ.uea elas Çlderem)0 se-
gundo elemento que participa assim de nossa Clefinição
não é menos essencial que o primeiro, pois, ao mostrar
que a idéia 'üe;:t~1igiil0-€",!fis@j9ará:velda idéia de ig~j<!:zele
faz pressentir que a religião dev~-~~r_uma coísa-emínente-
:m€H'ltacoletíva6_8.

I- O animismo

Munidos dessa definição, podemos sair em busca da


religião elementar que nos propomos alcançar.
As religiões, mesmo as mais grosseiras que a história
e a etnografia nos fazem conhecer, já são de uma comple-
xidade que se ajusta mal à idéia que algumas vezes se faz
da mentalidade primitiva. Nelas encontramos não apenas
um sistema cerrado de crenças e de ritos, mas inclusive
tal pluralidade de princípios diferentes, tal riqueza de no-
ções essenciais, que pareceu impossível perceber nelas
outra coisa que o produto tardio de uma evolução bastan-
te longa. Donde se concluiu que, para descobrir a forma
realmente original da vida religiosa, era necessário descer,
através da análise, mais abaixo dessas religiões observá-
veis, decompô-Ias em seus elementos comuns e funda-
mentais, para descobrir se, entre estes últimos, haveria al-
gum do qual os outros derivaram.
Ao problema assim colocado, duas soluções contrárias
foram propostas.

Você também pode gostar