Você está na página 1de 14

1.

ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

Formação docente e a experiência:


um diálogo com António Nóvoa

Ana Cristina Gonçalves Abreu Souza

Este capítulo tem por objetivo apontar as contribuições teóricas com foco na
formação docente e a experiência a partir dos referenciais de Antonio Nóvoa,
pesquisador e professor da Universidade de Lisboa, em Portugal, onde atuou como
Reitor da Universidade. António Manuel Seixas de Sampaio da Nóvoa nasceu em
1954, em Valença do Minho. Cursou o ensino básico em escolas públicas de Portugal,
tendo estudado Ciências da Educação na Suíça. É Doutor em Ciências da Educação
pela Universidade de Genebra (1986) com uma tese sobre o processo de
profissionalização docente em Portugal. Mais tarde, em 2006, doutorou-se também
em História Moderna e Contemporânea pela Universidade de Paris IV-Sorbonne com
uma tese sobre a construção do modelo escolar. Foi professor na Universidade de
Genebra, na Suíça, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade de Lisboa e em muitas outras universidades europeias, brasileiras e
norte-americanas. Entre 2000 e 2003 foi presidente da Associação Internacional de
História da Educação. Em 2006 foi eleito reitor da Universidade de Lisboa. É autor de
centenas de trabalhos científicos.
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

Seus estudos têm proporcionado avanços na concepção de formação de


professores com pensamentos que nos remetem a ampliar a compreensão do
desenvolvimento da profissão e insere a dimensão pessoal do profissional como um
aspecto amplo e definidor dos desdobramentos do processo educativo.
Com ampla publicação no Brasil, Nóvoa lançou vários livros sobre
desenvolvimento pessoal e profissional do docente (NÓVOA, 1992, 1995, 1995a,
2009, 2010). Com intensos trabalhos acadêmicos, costuma atuar em seminários,
congressos e pesquisas, ações que viabilizam a influência teórica nas discussões e nos
documentos sobre formação de professores e a construção da identidade docente. O
autor (1992) destaca e consolida argumentos fundamentais para compreendermos a
relação da formação com três aspectos ligados: a vida do professor, a profissão do
professor e a escola. Para compreender a contribuição de Nóvoa, apontaremos esses
aspectos para a análise que se segue.
O papel do professor na autoformação coletiva
O processo de formação de professores, proposto por Nóvoa, focaliza o
professor, primeiramente em sua dimensão “pessoal”, vista em sua singularidade,
crítica e reflexiva, e considera o desenvolvimento do pensamento autônomo de cada
sujeito; defende, ainda, a superação de uma formação reduzida que se paute em
receitas e pacotes. Ele aponta para a importância de ações que contemplem a
autoformação em um processo coletivo e de troca:

A formação deve estimular uma perspectiva crítico – reflexiva, que


forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e
que facilite as dinâmicas de autoformação participada. Estar em
formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e
criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com vista à
construção de uma identidade, que é também uma identidade
profissional. (NÓVOA, 1992, p. 25)

Compreendemos que na perspectiva de Nóvoa as dimensões pessoais e


profissionais são legítimas no processo de formação de professores, e o aspecto
autoformativo que sugere revela o posicionamento do professor em seu processo de
formação. A autoformação possibilita singularizar o refletir sobre o processo de
práticas que nascem de contextos pedagógicos autênticos, como demandas nascidas
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

de um cotidiano pedagógico, o que nos faz compreender que o autor valida os saberes
e fazeres gerados da experiência docente.
Nóvoa (1992), quase que de maneira permanente em suas obras, enfatiza
o saber da experiência, o que nos incentiva a confirmar a importância dos percursos
próprios da profissão para ações críticas, que desenvolvam a consciência e a reflexão
em relação ao cotidiano, com ênfase nos sentidos das histórias de vida do professor:
A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de
conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de
reflexividade crítica sobre as práticas e de (re) construção
permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante
investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.
(NÓVOA, 1992, p.25)

Nóvoa sinaliza para um conhecimento gerado na práxis, em um movimento


pautado nas referências individuais que constroem o saber da experiência e da
identidade do professor. Afirmamos que o conhecimento não é estabelecido em uma
ação de benevolência entre as pessoas e, muito menos, pela mera participação em
cursos e jornadas, mas se constrói nas ações dos processos: inicial, continuado e
permanente, que se relacionam com os conhecimentos e significados estabelecidos
pelo sujeito a partir de suas próprias relações, em sua singularidade na trajetória de
vida e de trabalho. A importância do espaço da experiência na formação de
professores é, certamente, uma das ricas contribuições de Nóvoa (1992) para se
pensar a produção de saberes no âmbito da Pedagogia.
Atualmente presenciamos ações de formação em redes públicas que elegem
cursos e ações com diplomas e certificados e que descartam possibilidades de estudos
com foco na individualidade, nos estudos de casos, nas trocas e na experiência. Nóvoa
(1992, 1995, 1995a) indica o caminho da formação além de ações individualizadas e
soltas, mas como um processo em que o espaço para o saber seja legitimado por
instituições educacionais em diferentes dimensões, pessoal e pedagógica. Numa
perspectiva de formação que considera o processo e as diferentes dimensões, se faz de
valia compreender e mobilizar a experiência como dimensão pedagógica:
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

Não se trata de mobilizar a experiência apenas em uma dimensão


pedagógica, mas também num quadro conceptual de produção de
saberes. Por isso, é importante a criação de redes de (auto) formação
participada, que permitam compreender a globalidade do sujeito,
assumindo a formação como um processo interativo e dinâmico. A
troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de
formação mútua, nos quais cada professor é chamado a
desempenhar, simultâneamente, o papel do formador e de
formando. (NÓVOA, 1992, p.25)

As experiências convidam os professores a atuar na perspectiva de profissional


conhecedor de seu ofício e, portanto, consciente de suas ações, o que remete a uma
pessoa que pensa o seu trabalho e assim argumenta de modo consciente, indaga e
redimensiona os questionamentos nascidos de seu fazer pedagógico e da própria
concepção de construção de saberes. A troca entre os pares coloca no cenário um
profissional que, em uma relação recíproca, fortalece a própria formação e contribui
com a de seus pares; a possibilidade de discutir e de se posicionar configura um
exercício legítimo para o fortalecimento dos saberes e fazeres da docência.
Nóvoa (1992) aponta para a importância de superarmos as dicotomias tão
enraizadas na gênese da formação de professores: as que colocam de um lado um
modelo acadêmico (centrado nas instituições e em conhecimentos fundamentais) e, de
outro, um modelo prático (centrado nas escolas e em métodos aplicados). Superar a
dicotomia exige um novo pensar, de superação, com a criação de novas estruturas e
dispositivos que possam nortear as formações iniciais e continuadas, e que agreguem
às instituições (universidades, escolas e instituições educativas não formais) novas
responsabilidades de formações:

Toda a formação encerra um projeto de ação. E de trans-formação.


E não há projetos sem opções. As minhas passam pela valorização
das pessoas e dos grupos que têm lutado pela inovação no interior
das escolas e do sistema educativo. (NÓVOA, 1992, p. 31)

Percebemos a afirmativa de Nóvoa em relação a contextualizar, no âmbito da


formação, ações que validem a práxis, ou seja, ações gestadas em espaços que
validem a discussão e a reflexão de práticas próprias de um processo que nasce na
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

individualidade do fazer pedagógico, mas que amplia para a troca do fazer coletivo e,
assim, abre espaço para a consciência crítica do próprio fazer e do próprio pensar
sobre ele.
No movimento de pensar o próprio fazer viabiliza-se a inserção da dimensão
do desenvolvimento pessoal, e Nóvoa fortalece a importância de estabelecer um
modelo de formação que considere a dimensão pessoal, a autoformação e a
significação das Histórias de Vida dos professores. “O professor é a pessoa. E, uma
parte importante da pessoa é o professor” (NIAS, 1991 apud NÓVOA, 1995)
Para Nóvoa, “(...) urge, por isso, (re) encontrar espaços de interação entre as
dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus
processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida”
(NÓVOA, 1992, p. 25). O que define as crenças, as decisões e os fazeres do professor
é o seu processo de existência, de vida, o que nos remete a compreendermos o
docente como um sujeito histórico que não passa a existir somente nos âmbitos
educativos, acadêmicos ou escolares, mas já existe, muito antes dos processos
institucionais, na dimensão pessoa, e se desenvolve, desde a sua origem de vida, em
interações com o mundo:

A formação de professores tem ignorado, sistematicamente, o


desenvolvimento pessoal, confundindo “formar” e “formar-se”, não
compreendendo que a lógica da atividade educativa nem sempre
coincide com as dinâmicas próprias da formação. Mas também não
tem valorizado uma articulação entre a formação e os projetos das
escolas, consideradas como organizações dotadas de margens de
autonomia e de decisão de dia para dia mais importantes. Estes dois
“esquecimentos” inviabilizam que a formação tenha como eixo de
referência o desenvolvimento profissional dos professores, na dupla
perspectiva do professor individual e do coletivo docente.
(NÓVOA, 1992, p. 24)
.

Cabe-nos enfatizar a importância da inserção do desenvolvimento pessoal nas


propostas de formação, bem como validar os espaços que gestam as práticas, no caso
as escolas, ou instituições de ensino. Nóvoa, no prefácio da segunda edição do livro
Profissão Professor (1995), nos faz dialogar sobre a formação de professores e utiliza
um esquema de análise chamado de Triângulo Pedagógico, de Houssaye (2007, p. 71-
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

77) e propondo uma importante reflexão sobre o lugar do professor em relação ao


aluno, as organizações e aos saberes.
Houssaye (2007) usa o triângulo pedagógico como um esquema de análise de
sua autoria e analisa o funcionamento educativo. Este esquema nos remete a três
componentes, dos quais dois são sujeitos e um é o morto ou louco na situação
pedagógica, são eles: o saber; o professor; os alunos:

Partamos da base seguinte: a situação pedagógica pode ser definida


como um triângulo composto de três elementos – o saber, o
professor e os alunos – dos quais dois se constituem como sujeito,
enquanto o terceiro, aceita o lugar do morto ou, se com defeito, se
faz de louco. (HOUSSAYE, 2007, p.71 – 77)

Neste esquema de análise, Houssaye (2007) aponta que o sujeito é aquele que
existe, de modo prioritário, aquele que se reconhece e estabelece relações. O morto é
definido pelos outros; aquele que não existe, que não se reconhece como sujeito e
também não reconhece o outro como sujeito; o seu lugar é assinalado e definido pelos
outros:
O triângulo pedagógico, apresentado por Jean Houssaye, organiza-
se em torno dos seguintes vértices: os professores, os alunos e o
saber. A partir de uma relação privilegiada entre dois destes
vértices, é possível imaginar, de forma necessariamente
simplificada, três grandes modelos pedagógicos: a ligação entre os
professores e o saber configura uma perspectiva que privilegia o
ensino e a transmissão de conhecimentos; a junção entre os
professores e os alunos valoriza os processos relacionais e
formativos; a articulação entre os alunos e o saber favorece uma
lógica de aprendizagem. (NÓVOA, 1995, p. 8)

Houssaye (2007), ao analisar a relação privilegiada nos aponta alguns modelos


da Pedagogia. São eles:
MODELO DA PEDAGOGIA TRADICIONAL – relação privilegiada fica
entre o professor e o saber; e assim o aluno aceita o lugar do morto, sai da situação
pedagógica e se nega a entrar nela.
MODELO DE PEDAGOGIA LIBERTÁRIA – relação privilegiada fica entre
o professor e o aluno; o saber aceita o lugar do morto.
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

MODELO DE PEDAGOGIA DOS MÉTODOS ATIVOS – relação


privilegiada fica entre os alunos e o saber; o professor aceita o lugar do morto e no
processo pedagógico tem apenas o papel de acompanhar, de preparar uma situação de
aprendizagem.
Nóvoa (1995) pensa, a partir do triângulo pedagógico de Houssaye
(2007), e ilustra outros processos de análise com foco na formação de professores.
Assim nos faz refletir sobre como os professores são colocados à margem no esquema
educacional estabelecido. E nos propõe o seguinte esquema para refletir:
Triângulo Pedagógico – processo de tecnologização
Relação privilegiada é o saber e os alunos. Professor aceita o lugar do morto.

Professor

Saber
Aluno

Triângulo Político – processo de privatização


Relação privilegiada entre Estado e Comunidade/ Pais. Professor aceita o lugar
de morto.

Professor

Estado Pais e Comunidade

Triângulo do Conhecimento – processo de racionalização do ensino


Relação privilegiada entre o Saber da Pedagogia e o Saber das Disciplinas. O
saber da experiência ocupa o lugar de morto; desvalorização dos professores.
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

É verdade que os professores estão presentes em todos os


discursos sobre a educação. Por uma ou outra razão, fala-se
sempre deles. Mas muitas vezes está – lhes reservado o
“lugar do morto”. Tal como bridge, nenhuma jogada pode
ser delineada sem ter em atenção às cartas que estão em cima
da mesa. Mas o jogador que as possui não pode ter uma
estratégia própria: ele é o referente passivo de todos os
outros. (NÓVOA, 1995, p. 10)

Ao concebermos o homem em sua totalidade, podemos propor uma concepção


de formação que assuma o professor como um ser de saberes e fazeres próprios,
construídos e pautados em relações plurais, em contextos de vida. Não dá para
acreditar que os conceitos de educação, de ensino, de aprendizagem, de
desenvolvimento, de homem, de cultura só serão construídos na universidade, ou em
cursos e encontros específicos, mas em percursos de ações permanentes. Construímos
conceitos na relação com o mundo, em uma relação de troca, de descobertas e de
movimentos curiosos que nos impulsionam para o saber, seja ele um conceito, um
procedimento ou uma atitude. Quebrar modelos de formação baseados na diversidade
do sujeito exige reconhecer o professor como um conhecedor e fazedor de práticas
pedagógicas específicas em um contexto de vida e trabalho.
A ideia de Nóvoa também se relaciona com os pensamentos do grande
educador Freire (1989) que nos aponta que é importante para a construção da
experiência o conhecimento de sua gênese, concebida como um saber democrático.
“Na verdade, se há saber que só se incorpora ao homem experimentalmente,
existencialmente, este é o saber democrático” (FREIRE, 1989, p. 92). Tanto educador
como educando portam saberes que são frutos da experiência; partir de formações que
os considerem é possibilitar uma participação de fato nos processos de
aprimoramentos:

Não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular


do que uma educação que não jogue o educando para as
experiências do debate e da análise dos problemas e que não lhe
propicie condições de verdadeira participação. [...] De teoria que
implica em uma inserção na realidade, em um contato analítico com
o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente,
praticamente. [...] Entre nós, repita-se, a educação teria de ser,
acima de tudo, uma tentativa constante de mudança de atitude. [...]
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

Não seria, porém, com essa educação desvinculada da vida,


centrada na palavra, em que é altamente rica, mas na palavra
“milagrosamente” esvaziada da realidade. (FREIRE, 1989, p. 93 -
94)

Formações de professores gestadas em contextos reais, nutridas de sentidos e


significados para o sujeito, validando a própria realidade, possibilita processos a partir
da experiência e dos percursos vividos, organizando ações formativas que que
viabilizem a compreensão e a discussão de sua realidade fazendo com que docentes
possam avançar criticamente rumo a ações transformadoras. As formações com foco
na experiência exigem ações que fortaleçam a consciência e a criticidade, princípios
fundamentais para a democracia:

[...] que deveria representar, pobre de atividades com que o


educando ganhe a experiência do fazer, que desenvolveríamos no
brasileiro a criticidade de sua consciência, indispensável à nossa
democratização. [...] Quanto mais crítico um grupo humano, tanto
mais democrático e permeável, em regra. Tanto mais democrático,
quanto mais ligado às condições de sua circunstância. (FREIRE,
1989, p. 95)

Em Freire (1989) uma formação se valida com circunstâncias próprias e reais,


o que fortalece o espaço da experiência para o exercício democrático.

Nóvoa: formação docente e a experiência


Nóvoa (2009) aprofunda estudos no que se refere aos dispositivos da formação
dos professores e nos aponta para a importância de gestá-la dentro da profissão, o que
privilegia discussões e reflexões a partir de práticas e experiências próprias dos
professores: “Trata-se, sim, de afirmar que as nossas propostas teóricas só fazem
sentido se forem construídas dentro da profissão, se forem apropriadas a partir de
uma reflexão dos professores sobre o seu próprio trabalho” (NÓVOA, 2009, p.19).
A experiência deve estar contemplada no espaço da formação, o que remete os
professores a pensar e repensar seus saberes e fazeres, bem como a discutir com seus
pares sobre desafios reais de seu cotidiano:
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

Pat Hutchings e Mary Taylor Huber (2008) têm razão quando


referem à importância de reforçar as comunidades de prática, isto é,
um espaço conceptual construído por grupos de educadores
comprometidos com a pesquisa e a inovação, no qual se discutem
ideias sobre o ensino e aprendizagem e se elaboram perspectivas
comuns sobre os desafios da formação pessoal, profissional e cívica
dos alunos. (NÓVOA, 2009, p.21)

O conceito “comunidades de prática”, usado por Nóvoa (2009), fortalece a


ideia da casa comum das práticas, da participação entre os pares no processo de
formação docente e nos aponta para a validação da experiência com foco no
reconhecimento da identidade profissional, aspectos a se considerar em um trabalho
reflexivo e que propõe transformações pedagógicas numa trajetória que envolve o ser
e o estar na profissão:

Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de


prática, reforça-se um sentimento de pertença e de identidade
profissional que é essencial para que os professores se apropriem
dos processos de mudança e os transformem em práticas concretas
de intervenção. É esta reflexão coletiva que dá sentido ao seu
desenvolvimento profissional. (NÓVOA, 2009, p.21)

A teoria da pessoalidade, segundo Nóvoa, precisa ser construída no bojo da


teoria da profissionalidade; identidades e práticas pedagógicas resultam em
experiências da docência:

Trata-se de construir um conhecimento pessoal (um


autoconhecimento) no interior do conhecimento profissional e de
captar o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz
técnica ou científica. Toca-se aqui em qualquer coisa de indefinível,
mas que está no cerne da identidade profissional docente. (NÓVOA,
2009, p. 22)

O professor aprende, ao longo de sua vida pessoal e profissional, e as


experiências são geradas neste percurso; ações assumidas em sua concretude
evidenciam o modo de pensar e de fazer do professor e contribuem para o
autoconhecimento. A experiência, no centro da formação, viabiliza um processo de
aprendizagem de maneira contínua e permanente, porém sabemos que inúmeros
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

programas de formação organizam ações que não dialogam com a prática e a


experiência do professor, o que inviabiliza aprimoramentos reais:

Muitos programas de formação contínua têm-se revelado inúteis,


servindo apenas para complicar um quotidiano docente já de si
fortemente exigente. É necessário recusar o consumismo de cursos,
seminários e ações que caracteriza o atual mercado da formação
sempre alimentado por um sentimento de desatualização dos
professores. A única saída possível é o investimento na construção
de redes de trabalho coletivo que sejam o suporte de práticas de
formação baseadas na partilha e no diálogo profissional. (NÓVOA,
2009, p.23)

Trabalho coletivo, investimentos de formações em rede legitimam lugares


importantes para o exercício da docência; colocar o professor para discutir com seus
pares é uma atividade ainda a se fortalecer nos programas de formação:

Os lugares da formação podem reforçar a presença pública dos


professores. Tem-se alargado o interesse público pela coisa
educativa. Mas, paradoxalmente, também aqui se tem notado a falta
dos professores. Fala-se muito das escolas e dos professores. Falam
os jornalistas, os colunistas, os universitários, os especialistas. Não
falam os professores. Há uma ausência dos professores, uma espécie
de silêncio de uma profissão que perdeu visibilidade no espaço
público. (NÓVOA, 2009, p.23)

Dar escuta para a voz do agente principal da formação, “o professor”, é


colocá-lo no centro de sua própria formação, garantir suas experiências construídas
durante o percurso profissional. É a partir do seu modo de ver, ser e fazer a prática
pedagógica que devemos refletir e avançar nos propósitos pedagógicos. Nóvoa (2009,
p. 2) afirma que “[...] há a necessidade de uma formação de professores construída
dentro da profissão”. Ele, ainda, indica propostas de ações para a formação docente e
enumera cinco, que se referem à prática, à profissão, à pessoa, à partilha e ao público.
Estas propostas viabilizam o pensar crítico, considerando o percurso próprio de cada
professor. Para trabalhar com a formação dos professores é necessário que se conheça
a identidade e o trabalho daqueles que estão em formação. O aprimoramento do
conhecimento se dá nos contextos das ações já assumidas e não no vazio de um
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

discurso. E ninguém pensa no vazio, mas antes na aquisição e na compreensão do


conhecimento (Nóvoa, 2009).
Colocar na formação do professor discussões que envolvam a cultura
profissional requer o desenvolvimento de ações que envolvam as suas experiências
em relação à sua compreensão sobre instituição educativa e aos contextos de diálogo
existentes neste âmbito:

Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar,


integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais
experientes. É na escola e no diálogo com os outros professores que
se aprende a profissão. O registro das práticas, a reflexão sobre o
trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o
aperfeiçoamento e a inovação. São estas rotinas que fazem avançar
a profissão. (NÓVOA, 2009, p. 30)

Percebemos nas ideias de Nóvoa a preocupação por contextualizar realidades


institucionais e pessoais, como aspectos a se pensar e discutir coletivamente. O trato
pedagógico que se estabelece na experiência, no percurso docente, o autor indica
como algo a se estabelecer na relação com o aluno, no próprio exercício da docência,
na condução do discente para um processo de evolução em sua aprendizagem, e de
ensino, em que se devem considerar as duas dimensões, pessoais e profissionais.
Saber conduzir alguém para a outra margem, o conhecimento, não está ao alcance de
todos. No ensino, as dimensões profissionais cruzam-se sempre, inevitavelmente, com
as dimensões pessoais (NÓVOA, 2009). Além das dimensões pessoais da formação se
faz de valia considerar as dimensões coletivas e colaborativas, o que fortalece o
trabalho em equipe nos contextos dos projetos desenvolvidos nas instituições:

Os novos modos de profissionalidade docente implicam um reforço


das dimensões coletivas e colaborativas, do trabalho em equipa, da
intervenção conjunta nos projetos educativos de escola. O exercício
profissional organiza-se, cada vez mais, em torno de “comunidades
de prática”, no interior de cada escola, mas também no contexto de
movimentos pedagógicos que nos ligam a dinâmicas que vão para
além das fronteiras organizacionais. (NÓVOA, 2009, p.31)
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

A experiência do professor abre espaço para se pensar a profissionalidade e o


compromisso social assumido no exercício do ofício:

Podemos chamar-lhe diferentes nomes, mas todos convergem no


sentido dos princípios, dos valores, da inclusão social, da
diversidade cultural. Educar é conseguir que a criança ultrapasse as
fronteiras que, tantas vezes, lhe foram traçadas como destino pelo
nascimento, pela família ou pela sociedade. Hoje, a realidade da
escola obriga- nos a ir além da escola. Comunicar com o público,
intervir no espaço público da educação, faz parte do ethos
profissional docente. (NÓVOA, 2009, p. 31)

Vimos neste capítulo uma importante discussão sobre a formação, a


experiência, elencando contribuições e conceitos de Nóvoa e diálogos com Freire, o
que contribui para pensarmos a experiência numa perspectiva crítica docente. Os
conhecimentos sobre a experiência se complementam e, assim, articulamos a temática
para compreendermos a formação em seus diferentes aspectos.

Considerações Finais
Os estudos sobre formação docente e a experiência, a partir das contribuições
de Antonio Nóvoa e diálogos com Freire, permitem afirmar que a experiência
concreta é construída nos espaços profissionais e requer a reflexão e a crítica a partir
da própria identidade e do próprio fazer. Nóvoa defende a formação dentro da
profissão, com reflexões sobre o próprio fazer e pensar pedagógico, o que fortalece a
importância do conhecimento pedagógico.
Pautados por esses estudos, conceituamos a experiência como uma ação que
requer reflexão, sensibilidade, sentidos, criticidade, exercício de autoconhecimento e
autoria, ações que singularizam o indivíduo; para construir a experiência o sujeito
precisa ser tocado, afetado pela situação, o que o fará buscar explicações,
conhecimentos e aprofundamentos.

Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989.
1.
ABREU SOUZA, Ana Cristina Gonçalves. Formação docente e a experiência: um diálogo com Antonio
Nóvoa, p:15-27. In: Marta Rovai; Marcio D de C e Silva. (Orgs.). Educação, gênero e política: debates
contemporâneos.. 1ed.São Paulo: Mentes Abertas, 2020, v. 01, p. 01-182.

NÓVOA, Antonio. Professores, imagem de um futuro presente. Lisboa: Educa,


2009.
NÓVOA, Antonio (Org.). Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1995.
_______Vidas de professores. 2. ed., Porto: Porto Editora, 1995a.
_______Os professores e a sua formação. Porto: Dom Quixote, 1992.
NÓVOA, Antonio; FINGER Matthias. (Org.). O método (auto) biográfico e a
formação. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

Você também pode gostar