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A natureza cíclica de criação, manutenção e morte, que para os povos antigos era
associada ao feminino, foi sendo tolhida, restando apenas a faceta numinosa e
passiva do arquétipo. O lado associado à morte foi completamente reprimido. Isso é
muito evidente na transformação das imagens míticas femininas. Inúmeras Deusas
escuras foram banidas de cultos e religiões, isso quando o feminino como um todo não
era completamente reprimido. O feminino ligado ao caos (palavra estava que em sua
etimologia grega significava originalmente matéria primal e não desordem) e ao mundo
subterrâneo foi apagado nas religiões patriarcais, que preservava apenas o lado
sublime e passivo. Sendo assim, o aspecto feminino arquetípico perdeu o lado telúrico
natural. A faceta ligada a morte e transformação tornou-se um conteúdo sombrio. E
quando ele aparece é costumeiramente visto como uma ameaça.
No Ocidente, Kali foi recebida como uma Deusa ligada especialmente à destruição. O
patriarcado muitas vezes tende a destacar certos aspectos de Kali que se encaixam
em estereótipos de feminilidade agressiva, destrutiva e temível. No entanto, conforme
se aprofunda no estudo sobre a história da Deusa e de seus mitos, percebe-se que ela
está relacionada ao feminino em toda a sua plenitude, incluindo o princípio ligado à
morte e à transformação. Para a consciência patriarcal, essa faceta não é bem-vinda
e, por isso, é reprimida ou demonizada. Os aspectos mais suaves, compassivos e
maternos de Kali são subestimados ou até mesmo rejeitados por não se encaixarem
nesses estereótipos patriarcais, cabendo os aspectos luminosos apenas às figuras
femininas classicamente submissas e servis.
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A influência do patriarcado pode ser vista também no Oriente. O Skanda Purana
associa a origem de Kali a Parvati, que tinha uma aparência escura, e por isso Shiva
costumava caçoar dela de vez em quando. Um dia, depois de ser chamada duas
vezes de Kali (“a Negra”), Parvati abandonou Shiva e disse que não retornaria a
menos que se livrasse de sua aparência escura. Distante de Shiva, ela se submeteu a
um ascetismo rigoroso e com a ajuda de Brahma, Parvati foi capaz de se desfazer de
sua camada externa negra, e de dentro emergiu sua forma dourada. Transformada em
Gauri (a dourada), ela retornou a Shiva.
O misticismo encobre não apenas sua forma, mas também a origem de Kali. Há
indícios de evidências de que o culto da deusa Kali começou no Paleolítico, há mais
de 11.000 anos. Já na tradição hindu, ocorrem alusões a Kali em alguns Puranas
antigos. No entanto, a visão mais elaborada a respeito de sua origem, aparência,
personalidade, poder e feitos aparece no Devi Mahatmya, do século V ou VI. Nesta
narrativa, as deusas enfrentam uma força demoníaca poderosa chamada Raktabija,
que tinha uma habilidade única: sempre que uma gota de seu sangue tocava o chão,
um clone idêntico a ele aparecia, tornando-o praticamente invencível. Frente a esse
desafio, Kali surgiu do terceiro olho de Durga durante a batalha, como a sua
manifestação mais feroz e destrutiva, sendo capaz de engolir os clones de Mahisasura
que se formam de suas gotas de sangue, impedindo assim que ele se regenere
infinitamente. Kali personifica a ferocidade e a habilidade de aniquilar o mal sem
piedade e é venerada como a Deusa que garante sucesso na guerra e elimina os
inimigos.
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cabeças cortadas que adorna o pescoço de Kali representa a conquista do ego, a
transcendência das identidades individuais, simbolizando a libertação das ilusões e
apegos que nos aprisionam e lembrando-nos da impermanência da existência física. O
cinto de braços cortados usado por Kali simboliza seu poder de romper os apegos e
remover os obstáculos que impedem o crescimento espiritual. Representa também a
necessidade de abandonar os desejos egoístas, ações egocêntricas e tendências
destrutivas para abraçar um estado superior de consciência.
Referências
JAIN, P. C.; DALJEET, Dr. Kali: a mulher mais poderosa do universo, 2009. Disponível
em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5304088/course/section/5969805/Mito%20
da%20Deusa%20Kali.pdf. Acesso em: 23 de julho de 2023.
KUPFER, Pedro. Kālī: Deusa Mãe, Ícone Feminista, 2023. Disponível em:
https://www.yoga.pro.br/kali-mae-divina-icone-feminista/ Acesso em: 23 de julho de
2023.
OLIVEIRA, Talita L. Psicologia Junguiana na contemporaneidade – a Deusa Kali como
inspiração para integração da sombra no feminino arquetípico, 2021. IJEP – Instituto
Junguiano de Ensino e Pesquisa.
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