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Sagrado Feminino – Kali

A natureza cíclica de criação, manutenção e morte, que para os povos antigos era
associada ao feminino, foi sendo tolhida, restando apenas a faceta numinosa e
passiva do arquétipo. O lado associado à morte foi completamente reprimido. Isso é
muito evidente na transformação das imagens míticas femininas. Inúmeras Deusas
escuras foram banidas de cultos e religiões, isso quando o feminino como um todo não
era completamente reprimido. O feminino ligado ao caos (palavra estava que em sua
etimologia grega significava originalmente matéria primal e não desordem) e ao mundo
subterrâneo foi apagado nas religiões patriarcais, que preservava apenas o lado
sublime e passivo. Sendo assim, o aspecto feminino arquetípico perdeu o lado telúrico
natural. A faceta ligada a morte e transformação tornou-se um conteúdo sombrio. E
quando ele aparece é costumeiramente visto como uma ameaça.

No entanto, em algumas tradições a face escura da Deusa sobreviveu. Na Índia, a


Grande Mãe Kali, a Deusa irada dos campos crematórios, é venerada até os dias de
hoje pelos hindus. Kali personifica os três aspectos do ato cósmico, que se revelam na
criação, na preservação e na aniquilação. Dentre as diversas representações desse
aspecto sombrio do feminino, a Deusa Kali possui uma simbologia muito rica que tanto
fascina quanto assusta. O terror que sua imagem causa talvez seja pela influência da
sociedade patriarcal que nega qualquer referência a figuras selvagens, especialmente,
femininas. Porém, em sua representação mais popular, ela está quase nua, com uma
enorme língua para fora, segurando armas e pisando sobre Shiva, emitindo uma força
poderosa e arrebatadora. Além disso, sua aparência escura, desperta o mistério
existente em sua essência. E, assim, é uma das divindades hindus mais populares,
remetendo a uma imagem muito antiga da Deusa (muito provavelmente de tribos
anteriores à própria tradição védica e ao hinduísmo de um modo geral) mas que ainda
assim, é cultuada na contemporaneidade.

Relacionada com a figura da Mãe Terrível, geralmente, é retratada em cor negra ou


escura, com cabelos longos e desgrenhados, e uma face repulsiva. Às vezes ostenta
um ventre proeminente e outras uma magreza como a da morte. Ela é ao mesmo
tempo sensual e ameaçadora, assustadora e protetora. Seus adornos são um cinto de
braços humanos, um colar com cabeças decepadas cortados, brincos com cadáveres
de crianças e braceletes de serpentes. Com a língua proeminente e os olhos
arregalados, mostra sua natureza desafiadora e enérgica. Ela tem longas presas
afiadas, e longas e feias unhas, um terceiro olho na testa que emite fogo, uma língua
esticada e uma boca suja de sangue que, quando se expande, não apenas engole
multidões de demônios, mas que abrange desde as profundezas do oceano com sua
parte inferior até o fim dos céus, com a superior. É adorada no período de lua negra e
em torno de piras funerárias.

No Ocidente, Kali foi recebida como uma Deusa ligada especialmente à destruição. O
patriarcado muitas vezes tende a destacar certos aspectos de Kali que se encaixam
em estereótipos de feminilidade agressiva, destrutiva e temível. No entanto, conforme
se aprofunda no estudo sobre a história da Deusa e de seus mitos, percebe-se que ela
está relacionada ao feminino em toda a sua plenitude, incluindo o princípio ligado à
morte e à transformação. Para a consciência patriarcal, essa faceta não é bem-vinda
e, por isso, é reprimida ou demonizada. Os aspectos mais suaves, compassivos e
maternos de Kali são subestimados ou até mesmo rejeitados por não se encaixarem
nesses estereótipos patriarcais, cabendo os aspectos luminosos apenas às figuras
femininas classicamente submissas e servis.

Pública
A influência do patriarcado pode ser vista também no Oriente. O Skanda Purana
associa a origem de Kali a Parvati, que tinha uma aparência escura, e por isso Shiva
costumava caçoar dela de vez em quando. Um dia, depois de ser chamada duas
vezes de Kali (“a Negra”), Parvati abandonou Shiva e disse que não retornaria a
menos que se livrasse de sua aparência escura. Distante de Shiva, ela se submeteu a
um ascetismo rigoroso e com a ajuda de Brahma, Parvati foi capaz de se desfazer de
sua camada externa negra, e de dentro emergiu sua forma dourada. Transformada em
Gauri (a dourada), ela retornou a Shiva.

O misticismo encobre não apenas sua forma, mas também a origem de Kali. Há
indícios de evidências de que o culto da deusa Kali começou no Paleolítico, há mais
de 11.000 anos. Já na tradição hindu, ocorrem alusões a Kali em alguns Puranas
antigos. No entanto, a visão mais elaborada a respeito de sua origem, aparência,
personalidade, poder e feitos aparece no Devi Mahatmya, do século V ou VI. Nesta
narrativa, as deusas enfrentam uma força demoníaca poderosa chamada Raktabija,
que tinha uma habilidade única: sempre que uma gota de seu sangue tocava o chão,
um clone idêntico a ele aparecia, tornando-o praticamente invencível. Frente a esse
desafio, Kali surgiu do terceiro olho de Durga durante a batalha, como a sua
manifestação mais feroz e destrutiva, sendo capaz de engolir os clones de Mahisasura
que se formam de suas gotas de sangue, impedindo assim que ele se regenere
infinitamente. Kali personifica a ferocidade e a habilidade de aniquilar o mal sem
piedade e é venerada como a Deusa que garante sucesso na guerra e elimina os
inimigos.

Kali personifica os três aspectos do ato cósmico, que se revelam na criação, na


preservação e na aniquilação. Ela faz gestos que asseguram a ausência de medo
(abhaya) e benevolência (varada), definindo perpetuamente sua disposição mental
mais profunda. Porém, em contraste, a aparência da Deusa inspira sentimentos de
espanto e terror, espalhando a morte com a espada que carrega em uma de suas
mãos e se alimentando com o sangue que jorra dos corpos que mata. Os instrumentos
de destruição, para ela, são meios de preservação.

Na sua iconografia, enquanto o cadáver representa a não-existência relativa ou o


universo destruído, a figura de Kali unida a Shiva ou ao seu cadáver (Shava) simboliza
o contínuo processo de criação. O universo manifesto é aquele que é envolto pelo
tempo, mas quando Kali, o Poder do Tempo, destrói o universo manifesto, esse véu se
ergue e o Tempo, assim como Kali, se torna desnudo, um fenômeno indicado pela sua
nudez.

Kali não apenas é uma divindade de natureza independente, mas é também


indomável, ou melhor, ela domina tudo. Ela é poderosa como Shiva, foge às
convenções e fica mais à vontade quando reside à margem da sociedade. Seu estilo
de vida não tem aspectos de nobreza ou do modo de vida da elite. Ela é consorte ou
companheira de Shiva, mas não tem o jeito meigo e humilde de Parvati.

A tez escura de Kali simboliza a dissolução das dualidades e a transcendência das


noções convencionais de bem e mal. Representa a natureza ilimitada do divino, sem
limites pelas construções e julgamentos sociais. A expressão feroz de Kali, com
presas expostas e língua proeminente, incorpora sua determinação implacável e
destemor diante da adversidade. Ela simboliza seu poder de aniquilar a ignorância e
destruir o ego, possibilitando a transformação espiritual e a libertação. O colar de

Pública
cabeças cortadas que adorna o pescoço de Kali representa a conquista do ego, a
transcendência das identidades individuais, simbolizando a libertação das ilusões e
apegos que nos aprisionam e lembrando-nos da impermanência da existência física. O
cinto de braços cortados usado por Kali simboliza seu poder de romper os apegos e
remover os obstáculos que impedem o crescimento espiritual. Representa também a
necessidade de abandonar os desejos egoístas, ações egocêntricas e tendências
destrutivas para abraçar um estado superior de consciência.

Kali é frequentemente retratada com múltiplos braços, cada um segurando várias


armas ou objetos simbólicos. Esses braços simbolizam seu poder ilimitado e
capacidade de realizar várias tarefas, representando sua capacidade de auxiliar
devotos em diversos aspectos da vida. Os objetos em suas mãos possuem
significados específicos, como a espada (discernimento e libertação), o tridente
(equilíbrio e transformação) e o lótus (pureza espiritual).

Em algumas representações, Kali é mostrada de pé ou dançando sobre o peito do


Senhor Shiva, que está deitado imóvel sob ela, muitas vezes com o pênis ereto. Isso
simboliza a união inseparável de Shiva (o divino masculino) e Shakti (o divino
feminino). Representa a interdependência e harmonia entre as forças yin e yang da
criação.

Jai Mata Kali!

Texto de Adriana Sodero

Referências
JAIN, P. C.; DALJEET, Dr. Kali: a mulher mais poderosa do universo, 2009. Disponível
em:https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5304088/course/section/5969805/Mito%20
da%20Deusa%20Kali.pdf. Acesso em: 23 de julho de 2023.
KUPFER, Pedro. Kālī: Deusa Mãe, Ícone Feminista, 2023. Disponível em:
https://www.yoga.pro.br/kali-mae-divina-icone-feminista/ Acesso em: 23 de julho de
2023.
OLIVEIRA, Talita L. Psicologia Junguiana na contemporaneidade – a Deusa Kali como
inspiração para integração da sombra no feminino arquetípico, 2021. IJEP – Instituto
Junguiano de Ensino e Pesquisa.

Pública

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