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Neste artigo, debruço-me sobre as relações entre imagens (em especial murtis),
corpos e pessoas a partir do fenômeno da manifestação (o que poderia se chamar, em
uma primeira e provisória aproximação, de "possessão") a partir de observações
realizadas no templo hindu dedicado à deusa Kali de Blairmont (Berbice, Guiana).
Murtis são as formas materiais tomadas pelas divindades que estão dispostas - e são
consagradas - em altares (o que poderíamos traduzir, um tanto precariamente) como
"estátuas".
Antes de apresentar elementos etnográficos, é preciso debruçar-se rapidamente
sobre as noções de forma e manifestação, bem como tratar do culto à deusa Kali na
Guiana.
Forma-murti
Transplantado para a Guiana por indianos e indianas que se deslocaram para o
país na condição de trabalhadores(as) contratados(as) entre 1838-1917 após a abolição
da escravidão negra no Caribe, o culto à Kali (Kali worship ou Kali Puja) envolve a
"possessão" (ou manifestação, nos termos nativos), o sacrifício de animais e práticas de
cura de doenças causadas por feitiços, espíritos e/ou por outros seres malignos - isto é,
tratamentos realizados pelas divindades hindus, que se manifestam nos corpos de alguns
especialistas religiosos, em pessoas que sofrem com algo (depressão, infertilidade, má-
sorte, feitiçaria, etc.). O culto a Kali se caracteriza pela realização das pujas, ou seja, as
manifestações de crença e submissão às divindades hindus por meio de preces,
reverências e oferendas. Eventualmente, rituais são performados por sacerdotes e
marlos (i.e., aqueles que passaram por treinamento e manifestam uma ou mais
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divindades hindus) em âmbito doméstico, como é o caso de locais nos quais espíritos
habitam.
No templo onde realizei minhas observações, 17 divindades hindus são
cultuadas, seis das quais se manifestam em seus veículos humanos com mais
frequência. Os altares de deusas e deuses estão distribuídos em 11 templos, conforme
pode ser visualizado no croqui abaixo. A cada domingo, realiza-se o que se chama de
função, ou seja, o conjunto de ritos nos quais se faz puja (ofertar) a essas 17 divindades,
cada uma delas sendo uma forma de Kali. No anexo deste texto há informações e fotos
dessas divindades.
Detalhe Templos
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formas desse Ser Supremo, sendo diferentes e iguais a este – daí a clássica sentença
hindu segundo a qual todas as divindades são o mesmo.
Esse princípio geral é (re)atualizado de modo diferenciante, em se tratando desta
ou daquela divindade. Por exemplo, os membros de Blairmont consideram o deus Khal
Bhairo uma forma sombria [dark fork] do deus Shiva, e não de Kali. Em verdade, nunca
escutei a sentença “Khal Bhairo é uma forma de Kali”, ainda que essas duas divindades
se associem através de outras relações. Do mesmo modo, e prosseguindo com o
exemplo, Khal Bhairo não é singular. Ao contrário, ele pode assumir distintas formas:
sombrias, ferozes, vorazes, terríveis, perversas ou, no extremo oposto, amenas. Em
certo sentido, todas as divindades possuem formas terríveis e benignas, mas algumas
delas, como Khal Bhairo, são pensadas como mais próximas a um domínio ‘extremo’
desse ‘continuum’, caracterizando-se por um comportamento disruptivo, implacável e
feroz; a outras, se atribuem temperamentos dóceis, como é o caso da deusa Lakshmi.
Khal Bhairo pode, porventura, assumir uma forma benigna, e Lakshmi, uma maligna,
mas determinadas divindades tendem a se manifestar de formas específicas, com
atributos que tendem a englobar outros atributos.
As manifestações das divindades nos corpos dos humanos não são homogêneas,
pois elas sempre se realizam em determinados níveis, algo expresso pelas noções de
manifestação mais plena, mais profunda ou mais pura. Esse uso de advérbios articula-
se a noções de pureza, devoção e foco. Quanto mais regrada a vida de um devoto mais
profunda, pura ou plena será uma manifestação.
Assim, certos indivíduos manifestam várias formas das divindades, em distintos
estágios e níveis, e às vezes é difícil determinar qual deus, ou deusa, está presente neles,
e em qual medida estão presentes (mais ou menos plenamente). Ademais,
invariavelmente espíritos se manifestam nos corpos das pessoas e se fazem passar por
divindades. Com efeito, sinais são necessários para certificar exatamente quem, ou o
que, se manifesta nas pessoas. Mesmo quem manifesta regularmente pode adaptar ou
ser afetado por uma força maligna, o que pode gerar efeitos e transformações nas
manifestações.
Começo a me aproximar das temáticas a serem exploradas aqui notando que as
murtis funcionam, por assim dizer, como elementos perceptivos fundamentais para
determinar quem ou o que se manifesta nos ‘médiuns’.
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De acordo com Eck (1998:38), em sânscrito, murti significa “anything which has definite shape and
limits, a form, body, figure, an embodiment, incarnation, manifestation. Thus, the murti is more than
likeness; it is the deity itself taken form" [grifos no original].
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de imagem abarca uma grande variedade de coisas. Como notou Mitchell, há imagens
gráficas, ópticas, perceptivas, mentais ou verbais:
"Nós falamos de imagens, estátuas, ilusões óticas, mapas, diagramas, sonhos,
alucinações, espetáculos, projeções, poemas, padrões, memórias e mesmo de ideias
como imagens, e a simples diversidade dessa lista poderia fazer com que qualquer
tentativa de apresentar um conhecimento sistemático e unificado fosse impossível"
(Mitchell, 1987:9).
Para Mitchell, não se trata tanto de definir o que é ou não uma imagem, mas de
explorar as potencialidades das definições existentes. Seguindo Latour (2008:114),
imagens, sejam elas obras de arte, inscrições ou figuras, podem ser vistas como
"mediadores" para "acessar outras coisas". Nesse sentido, as contribuições de Taussig
(1993a) oferecem pistas interessantes.
Ao definir a "faculdade mimética" enquanto a "natureza que a cultura usa para
criar a segunda natureza" - a faculdade de copiar, imitar, fazer modelos, explorar
diferenças, de produzir e tornar-se outro -, Taussig chama a atenção para as histórias
contidas nessa faculdade e suas relações com a "alteridade e com a representação do
outro" (:XIV). O "poder mágico da replicação", diz, deriva do fato de "a representação
compartilhar ou dispor do poder daquilo que é representado" (:13), da "capacidade da
cópia afetar o original a ponto de adquirir as propriedades daquilo representado" (:47-
48). Debruçando-se sobre as formulações de Frazer acerca da magia, Taussig (:47-57)
cita uma série de exemplos que evidenciam a operação conjunta das leis de similaridade
e de contato nas tentativas de manipular a realidade através de imagens. Para
compreender o que é a imagem de alguma coisa, é preciso romper com aquilo que
chamou (:51-57) de "tirania da noção visual de imagem". Ou seja, objetos rituais, gestos
ritualísticos, performances e substâncias impregnam-se nas imagens, além de qualidades
não tangíveis cheiros, náuseas, odores, sons, percepções sensoriais alternativas, etc2. -
estarem associadas aos modos pelos quais se criam experiências com as. Assim,
chamar a atenção para o nãovisual consiste em enfatizar, justamente, "o impacto
corporal" das imagens (:58).
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Esses aspectos também foram explorados no livro sobre o xamanismo (Taussig, 1987b) e na obra na
qual trata, dentre outras coisas, da história da percepção das cores no Ocidente, manifesta na história
colonial, e dos impactos corporais das cores, cuja percepção não se limita a uma mera atividade da retina
(Taussig, 2009).
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A neem, ou margosa, é considerada uma árvore sagrada e é nativa da Índia. É um dos principais
instrumentos de cura utilizados pelas divindades.
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estranha por outras mulheres. Assim, mesmo que essa senhora estivesse próxima ao
altar de Nargura, ninguém julgou que esse deus estava se manifestando nela. A
proximidade entra uma murti e uma pessoa manifestada nem sempre é tomada como
uma evidência indicial da manifestação.
Não obstante, há certas regularidades na ocorrência de manifestações durante o
serviço. Via de regra, quem começa a manifestar o faz no templo cinco e segue
manifestado(a) no restante do serviço, com o importante detalhe de que quando se faz
puja (oferta) à divindade seguinte, a manifestação também se altera. Deste modo, as
manifestações geralmente acontecerão quando as pessoas estão posicionadas em frente
às murtis de certas divindades, mas não de outras, propiciando um drama intenso de
imagens no espaço. O padrão é que elas comecem no templo cinco e se encerrem no
templo oito, recomeçando novamente, após sua interrupção no templo de Nargura, no
grande templo. O gráfico abaixo ilustra esse movimento.
O serviço segue a ordem numérica retratada abaixo, sendo brevemente
interrompido após a realização das pujas para Nargura. Os devotos almoçam e as ofertas
são retomadas no grande templo, encerrando-se no templo do deus Khal Bhairo. Não à
toa, enquanto se faz puja para Mariamma durante o serviço, alguns sacerdotes irão, no
interior de seu altar, cantar em frente a sua murti com o utky (tambor invocatório).
Reiniciado o serviço, as manifestações irrompem de novo, prosseguindo até o templo
onze, último no qual se faz o serviço.
Serviço e Manifestação
Templo 1: Dharti
Templo 2: Suraj Narayan
Templo 3: Hanuman, Krishna e Ganesh
Templo 4: Shiva, Naag e Lingam
Templo 5: Ganga
Templo 6: Kateri
Templo 7: Sangani
Templo 8: Munispren
Templo 9: Nargura
Templo 10: Mariamma, Durga, Lakshmi e
Sarawasti
Templo 11: Khal Bhairo
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Manifestando-se nos corpos de várias pessoas, cada um delas manifestando uma ou mais formas das
divindades, de modo mais ou menos pleno.
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Os marlos podem abrir seus olhos para chamar a atenção das pessoas ou quando desejam contemplar
alguém. Salvo contrário, esse gesto é tido como um sinal de que suas manifestações estão ficando mais
fracas [becoming weaker].
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A visão das deotas é poderosa e as pessoas certamente são afetadas por distintas
ordens de percepção visual. A frase repetida todos os finais de semana por
manifestações de Mariamma - eu vejo tudo - não deve ser tomada de forma literal. O
que está em jogo aí é o conhecimento ilimitado da deusa, cujo poder a faculta ver até
mesmo as disposições internas das pessoas (a sinceridade da devoção, por exemplo).
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Por isso mesmo, os efeitos de ser visto não necessariamente são benéficos (Babb, 1981,
388; 392; Mines, 2005:133).
É indispensável ressaltar que ninguém em Blairmont diz - como eu próprio fazia
inicialmente - 'eu vou ir falar com tal divindade'. Por mais que haja grande expectativa
quanto às revelações das manifestações, quando alguém pretende encontrar um deus ou
uma deusa, sempre se diz: eu vou ver a deota X. Se uma manifestação deseja interagir
com um(a) devoto(a), ela se expressa da seguinte forma: eu quero ver tal pessoa. E caso
alguém transmita essa ordem a outrem, o comunicado é: a Mother quer vê-lo.
Igualmente importante é que as murtis em geral são referidas pelos nomes das
divindades. Frases como pegue a guirlanda de Krishna, nós temos um novo Sangani e
Mariamma está linda são muito mais corriqueiras do que pegue a guirlanda da murti de
Krishna, nós temos uma nova murti de Sangani ou a murti de Mariamma está linda.
Antes da invocação, os marlos adentram nos templos para rezar e pedir bênçãos,
sempre olhando fixamente para as murtis, para serem vistas por elas. Guirlandas que as
adornam são transferidas para aqueles e por meio dos ritos invocatórios, as divindades
se distribuem: deuses nas murtis tornam-se murtis em humanos. Os marlos são, em
certo sentido, eles mesmos formas das divindades que assumem outras formas,
particularmente em seu principal instrumento de cura, o ramo de folhas da árvore neem.
Isto é, e como dizem incansavelmente meus interlocutores, Kali toma a forma de neem
para curar. Assim, pessoas e coisas se fundem, transformando estados corporais e
arranjos sociais (Cf., Palmié, 2002:169). Se tudo se passa ‘na sombra’ das murtis, como
destacou McNeal, é necessário atentar para os impactos corporais das imagens.
Em Blairmont, as divindades ‘corporificam-se’ duplamente: nas murtis e nos
humanos, provocando transformações no espaço, nos objetos, nas pessoas e nas próprias
imagens. A partir daí, poder-se ia perguntar: o corpo dos marlos não seria uma
‘imagem-em-movimento’ das murtis? E os objetos portados pelas manifestações, como
o ramo de folhas neem, não seriam suas extensões corporais? Os altares seriam
confinados ao interior dos templos ou então se estenderiam para os marlos e destes para
aqueles em busca de cura?
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À medida que os devotos depositam suas ofertas sob os pés das murtis, as
pessoas designadas para cuidar dos altares devem se certificar da disposição correta,
simétrica e esteticamente aprazível das ofertas. Esse ordenamento dos altares estende-se
por praticamente toda a manhã, encerrando-se poucos minutos antes do início do
serviço, pois o acúmulo de ofertas faz com que os altares fiquem um tanto bagunçados.
Assim, os guardiões dos altares não apenas instruem os devotos, como reordenam,
reajustam e rearrumam todas as oferendas, cortando as frutas e aglutinando tudo com
esmero. Como mencionei acima, algumas pessoas têm por atribuição específica cuidar
dos altares de Mariamma e Khal Bhairo. O mesmo sucede com os templos de Ganga,
Kateri, Sangani e Munispren, os quais são resguardados por um conjunto de indivíduos,
em especial por marlos e por aqueles com devoção a fazer. A arrumação dos demais
altares, por sua vez, é feito em sistema de rodízio.
Todas as murtis devem ser adornadas com guirlandas feitas de flores frescas
antes de o serviço começar. O templo deve obrigatoriamente ofertar ao menos uma
guirlanda para Mariamma, sendo essa uma atribuição específica de uma pessoa. As
demais divindades são adornadas com guirlandas feitas pelos próprios devotos, que não
podem, aliás, colocá-las diretamente nas murtis, devendo alcançá-las a um assistente.
Divindades mais 'populares', ou aquelas envolvidas com tratamentos terapêuticos, como
Ganga, Kateri, Sangani e Khal Bhairo, sempre têm muitas guirlandas à disposição, ao
passo que os outros deuses recebem menos ofertas desse tipo, ou mesmo nenhuma. Ao
cabo, as guirlandas são redistribuídas pelas murtis, independentemente de terem sido
feitas para tal ou qual divindade.
As roupas, os colares, o parsad (conjunto de ofertas) e os altares não são
ordenados meramente por questões estéticas, mas também porque tal ordenamento é
uma condição indispensável para as divindades se manifestarem. Por certo, os sáris
trajados pelas deusas, por exemplo, são avaliados a partir de critérios de beleza.
Contudo, os 'objetos' fundamentais de adornação e decoração são os templos e as
murtis, onde os deuses e as deusas se instalam antes de estenderem seu shakti (poder)
aos corpos dos humanos, que, por sua vez, devem se manter fundamentalmente puros,
não adornados. Em meio a tudo isso, uma série de transações tem lugar.
Aprendi em Blairmont que os cânticos entoados durante o serviço não se
limitam a saudar e glorificar as divindades, consistindo, incluso, em um modo de
convidá-las a comerem e partilharem [share] as ofertas dispostas nos altares. Nesse
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É preciso ressaltar: na superfície, os alimentos e doces continuam os mesmos antes e durante o serviço.
Porém, os alimentos se tornam sobras justamente porque seu interior foi consumido, mesmo que sua
aparência seja a mesma.
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fundamental é que uma vez que o parsad sempre é consumido, as "fronteiras entre
divindade e humanidade se dissolvem" (Nabokov, 2000:9). De acordo com a
antropóloga francesa:
"Worshipers make offerings of food, cloth, and incense and receive parsad in exchange,
the deity's leftover food that is now imbued with his or her more purified and more
powerful 'substances'. Although these transactions are often said to establish unequal,
even hierarchical relations between the parties, they can create powerful ontological
transformations (Marriott 1976: 111-12). Since parsad is always consumed, worshipers
absorb the deity's essence into their bodily persons. In these models, then, Hindu puja
accomplishes a sensual incorporation of divine 'grace' into the person" (Nabokov,
2000:9).
Ingerir alimentos depois de eles terem sido consumidos pelas murtis consiste em
uma espécie de combinação entre sentimento (devoção), substância e alimentação
mútua (cf. Carsten, 2000:22), um modo de "distribuição" da "pessoalidade e das
benções" do divino (Gell, 1998:116).
Invocadas, as manifestações comportam-se de determinado modo e recebem de
sacerdotes e assistentes água de coco e dye-water (água misturada com açafrão,
oleandros, folhas de neem e vermilhão), líquidos despejados de um vaso nas mãos
do(da) marlo. Quando cuidam e tratam das pessoas, as manifestações também as
alimentam [feed] com pangalo9, colocando-o diretamente na boca de quem está sendo
tratado. O pangalo não é servido sem motivo. Somente quem está com o corpo fraco,
necessita se fortalecer ou está sendo afetado por seres malignos, é alimentado.
Normalmente, as manifestações também dão dye-water às pessoas e, eventualmente, as
fazem mastigar folhas neem - cujo gosto é extremamente amargo, por sinal.
E é durante os tratamentos que fica evidente o quanto Kali, em suas distintas
manifestações, é uma consumidora voraz. A cura das pessoas, a anulação de forças
nocivas, se dá através dos(as) marlos - por que não dizer das murtis encarnadas nestes e
nestas? - e essa é a razão pela qual algumas manifestações divinas ingerem rum e vodka,
líquidos que queimam, as impurezas que serão removidas, ou extraídas, dos corpos das
pessoas. Assim, as transações entre deuses e humanos são permeadas pelo trânsito de
substâncias.
No processo de tratamento, há uma intensificação das relações sensitivas entre
divindades e humanos. O principal instrumento de cura de Kali é o ramo de folhas
neem, esfregado nas pessoas pelas manifestações para purificá-las e remover suas
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Arroz doce misturado com pedaços de banana polvilhado com vermilhão e açafrão
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Relativas às praticamente inesgotáveis combinações de relações entre "índices", "autores", "protótipos"
e "recipientes" (Gell, 1998:28-50).
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categories and that can conceive of action only as an effect set in train by an agent [...]
Assuming that human beings alone are capable of initiating actions in this sense, Gell
nevertheless allows that their agency may be distributed around a host of artefacts
enrolled in the realisation of their original intentions. These artefacts then become
‘secondary agents’ to the ‘primary agency’ of the human initiators. Not all would
concur with Gell that actions are the effects of prior intentions, let alone with the
identification of the latter with mental states" (Ingold, 2011:213-214 - ênfase no
original).
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Veja-se o comentário de Strathern (1999:17): "As far as efficacy on others is concerned, one may thus
see an art object in the same way as one may see a person. It embodies capacities. Euro-Americans often
think agency inappropriately personified when it is applied to inanimate entities, but that is because they
link agency to will or intention. Magnificently, Gell sweeps all that aside. In terms of the effects of
entities upon one another, and it is the analysis of relation effect which in his view makes analysis
anthropological, 'things' and 'persons' may be co-presences in a field of effectual actors".
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materialized in altered or new semiotic forms, those responses build on and are additive
to responses of other people in other contexts. These materializations bear the marks of
their temporality.
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ANEXO
As divindades (deotas): deusas, deuses e seus atributos
* Mother Dharti
Deusa da terra, provedora de todos os elementos essenciais para a manutenção
da vida. É quem fertiliza o solo e faz brotar os alimentos. Por essa razão, deve ser a
primeira deota a ser cultuada no serviço, pois seria impossível fazer puja sem colher os
frutos de suas benções. Seu altar, diferentemente dos outros, está em contato direto com
a terra, representando sua proximidade com o terreno. A cor de sua bandeira é verde e
sua pele é clara.
* Lord Ganesh
Deus-elefante da sabedoria, filho de Shiva e de Parvati, uma das formas da
Mother, e irmão de Kartikya, o deus da guerra. É o removedor de obstáculos,
outorgando a seus devotos conhecimento - na época dos exames escolares, estudantes
hindus têm por hábito fazer puja para Ganesh. Uma de suas moradas é a árvore sagrada
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neem, cujas folhas são utilizadas pelas manifestações para curar às pessoas. A Ganesh
se ofertam bandeiras rosas.
* Lord Krishna
O Supremo, Krishna é uma avatar (encarnação) de Vishnu, o deus da
conservação. Nas representações icônicas, toca uma flauta e é cercado por vacas. Sua
cor de pele é escura e também é conhecido como Blue God. É associado à Kali – em
Blairmont, ora é definido como seu irmão, ora como sua forma masculina. Juntamente
com sua consorte, Radha, simboliza a pureza do amor verdadeiro entre homens e
mulheres. Sua bandeira verde e branca é erigida no primeiro dia do Big Puja, como
forma de reconhecer sua presença em todo o cosmo.
* Mother Ganga
Deusa da água, cujo nome é uma corruptela de Ganges, o famoso rio sagrado da
Índia. Presente em tudo que é líquido, Ganga é a própria vida, sendo associada à
fertilidade e à remoção de impurezas e de doenças. Juntamente com a deusa Kateri, sua
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Sacred trinity, a qual é composta por Brahma, o criador, Vishnu, o conservador, e Shiva, o destruidor.
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irmã, cujo altar fica muito próximo ao seu, Ganga ajuda as mulheres com problemas de
fertilidade, representando o ciclo cósmico – a água é a origem da vida e o repositório
final das ofertas utilizadas nas pujas. Costuma se manifestar no corpo das pessoas,
especialmente no de mulheres, mas somente durante o Big Puja realiza tratamentos.
É possível identificar a existência de um templo de Kali em qualquer região do
país caso haja duas bandeiras encravadas em um riacho – uma amarela, para Ganga, e
outra preta, para Kateri.
* Mother Kateri
Divindade do sul da Índia, Kateri é capaz de ir aos locais mais impuros, sujos,
sórdidos, sombrios e desagradáveis dos corpos dos humanos, nos quais Mariamma (ver
abaixo) não pode ir. Trabalha junto com Ganga, resolvendo problemas de infertilidade e
de irregularidades do ciclo menstrual, bem como aqueles decorrentes da ação de forças
malignas, como os jumbies (espíritos dos mortos). Por conta disso, é considerada
simultaneamente muito poderosa e muito perigosa, capaz de causar tanto a redenção
quanto a ruína das pessoas. Possui pele escura, veste um sári preto e carrega uma vara
de cana brava com folhas neem (usadas para afastar males e curar doenças). Aceita vida
a depender das circunstâncias. Juntamente com Mariamma e com Khal Bhairo, é
invocada semanalmente para tratar e curar os devotos. No festival anual, é invocada no
segundo dia, à noite, no water side, juntamente com Ganga. Sua manifestação é difícil
de controlar. É também chamada de Small Mother - em referência a Big Mother,
Mariamma/Kali.
* Master Sangani
Uma das formas sombrias [darm forms] de Shiva, tem compleições muito
escuras, sendo um dos três masters do local (juntamente com Munispren e Khal
Bhairo). Guardião de todas as fronteiras e dos oceanos, onde reside, nas profundezas.
Seu templo localiza-se na extremidade oeste de Blairmont. Mestre da corrente preta
[black chain master], repele todos os males provenientes do exterior do templo. Protege
residências e costuma ser invocado em trabalhos nas casas dos devotos (abaixo). A cor
de sua bandeira é preta. Em Blairmont, manifesta-se com frequência, mas não realiza
tratamentos, a não ser em circunstâncias de extrema gravidade. Aceita sacrifícios e sua
murti porta um machete. É um deus autóctone do sul da Índia. Sua cor é o preto.
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* Master Munispren
Seu templo localiza-se no lado oposto ao de Sangani, mas à diferença deste, sua
cor é branca. É uma das formas de Shiva e é o deus da lua – na mão direito de sua murti,
há uma lua crescente; na esquerda, uma lua cheia. Munispren não goza de muito apreço
entre vários pessoas, provavelmente por conta de sua associação aos espíritos
holandeses (capítulo oito). Aceita sacrifícios. Sua bandeira é da cor branca.
* Lord Nargura
Controlador dos cinco sentidos (audição, tato, paladar, visão e olfato), Nargura é
a divindade sobre a qual os membros de Blairmont detêm o menor conhecimento.
Coincidentemente ou não, seu altar é o mais desprovido de decorações. É chamado de
Muslim god – há uma meia lua e uma estrela pintadas em sua murti –, ao mesmo tempo
em que é tido como um súdito da Mother, tendo auxiliado-a em batalhas contra
demônios. De compleições claras, bandeiras brancas lhe são ofertadas.
* Mother Lakshmi
Consorte de Vishnu, Lakshmi tem uma compleição clara, sendo a deusa da
saúde, da prosperidade, da felicidade, da paz e da riqueza. Homenageada no festival das
luzes hindu, o Diwali, quando é representada por chamas acesas em pequenos potes de
barro, nos quais se derrama olho de coco, ou ghee (manteiga clarificada), e um pavio de
algodão. Remove a escuridão e a ignorância, repelindo forças sombrias, iluminando o
caminho de seus devotos nos momentos de dificuldade, dúvida e apreensão – daí suas
bandeiras serem brancas. É definida como giver of light, remover of obstacles e clearer
of confused minds. É uma forma benigna da Mother. Sua murti repousa sob uma flor de
lótus13, entre as deusas Mariamma e Durga.
* Mother Sarawasti
Esposa de Brahma, deusa do talento, do intelecto, da sabedoria, da fala, da arte e
da música. Tal como Lakshmi, é uma forma benigna de Kali, sendo capaz de afastar a
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Segundo Kinsley (1988:21), na mitologia hindu a flor de lótus representa tanto o crescimento e a
expansão do mundo, como a pureza e o poder espiritual.
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* Mother Durga
Deusa guerreira [warrior goddess], na definição local. Carrega armas em cada
um de seus braços e monta em cima de um leão (ou um tigre), símbolos de sua bravura
e de seu ímpeto feroz e implacável. Tal como Mariamma, e diferentemente de Lakshmi
e Sarawasti, sua murti porta uma vara de cana brava com ramos de folhas neem, um
indicador de sua capacidade de subjugar forças malignas e de destruir quaisquer
obstáculos. Em âmbito doméstico, realizam-se sacrifícios em sua homenagem, inclusive
de porcos, embora eles sejam pouco frequentes. Sua murti fica no canto esquerdo do
altar e sua cor é o amarelo. Duas vezes ao ano, nove formas de Durga são celebradas no
Navratri, o festival hindu das nove noites. É esposa de Shiva.
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Algumas pessoas aconselharam-me a rezar para Sarawasti quando fosse escrever minha tese, em busca
de inspiração.
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* Khal Bhairo
Como Sangani e Munispren, Khal Bhairo, também chamado de Baba, ou de
Madurai Veeran, é um dos três masters de Blairmont. É o deus do sacrifício [sacrifice
god ou killing god], de modo que seu altar é o único no qual se pode depositar o fígado
de galos sacrificados. Seu templo resguarda o grande templo, pois ele é irmão e protetor
de Mariamma – ninguém pode chegar a Mother, em suas distintas formas, sem passar
por Khal Bhairo. Durante o Big Puja, esse deus sempre lidera as procissões, para repelir
qualquer ameaça. Manifesta semanalmente para tratar das pessoas, lidando com as
coisas com as quais Mariamma não pode lidar. Seus veículos são o cavalo e o cachorro.
Sua bandeira é de cor vermelha. Khal Bhairo é uma dark form de Shiva.
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Texto em preparação. Não circular sem expressa autorização do autor.
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Texto em preparação. Não circular sem expressa autorização do autor.
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Texto em preparação. Não circular sem expressa autorização do autor.
Lord Nargura
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Da esquerda para a direita: Mother Sarawasti, Mother Lakshmi, Big Mother (Mariamma) e
Mother Durga. No nível inferior do altar, os dois karagans.
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Texto em preparação. Não circular sem expressa autorização do autor.
Referências Bibliográficas:
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