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1 Introdução
“bonitinha e delicada” que andava descalça pela floresta. Karen, como era chamada,
tinha obsessão por sapatos vermelhos e por causa deles seu mundo entra em
sempre termina em final feliz, essa história quebra de certa forma esse
períodos em que a religião era uma parte muito importante na vida” (BETTELHEIM,
2010, p. 22), Andersen não se diferencia de qualquer outro autor no contexto de sua
Karen, personagem principal é uma menina pobre que, após a morte de sua
mãe é adotada por uma senhora rica. Ela consegue um sapato novo vermelho
brilhante e na sua crisma inaugura seu objeto de desejo, mas encantada pela beleza
e poder de sedução que ele desperta, ela não presta atenção em mais nada ao seu
redor. Na igreja há um velho soldado de muletas que sugestiona sobre seus sapatos
e, após isso, eles começam a dançar involuntariamente até um dia o qual ele dança
sem mais parar, e, grudado aos seus pés, deixa a personagem em frangalhos, a
qual, no desespero, por não conseguir tirá-los, pede ao carrasco da aldeia para
Após, ela se vê só, sem mãe e sem tutora. Para sobreviver ela vai trabalhar
de faxineira na igreja, ao fim, ela morre no seu quarto após um encontro epifânico
castigo, fala de um objeto de desejo e de uma maldição por conta de seu uso
proibido: dançar sem parar para sempre. Para escapar desse fim tem-se um
impasse e uma decisão drástica: decepar os próprios pés. Segundo Riscado (2005),
vê-se que:
(1996, p.946), pois, a fascinação por essa cor leva aos impulsos humanos mais
liberdade, pode-se entender o fato de Karen não usar sapatos (em Roma os
social.
Vê-se também que em certas culturas camponesas era comum na idade
média presentear com algum objeto vermelho a menina que menstruasse pela
amadurecimento sexual. Quando Karen experimenta esse fascínio sua obsessão vai
Esse objeto vermelho vai instigar toda a trama. Essa é a cor que simboliza as
símbolos dessa história que a personagem passa por uma confusão de sensações
ao ser agredida por não saber lidar com os impulsos sexuais e nem tomar decisões.
latina “fatum”, que conota “destino”, palavra que dá origem ao substantivo fada (fée),
essa menina usa esse objeto é como se explorasse uma nova persona escondida,
parcial e não representa quem está por trás dele mostrando uma existência limitada
no conto: quando é adotada por uma senhora rica, Karen pensa que chamou a
atenção da mulher não pela situação de órfã, mas sim, pelos sapatos que usava. O
objeto de desejo, o par de sapatos vermelhos, pela própria cor encarna o motivo do
aos pés, porque “um receptáculo minúsculo no qual alguma parte do corpo pode
sua obstinação pelo poder de sedução que eles causavam. Desse jeito, quando ela
mostra de fato fazendo parte desse rito sagrado porque não presta atenção em nada
“Toda a gente olhava para os pés dela. Quando ela atravessou a igreja,
para ir ao coro, pareceu-lhe que até os velhos retratos coloridos nas
sepulturas – retratos de sacerdotes e de suas esposas, com golas e trajes
pretos – não despregavam os olhos dos seus sapatos vermelhos. E só nos
sapatos ela pensava, quando o padre lhe pôs a mão na cabeça e, falando
do sagrado batismo, e da aliança com Deus, disse que, dali por diante,
depois do crisma, ela seria uma pessoa adulta. O órgão soava, solene, as
vozes das crianças elevavam-se, no coro, juntamente com a do velho cantor
da igreja, mas Karen só pensava nos sapatos vermelhos. (ANDERSEN,
2002, p.333)
heresia da menina quando especifica que aqueles sapatos são na verdade, “lindos
sapatos de baile”. Batendo-lhe o solado, é ele quem dá ordem aos sapatos para
ficarem firmes nos pés quando dançarem. Quando Karen executa alguns passos de
dança, como que insinuando a beleza e a serventia dos sapatos vermelhos, estes
O ego exacerbado a conduz aos lugares mais longe de sua alma, os sapatos
vermelhos tomam vida em seus pés e conduz-lhe noite e dia por caminhos
assemelha.
vida e a matéria. Entretanto, somente os atos que tem por objetivo o sacrifício não
ambições para libertar-se dessa ignorância confusa “entre o imóvel e o eterno ‘eu
quero’, ‘eu odeio’, ‘eu conheço’, e pensar que esse ‘eu’ se relaciona ao espírito é
existem deuses que unem os dois mundos, o visível e o invisível”, os quais, nada
mais são do que “personificações da energia posta em jogo” (p. 216). Na mitologia
sexo. Dessa forma, a dança de Karen pode ser comparada esses mitos que
caos da guerra ela executa essa dança totalmente selvagem e fora de controle que
ilusões.
atuante e primitiva, pois, seus instintos estão acima da condição de deusa. A dança
para alcançar a maturidade, a individuação, como diz Jung, e, o respeito dos que a
cercam. Karen precisou dançar muito até destruir suas ilusões libertando-se da
apego e das ilusões que geram sofrimento. Karen prova desse prazer, fruto dos
por uma fase de mudanças físicas e psíquicas, executa essa dança a fim de
Depois que Karen tenta restabelecer seu universo, fica sem os pés e são lhes
Assim, esse objeto revela uma fraqueza do indivíduo porque o sentido do pé, além
“No entanto, a muleta pode ter também um sentido positivo: é aquilo que
nos ajuda a avançar, símbolo da vontade que se proíbe aceitar determinada
situação sem procurar modificá-la; símbolo, também, da fé (pensemos nas
muletas abandonadas pelo enfermo do Evangelho, no momento em que se
realiza o milagre); em suma, da luz espiritual que guia os passos vacilantes
ou compensa uma deficiência física”. (CHEVALIER, 1996, p. 624)
mágico, quando a garota na tristeza e na ânsia de estar mais perto de Deus clama
por sua ajuda, o qual de uma forma surpreendente aparece num clarão de luz solar
quando chega. Essa última cena traz um ambiente tipico da epifania, pois a luz do
sol entra no coração da menina fazendo-a sentir grande alegria e paz, e, misturado
com o coro das crianças que cantavam e com os raios solares que entravam pela
janela da igreja ela voa para Deus. Para Eliade (1979, p. 72), “quando na hora da
parte do sagrado, como parte do ciclo da vida que transforma o corpo e a mente
hinduísmo, a Deusa-Mãe não era apenas boa, dando amor e acalentando os filhos,
era também cruel, dava a vida, mas também tinha o direito de tirá-la, de transformá-
la, de tomá-la de volta para si, porque a doença ou a morte, não era assimilada
confronto com a sombra (parte negativa da personalidade, que seria a soma das
sua individuação. Karen começa uma guerra a partir do momento que se confronta
com a sombra. Seus sapatinhos vermelhos a levaram para a morada de Kali, dentro
Quando você experimenta seu deus como forma, há a sua mente, que
contempla, e há o deus. Há um sujeito e um objeto. Mas o objetivo místico
final é unir-se a deus. Com isso, a dualidade é superada e as formas
desaparecem. Não há ninguém, nem deus, nem você. Sua mente,
ultrapassando todos os conceitos, dissolveu-se na identificação com o
fundamento de seu próprio ser, porque aquilo a que se refere a imagem
metafórica de seu deus é o mistério último do seu próprio ser, o qual é
também o mistério do ser do mundo.(CAMPBELL, 1990, p. 220)
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa traz uma personagem feminina na sua puberdade, que faz lembrar
estão impregnados de simbologias e mitos antigos que remete o ser humano aos
Assim, o conto traz a temática da morte como algo positivo, pois se revela
ANDERSEN, Hans C. Contos de Andersen. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2010.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990.
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