Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
americana
Raquel Zandomeneghi
Quando falamos de horror, é quase impossível não lembrar da obra de H. P. Lovecraft. O autor
estadunidense é conhecido pelas suas criaturas, deuses ancestrais e uma atmosfera pessimista
que compuseram e moldaram seu horror cósmico. No entanto, sua contribuição para a literatura
não foi de todo positiva: Lovecraft levou para suas histórias o profundo racismo que cultivava
em si.
Uma das desculpas dadas pela personagem — embora nem mesmo ela acredite — para
manter as crianças naquela situação é porque a Escuridão precisa daqueles sacrifícios. Juan e
Rosário, no entanto, sabem que a justificativa é infundada. A outra razão para o sequestro
daquelas crianças seria porque a Ordem em breve precisará de um novo médium: Juan tem uma
condição cardíaca delicada e todos sabem que os médiuns não vivem por muito tempo. Além
disso, Mercedes e Florence — a outra líder da organização secreta — não têm certeza se Gaspar,
filho de Juan e Rosário, terá o mesmo dom de seu pai. Por isso, elas estão sempre procurando
(ou, em outras palavras, sequestrando e torturando crianças) para ver se encontram um futuro
substituto para Juan.
Mais adiante, quando o grupo de amigos finalmente adentra a casa que Adela tanto fala,
percebemos que não estamos apenas diante da mesma personagem, mas também da mesma
casa. Para quem não leu o outro livro de Mariana Enríquez, a casa abandonada por fora tem um
tamanho e aparência, mas por dentro é completamente diferente e muito maior. No interior dela
se encontram livros de anatomia e uma sala com incontáveis partes humanas separadas em
prateleiras metodicamente organizadas. No romance, vemos a casa enganando o quarteto e se
transformando em um labirinto até conseguir o que queria.
O fim de Adela em Nossa Parte de Noite não é diferente do relatado no conto: perdemos
Adela para sempre ou a casa a ganha. A diferença é que no romance conseguimos entender o
que atraía a menina para dentro da casa. E, mesmo já temendo um fim para ela semelhante ao
de “A Casa de Adela”, ficamos torcendo por um rumo diferente.
Além do cenário londrino e — muito — LSD, a terceira parte da obra traz ao leitor algumas
explicações para elementos até então incompreendidos. A jornada que acompanhamos é a de
Rosário ainda em sua juventude, quando saiu de Buenos Aires para fazer faculdade na
Inglaterra. Lá, a jovem foi acolhida por Esteban, filho de Florence, e ambos se identificam como
herdeiros da Ordem, ao mesmo tempo em que vão contra os horrores realizados pelas suas
famílias.
Além disso, é lá que Rosário consegue se aproximar, por meio de Esteban, de outros
filhos de membros da Ordem. Mais tarde, Juan também parte para o país britânico por conta de
uma cirurgia. Rosário consegue convencer Florence de deixá-lo ficar por mais tempo, e o
médium se junta ao grupo de jovens. Em uma aventura do grupo, acabam alugando uma casa
para passar alguns dias. Nela, uma porta para um dos quartos acaba se transformando em uma
passagem para um local escuro, que mais adiante será chamada pelos personagens como o
Outro Lugar.
Vamos adentrando e descobrindo esse espaço junto com os personagens. Nesse novo
local descoberto, o ar é rarefeito e o espaço é preenchido por ossos. Lá, o médium pode fazer
pedidos e dar oferendas. Em determinado ponto, também é possível sentir um odor similar ao
de um hálito quente. Assim, a experiência é comparada a de estar dentro de uma boca.
Provavelmente a da própria Escuridão, que está sempre com fome. A sensação constante de ter
alguém observando os visitantes também é relatada mais de uma vez.
Apesar desse local ter aparecido para os personagens primeiramente em Londres, mais
tarde também será encontrado em Buenos Aires e Corrientes. Muitos anos depois de seu pai e
sua mãe o terem descoberto na capital britânica, Gaspar o adentrará na Argentina e, em
Corrientes, finalmente o apresentará para os outros membros da Ordem.
Fora a inspiração em Lovecraft, Mariana conta nesse vídeo também ter se baseado na tradição
ocultista britânica para criar o universo do livro. Uma das justificativas dada pela autora para
essa escolha foi que no ocultismo britânico existia, na medida do possível, um certo equilíbrio
de poder entre homens e mulheres, ainda que isso se datasse entre os séculos XIX e XX. Isso é
levado para a obra com Florence e Mercedes sendo as grandes líderes da Ordem, enquanto seus
maridos e outros homens da família ficam em segundo plano.
Alguns elementos tratados em Nossa Parte de Noite conversam com os difundidos pelo
famoso ocultista inglês Aleister Crowley. O britânico realizava rituais sexuais, inclusive com
práticas homossexuais, e pregava o amor livre. Por um tempo, fez parte da Ordem Hermética
da Aurora Dourada, uma sociedade secreta que, dentre algumas práticas, realizava a magia
cerimonial. Para além desses fatores, Crowley também fazia o uso de cartas de tarô (tendo sido
difundidas em diversas culturas e não usadas somente no ocultismo britânico). Todos esses
elementos citados foram levados com maestria para o romance pela autora.
Mariana, no entanto, não se limitou a reunir somente referências externas, uma vez, para
compor sua obra, também se valeu do São Morte, santo guaraní bastante popular na Argentina,
representado por um cadáver e uma foice. Os personagens argentinos montam templos e salas
para o santo. Rosário, quando visita o Outro Lugar pela primeira vez, teve certeza de que aquele
local tinha relação com o santo e com os ossos guaranis, que estavam tentando buscar Juan.
Nesse sentido, percebemos que Enríquez fez uma costura muito rica para criar o
universo de sua obra. Ao misturar distintas culturas e referências do horror, a autora também
representou como um país latino americano pode ser marcado por diferentes influências.
A criação desse universo, contudo, não foi feita descolada da realidade. Ditadura militar (medo,
desaparecidos, exilados, crianças sequestradas, corrupção, resistência) e trabalhadores da
fábrica de erva mate em situação análoga à escravidão (enquanto os donos do negócio,
Mercedes e Alfonso, viviam em sua espaçosa mansão) fizeram parte da dura história argentina
e entram em cena no romance de Enríquez.
A exploração do sul pelo norte global também não parece ser uma escolha da autora por
acaso. A Ordem, uma organização rica e europeia, conhece a Escuridão em uma viagem à
Nigéria, na África. De lá levam esses conhecimentos e uma jovem nigeriana médium para a
Inglaterra. Com ela e com os próximos médiuns, realizam cerimônias, até os matarem com a
intensidade e frequência dos rituais. Julgam esse um caminho necessário e se consideram
merecedores de todo conhecimento e poder que estão adquirindo, embora não os teriam caso
não houvessem ido à África ou não explorassem os médiuns, escravizando-os.
O final
Na última parte do livro, Gaspar passa sua juventude morando com o tio, irmão de Juan, e
precisa lidar com o trauma de ter perdido Adela dentro da casa. Acompanhamos suas primeiras
experiências, sua amizade sendo reatada com os amigos de infância, questões políticas sendo
abordadas, e conhecemos um centro cultural importante para a história como cenário.
Essa parte, devo admitir, foi um pouco mais prolixa do que eu gostaria. A minha
impressão foi de que poderíamos ter conhecido melhor Tali, a meia-irmã de Rosário. Apesar
disso, o final do livro compensa.
Nossa Parte de Noite é um olhar para as atrocidades humanas em prol do benefício
próprio e o quão longe vamos para conseguir o que queremos. Mesmo que sem qualquer
glamourização ou criação de heróis e heroínas, a resistência e a luta aparecem como respostas
às crueldades narradas. Esse é um processo permeado por dor e raiva, cabendo à quem sente
tentar destruir o sistema de crueldade, ou ser destruído por ele.