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As Confissões de Aleister Crowley

Por Aleister Crowley

Uma Autohagiografia
Editado por
JOHN SYMONDS
e
KENNETH GRANT

Um auto-retrato idealizado
CONTEÚDO
 Prefácio
 Agradecimentos
 Aleister Crowley e a Lei de Thelema
 Introdução
 PARTE UM: Rumo à Aurora Dourada
 Prelúdio, Capítulos: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21,
22
 PARTE DOIS: A Aventura Mística

 Capítulos: 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43,
44, 45, 46, 47, 48

 PARTE TRÊS: O Advento do Æon de Horus

 Capítulos: 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57

 PARTE QUATRO: Operações Mágicas

 Capítulos: 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68

 PARTE CINCO: O Mago

 Capítulos: 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79

 PARTE SEIS: Na Abadia de Thelema


 Capítulos: 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96
PREFÁCIO
Desde a publicação deste livro há dez anos, tornou-se evidente que Aleister Crowley era
mais do que apenas outro herói Cult do nosso tempo.
A vida de Crowley foi ainda mais fantástica do que a de Gurdjieff, a única personalidade
comparável dentre os seus contemporâneos, cujas originalidades foram na maior parte
ignoradas em silêncio. As excentricidades de Crowley, entretanto, foram tão enfatizadas que
o valor ímpar da sua obra em todas as áreas concebíveis do ocultismo experimental foi
obscurecido até recentemente. Apenas durante na última década as idéias de Crowley
receberam destaque em harmonia com um vasto corpo novo de literatura que mistura
ciência, fantasia e metafísica de um modo que pode finalmente materializar os pesadelos
mais selvagens de um H. P. Lovecraft.

Timothy Leary, por exemplo, se identifica tão completamente com a corrente iniciada por
Crowley, e as ‘coincidências/sincronicidade entre a minha vida e a dele’, que se considera
como um dos seus objetivos, a realização do trabalho de preparar o mundo para a
consciência cósmica que Crowley havia começado. Assim como foi com Carlos Castañeda –
outro escritor profundamente interessado nestes assuntos – a descoberta importante de
Leary veio por meio das drogas, embora estas fossem mais tarde descartadas por Castañeda
como não essenciais para a abertura dos centros superiores. Crowley foi, contudo, o primeiro
a correlacionar sistematicamente tais estados de consciência aos vários tipos de experiências
espirituais, assim como facilitar o contato com entidades supra dimensionais.

Um revisor das Confissões salientou no Life que ‘Crowley era superior aos negligentes
ocultistas atuais assim como o “Faze O Que Quiseres” de Rabelais é em relação ao “Faça a
Sua Própria Coisa” destes’. O Magick[1] de Crowley é considerado pelos cognoscenti como
sendo o livro mais abrangente sobre o assunto já escrito, e que as Confissões trazem à vida
o homem que as escreveu.
Muitas das personalidades – famosas, infames, ou pouco conhecidas – cujos encontros com
Crowley estão aqui descritos, foram agora reavaliadas, pelo ‘fedelho’ de Marie Desti, que foi
transformado pelo diretor de filmes Preston Sturges, em Somerset Maugham que, após a
publicação do seu romance, O Magista, é alvo de rumores de que tenha vendido sua alma
ao demônio, na forma de Aleister Crowley, em troca de fama mundial. O primeiro biógrafo
de Crowley, o Major-General Fuller, legou a ‘Criança Coroada e Conquistadora’ do Livro da
Lei para Hitler, e cita Hitler dizendo a ele em uma ocasião: ‘Espero que você esteja satisfeito
com as suas crianças?’, uma referência à enorme parada militar com tanques germânicos, a
idéia original das últimas teorias de Fuller.
Florence Farr, confidente de Shaw e Yeats, terminou os seus dias no Ceilão sob a guia
espiritual do mentor de Allan Bennett, Sri Ramanathan; e Gerald Kelly, ‘pintor, conforme a
lista telefônica’, foi devidamente ordenado cavaleiro por seus muitos retratos da realeza.
Quanto às tentativas pioneiras de Crowley de escalar o pico K2 dos Himalaia, seu ‘demônio
da tempestade’ ainda reclama suas vítimas.
As sementes das mais interessantes especulações relacionadas ao futuro serão encontradas
naquilo que Allan Watts – um dentre uma centena de revisores das Confissões – chamou de
‘este enorme volume que do início ao fim é quase inteiramente fascinante, espirituoso,
arrogante, imodesto e ainda assim curiosamente sábio’.
KENNETH GRANT
Londres
1978
AGRADECIMENTOS
Os editores desejam agradecer ao Sr. George H. Brook por ter generosamente colocado a
sua coleção de material relacionado ao Crowley à sua disposição; eles também agradecem à
Sra. Norah Fitzgerald e ao Sr. Gerald Yorke pelo empréstimo dos textos datilografados; e
devem à Sra. Steffi Grant seu auxílio na preparação do índice.

ALEISTER CROWLEY E
A LEI DE THELEMA
É razoavelmente explícito desde a Introdução desta obra que John Symonds não aceitou
a Lei de Thelema. Estamos em desacordo sobre esta questão. Além do mais, eu acho que O
Livro da Lei contém a chave para os principais mistérios ocultos da era atual.

INTRODUÇÃO
Entre os documentos de Aleister Crowley, eu encontrei uma carta endereçada a ele por um
estranho, pedindo permissão para participar de sua próxima Missa Negra ou do próximo
Sabá que, o escritor presumia, seria realizada na Véspera do Solstício de Verão. Um
envelope carimbado e endereçado (esse era mencionado) estava em anexo para a resposta
de Crowley. Sua resposta, se ele de fato respondeu, deve ter sido decepcionante, porque
naquela ocasião – Maio de 1937 – ele não estava mais realizando quaisquer Missas Negras
nem participando de nenhum Sabá. De fato, ele jamais participou de Sabás – ele não era um
bruxo – e as Missas que ele oficiava não eram, tecnicamente falando, Missas Negras [2], mas o
grande público esperava que aquele tipo de coisa fosse feito por ele.
Em 1947 ele faleceu, com a idade de setenta e dois anos. E recentemente aqueles jovens
talentosos, os Beatles, adicionaram-no ao seu: Crowley está em pé entre um homem santo
indiano (sem nome) e Mae West em uma fotocomposição de ‘Pessoas que gostamos’ que
ilustra a capa da gravação em LP dos Beatles, ‘Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band’. [3]
Crowley era o líder de duas grandes organizações mágicas e de várias outras menores; ele
era o autor de um livro brilhante chamado Magick, que é um manual para aqueles que
desejam praticar essa difícil e perigosa arte[4]; e ele seguia a tradição dos grandes magistas
do passado – Dr. John Dee, Cagliostro, Conde Saint-Germain, Eliphas Lévi, Madame
Blavatsky.
Ele nasceu em 1875. Dois outros eventos de significado para os ocultistas ocorreram naquele
ano: a Sociedade Teosófica foi fundada pela Madame Blavatsky e outros, e Eliphas Lévi, o
Cabalista e Magista, faleceu. Crowley supunha que ele era descendente de aristocratas
Normandos, e mencionou a família Breton, de Quérouaille, como se o nome Crowley fosse
uma corruptela daquele nome. Ele alegava que Louise de Kéroualle, Duquesa de Portsmouth,
fosse um de seus ancestrais; também o poeta do século dezesseis e pregador, Robert
Crowley, sem qualquer evidência em absoluto. Teria sido mais pertinente nos dizer algo
sobre seus avós, aos quais ele diligentemente ignorava. Ocorreu então que seu pai, Edward
Crowley, a quem ele chamava de engenheiro, era um cervejeiro, e a fortuna da família veio
da ‘cerveja dos Crowley’, um fato que se arrasta pela sua autobiografia de um modo oblíquo.
Na ocasião em que Aleister nasceu, seu pai estava bem avançado na meia-idade, e gastava
o seu tempo viajando pelo país, pregando o Plymouthismo para qualquer um que o ouvisse.
A seita da Irmandade Plymouth foi fundada por volta de 1830 por John Nelson Darby, um
clérigo Irlandês que foi advogado antes de entrar para a Igreja. A Irmandade acreditava que
eles eram os únicos Cristãos verdadeiros; eles consideravam a idéia de ministros ordenados
como contrária aos ensinamentos da Escritura; a Bíblia era literalmente verdadeira; a
Segunda Vinda de Cristo era iminente; os Eleitos herdariam o Reino de Deus.
Fora deste cenário emergia Aleister Crowley, a Besta 666.

No começo, ele era um devoto Irmão Menor Plymouth, alternando com seus pais e os servos
na leitura das passagens da Bíblia. O Plymouthismo era a única fé autêntica. Ele não
conseguia, disse, nem ao menos conceber a existência de pessoas que fossem tão tolas ou
tão malvadas a ponto de duvidar disso. No seu ardor infantil ele imaginava a si mesmo como
um cavaleiro Cristão, realizando feitos de santidade e valor.

Assim que ele cresceu as suas idéias deram uma estranha reviravolta. Ele sempre preferiu os
sons dos nomes hebraicos ao invés das narrativas bíblicas reais; agora qualquer narrativa de
tortura ou sangue excitava tremendamente os seus sentimentos. Ele apreciava se imaginar
em agonia e, em particular, degradado e sofrendo nas mãos de uma mulher que ele
descrevia como ‘perversa, independente, corajosa, ambiciosa e assim por diante’. Ele se
apaixonou pelo Falso Profeta, a Besta cujo número é 666, e a Mulher Escarlate. E de
repente, após a morte do seu pai – ele tinha então onze anos – ele descobriu que as suas
simpatias estavam totalmente do lado dos inimigos do céu. Ele foi para Satã, e não sabia a
razão. Ele ainda estava buscando pelo motivo quando veio a escrever sua autobiografia na
idade de quarenta e sete anos.

Crowley era contemporâneo de Freud; ele nasceu da matriz do Vitorianismo com a sua visão
rosada do mundo, e o seu ideal medieval de beleza e de Deus. Ele foi um dentre muitos que
ajudaram a cortar as atitudes falsas, hipócritas e farisaicas da época. O seu relato sobre o
começo da sua vida numa família da Irmandade Plymouth não é menos notável do que a de
Edmund Gosse[5]. O que, entretanto, é peculiar no caso de Crowley não é que ele escolheu o
‘mal’ mas que, na sua revolta contra os seus pais e Deus, ele se posicionou no lugar de
Deus.
‘Por que você chama a si mesmo de a Besta?’ Eu lhe perguntei na ocasião do nosso primeiro
encontro.

‘Minha mãe me chamava de a Besta’, ele respondeu para minha surpresa.

Ele freqüentou as escolas públicas de Malvern e Tonbridge; sua saúde ficou debilitada em
Tonbridge, em parte devido a ter ‘contraído gonorréia de uma prostituta em Glasgow’ (como
ele escreveu na margem do seu próprio exemplar de A Tragédia do Mundo, publicação
privada, 1910, sua primeira tentativa de autobiografia).
Ele publicou seu primeiro livro de versos enquanto ainda não era formado no Trinity
College: Aceldama, Um Lugar para Enterrar Estranhos. Um Poema Filosófico. Por um
Cavalheiro da Universidade de Cambridge, 1898. Ele trazia este prefácio esquisito que
pressagiava os seus futuros interesses e a direção ambígua que ele estava tomando:
Era uma noite de ventania, aquela memorável sétima noite de Dezembro, quando esta
filosofia nasceu em mim. Como o velho e sério professor se admirava com os meus
desvarios! Eu fui chamado para ir à sua casa, pois ele era um valoroso amigo meu, e eu
senti estranhos pensamentos e emoções sacudindo dentro de mim. Ah! Como eu delirava!
Eu o chamei para me pisar, e ele não aceitou. Nós passamos juntos na noite tempestuosa.
Eu estava a cavalo, como eu galopei em torno dele no meu frenesi, até que ele se tornou a
presa do verdadeiro medo físico! Como eu berrei não sei quais palavras estranhas! E o
pobre velho bondoso tentou tudo o que podia para me acalmar; ele achou que eu estava
louco! O louco! Eu estava na luta de morte com o ser: Deus e Satã lutaram pela minha
alma durante aquelas três longas horas. Deus venceu – agora me resta apenas uma
dúvida – qual dos dois era Deus?

Alpinismo era outra de suas paixões. Ele escalou no Lake District, em Beachy Head e na
Suíça; e ele era um mestre daquele jogo esotérico chamado xadrez – quem alguma vez
conseguiu chegar até a essência do xadrez? – tendo jogado em duas partidas contra Oxford
e ganhou sua posição de half-Blue[6] em xadrez.
Ele passou a vestir camisas de seda pura e grandes gravatas de laço; nos seus dedos havia
anéis de pedras semipreciosas. Uma atmosfera de luxo, diligência e esforços rigorosos
penetrava as suas salas em Cambridge. Livros cobriam as paredes até o teto e ocupavam
quatro estantes giratórias de nogueira. Eles eram em grande parte de ciência e filosofia, com
uma modesta coleção de clássicos em grego e latim, e alguns esparsos romances franceses e
russos. Sobre uma estante reluzia o preto e dourado de As Noites Árabes de Richard Burton;
embaixo estava a capa plana e etiqueta quadrada do Chaucer, de Kelmscott. Primeiras
edições valiosas dos poetas britânicos ficavam de pé ao lado de volumes extravagantemente
encadernados publicados por Isidor Liseux. Sobre a porta ficava pendurada uma machadinha
de gelo com a cavilha desgastada e eixo irregular, e no canto havia uma bolsa de lona
contendo uma haste salmão. Peças de xadrez feitas de chumbo estavam na sua caixa de
mogno sobre uma mesa de jogo de cartas com fichas de pôquer espalhadas.
O ‘Cavalheiro da Universidade de Cambridge’ era prolífico: ele havia seguido rapidamente
o Aceldama com O Conto de Archais, e então Jephthah, Uma Tragédia; o pseudônimo
fora emprestado de Shelley, cujo A Necessidade do Ateísmo, 1811, era de um Cavalheiro
da Universidade de Oxford. Durante 1898 ele também foi responsável por uma produção
mais pretensiosa, Manchas Brancas, que o Sr. Peter Fryer considera a obra erótica mais
repugnante em língua inglesa; ela traz na página de rosto o nome do piedoso tio de Crowley,
George Archibald Bishop, ‘Um Neuropata do Segundo Império’, e é agora um livro raro.
Crowley prefaciou a obra com uma declaração que expressava o seu desprezo: ‘O Editor
espera que os Patologistas Mentais, exclusivamente para os olhos dos quais este tratado é
destinado, não pouparão quaisquer precauções para evitar que ele caia em outras mãos’. Ele
herdou uma fortuna – cujo tamanho ele exagerava – e podia proporcionar essas brincadeiras
extravagantes.
Ele pensou em entrar para o Ministério das Relações Exteriores, mas se decidiu contra a
idéia: ele queria ser alguém realmente grande, cujo nome seria lembrado por tanto tempo
quanto durasse a vida neste planeta; era improvável que ele conseguisse isto no Serviço
Diplomático por devoção ao dever.

O problema sobre o que ele deveria fazer com sua vida foi resolvido ao ler O Livro de
Magia Negra e de Pactos. No prefácio desta obra, o autor, Arthur Edward Waite,
mencionava certos santuários ocultos dirigidos por um corpo de Iniciados que outorgava
Verdade e Sabedoria ao valoroso postulante. Crowley escreveu para Waite, pedindo por
mais informações. Waite respondeu, dizendo a ele para ler A Nuvem sobre o
Santuário de Eckartshausen. Eckartshausen confirmou aquilo que Waite havia sugerido:
por trás da igreja externa há uma igreja interna, a mais oculta de todas as comunidades, um
Santuário Secreto que preserva todos os mistérios de Deus e da natureza. Ele foi formado
imediatamente após a queda do homem. Ele é a assembléia oculta dos Eleitos.
Em Zermatt durante o ano de 1898, Crowley conheceu certo Julian L. Baker, e fazendo
amizade com o Sr. Baker ele lhe contou sobre sua busca pela Fraternidade de Iniciados que
ciosamente preserva o conhecimento perfeito de Deus, da natureza e da humanidade. O Sr.
Baker ofereceu ajuda, e quando eles voltaram para a Inglaterra ele apresentou Crowley
a George Cecil Jones que era membro de uma organização mágica chamada de Ordem
Hermética da Aurora Dourada. Talvez Jones pudesse ajudar Crowley a encontrar o
Santuário Secreto. Jones o apresentou a MacGregor Mathers, o chefe da Aurora Dourada,
e na virada do século o mago mais talentoso do Ocidente. Ele era o Mestre que Crowley
estava procurando.
Crowley começou sua carreira de mago como um Neófito na Aurora Dourada, que era a
Ordem Primeira ou Externa da Grande Fraternidade Branca[7]: ele ascendeu rapidamente ao
mais alto grau (o de Philosophus) dentro da Ordem Externa. Ele descobriu que tinha uma
aptidão notável para a magia; esta ele atribuiu mais tarde às suas encarnações anteriores.
Ele teve lampejos destas encarnações durante suas profundas meditações iogues na ‘Ilha
Oesopus’, na América, durante o ano de 1918. Ele foi não apenas Eliphas Lévi – houve
tempo suficiente para o espírito liberado de Lévi ter descido ao útero da Sra. Crowley – mas
também o grande mago Cagliostro na encarnação anterior àquela; e o vidente de John
Dee, Edward Kelly, antes de Cagliostro, e o depravado e amante dos prazeres Papa
Alexandre VI antes dele. (Esta última encarnação mencionada explicaria a insaciável
curiosidade de Crowley sobre todos os aspectos do sexo).
Ele deixou Cambridge sem receber uma graduação, se estabeleceu num apartamento na
Chancery Lane, e chamou a si mesmo de Conde Vladimir Svareff. Em quartos separados
do seu apartamento da Chancery Lane ele ergueu dois templos – um branco, outro negro.
Eles representavam os pilares gêmeos da Luz e das Trevas, Jachin e Boaz. O templo branco
era revestido com seis grandes espelhos para reverberar as forças das invocações (de modo
que nada da força fosse perdido); o templo negro estava vazio exceto por um esqueleto
humano e um grande armário, no qual se erguia um altar sustentado pela figura de um
Negro de ébano apoiado sobre suas mãos. E ambos os quartos tinham o seu círculo mágico,
triângulo e pentagramas inscritos no chão.
Além de ser o Chefe da Aurora Dourada, Mathers era o Chefe da Segunda Ordem da
Grande Fraternidade Branca, uma Ordem Rosacruciana chamada de Ordem da Rosa
Vermelha e da Cruz Dourada.

Não se passou muito tempo antes que Crowley estivesse batendo na porta da Segunda
Ordem.

Havia ainda outra ordem dentro da Grande Fraternidade Branca, a ordem mais elevada; ela
portava o nome de Estrela de Prata ou A∴ A∴ (Argenteum Astrum). Ela continha três
graus exaltados – Mestre do Templo, Magus e Ipsissimus – a nenhum dos quais Mathers
havia alcançado. E por um motivo muito bom eles estavam do outro lado do Abismo; apenas
o mais resoluto e iluminado dos Aspirantes pode cruzar o Abismo.
Porém sob a autoridade de quem esta organização mística, esta Grande Fraternidade Branca,
existia? Ela obviamente não poderia existir somente sob a autoridade dos seus membros; ela
então não teria sido diferente de uma Fraternidade Maçônica comum. A resposta para esta
importante questão é que a autoridade das Primeira e Segunda Ordens, isso é, a Aurora
Dourada, e a Rosa Vermelha e a Cruz Dourada, residia nos Chefes Secretos, o círculo mais
alto e interno da Grande Fraternidade Branca.

Madame Blavatsky esbarrou com o mesmo problema. Ela era meramente uma intelectual e
uma médium; por si mesma ela pouco podia fazer. Os siddhis, ou proezas que ela realizava,
para admiração da sociedade Anglo-Indiana da década de 1880, eram possibilitados através
da corrente mágica que a sustentava e que se originava dos seus Chefes Secretos, Koot
Hoomi e Morya, que viviam na solidez do Tibet. Ela conheceu um Chefe Secreto ou, para
usar o seu termo, um Mestre Oculto pela primeira vez, ao lado do Serpentine no Hyde Park
numa noite enluarada durante o ano de 1851, o ano da Grande Exposição [8].
Em 1886 um Chefe Secreto do grau de Mestre do Templo (vivendo na Alemanha sob a forma
de Fräulein Anna Sprengel) concedeu a Mathers e aos seus colegas uma patente para
estabelecer a Ordem Hermética da Aurora Dourada. E, após a Aurora Dourada ter sido
partida de alto a baixo e a autoridade de Mathers estar sendo contestada, sua liderança da
Primeira e Segunda Ordens foi confirmada por três Chefes Secretos que ele conheceu no Bois
de Boulogne – ou assim dizia. Crowley o desacreditou, e jurou que Deo Duce Comite Ferro
(‘Com Deus como meu Líder e a Espada como minha Companhia’), para mencionar um dos
nomes mágicos de Mathers, apenas se rompeu em três espíritos malignos. Mas dizer isso
não ajudou Crowley.

A única magia verdadeira que Mathers realizava, além de utilizar elementais em ataques a
Crowley, era cessar uma tempestade; portanto, não é surpreendente que Crowley, que era
muito mais ambicioso, tivesse discutido com ele, e o atacado da sua própria maneira;
portando com ele, naturalmente, todas as armas do arsenal de Mathers sobre as quais
pudesse pôr as mãos. Crowley também brigou com os soldados rasos da Ordem, e com W.
B. Yeats, a quem acusou de ter ciúmes do seu talento superior como poeta, e foi
virtualmente expulso da Ordem.

A mais importante dessas armas era o sistema Rosacruciano da Grande Fraternidade


Branca, e a magia de Abra-Melin que Mathers havia revelado e publicado. A primeira era
o aparato partidário, a segunda era a filosofia e a força motora. Assim, Crowley tirou tudo de
Mathers, exceto um séquito, necessário para uma carreira bem sucedida como magista.

Se você deseja realizar a operação de conjurar o seu Santo Anjo Guardião, diz o Mago
Egípcio Abra-Melin, você deverá antes de tudo construir um oratório num lugar isolado.
Onde Crowley deveria construir o seu oratório? Seu apartamento na Chancery Lane era
extremamente barulhento. Em busca de um local adequado, ele vagou pelo Lake District e
pela Escócia, e em agosto de 1899 ele descobriu a Casa Boleskine próxima da vila de Foyers.
O Lago Ness se situa na frente dela e uma colina atrás da mesma; ela era afastada; a vista
era magnífica; ela era ideal para a prática da magia de Abra-Melin.

O título completo do manuscrito que Mathers descobriu na Bibliothèque de l’Arsenal em


Paris, traduzido (do Francês) e publicado, é: O Livro da Sagrada Magia de Abra-Melin o
Mago, tal como entregue por Abraão o Judeu a seu filho Lamech, A.D. 1458. Não
existe um ritual geral nesta operação tal como nos outros Grimórios; existe apenas uma lista
de várias centenas de espíritos (anjos e demônios) para serem evocados, e talismãs para
serem usados em propósitos mágicos tais como provocar ou subjugar tempestades,
descobrir tesouros escondidos e acender o desejo entre pessoas à escolha do mago. O
espírito em questão, após ter sido evocado de forma cerimonial, vitaliza o talismã que fora
devidamente consagrado. O sistema completo só é possível depois de o aspirante ter
estabelecido comunhão com o seu Santo Anjo Guardião, isso é, seu Ser Verdadeiro. É o
Santo Anjo Guardião que transmite o método a ser empregado para este ou aquele
propósito. O livro da sagrada magia de Abra-Melin (ou Abramelin, ou Abrahamelin, ou
Abramelim) está, portanto, lacrado com sete selos. Tudo depende do S. A. G., e a sua
intercessão é impossível sem os seis meses de intensa purificação cerimonial. Em outras
palavras, a magia de Abra-Melin é um tipo de yoga, produzindo transformação psíquica.
Crowley o descreveu como uma surpreendente exceção a toda insensatez pueril escrita sobre
o assunto.
Crowley construiu o seu oratório num aposento de frente para o norte e começou a operação
imediatamente. Após alguns meses de esforço concentrado, ele foi parcialmente bem
sucedido. Ele conta que uma hoste de demônios foi atraída, alguns dos quais se
materializaram; eles provocaram uma grande quantidade de distúrbios e danos entre os
comerciantes e outros na vizinhança. Porém ele não obteve êxito completo na operação – ou
seja, o conhecimento e a conversação com o seu Santo Anjo Guardião ou Ser Verdadeiro –
até alguns anos mais tarde.
Ele se casou, fez um filho e mais volumes de poesia e erotismo. Ele se apressou em ir para o
México e, com seu amigo Oscar Eckenstein, escalou o Ixtaccihuatl e o Popocatapetl. Um ano
mais tarde, em 1902, ele se juntou à expedição de Eckenstein ao Chogo Ri: na ocasião todos
os grandes picos dos Himalaia ainda não tinham sido conquistados e dificilmente houve
tentativas. Eckenstein, que era de linhagem Germano-Judaica, elaborou um novo tipo de
ponteiras, ou ferros de escalar, que possibilitavam aos alpinistas dispensar a tarefa laboriosa
de cortar degraus no gelo. Ele era dezessete anos mais velho que Crowley. Numa carta
escrita em 1924 a Harry Doughty, Crowley resumiu Eckenstein como alpinista: ‘Eckenstein,
desde que ele conseguisse colocar três dedos sobre algo que pudesse se descrito por um
homem bem experiente no haxixe como sendo uma saliência, estaria fumando seu cachimbo
sobre aquela saliência alguns segundos depois, e nenhum de nós conseguiria dizer como ele
fez aquilo’. Crowley tinha grande simpatia por Oscar Eckenstein.

Eckenstein, tanto quanto eu saiba, não registrou sua opinião sobre Crowley como alpinista,
mas temos a visão do Dr. Tom George Longstaff, Presidente do Alpine Club de 1947 a 1949.
Crowley era ‘um alpinista excelente, se não além do convencional. Eu o vi escalando a face
direita (verdadeira) perigosa e difícil da grande geleira do Mer de Glace abaixo do Géant
apenas, simplesmente para uma exibição. Provavelmente a primeira e talvez a última vez
que esta rota insana, perigosa e difícil foi trilhada’.[9] O próprio breve relato de Crowley sobre
esta escalada, no qual o Dr. Longstaff é mencionado, está no Capítulo 25 da presente obra.
Em 1904, a Operação de Abra-Melin produziu resultado e o Santo Anjo Guardião de
Crowley, Aiwass, apareceu – contudo, não para entrar em conversação com ele, mas para
ditar O Livro da Lei. Ele tratou este evento profundamente significativo de uma forma muito
branda, como se ele realmente não acreditasse nele; ele meramente anunciou para uns
poucos amigos e conhecidos, como Arnold Bennett, que a velha palavra
do Cristianismo tinha sucumbido, e que um ‘Novo Æon’ havia começado para a
humanidade.
Crowley havia escrito bastante sobre O Livro da Lei nessas Confissões. Isso era inevitável,
pois o Livro é o coração do seu credo e o ponto de mudança da sua carreira. Sem a Lei de
Thelema (que está incorporada no Livro), ele teria sido apenas um mago menor como
Eliphas Lévi ou Mac Gregor Mathers, um dos muitos que estudaram os mistérios e
praticaram a magia de Abra-Melin ou o sistema Enoquianode John Dee ou algum outro
sistema mágico. O Livro era a força que o capacitou a cruzar o Abismo, e a prosseguir até se
tornar um Magus, e proclamar a sua palavra[10], tal como Allah e Buddha proclamaram as
suas.
Caso acreditemos nele, ele cruzou o Abismo em 1909 e apareceu no outro lado com o grau
de Mestre do Templo, ou seja, ele havia unido a sua consciência com a consciência universal,
deslocou o centro de gravidade de si mesmo para Deus. Então ele havia encontrado o
Santuário Secreto dos Santos ou a morada dos Chefes Secretos, e se tornou um deles; ele
tinha tido sucesso na sua busca. Sua poesia e exploração de montanhas são insignificantes
comparados a isto. Ele poderia compor um tipo bem sucedido de canção para café-concerto,
como ‘La Gitana’, e versos evocativos de rituais mágicos como o seu ‘Hino a Pan’, que ele
achava ‘o mais poderoso encantamento já escrito’ – certamente há uma qualidade fascinante
nele; porém ele carecia do equipamento para os vôos mais altos da poesia. E ele falhou ao
escalar o Kangchenjunga, foi rechaçado pelo demônio que protege os Cinco Picos Sagrados
(o nome local para o Kangchenjunga) e que levou como vítimas Alexis Pache, um tenente de
trinta e um anos da Cavalaria Suíça e quatro cães pastores.

A personalidade de Aleister Crowley era um enigma para Charles Richard Cammell, um dos
biógrafos de Crowley. ‘Me explique o enigma deste homem!’[11] Para Arthur Gauntlett, que
analisou o caráter de Crowley a partir do seu horóscopo, ele é ‘uma das mais enigmáticas
personalidades do nosso tempo’.[12] A esfinge com a face de Crowley propõe este enigma:
‘Por que eu afasto meus amigos e seguidores? Por que eu me comportei de modo tão vil?’ A
resposta deverá ser encontrada em alguns dos versículos em O Livro da Lei. ‘Não ateis nada!
Que não haja diferença feita entre você e qualquer coisa & qualquer outra coisa… A palavra
de Pecado é Restrição… Não existe lei além de Faze o que tu queres’. Os muitos papéis que
Crowley escolheu para si mesmo mostram que ele tomou este preceito literalmente. Ele não
fazia qualquer diferença ou distinção entre uma coisa ou outra; ele não era restrito; isso
quer dizer que ele não estava contido dentro de qualquer fronteira particular.
Ao contrário, ele era atraído por qualquer coisa que tocasse sua imaginação. Então, ele era
um cavalheiro inglês – ele sempre estava nos recordando daquilo – um lorde escocês, um
nobre russo, um príncipe persa, Alastor, o Espírito de Solidão, Paramahansa (o Cisne divino),
o Andarilho do Lixo, Deus, e acima de tudo, a Besta 666 que proclamou para toda a
humanidade a sua palavra de Faze o Que Tu Queres. Ele tinha um disfarce diferente para
cada estado de espírito. Em hipótese alguma vivia sob a sua própria pele.

Acima do grau de Magus existe o grau mais alto de todos, o de Ipsissimus, que está livre de
todas as limitações sejam quais forem, incluindo o bem e o mal, alguém difícil de ser
descrito. Crowley, para quem nada era muito difícil, não iria se restringir de assumir também
este grau. Na opinião de certos ocultistas, eis aonde ele deu um passo em falso. A sugestão
é, naturalmente, que ele assumiu ilegalmente este grau mais exaltado e que isto o sufocou.

O Símio de Thoth[13] o achou intolerável após ele ter se tornado Ipsissimus, e pouco depois
escreveu sobre ele no seu diário mágico que era ‘muito difícil’ pensar no ‘tipo mais podre de
criatura’ como uma Palavra (isso é, Thelema).
O importante evento Ipsissimus teve lugar na primavera de 1921 quando Crowley tinha
quarenta e cinco anos. Ele estava na sua abadia em Céfalu, Sicília, do outro lado da porta na
qual estavam pintadas as palavras FAZE O QUE TU QUERES. Ele estava sem dinheiro,
carregava a responsabilidade sobre duas amantes e vários filhos. Durante um tempo ele não
sabia qual caminho seguir apesar de ser um Mestre de todo tipo de Magia(k). Porém os
deuses não o abandonaram. Num lampejo de intuição, que veio a ele com uma força
esmagadora, ele penetrou o mistério definitivo. Este é o significado da ‘divindade’ de
Crowley, mas, rigorosamente falando, ele alcançara o estágio mais cedo na sua carreira.
Como Ipsissimus ele estava além dos deuses, além de todos os conceitos mentais. Eis a
razão, eu suponho, porque ele teve que se fortalecer para reconhecer que ele, ele mesmo,
conhecido entre os homens como Aleister Crowley, era por intuição e iniciação o Ipsissimus.
Não é de se surpreender que ele tenha escrito no seu diário (O Diário Mágico da Besta 666),
‘Eu estou mortalmente temeroso de fazê-lo. Temo que eu possa ser convocado para fazer
algum ato insano para provar o meu poder de agir sem apego’. Não obstante, ele entrou no
templo, seguido pelo Símio de Thoth. Sobre a verdadeira cerimônia ele nada diz, e na
conclusão, apenas ‘Como um Deus vai, eu vou’. E ele deixou o templo tão nu como ele o
havia penetrado, não mais um santo – Santo Aleister Crowley da Igreja Gnóstica – mas um
deus. Suas Confissões, que ele começou a escrever e a ditar pouco mais adiante, não
poderiam, portanto terem sido chamadas de uma autohagiografia, mas de uma
autoteografia.
Ele não revelou esta realização de Ipsissimus para ninguém. Sabemos dela através do
seu Diário Mágico. No Magick, publicação privativa, 1929, página 301, existe apenas esta
indicação: ‘Eu, A Besta 666, ergo a minha voz e juro que eu mesmo fui trazido mais próximo
pelo meu Anjo… Ele também me tornou um Magus… Sim, além disto, ele operou em mim
uma Obra de Prodígio, mas sobre este assunto eu jurei manter meu silêncio’.
Sob o complicado envolvimento, é possível discernir um padrão relativamente simples.
Outras pessoas não possuem ego, e são quase fracas, mas Crowley criou uma religião a
partir de sua fraqueza, resultante de ser sem-ego. Eu sei que esta ausência de ego é uma
condição que a filosofia indiana considera como um estado supremo, e é nesta direção que o
Sadhaka se esforça, porém no caso de Crowley este é o ponto a partir do qual ele inicia, e
não é a meta de seus esforços. [14] Além do mais, ele não era um oriental; ele tinha toda a
inquietação do europeu. De fato, ele avançou para onde os anjos, muito menos os Sadhakas,
temem caminhar. Ele não cruzou o Abismo, como nos conta na Seção 58 da presente obra,
deliberadamente; ele foi arremessado através dele. Ele carecia de uma força oposta
inibitória; ele estava sempre se arremessando em aventuras mágicas e outras.
Mas seja qual for o ponto de vista que se possa ter de O Livro da Lei, ele não foi escrito por
Crowley com intenção falsa ou irônica. Até o dia em que ele faleceu, ele acreditou que o
mesmo era uma peça de escrita inspirada; ele foi meramente o veículo da sua transmissão.
O ano era 1904; o local, o Cairo. Ele estava de férias com sua esposa, Rose. Foi ela que lhe
contou que Horus queria falar para ele. Ele ficou surpreso, pois ela nada sabia sobre
mitologia egípcia. ‘Quem é Horus?’ ele perguntou. Ela apontou para o deus com cabeça de
falcão no museu. ‘Eles estão aguardando por você’, ela disse. Ela então contou a ele como
entrar em contato com Horus, qual ritual realizar. Ele ergueu uma sobrancelha; ele estava
realizando rituais mágicos continuamente durante os seis anos anteriores. Mas ele fez como
ela disse, foi descalço e vestido com sua túnica mágica para dentro da sala que ele havia
consagrado como um templo e realizou a cerimônia invocatória. Em um estado semelhante a
um transe ele ouviu uma voz – não a voz de Horus, mas de alguém que se apresentou como
Aiwass, o Mensageiro. Crowley estava com a sua caneta tinteiro Swan; ele começou a
escrever.
A cosmologia de O Livro da Lei é assim explicada por Crowley: houve, na medida em que
sabemos, dois æons na história do mundo. O primeiro, de Ísis, é o æon da mulher; portanto
o matriarcado, a adoração da Grande Mãe e assim por diante. Por volta de 500 A.C. este
æon foi sucedido pelo æon de Osíris, ou seja, o æon do homem, o pai, daí as religiões
patriarcais de sofrimento e morte – Judaísmo, Budismo, Cristianismo e Islamismo. Este æon
chegou ao fim em 1904 quando Aleister Crowley recebeu O Livro da Lei, e o novo æon, de
Horus, o filho, nasceu. Neste æon a ênfase é sobre o verdadeiro ser ou vontade, não sobre
qualquer coisa externa tais como deuses e sacerdotes. A escolha de nomes egípcios para os
æons é puramente arbitrária.
O Livro da Lei é uma coletânea de sentimentos de um tipo rebelde, na sua totalidade
notavelmente similar aos sentimentos que o próprio Crowley expressava.
Ele escreveu um vasto comentário sobre o Livro; ele não está publicado. O breve comentário
que ele realmente publicou contém esta curiosa declaração: ‘O estudo deste Livro é
proibido… Aqueles que discutirem o conteúdo deste Livro deverão ser evitados por todos
como centros de pestilência’. Norman Mudd, Professor de Matemática Aplicada na Grey
University College, Bloemfontein, ‘guia, filósofo e amigo’ da Besta, foi tolo o suficiente para
ignorar esta advertência e foi atingido pelo desastre. (Vide nota na página 925, e Seção 96).

Para um homem que estava tendo visões em ocasiões freqüentes, ele era notavelmente não
introspectivo. Ele não tirou deduções da série de visões Enoquianas que ele experimentou no
deserto do norte africano junto com o seu chela, o poeta Victor Neuburg [15]. Estas assim
chamadas visões apresentam situações de desânimo e desespero, e outras de um tipo
inflamado ou compensatório. Os portões do céu e do inferno estão escancarados, maravilhas
e horrores são revelados, removidos, e o vidente volta ao ponto de onde começou. O estilo é
aquele do Velho Testamento, porém a qualidade numinosa das visões me parecem estar
ausente. Do ponto de vista da consciência comum, a roda não girou; não houve
metabolismo. Crowley não teve problemas pessoais para resolver e nenhuma ambição
mundana. Ao invés disso, a cena é animada pelo aparecimento do demônio Choronzon, o
resumo de toda desarmonia e confusão, que Crowley havia conjurado na forma de um
selvagem nu; ele partiu para cima de Neuburg e o feriu (vide Seção 66).
Crowley começou a escrever suas Confissões com um estado de espírito de otimismo, porém
ele as concluiu com incerteza e tristeza. O governo italiano havia reagido aos ataques sobre
o seu caráter no Sunday Express ao ordená-lo a deixar a Itália, e ele ditou a última seção no
exílio da sua abadia. Outra calamidade sucedeu rapidamente: Collins, que tinha publicado o
seu romance, O Diário de um Viciado em Drogas, decidiu por não publicar mais nada de
Aleister Crowley, embora eles tivessem dado um adiantamento para ele de 125 Libras
Esterlinas pela autohagiografia. Ele tinha quarenta e oito anos de idade, e as perspectivas
eram poucas. Isso não continuou por muito tempo. Uma nova Mulher Escarlate (Dorothy
Olsen) apareceu, e ele descartou o exausto Símio de Thoth; ele também encontrou um novo
grupo de seguidores na Alemanha, e durante o ano de 1925 ele esteve na Thuringia para
pregar a Lei de Thelema.
Em 1929, uma pequena firma de editores chamada de Mandrake Press publicou os dois
primeiros volumes da autohagiografia em uma série projetada de seis volumes. Ela trazia o
título:

O ESPÍRITO DA SOLIDÃO
Uma Autohagiografia
Subseqüentemente rebatizada como
AS CONFISSÕES DE
ALEISTER CROWLEY

A Mandrake Press também publicou um pequeno volume de três das estórias de Crowley, O
Estratagema, e seu romance mágico, Filho da Lua.
O terceiro volume da autohagiografia chegou à etapa de composição, mas nunca foi
publicado. Crowley brigou com os diretores da Mandrake Press. A firma teve seu controle
assumido pelos amigos e seguidores de Crowley, e prontamente saiu do negócio.

Este é o texto de todos os seis volumes, após algumas redundâncias terem sido removidas:
Crowley ditou a obra ao Símio de Thoth enquanto estava sob o efeito de heroína, o que o
fazia às vezes um pouco prolixo.

No início de 1945, o Profeta do Novo Æon foi morar numa pensão em Hastings. ‘Netherwood’
era uma grande mansão Vitoriana localizada em área de florestas naquela parte da periferia
da cidade conhecida como The Ridge. Ele publicou privativamente várias outras obras desde
o fracasso da Mandrake Press, notoriamente O Equinócio dos Deuses, 1937, no qual O
Livro da Lei é apresentado como a nova religião para a humanidade; três tablóides
patrióticos do tempo da guerra com sua fotografia usando turbante árabe; e O Livro de
Thoth, 1944, uma reorientação do tarô à luz da sua filosofia.
O resto da sua autohagiografia ainda não fora publicado; ele havia perdido as composições
do terceiro volume e os textos datilografados dos três volumes remanescentes estavam
espalhados entre os seus papéis. Por minha sugestão, ele os juntou e os entregou a um
datilógrafo. Uma cópia (encadernada em quatro partes) ele enviou para mim. Em sua
resposta à minha carta de agradecimento, ele escreveu, ‘Você foi um pouco despreocupado
ao me pedir para garantir que estes volumes do Hag não seriam perdidos para o mundo.
Custaram-me quase quarenta libras visto que não faz diferença’.
Suas vestes estranhas e o aroma doce, seu anel mágico com a inscrição hieroglífica, Ankh-f-
n-Khonsu, ‘sua vida está em Khonsu’ (o deus lunar de Tebas), sua vara mágica, repousando
no canto da sala um tanto desgastada na qual ele terminava os seus dias, tudo se somava à
sua presença assombrosa. Ele gastou toda a sua vida lutando através do Abismo ou, se
preferir, explorando o Inconsciente com o auxílio de todos os estimulantes e rituais mágicos
conhecidos; e na sua velhice ele acabou parecido com o que ele afirmava ser – um Chefe
Secreto. Sobre a parede, eu lembro, havia uma pintura, mal desenhada, porém efetiva, de si
mesmo como A Besta 666, um auto-retrato idealizado. (Ele havia coberto as paredes do
seu quarto de dormir – La Chambre des Cauchemars – na sua abadia com pinturas mágicas
que o vulgo achava obscenas.).
Eu acho que ele estava dizendo a simples verdade quando ele escreveu que ele parou
imediatamente uma briga entre árabes numa casa de café na Algéria ao interferir na luta,
desenhando rapidamente sigilos no ar com o seu anel mágico – uma pedra de safira estrela,
fixada por uma tira de duas serpentes douradas entrelaçadas – enquanto entoava em árabe
um capítulo do Alcorão. Com sua cabeça raspada e seu olhar hipnótico, ele causava uma
impressão forte, e em muitos casos duradoura, em muitas pessoas.

Ele era erudito em todos os assuntos relacionados à magia – ou Magick como ele preferia
soletrar. Ele usava o I Ching para explorar o futuro muito antes que aquela obra se tornasse
popular dentro dos círculos intelectuais no Ocidente. O seu maior mérito, talvez, foi o de
construir a ponte entre o Tantrismo e a tradição esotérica Ocidental, e assim unindo as
técnicas mágicas Ocidentais e Orientais. Ele atravessou a noite, não o dia.
JOHN SYMONDS

Hampstead
Agosto de 1968

Aos Três Amigos


J.W.N. SULLIVAN

Que sugeriu esta brochura

AUGUSTUS JOHN

O primeiro a prestar assistência técnica

P.R. STEPHENSEN

Que percebeu o momento

E a Três Memórias Imortais


RICHARD FRANCIS BURTON

O pioneiro perfeito da aventura espiritual e física

OSCAR ECKENSTEIN

Que me treinou para seguir a trilha

ALLAN BENNETT

Que fez o que pôde


PARTE UM
RUMO À AURORA DOURADA

O Olho de Horus dentro da Pirâmide de Fogo, radiando as chamas solares.


Um dos emblemas da Aurora Dourada usados por Crowley.

PRELÚDIO
‘Faze o que tu queres deverá ser o todo da Lei’[16]. Estas são palavras fundamentais não
apenas para esta autohagiografia — como ele divertidamente insiste em chamá-la — de
Aleister Crowley, mas para toda forma de biografia, biologia, até mesmo química.
‘Todo homem e toda mulher é uma estrela’[17]. O que podemos saber sobre uma estrela?
Através do telescópio, um débil fantasma do seu valor ótico. Através do espectroscópio, uma
sugestão sobre a sua composição. Pelo telescópio e por meio da nossa matemática, o seu
curso. Neste último caso nós podemos argumentar racionalmente do conhecido para o
desconhecido: pela nossa medida da breve curva visível, nós podemos calcular de onde ela
veio e para onde ela irá. A experiência justifica as nossas hipóteses.
Considerações deste tipo são essenciais para qualquer tentativa séria de fazer uma biografia.
Uma criança não é — como nossas avós pensavam — uma piada arbitrária jogada no mundo
por uma deidade cínica, para ser salva ou condenada como exigido pela predestinação ou
livre arbítrio. Nós agora sabemos que ‘aquilo, aquilo é, é’, como o velho ermitão de Praga
que nunca viu pena e tinta, muito espirituosamente disse a uma sobrinha do Rei Gorboduc.

Nada pode jamais ser criado ou destruído; e, portanto a ‘vida’ de qualquer indivíduo deve ser
comparável àquela breve curva visível, e o objetivo da escrita é profetizar por meio das
medições apropriadas o restante do seu curso.

O escritor de qualquer biografia deve perguntar, no sentido mais profundo, quem é ele? Esta
questão ‘quem és tu?’ é a primeira que é colocada a qualquer candidato à iniciação. E é
também a última. O que fulano é, o que fez e sofreu: estas são meramente pistas para
aquele grande problema. Então as memórias mais remotas de qualquer auto-hagiógrafo
serão imensamente valiosas; sua própria incoerência será um guia infalível. Pois, como
Freud demonstrou, nós lembramos (principalmente) aquilo que desejamos lembrar, e
esquecemos aquilo que é doloroso. Existe, portanto, grande risco de decepção quanto aos
‘fatos’ do caso; porém as nossas Memórias indicam com misteriosa precisão o que é a nossa
verdadeira vontade. E, como mostrado acima, é esta verdadeira vontade que mostra a
natureza do nosso movimento apropriado.

Ao escrever a vida do homem mediano, existe essa dificuldade fundamental, em que as


realizações são fúteis e sem sentido, mesmo do ponto de vista do filósofo prosaico; não há,
quer dizer, nenhuma unidade artística. No caso de Aleister Crowley nenhum Inimigo amorfo
desse tipo apareceu na encosta; pois ele próprio recorda da sua trajetória como uma
composição definitivamente dramática. Ela chega ao clímax em 8, 9 e 10 de abril de 1904
e.v. [18]
. O mais sutil incidente História de todo o universo parece a ele como uma preparação
para aquele evento; e a sua vida subseqüente é meramente o resultado daquela crise.
Por outro lado, contudo, existe o fato de que o seu tempo foi gasto de três maneiras muito
distintas: o Caminho Secreto do Iniciado, o Caminho da Poesia e da Filosofia, e o Mar Aberto
do Romance e da Aventura. De fato não é comum encontrar os dois primeiros, ou os dois
últimos elementos na molécula de um homem: Byron exemplifica este, e Poe aquele. Porém
é deveras raro para uma vida tão vigorosa e ao ar livre estar associada com tal devoção
profunda às artes do místico religioso; e neste caso particular todas as três trajetórias são
tão plenas que a posteridade poderia muito bem ser justificada por supor que não apenas
um, mas vários indivíduos foram combinados em uma lenda, ou mesmo para dar o próximo
passo e dizer: Este Aleister Crowley não era um homem, ou mesmo uma variedade de
homens; ele é obviamente um mito solar. Nem ele mesmo poderia negar tal acusação muito
brutalmente; pois bem antes de ele ter atingido a vida adulta, o seu nome estava
relacionado a fábulas não menos fantásticas do que aquelas que lançaram dúvidas sobre a
autenticidade histórica do Buda. A verdadeira vontade deste livro deveria ser esclarecer a
verdade sobre o homem. Ainda assim, aqui há novamente um leão no caminho. A verdade
deve ser falsidade a menos que ela seja verdade integral; e a verdade integral é
parcialmente inacessível, parcialmente ininteligível, parcialmente inacreditável e
parcialmente impublicável — ou seja, em qualquer país onde a verdade em si mesma seja
reconhecida como perigosamente explosiva.
Uma dificuldade a mais é apresentada pela natureza da mente, e especialmente da memória,
do próprio homem. Nós chegaremos a incidentes que mostram que ele é duvidoso a respeito
de circunstâncias claramente recordadas, quer estas pertençam à ‘vida real’ ou aos sonhos, e
até mesmo que ele tenha esquecido completamente coisas que nenhum homem normal
poderia esquecer. Mais ainda, ele superou tão completamente a ilusão do tempo (no sentido
usado pelos filósofos, de Lao Tzu e Plotinus a Kant e Whitehead) que ele muitas vezes acha
impossível desembaraçar os eventos como uma seqüencia. Ele atribuiu tão completamente
os fenômenos a um simples padrão que estes perderam os seus significados individuais,
exatamente do mesmo modo quando alguém compreendeu a palavra ‘gato’, as letras g a t o
perderam o seu próprio valor e se tornaram meros elementos arbitrários de uma idéia. Mais
ainda: ao recapitular a vida de uma pessoa em perspectiva a seqüencia astronômica para de
ser significativa. Os eventos se reorganizam a si mesmos em uma ordem fora do tempo e do
espaço, da mesma forma que numa pintura não há meio de distinguir em qual ponto sobre a
tela o artista começou a pintar. Ai de mim! É impossível fazer com que este seja um livro
satisfatório; urra! Isso oferece o estímulo necessário; passa a valer a pena fazê-lo, e por
Styx! Isto será feito.

Seria absurdo se desculpar pela forma deste livro. Desculpas são sempre nauseantes. Eu não
acredito nem por um momento que seria melhor de qualquer modo se eu o tivesse escrito
sob as circunstâncias mais favoráveis. Eu menciono meramente como um tema de interesse
geral as dificuldades reais que tratam de uma composição.

Desde o começo a minha posição era precária. Eu estava praticamente sem um centavo, eu
tinha sido traído do jeito mais vergonhoso e insensato por praticamente todas as pessoas
com quem eu mantinha relações comerciais, eu não tinha nenhum meio de acesso a
quaisquer das conveniências normais que são consideradas essenciais para as pessoas
engajadas em tais tarefas. No topo de tudo isso surgiu uma súbita tempestade de traição
injustificada e perseguição insensata[19], tão imbecil e ainda assim tão violenta a ponto de até
mesmo tirar o chão das pessoas mais sensíveis. Eu ignorei isso e segui em frente, mas quase
imediatamente eu e um dos meus principais assistentes fomos atingidos por uma doença
prolongada. Eu continuei. Meu assistente[20] morreu. Eu fui adiante. Sua morte era o sinal de
uma nova explosão de falsidades venenosas. Eu fui avante. A agitação resultou em eu sendo
exilado da Itália; embora nenhuma acusação de qualquer tipo fosse, ou pudesse ser alegada
contra mim. Aquilo significou que eu estava isolado até mesmo da mais elementar das
conveniências para escrever este livro. Eu prossegui. No momento da escrita deste parágrafo
tudo em relação ao livro está completamente no ar. Eu estou indo em frente.
Mas a parte de tudo isso, eu senti por completo uma dificuldade essencial a respeito do
formato do livro. A questão é muito grande para ser suscetível de estrutura orgânica a
menos que eu faça um esforço deliberado de vontade e uma seleção estritamente arbitrária.
Seria mais fácil para mim, como de fato, escolher qualquer um de cinqüenta significados
para minha vida, e ilustrá-la com fatos cuidadosamente escolhidos. Qualquer método destes
estaria aberto à crítica que está sempre pronto para devastar qualquer forma de idealismo.
Eu mesmo senti que isto seria injusto e, mais ainda, não verdadeiro. A alternativa foi tornar
os incidentes tão completos quanto possível, para declará-los tal como ocorreram,
inteiramente sem atribuí-los a qualquer possível significado espiritual. Este método envolve
certa fé na própria vida, de que ela declarará o seu próprio significado e partilhará a relativa
importância de todo conjunto de incidentes automaticamente. Em outras palavras, isso é
afirmar a teoria de que o destino é um artista supremo, o que notoriamente não é o caso de
qualquer definição aceitável sobre arte. E ainda assim – uma montanha! Que massa de
acidentes heterogêneos determina a sua forma! Embora, no caso de uma bela montanha,
quem negaria a beleza e até mesmo o significado da sua forma?

Nos anos mais recentes da minha vida, por eu ter alcançado alguma compreensão da
unidade que está por trás dos diversos fenômenos da experiência e, como a restrição natural
da elasticidade que chega com a idade ganhou terreno, se tornou progressivamente mais
fácil agrupar eventos ao redor de um propósito central. Porém isto significa apenas que o
princípio de seleção foi alterado. Nos meus primeiros anos, as reais estações, climas e
ocupações determinaram as fases da minha vida. Minhas atividades espirituais se
encaixaram naquelas molduras, enquanto que, mais recentemente, o caso é uma situação
oposta. Meu ambiente físico se enquadra na minha preocupação espiritual. Esta mudança
seria suficiente por si mesma para garantir a impossibilidade teórica de editar uma vida
como a minha sobre qualquer princípio consistente.

Eu me encontro obrigado, por estes e muitos outros motivos, a abandonar completamente


qualquer ideia de conceber uma estrutura artística para a obra ou formular um propósito
artístico. Tudo o que posso fazer é descrever tudo o que me lembro, da melhor maneira
possível, como se isso fosse, em si mesmo, o centro de interesse. Eu devo confiar na
natureza de modo a ordenar assuntos que, na multiplicidade do material, a proporção
adequada surgirá automaticamente de algum jeito, exatamente como nas operações de pura
chance ou lei inexorável, uma unidade enobrecida pela força e embelezada pela harmonia
surge misteriosamente da concatenação caótica das circunstâncias. Pelo menos uma
afirmação pode ser feita; nada foi inventado, nada foi suprimido, nada foi alterado e nada
‘envelhecido’. Eu creio que a verdade não é apenas mais estranha que a ficção, mas é mais
interessante. E não tenho motivo algum para decepção, porque eu não dou a mínima por
toda a raça humana – ‘vocês não são nada mais do que um maço de cartas’.
1
Edward Crowley[21], o rico herdeiro de uma linhagem de Quakers, foi pai de um filho nascido
na casa número 30 da Clarendon Square, Leamington, Warwichshire [22], no dia 12 de
Outubro[23] de 1875 E.V. entre as onze e às doze da noite. Leão estava ascendendo
exatamente naquela hora, tanto quanto pôde ser verificado. O ramo da família de Crowley ao
qual este homem pertencia se estabeleceu na Inglaterra desde a época dos Tudor: nos dias
da Rainha Má Bess havia um Bispo Crowley, que escreveu epigramas no estilo Marital. Um
deles – o único que eu conheço – segue assim:
As cafetinas dos bordéis foram todas expulsas:

Mas acho que elas vivem em toda a Inglaterra.

(Eu não consigo encontrar o livro moderno que o cita como nota de rodapé e não pude
localizar o volume original.)

Os Crowleys são, contudo, de origem Celta; o nome O’Crowley é comum no sudoeste da


Irlanda, e família Bretã de Quérouaille – que deu à Inglaterra uma Duquesa de Portsmouth –
ou de Kerval é da mesma linhagem. Diz a lenda que o então chefe da família veio à
Inglaterra com o Conde de Richmond e ajudou a torná-lo rei de Bosworth Field.

Edward Crowley teve uma formação escolar como engenheiro, porém nunca exerceu a sua
profissão[24]. Ele era devotado à religião e se tornou um seguidor de John Nelson Darby, o
fundador da “Fraternidade Plymouth”. O fato apresenta um lógico austero; pois a seita é
caracterizada pela recusa à transigência; ela insiste na interpretação literal da Bíblia
conforme as palavras exatas do Espírito Santo[25].
Ele se casou (em 1874, pode-se supor) com Emily Bertha Bishop, de uma família de Devon e
Somerset. O pai dela tinha falecido e seu irmão Tom Bond Bishop veio para Londres
trabalhar no Serviço Civil. Os pontos importantes sobre a mulher são que os seus colegas de
escola a chamavam de “a pequena garota chinesa”, que ela pintava usando aquarela com
um gosto admirável destruído pelo treinamento acadêmico, e que os seus poderosos
instintos naturais foram suprimidos pela religião a ponto em que ela se tornou, após a morte
do seu marido, uma fanática insensata do tipo mais tacanho, lógico e desumano. Ainda
assim sempre havia uma luta; ela vivia realmente angustiada, quase diariamente, por se
sentir obrigada pela sua religião em realizar atos da mais insensata atrocidade.

O seu filho primogênito, acima mencionado, era notável desde o momento da sua chegada.
Ele trazia em seu corpo as três marcas distintivas mais importantes de um Buda. Ele tinha a
língua presa, e no segundo dia da sua encarnação um cirurgião cortou o freio lingual. Ele
também tinha a membrana característica, que necessitava uma operação de fimose uns
quinze anos mais tarde[26]. Por fim, ele tinha sobre o centro do seu coração quatro pelos que
se curvavam da esquerda para a direita na forma exata de uma Suástica[27].
Ele foi batizado com o nome Edward Alexander, sendo o último o sobrenome de um velho
amigo do seu pai, profundamente estimado por ele pela santidade de sua vida – conforme os
padrões da Fraternidade Plymouth, é possível supor. Parece provável que o garoto ficou
profundamente impressionado ao lhe contarem, não se pode precisar a idade (antes dos
seis), que Alexander significa “auxiliador dos homens”. Ele ainda está se devotando
apaixonadamente à tarefa, apesar do cinismo intelectual inseparável da inteligência depois
que se chega aos quarenta.

Mas o fato extraordinário relacionado com a sua cerimônia batismal é este. Como a
Fraternidade Plymouth pratica o batismo de crianças por imersão, isso deve ter ocorrido nos
três primeiros meses de sua vida. Ainda assim ele tem uma recordação visual perfeitamente
clara da cena. Ela teve lugar num banheiro no primeiro andar da casa onde ele nasceu. Ele
se lembra do formato do recinto, a disposição da sua mobília, o pequeno grupo de “irmãos” à
sua volta, e a surpresa de, estando vestido com uma roupa branca e longa, ser rapidamente
mergulhado e erguido da água. Ele também tem uma clara lembrança auditiva de palavras
pronunciadas solenemente por sobre ele; embora elas nada significassem, ele ficou
impressionado pelo tom peculiar. Não é impossível que aquilo tenha provocado nele uma
antipatia quase invencível pelo mergulho em água fria, e ao mesmo tempo uma vívida
paixão pelo discurso cerimonial. Estas duas qualidades foram partes altamente importantes
no seu desenvolvimento.

Este batismo, pelo jeito, embora nunca o tivesse preocupado, ofereceu perigo para a alma
do outro. Quando a conduta de sua esposa o obrigou a insistir em que ela se divorciasse dele
– uma formalidade tão sem significado quanto o seu casamento – e ela se tornou insana logo
depois, um eminente masoquista chamado Coronel Gormley, R.A.M.C. (morto anteriormente,
e desde então) estava à sua espera nos portões do asilo para se casar com ela. O problema
é que ele incluía entre as suas lacunas intelectuais uma devoção à superstição Católica. Ele
temia a condenação caso se casasse com uma alcoólatra divorciada com demência não
parvo-parcial. O pobre molusco perguntou a Crowley sobre detalhes do seu batismo. Ele
escreveu respondendo que havia sido batizado “em nome da Santíssima Trindade”.

Agora parecia que, caso estas palavras de fato tivessem sido usadas, ele era um pagão, seu
casamento inválido, Lola Zaza uma bastarda e sua esposa uma luz de amor!
Crowley tentou ajudar o verme infeliz: mas, ai, ele se lembrava muito bem da formula: “Eu
te batizo Edward Alexander em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Então o galante
coronel teve que pagar por uma desobrigação de Roma. O próprio Crowley gastou um monte
de dinheiro de um jeito ou de outro. Mas ele nunca chegou ao ponto de desperdiçar um
centavo sequer no truque das três cartas, ou no truque dos três Deuses.

Ele também mantém a mais clara visualização de algumas das pessoas que o cercavam nos
seis primeiros anos da sua vida, que ele passou em Leamington e na redondeza, as quais ele
jamais voltou a visitar. Em particular, havia uma velha senhora de cor alaranjada chamada
Miss Carey que costumava lhe trazer laranjas. A primeira memória de fala tem o seu
comentário. “Ca’ey, onange”[28]; isso, contudo, é recordado porque mais tarde lhe contaram.
Mas ele mantém uma memória plenamente consciente da sala de jantar da casa, sua mobília
e quadros, com seus arranjos. Ele também se recorda de várias caminhadas pelo campo,
especialmente uma através de campos verdes, onde aparece um carrinho de bebê. A rua
principal de Leamington, e o Leam com a sua represa – desde então ele adorava represas –
Guy’s Cliffe em Warwick, e o Castelo com o seu terraço e os pavões brancos: todos estes
eram tão claros como se ele os tivesse visto na semana passada. Ele não se recorda de
nenhum outro quarto na casa exceto o seu próprio dormitório, e isso apenas porque ele “caiu
em si” uma noite quando encontrou um fogo aceso, uma chaleira soltando vapor, uma
mulher estranha presente, uma atmosfera de ansiedade e uma sensação de febre; pois ele
teve um ataque de bronquite.
Ele se lembra da sua primeira governanta, Miss Arkell, uma senhora de cabelos grisalhos
com vestígios de barba sobre seu rosto grande e liso e um vestido preto o qual ele chama
bombasine[29], embora até este momento ele não saiba o que possa ser bombasine, e acha
que o vestido era de alpaca, ou que até mesmo este possa ser de seda dura e lisa.
E ele se lembra do primeiro indício de que a sua mente era de um tipo lógico e científico.

As damas agora vão gentilmente pular uma página, enquanto eu exponho os fatos perante
uma seleta audiência de advogados, médicos e ministros de religião.
As Senhoras Cowper eram compostas pela Irmã Susan e a Irmã Emma; a primeira grande,
avermelhada e seca, como um rabanete muito crescido; a outra era pequena, rosada e
úmida, mais como a Tartaruga de Tenniel. Ambas eram Irmãs Plymouth solteironas. Elas
eram muito repulsivas ao garoto, que desde então nunca mais gostou de cabeça de bezerro,
embora fosse favorável a pratos similares, nem era capaz de ouvir os nomes Susan ou
Emma sem sentir aversão.

Um dia ele disse algo à sua mãe, que havia deduzido de sua curiosa declaração anatômica:
“Damas não têm pernas”. Pouco tempo depois, quando as Senhoritas Cowper estavam no
jantar com a família, ele desapareceu da sua cadeira. Deve ter havido uma leve comoção no
recinto, levando à questão do seu paradeiro. Mas naquele momento uma voz suave veio
debaixo da mesa: “Mamãe! Mamãe! A Irmã Susan e a Irmã Emma não são damas!”.

Esta dedução era perfeitamente genuína: mas no seguinte incidente o cinismo talvez possa
levar às raízes de certo humor sarcástico. A criança estava acostumada a mostrar seus
pontos de vista, quanto o silêncio parecia discrição, através de gestos faciais. Várias pessoas
foram precipitadas o suficiente ao lhe dizer para não fazer caretas, pois ele “poderia ficar
paralisado daquele jeito”. Ele então responderia, com um ar de iluminação após uma longa
meditação: “Então eis a razão disto”.

Todas as crianças nascidas em uma família cujas condições sociais e econômicas são
estáveis estão sujeitas a considerá-las na certeza como um padrão universal. É apenas
quando elas se encontram frente a frente com fatos incompatíveis, que elas começam a se
questionar se estão ajustadas ao seu ambiente original. Neste caso particular os incidentes
mais insignificantes da vida foram necessariamente interpretados como parte de um plano
pré-estabelecido, como o começo de Candide.
A teoria subjacente da vida que foi assumida na família se apresenta constantemente na
prática. É estranho que, menos de cinqüenta anos depois, esta teoria pareceria uma loucura
demasiada fantástica para merecer um relato detalhado.

O universo foi criado por Deus em 4004 A.C.. A Bíblia, versão autorizada, era literalmente
verdadeira, tendo sido ditada pelo próprio Espírito Santo a escribas incapazes de cometer até
mesmo erros de transcrição. Os tradutores do Rei James gozavam de igual imunidade. Era
considerado incomum – portanto de gosto duvidoso – apelar aos textos originais. Todas as
outras versões eram consideradas como inferiores; a Versão Revisada em particular tinha
sabor de heresia. John Nelson Darby, o fundador da Fraternidade Plymouth, sendo um
estudioso bíblico muito famoso, foi convidado a tomar assento no comitê e recusou baseado
em que alguns dos outros estudiosos eram ateus.

A segunda vinda do Senhor Jesus era confiantemente esperada para ocorrer a qualquer
momento[30]. Esta era tão iminente, que planejamentos para um futuro distante – tais como
contratar um financiamento ou fazer um seguro de vida – poderia ser considerado como
implicando em falta de confiança na promessa, “Sede atentos que eu voltarei em breve”.
Um incidente pateticamente trágico – alguns anos depois – ilustra a realidade deste absurdo.
Para as pessoas modernas e com escolaridade deveria ser impensável que uma superstição
tão fantástica poderia se tornar tal obsessão infernal nos tempos recentes e em tais
ambientes familiares.

Numa bela manhã de verão, em Redhill, o garoto – agora com oito ou nove anos – se cansou
de brincar sozinho no jardim. Ele voltou para a casa. Ela estava estranhamente silenciosa e
ele ficou assustado. Por algum estranho acaso, todos estavam fora ou então haviam subido
ao piso superior. Porém ele saltou para a conclusão de que “o Senhor havia chegado, e que
ele havia sido deixado para trás”. Era algo compreensível que não haveria esperança para as
pessoas nesta situação. À parte do Segundo Advento, sempre era possível ser salvo no exato
momento da morte; mas uma vez que os santos haviam sido chamados, o dia da graça
havia finalmente acabado. Vários rebates e digressões ocorreriam de acordo com o
Apocalipse, e então viria o milênio, quando Satã seria acorrentado por mil anos e Cristo
reinaria por aquele período sobre os Judeus reunidos em Jerusalém. A posição destes Judeus
não é muito clara. Eles não foram salvos no mesmo sentido que os Cristãos haviam sido,
embora eles não fossem condenados. O milênio parecia ser considerado como um
cumprimento da promessa de Deus para Abraão; mas aparentemente esta nada tinha a ver
com a “vida eterna”. Entretanto, mesmo essa beatitude modificada não estava aberta aos
Gentios que haviam rejeitado a Cristo.

A criança ficou conseqüentemente muito aliviada pelo ressurgimento de alguns dos


moradores da casa que ele não poderia imaginar como tendo perdido eternamente.

O número dos remidos, mesmo na terra, estava pintado nas cores mais brilhantes.
Acreditava-se que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus e que
são chamados conforme o Seu propósito”. A vida terrena era considerada como uma
provação: este era um mundo perverso e a melhor coisa que poderia acontecer a alguém era
“partir para estar com Cristo, que é muito melhor”. Por outro lado, os condenados foram
para o lago de fogo e enxofre que arde para sempre. Edward Crowley costumava entregar
folhetos para estranhos, além de distribuí-los aos milhares através do correio; ele também
estava constantemente pregando para grandes multidões através de todo o país. Esta era,
de fato, a única ocupação lógica para um homem humano que acreditava que até mesmo os
mais nobres e os melhores da humanidade seriam condenados à punição eterna. Uma carta
– uma grande favorita, como sendo peculiarmente mortal – era intitulada “As Últimas
Palavras da Pobre Anne”; a essência do seu discurso parece ter sido “Perdido, perdido,
perdido!” Ela foi uma empregada na casa do Edward Crowley mais velho, e o seu delírio de
morte provocou uma profunda impressão sobre o filho da casa.

Pelo jeito, Edward Crowley possuía o poder, de acordo com Higgins, o professor da obra de
Bernard Shaw, Pygmalion, de distinguir instantaneamente, a partir da fala de um homem,
em que parte do país ele vivia. Era seu lazer fazer jornadas a pé por todas as partes da
Inglaterra, evangelizando em toda cidade e vilarejo por onde passava. Ele se empenharia
igualmente em conversar com estranhos, diagnosticar e fazer prescrições para seus males
espirituais, em registrá-los nas suas agendas de endereços, se corresponderia e enviaria
literatura religiosa por muitos anos. Naquele tempo, religião era a mania popular na
Inglaterra e poucos se ressentiriam com os seus cuidados. Sua viúva continuou o envio dos
folhetos, etc., por muitos anos após a morte dele.
Como pregador Edward Crowley era magnificamente eloqüente, do modo em que falava
direto do coração. Porém, sendo um cavalheiro, ele não poderia ser um evangelista real, que
significa psicologia da manipulação da histeria de massa.
2
Se surgiam problemas no mundo externo, eles eram considerados como o início do
cumprimento das profecias em Daniel, Mateus e da Revelação. Mas era subentendido que a
Inglaterra era especialmente favorecida por Deus por conta da separação com Roma. A
criança, que naquele período era chamada pelo incômodo nome de Alick, supunha que seria
uma lei da natureza que a Rainha Victoria jamais morreria e que os fundos consolidados
jamais iriam abaixo da média.

Crowley se lembra, como se a tivesse visto ontem a sala de jantar e a cerimônia das orações
da família após o desjejum. Ele se lembra da ordem em que a família e os serviçais se
sentavam. Um capítulo da Bíblia era lido, com cada pessoa presente recitando um verso cada
um na sua vez. Aos quatro anos de idade ele conseguia ler perfeitamente bem. O que era
estranho a respeito disso não era tanto a sua precocidade, mas o fato de que ele era muito
menos interessado nas narrativas bíblicas do que nos extensos nomes hebraicos. Um dos
sermões favoritos do seu pai era baseado no quinto capítulo do Gênesis; por mais longos que
fossem os anos de vida dos patriarcas, todos eles morriam no final. Baseado nisso ele
poderia argumentar que os seus ouvintes também morreriam; portanto seria melhor que
eles não perdessem tempo a fim de garantir o céu. Porém o interesse de Alick estava no som
dos próprios nomes – Enoch, Arphaxad, Mahaleel. Ele muitas vezes se questiona se essa
curiosa peculiaridade era sintomática das suas subseqüentes realizações em poesia, ou se
isso indicaria a atração que a Cabala Hebraica exerceria sobre ele mais tarde.

Com relação à questão da salvação, pelo jeito, a teoria da exclusiva Irmandade Plymouth era
peculiar, e de algum modo era experimentada dentro de uma mentalidade lógica. Eles
defendiam a predestinação tão rigidamente quanto Calvin, embora isto de maneira nenhuma
interferisse com a livre vontade completa. O ponto crucial era fé em Cristo, aparentemente
mais ou menos intelectual, mas, desde que “os demônios também crêem e tremem”, isto
deveria ser complementado por uma aceitação voluntária de Cristo como o seu salvador
pessoal. Sendo assim, surgiu a questão sobre se os Católicos Romanos, Anglicanos ou
mesmo os Não-conformistas, poderiam de algum modo ser salvos. O sentimento geral
parece ter sido de que era impossível estar perdido qualquer um que já tenha uma vez sido
realmente salvo, seja o que for que tenha feito [31]. Mas estava, naturalmente, além do poder
humano determinar se qualquer indivíduo havia ou não encontrado a salvação. Isso,
contudo, estava claro: que aquele que oferece qualquer ensinamento ou aceitação da falsa
doutrina deve ser banido com a excomunhão. Os líderes da Irmandade eram
necessariamente, profundos teólogos. Não havendo autoridade de qualquer tipo, qualquer
irmão fosse quem fosse poderia enunciar qualquer doutrina que em qualquer ocasião, e esta
anarquia já havia resultado, antes da abertura da nossa história, na divisão da Irmandade
em duas grandes seitas: a Aberta e a Exclusiva.
Philip Gosse, o pai de Edmund Gosse, era um líder entre a Irmandade Aberta, que se
diferenciava da Irmandade Exclusiva, a princípio, apenas por admitir, na mesa do Senhor, a
presença de “Cristãos Declarados” não definitivamente afiliados a eles mesmos. Edmund
Gosse descreveu a atitude do seu pai em Pai e Filho. Muito do que ele escreveu taxes a
credulidade do leitor. Uma estreiteza e um fanatismo tais como as de Philip Gosse pareciam
além do que se possa crer. Ainda assim Edward Crowley considerava Philip Gosse como
suscetível a ser condenado como latifundiário! Ninguém que amasse o Senhor Jesus no seu
coração poderia ser tão descuidado da honra do seu Salvador a ponto de “repartir o
pão”[32] com um homem que poderia estar tendo opiniões contrárias às escrituras.
Os leitores de Pai e Filho se lembrarão do incidente do peru de Natal, secretamente
comprador pelos serviçais do Sr. Gosse e lançado na lixeira por ele ao estilo de Moisés ao
destruir o bezerro de ouro. Pois a Irmandade corretamente considerava o Natal como sendo
um festival pagão. Eles não enviavam cartões de Natal e destruíam qualquer um que
pudesse ter sido enviado a eles por “bodes” imprudentes ou blasfemos. Para não desapontar
Alick, que gostava de peru, a família tinha aquela ave para o almoço nos dias 24 e 26 de
Dezembro. A idéia era “evitar até mesmo a aparência do mal”; não havia nada de realmente
errado em comer peru no dia de Natal; pois os ídolos pagãos são meramente madeira e
pedra – o trabalho das mãos dos homens. Mas não se deve deixar que os outros suponham
que se está aderindo aos costumes pagãos.
Outra lembrança distante. Em 29 de Fevereiro de 1880, Alick foi levado para ver o corpo de
sua irmã falecida, Grace Mary Elizabeth[33], que viveu por apenas cinco horas. O incidente
deixou uma curiosa impressão nele. Ele não percebia o motivo pelo qual ele deveria estar
perturbado tão inutilmente. Ele não poderia ajudar em nada; a criança estava morta; ele
nada tinha a ver com isso. Essa atitude foi mantida ao longo da sua vida. Ele jamais esteve
presente em qualquer funeral[34] exceto o de seu pai, no qual ele não se preocupou em
participar, pois ele se sentia como sendo o verdadeiro foco de interesse. Porém quando
outros morreram, embora em dois casos pelo menos o seu coração foi dilacerado como se
por uma fera selvagem, e a sua vida realmente prejudicada por meses e anos pela
catástrofe, ele sempre deixou de lado os fatos necrológicos e as orgias costumeiras. Pode ser
que ele tenha uma convicção profundamente enraizada de que a conexão de uma pessoa
com o seu corpo é puramente simbólicos. Mas também existe o sentimento de que o fato da
morte destrói todo possível interesse; o desastre é irreparável, ele deve ser esquecido assim
que possível. Ele nem ao menos se uniria à equipe de resgate após o acidente do
Kangchenjunga. Que razão haveria para escavar cadáveres congelados debaixo de uma
avalanche? Os próprios cadáveres não o repugnavam; ele é tão interessado em salas de
dissecação quanto em qualquer outra coisa. Quando ele encontrou o cadáver do Cônsul
Litton, ele virou as costas, sabendo que o homem estava morto. Mas quando o corpo foi
trazido para Tengyueh, ele assistiu com firmeza ao inquérito, porque neste caso havia um
objetivo em determinar a causa da morte[35].
Outro grupo de incidentes da infância distante. A família foi ao oeste da Inglaterra para o
verão. Alick se recorda de Monmouth, ou melhor, do Castelo Monmouth. É curioso que, no
ato de lembrar isso para o propósito deste livro, ele estava obcecado pela ideia de que não
poderia haver tal lugar como Monmouth; o nome parecia fantasioso. Ele se confundia na sua
mente com “Monstro” e “Mamute”, e se passavam horas antes que ele conseguisse se
convencer da sua realidade. Ele se lembra de estar em uma fazenda algo distante da estrada
e tem uma impressão muito vaga de ter se familiarizado com animais tais como patos e
porcos. Muito mais claramente chega a visão dele mesmo sobre um pônei com pessoas
caminhando aos lados. Ele se lembra de ter caído, começado a gritar e de ser carregado para
a casa pela governanta assustada (ou quem quer que fosse) que estava cuidando dele. Este
evento teve um resultado trágico. Ele deveria ser recolocado sobre o pônei e ser forçado a
vencer os seus medos. Como de fato aconteceu, ele nunca foi capaz de se sentir à vontade
sobre o dorso de um cavalo, embora ele tenha cavalgado por milhares de milhas, muitas
delas através de campos realmente perigosos.

Por outro lado – memória subconsciente de encarnações anteriores, ou a sua alma Oriental,
ou o fato de que ele superou o fato após ter aprendido sobre a estupidez do medo? – ele se
sentiu perfeitamente à vontade sobre um camelo desde a primeira vez. E isso apesar do fato
que estes animais agem como oficiais de alta patente e até mesmo – se desprezíveis – como
cônsules, e pareciam (quando velhos) com damas inglesas empenhadas em boas obras. (Há
muita coisa do abutre no tipo de cabeça.).

Um incidente relacionado a esta viagem é de interesse extraordinário como se lançasse uma


luz sobre futuros eventos. Caminhando com seu pai por um campo, cujo aspecto geral ele se
lembra perfeitamente bem até hoje, sua atenção foi chamada para uma moita de urtiga e ele
foi alertado de que ela poderia causar dores agudas se ele os tocasse. Ele não se lembra do
que ele respondeu, mas não importa, isso fez com que o seu pai perguntasse, “Você vai
acreditar na minha palavra ou será melhor aprender pela experiência?” Ele respondeu, “Seria
melhor se eu aprendesse pela experiência”, e avançou mais com a cabeça para dentro da
moita.

Este verão foi marcado por duas escapadas por um triz. Ele se lembra de estar sentado ao
lado do condutor de uma carruagem com o que parecia a ele ser uma caixa
extraordinariamente alta, embora esta impressão possa meramente significar que ele era um
garoto muito pequeno. A carruagem estava descendo um morro por uma estrada que fazia
uma curva através de um monte íngreme de grama muito verde. Ele se lembra do ranger
dos freios. Subitamente seu pai saltou da carruagem e gritou para o condutor que uma roda
estava se soltando. O único traço que isso deixou mais tarde em sua vida é que ele nunca
gostava de viajar em veículos incomuns a menos que ele estivesse no controle. Ele se tornou
um ciclista e um motorista imprudente, mas ele ficou apreensivo por um longo tempo com
relação aos automóveis exceto quanto às rodas.

O último evento deste período ocorreu numa estação de trem. Ele se lembra da sua
aparência geral e a do pequeno grupo familiar. Um carregador, cambaleando sob um pesado
baú, de repente deixou que este caísse das suas costas. Ele quase esmagou o garoto por um
fio de cabelo. Ele não se recorda se foi puxado com força, ou se houve qualquer outra coisa,
exceto da exclamação do seu pai, “O anjo guardião dele o estava vigiando”. Parece possível
que esta distante impressão tenha determinado seu curso mais tarde em sua vida quando
ele passou a se interessar pela Magia[36]; pois o único documento que o envolveu foi O Livro
da Sagrada Magia de Abra-Melin o Mago, no qual a obra essencial é “Obter o Conhecimento e
a Conversação do Santo Anjo Guardião”.
É muito importante mencionar que a mente da criança era quase anormalmente normal. Ele
não apresentava tendência para ter visões, como até mesmo as crianças comuns sempre
demonstram. A Bíblia era o seu único livro neste período; porém nem a narrativa nem a
poesia provocaram quaisquer impressões profundas nele. Ele era fascinado pelas passagens
misteriosamente proféticas, especialmente aquelas em Revelação. O Cristianismo no seu lar
era totalmente agradável a ele, e ainda assim as suas afinidades eram com os oponentes do
céu. Ele suspeita obscuramente que isto era parcialmente um amor instintivo pelo terror. Os
Antigos e as harpias pareciam domados. Ele preferia o Dragão, o Falso Profeta, a Besta e a
Mulher Escarlate, por serem mais excitantes. Ele se divertia com as descrições sobre
tormento. Pode-se suspeitar, ainda mais, de uma deformação de masoquismo congênito. Ele
gostava de se imaginar em agonia; em particular, ele gostava de se identificar com a Besta
cujo número é o número de um homem, seiscentos e sessenta e seis. Pode-se apenas
conjeturar que este foi o mistério do número que determinou esta escolha pueril.

Muitas das memórias, até mesmo da mais tenra infância, parecem ser as de um indivíduo
bem adulto. É como se a mente e o corpo do garoto fossem um simples meio sendo
preparado para a expressão de uma alma completa já existente. (A palavra meio é usada
aqui quase exatamente no mesmo sentido que no espiritualismo). Este sentimento é muito
forte; e implica em uma convicção inabalável de que os fatos são tal como acima sugeridos.
Dificilmente a explicação poderá falhar ao indicar a existência de um espírito imanente (o ser
verdadeiro) que se utiliza das encarnações, e possivelmente de muitos outros meios, de
tempos em tempos de modo a observar o universo em um ponto de vista particular, tanto
quanto um telescópio decifra uma nebulosa.
O masoquismo congênito do qual nós falamos exige uma investigação mais profunda. Por
toda a sua vida ele foi quase excessivamente sensível à dor física, mental e moral. Não
existe perversão nele que a torne aprazível, apesar de que a fantasia do desejo de ser ferido
persistiu na sua imaginação desperta, embora ela nunca tenha se manifestado nos seus
sonhos. É provável que estas peculiaridades estejam relacionadas a certos fatos anatômicos
curiosos. Enquanto sua masculinidade esteja acima do normal, tanto fisiologicamente quanto
testemunhado pelo seu poderoso crescimento da barba, ele possui certas características
femininas bem definidas. Não apenas os seus membros são tão delgados e graciosos quanto
os de uma garota, mas também seus peitos são desenvolvidos até um grau demasiado
anormal. Portanto existe um tipo de hermafroditismo na sua estrutura física; e isto é
naturalmente expressado na sua mente. Porém, enquanto que na maioria dos casos
similares as qualidades femininas aparecem às custas da masculinidade, nele estas foram
adicionadas a um tipo masculino perfeitamente normal. O principal efeito foi o de capacitá-lo
a entender a psicologia das mulheres, a observar qualquer teoria com olhos compreensivos e
imparciais, e a dotá-lo com instintos maternais nos planos espirituais. Então ele foi capaz de
vencer as mulheres que ele conheceu dentro do próprio jogo delas e de emergir da batalha
do sexo triunfante e ileso. Ele foi capaz de filosofar sobre a natureza a partir do ponto de
vista de um ser humano completo; certos fenômenos sempre serão ininteligíveis aos homens
como tal, outros, para as mulheres como tal. Ele, por ser ambos ao mesmo tempo, foi capaz
de formular uma visão de existência que combina o positive e o negativo, o ativo e o
passivo, numa única equação idêntica. Finalmente, tão intensamente quanto à paixão
masculina selvagem de criar o inflamou, esta foi modificada pela docilidade e
conservadorismo da feminilidade. Repetidas vezes no curso desta história, encontraremos
suas ações sendo determinadas por esta estrutura dual. Não há dúvida que tipos similares
tenham existido anteriormente, mas nenhum como este foi estudado. Apenas sob a luz de
Weininger e Freud[37] é possível selecionar e interpretar os fenômenos. A presente
investigação deveria ser de um extraordinário valor ético, pois deve ser em uma
circunstância rara que um indivíduo com tais qualidades anormais tão claramente marcadas
tivesse treinado a si mesmo para mostrar auto-análise e manter um registro quase diário da
sua vida e obra que se estendeu por aproximadamente um quarto de século[38].

3
Quando Alick tinha cerca de seis anos de idade seu pai se mudou de Leamington para
Redhill, Surrey. Havia alguma razão relacionada com um solo arenoso e a vida do campo. A
casa era chamada The Grange. Ela se erguia em um extenso jardim que terminava com
algumas árvores que se projetavam sobre a estrada entre Redhill e Merstham; cerca de uma
milha, talvez um pouco mais, de Redhill. Alick viveu lá até 1886 e a sua memória deste
período é de perpétua felicidade. Ele se lembra com o máximo de clareza os inúmeros
incidentes e se torna difícil selecionar aqueles que possuem significado. Ele foi educado por
tutores; porém eles desapareceram, embora as suas lições não. Ele era completamente
fundamentado em geografia, história, Latim e aritmética. Seu primo, Gregor Grant, seis anos
mais velho do que ele, era uma visita constante; uma indulgência de algum modo estranha,
pois Gregor fora criado no Presbiterianismo. O moço era muito orgulhoso da sua linhagem.
Edward Crowley costumava ridicularizar isto, dizendo, “Minha família cresceu a partir de um
jardineiro que foi expulso do jardim por roubar os frutos do seu patrão.”. Edward Crowley
não permitiria que se dirigissem a ele como “Escudeiro” ou mesmo “Sr.”. Isto parece um
pouco de atavismo, para um Crowley ter solicitado a Charles I para tirar o brasão da família;
seu sucessor, entretanto, pedira a Charles II para os restaurasse, o que foi feito. Isto é
evidência do orgulho satânico da raça. Edward Crowley desprezava as dignidades humanas
porque ele era um cidadão do céu. Ele não aceitaria favores ou honrarias de qualquer um a
menos que fosse Jesus Cristo.

Alick se recorda de uma senhora que estava na casa pedindo por uma subscrição em auxílio
dos Nossos Soldados no Egito. Edward Crowley a intimidou e ameaçou até as lágrimas com
um longo sermão sobre “bíblias e aguardente”. Ele era, contudo, amargamente oposto ao
Exército Condecorado. Ele disse que os abstêmios eram propensos a confiar em boas obras
para ir para o céu e, portanto, deixam de perceber sua necessidade de Jesus. Ele pregou
num domingo na prefeitura, dizendo, “Seria melhor se eu pregasse para mil bêbados do que
para mil abstêmios fanáticos”. Eles replicaram acusando-o de estar ligado aos “Cervejeiros
de Crowley”. Ele respondeu que tinha sido um abstêmio por dezenove anos, durante os quais
ele tinha participação numa cervejaria. Ele agora tinha parado de se abster por algum
tempo, mas todo o seu dinheiro estava investido numa fonte artesanal [39].
Além de Gregor Grant, os únicos colegas de diversões de Alick eram os filhos da Irmandade
local. O sentimento aristocrático era extremamente forte. Uma encenação infantil comum, na
qual várias personalidades do momento, tais como Sir Garnet Wolseley e Arabi Pasha, eram
representadas, era elaborada na prática através de um ataque unido contra aqueles que eles
chamavam de canalhas. Alick se recorda especialmente de ficar recostado às margens do
arvoredo aguardando pelas crianças no seu caminho para a Escola Nacional. Elas tinham que
cruzar uma barragem de espinhos e ervilhas e por fim ficavam tão assustadas que elas
acabaram descobrindo um caminho de desvio.

De frente para o caminho, ao longo da estrada, havia um poço de areia. Alick se lembra de
saltar no topo com um bastão de alpinista e atacar um operário em serviço no poço,
fazendo-o cair, e fugindo em disparada para casa. Mas nem sempre ele era tão corajoso.
Uma vez ele perfurou com o mesmo bastão de alpinista, a caixa de um menino de entregas.
O menino, entretanto, era um italiano; e perseguiu o agressor até The Grange, quando
naturalmente os mais velhos intervieram. Mas ele se lembra de estar muito assustado e
triste devido a alguma relação na sua mente entre italianos e perfurações. Aqui está
novamente uma curiosa questão de psicologia. Ele não teme ser golpeado ou cortado; mas a
ideia de ser perfurado acaba com a sua tranqüilidade. Ele tem que se recompor muito
vigorosamente mesmo no caso de uma seringa hipodérmica.

Sempre houve algo que sugerisse o oriental – Chinês ou Egípcio antigo – na aparência
pessoal de Alick. Assim como a sua mãe havia sido chamada na escola de “a pequena garota
chinesa”, também a sua filha, Lola Zaza, tinha a fisionomia Mongol ainda mais pronunciada.
O seu pensamento segue esta indicação. Ele nunca foi capaz de simpatizar com qualquer
religião ou filosofia européia; e do pensamento Judaico ou Maometano ele assimilou apenas
o misticismo dos Cabalistas e dos Sufis. Mesmo a psicologia Hindu, tão profundamente
quanto a estudou, jamais o satisfez completamente. Como será observado, o próprio
Budismo falhou em conquistar sua devoção. Porém ele se sentia instantaneamente à vontade
com o Yi King[40] e os escritos de Lao Tzu. Estranho o bastante, o simbolismo Egípcio e a
prática mágica fizeram um apelo igual; incompatíveis como estes dois sistemas parecem na
superfície, sendo um ateísta, anárquico e passivo, e o outro teísta, hierárquico e ativo.
Mesmo neste período o Oriente o atraiu. Há um episódio muito significativo. Em alguma
história da Revolta Indiana havia o retrato de Nana Sahib, um perfil orgulhoso, feroz, cruel e
sensual. Este era o seu ideal de beleza. Ele odiava acreditar que Nana Sahib fora capturado e
morto. Ele queria encontrar Nana Sahib, tornar-se seu aliado, partilhar as torturas de
prisioneiros, e ainda assim sofrer em suas mãos. Quando Gregor Grant estava fingindo ser
Hyder Ali, e ele fingindo ser Tipu Sahib, uma vez ele pediu ao seu primo, “Seja cruel para
mim.”.
A influência do Primo Gregor nesta época era proeminente. Quando Gregor era Rob Roy,
Alick era Greumoch, o escudeiro fora da lei no romance de James Grant. Os MacGregors se
referiam a Alick como sendo do mais real, injustiçado, romântico, bravo e solitário dos clãs.
Não pode haver dúvida que esta fantasia desempenhou um grande papel ao determinar a
sua apaixonada admiração pelo chefe da Ordem Hermética da Aurora Dourada, um homem
de Hampshire chamado Mathers que inexplicavelmente afirmava ser MacGregor de
Glenstrae.

A atitude do garoto perante seus pais é um dos fatos mais marcantes do início da sua vida.
Seu pai era seu herói e seu amigo, embora, por uma ou outra razão, não havia quaisquer
intimidade ou compreensão conscientes. Ele sempre detestou e desprezou sua mãe. Havia
uma repulsão física, e um menosprezo intelectual e social. Ele a tratava quase como uma
criada. Talvez seja por conta disto que ele não se lembra praticamente nada sobre ela
durante esse período. Ela sempre o contrariava. Ele se lembra de um domingo quando ela o
pegou lendo Martin Rattler e o repreendeu. Edward Crowley assumiu sua parte. Se o livro
era bom o suficiente para ler a qualquer dia, por que não no domingo? Para Edward Crowley,
todo dia era Dia do Senhor; sabatismo era Judaísmo.
Quando Alick estava com oito anos ou quase isso ele foi levado pelo seu pai para a sua
primeira escola. Essa era uma escola particular em St. Leonards, mantida por um homem
idoso chamado Habershon e seus dois filhos, estritamente evangélicos. Edward Crowley
queria advertir o seu filho contra o incidente mais comum da vida escolar inglesa. Ele usou
um jeito muito sábio. Ele leu para o garoto, de um modo bem marcante, a estória da
embriaguez de Noé e os seus resultados, concluindo: “Jamais permita que alguém o toque
ali.”. Deste modo, a prescrição foi dada sem despertar curiosidade mórbida.

Alick pouco se recorda da sua vida nesta escola além de uma vívida lembrança da área de
lazer com os seus “passos de gigante”. Ele não se lembra de qualquer um dos garotos,
embora os três mestres se destacassem o suficiente. Um evento muito extraordinário se
conservou. Num papel de prova, ao invés de responder uma questão ou outra, ele fingiu ter
entendido errado e escreveu uma resposta digna de James Joyce. Ao invés de vender uma
edição limitada a um preço extravagante, ele estava profundamente injuriado. Não
arrependido de modo nenhum, ele começou a desejar a morte do Velho Habershon. Estranho
o suficiente, esta ocorreu dentro de umas poucas semanas; e ele sem hesitar assumiu o
crédito para si mesmo.

O intelecto do garoto era surpreendentemente precoce. Deve ter sito muito em breve logo
após a mudança para Redhill que um alfaiate chamado Hemming veio de Londres para
confeccionar roupas novas para o seu pai. Sendo um “irmão”, ele era um convidado na casa.
Ele se ofereceu para ensinar xadrez para Alick e foi muito bem sucedido, pois ele perdeu
todos os jogos após o primeiro. O garoto se recorda perfeitamente do método. Era capturar
um bispo avançado atacando-o com peões (Ele realmente inventou a Armadilha Tarrasch de
Ruy Lopez antes mesmo que tivesse lido um livro sobre xadrez.). Isso arrancou do seu
perplexo professor a exclamação, “O seu filho é muito sagaz com os seus peões, Sra.
Crowley!”.

Como de fato, deveria haver um significado maior que isto. Alick certamente tinha uma
aptidão especial para o jogo; pois ele não mais encontrou o seu mestre até um dia fatal de
1895, quando W. V. Naish, o Presidente da C. U. Ch. C. [41] derrotou o “novato” que o havia
derrotado em Peterhouse, o lar do Sr. H. E. Atkins, desde então sete vezes campeão amador
da Inglaterra e ainda assim uma figura formidável no Torneio dos Mestres.
Aqui pode ser observado que o jovem imprudente tentou pegar Atkins numa armadilha com
um novo movimento inventado por ele mesmo. Este consiste em jogar K R B Sq, ao invés
das Torres, no Gambito Muzio, sendo a idéia permitir às peças Brancas jogar P Q 4 em
resposta à Q B 3.

Em 1885 Alick foi transferido de St. Leonards para uma escola mantida por um Irmão
Plymouth, um ex-clérigo chamado H. d’Arcy Champney, M.A.. É um pouco difícil explicar a
psicologia do garoto neste período. Ela foi provavelmente determinada pela sua admiração
por seu pai, o grande líder de homens, forte e amigável, que agitou milhares pela sua
eloqüência. Ele desejava sinceramente seguir aqueles passos poderosos e assim lutou para
imitar o grande homem no melhor que pudesse. Conseqüentemente, ele queria se tornar o
mais devote seguidor de Jesus na escola. Ele não era hipócrita de maneira alguma.

Tudo isso é percebido como absolutamente natural; o que é extraordinário é a seqüela.

Uma carta da época do início da sua vida escolar em Cambridge:

Queridos Papai e Mamãe,

Como prêmio pelo meu trabalho no feriado eu ganhei um canivete magnífico, duas
lâminas, uma serra, uma chave de fenda, uma coisa para arrancar espinhos, outra
para remover pedras das ferraduras dos cavalos, outra que nem sei para que serve,
um furador para couro, uma verruma e um saca-rolha e uma placa com nome. Ela
tem placas de níquel em algumas partes, mas o cabo é de marfim. O asfalto [42] abriu
caminho próximo ao meio. Estávamos perto de explodir a caldeira [43] há pouco tempo
atrás, sem piadas. Tínhamos um ½ feriado que nos davam na sexta-feira. Por favor,
me mande um pouco de dinheiro para os fogos de artifício. Enviem a minha
caderneta por volta do dia 1º, por favor. Estou muito bem, obrigado! Eu me uni a um
grupo de amigos, que estão com as bênçãos de Deus, indo tentar e ajudar os outros
e falar a eles sobre as suas almas. Eu escreverei novamente em breve. Escrevam
rápido, por favor.
Adeus
Seu filho amado
ALEC

Ele estava completamente feliz nesta escola; os garotos gostavam dele e o admiravam; ele
fez um notável progresso nos seus estudos e estava muito orgulhoso do seu primeiro
prêmio, o Selborne de White, por alcançar o primeiro lugar em “Conhecimento Religioso,
Clássicos e Francês”.
Porém até este dia ele nunca havia lido o livro! Ele tinha uma aversão profunda, instintiva e
inextirpável por certas linhas de estudo. História Natural, de algum modo, é uma destas. É
difícil sugerir um motivo. Ele não gostava de analisar a beleza? Ele sentia que certos
assuntos não eram importantes, não levavam a nada do que ele queria explorar? Contudo,
pode ser que ele costumasse compor a sua mente com uma finalidade absoluta como se ele
tomasse ou não uma direção em particular. Se o fizesse, estaria ansioso por isto como o
gamo atrás dos riachos de água; se não, nada conseguiria persuadi-lo a perder uma hora
com isto.

Foi enquanto ele estava nesta escola que ele começou a escrever poesia. Ele não tinha lido
nenhuma, exceto “Casabianca”, “Excelsior”, o burlesco de Sir Walter Scott e lixos do gênero.
Porém ele tinha um amor genuíno pelo simples Hinos para o pequeno Flock compilado pela
“Irmandade”. Seu primeiro sabor de poesia real foi com Lycidas, preparado para o Exame
Local de Cambridge, se a sua memória ainda o ajuda corretamente. Ele se apaixonou por ela
no mesmo instante e a tinha memorizado em poucos dias. Mas os seus próprios esforços
iniciais eram direcionados mais para as linhas do que o hinário. Restaram apenas umas
poucas linhas.

Terror, e escuridão, e horrível desespero!

Agonia estampada sobre a fronte outrora plácida do homem que se recusou a abandonar

O amor pelo cálice transbordante, cheio de vinho.

“O vinho é um zombeteiro, o álcool é colérico”.

Não ter vinho na morte é seu tormento confortante.

Deste o período de Redhill restam algumas memórias de dois verões, um na França e na


Suíça, e outro nas Terras Altas.

O primeiro deixou inúmeros vestígios, principalmente de um caráter visual; o Grande Hotel


em Paris, Lucerna e Lion, William Tell, o Bears em Berna, o Rigi, o Staubbach, Trummelbach
e Giessbach, Basle e o Rhine, a Dança da Morte. Apenas dois pontos nos preocupam: ele
desaprovava violentamente ser levado na manhã fria para assistir o nascer do sol em uma
plataforma no Rigi-Kulm e para a iluminação de uma queda d’água com luzes coloridas. Ele
sentia agudamente que a natureza deveria ser deixada livre para seguir seu próprio rumo e
ele o seu também! Havia uma imensidão de beleza no mundo; por que ficar desconfortável
apenas para contemplar um extra? Além disso, você não pode melhorar uma queda d’água
com arte cênica!

Existe nisso o esboço de uma completa filosofia de vida.

Quanto às Terras Altas Escocesas, a mente do garoto estava tão envenenada pelo romance
que ele não viu nada que pudesse se lembrar. O cenário era meramente uma montagem
para os devaneios estúpidos de Roderick Dhu!

Outros três episódios do período de Redhill são pertinentes; não que eles sejam por si
mesmos muito significativos, salvo que dois deles mostram Alick no personagem de um
garoto normalmente malicioso com alguma habilidade de explorar a psicologia de outras
pessoas. Porém eles ilustram o ambiente singular.

Um freqüente convidado no The Grange era um velho cavalheiro chamado Sherrall, cujo vício
era óleo de rícino. Edward Crowley tinha o hábito de realizar “reuniões para chá”; um tanto
ou mais de pessoas seriam convidadas para o que é vulgarmente conhecido como uma
bebedeira, e quando o animal físico estava satisfeito, haveria uma orgia de elevação
espiritual. Sobre a mesa de mogno na sala de jantar, esticada no seu comprimento máximo,
ficariam duas chaleiras de prata com chá. Uma delas com o óleo de rícino do Sr. Sherrall foi
esvaziada pelo jovem Alick. Até agora, tudo bem. A questão é esta, que as pessoas que se
serviram daquela chaleira eram muito polidas ou receosas fosse para chamar a atenção da
sua anfitriã ou para se abster da maldita bebida. A única precaução necessária era evitar que
a própria dama visse uma das chaleiras adulteradas.

Uma brincadeira bastante similar foi realizada numa reunião de orações na casa da um
Irmão chamado Nunnerley. Foi oferecido refresco antes da reunião; e uma Irmã chamada
Sra. Musty tinha seu demérito por conta da sua notória avidez. Alick e alguns colegas
conspiradores ficaram assediando a ela com comida mesmo após todos terem terminado sua
refeição, com o objetivo de atrasar a reunião de orações. A própria mulher foi muito estúpida
para perceber o que estava acontecendo e a Irmandade não poderia ser suficientemente
rude mesmo para demonstrar seus sentimentos.

Esta hesitação em agir com autoridade, que era parte da objeção teórica geral de P. B. ao
sacerdotado, em certa ocasião chegou a um ponto dentro das seguintes circunstâncias. Um
Sr. Clapham, cujo odor da barba verdadeiramente o denunciava como sendo um peixeiro,
tinha uma esposa e uma filha que estava comprometida com um Sr. Munday. Estes três
tinham ido a uma excursão à Boulogne; e, por acidente ou desígnio, o casal de noivos
perdeu o barco para Folkestone. Novamente era uma questão de evitar até mesmo o
surgimento do mal e a Srta. Clapham foi expulsa da irmandade. Deve-se presumir que seu
marido acreditava que ela era inocente de toda cumplicidade, como a priori parece ser a
hipótese mais natural. De qualquer modo, na próxima manhã de domingo ela tomou seu
assento junto ao seu esposo na Mesa do Senhor. É quase inconcebível que qualquer reunião
de seres humanos, unidos para celebrar o supremo sacramento do seu credo, tivesse sido
destituída de quaisquer meios de salvaguardar a decência comum. Mas o receio do sacerdote
era supremo; e toda a reunião aguardou impaciente por mais de uma hora num silêncio
constrangedor. Por fim, um padeiro chamado Banfield se ergueu trêmulo em perguntou
timidamente: “Eu posso perguntar ao Sr. Clapham se é a intenção da Sra. Clapham
compartilhar o pão esta manhã”. Então a Sra. Clapham saiu do recinto e bateu a porta, após
o que a reunião procedeu como de costume.

O Bourbonismo ainda sobrevive entre algumas pessoas na Inglaterra. Eu me recordo de ter


explicado alguns dos meus atos a Gerald Kelly[44] como tendo sido aconselhados pelo meu
advogado. Ele respondeu desdenhosamente, “Advogados são criados!” A posição social do
Lorde Chancellor e outros funcionários legais da Coroa significava para ele não mais do que a
preponderância de advogados nos conselhos da nação. Ele insistia na fútil estupidez de que
qualquer homem que usasse seu cérebro para ganhar a vida era inferior. Isto é um caso
extremo de um ponto de vista excepcionalmente estúpido, porém a raiz psicológica da
atitude permeia os conceitos ingleses. A definição de auto-respeito contém uma cláusula que
inclui o desprezo impiedoso para com alguma outra classe. Na minha infância, a Sra.
Clapham – uma de suas aventuras já foi registrada – uma vez teve uma reação comum na
infelicidade conjugal. “Como eu poderia alguma vez ter amado aquele homem?” ela
exclamou; “porque, pois ele pega o sal com a sua faca!” Não há como avisar à esposa de um
peixeiro que tal devoção sublime à etiqueta é ridícula de qualquer modo. A sociedade inglesa
está impregnada de alto abaixo com este estado de espírito. A suprema satisfação é ser
capaz de desprezar o seu vizinho e este fato vai além por conta da intolerância religiosa. É
evidentemente consolador refletir que as pessoas da porta ao lado estão destinadas ao
inferno.
Praticamente todos os garotos nascem com este espírito [45] aristocrático. Na maioria dos
casos eles perdem a sua determinação, em parte devido às intimidações por outros garotos,
em parte pela experiência. No caso de Alick, ele era o filho único de um pai que era
naturalmente um líder de homens. Nele, portanto, este espírito cresceu despercebido. Ele
não conhecia superior além do seu pai; e embora aquele pai evitasse ostensivamente
assumir autoridade sobre as outras Irmandades, esta não era, obviamente, menor ali. O
garoto parece ter desprezado desde o começo a ausência de hierarquia entre a Irmandade,
embora ao mesmo tempo eles formassem o corpo religioso mais exclusivo da terra, sendo as
únicas pessoas que iriam para o céu. Há, portanto uma extrema contradição psicológica
inerente nesta situação. É improvável que Alick estivesse ciente ao mesmo tempo dos
sentimentos reais que devem ter sido implantados nele por este ambiente; mas o resultado
principal foi indubitavelmente estimular o ser orgulho e ambição até um grau muito nocivo
(?). Sua posição social e financeira, a inveja óbvia dos seus associados, sua indiscutível
intrepidez pessoal, física e intelectual, tudo combinado para tornar impossível a ele ficar
satisfeito em assumir qualquer lugar no mundo que não fosse o topo. A Irmandade Plymouth
se recusava a ter qualquer participação na política. Entre eles, o nobre e o camponês se
enquadravam teoricamente como iguais, de modo que o sistema social da Inglaterra era
simplesmente ignorado. O garoto não poderia aspirar a se tornar primeiro ministro ou
mesmo um rei; ele já estava apartado e distante de tudo aquilo. Isto será visto assim que
ele chegou a uma idade onde as ambições são forçadas a assumir forma concreta, e sua
posição ficou extremamente difícil. A terra não era grande o suficiente para comportá-lo.
Ao fazer uma revisão da sua vida até Maio de 1886, ele pode encontrar pouca consecução e
praticamente nenhuma coerência nas suas recordações. Porém daquele mês em diante
houve uma mudança. É como se o evento que ocorreu a cada tempo criasse uma nova
faculdade na sua mente. Um novo fator havia surgido e o seu nome era morte. Ele foi
chamado na escola para voltar para casa no meio do período escolar para participar de uma
reunião de orações especial em Redhill. Seu pai tinha adoecido. O médico local foi enviado
para ver Sir James Paget, que tinha avisado sobre uma operação urgente de câncer da
língua. As Irmandades de longe e das proximidades estavam reunidas para ajudar a
conhecer a vontade do Senhor quanto ao assunto. A conclusão é que a operação fora
recusada; ficou decidido tratar a doença através do eletro-homeopatia do Conde Mattei, um
sistema atualmente descartado como sendo charlatanismo extraordinariamente ultrajante.
Nenhum médico aderiu a esta forma de burla que estava sendo disponibilizada localmente.
The Grange foi abandonada e uma casa chamada Glenburnie foi adquirida em Southampton.

Em 5 de Março de 1887, Edward Crowley faleceu. O curso da doença foi praticamente


indolor. Apenas um ponto de interesse para o nosso presente propósito. Na noite de 5 de
Março, o garoto – distante na escola – sonhou que o seu pai havia falecido. Não existe razão
para isso na maneira comum, pois os relatórios eram altamente otimistas. O garoto se
recorda que a qualidade do sonho era inteiramente diferente de qualquer coisa que ele
tivesse conhecido. A notícia sobre a morte não chegou a Cambridge até a manhã seguinte. O
interesse sobre este fato depende de um paralelo subseqüente. Durante os anos que se
seguiram, o garoto – e o homem – sonhou repetidamente que a sua mãe estava morta; mas
no dia da sua morte ele – então três mil milhas distante – teve o mesmo sonho, salvo que
este era diferente dos outros por possuir esta qualidade peculiar indescritível, porém
inequívoca que ele recordou em conexão com a morte do seu pai.

A partir do momento do funeral a vida do garoto entrou numa fase inteiramente nova. A
mudança foi radical. Dentro de três semanas da sua volta à escola ele se meteu em encrenca
pela primeira vez. Ele não se lembra por qual delito [46], mas apenas que a sua punição foi
amenizada por conta da sua perda. Este foi o primeiro sintoma de uma inversão completa da
sua atitude com relação à vida em todos os aspectos. Parece óbvio que a morte do seu pai
deve ter sido causalmente conectada a isso. Mas ainda assim, os eventos continuam
inexplicáveis. As condições da sua vida escolar, por exemplo, dificilmente poderiam ter sido
alteradas, embora a sua reação à elas faz com que seja quase inacreditável que este fosse o
mesmo garoto.
Antes da morte de Edward Crowley, as lembranças do seu filho, por mais que vívidas ou
detalhadas, parecem a ele estranhamente impessoais. Ao projetar a sua mente para aquele
período, ele sente, embora a atenção descubra constantemente novos fatos, que ele está
investigando o comportamento de outro alguém. É apenas a partir deste ponto que ele
começa a pensar sobre si mesmo na primeira pessoa. A partir deste ponto, contudo, ele
assim o faz; E é capaz de continuar a sua autohagiografia num estilo mais convencional ao
falar sobre si mesmo como “Eu”.
4
Eu naturalmente não fazia idéia na época que a morte do meu pai faria qualquer diferença
prática ao meu ambiente. Em muitos casos similares provavelmente não faria diferença. A
maioria das viúvas naturalmente continua lidando bem com a vida.

Do modo como as coisas estavam, eu me encontrei em um ambiente totalmente novo. As


opiniões religiosas do meu pai tenderam a aliená-lo de sua família; e os amigos que ele tinha
conquistado dentro do seu próprio círculo não tinham nenhum interesse em visitar a minha
mãe. Eu fui lançado na atmosfera de sua família. Ela se mudou para Londres a fim de ficar
mais próxima do seu irmão, com quem até então eu raramente havia me encontrado.

Tom Bond Bishop era uma figura proeminente nos círculos religiosos e filantrópicos em
Londres. Ele tinha um cargo mais ou menos importante na Alfândega, mas não tinha
ambições relacionadas ao Serviço Público. Ele dedicava todo o seu tempo livre e sua energia
para a propagação do Evangelismo do tipo mais extraordinariamente limitado, ignorante e
fanático no qual ele acreditava. Ele havia fundado a União da Escritura das Crianças e a
Missão do Serviço Especial das Crianças. A primeira dita às crianças quais passagens da
Bíblia elas deverão ler diariamente: a segunda as tira das suas brincadeiras no litoral e as
entrega aos delírios de piedosos não graduados ou evangélicos exaltados contratados.
Dentro dos seus limites, ele era um homem de inteligência aguçada e grande habilidade
executiva e organizacional. Uma tripulação mais sinceridade fanática; um Cotton Mather
menos imaginação; poder-se-ia dizer até mesmo um Paulo privado de habilidade lógica, e
este defeito era alimentado por uma pretensão invulnerável. Ele era inacessível à dúvida;
ele sabia que ele estava certo em todas as questões.
Uma vez eu coloquei uma questão para ele: suponha que um alpinista estivesse preso por
uma corda a outro que tivesse caído. Ele não pode salvá-lo e também deverá cair a menos
que ele corte a corda. O que ele deveria fazer? Meu tio respondeu, “Deus jamais permitiria
que um homem fosse colocado em tal situação!!!!”. Esta declaração insensata o tornou
mental e moralmente inferior ao gado dos campos. Ele obedeceu aos impulsos cegos
selvagens e os tomou pelas sanções do Todo Poderoso.

“Às glândulas lacrimais de um crocodilo ele adicionou as vísceras de compaixão de um


rinoceronte inflexível; com a mediocridade e a crueldade de um eunuco ele combinou a
avareza de cálculo de um Judeu Escocês, sem o uísque de um ou a imaginação complacente
do outro. Pérfido e hipócrita como a fábula Jesuíta ou Protestante, ele era adulador como
Uriah Heep, e no resto possuía os vícios de Joseph Surface e Tartuffe; ainda assim, sem as
fraquezas humanas que os torna possíveis, ele era um vilão mais virtuoso e, portanto, mais
odioso.

“Na feição lembrava um símio barbeado, na figura um bassê desajeitado, sua aparência
pessoal era desagradável à primeira vista. Porém as roupas confeccionadas por um alfaiate
da Cidade emprestavam uma harmonia geral ao conjunto de tal modo que reconciliasse o
observador com o fenômeno observado.

“O seu discurso era plausível de incomparável astúcia; ele ocultava a sua genialidade sob
uma mascara de incomparável mediocridade e a sua força intelectual sob o manto de
piedade. Na religião ele era um Evangélico, aquele tipo de Inconformista que permanece na
Igreja na esperança de capturar a sua organização e os seus proventos.
“Um associado de criaturas de uma Providência inescrutável tais como Coote e Torrey, ele
ultrapassou a um em beatice, e ao outro em fanatismo, embora ele sempre achasse a
chantagem um erro tático muito arriscado e calunioso[47].
Nenhum fanático mais cruel, nenhum vilão mais desprezível, já caminhou sobre esta terra.
Meu pai, obstinado como ele era, tinha humanidade e certo grau de bom-senso; ele tinha
uma mente lógica e nunca confundia os assuntos espirituais com os materiais. Ele jamais
teria acreditado, como meu tio, que o corte e as cores das “vestes de domingo” fossem um
assunto de importância para a Divindade. Tendo decidido que a fé, e não as obras eram
essenciais para a salvação, ele não poderia atribuir qualquer importância vital para as obras.
Para ele, a razão para se abster do pecado era simplesmente porque ele mostrava ingratidão
para com o Salvador. No caso do pecador, era quase que um sinal esperançoso que ele
devesse pecar completamente. Ele estaria mais propenso a alcançar aquela convicção de
pecado que mostraria a ele a sua necessidade de salvação. A punição física do pecado
(novamente) provavelmente o faria ficar de joelhos. Boas obras por parte do pecador eram
inúteis. “Toda a nossa retidão é como trapos sujos.”. Este era o truque favorito do demônio
para induzir as pessoas a confiar no seu bom caráter. A parábola do Fariseu e do Publicano
ensinavam isso claro o suficiente.

Eu não sei se o meu Tio Tom conseguiu encontrar quaisquer argumentos contra esta teoria,
mas na prática ele tinha um horror daquilo que ele chamava de pecado que era exagerado
quase ao ponto de insanidade. Seus talentos, eu poderia quase dizer a sua genialidade [48], lhe
concedeu uma tremenda influência. Na sua própria casa ele era um tirano implacável e
insignificante; e foi para dentro deste antro de amarga escravidão que eu fui subitamente
arremessado da minha condição de ar fresco, liberdade e de herdeiro.
Ele morava em Londres, naquilo que era então chamado Thistle Grove. O nome desde então
foi trocado para Drayton Gardens, apesar de uma petição entusiasticamente apoiada por
Bishop; a objeção era que um bar na vizinhança era chamado de Drayton Arms. Esta é uma
atitude em relação à vida típica do meu tio. Seu senso de humor. Quando eu o chamava de
“Tio”, ele ria em silêncio, “Ó minha alma profética, meu tio!”.

Mas chegou o tempo quando eu sabia a maior parte de Hamlet de memória, e quando ele
numa próxima vez disparou a sua “piada”, eu continuei a citação, respondendo duramente,
“Ai, aquela incestuosa, aquela besta adúltera!” – Eu estou, de certo modo, feliz em pensar
que ao fim de sua vida longa e obscena eu havia me reconciliado com ele. Exatamente a
última carta que ele recebera de mim admitia (embora com um pouco de má vontade) que a
sua mente era tão distorcida que ele realmente não fazia ideia da coisa tão vil que ele era.
Eu acho que isso deve ter mexido com o seu senso de vergonha. Pelo menos, eu jamais
recebi qualquer resposta.
Eu suponho que a família em Thistle Grove era tão representativa de uma parte da
Inglaterra quanto se possa imaginar. Ela era inclassificável. Ela não era nem classe alta nem
classe media-baixa. Ela não tinha individualidade suficiente mesmo para pertencer a uma
categoria. Minha avó era uma velha dama particularmente charmosa. Ela ficava
inexpressivamente dignificada nas suas sedas pretas e no seu chapéu de laço. Ela fora
trazida do campo por exigência do cargo do seu filho no Serviço Público. Ela era
extremamente adorável; jamais consegui me recordar de ter ouvido alguma palavra de
animosidade saindo da sua boca. Ela era viciada no infame bezique [49]. Naturalmente, era
impossível ter “Os Livros de Gravuras do Demônio” numa casa freqüentada pelas luzes
orientadoras do Evangelismo. Porém a minha Tia Ada tinha pintado um maço de cartas no
qual os naipes eram rosas, violetas, etc. Era o mesmo jogo; porém a camuflagem satisfazia
a consciência do meu tio. Nenhum fariseu já poliu a superfície da xícara e do pires mais
assiduamente do que ele.
Minha avó era a segunda esposa do seu marido; do primeiro casamento havia dois filhos
remanescentes; Anne, uma donzela robusta e sensual, que sempre me encheu de intensa
repulsão física; ela era reluzente e oleosa com um nariz manchado e lábios finos úmidos.
Toda noite ela escondia uma garrafa de cerveja escura debaixo do braço e a levava para
cama com ela – acrescentando esta “piada” invariável – “Meu bebê!”. Ainda hoje, quando
acontece de pessoas beberem cerveja escura na mesa em que eu estiver sentado,
instintivamente eu dou um jeito de não vê-lo.

Seu irmão John morou durante muitos anos na Austrália usufruindo a riqueza e a distinção
cívica. Sua riqueza ruiu quando sua saúde foi afetada; e ele voltou à Inglaterra para morar
com a família. Ele era um típico homem destemido que gostava da vida ao ar livre com toda
a liberdade de pensamento, fala e modos coloniais. Ele se encontrou sob o poder do código
mordaz do seu meio-irmão. Ele tinha que fumar o seu cachimbo escondido e ele foi oprimido
na sua alma até que a sua mente cedeu. Nas orações da família as orações eram
perpetuamente dirigidas a ele; a sua personalidade sendo cuidadosamente descrita a menos
que o Senhor equivocasse a sua identidade. A descrição seria adequada ao assassino comum
tal como observada por um pacifista singularmente cruel.

Eu estou particularmente orgulhoso de mim mesmo quanto ao modo pelo qual me comportei
em relação a ele. Era impossível evitar gostar da alma simplória genial do homem. Eu me
lembro de um dia em Streatham, depois que ele e minha avó viram morar conosco, em que
eu tentei animá-lo. Sacudindo-se todo, ele me explicou quase em lágrimas que ele temia que
ele “não estivesse totalmente correto com Cristo”. Eu olhei para mim mesmo quase
incrédulo. Não fui eu quem falou; eu respondi a ele com autoridade brusca, embora eu fosse
um garoto peculiarmente tímido que ainda não tinha dezesseis anos. Eu disse a ele
claramente que toda essa coisa era insensatez, que Cristo era uma fábula, que não havia
uma coisa tal como pecado, e que ele deveria agradecer às suas estrelas por ter vivido toda
a sua vida longe da multidão hipócrita de trêmulos escravos que acreditavam em tal
insensatez. O meu ser inconsciente já estava cantando nos meus ouvidos aquele terrível
clímax do “Renan-chorus” de Browning:[50]
Ó, terrível sucessão a um vertiginoso posto,

Triste brandir do cetro cujo mero toque apavora,

Sinistro destronamento, amaldiçoado por aqueles na maioria

Sobre cuja fronte repugnante a coroa então se assenta!

Entretanto, ele se tornou demente melancólico; e morreu naquela condição. Eu me lembro


de ter escrito à minha mãe e a meu tio que eles eram culpados do “assassinato mais
abominável não só no seu pior sentido; mas naquele mais condenável, estranho e perverso”.

Eu enfatizo a importância deste episódio porque a minha atitude, tal como me recordo dela,
parece incompatível com a minha vida espiritual em geral deste período, como aparecerá
mais tarde.

Eu era genuinamente afeiçoado pela minha Tia Ada. Ela era feminina no sentido antigo da
palavra; um tipo puramente passivo. Embora ela fosse naturalmente talentosa, era tão
ignorante quanto fanática. Na sua situação, ela não poderia ter sido qualquer outra coisa.
Mas as suas opiniões não interferiram com a sua caridade. Uma mulher de bondade infinita.
Sua saúde era naturalmente delicada; um ataque de febre reumática prejudicou o seu
coração e ela faleceu prematuramente. A mesquinharia e o egoísmo do meu Tio Tom foram
os principais responsáveis. Ele não contratava uma secretária; ele a forçou a se escravizar
pela União da Escritura e isso a matou.

Um fato divertido lança uma luz curiosa sobre o meu caráter nestes primeiros dias e também
a revela como possuindo certo senso de humor. Alguns anos antes, na plataforma de Redhill
junto com meu pai, eu tinha visto no quiosque o livro Across Patagonia de Lady Florence
Dixie. O nome longo me fascinou; eu implorei a ele para comprá-lo para mim e ele o fez. O
nome ficou marcado e eu decidi ser o Rei da Patagônia. Os psicanalistas aprenderão com
prazer que o nome da minha capital era Margaragstagregorstoryaka. “Margar” era derivado
de Margaret, a rainha de Henrique VI, que era o meu personagem favorito da história. Isto é
altamente significativo, como indicativo do tipo de mulher que eu sempre admirei. Eu quero
que ela seja malvada, independente, corajosa, ambiciosa, e assim por diante. Eu não consigo
identificar o “ragstag”, mas isso é provavelmente eufônico.
“Gregor” é, naturalmente, o meu primo; “estória” é o que era então a minha forma de
diversão favorita. Eu não consigo identificar o “yaka”, mas novamente aquilo é
provavelmente eufônico.

Eu não consigo imaginar o motivo, que em tão tenra idade, eu cultivava uma profunda
aversão e desprezo, pela Rainha Vitória. Meramente, talvez, o instinto limpo e decente de
uma criança! Eu anunciei a minha intenção de liderar as forças da Patagônia contra ela. Um
dia a minha Tia Ada me levou para tomar chá no Gunters’; e um documento oficial
aparentemente importante me foi entregue. Era a resposta da Rainha Vitória. Ela ia explodir
a minha capital em pedaços e me tratar pessoalmente de um modo muito desagradável. Este
documento estava selado com uma etiqueta marcada com uma âncora para sugerir a
atrocidade naval, tomada para este propósito da ponta de um rolo de algodão. Porém eu
levei este documento muito a sério e estava horrivelmente assustado.

A sordidez da família do meu tio, a atmosfera de severa censura do universo em geral, e a


absoluta ausência do espírito de vida, se combinaram para me fazer detestar a família da
minha mãe. Havia, incidentalmente, uma grave complicação, pois a morte do meu pai havia
aumentado o fanatismo religioso da minha mãe muito grandemente; e embora ela fosse tão
orgulhosa da sua família, ela estava apegada à idéia de considerá-los como candidatos muito
duvidosos ao céu. Esta atitude era naturalmente inexplicável para uma criança em tal tenra
idade; e o efeito sobre mim foi o de desenvolver uma impaciência quase petulante com toda
a questão de religião. Minha Tia Ada era a irmã favorita da minha mãe; ainda assim no seu
funeral ela se recusou a entrar na igreja durante a cerimônia e esperou do lado de fora na
chuva, apenas se reunindo à procissão quando o corpo atravessou aqueles malditos portais
no seu caminho para o cemitério. Ela ficou de pé próxima da sepultura enquanto o pastor lia
o texto litúrgico. Este era aparentemente a feitiçaria arquitetural ao qual ela fazia mais
objeção.

Havia também uma objeção à liturgia, em inúmeras áreas. Parece incrível, mas é verdade,
que a Irmandade Plymouth considerava o Pai Nosso como uma “vã repetição, como fazem os
pagãos”. Era proibido usá-la! Jesus de fato tinha dado esta oração como um exemplo de
como orar; porém se esperava que todos elaborassem as suas próprias súplicas ex
tempore[51].
A situação acabou de um jeito muito divertido. Tendo chegado ao ponto de dizer “Mal, sejas
tu o meu bem”, eu quebrei a cabeça para descobrir alguns crimes realmente abomináveis de
se fazer. Num momento de audácia desesperada, uma manhã de domingo eu entrei
furtivamente na igreja freqüentada pelo meu Tio Tom em Streatham Common, preparado,
por assim dizer, para chafurdar nela. Foi um dos desapontamentos mais amargos da minha
vida! Eu não consegui detectar qualquer coisa que satisfizesse as minhas ideais de danação.
Durante um ano ou dois após a morte do meu pai a minha mãe não parecia ter se
recuperado; e durante os feriados ou nós ficávamos com Bishop ou vagávamos por hotéis e
balneários. Eu acho que ela tinha receio de me trazer para Londres; mas quando o meu tio
se mudou para Streatham ela se comprometeu a ocupar uma casa em Polwarth Road. Eu a
odiei, porque havia casas na vizinhança.

Eu não estou muito certo se sou o mais ultrajante esnobe que já viveu, ou se eu não sou um
esnobe de modo algum. A verdade da questão, eu creio, é que eu não me contentarei com
qualquer coisa a não ser que seja o melhor do seu tipo. No mínimo eu não me preocupo em
ficar totalmente sem algo, mas se o possuir completamente, terá que ser AI. A Inglaterra é
um lugar muito ruim para mim. Eu não consigo tolerar pessoas que são ou superiores ou
inferiores às outras, mas apenas aquelas que, qualquer que seja sua situação na vida, são
conscientemente únicas e supremas. No Oriente, especialmente entre os maometanos, pode-
se fazer amizade com os próprios operários desqualificados; eles respeitam a si mesmos e
aos outros. Eles são cavalheiros. Porém na Inglaterra o espírito de independência é raro.
Homens de alta categoria e posição quase sempre revelam consciência de inferioridade, e
dependência, dos outros. O esnobismo, neste sentido, é tão amplamente difundido que eu
raramente me sinto à vontade, a menos que com um gênio supremo como Augustus John.

Aubrey Tanqueray é típico. Ele não deve perder a estima da sua “pequena Paróquia”, e evita
a humilhação mudando de uma paróquia para outra. Quando Paula o questiona, “Você se
preocupa com o que os criados pensam?” ele responde, “Naturalmente.”.[52] Se alguém
tivesse que se preocupar com os atos de alguém a respeito das idéias das outras pessoas,
este também poderia ser enterrado vivo num formigueiro ou se casar com uma violinista
ambiciosa. Se aquele homem é o primeiro ministro, mudando as suas opiniões para angariar
votos, ou um burguês aterrorizado no mínimo por algum ato inofensivo que pudesse ser mal
entendido e ofender a alguma convenção sem valor, aquele homem é um homem inferior e
eu não quero ter nada a ver com ele além da minha vontade de comer salmão enlatado.
Naturalmente o mundo obriga todos nós a nos comprometer com o nosso ambiente até
algum ponto, e nós apenas gastamos a nossa força se lutamos em batalhas cravejados por
questões que não valem uma mísera discussão. É apenas um caprichoso que se recusa a se
conformar com as convenções de vestimentas e similares. Porém a nossa sinceridade deveria
ser romana acerca de coisas que realmente interessam a nós. E eu ainda estou em dúvida,
enquanto escrevo estas palavras, sobre o quanto é correto empregar estratégia e diplomacia
de modo a conquistar a opinião de alguém. Os grandes homens do mundo permaneceram e
tomaram do seu remédio. Bradlaugh e Burton não perderam no final por serem francos. Eu
jamais aprovei a super sutileza da campanha de Huxley contra Gladstone; e quanto a
Swinburne, ele morreu sincero quando se tornou respeitável. A adaptação ao seu ambiente
cria um tipo de sobrevivência; mas ao final de tudo, a vitória suprema é conquistada apenas
por aqueles que demonstram serem de um caráter muito mais rígido do que o resto, que
nenhum poder na terra é capaz de destruí-los. As pessoas que realmente fizeram a história
são os mártires.
Eu suponho que venha a todos nós com muita freqüência o sentimento que Freud chama de
complexo de Édipo. Nós queremos fazer uma pausa, estar em paz com os nossos
companheiros a quem amamos, que nos entendem errado e por cujo amor estamos
famintos. Nós queremos negociar, nós queremos nos render. Porém eu sempre descobri que,
embora eu pudesse concordar com alguma linha de conduta como esta, embora eu pudesse
fazer todos os preparativos para o ajustamento, ainda assim quando cheguei ao ponto, eu
era completamente incapaz de realizar o ato básico, irrevogável. Eu não consigo nem mesmo
fazer mal que possa se tornar bem. Eu detesto Jesuitismo. Eu iria muito mais perder do que
ganhar através de estratagema. O máximo que eu fui capaz de manejar foi consentir em
expressar os meus princípios de uma forma que não irá ofender abertamente as
suscetibilidades comuns. Mas eu sinto tão profundamente a urgência de fazer a minha
vontade que é praticamente impossível para eu escrever sobre Shakespeare e os Copos
Musicais[53] sem introduzir os princípios espirituais e morais que são as únicas coisas em mim
mesmo que eu posso identificar comigo.
Esta característica é evidentemente herdada do meu pai. Sua integridade era absoluta. Ele
viveu inteiramente pelas suas convicções teológicas. Cristo poderia voltar a qualquer
momento. “Exatamente como o relâmpago iluminou o Oriente e iluminou até mesmo o
Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem.”. Ele teria que prestar contas sobre “cada
palavra negligente”. Era um pensamento horrível para ele caso ele fosse apanhado pelo
Segundo Advento em um momento quando ele não estivesse ativa e intensamente engajado
na obra que Deus o enviou ao mundo para fazer. Esta sensação da importância do menor
ato, do valor de cada momento, tem sido um fator tragicamente intenso na minha vida. Eu
sempre relutava quanto ao tempo necessário para comer, dormir e me vestir. Eu inventei
trajes com o único objetivo de minimizar a perda de tempo [54] e a distração da atenção
envolvida. Eu nunca uso roupa de baixo. O “Magnetismo” de homens e mulheres tem como
sua base física o suor: na saúde este é escasso e muito fragrante. Qualquer defeito deveria
ser instantaneamente sanado: não existe sinal de perigo mais seguro do que a perspiração
desagradável ou indevidamente abundante.
Esta qualidade determinou muito da minha vida na escola. Eu compreendi instintivamente
que eu não queria conhecimento acadêmico como tal; porém uma vez que eu estava sob
coação, o melhor plano para evitar a interrupção era me isentar bem durante a aula e no
exame. Eu não tinha ambições; mas eu invariavelmente me preparava para adquirir o
conhecimento necessário com o mínimo de esforço. Minhas habilidades naturais,
especialmente a minha memória, facilitaram isso. Rapidamente eu descobri que me
distinguir na escola estava na natureza de um truque de prestidigitador. É difícil analisar o
meu método ou estar seguro da análise; mas eu acho que a essência do plano era assegurar
o mínimo exigido e adicionar uma super estrutura de um ou dois pontos obscuros que eu
pudesse para trazer ao conhecimento do mestre ou do examinador de modo a lhe dar a ideia
de que eu havia me preparado com perfeição incomum.

Ocorre a mim que esta confissão soa um tanto estranha, após as minhas observações
anteriores sobre integridade. Minha justificação é que eu considerava os diretores da escola
como pedintes importunos e provavelmente perigosos. Eu não estava em condições de
brigar; e eu não podia me virar nem com alguns bons centavos, então eu dissuadi com
alguns ruins. Era culpa deles mesmos por me importunar.

5
Eu não achei nada no currículo escolar que me interessasse. Eu não tinha nem uma vaga
ideia sobre este na ocasião, mas eu já era escravo da busca pela realidade. A matemática
apreendeu a minha imaginação. Eu era brilhante em aritmética até que o tema degenerou
em “prática”, que era assunto de mercadores. Eu poderia ter gostado de geometria; mas o
método árido de apresentação de Euclides me causou repulsa. Pediram que eu memorizasse
o que eu não compreendia; e, sendo a minha memória tão boa, ela se recusou a ser
insultada daquela maneira. Similarmente, eu nunca consegui memorizar as “repetições”
comuns da poesia grega e latina. Eu me dediquei à trigonometria com ardor; porém fiquei
aborrecido assim que descobri que meus cálculos seriam aplicados em vulgaridades tais
como arquitetura. A única ciência pura para mim era a álgebra e eu progredi nesta com uma
rapidez surpreendente. Em uma ocasião, em Malvern, o professor de matemática quis
dedicar toda a hora aos três garotos mais velhos, que estavam se preparando para alguma
bolsa de estudos e, fazer com que nós, juniores, trabalhássemos com equações quadráticas.
Havia sessenta e três no grupo estabelecido. Ao final de quarenta minutos eu me levantei e
disse, “Por favor, senhor, o que devo fazer agora?” ele não conseguia acreditar que eu as
resolvi corretamente, mas eu consegui. Parecia que eu tinha um instinto para apreciar as
relações dos números puros e conseguia descobrir fatores por intuição.

A minha atividade intelectual sempre foi intensa. Foi por este exato motivo que eu não podia
tolerar perder um momento que fosse com assuntos que me pareciam alheios ao meu
interesse, embora eu não tivesse idéia sobre o que era este interesse. Assim que eu ouvi
falar sobre química, eu percebi que ela lidava com a realidade tal como eu compreendia o
sentido da palavra. Então eu logo tinha “Pequeno Roscoe” [55]praticamente memorizado,
embora este não fosse um tema escolar. Eu instalei um laboratório na casa em Streatham, e
gastei todo o meu tempo e dinheiro fazendo experimentos. Pode ser interessante mencionar
como a minha mente funcionava. Eu ouvira falar sobre o petardo como um mecanismo
militar; e eu fui içado com ele. Roscoe me contou que cloreto de nitrogênio era o explosivo
mais poderoso e sensível conhecido. A minha idéia era dissolvê-lo em algum fluido volátil;
seria possível então deixar um êmbolo deste no portão do inimigo. O fluido evaporaria e o
cloreto explodiria na primeira vibração. Após várias pequenas desventuras, eu o juntei com a
benzina – cerca de um quarto – e a coisa toda explodiu e quase queimou a casa até as
cinzas.
Eu também tinha um plano para fabricar diamantes. Através de várias analogias eu cheguei
à conclusão de que uma solução verdadeira de carbono poderia ser feita com ferro e eu quis
cristalizá-la do modo regular. A parafernália requerida era, contudo, muito diferente da
bússola de um garoto de quatorze anos e os meus diamantes ainda são teóricos.

Falando de teoria, eu cheguei à conclusão, que na época era uma heresia condenável e uma
perigosa ilusão, de que todos os elementos eram modificações de uma única substância. Meu
principal argumento era que os pesos atômicos do cobalto e do níquel eram praticamente
idênticos e as cores características dos seus sais me sugeriram que eles eram isômeros
geométricos como a dextrose e a levulose. Isso é suficientemente óbvio hoje em dia, mas eu
ainda acho que não foi nada mau para um adolescente do início do século dezenove, cuja
única fonte de informação era o “Pequeno Roscoe”.

Surgiu uma situação interessante desta precoce devoção à arte de Flamel. No meu último
período escolar em Malvern um conselho de diretores tomado de afobação determinou a
criação uma disciplina complementar e iniciou as aulas de química. Com uma louvável
economia eles encarregaram um Sr. Faber, um professor clássico deprimido, possivelmente
acreditando que ele tinha um nome germânico, pois era conhecido como Ostwald. O
resultado foi que eu constantemente o corrigia em aula; e ele nada podia fazer, porque as
autoridades, quando consultadas, mostravam estar do meu lado.

Então eu não tive dificuldade na escola no tocante às lições, porém nos meus três anos em
Champney não me faltaram problemas; a natureza disto só poderá ser entendida se eu citar
uns poucos fatos para indicar a atmosfera. Eu costumava contar para as pessoas sobre a
minha vida escolar e enfrentava uma incredulidade consistente tal que fiz uma pequena
coletânea de incidentes no prefácio do meu A Tragédia do Mundo. Eu cito a passagem tal
como ela é apresentada.
Uma Infância no Inferno

O Reverendo H. d’Arcy Champney, M.A. do Corpus Christi College, Cambridge, veio da


seita.
Ele tinha votado nas eleições parlamentares riscando os nomes dos candidatos e
escrevendo, “Eu voto no Rei Jesus.”.

Ele havia iniciado uma escola para os filhos da Irmandade na Rua Bateman 51,
Cambridge. Possa Deus infligir aos homens a dor daquele inferno sobre a terra (eu orei
freqüentemente) que através deles ele possa ser espalhado com sal, amaldiçoado para
sempre! Possa a donzela que passa por ele se tornar estéril e a mulher grávida que o
contempla, abortar! Possam os pássaros do ar se recusar a voar sobre ele! Possa isto
permanecer como uma maldição, como um medo, como um ódio, entre os homens!
Possam os perversos ali residir! Possa a luz de o sol ser ali impedida e que a luz da lua não
o ilumine! Possa ele se tornar o lar das conchas dos mortos e possam os demônios do fosso
habitá-lo! Possa ele ser maldito, maldito – maldito para todo o sempre!

E ainda assim, erguido como estou, nos primórdios da vida adulta, livre de todos os
grilhões do corpo e da mente, eu realmente amaldiçôo a memória deste por todas as eras.

Esta era uma escola boa o suficiente do ponto de vista dos examinadores, eu ouso dizer.
Moralmente e fisicamente, ela era uma máquina de destruição e corrupção. Eu vou
apenas apresentar alguns fatos casualmente como estes vêm à minha memória; você
pode formar o seu próprio julgamento.

1. Éramos permitidos de jogar críquete, mas não marcar pontuações, a fim de evitar que
isto excitasse em nós o vício da “rivalidade”.

2. Champeny, uma criança que ainda não tinha doze anos, me contou que ele jamais
consumara seu casamento. (Somente a memória verbal muito aguçada que possuo me
capacitou anos depois de recordar e interpretar o seu significado. Ele usou uma frase
grosseira.).

3. Diziam a nós que “o Senhor tinha um cuidado especial com a escola e trouxe à luz aquilo
que fora feito nas trevas”, etc., etc.. Ad nauseam. “O instrumento era tal e tal nesta
ocasião, que tinha sido nobremente apresentado”, etc., etc.. Em outras palavras,
hipocrisia e dissimulação eram as únicas virtudes.

Naturalmente, um dos vários garotos que poderiam estar envolvidos no mesmo delito se
assustaria e salvaria sua pele por dissimulação. O informante era sempre acreditado
implicitamente, contra a probabilidade, ou mesmo a possibilidade, com total
desconsideração do testemunho de outras testemunhas independentes.

Por exemplo, um garoto chamado Glascott, com um vício insano, contou ao Sr. Champney
que ele havia me visitado (doze anos de idade) na casa da minha mãe durante as férias –
até agora verdade, ele tinha – e me encontrou embriagado deitado na parte inferior da
escadaria. Minha mãe jamais foi questionada sobre isto; nem me contaram isto. Eu fui
colocado em “Ostracismo”, isso é, nenhum professor nem outro garoto poderia falar
comigo, ou eu com eles. Fui alimentado a pão e água; durante as horas do recreio eu me
ocupava na sala de aula; durante as horas de atividade eu caminhava solitário dando
voltas e voltas na área de lazer. Era esperado que eu “confessasse” o crime do qual eu era
não apenas inocente, mas que também não tinha sido acusado.

Esta punição que, acredito, as autoridades criminais consideraria severa mesmo para um
envenenador, continuou durante um período e meio. Finalmente, fui ameaçado de
expulsão pela minha recusa em “confessar”, e me apresentaram um quadro tão medonho
dos horrores da expulsão – o culpado miserável, evitado pelos seus companheiros, se
arrasta furtivamente pela vida até acabar em um túmulo desonroso, etc. – que eu
realmente escolhi suportar as minhas torturas e agradecer ao meu opressor.

Eu definhei fisicamente. A fadiga e a angústia afetaram os meus rins; e tive que deixar a
escola totalmente por dois anos. Eu deveria adicionar por questão de justiça que havia
outras acusações contra mim, embora, como você ouvirá, quase igualmente estúpidas.

Eu soube por fim, através da intervenção do meu tio, num intervalo de lucidez, o que se
presumia que eu deveria ter feito. Disseram-me que eu tentasse “corromper Chamberlain”
– não o nosso grande estadista patriota, o astuto Joe – mas um garoto. (Eu tinha doze
anos de idade e era bem ignorante acerca de todos os assuntos sexuais mesmo depois de
muito tempo.). Eu também “participei de um encontro de orações de zombaria”. Disso eu
me lembrei. Eu havia caminhado até um grupo de garotos na área de lazer, que de fato
estavam aprontando. Assim que me viram um deles disse, “O Irmão Crowley agora nos
guiará na oração.”. O Irmão Crowley estava muito desconfiado e desviou seu caminho.
Mas ao invés de fazer o que um garoto prudente teria feito: ir diretamente ao diretor e os
acusar de quarenta e seis crimes distintos não mencionáveis, eu deixei as coisas correrem.
Então, temendo que eu pudesse ir, eles se apressaram e contaram a ele como aquele
malvado Crowley tentara afastá-los de Jesus.

Pior, eu havia chamado Page I de fariseu. O que era verdade; eu disse. Terrível para mim!
E Page I, que “caminhava muito próximo a Jesus”, naturalmente foi e contou.

Sim, todos eles caminhavam muito próximos a Jesus – tão próximo quanto Judas.

4. Um garoto chamado Barton foi sentenciado a cento e vinte golpes de vara nos seus
ombros despidos, por causa de algum roubo sem importância do qual ele era
presumivelmente inocente.

O processo de julgamento era soberbo. Ele começava com um longo tempo extra de
oração e o relato de Joshua sobre o pecado de Achan, lido de forma impressionante.
Depois, uma hora ou duas sobre os cuidados do Senhor com a escola, o modo como Ele
trouxe o pecado à luz. Depois, quando bem emocionados e os nossos nervos à flor da pele,
quem roubou o que? Silêncio. Depois, os cuidados do Senhor em prover uma testemunha –
como as testemunhas contra Naboth! Então a testemunha e a sua estória, tão serena
quanto à de um policial. Depois, a sentença. Por fim, a execução, com intervalos de
oração!

Estando a compleição física de Champney debilitada, pode-se supor que pela sua
excessiva devoção a Jesus, ele planejou das sessenta golpes num dia e sessenta no dia
seguinte.

Minha memória falha – talvez Barton um dia possa favorecer com suas reminiscências –
mas eu imagino que no primeiro dia chegou tão perto de matá-lo que ele escapou no
segundo.

Eu me lembro de alguém lambendo – as pernas, porque surrar as nádegas excita a


sensualidade da vítima! – quinze minutos de oração, quinze varadas, mais quinze
minutos de oração, mais quinze varadas – e mais oração para coroar!

5. No Domingo, o dia era dedicado à “religião”. Orações e sermões matinais (cerca de


quarenta e cinco minutos). “Reunião” matinal (de uma hora e meia a duas horas).
Pregação ao ar livre no Parker’s Piece (digamos uma hora). Leitura da Bíblia e
[56]
memorização. Leitura dos poucos livros “sancionados para o Domingo” (digamos duas
horas). Reunião de oração (chamada de voluntária, porém ficar de fora da mesma
significaria que algum aluno delator na escola o acusaria de algo no dia seguinte)
(digamos uma hora). Oração e sermão vespertinos (digamos trinta minutos). Pregação
do evangelho na sala de reuniões (uma hora e meia). Idem, no Parker’s Piece (digamos
uma hora). Oração antes de se retirar (digamos meia hora).
6. A “Reunião dos Texugos”. Todas as noites de segunda-feira a escola era alinhada em
torno dos fundos da grande sala da escola, e os flagelantes de Barnswell (favelados de
Cambridge) entravam, comiam, pregavam e se dispersavam.

Resultado, epidemia de micose, sarampo e caxumba.

Ó não! Não é um resultado; a mão do Senhor pesara sobre nós por causa de algum
pecado ainda não descoberto.

Eu poderia prosseguir com muito mais, mas não vou. Espero que haja algumas pessoas
no mundo felizes o suficiente em achar que estou mentindo, ou pelo menos exagerando.
Mas eu dou a minha palavra quanto à verdade literal sobre tudo que disse, e existem
muitas testemunhas vivas para me confirmar, ou me refutar. Eu forneci completamente
os nomes verdadeiros, endereços e outros detalhes.

É impossível supor que o caráter da escola tenha sido completamente alterado entre a morte
do meu pai e a minha volta do funeral. E ainda assim antes daquilo, eu estava
completamente feliz e em harmonia com o meu ambiente. Não mais que três semanas
depois, Ishmael era o meu nome do meio. Eu não consigo encontrar uma explicação
satisfatória para tudo isso. Eu fui perfeitamente genuíno na minha ambição de levar uma
vida de santidade; a idéia de comunhão íntima com “Jesus” estava constantemente presente
na minha mente. Eu não me lembro de qualquer mudança de opinião. Um dia eu perguntei a
um dos mestres como era possível que Jesus permanecesse três dias e três noites no
túmulo, se ele fora crucificado na sexta feira e ressuscitado na manhã de domingo. Ele não
conseguiu explicar e disse que isso jamais foi explicado. Então eu formulei a ambição de me
tornar uma luz brilhante no Cristianismo fazendo esta coisa que jamais havia sido feita. Esta
ideia, pelo jeito, é muito peculiar. Eu sou totalmente incapaz de despertar qualquer interesse
em fazer qualquer coisa que já tenha sido feita antes. Porém me fale sobre uma
impossibilidade declarada; e a saúde, a riqueza, a própria vida nada serão. Eu estarei
resolvido a fazê-lo. A aparente discrepância na narrativa do evangelho não trouxe dúvidas à
minha mente quanto à verdade literal de qualquer um dos textos. De fato, a minha caída em
desgraça não foi provocada por quaisquer escrúpulos intelectuais; eu aceitava a teologia da
Irmandade Plymouth. De fato, dificilmente eu poderia conceber a existência de pessoas que
pudessem duvidar da mesma. Eu simplesmente passei para o lado de Satã; e até este
momento eu não consigo dizer o motivo.

Mas eu me encontrei tão apaixonadamente ávido para servir o meu novo mestre quanto eu
estava para servir o antigo. Eu estava ansioso para me destacar ao cometer o pecado. Aqui
novamente a minha atitude era extraordinariamente sutil. Jamais me ocorreu roubar ou de
qualquer outra forma infringir o decálogo. Tal conduta teria sido mesquinha e desprezível. Eu
queria um pecado espiritual supremo; e eu não tinha a menor ideia por onde começar. Havia
bastante curiosidade mórbida entre os santos sobre “o pecado contra o Espírito Santo” que
“jamais poderia ser perdoado”. Ninguém sabia o que ele era. Era até mesmo considerado
bastante blasfemo oferecer qualquer conjectura muito positiva sobre este ponto. A ideia
parece ter sido que ele era alguma coisa como uma piada prática de mau gosto por parte de
Jesus. Este delito misterioso que jamais poderia ser perdoado poderia ser cometido
inadvertidamente pelo maior santo vivo, com o resultado que ele seria arremessado contra o
próprio portão da glória. Aqui havia outra impossibilidade para agarrar a minha fantasia
juvenil; eu devo descobrir o que era aquele pecado e realizá-lo completamente.

Pois (evidentemente) a minha posição era excessivamente precária. Eu estava em oposição


a um Deus onipotente; e por tudo que eu sabia em contrário, Ele poderia ter me
predestinado a ser salvo. Não importa o quanto eu desacreditava em Jesus, não importa
quantos crimes eu acumulasse, Ele poderia me aceitar apesar de mim mesmo. A única
possibilidade de despistá-Lo seria fazer com que Ele se voltasse contra a Sua própria
promessa de que este pecado em particular jamais deveria ser perdoado, junto a um
testemunho do anjo responsável pelos registros de que eu o havia realizado devidamente.

Parece incrível que tais conclusões insanas formassem a base da ação prática em qualquer
ser humano acima do nível de um colono. Porém elas seguem suficientemente lógicas a
partir das premissas blasfemas e supersticiosas de teologia Cristã. Além disso, jamais tive
um momento de disposição para levar o mundo material a sério. Na Apologia pro Vita Sua, o
Cardeal Newman nos conta, eu suspeito que verdadeiramente, que quando era criança ele
desejava que As Mil e Uma Noites fossem reais. Como todos nós sabemos, ele gratificou as
suas ambições aceitando como realidade o fantasma Freudiano de paganismo misturado com
tempero Semita que o levou a alguma insensatez. Mas eu fui além. Meus sentidos e minha
crença racional no sobrenatural criaram uma sensação subconsciente de inquietação de que
a crença no sobrenatural poderia não ser verdadeira. Isso insultou a consciência mais íntima
de mim mesmo. Porém a resposta era não aceitar o falso pelo verdadeiro, mas determinar
torná-lo verdadeiro. Eu resolvi apaixonadamente pesquisar as causas espirituais dos
fenômenos, e a dominar o mundo material que eu detestava pelos seus meios. Eu não
estava satisfeito em acreditar em um demônio pessoal e servi-lo, no sentido comum da
palavra. Eu queria me apossar dele pessoalmente e me tornar o seu chefe de gabinete.
Na minha busca por um pecado adequado que poderia me render à Vice Presidência diabólica
eu, óbvio o bastante, entrei em contato com a coisa usual. Champney estava sempre
farejando isso, mas – para mim – ele era completamente ininteligível. Eu convivi com
garotos cuja reputação por perversidade estava bem estabelecida, e fui guiado mais ainda na
minha busca por uma sensação intuitiva de magnetismo ou apreciação de fisiognomia. Mas o
reino do terror estava tão firmemente estabelecido na escola que ninguém se preocupou em
me contar abertamente a natureza deste pecado, mesmo quando o conhecimento sobre ele
era admitido. Indicações misteriosas foram dadas; e por fim um garoto chamado Gibson me
disse qual ação realizar, porém ele não me contou para qual objetivo aplicar o processo.
Parece extraordinário que a natureza não tivesse me oferecido nenhuma indicação. De jeito
nenhum eu conectei o órgão de reprodução com qualquer ato voluntário. Eu fiz conjecturas
ditadas por considerações puramente intelectuais, e conduzi experimentos baseado nos seus
resultados; mas eles eram absolutamente mal direcionados. Eu nunca imaginei qual órgão
estava em questão. A descoberta foi adiada por anos.

Minha revolta deve ter manifestado a si mesma por atos que não eram tecnicamente
condenáveis. Eu não posso me acusar de qualquer crime evidente. A batalha entre eu e a
escola foi conduzida no plano mágico, por assim dizer. Foi como se eu tivesse feito figuras de
cera do tipo mais inofensivo, e que ainda assim foram reconhecidos pelo instinto espiritual
de Champney como ídolos ou instrumentos de bruxaria. Eu fui punido com absoluta injustiça
e estupidez, e ainda assim ao mesmo tempo a apreensão mística de Champney não se
enganou.
6
Devo mencionar a intervenção do meu Tio Jonathan no caso da reunião dos Texugos, e
aquela do meu Tio Tom na explosão final.

Jonathan Crowley, o irmão mais velho do meu pai, era a beleza ideal do nobre aristocrata.
Ele parecia um imperador romano tal como nós romanticamente imaginamos ter sido, mas
não como o vemos na maioria das esculturas. A fronte enorme, os olhos de águia, o grande
nariz aquilino arrogante, a boca firme e a mandíbula indomada combinavam para torná-lo
um dos homens mais notavelmente belos que eu já tinha visto.

Ele vivia num esplendor imponente que não apresentava sinal de ostentação. Eu nunca
conheci sua primeira esposa, com quem ele teve duas crianças, Claude e Agnes. Claude era
notoriamente feio, tanto quanto atraente, e ele tinha um toque de deformidade sem ser
realmente um corcunda. Os mesmos traços apareciam no seu caráter mental e moral. Eu
sempre o achei admirável como Ricardo III; porém ele era meramente fraco e fraco de
espírito. Agnes herdou a altivez aristocrática do seu pai e partilhava do seu belo aspecto. Ela
era demasiado orgulhosa para se casar e a repressão atormentou a sua mente até ela
desenvolver uma idéia fixa. Durante os últimos trinta anos da sua vida ela estava
constantemente anunciando o seu noivado e elaborando contratos de casamento, que nunca
deram em nada. Ela também estava possuída pelo demônio do litígio, e se imaginava
injustiçada por vários membros da família.

Meu tio se casou com a governanta das crianças. Esta era uma dama de uma distinta família
saxônica, que poderia traçar a sua linhagem até a época de Edward o Confessor. Alta,
magra, distinta e altamente educada, ela fazia uma admirável castelã. Sua personalidade
tinha um forte apelo para mim, e ela tomou aquele lugar dentre os meus afetos que não
pude dar à minha mãe. Ela se tornou um membro proeminente da Liga Primrose, e foi
através da sua influência junto ao Lorde Salisbury e Lorde Ritchie que eu obtive a minha
nomeação para o Serviço Diplomático.

Meu tio e minha tia me visitavam em Cambridge. Eu lhes contei a respeito da reunião dos
Texugos, não em modo de reclamação, porém muito mais como Sir Richard Burton poderia
ter descrito as suas aventuras entre os selvagens. O tio Jonathan não viu o assunto
totalmente sob aquele ponto de vista. Ele fez averiguações que confirmaram a minha
história; e disse a Champney, curto e grosso, que este tipo de coisa teria que acabar.
Champney tentou vociferar, porém ao ser ameaçado com as autoridades sanitárias, baixou a
cabeça. O assunto, entretanto, não parou aqui. Meu tio percebeu claramente que eu estava
sendo brutalmente maltratado; e ele fez uma solicitação às cortes que resultaram em que
acabei sendo chamado para ver o Sr. Justice Stirling prestando contas ao juiz. Eu sempre fui
intensamente leal até mesmo com os meus inimigos, e (por tudo o que soube) o juiz poderia
ter mandado a minha mãe e o seu irmão para a prisão. Então eu menti como um homem
pequeno e fingi que estava perfeitamente feliz na escola. Eu não acho que ele foi
inteiramente enganado pelas minhas declarações solenes; e embora não tenha recebido uma
tutela da Justiça, foi exigida uma promessa de que eu deveria ir para uma escola e
universidade públicas assim que eu tivesse passado pela “Cambridge Local”.

Nesse meio tempo, a natureza fez a sua parte comigo. Ao fim do primeiro período da minha
punição, eu estava obviamente tão enfermo durante as férias que eram feitas perguntas, e
eu me queixei à minha mãe sobre os maus tratos. Ao invés de investigar as circunstâncias,
eles foram falar com Champney sem me dizer nada. Uma tarde eu fui levado para a casa do
meu Tio Tom e acabei encurralado num canto da sala pelo diretor explosivo. A surpresa me
aterrorizou e eu não ousei negar nada. Mas ainda não havia nenhuma acusação feita contra
mim. Champney nem ao menos contou à minha mãe e ao Tio Tom o que se supunha que eu
tivesse feito. Fui mandado de volta para a escola para cumprir o restante da minha sentença.
Ao final daquele período, entretanto, por alguma razão cuja natureza não consigo adivinhar,
o Tio Tom decidiu vir à Cambridge realizou maiores investigações. Alertado sobre a visita,
Champney fez pressão extra. Eu deveria confessar ou seria expulso. Eu fiz o máximo para
inventar abominações satisfatórias; mas naturalmente estas não estavam de modo algum
relacionadas com as reais acusações, eu meramente piorei as coisas. Na chegada do Tio Tom
mais uma vez eu recorri a dizer a simples verdade, de que eu não tinha a menor ideia
daquilo que tinha feito. Desta vez o meu tio teve um deslize de retidão chegando ao extremo
de insistir em saber quais eram as acusações. Champney contou a ele. Meu tio teve senso
suficiente para perceber que todas elas eram absurdas, considerou Champney como um
lunático, e me tirou da escola. Como de fato, dentro de um tempo muito curto a insanidade
do diretor se tornou patente e a escola foi fechada em conseqüência.

Quanto a mim mesmo, o estrago já estava feito. Eu, que fui um garoto feliz, saudável, bem
humorado e popular, aprendi a suportar a completa solidão durante meses a cada ocasião.
Eu não falava com nenhum garoto e os professores sempre se dirigiam a mim, quando a
necessidade os obrigava, com horror hipócrita. A dieta a pão e água, e a punição da
caminhada perpétua em torno da área de lazer durante as horas de aula, debilitaram a
minha compleição. Eu fui levado a um médico, que descobriu que eu estava sofrendo
gravemente de albuminúria, e predisse que eu jamais viveria até a velhice. Colocaram-me
numa dieta especial e me foi prescrito um curso de vida no campo com um tutor. Durante o
próximo ano ou dois eu estava constantemente viajando ao redor de Gales e da Escócia,
escalando montanhas e pescando trutas. Também tive um verão delicioso em St. Andrews
onde Andrew Kirkaldy me ensinou a jogar golfe. Minha saúde melhorou rapidamente. Foi-me
permitido trabalhar durante um número de horas muito limitado, mas eu progredi
rapidamente, tendo a atenção exclusiva dos meus tutores.

Estas pessoas, contudo, não eram muito satisfatórias; todas elas foram indicadas pelo meu
Tio Tom; ou seja, elas eram do mesmo tipo simplório, anêmico e pedante, que na melhor
hipótese poderiam se vangloriar de faculdades menores de Cambridge [57]. Naturalmente, eu
considerava como meu dever ser mais esperto que elas de todas as formas possíveis e caçar
algum tipo de pecado.
Este tio, pelo jeito, alguns anos depois contribuiu com o que ele estimava com sendo um
artigo brilhantemente espirituoso para a Revista dos Garotos, o órgão de uma tentativa
Evangélica para destruir a virilidade das nossas escolas públicas. Ele era chamado Os Dois
Reis Perversos. Estes eram descritos como tiranos que arruinavam as vidas dos garotos e os
escravizava. Seus nomes eram Smo-King e Drin-King[58]. O Tio Tom chamava a minha
atenção para a sua obra-prima e eu disse, com uma comovida surpresa, “Mas, meu querido
Tio, você se esqueceu de mencionar um terceiro, o mais perigoso e mortal de todos!”. Ele
não conseguia pensar em quem era este. Eu lhe contei. Agora, eu lhe pergunto, não é
deplorável que uma adição tão importante e exata para a sua tese não tenha sido aceita com
satisfação piedosa?
As coisas foram de mal a pior enquanto eu crescia em poder moral. Parte do tempo eu
estava bem o suficiente para assistir a um dia de aula em Streatham, onde eu finalmente
aprendi o terrível segredo pelo qual eu tinha exaurido o meu cérebro a fim de descobrir
durante aproximadamente três anos. Aqui havia certamente um pecado que valeria a pena
cometer e eu me dediquei com um vigor característico na sua prática.

Como o meu pai estava acostumado a beber vinho, eu não podia ver como o ato de beber
poderia ser um pecado. Não havia, portanto, nenhuma objeção em fazê-lo. Eu jamais havia
tocado em vinho até ter entrado no Trinity e nunca senti a menor tentação em cometer
excesso. Meu pai, contudo, nunca fora um fumante, dizendo que se Deus tencionasse que os
homens fumassem Ele teria providenciado uma chaminé no topo da cabeça [59]. Eu não tive
hesitação, entretanto, em considerar fumar como uma questão indispensável. Eu não havia
pensado em relacionar o serviço do “terceiro Rei” com a reprodução da espécie e, portanto
não havia razão para supor que o meu pai tenha se esquecido de si mesmo até este ponto.
Eu gastei todo o meu tempo tentando me inscrever sob a bandeira real; mas isso apenas
poderia ser feito por cooperação e isso foi algum tempo antes de eu encontrar o meio de
fazê-lo.
Voltando aos meus tutores. As relações eram invariavelmente tensas. Numa ocasião o
Reverendo Fothergill me levou no verão para um centro de pescaria próximo a Lairg
chamado Forsinard. Fomos pescar um dia em um lago no brejo e ao longo de uma discussão
eu lancei sua vara de pescar bem longe na água.

Ele me atacou com fúria, mas eu tive uma boa pegada e o joguei na direção dela. Então eu
saí com o barco, mas ele me pegou enquanto eu tentava movimentá-lo, virou o barco por
cima de mim e tentou me afogar. Naquela noite os deuses me favoreceram ainda mais. Pois
uma garota da vila chamada Belle McKay estava sem nada melhor para fazer do que
perambular em meio à vegetação. Nós voltamos juntos abertamente e Fothergill jogou a
toalha. Ele me levou de volta para Londres na manhã seguinte. Interrompendo a jornada em
Carlisle, eu repeti a minha vitória com uma arrumadeira rechonchuda.

Mas o assassinato não é a única diversão aberta aos tutores piedosos. O irmão do Dean de
Westminster (ele subseqüentemente se tornou um missionário e morreu em Lokoja) fora
ensinado que se ele não podia ser bom, ele deveria ser cauteloso. Enquanto ele estava
realmente cuidando de mim a sua conduta era impecável, mas depois de me entregar ele me
convidou para ir à casa de sua mãe em Maze Hill para passar a noite, e fez o seu melhor
para ser fiel à reputação das suas vestes. Eu não permiti que ele completasse seu intento,
não porque eu não via pecado nisso, mas porque eu achava que seria uma armadilha para
me trair perante a minha família. Um pouco antes de ele partir para a África ele me convidou
novamente, orou comigo, confessou as suas faltas, se desculpando baseado em que seu
irmão mais velho Jack, também um missionário, o havia desencaminhado, e pediu o meu
perdão. Novamente eu adotei a atitude do homem do mundo, “Tut, tut [60], meu caro
companheiro, não se preocupe”, que o irritava muito, porque ele queria ser levado a sério
como o maior dos pecadores.
Um dos pontos principais sobre a estupidez do pecado é que ele bajula o pecador. Toda
insanidade depende da exacerbação do ego. A melancolia abraça a ilusão de que ele
cometeu o pecado imperdoável. Os pecados crescem através da repressão e ao alimentar
sua enormidade. Poucas pessoas chegariam aos excessos se elas não fossem doentiamente
super excitadas com relação á sua imitação trivial.

A maioria das pessoas, especialmente Freud, compreende erroneamente a posição


Freudiana. “A libido do inconsciente” é realmente “a verdadeira vontade do ser mais íntimo”.
As características sexuais do indivíduo são, é verdade, indicações simbólicas da sua
natureza, e quando aquelas são “anormais”, podemos suspeitar que o ser está dividido
contra si mesmo de alguma forma. A experiência ensina que os adeptos que iniciam a
humanidade que quando algum complexo (dualidade) no ser é resolvido (unidade) o iniciado
se torna totalidade. Os sintomas sexuais mórbidos (que são meramente as queixas do
animal doente) desaparecem, enquanto que a consciência moral e mental é aliviada da sua
guerra civil de dúvida e auto-obsessão. O homem completo, harmonizado, flui livremente
rumo à sua meta natural.
Será visto que eu me desenvolvi enormemente nestes anos. Infelizmente, a minha angústia
era tão grande durante esta longa batalha com os meus tiranos que enquanto os próprios
incidentes se destacaram luminosamente em foco, eu acho muito difícil me lembrar da
ordem em que eles ocorreram. Existem, mais ainda, curiosas contradições em mim mesmo
contra aquilo no que pareço estas sempre tropeçando. Por exemplo, tardiamente em 1894,
eu acho que devo ter me encontrado escrevendo hinos religiosos muito aceitáveis. Um foi
publicado em O Cristão; ele começa:

Eu sou um cego em um navio sem leme.

Sem uma bússola num mar tormentoso.

Eu não posso afundar, pois Deus vai me amparar, etc..

Além disso, eu escrevi um poema sobre a morte da minha Tia Ada, que considerei bom o
suficiente para incluir nas minhas Canções do Espírito, e é inteiramente impecável por conta
da religiosidade. Era como se eu possuísse a minha própria teologia que era, para todos os
efeitos e propósitos, Cristianismo. O meu satanismo não interferiu nele de modo algum; eu
estava tentando ter a opinião de que o Cristianismo de hipocrisia e crueldade não era
Cristianismo verdadeiro. Eu não odiava Deus ou Cristo, porém meramente o Deus e o Cristo
das pessoas a quem eu odiava. Foi apenas quando o desenvolvimento das minhas faculdades
lógicas forneceu a prova que eu fui obrigado a me colocar em oposição à própria Bíblia. Não
importa que a literatura seja algumas vezes magnífica e que em passagens isoladas a
filosofia e a ética sejam admiráveis. A síntese do assunto resulta em que o Judaísmo é uma
superstição selvagem e o Cristianismo, uma superstição demoníaca.
É muito estranho que eu não deva ter tido nenhum leve indício da minha tendência ao
Misticismo e à Magia(k) através de qualquer experiência definida. É verdade que, desde o
início, eu tinha a visão transcendental do universo, porém não havia nada para apoiá-la por
meio da experiência. A maioria das crianças tem um toque de poesia e crença naquilo que eu
odeio chamar de fenômenos psíquicos, pelo menos até o ponto de fantasiar que elas veem
fadas ou de ficarem assustadas com “besouros à noite”. Mas eu, embora conscientemente
engajado na batalha com “principados e poderes”, jamais tive a menor alucinação dos
sentidos ou qualquer tendência para imaginar coisas fantasmagóricas. Eu poderia ter tido
uma ambição de ver o demônio e conversar com ele sobre coisas, mas eu deveria esperar
que tal comunicação fosse ou perfeitamente material ou perfeitamente intelectual. Eu não
tinha qualquer idéia de nuances. Quando eu eventualmente aprendi a usar os meus olhos e
ouvidos astrais, não houve nenhuma confusão; o outro mundo tinha certas correspondências
com o nosso próprio, mas era perfeitamente distinto. Parece que eu fiz um esforço muito
determinado para evitar o esquecimento da minha consciência espiritual sobre o mundo além
do véu através da marca da experiência terrena. Então, novamente houve afloramentos
súbitos de uma personalidade completamente formada, na qual eu falava com a firmeza e
autoridade de um homem de cinqüenta anos sobre assuntos sobre os quais eu realmente
não tinha qualquer opinião no sentido comum da palavra.

Há um incidente muito interessante; com a idade de quatorze anos, tanto quanto consigo
lembrar. Eu devo pressupor que eu sempre fui excepcionalmente compassivo, exceto quanto
aos tiranos, a quem eu achava que nenhuma tortura seria ruim o suficiente. Em particular,
eu sou invariavelmente gentil com os animais; nenhuma questão de crueldade ou sadismo
aparece no incidente que estou prestes a narrar.

Eu fui chamado de “Um gato de sete vidas”. Eu deduzi que deve ser praticamente impossível
matar um gato. Como sempre, fiquei cheio de ambição para realizar o feito. (Observe que eu
levei a minha informação inquestionavelmente au pied de la lettre[61]). Talvez por meio de
alguma analogia com a estória de Hércules e a hidra, eu tinha na minha cabeça que as sete
vidas do gato deveriam ser tomadas mais ou menos simultaneamente. Logo, eu capturei um
gato, e fazendo-o ingerir uma grande dose de arsênico eu o anestesiei, pendurei-o sobre o
jato de gás, o esfaqueei, cortei sua garganta, esmaguei o seu crânio e, quanto ele tinha sido
completamente queimado, eu o afoguei e o atirei pela janela para que a queda acabasse com
a sétima vida. De fato, a operação foi bem sucedida; eu tinha matado o gato. Eu me lembro
de que durante o tempo todo eu estava verdadeiramente triste pelo animal; eu
simplesmente me obriguei a conduzir o experimento por puro interesse científico.
A combinação de inocência, ignorância, conhecimento, talento e elevados princípios morais
aparenta ser extraordinária. É evidente que a superstição insanamente imoral na qual eu
havia sido criado é responsável por um absurdo tão atroz. Por muitas e muitas vezes nós
veremos como a imposição da teoria e dos princípios antinaturais do Cristianismo sobre um
gênio peculiarmente são e, com toda certeza observador da realidade, criou um conflito cuja
solução estava expressa no plano material através de alguma ação extravagante. Minha
mente é severamente lógica; ou melhor, ela o era até que a experiência mística permitisse
que ela arrancasse os seus grilhões. A lógica é responsável pela maior parte dos feitos
absurdos e abomináveis que desgraçaram a história. Dadas as premissas Cristãs, a
Inquisição estava agindo de acordo com os mais elevados princípios humanitários ao destruir
o corpo do homem para salvar a sua alma. Os seguidores de Descartes estavam certos em
torturar animais, acreditando que eles eram autômatos. Deterministas genuínos seriam
justificados ao cometer qualquer crime, desde que o fato de sua ocorrência provasse que ele
era inevitável. Huxley, em Evolução e Ética, elabora uma hipótese muito medíocre contra o
infanticídio e suicídio racial. Estamos constantemente usando o nosso julgamento como que
para preservar uma parte da humanidade contra a outra; de fato somos constantemente
forçados a agir assim. Quanto ao futuro da humanidade, a certeza do extermínio final
quando o planeta se tornar inabitável transforma todo o esforço humano em uma estupidez
colossal.
Uma das teses principais deste livro é mostrar como a declaração acima é absurda, ao tentar
oferecer uma teoria de realidade compatível com a sanidade.

Entretanto, aquilo vem depois.

7
“Os melhores esquemas definidos por homens e ratos muitas vezes dão errado”. Até mesmo
uma combinação tão astuta de rato e símio como o meu Tio Tom comete erros ocasionais, e
um desses foi muito favorável para mim. Ele contratou um tutor de nome Archibald Douglas,
um homem de Oxford que pagou os pecados ao ter que viajar a serviço da Sociedade Bíblica
através da Pérsia. Se o meu tio alguma vez ouviu falar de George Borrow, ele poderia ter se
poupado de muitos problemas; e eu poderia ter ficado louco. Foi na primavera de ’91. Eu
tinha me recuperado de um ataque violento de tosse convulsiva. A ideia era que nós
deveríamos pedalar de bicicleta até Torquay, mas ao chegar a Gildford eu estava muito mal
para continuar pedalando e nós prosseguimos de trem. Embora Douglas se denominasse um
Cristão, ele provou ser tanto homem quanto cavalheiro. Eu presumo que a pobreza havia
forçado a camuflagem. Desde o momento em que ficamos a sós ele produziu a revolução
completa na minha visão da vida, ao me mostrar pela primeira vez um mundo sensato, puro
e alegre no qual valia a pena viver. Fumar e beber eram coisas naturais. Ele me alertou
sobre os perigos do excesso sob o ponto de vista atlético. Ele me apresentou às corridas,
bilhar, apostas, jogos de cartas e mulheres. Ele me disse como essas coisas poderiam ser
apreciadas sem causar danos a si mesmo nem prejudicar os outros. Ele me colocou a par de
todos os truques. Ele me mostrou o significado de honra. Eu aceitei imediatamente o seu
ponto de vista e comecei a me comportar como um ser humano normal e saudável. O mundo
de pesadelo do Cristianismo se dissipou no alvorecer. Eu fiquei com uma garota do teatro
nos dez primeiros dias em Torquay, e naquele toque de amor humano os detestáveis
mistérios do sexo foram transformados em prazer e beleza. A obsessão de pecado caiu dos
meus ombros para dentro do mar do esquecimento. Eu estive quase oprimido pela temível
responsabilidade de assegurar a minha própria danação e ajudar os outros a escapar de
Jesus. Eu achei que o mundo estava, por fim, repleto de encantadoras almas condenadas; de
pessoas que aceitavam a natureza como ela é, aceitavam seu próprio lugar na natureza e o
desfrutavam, combatiam as coisas mesquinhas e desprezíveis honestamente e com firmeza
sempre que se confrontavam com essas. Foi um período de felicidade ilimitada para mim. Eu
tinha sempre ansiado pela beleza da natureza; meus únicos amigos, exceto animais e
estranhos casuais, dos quais eu fui cuidadosamente protegido, foram o céu, os córregos, as
montanhas e os mares. Pela primeira vez na minha vida, fui trazido em contato com meus
companheiros homens e mulheres. Pela primeira vez, amizade honesta, amor saudável,
franco, alegre e corajoso, se tornaram possíveis e reais. Eu amei a natureza como sendo um
refúgio da humanidade. Agora eu percebi a beleza do mundo em conjunção com a beleza da
minha espécie. Pela primeira vez o mar reluziu, a brisa sussurrou outras canções além
daquela em louvor da solidão, as flores emprestaram sua fragrância e sua loucura à luz,
risonha mocidade; a lua, ao invés de Artemis, era Afrodite.

Eu disse, “ela é mais quente do que Dian…

Se ergue através da cova do Leão

Com amor nos seus olhos luminosos”.

É possível que a minha própria indiscrição tenha produzido a catástrofe. Eu posso ter deixado
minha mãe saber que eu estava feliz pelo tom das minhas cartas. De qualquer modo, ela
passou a suspeitar. O Tio Tom surgiu em cena. Tirou Douglas do caminho por meio de
alguma mentira, saqueou seus pertences, roubou suas cartas pessoais e o demitiu. Porém já
era tarde demais; meus olhos foram abertos e eu me tornara como um deus, conhecendo o
bem e o mal. Eu estava em condições de tomar a iniciativa. Até então, eu podia apenas
desejar escapar do horrível inferno do lar. Agora eu tinha um objetivo; agora eu podia
atacar.

Eu devo explicar algo sobre a vida de horror na casa da minha mãe. Para começar, eu era
inteiramente isolado do relacionamento com os meninos e meninas da minha própria idade,
a menos que fossem as crianças da Irmandade. A seita já estava sem forças e, além disso,
estava dividida a respeito da heresia de Raven. A situação é esclarecida através da estória
que eu vou citar do prefácio da minha obra A Tragédia do Mundo[62].
Um homem não religioso pode ter defeitos morais; um Irmão Plymouth não tinha
nenhum. Ele está sempre pronto para perdoar os crimes mais vis citando o texto
apropriado e invocando o nome de Cristo para cobrir toda mediocridade que possa
agradar a sua natureza vã e perversa. Pois a própria Irmandade Plymouth era uma
horda excepcionalmente detestável. Os aristocratas que iniciaram o movimento eram,
naturalmente, apenas aristocratas, e o seu curioso sistema os deixou assim. Porém eles
conduziram uma forma de socialismo espiritual “Cristão Primitivo” ao não ter nenhum
sacerdote ou ministro nomeado, e eram insensatos o suficiente para favorecer
financeiramente os seus seguidores.
Então o Sr. Giblets – assim o chamemos – o terceiro melhor açougueiro da vila descobriu
(por um lado) que enquanto na igreja ele não era ninguém em absoluto, e na capela nada
mais que religioso sênior, na pequena reunião na saleta do escudeiro ele era não menos
que o ministro de Deus e o porta-voz do Espírito Santo; enquanto que por outro lado era
simplesmente natural que as ordens do Saguão fossem a ele dirigidas e deixassem o
primeiro melhor açougueiro lamentando e o segundo melhor aturdido. De modo que no
meu tempo a seita (embora seja justo salientar que eles se recusavam a ser descritos como
uma seita, já que o que eles fizeram não foi formar uma nova seita, mas “Surgiram como
Seita” – eles sustentavam isto apesar do fato que eles eram muito mais exclusivos que
qualquer outro corpo religioso da Europa) era composta por alguns poucos da velha
guarda, sendo o meu pai o último de todos eles, e a horda de canalhas mais desprezível
que já rastejou.

Com a morte do meu pai, as pequenas cismas que até então haviam dividido uns poucos
membros a cada ano ou dois agora estavam completamente superados pela grande
heresia de Raven, que dividiu o corpo em duas metades aproximadamente iguais e
extinguiu as últimas faíscas da sua importância.

Eu estou indo além do meu assunto, porém não posso evitar contar a terrível estória da
reunião em Oban.

A reunião em Oban era composta por um Sr. Cameron e sua esposa e a mãe acamada de
um dos dois, eu me esqueço de quem. Então como está escrito “Onde quer que dois ou três
estejam reunidos em meu nome, lá estarei entre eles”, estava muito bem: mas dois
formam um quórum. Jesus não virá por menos. Isto jamais foi discutido por qualquer
doutor da Irmandade. Wigram é claro sobre este ponto; se Darby já foi claro alguma vez
sobre qualquer ponto, então teria sido sobre este. Kelly jamais o negou; até mesmo Stuart
era honesto neste assunto, e o próprio Stoney (embora relutantemente) aderiu ao mesmo.
Para conduzir uma reunião você deve ter duas pessoas presentes…

Bem, eu quase nem preciso dizer que o Sr. e a Sra. Cameron tomaram lados opostos na
controvérsia. Quando os fios alegres lampejaram a mensagem que o Sr. Raven, na
reunião em Ealing, havia dito deliberadamente com uma lenta e pesada ênfase, “Aquele
que se uniu ao Filho tem a vida eterna”, a Sra. Cameron quase chorou de alegria. Quando
(a mensagem continuou) o Major McArthy ficou em pé e replicou, “Aquele que se uniu ao
Filho de Deus tem a vida perpétua”, o Sr. Cameron executou um Highland demonstrando
preocupação .
[63]

Foi quando o Sr. Raven, imediatamente exasperado, agitou o seu punho para o major e
berrou, “Irmão, você é um velho pecador!”. A Sra. Cameron “sempre soube que havia
algo”, e se fez de governanta arruinada. Mas – pela risada do seu marido quando o
telegrama trouxe a resposta do major, “Irmão, você não tem nenhum pecado?” – falado
com um tom moderado que disfarçou o rubor da sua face.

Em resumo, a reunião em Oban havia criado uma ruptura. O Sr. Cameron havia sido
retirado da Ceia do Senhor!!! Era, portanto, absolutamente necessário para ambos
garantir que a mãe acamada compartilhava do seu modo de pensar, ou eles nem
poderiam participar da reunião da manhã; embora eu suponho que nem poderiam
pregar o evangelho – morosa voluptas ![64]

Infelizmente, aquela excelente dama era um caso difícil. Ela estava muito surda e muito
próxima da cegueira; enquanto que mentalmente ela nunca foi notável por qualquer coisa
além de uma amável imbecilidade. Contudo, havia apenas uma coisa a ser feita, discutir
com ela até persuadi-la.
Eles concordaram em fazer turnos de oito horas; e por tudo o que sei, eles ainda estão
discutindo, e nem das reuniões de Oban podem participar!

Tal como ocorreu, a minha mãe tomou partido da minoria. Isso quer dizer que ela se isolou
de cada um dos amigos íntimos. Pela força de um texto de uma das epístolas, ela se
recusava a fazer amizade com qualquer um que estivesse ensinando falsa doutrina. Os muito
poucos que sobraram eram novos amigos. Meus associados podiam então ser contados nos
dedos de uma mão e o nosso único elo de comum acordo era o ódio pelos nossos tiranos.

A minha avidez intelectual era enorme, ainda assim eu era absolutamente restringido da
literatura. Um ou dois livros de Scott e Dickens eram permitidos. Ballantyne era aprovado,
G. A. Henty era mais ignorado do que abertamente tolerado. David Copperfield era barrado
por causa da Pequena Emily, pois ela era uma garota travessa; além disso, Emily era o nome
da minha mãe, e ler o livro poderia diminuir o meu respeito por ela. Um dos meus tutores
trouxe The Bab Ballads, onde uma das quais começa assim:
Emily Jane era uma babá.

Minha mãe atirou o livro para fora da casa e por pouco também o jogou para fora depois.
Outro tutor leu em voz alta “O Velho Marinheiro” uma noite após o jantar e a minha mãe,
após fazer um sermão tempestuoso, me arrancou da contaminação da sua presença. O
motivo foi que quanto o Velho Marinheiro viu as serpentes marinhas brincando ao redor do
navio, ele “as abençoou inadvertidamente”. Um ato escandalosamente blasfemo, pois as
serpentes são amaldiçoadas em Gênesis!

Aqui, pelo jeito, existe uma questão curiosa. Estes fanáticos são tão inconsistentes que eu
nunca fui capaz de acompanhar o funcionamento das suas mentes. Há uma grande
quantidade de ensinamentos em “O Velho Marinheiro” que escandaliza todos os princípios da
Irmandade Plymouth, mas a minha mãe não parece ter sido ofendida com aquilo. Minha
única sugestão é que ela detestava serpentes por razões Freudianas; ela provavelmente se
encontrou com elas em sonhos e tinha, portanto um bom motivo (conforme seu ponto de
vista) para identificá-las com o demônio na sua forma mais ofensiva. Minha mãe era
naturalmente um tipo de mulher bem sensual e não resta dúvida que a repressão sexual a
trouxe o mais próximo possível às margens da insanidade.

Minha prima Agnes tinha uma casa na Dorset Square. Uma tarde a minha mãe me levou lá
para o chá. Havia um exemplar de Dr. Pascal na sala. A palavra “Zola” atraiu o olhar da
minha mãe e ela teve um ataque histérico de fúria verbal contra a sua anfitriã. Ambas as
mulheres esbravejaram e gritaram uma com a outra simultaneamente, entre rios de
lágrimas. Desnecessário dizer que a minha mãe jamais lera uma linha de Zola – o nome era
simplesmente como um pano vermelho na frente de um touro.
Essa inconsistência, pelo jeito, parece ser universal. Eu conheci um editor que se recusava a
imprimir “Nós demos a eles o inferno e Tommy”, enquanto passava sem ser questionado
todos os tipos de coisas cuja exceção poderia muito razoavelmente ser concedida por
imbecis de mentalidade estreita. O censor habitualmente deixa passar o que eu, que não sou
puritano, considero como sujeira nauseante, enquanto se recusam a liberar Oedipus Rex,
que somos forçados a assimilar na escola. O país está inundado com a pornografia sórdida
de mulheres escritoras, enquanto que há um clamor contra obras primas de filosofia que
marcaram época como Jurgen. A obscena comédia musical segue alegremente seu caminho
libidinoso, enquanto que Ibsen e Bernard Shaw estão na lista negra. O fato é, naturalmente,
que o puritano foi transformado pela repressão sexual em um pervertido e degenerado
sexual, de modo que ele é insensato sobre o assunto.
Naturalmente, não foi inteiramente possível evitar que eu lesse. Procuravam me manter
sempre com pouco dinheiro no bolso, de forma que eu não pudesse nem ao menos comprar
livros a prazo. Mas eu costumava obtê-los de vez em quando, contrabandeá-los para dentro
da casa dentro das minhas roupas, e me trancar no banheiro para lê-los. Um destes livros,
eu me lembro, era O Mistério de uma Carruagem. Minha mãe considerava a carruagem tipo
cabriolé como um engenho especialmente projetado pelo demônio e qualquer referência a
alguma era considerada obscena.
Tendo fornecido uma idéia do ambiente de casa, é compreensível que eu estivesse
preparado para mudar os meus hábitos a fim de realizar qualquer ato que pudesse servir
como uma afirmação mágica da minha revolta. Eu era, de fato, restringido de desenvolver a
minha mente de qualquer modo saudável. Eu não tive oportunidade alguma de pensar em
qualquer outra coisa além de responder fogo com fogo.

Uma nova criada decidiu fazer algo para melhorar sua situação exercendo um domínio
completo sobre o jovem amo. Eu dei um jeito de me encontrar com ela na sua saída à noite
em uma distância segura de Streatham e seguimos num cabriolé até Herne Hill, nos
entregando a um flerte moderado durante o caminho. Na manhã de domingo, entretanto, eu
levei o plano à sua consecução. Eu dei uma desculpa para ficar afastado da reunião matinal,
levei a garota para o quarto da minha mãe e fiz a minha afirmação mágica. Eu não tinha
ideia de que haveria qualquer plano em contrário, porém a garota terminou “dando com a
língua nos dentes”. Ela foi, naturalmente, instantaneamente mandada para a rua, mas ela
continuou as suas atividades para melhorar. O Tio Tom interveio, pois naturalmente a minha
mãe não poderia discutir tal assunto comigo de modo algum. Eu neguei o caso todo e ponto
final. Meu tio tentou localizar o cocheiro, mas fracassou. Ele pressentiu encrenca para
alguém e sabia não mais do que tantos chineses. Ele me suplicou, entretanto, para tentar
oferecer alguma prova positiva da minha inocência; e eis aonde entrou a minha sutileza. Eu
fingi estar com uma grande perturbação. Sim, eu poderia prová-lo, e ainda assim, como
poderia? Meu tio pressentiu um mistério e adiou a averiguação.

Eu saí imediatamente e apelei ao homem da tabacaria que estava na ponte sobre a estação
Streatham para dizer, caso fosse questionado, que ele se lembrava de mim tendo ido à sua
loja na noite de quinta-feira anterior, que foi aquela do passeio de carruagem. Ele tinha um
bom espírito esportista e naturalmente estava ansioso para me favorecer. Eu voltei para
junto do meu tio e propus um acordo. E lhe contaria onde fui, mas ele não deveria me punir,
pois eu fora desencaminhado por más companhias. Ele estava muito feliz; e eu confessei
trêmulo e choroso, que eu havia estado na tabacaria. Ele teria duvidado de um álibi
meramente inocente. A garota foi, naturalmente, desacreditada, e nada mais foi ouvido
sobre o assunto. E eu a tive exatamente na cama da minha mãe!

Tal é o estado de coisas que é provocado pelo puritanismo. Primeiramente temos uma garota
charmosa levada a tentar chantagear, depois um garoto obrigado à falsidade mais
degradante a fim de exercer seus direitos naturais com impunidade, e incidentalmente
enganar uma mulher por quem ele não tinha nada mais do que os mais amigáveis
sentimentos. Quanto mais as relações sexuais forem dificultadas por considerações
religiosas, sociais e financeiras, mais estas causarão todos os tipos de comportamento
covarde, desonroso e vergonhoso. Quando as condições da guerra impuseram restrições
artificiais ao apetite irmão da fome, cidadãos decentes começaram a desenvolver todos os
tipos de trapaças detestáveis. Homens e mulheres jamais se comportarão dignamente
enquanto a atual moralidade interferir na legítima satisfação das suas necessidades
fisiológicas. A natureza sempre se vinga daqueles que a insultam. O indivíduo não deve ser
culpado pelo crime e a insanidade que são as explosões conseqüentes da obstrução da
válvula de segurança. A culpa recai sobre o engenheiro. No presente momento, a sociedade
está explodindo em regiões maiores ou menores em todo o mundo, porque ela fracassou em
desenvolver um sistema pelo qual todos os seus membros possam ser adequadamente
nutridos sem conflito e que os restos dos produtos sejam eliminados sem desconforto.

No todo, eu era tão cauteloso que incidentes como os acima citados eram acidentes
calculados. Eu tinha sido ensinado através de amarga experiência que quase qualquer um
poderia ser um espião, de modo que a menor indiscrição ao conversar com um estranho
aparentemente inofensivo poderia resultar em algum desastre. Os alicerces foram
construídos com uma timidez exagerada que jamais me deixou. Eu estava praticamente
excluído do relacionamento humano, mesmo daquele relacionado aos grandes homens do
passado. O meu único consolo era escrever poesia.

É difícil explicar por quais meios eu cheguei à conclusão de que a poesia era de importância
suprema. Havia um tipo de tradição de família que honrava o poeta; porém era tão irracional
quanto o resto das suas crenças. Eu só posso imaginá-la como derivada do fato de eles
terem sido ensinados na escola que os poetas ingleses eram a glória da humanidade, pois
eles certamente não conheciam poesia alguma além de “Casabianca” e “Somos Sete”. Eu
descobri Shakespeare por mim mesmo. Aconteceu que na cada da fazenda em Forsinard
havia três velhos volumes. Minha mãe tinha uma edição de Shakespeare; mas eu nunca a li,
porque ela era permitida. Na casa da fazenda, contudo, não havia nada mais para ler. Eu
fiquei fascinado e perdi noite após noite virando as páginas (eu sempre fui
extraordinariamente meticuloso em qualquer coisa a qual eu me dedicasse. Meu pai tinha
uma prédica favorita sobre a palavra “mas”; e eu examinei cuidadosamente toda a Bíblia,
página por página, marcando esta palavra, onde quer que ela surgisse, com um retângulo de
tinta.).

À parte das poucas obras comuns para recitação, havia o Paraíso Perdido[65]. Esta me
entediou na maior parte tanto quanto agora, porém permitiu que eu exultasse sobre as
figuras de Satã e do pecado. Afinal de contas, Milton era um grande poeta; e o ser artístico
subconsciente dele era, portanto, asperamente contrário ao Cristianismo. Satã não é apenas
o herói, mas o herói triunfante. As ameaças de Deus não “se realizaram”. São as forças do
mal, assim chamadas, que manifestam em força e beleza da forma. As glórias dos santos
têm um brilho falso. É impossível obter bondade com caráter. Na teoria Cristã, a bondade é,
de fato, nada mais que a ausência de caráter, pois ela implica em completa submissão a
Deus. O pecado original de Satã não é o orgulho; aquele é secundário. Ele surge da
consciência de separação. Então naturalmente isto é, misticamente falando, pecaminoso,
porque o místico sustenta que toda manifestação é imperfeição. A teologia Cristã não teve
lógica suficiente para perceber, como sua irmã mais velha, a teologia Hindu, que quaisquer
atributos sejam quais forem devem distinguir o seu possuidor de algum outro ser que possa
existir. Porém seu instinto foi o de ir o mais longe naquela direção quanto possível e
conseqüentemente os personagens divinos em Milton são comparativamente incolores. Tal
foi a transmutação na natureza de Deus efetuada ao construir uma superestrutura de
filosofia grega sobre o alicerce do fantasma selvagem de Jeová. A minha própria atitude no
caso deve ser apreciada dentro das minhas tendências estéticas. Eu jamais poderia tolerar
uma beleza serena e insípida. A feiúra da decrepitude me revoltou; porém aquela da força foi
absorvida em toda a minha alma. Eu desprezava o cenário sem graça dos lagos suíço; a
aspereza dos picos elevados das rochas estéreis e o isolamento melancólico de lagos tais
como o Llyn Idwal atraíram a minha imaginação. Wastwater me desapontou. Ele não chegou
ao nível da sua reputação poética. Então era apenas quando eu me encontrava entre os
próprios penhascos que eu ficava feliz. Eu exigia estar próximo à morte de um jeito ou de
outro. A ambição burguesa de atravessar a vida sem aborrecimentos me parecia a coisa
mais ignóbil e totalmente incompatível com a atitude moral das pessoas celestiais em
Paraíso Perdido.
Era-me permitido ler Tennyson e Longfellow, mas é impossível classificá-los como poetas. A
emasculação de todos os personagens me indignou além da conta. Seus verdadeiros pecados
são suburbanos.

8
Então quando comecei a escrever poesia por mim mesmo, o meu trabalho resultou
naturalmente em três divisões. Primeiramente, letras de músicas curtas modelaram os hinos
aos quais eu estava acostumado; em segundo lugar, paródias, principalmente de canções
escocesas e inglesas; e em terceiro lugar, épicos baseados em Sir Walter Scott. Eu devo ter
escrito mais de cem mil linhas. Todas elas foram destruídas; e eu lamento muito por isso.
Enquanto que as mesmas não tinham mérito algum, seus conteúdos proporcionaram uma
chave valiosa para os meus pensamentos na época. Os poucos fragmentos que escaparam
da destruição foram reimpressos nos meus Oráculos. Eu me lembro de alguma coisa da sua
tendência moral em geral, que era a de celebrar o triunfo da revolta da juventude e a paixão
contra a velhice e a propriedade. Eu tentei conseguir resultado usando extremos de
expressão. Eu me lembro de duas linhas de um épico, “Lady Ethelreda”:

O Barão Ethelred se inflamou indignado,

Ele espumou por uma fútil trivialidade.

Porém assim que fiquei um pouco mais velho me tornei capaz de lidar com o meu material
com mais discrição. Minha mãe determinou, naturalmente, que eu seguisse os passos do
meu pai como evangelista, mas como eu tinha que ter uma profissão, ela decidiu que
gostaria que eu fosse um médico, baseada em que os “médicos têm muitas oportunidades”.
(Especialmente para trazer almas para Jesus. Ela não viu nada de engraçado nessa
observação!). Então eu comecei a aprender um pouco sobre medicina e produzi o seguinte
exagero:

UMA ESPIADA POR TRÁS DAS CENAS

Na cama de hospital ela repousa

Se deteriorando!

Maldizendo de noite e maldizendo de dia,

Se deteriorando!

O lúpus está na sua face e na cabeça,

Imundo e fétido e horrível e apavorante,

E seus gritos quase poderiam despertar os mortos;

Se deteriorando!

No seu túmulo horrível ela repousa,


Se deteriorando!

No lugar da sua face há uma cavidade sangrenta,

E os vermes estão roendo os tecidos repugnantes,

E o demônio está se gabando da sua alma,

Se deteriorando!

Observe que o título deste poema é irônico. Ele foi tomado de um livro comovente, popular
na época, que descreve a vida de saltimbancos viajantes e como a única esperança para eles
era a de serem convertidos. Mas a ironia vai mais fundo de algum modo. Ele era uma
autêntica crítica à filosofia de otimismo vazia que vinha junto com o Cristianismo polido
daquele tempo. Eu estava analisando a vida conforme o espírito de Schopenhauer. Eu não
conseguir ver nenhum sentido em fingir que a vida não era repleta de horrores. Morte e
calças são fatos da natureza; e meramente evitar se referir a eles ou inventar eufemismos
para eles não altera o seu caráter. Eu estava reduzido a exultar sobre assassinato e
putrefação, simplesmente porque estas coisas ofereceram a mais forçosa negação aos
dogmas atuais em casa. O Paganismo é saudável porque ele encara os fatos da vida; mas
não me era permitido ter uma visão normal da natureza. Na minha situação, eu não poderia
descartar as falsidades do Cristianismo com um sorriso; eu fui forçado a combater fogo com
fogo e a me opor aos seus cataplasmas envenenados com adagas envenenadas.

Tal era a influência da vida no lar. Porém ela foi parcialmente interferida pela influência atual
mais decente da vida escolar. Eu mencionei a minha escola em Streatham. Foi lá que
aconteceram os últimos incidentes importantes deste período. Sendo o químico famoso da
escola, eu fiquei determinado a me destacar no dia cinco de Novembro de 1891. Eu comprei
um pote que pesava aproximadamente 4,54 quilos no armazém, coloquei duas libras de
pólvora no fundo e completei com várias camadas de diferentes “fogos” coloridos. Isso era
tudo – exceto pelos pequenos ingredientes de sais metálicos variados – da mesma
composição: açúcar e clorato de potássio. De modo a garantir o sucesso, eu coloquei toda a
família a misturar estes ingredientes, mas por fim eles foram misturados tão profundamente
que acabaram produzindo aquilo que para todos os efeitos era pó de clorato! Eu o comprimi
com bastante força, enterrei o pote na área de lazer, espetei um foguete no topo e acendi no
momento crítico. O foguete foi fixado muito firme para subir e o rolo de papel para proteção
se queimou antes que eu pudesse voltar para trás. Eu não vi nem ouvi nada. Eu senti como
se o esbarrar de alguma substância quente adesiva e áspera tivesse transpassado a minha
face; e me encontrei de pé na beirada de um buraco no chão de modo algum pequeno. Eu
me perguntava como nesse mundo poderia acontecer de meu experimento ter fracassado.
Eu me lembro de ter pedido desculpas pela falha e de ter dito que eu deveria ir para casa
para lavar o meu rosto. Eu descobri que estava sendo sustentado durante o caminho pelo
meu tutor pessoal e pela minha mãe. Então eu me encontrei na sala privativa do diretor,
recebendo os primeiros socorros. Eu não me lembro de mais nada por mais algum tempo
exceto do aborrecimento de ser acordado para que minhas roupas fossem trocadas. Eu
dormi durante noventa e seis horas com estes intervalos meio conscientes. Meu tutor teve o
bom senso de telegrafar para o Dr. Golding Bird do Guy’s Hospital, cuja intervenção
provavelmente me salvou de erisipelas e da perda da minha visão. No decorrer da
convalescença, mais de quatro mil partículas de pedra e similares foram removidos da minha
face; e foi no Dia de Natal que me foi possível pela primeira vez usar os meus olhos por uns
poucos minutos. A explosão foi devastadora. Janelas sofreram o impacto dentro de um longo
raio de alcance; e as garrafas na loja do químico na ponte sobre a linha do trem – um quarto
de milha e mais de distância – estremeceram, embora a passagem dos trens não provocasse
tal efeito. Estranho o bastante, eu fui a única pessoa ferida. Eu apreciei totalmente o
episódio; Eu era o herói, eu deixei a minha marca!

No ano seguinte eu estava pronto para freqüentar uma escola pública. Meu Tio Jonathan
queria que eu fosse para Winchester, conforme a tradição da família, porém a minha saúde
exigia um clima mais revigorante e foi decidido que eu deveria ir para Malvern. A escola
naquela ocasião estava alcançando os píncaros da sua glória no atletismo. Nós conquistamos
um bastão de brilhante em Percy Latham; e era certo que H. R. e W. L. Foster se
destacariam de um jeito ou de outro, e os rapazes daquela famosa família de jogadores
estavam chegando, prontos para tomarem os seus lugares quando chegasse a hora. Havia
também C. J. Burnup, um novato que tinha futuro.

Em outros assuntos, entretanto, a escola tinha um longo caminho a percorrer. A intimidação


por parte dos valentões corria sem controle, sendo os monitores os principais ofensores.
Como um garoto tímido, solitário com a saúde debilitada, incapacitado de jogar football [66], eu
naturalmente suportei muito mais do que devia, e isso por fim levou a um dos poucos atos
na minha vida dos quais alguma vez eu me sentira inclinado a me recriminar. O caráter da
escola era brutal e imbecil. As autoridades se esforçaram muito para erradicar a prática do
“besuntar”, que consiste em lançar uma cusparada tão carregada de secreções quanto
possível nas faces das pessoas ou nas suas costas. Esta ainda continuou ativa em nossa
casa, Huntingdon’s, nº. 4, e constituiu nossa única reivindicação de diferenciação. Eu não
acho que tivemos um único membro entre qualquer um dos onze. Os monitores eram
estúpidos e desajeitados, esquivando-se tanto do trabalho quanto do jogo, e se
concentrando em obscenidades e tirania mesquinha. O que os aborrecia particularmente era
que a minha conduta era irrepreensível. Eles não podiam me bater com a vara sem a
permissão do líder da casa. Eu não percebi o quanto eu estava sendo vigiado de perto,
porém finalmente eu cometi alguma violação insignificante da disciplina durante a
“preparação”. Depois que a hora acabou o monitor encarregado se apressou alegremente até
o líder da casa. Ele já me encontrou ali. Eu levei a minha surra; mas havia uma série
admirável de expulsões para equilibrá-la. Naturalmente o meu ato era tecnicamente
indefensável; mas afinal de contas, eu segurei a minha língua sem reclamar durante meses e
foi somente quando eles recorreram ao líder da casa para que ele tomasse seu partido que
eu recorri a este para defendesse o meu lado.
Eu posso também enfatizar neste momento que eu permaneci surpreendentemente inocente.
Meu companheiro de estudo era realmente o “rude” favorito da casa; tanto assim, que ele
então adicionou isso consideravelmente ao seu repertório. Mas embora eu estivesse ciente
destes fatos, eu não tinha qualquer noção que fosse sobre o que eles acarretavam.
Um interessante incidente ilustra este fato. Era costume do nosso líder anterior, remeter
vinte por cento de um número de linhas que pudesse ser oferecido a alguém para escrever
caso fossem entregues antes do tempo determinado. Aconteceu que me foi destinado um
número de linhas por outro líder e eu entreguei oitenta por cento com a observação escrita,
“Vinte por cento deduzidos como de costume para entrega adiantada”. Ele achou que eu o
estava “subornando”, porém ao investigar eu fui inocentado; de fato eu não tinha ideia de
haver qualquer duplo sentido.

A minha vida em Malvern causou pouca impressão sobre mim. Na maior parte eu estava
perdido no meu próprio pensamento e tocava na vida escolar o menos que podia, eu não fiz
amigos verdadeiros. Eu não aprovava a brutalidade geral e me recusei a aderir a esta me
tornando o favorito. A estória a seguir ajuda a ilustrar a minha atitude.
Alguns dos monitores estavam me zombando como covarde e propuseram que eu deveria
provar a minha virtude brigando com Smith Tertius, um garoto muito menor do que eu. Eu
me recusei, percebendo que se eu não lutasse com ele eu deveria passar por covarde, e se
eu lutasse seria acusado de intimidação, e provavelmente seria denunciado também por
brigar.

Nenhuma das minhas ambições estava relacionada com a escola. Eu preferia ter meus
devaneios com meus planos de montanhismo nas férias e em me ocupar escrevendo poesia.
A memória preservou fragmentos de duas tentativas. A primeira;

“Não deposites tua confiança em príncipes.” Este é um dito


Que poderia, Ó Gordon-Cumming, ter algo a te ensinar.

Parece absurdo que um garoto da minha idade tivesse interesse em tais assuntos e se
tornasse um partidário tão positivo. Mas eu tinha um ódio arraigado pelo usurpador
Hanoveriano e dei como certo que ainda acredito ter sido o fato de que o homem que
trapaceou não era Gordon-Cumming.

Do segundo poema eu recordo:

Pobre dama! A quem o ódio de um júri perverso

Diante dos fatos, com a prisão e a sepultura

Aos quais eles teriam te condenado – amargo destino!

Tu sem culpa te entregaste ao cruel carrasco.

Vergonha ao juiz que nada vê além de metade dos fatos!

Vergonha para a enfermeira que abre cartas confidenciais!

Porém tu jamais serás esquecida por nós,

A lástima pelas malditas esperanças da tua vida.

Senhora, tende esperança! Toda a Inglaterra está ao teu lado

Exceto uns poucos intolerantes, Senhora, então, sede corajosa.

Minha compreensão da Sra. Maybrick de jeito nenhum contesta a minha crença em sua
inocência. Ela era reconhecidamente uma adúltera. Eu não fiz mais perguntas. O simples fato
me impressionou até a alma. Sendo o adultério o ápice da depravação, o seu cometimento
justificava tudo.

Eu não fiz amigos íntimos. Eu fiz o meu trabalho suficientemente bem para evitar punições
graves, mas sem ambição. Eu não tinha interesse no prêmio Shakespeare, para o qual todo
mundo teve que concorrer, e não havia lido uma linha das duas peças prescritas, Romeu e
Julieta e Ricardo III. Mas por uma razão ou outra eu fiquei apavorado três dias antes do
exame, fui dispensado dos jogos e trabalhei tão arduamente que cheguei em sexta posição
na escola. Eu era capaz de citar várias passagens longas com precisão de memória. Comigo,
era sempre uma questão do interesse que eu tinha nas coisas. Eu tinha os modos de um
erudito clássico perfeito, porém eu não conseguia me fazer memorizar poesia grega e latina.
Mais estranho ainda, eu não conseguia dominar as regras de prosódia. Meus críticos mais
hostis admitem que a minha técnica e o meu senso de ritmo são insuperáveis; mas as regras
de exame crítico nada significavam para mim, porque ninguém explicou a sua relação com o
modo que um poema deveria ser lido.
Eu teria gostado da vida escolar mais que o suficiente se não tivesse sido pelas intimidações
e pela completa falta de companhia intelectual. Eu não tinha interesse nos jogos; minhas
ambições atléticas estavam confinadas a escalar montanhas. Mas pelo menos não havia
Cristianismo! E se havia moralidade esta era mito mais do que de outro tipo. Entretanto, eu
não tinha idade suficiente para me confrontar os meus tutores particulares e descobri uma
liberdade maior com eles do que na escola. Eu decidi partir e fiz um retrato das abominações
que prosseguiam, embora eu nada soubesse sobre elas ou até mesmo o que elas eram, de
tal forma que a minha mãe se recusou a me deixar voltar. Eu contei a ela, ela uma vez me
recordou, que “se o Sr. Huntingdon (o líder da casa) soubesse o que estava acontecendo
dentro da casa, isso despedaçaria seu coração”. Puro blefe! Mas no período seguinte eu
havia ingressado em Tonbridge.

Por esta época eu havia adquirido uma considerável facilidade em obter o melhor das minhas
vantagens. Em alguns aspectos eu tinha muito mais experiência de vida do que a maioria
dos garotos da minha idade. Minhas férias, usufruídas pescando, escalando montanhas e
correndo atrás de garotas, eram repletas de aventuras de um tipo ou de outro, as quais eu
estava sempre vivenciando com os meus próprios recursos. Na época em que eu cheguei a
Tonbridge eu tinha desenvolvido um tipo de aristocracia natural. As pessoas já estavam
começando a me temer e não havia dúvida de que não mais haveria intimidações. A minha
saúde já devia ter melhorado muito. A albuminúria gera melancolia e destrói a coragem
física. Também estive sujeito, sem dúvida, à constante irritação que minha fimose produzia e
a operação me aliviou. Eu estava, portanto, mais ou menos preparado para brigar com
qualquer um que me aborrecesse. E as pessoas tomavam muito cuidado para não o fazerem.

O ambiente em Tonbridge era, além disso, muito mais civilizado do que em Malvern. Hoje
me impressiona ter estado do lado frágil e dissimulado. Não havia naquela ocasião nenhum
traço do sistema de casamento desde sua introdução e agora considerado em expansão.
“Sra. Fulana de Tal” era quase um termo de zombaria, enquanto que agora ele é exigido pelo
seu proprietário para mostrar que ele não é “um daqueles”. Meu melhor amigo era um irmão
de C. F. G. Masterman. Ele não era nem covarde nem hipócrita; porém isto proporciona uma
idéia do ambiente.

O relance de uma vida humana normal proporcionada por Archibald Douglas me tornou
completamente são tanto quanto isso se relacionava com a minha vida consciente. O
problema da vida não era como satanizar, como Huysmans o teria chamado; ele era
simplesmente escapar dos opressores e desfrutar o mundo sem qualquer interferência da
vida espiritual de qualquer tipo. Os meus momentos mais felizes eram quando eu estava
sozinho nas montanhas; porém não há nenhuma evidência que este prazer de qualquer
modo se originou do misticismo. A beleza da forma e da cor, o regozijo físico do exercício, e
a estimulação mental de descobrir seu próprio caminho em uma terra difícil de compreender,
compunham os únicos elementos do meu arrebatamento. Enquanto eu me satisfazia em
devaneios, eles eram exclusivamente de um tipo sexual normal. Não havia necessidade de
criar fantasmas de uma satisfação perversa ou irrealizável. É importante enfatizar este
ponto, porque eu sempre pareci aos meus contemporâneos um indivíduo muito
extraordinário obcecado por paixões fantasiosas. Mas estas não eram de modo algum
naturais para mim. No momento que a pressão era aliviada todo toque de anormal era
apagado instantaneamente. O impulso de escrever poesia desaparecia quase completamente
em tais ocasiões. Eu não tinha nem mesmo quaisquer das ambições comuns dos jovens. Eu
estava satisfeito em desfrutar do esporte sem desejar alcançar eminência neste. Veio de
modo natural para eu descobrir caminhos para escalar montanhas que me pareciam
interessantes e difíceis. Porém nunca me ocorreu confrontar outras pessoas. Era por
deliberações puramente estéticas que eu escalei as gargantas do Tryfan e do Twll Du. Esta
última escalada me colocou, tal como de fato aconteceu, numa controvérsia que estava
destinada a determinar a minha carreira de um modo bem definido.

Notas de Rodapé

1. A edição completa, incluindo o Livro 4, Parte Um, Livro 4, Parte Dois, e Magia(k) em
Teoria e Prática, editado, comentado e com introdução por Symonds e Grant, Routledge
& Kegan Paul, 1973. ↵ voltar

2. Elas eram as assim chamadas Missas Gnósticas, tais como a sua ‘Missa da Fênix’ e a sua
‘Missa Católica Gnóstica’. Devido ao seu componente sexual, elas deveriam ser
consideradas Missas Cinza, mas não Missas Negras. ↵ voltar

3. Daily Express, 19 de Maio de 1967. ↵ voltar

4. Magick (ou no seu título por extenso Magick em Teoria e Prática) é difícil de
compreender. É uma cidade dentro de uma cidade, e a chave para o portão da cidade
interna não é fornecida junto com o livro; ela só pode ser obtida após um estudo de
todas as obras de Crowley, especialmente as suas obras não publicadas. ↵ voltar

5. Pai e Filho (Heinemann, 1907). ↵ voltar

6. Um esportista que substitui um ‘full blue’ ou que representa a universidade em um


esporte menor. Nota do Tradutor. ↵ voltar

7. Se esta Fraternidade era a assembléia oculta dos sábios de Eckartshausen, ninguém


disse, tanto quanto eu sei, mas a implicação é que elas eram a mesma. ↵ voltar

8. A Grande Exposição, ou Feira Industrial, de todas as Nações, realizada em Londres, em


1851. Nota do Tradutor. ↵ voltar

9. Esta Minha Viagem (Murray, 1950). ↵ voltar

10. A palavra de Crowley era Thelema, o grego para vontade, melhor compreendido na frase
Faze O Que Tu Queres, ou nas palavras de O Livro da Lei, Não existe lei além de Faze o
que tu queres. ↵ voltar

11. Aleister Crowley. O Homem: o Mago: o Poeta (The Richard Press, 1951). ↵ voltar

12. Aleister Crowley (Um Estudo de um Enigma)’, em Astrologia. The Astrologers’ Quarterly,
Junho de 1965. ↵ voltar

13. Leah Hirsig, a escriba de Crowley, que durante o período de Céfalu tinha o ofício da
Mulher Escarlate. ↵ voltar

14. Em linguagem de psicologia, ele carecia de integração; ele estava sob o controle de
forças inconscientes. ↵ voltar

15. A Visão e a Voz, Thelema Publishing Company, Barstow, Califórnia, por volta de 1949.
Esta obra foi originalmente publicada no periódico de Crowley, O Equinócio, vol. I, nº. V,
1911. ↵ voltar

16. A invariável saudação de Crowley; ela repete o Fay ce que voudras de Rabelais, mas ela
traz uma sugestão séria. Vide O Livro da Lei. ↵ voltar

17. O lado construtivo da doutrina thelêmica. Cada indivíduo, como uma estrela em órbita,
possui o seu próprio caminho ou verdadeira vontade. ↵ voltar
18. Era Vulgari: O termo de Crowley para Anno Domini a era Cristã que, segundo ele, chegou
ao fim em 1904. ↵ voltar

19. Crowley está aqui se referindo a artigos que surgiram na imprensa durante os anos de
1922-3, seguindo-se à publicação do seu romance, O Diário De Um Viciado em
Drogas (Collins, 1922). ↵ voltar

20. Frater Aud ou Raoul Loveday. ↵ voltar

21. “o mais jovem” (1834-87). ↵ voltar

22. Foi considerada uma estranha coincidência um pequeno país ter dado à Inglaterra os
seus dois maiores poetas – pois não se pode esquecer Shakespeare (1550-1610).
(§ Nota dos Editores: Shakespeare nasceu em 1564.). ↵ voltar

23. Presumivelmente esta é a compensação da natureza pelo horror que atingiu a


humanidade naquela data em 1492. (§ Nota dos Editores: A alusão se refere à
descoberta da América). ↵ voltar

24. Seu filho elucidou este fato ao questionar; curioso, considerando as datas. ↵ voltar

25. Sobre a força de um texto no próprio livro: a lógica é, portanto, de um tipo peculiar.↵ voltar
26. No original encontramos “three lustres later” e um “lustre” é um período de cinco anos.
Na presente edição, optamos por traduzir como “15 anos depois” e por este motivo, a
nota explicativa dos editores perdeu o sentido e foi substituída por esta. – Nota do
Editor. ↵ voltar

27. Também há um notável tufo de cabelo sobre a testa, similar à formação de carne lá
situado nas lendas Budistas. E várias marcas menores. ↵ voltar

28. Ele nunca foi capaz de pronunciar “R” adequadamente – como um chinês! ↵ voltar

29. Um tecido fino de seda e lã, ou algodão, muitas vezes tingido de preto e usado para
roupas de luto. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

30. Muito se disse a respeito das aparências de “Jesus” após a Ascensão. No primeiro caso,
para Estevão, ele estava de pé, no segundo, para Paulo, estava sentado, à mão direita de
Deus. Logo, na primeira ocasião ele ainda estava pronto para retornar de uma vez; na
segunda, ele se decidiu a deixar as coisas seguirem seu curso até o fim amargo,
conforme o Apocalipse. Ninguém viu nada de engraçado, ou blasfemo, ou mesmo fútil,
nesta doutrina! ↵ voltar

31. “Daqueles que tu me entregaste eu não perdi nenhum, exceto o filho da perdição”. Aos
olhos da predestinação, “aqueles” significam todos os eleitos e não meramente os Onze,
como os ignorantes poderiam supor. ↵ voltar

32. Isto é, sentar-se à mesa da comunhão. ↵ voltar

33. Mas que nome! ↵ voltar

34. Com uma notável exceção, à qual ele oficiou. (§ Nota dos Editores: O funeral thelêmico
do seu jovem discípulo, Raoul Loveday, que faleceu na abadia de Crowley de Faze o Que
Tu Queres em Céfalu, Sicília, Durante o ano de 1923. Vide o capítulo 96. Vide também A
Grande Besta, capítulo XXI, por John Symonds.). ↵ voltar

35. Vide capítulos 54 e 55. – Nota dos Editores. ↵ voltar

36. A essência de Crowley é Magick [Magia(k)], não Magic [Magia ou Mágica], seis letras ao
invés de cinco, para afirmar a identidade do homem (o pentagrama) com Deus (o
Hexagrama). Através da Magia, a consciência humana é divinizada; portanto Crowley o
Mago é equivalente a um Logos, uma Palavra encarnada, como Cristo, Maomé, Buda. ↵

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37. Isto é, para aqueles não iniciados na Tradição Mágica e na Santa Cabala – a mesa da
Criança, da qual Freud e Weininger comeram algumas migalhas que caíam. ↵ voltar

38. Deveria ser adicionado que o estigma aparentemente masoquista desapareceu


completamente na puberdade; seus resquícios são observáveis apenas quando ele está
fisicamente deprimido. Isto é, eles são sintomas completos de indisposição fisiológica. ↵

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39. Em Amsterdam. Era uma falha, em primeiro lugar, os nativos se opondo a um líquido que
carece de gosto, arome e cor. ↵ voltar

40. O Livro das Mutações, comumente conhecido, através das traduções de Wilhelm e
Baynes, como o I Ching. Crowley utilizava a tradução anterior de Legge que aparece na
série Os Livros Sagrados do Oriente, publicado por F. Max Müller. –Nota dos Editores. ↵

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41. Clube de Xadrez da Universidade de Cambridge. – Nota dos Editores. ↵ voltar

42. Isso é, da área de recreativa. ↵ voltar

43. Dúvidas? “Lubrificador”, naturalmente, mas o que aquilo estava fazendo? ↵ voltar

44. Agora (1968) Sir Gerald Kelly, antigo Presidente da Real Academia. – Nota dos Editores. ↵

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45. É puramente uma questão de virilidade: compare as raças nobres, Árabes, Pathans,
Ghurkas, Japoneses, etc. com as raças “morais”. Naturalmente, a ausência de casta
determina perda de virilidade e vice-versa. ↵ voltar

46. Na revisão, ele acha que estava “assumindo a administração”, uma palavra sussurrada
para a outra metade da sua escala do “crocodilo”. ↵ voltar

47. Eu faço a citação de um obituário dele publicado durante sua vida. (§ Nota dos Editores:
Vide A Tragédia do Mundo, 1910, de Aleister Crowley.). ↵ voltar

48. Ele criou um método muito genial de ensinar história através de tabelas, cada nação
sendo representada por um rio com maior ou menor largura conforme este crescia ou
regredia, sua anexações através dos tributários, etc., etc.. ↵ voltar

49. Um tipo de jogo de cartas. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

50. ‘Epílogo’, Dramatis Personae, 1864. – Nota dos Editores. ↵ voltar

51. Do latim: de improviso. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

52. Segunda Sra. Tanqueray de Arthur W. Pinero. – Nota dos Editores. ↵ voltar

53. Também conhecido como Glass Harmonica (Harmônica de Copos) – Instrumento musical
consistindo de uma série de recipientes que emitem sons quando friccionados na sua
borda úmida.– Nota do Tradutor. ↵ voltar

54. Na Cidade do México em 1900 Eckenstein me aconselhou a virar os calcanhares das


minhas meias para facilitar calçá-las. Eu contestei a perda do tempo envolvido. Isto se
desenvolveu numa longa discussão sobre a questão: ele venceu, mas eu não pude
acreditar e ainda não estou convencido. ↵ voltar

55. Sir Henry Enfield Roscoe, ‘Little Roscoe’ foi provavelmente sua Lições de Química
Elementar, 1866; a sexta edição foi publicada em 1892. – Nota dos Editores. ↵ voltar

56. A evangelização era quase plenamente terrorismo manifesto. Além dos tormentos do
inferno, havia “julgamentos”. Por exemplo, o Açougueiro Blasfemo que, quando lhe
imploraram para ser “lavado com o Sangue do Cordeiro”, respondeu “Você está certo, eu
tenho o meu próprio cordeiro.”. E naquela mesma noite seu bom senso titubeou sobre o
seu trono, etc. ↵ voltar
57. Oxford era anathema maranatha (§ Nota do Tradutor: Expressão comumente
considerada como uma forma muito intensificada de anátema.) para o meu Tio Tom.
Keble! Manning!! Newman!!! alcoviteiros dos senhores do inferno ainda mais sutis e mais
temerosos do que Darwin, Huxley e Tyndall. ↵ voltar

58. Literalmente, “Rei Smo” e “Rei Drin”, porém dentro do sentido do trocadilho, significam
(Rei) Fumar e (Rei) Beber. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

59. Poder-se-ia argumentar seguramente que o Seu artifício mais generoso foi a adaptação
do tabaco aos nervos do paladar e do aroma. ↵ voltar

60. Som produzido a um estalido da língua (semelhante a ‘tisk’) que indica comiseração ou
reprovação. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

61. Do francês “ao pé da letra”. – Nota do Tradutor. ↵ voltar

62. The World’s Tragedy. – Nota do Editor. ↵ voltar

63. A antítese alegada entre estes dois textos (eu não consigo percebê-la) foi realmente a
base da cisma. Minha mãe achava que um deles (eu me esqueci de qual) “desonrava a
pessoa do Senhor”! ↵ voltar

64. Do latim. Pode ser grosseiramente traduzido como desvio sexual. – Nota do Tradutor. ↵

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65. Paradise Lost. – Nota do Editor. ↵ voltar

66. Football. Jogo diferente do futebol, que por sua vez é conhecido como “soccer”. – Nota
do Tradutor. ↵ voltar

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