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Capítulo
A globalização como desafio
para o trabalho de campo e a
produção etnográfica
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longo da existência da antropologia como disciplina acadêmica, proponho
nesta primeira parte do capítulo apontar as novas estratégias etnográficas
que se estão delineando como resposta aos desafios que a globalização ense-
ja para a prática antropológica. Gostaria de argumentar que tal reflexão pode
se revelar pertinente aos estudos que se localizam na interface dos campos
da antropologia e da comunicação, em especial àqueles relacionados ao con-
sumo e à mídia. Exemplifico essa proposta em relação às características do
objeto de estudo proposto em minha tese de doutorado e de meu problema
de pesquisa – o qual se preocupou em articular as dimensões do global e do
local na análise das dimensões culturais do consumo de uma tecnologia glo-
bal, no caso os telefones celulares, em um grupo de camadas populares (Sil-
va, 2010). O texto a seguir, nesse sentido, reflete as inquietações ocorridas na
formulação das estratégias metodológicas da pesquisa realizada para meu
doutoramento. Vale ressaltar, como veremos adiante, que com a crescente
circulação transnacional dos fluxos midiáticos, decorrente da globalização
cultural, o campo dos media studies teve importante papel no sentido de
trazer para a antropologia pertinentes discussões que buscavam relativizar
concepções mais clássicas de campo. Dentre os objetos de estudo que en-
sejaram tais inquietações, Marcus (1998) cita o estudo antropológico das, na
época, “novas” formas de interação mediada por computador na comunica-
ção eletrônica, como a internet.
Uma reflexão sobre tais mudanças e desafios pressupõe, portanto,
apontar diferenças surgidas no trabalho de campo e na etnografia tanto em
termos de práticas metodológicas quanto de posições teóricas. Assim, na pri-
meira metade do capítulo, apoio-me primordialmente em Evans-Pritchard
(1978) e suas considerações sobre a tradição empírica do trabalho de campo
em antropologia para situar o estatuto da etnografia dita clássica, cujo maior
expoente foi Malinowski, de quem Evans-Pritchard foi aluno. Acompanho as
implicações para a etnografia do crescente desaparecimento de seu primevo
objeto de estudo: as sociedades “primitivas”, e pontuo o movimento que leva
a pesquisa antropológica para o contexto das sociedades complexas, com
atenção às dimensões metodológicas da pesquisa em antropologia urbana
no Brasil. Ao final da primeira parte do ensaio, apresento em linhas gerais os
argumentos dos antropólogos pós-modernos em torno da chamada “crise
de representação” na etnografia, bem como algumas das críticas às posições
4 Evans-Pritchard fornece como exemplos de obras escritas com base nas respostas de ques-
tionários: Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871), de Morgan; e
Questions on the Manners, Customs, Religion, Superstitions, etc., of the Semi-Civilized People,
de Frazer, incluído em The Golden Bough. Esse primeiro momento da produção antropológica
também é discutido por DaMatta (1984).
5 Frazer, por exemplo, quando questionado se já tinha visto algum “selvagem” de perto, costu-
mava dizer: “Deus me livre!” (Evans-Pritchard, 1978).
6 Embora seja inegável, como sabemos, o valor de Malinowski para o estabelecimento do pa-
radigma do trabalho de campo e da observação participante, através de suas pesquisas con-
duzidas em Trobriand entre 1914 e 1918, ele não foi o primeiro a buscar coletar pessoalmente
seus dados: Rivers e Hocart fizeram visitas curtas às ilhas Salomão (Rivers, 1991, original 1910) –
algumas de apenas três dias (Giobellina Brumana, 2003); Radcliffe-Brown, discípulo de Rivers,
realizou pesquisas em Andaman entre 1906 e 1908, sendo este um primeiro trabalho de campo
propriamente dito considerado precursor ao de Malinowski (Evans-Pritchard, 1978). Igualmen-
te paradigmática é a expedição ao estreito de Torres, realizada em 1898 e da qual tomaram parte
Rivers, Seligman e Haddon e a expedição de Boas ao Ártico em 1883. Para uma avaliação crítica
dessas duas últimas experiências, ver Stocking Jr. (1982). Para uma discussão específica sobre
trabalho de campo e a relação observador-observado, ver Stocking Jr. (1983).
7 Em Obras e Vidas – o antropólogo como autor, Geertz (2005), além de realizar uma reflexão so-
bre o estatuto da etnografia, examina os estilos e estratégias de construção de texto não somente
de Malinowski, mas também de Lévi-Strauss, Evans-Pritchard e Ruth Benedict. Para uma crítica
a algumas das posições assumidas por Geertz nessa obra, ver Peirano (1992).
8 Recorrer a fontes de segunda mão frequentemente resultava em incorreções: caso de McLen-
nan, que supôs, a partir de suas fontes, que, entre os povos primitivos, as instituições da família
e do casamento não existiam – erro no qual não incorreria se soubesse a língua nativa (Evans-
Pritchard, 1978). Entretanto, vale lembrar que a ausência de trabalho de campo não é sinônimo
de má teoria. Durkheim e Mauss (que escreveu seu Ensaio sobre a Dádiva a partir da etnografia
do kula feita por Malinowski), nesse sentido, são exemplos de excelentes teóricos que trabalha-
ram a partir de dados obtidos por outros pesquisadores.
9 Para uma visão mais aprofundada de Malinowski a respeito de sua própria experiência de
campo nas ilhas Trobriand, assim como do objeto e do método da antropologia, veja-se a intro-
dução, plena de discussões de ordem metodológica, de Argonautas do Pacífico Ocidental (1976).
Para uma reflexão sobre as relações entre antropologia e trabalho de campo a partir de uma
releitura do capítulo de abertura de Argonautas..., ver Giumbelli (2002).
10 Para Evans-Pritchard, o antropólogo podia considerar seu empreendimento fracassado se,
ao despedir-se do grupo estudado, “não existisse em ambas as partes uma profunda pena na
partida” (1978, p. 128). Entretanto, a premissa da simpatia pelo grupo estudado, embora regra
geral até hoje, possui exceções. Ver Peirano (1992) para a discussão de uma delas – o estudo de
Vincent Crapanzano (Waiting. The Whites of South Africa, 1985) sobre os brancos da África do Sul
na era pré-apartheid.
11 Cardoso de Oliveira (2000) problematiza a medida em que o “olhar” e o “ouvir” do antro-
pólogo são conformados pela teoria enquanto um sistema de ideias e valores. O autor, assim
como Peirano (1995), chama atenção para a necessidade de o antropólogo exercer uma contínua
reflexão sobre seu olhar e seu ouvir para que a última etapa da etnografia, o “escrever”, possa
buscar entender a outra cultura a partir de sua verdadeira interioridade. Peirano (1995) enumera
argumentos a favor da etnografia, mas contra os manuais: a etnografia deve sempre ser pensada
de maneira relacional.
12 Consciente dos problemas metodológicos por resolver na antropologia, Evans-Pritchard não
se iludia quanto à controvérsia que sua descrição do trabalho de um antropólogo poderia pro-
vocar. Aliás, ao assumir que a antropologia é mais “arte do que ciência”, causou seu rompimento
definitivo com Radcliffe-Brown, para quem a antropologia social era “uma ciência natural da
humanidade” (1975 [1940]) regida pelos métodos das ciências naturais e cujo objetivo era “des-
cobrir o caráter universal, essencial, que pertence a todas as sociedades humanas, do passado,
presente e futuro” (p. xi).
13 Para uma discussão crítica das ideias de Geertz (em especial as expostas no clássico ensaio
“Deep Play: Notes on Balinese Cockfight”, que permanece o exemplo mais citado de aplicação
do conceito de descrição densa) à luz do conceito geertziano de rapport e da importância dos
relacionamentos entre pesquisador e pesquisado para o conhecimento antropológico, veja-se
Marcus (1999). Para uma discussão sobre as dinâmicas do “ponto de vista nativo” a partir da
perspectiva de uma etnografia histórica, ver Sahlins (2006).
14 Nos Estados Unidos, a Escola de Chicago, inspirada fortemente pela obra de Georg Simmel,
é representativa dos primeiros estudos em antropologia urbana, os quais envolviam princi-
palmente imigrantes e populações pobres e marginalizadas, caso de Street Corner Society, de
William Foote-Whyte, obra seminal do campo e fruto de etnografia conduzida entre 1937 e 1940
(Foote-Whyte, 2005). No Brasil, como nos mostra Eunice Durham (1986), a tradição da antro-
pologia de estudar os grupos marginalizados urbanos inicia com Nina Rodrigues e seu interesse
pelo negro e pelo mestiço, avançando pelos chamados estudos de comunidade e das religiões
afro-brasileiras. Entretanto, a antropologia permanece, até a década de 1950, definida, em li-
nhas gerais, como uma disciplina que estuda as sociedades “primitivas”. É somente a partir dos
anos 1960 que tem início o processo de inclusão das chamadas “sociedades complexas” como
objeto de estudo legítimo da antropologia (Peirano, 1992).
15 Para uma discussão aprofundada e abrangente de experiências contemporâneas de antro-
pólogos brasileiros no trabalho de campo envolvendo pesquisas urbanas, bem como das técni-
cas e métodos empregados no trabalho antropológico, veja-se a coletânea organizada por Velho
e Kuschnir (2003).
16 É o estudo de Leach, Sistemas Políticos da Alta Birmânia, de 1954, sobre os kachin da Birmâ-
nia, que irá mostrar que as sociedades têm características dinâmicas – tanto em termos tem-
porais quanto, principalmente, espaciais – e que a política, desse modo, deve ser tomada como
“processo”: no caso dos kachin, a sociedade oscila entre um modelo democrático e um modelo
hierárquico.
20 Como exemplos, Geertz aponta o que, na sua opinião, são excelentes trabalhos antropológi-
cos que têm como objeto, por exemplo, o comércio mundial de sushi, os negócios publicitários
no Sri Lanka, a televisão na Índia e estudos sobre migração e identidades transnacionais, dos
quais os dois últimos estiveram, desde o início, no centro do que tem sido chamado “antropo-
logia transnacional” ou “antropologia da ecumene global” (Hannerz, 2003), cuja preocupação
antropológica gira em torno de conceitos teóricos como os de fluxos, fronteiras e híbridos (Han-
nerz, 1997).
21 Para Gupta e Ferguson, não surpreende que haja tão pouco trabalho etnográfico sobre a mí-
dia, porque esta desafia as concepções de local. Nesse sentido, as práticas sociais e culturais
ligadas à mídia estão apenas começando a ser mapeadas na medida em que o estudo da mídia
foi, por muito tempo, tabu na antropologia (Ginsburg; Abu-Lughod e Larkin, 2002). Para os
autores, a centralidade da mídia de massa na contemporaneidade expressa uma oportunida-
de e um compromisso da antropologia em explorar sua significância analítica e prática. Nesse
sentido, vale registrar aqui o recente estudo de caráter etnográfico sobre as práticas sociais e
culturais envolvendo o uso de telefones celulares entre classes populares na Jamaica, realizado
pelos antropólogos Horst e Miller (2006).
22 Para uma problematização da naturalização do “local” na etnografia, das transformações nas
práticas espaciais e seu impacto na etnografia e no trabalho de campo, veja-se Clifford (1997).
23 Nesse sentido, vale mencionar a discussão que ocorre nos estudos de cibercultura sobre a
possibilidade de “etnografias virtuais” – na qual o pesquisador pode, por exemplo, interagir com
seus “nativos” em uma sala de bato-papo ou em uma comunidade virtual. Para uma discussão
das dimensões metodológicas da etnografia virtual, ver Hine (2000). Clifford (1997), entretanto,
assinala a ainda existente dificuldade da antropologia em aceitar como legítima essa estratégia
metodológica.
24 Vale lembrar que, embora a etnografia multissituada esteja ganhando corpo como méto-
do etnográfico na atualidade – principalmente devido à intensificação dos fluxos de circulação
da mídia e de pessoas ao redor do globo – a etnografia do kula trobriandês de Malinowski, na
medida em que seguia os indivíduos através dos circuitos de circulação de objetos, já poderia
ser considerada, também, uma etnografia multissituada (Marcus, 1998 [1995]); Hannerz, 2003).
26 O inglês também foi utilizado largamente por Hannerz (2003) no contato com seus infor-
mantes; Rial utilizou-se do francês e também do inglês.