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Uma leitura do romance “Júlia: nos campos conflagrados do Senhor” (2020), de Bernardo Kucinski.
Inicialmente, destacamos que a narrativa se passa em dois tempos e que estes são
diferenciados no livro por fontes tipográficas distintas. Nos capítulos em que o tempo da narrativa é
o ano de 1992, vemos três irmãos reunidos com um tabelião na leitura do testamento após a morte
de seus pais. A filha caçula, Júlia, decide não vender o apartamento por este lhe trazer recordações
de toda sua vida. Assim, observamos as primeiras marcas do tempo psicológico nessa primeira fase,
tal como:
Cada espaço evocava uma fase de sua vida, a infância no terraço, em estripulias
com o Lair, a adolescência no escritório do pai, montando quebra-cabeças, a
juventude em seu quarto, estudando e ouvindo música. Cada mobília remetia a uma
cena recorrente, o pai de pé ao lado do console falando ao telefone em voz baixa, o
Lair fazendo a lição de casa na mesinha baixa da biblioteca, a mãe cerzindo botões
na cadeira de vime da sala. (KUCINSKI, 2020, p. 20)
Nesse tópico destacamos alguns momentos importantes das denúncias feitas acerca das
perversidades ocorridas durante os anos de chumbo. É importante destacar novamente a importância
que a literatura pode representar para a preservação e exposição desses acontecimentos. Muitos
relatos desse período se perderam ou foram extraviados por aqueles que não queriam que a verdade
viesse à tona, mas puderam ser “reconstruídos” a partir de textos literários que buscam transmitir e
relatar a verdade de fatos e as atrocidades cometidas pelos agentes de repressão dessa época.
No romance em questão, vemos essa denúncia explicitada através das cartas que Júlia
encontra em um estojo que pertencia a seu pai e que estava escondido em um buraco na parede de
seu quarto. As cartas foram escritas a mão e relatavam as torturas sofridas por diversas vítimas.
Podemos exemplificar a partir dos seguintes fragmentos as denúncias de prisões arbitrárias, torturas,
desaparecimentos e mortes:
“Durante três dias Frei Tito foi supliciado; socaram sua cabeça na parede, queimaram seu corpo
com cigarros e lhe aplicaram choques elétricos em todo o corpo e na boca, ‘para receber a hóstia’.
Queriam que ele denunciasse quem o ajudara a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da
União Nacional dos Estudantes.” (KUCINSKI, 2020, p. 30).
“O militante Jeová de Assis Gomes foi assassinado com um tiro pelas costas em 9 de janeiro de
1972, ao ser identificado por agentes da repressão em um campo de futebol em Guaraí, Goiás. Foi
enterrado em um cerrado, na periferia da cidade.” (KUCINSKI, 2020, p. 31).
“[...] o professor de engenharia naval Raul Amaro Nin Ferreira foi chicoteado com um fio elétrico
até morrer, na sede da polícia política no Rio de Janeiro. O estudante de economia Stuart Edgar
Angel Jones foi arrastado no pátio de um quartel da aeronáutica amarrado a um jipe com a boca
quase colada ao cano de escapamento. Seu corpo, nunca foi encontrado. O sargento da
aeronáutica, João Lucas Alves, foi espancado até a morte, seus ossos quebrados e enterrado às
escondidas da família...” (KUCINSKI, 2020, p. 31).
“O estudante Eduardo Collier Leite foi torturado durante 109 dias seguidos.” (KUCINSKI, 2020,
p. 31).
Esses são alguns dos relatos em que é possível visualizar como era assustadora a maldade e
as arbitrariedades que foram cometidas. Observamos que qualquer pessoa poderia sofrer essas
repressões, sejam elas Freis, professores, militantes, estudantes, simpatizantes, entre outros, bastava
ser contra o sistema ou de algum modo atrapalhar que este se mantivesse no poder. Também era
comum desaparecimentos, pessoas eram sequestradas, torturadas e suas famílias nunca descobriram
seu paradeiro, tal como explícito no fragmento a seguir:
“[...] Muitas execuções são noticiadas como se fossem atropelamentos, ou troca de tiros durante
tentativas de fuga, ou suicídios. Outros desaparecem sem deixar rastros.” (KUCINSKI, 2020, p.
31).
No fragmento acima vemos que muitas das violências eram falsamente noticiadas como se
tivessem sido acidentes, suicídios e tiroteios. Mulheres também não escapavam, eram agredidas
física e psicologicamente. Há relatos de que algumas delas estavam grávidas e seus filhos após
nascerem “desapareciam” ou eram colocados para adoção, como destacado abaixo:
A estudante de sociologia B. M., acusada de vinculação com grupos clandestinos, recebeu choques
elétricos em todo o corpo e só foi libertada quatro meses depois, grávida e totalmente fora de si,
estando hoje internada numa clínica psiquiátrica. (KUCINSKI, 2020, p. 31).
São os nomes dos bebês, os mesmos que estão nas cartelas que a gente enrola nos bracinhos deles.
E esses sobrenomes estranhos na outra coluna? Claro! São os sobrenomes dos casais que
adotaram.” (KUCINSKI, 2020, p. 80).
3. Proposta de Atividade
Objetivo: Refletir sobre as semelhanças dos acontecimentos históricos do Regime Militar do Brasil
e da Argentina a partir da leitura de fragmentos do conto “Sobre a natureza do homem”, de
Bernardo Kucinski e da canção “La carta”, de Mercedes Sosa.
Séries: Turmas do ensino médio.
Disciplina: Língua Espanhola.
Proposta 1: De forma inicial, mostraremos aos alunos imagens que se relacionem com a temática
do romance. A partir disso, faremos perguntas para saber o que conhecem a respeito do que a
imagem representa.
Proposta 2: Em seguida, será apresentado aos estudantes fragmentos do romance “Júlia nos campos
conflagrados do Senhor” (2020), de Bernardo Kucinski. A priori, eles farão uma leitura silenciosa e
após isso apresentarão suas perspectivas iniciais. Trabalharemos com foco no relato das cartas que
denunciam a violência do Regime, em especial no desaparecimento de pessoas e adoção ilegal dos
bebês das vítimas.
Proposta 3: Leitura e escuta da canção “La carta”, de Mercedes Sosa. Essa canção relata a prisão
arbitrária do irmão da cantora na época da ditatura militar argentina. Após isso, será realizado um
novo debate relacionando as temáticas da imagem, do romance e da música.
Resumo
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise de alguns personagens do romance
Azul-corvo, de Adriana Lisboa, tendo como base a temática da ação política contra a ditadura militar
no Brasil e da conciliação com o regime e propor uma sugestão de atividade para a sala de aula a
partir da leitura e análise do romance. Dessa forma, selecionamos e enumeramos trechos do
romance em que se evidenciam os personagens que refletem a ação política contra a ditadura militar
e, em contrapartida, as atitudes e ações dos personagens da narrativa que concordavam com o
regime e auxiliavam na sua manutenção. Para tanto, utilizamos como aporte teórico textos de
Gagnebin (2006), Safatle (2010), Figueiredo (2017) com relação ao contexto do Regime Militar.
Para o suporte da literatura e ensino, nos respaldamos em: Iser (1979), Jauss (1994) entre outros.
Também apresentamos, ao final do artigo, uma sugestão para trabalho em sala de aula com o
romance em questão.
Palavras-chave: Ditadura Militar. Azul Corvo. Literatura e Ensino
1 INTRODUÇÃO
Tal eliminação simbólica, segundo o autor, é o desaparecimento não só dos corpos das
pessoas que questionaram a ditadura militar e foram torturadas e mortas, mas também o
desaparecimento dos culpados desses crimes, o próprio apagamento dos crimes e a aniquilação da
memória dos sobreviventes e da memória coletiva através de um olhar seletivo para o passado.
Principalmente depois da redemocratização do Brasil, foi necessária a reconstrução do
passado: fazer esquecer os crimes cometidos pelo Estado. De que forma isso foi feito? Apagando os
fatos, destruindo os documentos, desaparecendo com os vestígios. Outra possibilidade de
apagamento do passado e da memória seria admitir que até existiram torturadores e assassinos, mas
que eles cometeram crimes sem a anuência do Estado. Há ainda outro discurso veemente contra o
passado: afirmar que tudo não passa de uma invenção esquerdista com o objetivo de receber
indenizações ou ainda a construção do discurso de que o golpe foi, na verdade, uma
contrarrevolução com o intuito de proteger o Estado dos inimigos comunistas.
Em concordância com a violência do esquecimento/apagamento forçado do passado,
Gagnebin afirma que:
Ora, a imposição do esquecimento como gesto forçado de apagar e de ignorar, de
fazer como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida no
passado, esse gesto vai justamente na direção oposta dessas funções positivas do
esquecer para a vida. Impor um esquecimento significa, paradoxalmente, impor
uma única maneira de lembrar – portanto um não lembrar, uma “memória
impedida” [une mémoire empêchée], diz Ricoeur, uma memória que vai lutar,
brigar para poder voltar. (GAGNEBIN, 2010, p.79).
Assim como o trecho acima nos evidencia e os fatos não nos deixam negar, não houve no
Brasil um olhar para o passado com o intuito de punir os crimes e os culpados pela violência do
regime ditatorial. Ficou na nossa memória e como uma herança histórica mal revisitada a percepção
de que a anistia preencheu todas as lacunas do passado, ou internalizamos os discursos de que nada
disso existiu, ou que, se existiu, não foi tão grave assim.
Entretanto, assim como afirma Gagnebin (2006), mesmo com a insistente tentativa de
apagar o passado, a construção da história não pode ser compreendida como algo homogêneo e a
tarefa do historiador, nessa perspectiva, é lutar contra o esquecimento e contra a mentira sem cair
numa definição determinante e determinada de verdade. Diante dos discursos que trabalharam e
trabalham pela destruição dos crimes do passado, é necessário manter viva a memória dos heróis
anônimos que lutaram contra um Estado ilegal e fazer assim um trabalho contra a morte.
A partir dessa necessidade de olhar para o passado sob outra perspectiva, nos afirma
Safatle:
(...) podemos dizer, neste sentido, que os jovens que entraram na luta armada
aplicaram o direito mais elementar: o direito de levantar armas contra um Estado
ilegal, fundado por meio da usurpação pura e simples do poder graças a um golpe
de Estado e ao uso sistemático da violência estatal. Desconhecer este direito é, este
sim, o ato totalitário por excelência. (SAFATLE, 2010, p. 248).
Dessa forma, o autor nos convida a mudar o ângulo de visão para os acontecimentos do
passado, resgatando a história através do rastro e da memória daqueles que, ao invés de terroristas,
podem ser vistos como heróis que lutaram contra um Estado ilegal e totálitário; pessoas comuns que
assumiram a luta como um projeto de esperança para a retomada e reconstrução de um país entregue
à barbárie. Assim como nos reforça Arantes, “é bom insistir: foi justamente a capacidade política de
organização daquelas “pessoas comuns” o alvo primordial do arrastão aterrorizante que recobriu o
país a partir de 1964.” (ARANTES, 2010, p. 217). Diante da violência do Estado, o autor reforça
que:
A literatura sobre a ditadura cumpre o papel de suplemento aos arquivos que, ainda
que quando abertos à população para consulta, são áridos e de difícil leitura. Ao
criar personagens, ao simular situações, o escritor é capaz de levar o leitor a
imaginar aquilo que foi efetivamente vivido por homens e mulheres
(FIGUEIREDO, 2017, p. 29).
Fernando era conhecido como Chico Ferradura quando chegou à Academia Militar
de Pequim, nos anos sessenta. [...] Eu nunca soube de onde veio o codinome. Como
é que Fernando virava Chico e ainda por cima ganhava uma Ferradura. Essa foi
uma das coisas que ele não me contou durante o tempo em que moramos juntos
[...]. Mas ele me contou que logo após desembarcar na China e ser recebido por
uma comitiva oficial, em janeiro de 1966, foi convidado, junto com o restante do
grupo de quinze militantes do Partido Comunista do Brasil, para ir à ópera
(LISBOA, 2018, p. 35).
Mas Chico não estava em Pequim para assistir a espetáculos artísticos, ainda que a
ópera, desde que apresentasse temas comunistas (o resto era subversivo), integrasse
a máquina revolucionária. Sua viagem até a China de Mao Tsé-Tung tinha
começado dez meses antes, e com um propósito bem definido. Ele aprenderia
técnicas de guerrilha junto com os outros catorze brasileiros militantes do PC do B
(LISBOA, 2018, p. 35).
O narrador já mostra sutilmente nessa passagem, como a discrepância entre os dois lados
da guerra era grande. De um lado todas as Forças Armadas do país, com suas influências, recursos
humanos e financeiros e do outro a guerrilha com poucos homens realmente treinados, já que a
maioria nunca havia pegado em uma arma ou não tinha dimensão do tamanho do embate. A
convicção ideológica dos 15 militantes que participaram do treinamento na China, era muito forte,
principalmente no início, nos primeiros anos. Eles sabiam que não seria fácil que as consequências
viriam, mas acreditavam na libertação do país. Essa convicção é destacada na seguinte passagem:
Tudo já tinha um preço quando ele rastejava pela lama congelada, em Pequim,
durante o treinamento que deveria durar seis meses e acabou durando mais de um
ano. Quando assistia, à noite, às aulas teóricas de política, traduzidas por dois
camaradas chineses que ele apelidou, em segredo, de Ping e Pong, vício do bom
humor que naqueles tempos era quase uma doença e não o largava de jeito nenhum,
nem na mais fria noite de inverno chinês e com assuntos-sérios em questão. Tudo já
tinha um preço quando, na viagem de volta, o grupo de quinze militantes se
desmembrou para chegar ao Brasil. Dizer que tudo já tinha um preço já tinha um
preço (LISBOA, 2018, p. 37-38).
Vanja ao narrar o passado de Chico Ferradura, que para ela era muito diferente do
Fernando que ela conheceu décadas depois, demonstra sua incredulidade com os acontecimentos
que envolveram o regime militar no Brasil. Essa falta de conhecimento, não só da personagem, mas
de milhões de brasileiros sobre o regime militar é reflexo do apagamento forçado do passado,
discutido anteriormente sob a perspectiva de Gagnebin (2010) e Safatle (2010). O apagamento da
memória cria dois Brazis com histórias diferentes. Sobre o pouco conhecimento de Vanja,
observamos:
E hoje em dia todo mundo está a par de tudo isso. Mas as coisas têm um rosto
distinto quando vivemos o pós-elas. Quando nascemos tantos anos depois. Quando
precisamos que nos informem, que nos expliquem, que nos digam que era óbvio o
óbvio que pulou para dentro dos arquivos. As verdades feias foram ao banheiro e
retocaram a maquiagem. (Na escola, durante as aulas de história do Brasil, tudo era
maçante, distante e levemente inverossímil. Eu acompanhava os pombos lá fora
enquanto o professor dizia que durante os anos sessenta. Que durante os setenta
(LISBOA, 2018, p. 37).
A personagem fala de verdades maquiadas, de versões sobre a ditadura que não instigam
as novas gerações à reflexão, mas sim, as distanciam, como se aquele passado não fosse seu e não
importasse mais ser discutido. Ainda sobre a construção do personagem Fernando, que abandonou a
guerrilha no Brasil depois de ter lutado alguns anos, de ter esquecido sua própria identidade em prol
do propósito de um país livre e ter iniciado e vivido nos Estados Unidos uma nova vida, pacata,
solitária, muito diferente do guerrilheiro de outrora, ele revela a Vanja o que fez de mais substancial
na vida: “Fiz. Estive na Academia Militar de Pequim. E fui um guerrilheiro comunista. É a parte
mais relevante do meu currículo” (LISBOA, 2018, p. 114).
Apesar de todos os esforços dos guerrilheiros, o declínio começou a acontecer. Na
medida em que os militares começaram a receber as primeiras informações sobre um grupo de
pessoas vivendo na mata realizando atividades suspeitas, passaram a colher informações com os
moradores e se infiltrar nas comunidades. Uma primeira guerrilheira foi presa, e daí por diante a
ofensiva não descansou mais, assim como, as atrocidades contra os militantes, de acordo com o que
observamos a seguir:
Como vemos, um dos trunfos que os guerrilheiros pensavam ter, que era o apoio da
população, passou a contar contra eles. E com a prisão e tortura de alguns guerrilheiros, o exército
começou a abrir mais vantagem. Por exemplo:
Durante um tempo, Chico até recobrou as esperanças. Era difícil não se empolgar
com as comemorações do primeiro aniversário do movimento armado. Os
moradores ajudavam com roupas, sapatos, comida. Ouviam a rádio Tirana junto
com os guerrilheiros, compareciam a reuniões, e por fim onze deles se uniram à
luta (LISBOA, 2018, p. 140).
Em Xambioá, o Exército controlava tudo e o prefeito agradecia (eu nunca tive tanta
folga quanto agora, ele disse). Que maravilha a ida dos terroristas para lá, porque só
assim um pedaço de progresso ia junto. Estradas, remédios. Problemas entre
fazendeiros e posseiros sendo resolvidos em tempo recorde. Eu preciso de uma
rodovia de trinta quilômetros pronta aqui dentro de dois meses, disse o general
Antonio Bandeira, comandante da 3ª Brigada de Infantaria, ao engenheiro-chefe do
Departamento de Estradas de Rodagem de Goiás. O engenheiro respondeu que não
seria possível, faltava equipamento, dois meses eram muito pouco tempo. O senhor
não me entendeu direito, insistiu o general. A obra tem que ficar pronta em dois
meses porque vou passar por ela com minhas tropas. Os problemas a resolver são
seus” (LISBOA, 2018, p. 126, grifo nosso).
Como podemos observar no trecho acima, a ação política do regime militar não consistia
apenas no poder bélico ou no uso da violência, para conquistar a opinião pública para si, eles
começaram um projeto de organização nas cidades e povoados que ficavam no entorno de onde se
instalou a guerrilha. A inteligência atrelada a recursos financeiros também é uma arma. Uma super
operação foi montada, o exército levou serviços à população, nunca antes vistos. E por meio destas
ações procurava inverter a imagem de vilões que a guerrilha passava para a população sobre os
militares,
Seu corpo foi exibido nos povoados. O imortal estava morto. Derrubado por um
mateiro. Depois, deram sumiço no cadáver. Os militares arrematariam o extermínio
da guerrilha com a Operação Limpeza – esse nome simples, cristalino, honesto, que
dispensa interpretações. O general Geisel, que tomava posse naquele mesmo mês,
afirmou que aquela coisa toda de matar era ruim, mas não tinha como ser diferente.
E com isso seguiam-se as mortes. E foram se seguindo. Era preciso matar e depois
matar as mortes, digamos. Era preciso matar a história. Matar a memória e alguma
consciência com gordurinhas inconvenientes. Todos foram morrendo, um a um.
Alguns simplesmente desapareceram, mas desaparecimento era um dos codinomes
da morte. Era outro jeito de pronunciá-la (LISBOA, 2018, p. 160, grifos nossos).
Como bem é destacado pelo narrador, o nome da operação, limpeza, já fala por si. Para os
moradores locais, o corpo do guerrilheiro foi exposto como sinal de ameaça, não só aos
companheiros, mas também para a população que de alguma forma colaborasse com a luta armada.
Já para o resto do país, a ordem era o silêncio, ou melhor o apagamento de qualquer traço de
brutalidade, era preciso “matar as mortes”.
A literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa, — o Verdadeiro, o Bom, o
Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua
concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta
apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age com o impacto
indiscriminado da própria vida e educa como ela, — com altos e baixos, luzes e
sombras.
Agindo como reflexo da “própria vida”, a literatura traz diversos temas que dialogam com
a realidade dos alunos, dos professores, da escola e da sociedade em geral. Sendo, portanto,
entendida como um gênero de reflexão e entendimento do mundo. De acordo com Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), a literatura enquanto linguagem artisticamente organizada,
Dessa forma, o aluno deve compreender, dentro de suas habilidades necessárias a serem
desenvolvidas ao longo do ensino, o processo de produção dessa literatura, bem como a “circulação
de discurso” e os diferentes meios de circulação da esfera social. Com isso,
Cada um possui sua história de vida, seu repertório de leituras [...] uma trajetória
cultural e social, e se insere em determinada comunidade. Sendo diferentes os
sujeitos, configuram, também, subjetividades múltiplas, diversidade esta que não
impede esses indivíduos de compartilharem muitos dos sentidos construídos
durante suas leituras.
Partindo desse contexto, propomos uma sequência didática com o romance Azul-corvo, de
Adriana Lisboa, voltada para o 3º Ano do Ensino Médio. A sequência tem como aporte teórico os
estudos da estética da recepção e também, adotando estratégias da sala de aula invertida, método em
que o aluno é protagonista da aprendizagem.
Por ser um romance extenso e de teor mais complexo, nossa proposta está direcionada ao
3º ano do Ensino médio. Como trata-se de um romance longo, metodologicamente, o professor irá
criar trilhas de leitura com os alunos, correspondendo a um mês de leitura com os alunos. Para isso,
a turma deve ser dividida em 4 grupos, os quais criarão estratégias de leitura, orientadas pelo
professor. Como forma de melhorar o acesso ao texto, o professor publicará o livro no Calmeó e
disponibilizará o link (ttps://pt.calameo.com/read/00534820504e75f5832a5) para a turma. Caso
tenha algum aluno sem acesso à internet, pode entregar uma cópia impressa.
Trilhas:
Após dividir a turma, cada grupo terá o prazo de 1 mês para realizarem a leitura do
romance Azul corvo. Eles se reunirão toda semana, em casa, na biblioteca ou na escola. Traçarão
estratégias de como irão ler o livro e apresentarão ao professor para uma melhor orientação. Com 15
dias, eles farão um relatório de leitura. Nele, deverá conter uma tabela onde os participantes do
grupo anotarão suas impressões, colocando o que acharam interessante, o que não gostaram, o que
chamou mais a atenção e explicar o motivo. O relatório deve ser socializado em sala de aula, onde o
professor deverá aprofundar os questionamentos feitos pelos alunos e fazer a leitura dos trechos
observados por eles, para uma melhor compreensão.
O professor criará um grupo no WhatsApp onde os alunos irão interagir com os demais
grupos sobre a leitura do romance.
Para os outros 15 dias, o professor deverá reservar duas aulas por semana para os
grupos apresentarem o restante do romance. Cada grupo escolherá a melhor forma, podendo ser
seminários, roda de conversas ou debates, todos mediado pelo professor. Nesses encontros, o
professor deve relacionar o romance com o período da ditadura, indicando documentários e trazendo
outros gêneros textuais que abordem o tema para a sala de aula. Para finalizar as discussões,
veiculará um vídeo que trate da temática, como Marighella ou O ano em que meus pais saíram de
férias.
Avaliação:
Para fixar melhor o entendimento sobre a leitura do romance e tornar a aula lúdica, o
professor criará uma atividade de gamificação com perguntas e respostas no Kahoot Quis, um
aplicativo gratuito em que o professor pode criar perguntas relacionadas ao conteúdo estudado e
disponibilizará o link para os alunos, em que, todos ao mesmo tempo, em sala de aula, poderão
entrar no quis, e participar do jogo. Eles poderão participar em equipes ou individual e quem acertar
mais questões ganhará a disputa. Ao final, o professor avaliará os alunos pelas participações e
interações nas trilhas de leitura e as discussões em sala de aula.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema da ditadura militar no Brasil sempre será controverso. Primeiramente, porque somos
um país que não gosta de mexer no passado. Em segundo lugar, porque temos medo. Nossa história
está fundamentada em banhos de sangue de muitos injustiçados e, com medo de nos tornarmos mais
uma vítima, aprendemos a naturalizar muitas violências. Entretanto, apesar do medo, não somos
passivos. Nossa história não deve ser observada do ponto de vista do medo, mas sim, de muita
resistência.
O discurso da ameaça comunista que justificava as perseguições e atrocidades do regime
militar ainda existe em nossa sociedade: transformou, no passado, cidadãos em terroristas e
inimigos, e deu ao Estado o direito de matar. Hoje, a ameaça comunista ajuda a ganhar eleição.
Assim como a ameaça comunista, a impunidade ainda existe: os militares do passado nunca
foram condenados pelos seus crimes aqui no Brasil; muitos policiais torturam e matam livremente,
com a certeza de que não serão devidamente punidos.
Continuamos, assim como Fernando e seus amigos guerrilheiros, lutando diariamente contra
um regime que nos aprisiona, nos violenta, nos tortura e nos mata. Enquanto uns se esforçam para
sobreviver, outros são coniventes com esse regime, lucram com ele e continuam justificando a sua
existência: precisa ser assim, afinal, estamos lutando contra a ameaça comunista.
Será que sabemos mesmo como não repetir o passado? Ou será que os versos da música de
Belchior continuam fazendo mais sentido do que nunca: “ainda somos os mesmos e vivemos como
os nossos pais”?
Diante de tantas semelhanças com o passado, é preciso, cada dia mais, nos tornarmos
conscientes do nosso papel nessa sociedade injusta e repetitiva, não deixando o passado desaparecer
da nossa memória, por mais doloroso que seja, reavivando os nomes dos que morreram (e morrem)
lutando, utilizando a história e a literatura como aliados nesse processo de conhecer o passado para
resistir no presente e reconstruir o futuro.
Nesse sentido, o espaço da sala de aula ainda é um lugar democrático onde podemos levar
temas como esse que possam desmascarar os monstros da nossa história. Mesmo sendo negada por
ideologias e medo, acreditando ser a escola e a leitura literária uma forma de denunciar as
atrocidades do passado e do presente, ampliando nosso modo de ver o mundo. Assim como no
processo terapêutico, uma sociedade adoecida precisa encarar seus monstros, perder o medo deles,
para, só assim, abrir um caminho real para que o novo sempre venha.
REFERÊNCIAS
ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, o ano que não acabou. In: TELES, Edson & SAFATLE,
Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 205-236.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São
Paulo: Global, 2007.
DIÁRIO ESCOLA. Sala de Aula Invertida: metodologia que educa para a autonomia.
Disponível em: https://diarioescola.com.br/sala-de-aula-invertida/. Acesso em: 17 de dez. 2021.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado? In: Lembrar escrever esquecer. São
Paulo: Editora 34, 2006.
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (sel., trad. Introd.). A
literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 83-132.
JAUSS, Hans. Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio
Tellori. São Paulo: Ática, 1994.
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson & SAFATLE,
Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 237-252.
Resumo: O artigo a seguir apresenta uma leitura analítico-interpretativa da obra Júlia: nos campos
conflagrados do Senhor (2020), de Bernado Kucinski, que retrata não só um dos períodos mais obscuros e
violentos da sociedade brasileira: a ditadura militar, mas também a luta armada, promovida por grupos
esquerdistas contra o regime. O objetivo principal desse trabalho é analisar as configurações da ditadura e da
ação armada na novela em exame. Os questionamentos que motivaram a nossa pesquisa foram: Como a
ditadura e ação armada são retratadas na obra em estudo? Que estratégias de luta e sobrevivência são
apresentadas na obra? Para responder a tais indagações, tomamos como base os estudos de Figueiredo (2017-
2020), Dalcastagnè (1996- 2020), Kehl (2010), entre outros. Como resultado, nota-se que a ação armada é
retratada na obra como uma forma de resistência aos horrores cometidos pelo autoritarismo brasileiro a partir
de ações coletivas, promovidas tanto por grupos clandestinos, como por grupos pertencentes à organizações
religiosas. Além disso, as estratégias de lutas e de sobrevivência utilizadas pelos personagens da novela
compreendiam ações que iam desde a investigação de presos políticos, denúncias, manifestações,
contribuições monetárias à criação de documentos falsos.
Palavras-chave: Literatura, Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, Ditadura militar, Ação armada,
Bernardo Kucinski.
1
Professora de Língua Portuguesa da Educação Básica. Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal
de Campina Grande. E-mail: luana_abrantes@hotmail.com.
2
Mestranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande. E-mail:
esterestevaodasilva2@gmail.com.
3
Professor associado da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), com atuação na Unidade Acadêmica de
Letras e no Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: edilsondeamorim@hotmail.com.
1. Introdução
[...] eles permanecem aí e celebram nossa indiferença, nossa curta memória. Mas
ainda é cedo demais para esquecer, e o sorriso deles é a prova disso. Enquanto
vamos levando nossa vidinha de todos os dias, preocupados com o preço da
gasolina e a violência das grandes cidades, eles andam pelas ruas, vão ao cinema,
frequentam restaurantes, assombram suas vítimas. Que imensa ilusão pensarmos
que estamos em segurança enquanto eles sorriem. Se ainda não podemos fazer
alguma coisa, temos ao menos a obrigação de não esquecer. (DALCASTAGNÈ,
1996, p.15).
Ao longo de 21 anos de regime militar no Brasil, muitas pessoas foram torturadas, presas e
humilhadas por se oporem ao governo vigente. Essa violência autoritária provocou feridas
profundas em nossa sociedade, que desencadearam um trauma sequencial não só às vítimas desse
sistema repressor, mas também aos familiares, parentes e amigos mais próximos dos(as)
militantes(as).
Devido a essas experiências dolorosas, Regina Dalcastagnè (1996) afirma que coube aos
escritores a função de não apenas configurar o desespero daqueles que foram massacrados por
acreditar que podiam fazer algo pelo nosso país, mas também criar um espaço acolhedor.
A autora também chama a atenção para dois fatos importantes: 1. De não esquecermos esses
abusos históricos, a fim de que essas violências limítrofes não mais se repitam; 2. Da importância de
termos acesso às narrativas, cujas temáticas retratam o horror perpetrado pelo regime, pois como ela
ressalta: “rever essas obras pode ser, no mínimo, um bom exercício para memória- mesmo para
aqueles que não estiveram lá, aqueles que só vieram depois, herdeiros da dor” (DALCASTAGNÈ,
1996, p. 15).
Em consonância com Dalcastagnè, Figueiredo (2017) afirma que a Literatura cumpre com a
função de dever de memória em relação às vítimas do autoritarismo brasileiro. Isto porque, além de
nosso país continuar avesso a sua história, parece se recusar a passar a limpo esse passado de
tamanhas barbaridades.
Ainda segundo a pesquisadora, a Literatura pode funcionar como um suplemento de
arquivos, pois através das veredas ficcionais, o escritor é capaz de levar o leitor a refletir não só
sobre o que aconteceu durante esse tempo áspero e impróprio, a fim de que esse passado não mais
se repita, mas também fazer com o sujeito coloque-se no lugar daqueles que lutaram por uma país
mais democrático.
Essa estudiosa também mostra que, diferentemente dos documentos e dos monumentos os
quais retratam a memória coletiva de um tempo, a Literatura, a partir da liberdade composicional de
cada escritor, busca criar narrativas com o intuito de dar um testemunho pessoal da história, levando
o sujeito-leitor a fazer um uso crítico dessa memória. Vejamos:
Ao dialogar com Figueiredo, percebe-se que o contato dos leitores com obras literárias, cujas
temáticas configuram o horror perpetrado pelo regime militar brasileiro, pode propiciar discussões
bastante significativas acerca do assunto em estudo, pois ao transmitir as experiências dos militantes
em salas de torturadas, as lutas e estratégias de sobrevivência contra o governo opressor e os casos
de mortes e desaparecimentos praticados por agentes do estado, a literatura pode “desconcertar” e
“incomodar” os seus sujeitos, ajudando-lhes, assim, (re)pensar sobre essa “[...]grande ferida
histórica que ainda permanece aberta, que impede o desenvolvimento de uma cultura democrática e
a formação para a cidadania”(OLIVEIRA, THOMAZ, 2020, p. 13)
Em conformidade com essa pesquisadora, Dalcastagnè (2020) também afirma que a
literatura funciona não apenas como um espaço de elaboração da realidade, mas também nos ajuda a
compreender o caos dos dias atuais, contribuindo, assim, para o preenchimento das lacunas
existentes na história de nosso país e sobre o desgoverno que enfrentamos.
Desse modo, ao pensar a importância da Literatura não só como testemunho desse tempo,
mas também como arquivo e memória de um período que não deve ser esquecido, o presente artigo
busca apresentar uma leitura analítico-interpretativa da obra Júlia: nos campos conflagrados do
Senhor (2020), de Bernado Kucinski.
A novela em estudo aborda não só esse passado traumático, onde “[...] homens e mulheres, a
grande maioria muito jovens, foram barbaramente torturados, alguns mortos, em nome da
democracia, quando o regime era tudo menos democrático” (FIGUEIREDO, 2017, p.15), mas
também a participação de estudantes, policiais e religiosos em grupos de esquerda, com o intuito de
criar estratégias de sobrevivência e de luta contra o governo militar.
Além dessa narrativa, o autor publicou K: retrato de uma busca (2011), Você vai voltar pra
mim e outros contos (2014), A nova ordem (2019), Alice: não mais que de repente, entre outras que
retratam não só a violência do autoritarismo brasileiro, mas também as barbaridades do período
nazista.
Filho de pais imigrantes, o escritor, considerado hoje um dos principais nomes da autoficção
e da prosa contemporânea brasileira, sentiu na pele o que é ser vítima dos horrores de um governo
ditador, pois tanto os seus familiares morreram em campos de concentração, quanto a sua irmã Ana
Kucinski, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da
Aliança Libertadora Nacional (ALN) na clandestinidade, foi dada como desaparecida em 1974.
Também cabe ressaltar que Kucinski militou contra o regime militar, sendo preso, torturado
e exilado durante esse período de graves violações de direitos. No ano de 2018, ele ganhou o
Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog por despertar o interesse de jornalistas e artistas a tratarem da
temática da Anistia e dos Direitos Humanos. Além disso, o autor recebeu o Prêmio Jabuti de
Literatura em 1997 e foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom em 2012.
Desse modo, os questionamentos que motivaram a nossa pesquisa foram: Como a ditadura e
ação armada são retratadas na obra em estudo? Que estratégias de luta e sobrevivência são
apresentadas na obra? Para responder a tais indagações, tomamos como base os estudos de (2017-
2020), Dalcastagnè (1996- 2020), Kehl (2010), entre outros. Vale salientar que a leitura dessa obra
não se encerra por aqui, uma vez que outras possibilidades de análises críticas podem ser feitas.
Além disso, esperamos contribuir com a área dos Estudos Literários, isto porque esse tipo de
narrativa, cuja temática configura a violência autoritária brasileira, é importante para pensar não só a
conjuntura política no Brasil hoje, onde os rumos da democracia vêm sendo ameaços pela
premência autoritária de um governo que faz exaltação a torturadores, nega o poder da Ciência,
persegue grupos marginalizados, ataca constantemente o ensino público e a liberdade de expressão,
mas também porque o olhar crítico sobre a ditadura, “[...] ao mesmo tempo que constitui um gesto
de resistência ao esquecimento e de restituição de verdades silenciadas, representa ainda o esforço
para a configuração de novas percepções do presente, que possibilitem a construção de um futuro
mais justo”(OLIVEIRA, THOMAZ, 2020, p. 13).
2. Uma leitura acerca da representação da ditadura e da luta armada em Júlia: nos campos
conflagrados do Senhor, de Bernado Kucinski
Júlia: nos campos conflagrados do Senhor (2020), de Bernado Kucinski, narra a história de
um Brasil ainda desconhecido por muitas pessoas e que por bastante tempo usou do poder para
torturar, oprimir e matar aqueles que militavam contra o Estado.
Dentre as personagens principais dessa narrativa, destacamos Júlia, uma bióloga
pesquisadora que, por um acaso, acaba se debruçando no passado de sua família, até então
desconhecido pela jovem. Após o falecimento de seus pais, ela entra em conflito com seus irmãos,
Beto e Jair, para não vender um luxuoso apartamento que ganhara de herança paterna, pois esse
imóvel guardava as memórias afetivas da personagem: “Cada espaço evocava uma fase de sua vida,
a infância no terraço, em estripulias com o Lair, a adolescência no escritório do pai, montando
quebra-cabeças, a juventude em seu quarto, estudando e ouvindo músicas” (KUCINSKI, 2020,
p.27).
Decidida a não vender o apartamento, a bióloga compra a parte da herança de seus irmãos.
No entanto, por conta de seu doutorado em Londres, ela resolve alugá-lo a Daniel, um pesquisador
que conhecera no Instituto Biológico. Esse homem, além de sentir-se o dono do imóvel, acabou
deteriorando toda a morada de Júlia. Ao ver tal reação do inquilino, ela, depois de vários acordos,
consegue despejá-lo de seus aposentos.
Como o apartamento estava bastante danificado, a personagem faz uma reforma. É nesse
momento que ela encontra uma caixa de fuzil que desperta bastante a sua curiosidade. Ao abrir tal
objeto, ela encontra umas cartas que revelam não só a participação de seu pai na luta contra o
regime militar, mas também o envolvimento de religiosos da igreja católica: uns que colaboravam
com o autoritarismo, encobriam mortes e colocavam crianças sequestradas para adoção; outros que
tentavam impedir as barbaridades cometidas pelos militares. A descoberta desse estojo misterioso
representa a história de um passado obscuro que até, então, Júlia não conhecia, como podemos
perceber no fragmento abaixo:
Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o
pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a
leitura. [...] Ao terminar, noite alta, Júlia sente que descobriu um outro país- e um
outro pai. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil (KUCINSKI, 2020, p. 45).
Essa reação da personagem nos faz pensar no processo de anistia brasileira, o qual protegeu
e ocultou as barbaridades cometidas pelo regime, impedindo, assim, tanto a apuração da verdade e a
punição dos sujeitos envolvidos, quanto desencadeou uma amnésia que, segundo Figueiredo (2019,
p. 26): “enquanto vigorar essa lei iníquia que perdoou os torturadores e os assassinos, o Brasil não
olhará para seu passado, continuará sendo um país desmemoriado”.
Além disso, é através dessas cartas que Júlia descobre que fora adotada por sua família. Esse
fato, deixa-lhe muito aflita. Isto porque ela percebe que vivera uma vida de mentira, como podemos
perceber no fragmento:
[...] Vivera naquele apartamento uma grande mentira. Vinte e seis anos de mentiras.
O pai, a mãe, a tia, Beto, exceto o Lair. Todos mentindo. Uma verdadeira
conspiração. Como foi possível? Boba! Sente que não é mais ela. Todo seu ser tem
que se reconstituir. Quem sabe foi por causa desse falseamento todo que sua vida
nunca teve direção clara? (KUCINSKI, 2020, p.71).
Mesmo angustiada por saber que viveu uma farsa durante toda a sua vida, a personagem
decide ir em busca de sua verdadeira história e, nesse percurso, encontra Magno, o delegado da
Polícia de Santos que ajudava o seu pai tanto com o repasse de informações acerca de alguns presos
políticos, quanto em atividades contra o governo. Leiamos:
Salvar a moçada era um imperativo moral, concordar ou não com que os estudantes
faziam era uma opção política. Foi o que o guiou, em Ibuína, quando pegou os
telefones dos estudantes para avisar as famílias, e depois também, quando o tempo
fechou de vez. Gosta de pensar que salvou algumas vidas ao passar ao Durval papel
marca d’água de cédulas de identidade...[...] quando era preciso passar ao Durval
algum papel combinavam um almoço no Boi da Brasa, que não distava da
rodoviária e era movimentado. (KUCINSKI, 2020, p. 140-141).
É através desse delegado que a protagonista conhece Paula Rocha, uma jornalista bastante
conceituada que também militava contra o regime. Por meio do contato com a repórter, a jovem
bióloga fica sabendo que é fruto de um relacionamento extraconjugal entre seu pai e Maria do
Rosário. Além disso, a personagem também descobre que sua mãe não estava mais viva, pois havia
sido presa, torturada e morta: “- O que disseram é que a tua mãe teria sido levada a um sítio
clandestino que eles tinham para os lados de Guará ou Caçapava, e alguns dias depois chegou muito
machucada nesse presídio do interior que o Magno mencionou. [...] Lá mataram a tua mãe”
(KUCINSKI, 2020, p.180). A narrativa termina com Júlia decidida a procurar a avó materna e
contar-lhe o que havia acontecido a sua mãe biológica.
Além de retratar não só o envolvimento de religiosos com o sequestro de bebês, a narrativa
configura a luta armada, formada por grupos de esquerdistas, a fim de criar estratégias de
sobrevivência contra o regime militar.
Dentre as ações realizadas pelos grupos de militantes na novela em exame, destacam-se:
levantamento de dados sobre cárceres de estudantes e abordagens dos parentes dos prisioneiros, com
o intuito de orientá-los na defesa de seus familiares e amigos: “[...]- Peça ajuda a parentes, talvez
um deles conheça um advogado; o importante é se mexer e bem depressa; informem ao advogado
que o navio está sob a guarda da capitania do porto de Santos” (KUCINSKI, 2020, p. 36).
Mesmo sem ter envolvimento direto com alguma organização contra o regime, o pai de Júlia
ajudava os familiares dos estudantes que haviam sido presos e levados para um navio, no Porto de
Santos. Essa atitude do personagem mostra que a resistência à ditadura não só afetou a vida de
muitas pessoas, mas também provocou “[...]uma série de atos isolados, não premeditados e que se
organizaram a partir de decisões pessoais ou da cumplicidade e solidariedade de familiares,
conterrâneos ou de pessoas que estavam contra a violência de Estado” (RIBEIRO, 2018, p.15).
Outra estratégia da ação armada retratada, na obra, são as denúncias anônimas no jornal
acerca dos sequestros de bebês e das adoções ilegais cometidas por grupos de religiosos, que
prestavam serviços ao orfanato em parceria com colaboradores do regime. Leiamos:
[...] -Durval, você tem se encontrado com aquela tua amiga jornalista? -Às vezes.
Por quê? [...]- O assunto dos bebês? - Como é que você adivinhou?-Só podia ser
isso. -Vou estourar o esquema da madre. -Você acha que a madre vai desobedecer
ao arcebispo? -Não tenho dúvida. Chegaram dois casais da Itália. Já devem estar
preparando a papelada. - E como é que ela vai justificar? [...]-Joga a briga para
cima, Igreja Carismática contra Igreja da Libertação (KUCINSKI, 2020, p. 120).
Ao tomar conhecimento dos sequestros e das adoções ilegais de bebês, Durval procura a
jornalista Paula Rocha, a fim de que ela denuncie tal fato. A repórter, a qual participava de forma
indireta contra a ditadura, acaba noticiando as barbaridades cometidas às crianças daquele orfanato.
Embora não seja a temática principal da narrativa, tampouco nosso objeto de análise, nota-
se, a partir das estratégias de lutas e de sobrevivências de Maria do Rosário e da jornalista contra o
regime, o quanto a militância feminina foi importante para enfrentar as violências e arbitrariedades
do estado.
Outra estratégia de luta e de sobrevivência da ação armada a qual aparece na novela em
exame é a confecção de documentos falsos, a fim de preservar as identidades dos(as) militantes (as),
bem como evitar que as crianças tomadas das prisioneiras políticas fossem adotadas por
estrangeiros: Vejamos:
Gosta de pensar que salvou algumas vidas ao passar ao Durval papel marca d’água
de cédulas de identidade... E os carimbos que surripiou? Uma vez, quase foi pego,
teve que colocar de volta. O Durval, então, inventou o método de encomendar
carimbos pela metade para não dar bandeira. Depois juntava as partes com uma
cola especial de aviação. As cédulas de identidade o Durval plastificava com ferro
de passar roupa... Era muito habilidoso (KUCINSKI, 2020, p.141).
Considerações Finais
Através da análise da novela Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, de Bernardo
Kucinski, constatamos não só os horrores cometidos pelo regime que, por longos anos, usou do
poder para cometer graves violações de direitos humanos, como torturas, prisões, mortes,
desaparecimento de corpos dos militantes, mas também a amnésia profunda que se instaurou no
Brasil devido a anistia que, ao perdoar torturados, deixou tanto de apurar a verdade acerca dessa
violência histórica, quanto de punir os responsáveis por essas práticas abusivas.
Com efeito desse esquecimento proposital, vivenciamos, hoje, como bem aponta Kehl (2010,
p. 124), a naturalização da violência como grave sintoma social, uma vez que “a impunidade não
produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra escalada de práticas abusivas
por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz”.
No tocante à luta armada, nota-se que ela é retratada, na obra, como uma forma de
resistência aos horrores cometidos pelo regime militar a partir de ações coletivas, promovidas tanto
por grupos clandestinos e oficiais, quanto por líderes religiosos.
Nesse sentido, para enfrentar a ditadura, percebe-se que os personagens da narrativa
buscaram criar estratégias de lutas e de sobrevivências, como: formação de grupos clandestinos,
reuniões em que combinavam métodos para sobreviver ao ataques dos militares, levantamento de
informação sobre prisões de militantes, abordagem dos parentes dos prisioneiros, a fim de orientá-
los na defesa de seus familiares e amigos, investimento monetário, denúncias anônimas nos jornais,
criação de documentos falsos para evitar que as crianças tomadas das prisioneiras políticas fossem
adotadas por estrangeiros e manifestações nas ruas no intuito de conseguir o apoio popular às lutas
contra o governo.
Enfim, a obra de Kucinski revela não só um passado traumático, com feridas que ainda
permanecem abertas, mas também aponta para o dever de memória em relação às vítimas da
ditadura. Além disso, denota-se que, perscrutando a história familiar, atingida pela violência
ditatorial brasileira, Júlia não só faz o luto, mas também “[...] tenta costurar os vestígios deixados a
fim de dar uma coerência que a vida parece não lhe ter oferecido” (FIGUEIREDO, 2020, p. 43).
Referências
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: O que resta da ditadura: a execução brasileira.
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). São Paulo: Boitempo, 2010
KUCINSKI, Bernado. Júlia: Nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020.
RIBEIRO, Maria Cláudia Badan. Mulheres na luta armada: protagonismo na ALN. São Paulo:
Alameda, 2018.
THOMAZ, Paulo C.; OLIVEIRA, Rejane Pivetta de Oliveira. Apresentação Ditadura: Um passado
para se fazer narrar no presente. In: Literatura e Ditadura. THOMAZ, Paulo C.; OLIVEIRA,
Rejane Pivetta de Oliveira (Org.). Porto Alegre: Zouk, 2020.
Resumo: O artigo a seguir apresenta uma leitura analítico-interpretativa da obra Júlia: nos campos
conflagrados do Senhor (2020), de Bernado Kucinski, que retrata não só um dos períodos mais obscuros e
violentos da sociedade brasileira: a ditadura militar, mas também a luta armada, promovida por grupos
esquerdistas contra o regime. O objetivo principal desse trabalho é analisar as configurações da ditadura e da
ação armada na novela em exame. Os questionamentos que motivaram a nossa pesquisa foram: Como a
ditadura e ação armada são retratadas na obra em estudo? Que estratégias de luta e sobrevivência são
apresentadas na obra? Para responder a tais indagações, tomamos como base os estudos de Figueiredo (2017-
2020), Dalcastagnè (1996- 2020), Kehl (2010), entre outros. Como resultado, nota-se que a ação armada é
retratada na obra como uma forma de resistência aos horrores cometidos pelo autoritarismo brasileiro a partir
de ações coletivas, promovidas tanto por grupos clandestinos, como por grupos pertencentes à organizações
religiosas. Além disso, as estratégias de lutas e de sobrevivência utilizadas pelos personagens da novela
4
Professora de Língua Portuguesa da Educação Básica. Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal
de Campina Grande. E-mail: luana_abrantes@hotmail.com.
5
Mestranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande. E-mail:
esterestevaodasilva2@gmail.com.
6
Professor associado da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), com atuação na Unidade Acadêmica de
Letras e no Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: edilsondeamorim@hotmail.com.
compreendiam ações que iam desde a investigação de presos políticos, denúncias, manifestações,
contribuições monetárias à criação de documentos falsos.
Palavras-chave: Literatura, Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, Ditadura militar, Ação armada,
Bernardo Kucinski.
1. Introdução
[...] eles permanecem aí e celebram nossa indiferença, nossa curta memória. Mas
ainda é cedo demais para esquecer, e o sorriso deles é a prova disso. Enquanto
vamos levando nossa vidinha de todos os dias, preocupados com o preço da
gasolina e a violência das grandes cidades, eles andam pelas ruas, vão ao cinema,
frequentam restaurantes, assombram suas vítimas. Que imensa ilusão pensarmos
que estamos em segurança enquanto eles sorriem. Se ainda não podemos fazer
alguma coisa, temos ao menos a obrigação de não esquecer. (DALCASTAGNÈ,
1996, p.15).
Ao longo de 21 anos de regime militar no Brasil, muitas pessoas foram torturadas, presas e
humilhadas por se oporem ao governo vigente. Essa violência autoritária provocou feridas
profundas em nossa sociedade, que desencadearam um trauma sequencial não só às vítimas desse
sistema repressor, mas também aos familiares, parentes e amigos mais próximos dos(as)
militantes(as).
Devido a essas experiências dolorosas, Regina Dalcastagnè (1996) afirma que coube aos
escritores a função de não apenas configurar o desespero daqueles que foram massacrados por
acreditar que podiam fazer algo pelo nosso país, mas também criar um espaço acolhedor.
A autora também chama a atenção para dois fatos importantes: 1. De não esquecermos esses
abusos históricos, a fim de que essas violências limítrofes não mais se repitam; 2. Da importância de
termos acesso às narrativas, cujas temáticas retratam o horror perpetrado pelo regime, pois como ela
ressalta: “rever essas obras pode ser, no mínimo, um bom exercício para memória- mesmo para
aqueles que não estiveram lá, aqueles que só vieram depois, herdeiros da dor” (DALCASTAGNÈ,
1996, p. 15).
Em consonância com Dalcastagnè, Figueiredo (2017) afirma que a Literatura cumpre com a
função de dever de memória em relação às vítimas do autoritarismo brasileiro. Isto porque, além de
nosso país continuar avesso a sua história, parece se recusar a passar a limpo esse passado de
tamanhas barbaridades.
Ainda segundo a pesquisadora, a Literatura pode funcionar como um suplemento de
arquivos, pois através das veredas ficcionais, o escritor é capaz de levar o leitor a refletir não só
sobre o que aconteceu durante esse tempo áspero e impróprio, a fim de que esse passado não mais
se repita, mas também fazer com o sujeito coloque-se no lugar daqueles que lutaram por uma país
mais democrático.
Essa estudiosa também mostra que, diferentemente dos documentos e dos monumentos os
quais retratam a memória coletiva de um tempo, a Literatura, a partir da liberdade composicional de
cada escritor, busca criar narrativas com o intuito de dar um testemunho pessoal da história, levando
o sujeito-leitor a fazer um uso crítico dessa memória. Vejamos:
Ao dialogar com Figueiredo, percebe-se que o contato dos leitores com obras literárias, cujas
temáticas configuram o horror perpetrado pelo regime militar brasileiro, pode propiciar discussões
bastante significativas acerca do assunto em estudo, pois ao transmitir as experiências dos militantes
em salas de torturadas, as lutas e estratégias de sobrevivência contra o governo opressor e os casos
de mortes e desaparecimentos praticados por agentes do estado, a literatura pode “desconcertar” e
“incomodar” os seus sujeitos, ajudando-lhes, assim, (re)pensar sobre essa “[...]grande ferida
histórica que ainda permanece aberta, que impede o desenvolvimento de uma cultura democrática e
a formação para a cidadania”(OLIVEIRA, THOMAZ, 2020, p. 13)
Em conformidade com essa pesquisadora, Dalcastagnè (2020) também afirma que a
literatura funciona não apenas como um espaço de elaboração da realidade, mas também nos ajuda a
compreender o caos dos dias atuais, contribuindo, assim, para o preenchimento das lacunas
existentes na história de nosso país e sobre o desgoverno que enfrentamos.
Desse modo, ao pensar a importância da Literatura não só como testemunho desse tempo,
mas também como arquivo e memória de um período que não deve ser esquecido, o presente artigo
busca apresentar uma leitura analítico-interpretativa da obra Júlia: nos campos conflagrados do
Senhor (2020), de Bernado Kucinski.
A novela em estudo aborda não só esse passado traumático, onde “[...] homens e mulheres, a
grande maioria muito jovens, foram barbaramente torturados, alguns mortos, em nome da
democracia, quando o regime era tudo menos democrático” (FIGUEIREDO, 2017, p.15), mas
também a participação de estudantes, policiais e religiosos em grupos de esquerda, com o intuito de
criar estratégias de sobrevivência e de luta contra o governo militar.
Além dessa narrativa, o autor publicou K: retrato de uma busca (2011), Você vai voltar pra
mim e outros contos (2014), A nova ordem (2019), Alice: não mais que de repente, entre outras que
retratam não só a violência do autoritarismo brasileiro, mas também as barbaridades do período
nazista.
Filho de pais imigrantes, o escritor, considerado hoje um dos principais nomes da autoficção
e da prosa contemporânea brasileira, sentiu na pele o que é ser vítima dos horrores de um governo
ditador, pois tanto os seus familiares morreram em campos de concentração, quanto a sua irmã Ana
Kucinski, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e integrante da
Aliança Libertadora Nacional (ALN) na clandestinidade, foi dada como desaparecida em 1974.
Também cabe ressaltar que Kucinski militou contra o regime militar, sendo preso, torturado
e exilado durante esse período de graves violações de direitos. No ano de 2018, ele ganhou o
Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog por despertar o interesse de jornalistas e artistas a tratarem da
temática da Anistia e dos Direitos Humanos. Além disso, o autor recebeu o Prêmio Jabuti de
Literatura em 1997 e foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom em 2012.
Desse modo, os questionamentos que motivaram a nossa pesquisa foram: Como a ditadura e
ação armada são retratadas na obra em estudo? Que estratégias de luta e sobrevivência são
apresentadas na obra? Para responder a tais indagações, tomamos como base os estudos de (2017-
2020), Dalcastagnè (1996- 2020), Kehl (2010), entre outros. Vale salientar que a leitura dessa obra
não se encerra por aqui, uma vez que outras possibilidades de análises críticas podem ser feitas.
Além disso, esperamos contribuir com a área dos Estudos Literários, isto porque esse tipo de
narrativa, cuja temática configura a violência autoritária brasileira, é importante para pensar não só a
conjuntura política no Brasil hoje, onde os rumos da democracia vêm sendo ameaços pela
premência autoritária de um governo que faz exaltação a torturadores, nega o poder da Ciência,
persegue grupos marginalizados, ataca constantemente o ensino público e a liberdade de expressão,
mas também porque o olhar crítico sobre a ditadura, “[...] ao mesmo tempo que constitui um gesto
de resistência ao esquecimento e de restituição de verdades silenciadas, representa ainda o esforço
para a configuração de novas percepções do presente, que possibilitem a construção de um futuro
mais justo”(OLIVEIRA, THOMAZ, 2020, p. 13).
2. Uma leitura acerca da representação da ditadura e da luta armada em Júlia: nos campos
conflagrados do Senhor, de Bernado Kucinski
Júlia: nos campos conflagrados do Senhor (2020), de Bernado Kucinski, narra a história de
um Brasil ainda desconhecido por muitas pessoas e que por bastante tempo usou do poder para
torturar, oprimir e matar aqueles que militavam contra o Estado.
Dentre as personagens principais dessa narrativa, destacamos Júlia, uma bióloga
pesquisadora que, por um acaso, acaba se debruçando no passado de sua família, até então
desconhecido pela jovem. Após o falecimento de seus pais, ela entra em conflito com seus irmãos,
Beto e Jair, para não vender um luxuoso apartamento que ganhara de herança paterna, pois esse
imóvel guardava as memórias afetivas da personagem: “Cada espaço evocava uma fase de sua vida,
a infância no terraço, em estripulias com o Lair, a adolescência no escritório do pai, montando
quebra-cabeças, a juventude em seu quarto, estudando e ouvindo músicas” (KUCINSKI, 2020,
p.27).
Decidida a não vender o apartamento, a bióloga compra a parte da herança de seus irmãos.
No entanto, por conta de seu doutorado em Londres, ela resolve alugá-lo a Daniel, um pesquisador
que conhecera no Instituto Biológico. Esse homem, além de sentir-se o dono do imóvel, acabou
deteriorando toda a morada de Júlia. Ao ver tal reação do inquilino, ela, depois de vários acordos,
consegue despejá-lo de seus aposentos.
Como o apartamento estava bastante danificado, a personagem faz uma reforma. É nesse
momento que ela encontra uma caixa de fuzil que desperta bastante a sua curiosidade. Ao abrir tal
objeto, ela encontra umas cartas que revelam não só a participação de seu pai na luta contra o
regime militar, mas também o envolvimento de religiosos da igreja católica: uns que colaboravam
com o autoritarismo, encobriam mortes e colocavam crianças sequestradas para adoção; outros que
tentavam impedir as barbaridades cometidas pelos militares. A descoberta desse estojo misterioso
representa a história de um passado obscuro que até, então, Júlia não conhecia, como podemos
perceber no fragmento abaixo:
Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o
pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a
leitura. [...] Ao terminar, noite alta, Júlia sente que descobriu um outro país- e um
outro pai. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil (KUCINSKI, 2020, p. 45).
Essa reação da personagem nos faz pensar no processo de anistia brasileira, o qual protegeu
e ocultou as barbaridades cometidas pelo regime, impedindo, assim, tanto a apuração da verdade e a
punição dos sujeitos envolvidos, quanto desencadeou uma amnésia que, segundo Figueiredo (2019,
p. 26): “enquanto vigorar essa lei iníquia que perdoou os torturadores e os assassinos, o Brasil não
olhará para seu passado, continuará sendo um país desmemoriado”.
Além disso, é através dessas cartas que Júlia descobre que fora adotada por sua família. Esse
fato, deixa-lhe muito aflita. Isto porque ela percebe que vivera uma vida de mentira, como podemos
perceber no fragmento:
[...] Vivera naquele apartamento uma grande mentira. Vinte e seis anos de mentiras.
O pai, a mãe, a tia, Beto, exceto o Lair. Todos mentindo. Uma verdadeira
conspiração. Como foi possível? Boba! Sente que não é mais ela. Todo seu ser tem
que se reconstituir. Quem sabe foi por causa desse falseamento todo que sua vida
nunca teve direção clara? (KUCINSKI, 2020, p.71).
Mesmo angustiada por saber que viveu uma farsa durante toda a sua vida, a personagem
decide ir em busca de sua verdadeira história e, nesse percurso, encontra Magno, o delegado da
Polícia de Santos que ajudava o seu pai tanto com o repasse de informações acerca de alguns presos
políticos, quanto em atividades contra o governo. Leiamos:
Salvar a moçada era um imperativo moral, concordar ou não com que os estudantes
faziam era uma opção política. Foi o que o guiou, em Ibuína, quando pegou os
telefones dos estudantes para avisar as famílias, e depois também, quando o tempo
fechou de vez. Gosta de pensar que salvou algumas vidas ao passar ao Durval papel
marca d’água de cédulas de identidade...[...] quando era preciso passar ao Durval
algum papel combinavam um almoço no Boi da Brasa, que não distava da
rodoviária e era movimentado. (KUCINSKI, 2020, p. 140-141).
É através desse delegado que a protagonista conhece Paula Rocha, uma jornalista bastante
conceituada que também militava contra o regime. Por meio do contato com a repórter, a jovem
bióloga fica sabendo que é fruto de um relacionamento extraconjugal entre seu pai e Maria do
Rosário. Além disso, a personagem também descobre que sua mãe não estava mais viva, pois havia
sido presa, torturada e morta: “- O que disseram é que a tua mãe teria sido levada a um sítio
clandestino que eles tinham para os lados de Guará ou Caçapava, e alguns dias depois chegou muito
machucada nesse presídio do interior que o Magno mencionou. [...] Lá mataram a tua mãe”
(KUCINSKI, 2020, p.180). A narrativa termina com Júlia decidida a procurar a avó materna e
contar-lhe o que havia acontecido a sua mãe biológica.
Além de retratar não só o envolvimento de religiosos com o sequestro de bebês, a narrativa
configura a luta armada, formada por grupos de esquerdistas, a fim de criar estratégias de
sobrevivência contra o regime militar.
Dentre as ações realizadas pelos grupos de militantes na novela em exame, destacam-se:
levantamento de dados sobre cárceres de estudantes e abordagens dos parentes dos prisioneiros, com
o intuito de orientá-los na defesa de seus familiares e amigos: “[...]- Peça ajuda a parentes, talvez
um deles conheça um advogado; o importante é se mexer e bem depressa; informem ao advogado
que o navio está sob a guarda da capitania do porto de Santos” (KUCINSKI, 2020, p. 36).
Mesmo sem ter envolvimento direto com alguma organização contra o regime, o pai de Júlia
ajudava os familiares dos estudantes que haviam sido presos e levados para um navio, no Porto de
Santos. Essa atitude do personagem mostra que a resistência à ditadura não só afetou a vida de
muitas pessoas, mas também provocou “[...]uma série de atos isolados, não premeditados e que se
organizaram a partir de decisões pessoais ou da cumplicidade e solidariedade de familiares,
conterrâneos ou de pessoas que estavam contra a violência de Estado” (RIBEIRO, 2018, p.15).
Outra estratégia da ação armada retratada, na obra, são as denúncias anônimas no jornal
acerca dos sequestros de bebês e das adoções ilegais cometidas por grupos de religiosos, que
prestavam serviços ao orfanato em parceria com colaboradores do regime. Leiamos:
[...] -Durval, você tem se encontrado com aquela tua amiga jornalista? -Às vezes.
Por quê? [...]- O assunto dos bebês? - Como é que você adivinhou?-Só podia ser
isso. -Vou estourar o esquema da madre. -Você acha que a madre vai desobedecer
ao arcebispo? -Não tenho dúvida. Chegaram dois casais da Itália. Já devem estar
preparando a papelada. - E como é que ela vai justificar? [...]-Joga a briga para
cima, Igreja Carismática contra Igreja da Libertação (KUCINSKI, 2020, p. 120).
Ao tomar conhecimento dos sequestros e das adoções ilegais de bebês, Durval procura a
jornalista Paula Rocha, a fim de que ela denuncie tal fato. A repórter, a qual participava de forma
indireta contra a ditadura, acaba noticiando as barbaridades cometidas às crianças daquele orfanato.
Embora não seja a temática principal da narrativa, tampouco nosso objeto de análise, nota-
se, a partir das estratégias de lutas e de sobrevivências de Maria do Rosário e da jornalista contra o
regime, o quanto a militância feminina foi importante para enfrentar as violências e arbitrariedades
do estado.
Outra estratégia de luta e de sobrevivência da ação armada a qual aparece na novela em
exame é a confecção de documentos falsos, a fim de preservar as identidades dos(as) militantes (as),
bem como evitar que as crianças tomadas das prisioneiras políticas fossem adotadas por
estrangeiros: Vejamos:
Gosta de pensar que salvou algumas vidas ao passar ao Durval papel marca d’água
de cédulas de identidade... E os carimbos que surripiou? Uma vez, quase foi pego,
teve que colocar de volta. O Durval, então, inventou o método de encomendar
carimbos pela metade para não dar bandeira. Depois juntava as partes com uma
cola especial de aviação. As cédulas de identidade o Durval plastificava com ferro
de passar roupa... Era muito habilidoso (KUCINSKI, 2020, p.141).
Referências
FIGUEIREDO, Eurídice. Patricio Pron e Julián Funks: narrativas de filiação sobre as heranças
traumáticas das ditaduras. In: Literatura e Ditadura. THOMAZ, Paulo C.; OLIVEIRA, Rejane
Pivetta de Oliveira (Org.). Porto Alegre: Zouk, 2020.
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: O que resta da ditadura: a execução brasileira.
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). São Paulo: Boitempo, 2010
KUCINSKI, Bernado. Júlia: Nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020.
RIBEIRO, Maria Cláudia Badan. Mulheres na luta armada: protagonismo na ALN. São Paulo:
Alameda, 2018.
THOMAZ, Paulo C.; OLIVEIRA, Rejane Pivetta de Oliveira. Apresentação Ditadura: Um passado
para se fazer narrar no presente. In: Literatura e Ditadura. THOMAZ, Paulo C.; OLIVEIRA,
Rejane Pivetta de Oliveira (Org.). Porto Alegre: Zouk, 2020.
Resumo: O presente artigo propõe uma leitura analítica da obra testemunhal Júlia nos campos conflagrados
do Senhor, de Bernardo Kucinski. As reflexões apontam a importância de testemunhar os traumas oriundos
de experiências de violência e o quanto essa atitude se torna complexa frente ao descrédito que paira sobre os
sobreviventes de catástrofes (SELLIGMAN-SILVA, 2008; GAGNEBIN, 2006). Discute-se também que
somente a literatura pode trazer à tona a subjetividade que os arquivos históricos não são capazes de elucidar
(FIGUEIREDO, 2017). E, de forma a contribuir com a propagação do tema sobre a ditatura militar brasileira
de 1964 e, portanto, para a continuidade do testemunho, propomos uma abordagem didático-pedagógica de
acordo com as sugestões de Cosson (2016).
Introdução
Na obra de Bernardo Kucinski, podemos verificar um pouco da dimensão dos fatos que
marcaram um trágico período da história do Brasil: a ditadura militar de 1964. Embora a obra em
questão não seja autobiográfica, o autor é considerado uma testemunha desse período, visto que
perdeu a irmã, Ana Kucinski – militante da Aliança Libertadora Nacional. Ana e seu marido
desapareceram em 22 de abril de 1974, tornando-se, então, desaparecidos políticos.
Para Selligman-Silva (2008), os indivíduos que vivenciaram uma situação radical de
violência desenvolvem uma necessidade de externar, de relatar o acontecido. A isso, deve-se a sua
sobrevida. Embora Kucinski não seja um sobrevivente, ele sofre as consequências causadas pelo
desaparecimento de sua irmã. Ginzburg (2014, p. 3) afirma que “uma experiência histórica de
violência não atinge apenas o que estão imediatamente vinculados a ela [...]”, portanto a situação
vivenciada por Kucinski torna necessária a atividade de narrar esse trauma. O que ele faz, por
exemplo, na obra Júlia nos campos conflagrados do Senhor e em outros livros.
Na obra em questão é possível observar uma das características que geralmente fazem parte
da literatura de testemunho: “[...] o passado está, por assim dizer, presente na imagem como signo
da sua ausência, mas trata-se de uma ausência que, não estando mais, é tida como tendo estado.”
(RICOEUR, 2003, p. 2), ou seja, a nós, leitores, é conferida a possibilidade de identificar nas
memórias das personagens elaboradas por Kucinski esse passado tolhido, que não está mais, mas
que deixou suas marcas.
Ricoeur (2003) considera que o testemunho é uma extensão da memória, contudo só há o
testemunho se o fato traumático for difundido. Nesse caso, obras como a de Kucinski contribuem
para que haja a conservação e propagação desses testemunhos – mesmo que fictícios.
Para Figueiredo (2017), o trabalho de historiadores e jornalistas tem o seu grau de
importância, mas somente a literatura sobre o período de repressão torna possível transformar o
trauma em “experiência estética compartilhada” (p. 13). Desta feita, na obra de Kucinski, é possível
adentrar no universo íntimo da personagem Júlia, percebendo como ela reage aos fatos que vai
descobrindo ao longo da narrativa e, por assim dizer, o leitor consegue ressignificar alguns fatos e
perceber diferentes perspectivas sobre a ditatura militar (uma experiência estética compartilhada).
Dada a importância de narrar o trauma em contraponto a dificuldade de se testemunhar,
trataremos de discutir a obra de Kucinski sob a ótica de uma literatura de testemunho e como alguns
personagens foram construídas como testemunhas do período de exceção.
Ademais, discutiremos brevemente acerca dos conceitos de memória, história e testemunho e
como esses elementos se apresentam na obra de Kucinski. Além disso, como contribuição para
alargamento do tema central da obra – a ditadura militar -, propomos uma abordagem didático-
pedagógica a ser aplicada nas salas de aula da Educação Básica.
Entre os períodos mais sombrios e sangrentos da nossa história brasileira está o regime
militar iniciado em 1964 a partir de um golpe que foi responsável pela destituição de direitos
legítimos, pela perseguição, tortura e morte de diversos cidadãos. Podemos dizer que o que se sabe
nos dias atuais sobre a ditadura brasileira é pouco diante das informações que foram omitidas,
deturpadas e dos arquivos que foram destruídos ou ocultados. Sobre esse assunto, Eurídice
Figueiredo (2017) destaca a dificuldade que o Brasil ainda enfrenta em relação ao total
conhecimento sobre os atos praticados durante a ditadura e à justiça que deve ser feita em nome das
vítimas.
De acordo com a autora, as Forças Armadas ainda continuam empreendendo esforços para
esconder seus arquivos. Além disso, a própria anistia brasileira contribuiu para o silenciamento, pois
“ela foi injusta porque protegeu e ocultou os culpados pelas torturas e assassinatos, impedindo a
apuração da verdade e a punição dos responsáveis” (FIGUEIREDO, 2017, p. 34). Ainda segundo a
estudiosa, nesse contexto, diferente de países como Chile, Uruguai, Argentina, o Brasil se nega a
realizar uma revisão de seu passado.
Sob essa perspectiva, Figueiredo (2017) salienta que a anistia promoveu muito mais uma
amnésia do que a resolução das marcas de um passado violento, já que o país ainda se recusa a
enfrentar os fatos ocorridos durante o regime militar, a rever os crimes e elucidar as atrocidades
cometidas. Essas circunstâncias promovem um apagamento da memória e, consequentemente, o
esquecimento da nossa própria história. Sobre esse aspecto, é importante entender que
O esquecimento coletivo, portanto, permeia o país e tem sua raiz na falta de esclarecimento
sobre o passado do regime de exceção, no “desaparecimento” de arquivos e na anistia brasileira.
Essa barreira imposta traz consigo o negacionismo, que quando permeia uma sociedade, dificulta o
trabalho da memória de evitar que catástrofes e atrocidades, como as praticadas durante o regime
ditatorial no Brasil, se repitam na história da humanidade. Para manter viva a memória, é
fundamental o papel dos arquivos e da escrita sobre o trauma. Nesse sentido, a literatura surge com
o importante papel de portar o testemunho e assim, por meio da ficção e do entrelaçamento entre
ficção e realidade, trazer à tona aquilo que a história oficial tenta a todo custo apagar. É nesse
caminhar que Eurídice Figueiredo formula uma importante reflexão:
A literatura de testemunho aparece, pois, nesse cenário como uma necessidade de resgate da
verdade, de inserir o passado traumático no próprio presente. Para entender essa primordial função
dos textos literários, antes é necessário compreender o significado do testemunho e a sua construção
dentro da literatura. Para Seligmann-Silva (2008), a literatura que porta o testemunho de catástrofes
históricas passa a ser vista como indissociável da vida. Esse aspecto não anula o valor de
determinados textos, ao contrário, os incorpora, por meio do simbólico, dentro da mais profunda
experiência humana, e a literatura só subsiste – e faz sentido – a partir das experiências dos sujeitos.
Sob esse ponto de vista, Seligmann-Silva (2008, p. 70) afirma que “ [...] se dermos uma pequena
olhada sobre a história da literatura e das artes veremos que os serviços que elas têm prestado à
humanidade e seus complexos traumáticos não é desprezível.”
Sendo assim, a ficção vai ao encontro de uma condição fundamental para o (re)
estabelecimento da memória: a narração do trauma. Essa tarefa é complexa em vários sentidos,
principalmente se pensarmos na testemunha como aquela que vivenciou o trauma, que sofreu
diretamente os efeitos de determinada catástrofe. É nesse caminhar que Seligmann-Silva (2008)
aborda uma relevante discussão sobre a crise do testemunho, visto que existem alguns empecilhos
para que este se concretize. Em primeiro lugar, o autor coloca a incapacidade de testemunhar visto
que as cenas traumáticas podem ser tratadas como inverossímil, ideia fortalecida pelo negacionismo,
assim como a incapacidade de se imaginar o lager.1 A culpa do sobrevivente, que escapa a uma
situação em que todos os seus morreram, é outro ponto que impossibilita o testemunho, de acordo
com o estudioso.
Essas situações que dificultam a construção do testemunho de catástrofes humanitárias,
genocídios, períodos de exceção e violências, demonstram a importância da literatura de testemunho
e que funciona ao mesmo tempo como arquivo. Sendo assim, “a imaginação é chamada como arma
que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma
encontra na imaginação um meio para sua narração” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 70). A
literatura, nesse sentido, luta contra o esquecimento, apagamento e atua na construção de memórias.
Como bem enfatiza Jeanne Marie Gagnebin (2006), essas narrativas – que passaram a ser constantes
no século XX – são impossíveis, mas ao mesmo tempo necessárias, uma vez que levam a memória
traumática a sobreviver apesar do contexto hostil.
Para Gagnebin (2006), essas narrativas possuem uma relação importante com o passado, isso
porque seu objetivo não se trata de uma simples rememoração, mas, se inserindo no presente, visa a
modificação deste. Essa discussão da autora é fundamental para entendermos o papel transformador
que a literatura de testemunho pode exercer em uma sociedade cuja história oficial está atrelada ao
esquecimento. O dever da memória, que pode então ser construída a partir da escrita, “não se trata
somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao
passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 55).
Com isso, a autora aponta que elaborar o passado significa lembrá-lo de maneira ativa, ou
seja, compreendendo suas reverberações no presente, buscando esclarecimentos e, dessa forma,
empreendendo esforços para que ele não se repita. Para isso, o testemunho e aquele que testemunha
assumem papéis importantes, inclusive a testemunha elencada por Gagnebin (2006, p. 57): “aquele
que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas
palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro [...]”. O testemunho na
literatura surge então com esse papel social primordial, que, por meio do simbólico, narra o trauma
para trazer uma nova elaboração do passado, até então suplantado pela história oficial.
Diante do exposto até aqui, tornam-se relevantes abordagens de obras que se inserem na
literatura de testemunho, que funcionam como arquivos, combatendo o esquecimento. Sobre essas
obras específicas, Seligmann-Silva (2008, p. 184) coloca que “a linearidade da narrativa, suas
repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova dimensão aos fatos
antes enterrados”. Conhecer esses textos, suas configurações, significa também conhecer o passado
doloroso e compreender a nova dimensão que lhe é atribuída no presente. A novela Júlia nos
campos conflagrados do Senhor, de Bernardo Kucinski, se insere nesse rol de textos que resgatam a
memória. A seguir, apresentamos uma leitura analítica dessa obra procurando enfatizar a construção
do testemunho e da memória.
Durval passa uma hora informando-se pelo telefone com amigos de São Paulo. Fica
sabendo da prisão de um colega da turma de engenharia naval da Politécnica. A
residência estudantil do campus estava em pé de guerra. Na Faculdade de Filosofia
o clima era de medo. (KUCINSKI, 2020, p. 13)
É possível afirmar que essa característica que, Segundo Benjamin (1987) está no cerne da
narrativa, se encontra na configuração da obra de Kucinski e pode revelar aquilo que a literatura de
testemunho busca: o resgate de uma memória que deve ser coletiva e a possibilidade de
transmissibilidade desta a partir do momento em que ela se torna parte da própria experiência do
leitor. A concisão da linguagem da obra facilita essa incorporação de uma experiência que deixa de
ser individual (a busca da personagem Júlia) e passa a ser coletiva (as violências praticadas, as
torturas e mortes de várias pessoas durante o regime militar). A narrativa, dessa forma, parte de uma
experiência do passado com o objetivo de fundá-lo em uma experiência do presente.
Outro ponto importante da novela de Kucinski, que não deixa de estar atrelado à narrativa, é
a própria constituição do narrador. O narrador onisciente da obra, apesar da concisão, entrega todos
os detalhes da formação do período ditatorial e, além disso, os sentimentos vivenciados pelas
personagens, como Durval, diante do horror praticado. É um narrador que nos mostra não somente
“a casca” da ditadura, mas as reverberações que ela causou no interior das personagens, como
observamos no trecho seguinte. “O que acontecia no país ainda não estava claro, mas o que ele vira
em Santos era muito pior do que imaginara. Prender estudantes e dirigentes sindicais já é coisa feia;
maltratar e amontoar num porão alagado e fedendo urina é assustador” (KUCINSKI, 2020, p. 18).
Na passagem, é perceptível um narrador que enfatiza o horror da personagem Durval diante
dos rumos que começaram a tomar o país. As construções “muito pior”, “coisa feia” e “assustador”
marcam o posicionamento do narrador e desvela uma realidade que se consolidaria como
devastadora. Esse tom de denúncia, que acontece ao mesmo tempo em que a história de Júlia é
contada, aparece em várias outras passagens da obra. Uma cena marcante nesse sentido é o
momento em que Júlia, em sua busca para descobrir sua própria história e a história de seus pais,
encontra cartas e documentos escondidos no apartamento que trazem informações importantes sobre
a época ditatorial, como a transcrita abaixo.
O militante Jeová de Assis Gomes foi assassinado com um tiro pelas costas em 9 de
janeiro de 1972, ao ser identificado por agentes da repressão em um campo de
futebol em Guaraí, Goiás. Foi enterrado em um cerrado, na periferia da cidade. [...]
Júlia continua a ler: O professor de engenharia naval Raul Amaro Nin Ferreira foi
chicoteado com um fio elétrico até morrer, na sede da polícia política no Rio de
Janeiro. (KUCINSKI, 2020, p. 31)
O trecho apresenta atos praticados pelo regime militar. Aqui observamos o real dentro da
ficção, uma vez que Jeová de Assis Gomes e Raul Amaro Nin Ferreira foram realmente dois
militantes torturados cruelmente e assassinados, assim como tantos outros. Essa opção de Kucinski
por colocar nessa passagem os nomes e fatos reais do período ditatorial evidencia um traço
importante da narrativa de testemunho: o narrador e a sua função de recolher sobre os destroços
tudo e todos que a história oficial relega aos porões do esquecimento. Benjamin (1987), ainda em
sua discussão sobre a constituição do narrador e da narrativa, aproxima a função do narrador ao
trapeiro, que apanha os resquícios deixados para trás pela própria história. Assim é que a
experiência do ato de narrar se aproxima de uma experiência verdadeiramente humana. Sobre esse
tipo de narrador, Gagnebin (2009), aludindo aos estudos de Benjamin (1987), coloca que
Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem
significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a
história oficial não sabe o que fazer. [...] Em segundo lugar, aquilo que não tem
nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro,
aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não
subsiste [...] Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a
tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda.” (GAGNEBIN, 2006, p. 54)
Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o
pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a
leitura: Muitas execuções são noticiadas como se fossem atropelamentos, ou troca
de tiros durante tentativas de fuga, ou suicídios. Outros desaparecem sem deixar
rastros. Virgilio Gomes da Silva, preso pelo Doi-Codi de São Paulo, foi espancado
e chutado em todo o corpo e no rosto, morrendo no mesmo dia. O estudante
Eduardo Collier Leite foi torturado durante 109 dias seguidos (KUCINSKI, 2020,
p. 31).
O trecho acima faz parte do momento em que Magno, escrivão que ajudava Durval,
presencia as injustiças e violências praticadas pelos militares durante o regime. Como é possível
perceber, os próprios verbos (caminham, tiritam, traz, raciocina) situam a cena no presente, mesmo
esta sendo anterior ao nascimento de Júlia e ao momento vivenciado pela personagem na narrativa.
Com isso, vale enfatizar aqui que "a história, acrescenta Benjamin, é objeto de uma construção cujo
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas aquele preenchido pelo tempo-agora” (GAGNEBIN,
2006, p. 41). Nessa composição do testemunho, a memória cumpre sua função: fazer com que o
passado coexista com o presente, transformando-o.
A importância da memória permeia toda a obra; são as memórias reconstruídas por Júlia ao
longo da narrativa que levam a personagem à descoberta de sua identidade, de sua origem. Para
isso, os espaços presentes na obra são outra categoria pertinente, o que é sugerido pelo próprio título
“campos conflagrados”. O apartamento de Júlia, deixado pelo seu pai e que porta tantos “segredos”
da época ditatorial, surge nesse cenário como um dos campos da memória pelos quais a personagem
caminha, tanto que, Júlia sente dificuldade de se desfazer do imóvel mesmo após a morte de seus
pais e, assim, torna-se “uma zeladora de memórias” (KUCINSKI, 2020, p. 20). Outras passagens
continuam confirmando esse lugar de destaque das memórias na obra: “Como para não perturbar o
lugar de suas memórias, dispensou a arrumadeira de vir todos os dias” (KUCINSKI, 2020, p. 20).
Até aqui vimos como a própria composição da narrativa de Kucinski contribui para a
elaboração de um testemunho que resgata um período traumático e coloca a memória como parte
primordial da história e da experiência humana. Além do testemunho, a obra traz outros elementos
de reflexão que merecem destaque: as testemunhas e a dificuldade que envolve o ato de
testemunhar.
A personagem Paula, jornalista que lutou contra o regime militar ao repassar informações e
publicar notícias sobre prisões, representa essa testemunha que traz simbolicamente em seu bojo
toda a complexidade de testemunhar sobre a repressão vivenciada na ditadura. Em um primeiro
momento, o próprio apartamento de Paula, que anos depois passa a ser procurada por Júlia para que
esta obtenha respostas sobre o passado de seu pai, Durval, funciona como um espaço que ilustra o
estado interior da jornalista, que ainda vivencia as consequências dos anos de chumbo. Magno, que
também lutou, juntamente com Durval e Paula, contra a ditadura militar, se surpreende com o local.
A partir de expressões, tais como “prédio decrépito”, “atulhado de livros, revistas e jornais
velhos”, “cacas petrificadas”, percebemos imagens que podem indicar a construção da personagem
como alguém que experimenta um abandono de si mesma, um tempo estático que representa o
passado, ainda ecoando como trauma na vida da personagem. A reação de Magno assinala o
contraste entre a Paula jornalista, vívida e corajosa militante, e aquela que está a sua frente agora,
cansada e melancólica. Todo o sofrimento causado pelo regime militar transformou-a em alguém
incrédula, como a própria personagem menciona: “acreditava em muitas coisas, hoje eu não acredito
em nada” (KUCINSKI, 2020, p. 113). Paula foi demitida do jornal onde trabalhava e nunca mais
conseguiu emprego, além de ter que assumir a identidade de sua irmã morta para fugir da repressão.
Apesar de ser uma testemunha ficcional, Paula ilustra o sobrevivente de catástrofes e suas
marcas, como Seligmann-Silva (2008) discute: “Falando na língua da melancolia, podemos pensar
que algo da cena traumática sempre permanece incorporado, como um corpo estranho, dentro do
sobrevivente” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 5). A ditadura militar brasileira de 64 promoveu um
massacre que deixou feridas abertas em todas as vítimas; a narração do trauma é necessária para que
essas feridas se fechem, ou seja, atenuadas. No entanto, como já discutido aqui, esse testemunho é
dificultado em vários sentidos; o próprio apagamento da memória, promovido pelo grupo opressor,
é um obstáculo no qual esbarra a testemunha. Sobre esse ponto, é importante frisar que
Paula tem seu passado e sua própria identidade rasurados. A queima de documentos e
fotografias traz simbolicamente essa destruição de rastros, o que pode ser elucidado por meio da
própria fala da personagem: “queimei meus documentos e fiquei com os dela.” (KUCINSKI, 2020,
p. 107), referindo-se ao momento em que assumiu a identidade da irmã. Para Júlia, a jornalista diz:
“Eu tinha fotografias de nós três, eu, teu pai e a tua mãe, mas queimei tudo quando a coisa melou,
eu já tinha sido presa uma vez...Teu pai também queimou muita coisa” (KUCINSKI, 2020, p. 113).
A destruição de objetos e arquivos significa a própria eliminação das memórias, pretendida e
coagida pelos algozes, o que contribui para a impossibilidade do testemunho, já que “o apagamento
dos locais e marcas das atrocidades corresponde àquilo que no imaginário posterior também tende a
se afirmar: não foi verdade” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75).
Esse apagamento da memória, representado pela destruição dos arquivos, visa a irrealidade
dos acontecimentos e, portanto, do testemunho do sobrevivente. Por sua vez, a incapacidade de
narrar deixa marcas profundas nas vítimas, como é possível verificar na própria fala de Paula: “[...]
muitas matérias censuradas, como era o meu caso, apagaram o passado, o estrago ficou pra
sempre...” (KUCINSKI, 2020, p. 107). As atrocidades da ditadura, mesmo após tantos anos,
permaneceram como feridas abertas na vida de Paula.
Algumas passagens mostram a dificuldade que a personagem sente em falar sobre o período
ditatorial, como no seguinte trecho: “Paula Rocha, sentada na frente deles, numa cadeira de espaldar
alto e estofado puído, se mantém calada, porém fita Júlia com olhar intenso...” (KUCINSKI, 2020,
p. 109). Quando é questionada por Júlia sobre o passado, Paula demonstra sua aflição a partir do
silêncio: “A jornalista não responde. Finge ter se lembrado de algo, ergue-se e vai à cozinha”
(KUCINSKI, 2020, p. 109). Seu inicial incômodo por ter que retomar fatos que foram tão dolorosos
em sua vida também fica claro durante a narrativa, o que pode ser evidenciado na passagem: “E eu
não gosto de lembrar... Não gosto mesmo... Já tinha passado uma esponja em tudo, até o Magno me
achar” (KUCINSKI, 2020, p 110).
Paula vive em um aparente isolamento e em um ritual de silenciamento sobre os anos de
chumbo, estado que só é desfeito, a custo de muita insistência, quando recebe a visita de Magno e
Júlia, que a interroga sobre o passado do pai. Além de resgatar a memória, para Seligmann-Silva
(2008), o ato de testemunhar é importante para o próprio sobrevivente, pois quando este consegue
dar uma nova dimensão aos fatos que antes estavam enterrados, isso significa a voltar à vida.
Outra questão, porém, que assombra o testemunho, como já mencionado anteriormente, é a
culpa do sobrevivente, uma vez que ele escapa de uma situação na qual muitos dos seus pares
morreram; seu provável destino, dessa forma, seria a morte também. Esse sentimento também está
presente na construção da personagem Paula, que teve que se esconder e abandonar a luta contra a
ditadura para conseguir sobreviver. Essa ação lhe custou caro emocionalmente, tanto que escuta de
Magno: “[...] você não tem nenhuma culpa, tire isso da cabeça, nenhum de nós tem culpa, a culpa é
toda deles; e você fez muito bem em desaparecer” (KUCINSKI, 2020, p. 116). A partir de toda essa
configuração simbólica em torno da personagem, extraímos a reflexão sobre os efeitos esmagadores
que a ditadura militar causou a suas vítimas e que mesmo aqueles que sobreviveram continuam
soterrados pelos destroços do passado. O testemunho é um respiro, uma possibilidade de lutar por
esclarecimentos e justiça.
Essa possibilidade que surge a partir do momento que o testemunho se torna possível pode
ser observada no final da obra. Júlia descobre a sua mãe biológica e também toda a sua história de
luta; descobre que sua mãe foi presa, torturada e virou uma desaparecida política, com morte
presumida. Jamais terá a chance de conhecê-la. Depois de escutar todo o relato de Magno e Paula,
Júlia, então, torna-se um tipo de testemunha. Sobre essa categoria, é relevante frisar que
Nesse sentido, Salgueiro (2012) aponta essa terceira testemunha que surge a partir de alguns
estudos. Ela se manifesta a partir do momento que escuta o testemunho, de maneira solidária, ainda
podendo levá-lo adiante. Júlia engata uma busca - iniciada quando encontra cartas antigas do seu pai
em seu apartamento – por respostas relacionadas ao seu passado e à sua origem. Sendo assim, o
testemunho só é construído no enredo porque a personagem central é ávida por respostas e escuta a
história de todos os outros personagens. Sobre esse ponto de vista, Seligmann-Silva (2010) aponta
que “sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de também portar aquele testemunho que se
escuta, não existe o testemunho. O dialogismo do testemunho o transporta para o campo da
pragmática do testemunho" (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 72).
Júlia não só escuta o testemunho e todas as dores e traumas que vêm junto com essas
narrativas, como também toma para si o dever de procurar esclarecimentos e justiça, já que decide
fazer algo que ainda não havia sido feito por ninguém: "Eu quero registrar o desaparecimento de
minha mãe, Maria do Rosário [...]" (KUCINSKI, 2020, p. 177). Mesmo depois de tantos anos, a
personagem sente-se impelida a registrar o desaparecimento da mulher que descobriu ser sua mãe
biológica.
Dessa forma, Júlia liga para a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e do grupo Tortura
Nunca Mais para registrar o desaparecimento, muito menos com a esperança de um dia encontrar o
corpo do que como uma maneira de desenterrar uma memória: a de uma militante que bravamente
deu sua vida na luta por um país mais justo e democrático, sem mortes, sem torturas, sem repressão.
Sabemos que no Brasil existem muitas Marias do Rosário, que lutaram contra o regime
militar de 64, foram assassinadas brutalmente, nunca tiveram seus corpos encontrados e,
consequentemente, toda a sua história fora suprimida pela história oficial.
testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a
narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como
num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão,
mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do
sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a
não repeti-lo, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente
(GAGNEBIN, 2006, p, 57).
O professor teria, então, esse compromisso de ser uma testemunha que leva adiante os
horrores vivenciados quando propõe a leitura de obras que tratam dos desmandos do período de
exceção.
Quais caminhos seguir para que a leitura sobre o período de exceção seja trabalhada na
Educação Básica? Há ainda poucas contribuições no que tange a essa inserção. Por isso, quanto
mais propostas mais notória será a ampliação do conceito de testemunha sugerido por Gagnebin
(2006). A sala de aula é um espaço propício para a vivência de obras que abordem o tema da
ditadura, visto que provocará o debate e a experimentação de diferentes sensações: o estudante virar
também uma testemunha.
Deste modo, apresentaremos uma proposta que poderá ser útil para que os professores da
Educação Básica sejam as testemunhas propostas por Gagnebin (2006). Para a vivência em sala de
aula, sugerimos o modelo de sequência didática expandida proposta por Cosson (2006). O autor
considera que essa metodologia, que deve ser um processo contínuo e não resumida a uma única
aplicação, conduz ao letramento literário. A sequência didática expandida é composta pelas
seguintes etapas: motivação, introdução, leitura, primeira interpretação, contextualização, segunda
interpretação e expansão. Para esta proposta, excluímos a etapa da segunda interpretação, visto que
o tempo que se pode dedicar a leitura de uma única obra é relativamente curto frente às outras
demandas que o professor encontra numa sala de aula da Educação Básica.
O público-alvo da proposta são turmas do ensino médio, mais especificamente, estudantes
dos terceiros anos. Para Dalvi (2013), é necessário que o leitor esteja preparado para determinadas
leituras. Logo, a escolha por turmas de terceiros anos se deu pelo fato de que são estudantes,
supostamente, com um grau de conhecimento e maturidade mais elevados.
A primeira etapa para efetivação da sequência didática expandida é a preparação do
estudante para recepcionar a obra, chamada de motivação. Para esse momento, o professor deve
exibir o vídeo “Sobrevivente do holocausto vira estrela no Tik Tok” e a partir do que é dito pela
sobrevivente, propor uma discussão: Quais as falas da sobrevivente que mais impactaram? Você
acredita que os bons sentimentos são suficientes para reparar o passado? O bisneto de Lily afirma
que é difícil escutar a história de sua bisavó, mas que é importante. Você concorda? A discussão
proposta permite ao estudante adentrar no universo temático da obra que será lida.
Para a segunda etapa, a introdução, que Cosson (2016) denomina como o momento de
apresentação da obra para o leitor, sugerimos um encontro entre estudante e obra física. Durante
essa etapa, o estudante tocará o livro, lerá a orelha e todos os demais elementos paratextuais, por
exemplo, as informações sobre o autor. É um momento simples, mas cuja importância vai além de
uma mera apreciação do objeto físico, o livro; é o primeiro encontro com a obra que fará parte das
leituras diárias daquele estudante. E para aprofundar esse momento, o professor deve exibir o vídeo
“Bernardo Kucinski apresenta o seu local de trabalho” com a finalidade de que os estudantes
conheçam o autor por ele mesmo.
A terceira etapa é denominada de leitura. Trata-se do momento em que o estudante de fato
ingressará no universo da obra de Bernardo Kucinski. Cosson (2016) sugere que a leitura seja feita,
prioritariamente, fora da sala de aula – aqui também consta um dos motivos para que optássemos
por turmas de terceiro ano do Ensino Médio - e que, durante o período determinado, o professor
acompanhe essa leitura através de intervalos - que seria uma espécie de sistema de verificação, além
de um alargamento da leitura da obra principal. A obra é relativamente curta e, por isso, sugerimos 4
intervalos de leitura.
O primeiro intervalo será baseado na leitura dos capítulos 1 a 5 – que será realizada em casa.
Nesses capítulos, o leitor pode acompanhar as angústias de Júlia, que penetra em uma espécie de
labirinto de si mesma (mergulhada em memórias), além de se situar em relação ao período histórico
enfatizado pela obra.
Após a leitura, o professor deve trazer a música “Que país é esse?, da banda Legião Urbana,
e fomentar uma discussão a partir das questões: Que país Júlia acabara de descobrir? O eu lírico da
canção também se questiona sobre o país em que vive. Há semelhanças entre o país descrito pelo eu
lírico e o país recém-descoberto por Júlia? A discussão será oportuna para que o estudante perceba
que muitos fatos foram apagados da história oficial e, por isso, Júlia desconhecia o seu próprio país.
O segundo intervalo terá como norte os capítulos 6 a 11. Esses capítulos são cruciais para
que o leitor acompanhe as descobertas que Júlia faz a cada passo que caminha em seu labirinto:
Qual a sua verdadeira origem? Quem são seus pais? O que acontecia no Brasil? Além disso, muitas
questões históricas vão se desenhando e contribuindo para a compreensão dos fatos narrados.
O professor levará para os estudantes o poema de Eduardo Alves, “No caminho, com
Maiakóviski”. Os versos Tu sabes, /conheces melhor do que eu/ a velha história. / Na primeira
noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda
noite, já não se escondem:/ pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada sugerem uma
invasão, inicialmente, sutil (roubam uma flor) e, depois, extremamente violenta (pisam as flores,
matam o cão). Exatamente como acontece com as personagens da novela de Kucinski: desaparecem
de forma sutil, sem deixar rastros – o escrivão Magno não conseguia encontrar Mária do Rosário,
por exemplo.
Durante essa atividade, o estudante ativará os mecanismos da intertextualidade para discutir
partindo das questões: É possível relacionar o poema com os acontecimentos descritos até o capítulo
11? Você relaciona o poema com algum capítulo específico do livro? Nesse momento, será possível
acompanhar a efetividade da leitura, visto que o estudante fará relações entre a obra principal e
outras manifestações artísticas.
O terceiro intervalo partirá da leitura dos capítulos 12 a 17. Ao longo desses capítulos, é
possível adentrar cada vez mais no universo histórico de um período de violência velada: nem os
sacerdotes da igreja escapavam da repressão e da tortura. Acerca da personagem Júlia, pode-se
perceber um afunilamento de suas buscas: a verdadeira história está cada vez mais próxima.
Nesse momento de verificação, sugerimos que o professor realize a leitura do capítulo 13 –
A aparição em sala de aula e depois deverá exibir o quadro “A persistência da memória”, de
Salvador Dalí. A intenção é que o estudante responda oralmente o questionamento: “Considerando o
encontro entre Júlia e Dasdores, você estabeleceria alguma relação entre o relato feito pela senhora e
a pintura observada? Durante essa atividade, espera-se que o estudante consiga perceber que
Dasdores, muitos anos depois, ainda lembra da filha que deixou no orfanato (uma persistência da
memória - os relógios derretidos, indicando que o tempo passa, mas a memória guarda, ou as ricas
impressões que os estudantes podem trazer a partir da leitura da imagem):
Eu tinha quinze anos, a menina hoje está beirando os quarenta e cinco, eu falo
menina, mas de certo casou, tem filhos, e nunca vou conhecer meus netos, pelo mal
dos meus pecados. Era uma boniteza de bebê, mais clarinha que eu, tinha uma pinta
bem na maçã do rosto (KUCINSKI, 2020, p. 97).
O quarto e último intervalo se baseia na leitura dos capítulos 18 a 25. São, talvez, os
capítulos mais frenéticos para o leitor. Há - a partir dos testemunhos de Magno e, principalmente,
Paula Rocha – o desvendar dos mistérios que recendiam na verdadeira história de Júlia. A
personagem principal pôde, de fato, saber suas origens, quem era sua mãe biológica, o que ela
representava e o que era necessário para que a história de Mária do Rosário não se apagasse de vez.
Para essa atividade, o professor deve exibir o documentário “15 filhos” e, a partir da
comparação, provocar uma reflexão: O que há em comum entre Júlia e as personagens do
documentário?
É relevante frisar aqui que os intervalos de leitura promovem diálogos com outros textos,
outras manifestações artísticas, que são capazes de enriquecer o universo do estudante.
A quarta etapa da sequência é a primeira interpretação. Para Cosson (2016), esse é o
momento em que o estudante poderá compartilhar suas impressões sobre a obra. Para tanto,
sugerimos a elaboração de um podcast ou um vlog no qual o aluno responderá O que mais o atraiu
na obra lida? Caso o estudante não tenha gostado da obra, deverá trazer os elementos que validem o
seu posicionamento. Embora seja um momento em que prevalece a liberdade de expressão do
estudante, ele não pode trazer elementos sumários em sua fala, por exemplo: "Ah, gostei do livro!”
“Não gostei do livro!” É preciso instrui-lo a ser mais claro em relação aos aspectos que chamaram
sua atenção e o fizeram gostar e vice-versa.
A quinta etapa é chamada de contextualização. Cosson (2016) denomina como um
movimento em que é possível verificar o que a obra traz consigo. A obra de Kucinski aponta para
um período específico da história do Brasil: a ditadura militar. Por isso, sugerimos uma
contextualização histórica. Durante essa atividade, o professor de Língua Portuguesa deverá contar
com a contribuição de um professor de História para enriquecer o conhecimento dos estudantes, que
devem ser separados em pequenos grupos e apresentar seminários. Os temas que devem nortear as
apresentações são os seguintes:
Mas o que foi isso que aconteceu no Brasil? (referência ao capítulo 5 da obra);
Durval, Maria do Rosário e Magno: resistência contra o regime militar;
Paula Rocha: uma vítima da censura;
A igreja Católica e o Regime Ditatorial.
Considerações finais
A leitura e análise da obra de Kucinski foram feitas a partir de recortes dos principais fatos
que serviram de testemunho dos acontecimentos que marcaram o período de exceção.
As reflexões realizadas ao longo desse trabalho evidenciam a importância das narrativas de
catástrofes tanto para que haja o renascimento do indivíduo (SELLIGMAN-SILVA, 2008) quanto
para se inventar um novo presente (GAGNEBIN, 2006). O renascimento em indivíduos como Paula
Rocha se torna evidente, derrubando os muros que se fincaram em sua memória. Em relação a se
inventar um novo presente, é possível notar uma Júlia que não se conteve em apenas ouvir a história
de sua mãe biológica, mas que sentiu a necessidade de levar adiante o seu testemunho.
Nesse ínterim, a escola torna-se parceira na empreitada de tornar público o valor dos
testemunhos de catástrofes, alinhando os fragmentos de uma memória coletiva como possibilidade
de romper o silêncio em volta das subjetividades instauradas pelo regime de exceção. Por isso,
arquitetamos a abordagem didático-pedagógica: para que os professores possam ter acesso a um
conteúdo que contribui para a emancipação de seus sujeitos-leitores. Uma atitude emancipatória no
que diz respeito a conhecer os fatos que foram extorquidos da história oficial.
Sendo assim, narrar o inenarrável é tornar compreensível o invisível dos horrores instaurados
pelo regime autoritário. Não para se esperar compaixão do coletivo, mas para que tais
acontecimentos não se repitam nunca mais.
Referências
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed., 6ª reimpressão. - São Paulo: Contexto,
2016.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 e.d.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
GAGNEBIN. J. M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. 224 p.
GINZBURG, J. Ditadura da estética do trauma: exílio e fantasmagoria. In: VIANA, Chico, org. O
rosto escuro de Narciso. Ensaios sobre literatura e melancolia. João Pessoa: Ideia, 2014.
KUCINSKI, B. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. 1. ed. - São Paulo: Alameda, 2020.
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar Júlia: nos campos consagrados do Senhor, de Bernardo Kucinski,
correlacionando memória, história e esquecimento. Inicialmente, apresentamos o autor e a obra, para, posteriormente,
traçarmos paralelos entre memória e esquecimento, espaço e artefato, passado e identidade, arquivo e história. Nas
considerações finais, amparados por Ricouer (2007) e Laub (1995) concluímos, respectivamente, que “a memória se
define como luta contra o esquecimento” e que “devemos conhecer a nossa verdade enterrada para podermos viver as
nossas vidas.”
Abstract: The purpose of this article is to analyze Júlia: nos campos consagrados do Senhor, by Bernardo Kucinski,
correlating memory, history and forgetfulness. Initially, we present the author and the work, and then we highlight some
parallels between memory and obliviousness, space and artifact, past and identity, archive and history. Finally, and
supported by Ricouer (2007) and Laub (1995), respectively, we conclude that “memory is defined as a struggle against
forgetfulness” and that “we must know our buried truth in order to live our lives.”
Introdução
Entre suas obras mais significativas está K, Relato de uma Busca (2011), “que recebeu
versão em 13 idiomas e revela a sordidez da ditadura brasileira. Nesta obra, Kucinski mistura
fragmentos da história real da irmã e do cunhado com memórias pessoais e da família e muita
imaginação.” (REINA, 2020) Outras obras do autor são Pretérito imperfeito (2017), A nova ordem
(2019) e Você vai voltar pra mim e outros contos (2014). Kucinski é considerado pela crítica como
um dos principais nomes da prosa contemporânea brasileira, tendo sido, respectivamente, premiado
e finalista em concursos como o Prêmio Jabuti de literatura, em 1997, e o Portugal Telecom, em
2012.
A primeira versão de Júlia foi feita em 2011. Posteriormente, ela foi sendo alterada até
chegar a versão concluída em 2019 e que foi publicada pela editora Alameda, em 2020.
Disponível em https://www.alamedaeditora.com.br/julia-de-b-kucinski-material-digital-do-professor/
[...] contribui, em demasia, para quebrar essa narrativa de paz e prosperidade criada
pelos militares desde o golpe de 1964 no Brasil. Quebra a patente de que as
histórias militares são as verdadeiras e a oposição inimiga era totalmente criminosa
e desqualificada. Ajuda a revelar a existência de brasileiros que hoje não têm nome,
não têm RG, desconhecem seus pais biológicos, não sabem quantos anos têm, ou
qual a data de seus aniversários. São apenas fantasmas à procura de sua verdadeira
identidade, de sua família real. Mortos socialmente.
Júlia, terceiro lugar no Prêmio Glória Pondé (2021), categoria Literatura Juvenil, da
Fundação Biblioteca Nacional, é moderno e atual, razão pela qual novamente concordamos com
Reina (2020), quando diz que
o enredo criado por Kucinski prende o leitor até o ponto final do texto, num
paralelo com a realidade escondida da ditadura civil-militar e com o Brasil atual do
negacionismo, das fake news e das narrativas distópicas. Nem os próprios militares
poderiam ter imaginado uma situação dessas. Cidadãos se descobrindo vítimas do
crime cometido pelos militares.
A memória não é apenas lembrança ou rememoração do vivido. Nessa obra, ela também
apresenta-se como lugar de confronto da personagem com o passado, a partir de memórias que não
são suas, memórias registradas e guardadas subjetivamente como arquivos. No trecho apresentado a
seguir, identificamos o momento no qual a personagem descobre um estojo que pertencera ao seu
pai e que contém segredos que, até o momento, ela desconhecia:
O confronto com esse passado, que não lhe é comum até aquele momento, abre espaço para
questionamentos e, principalmente, a busca por respostas, assim como pela verdade. A personagem
inquieta-se, de uma certa forma, não apenas para saber a verdade dos fatos, mas para reconstruir a
sua própria identidade, pois, como observa Silva (2003, p. 76-77), “o trabalho da história e da
memória deve levar em conta tanto a necessidade de se ‘trabalhar’ o passado, pois as nossas
identidades dependem disso, como também o quanto esse confronto com o passado é difícil.”
Em busca de sua identidade, Júlia vai atrás de respostas. Nesse trajeto, encontra um antigo
amigo de seu pai, Magno, que a ajuda a conseguir montar o quebra-cabeça da sua história. Nesse
contexto, a personagem encontra-se em volta não apenas com os arquivos encontrados no estojo do
pai. Para compor e recriar a sua história, outros elementos entram em cena, como, por exemplo, os
arquivos do orfanato, as lembranças que Magno e Paula, a jornalista que também fora amiga do pai
de Júlia, trazem à tona. Nesse trecho, como podemos constatar, tem-se uma conversa entre Júlia e
Magno sobre os possíveis arquivos do orfanato.
— E os arquivos do orfanato? O senhor ficou sabendo onde foram parar depois que
o exército ocupou o orfanato?
— Certamente estão na Cúria Metropolitana, a Igreja não joga nada fora, senhorita
Júlia.
— O vigia do orfanato me disse que esse tal delegado levou embora os arquivos
antes da chegada do exército.
— Nesse caso, alguma coisa ele queria esconder.
— Tenho certeza que nos arquivos constam os nomes de meus pais biológicos.
— Um bom ponto de partida é a Paula, se ela serviu de testemunha no registro do
nascimento, alguma coisa deve saber dos seus pais biológicos. A senhorita trouxe o
registro? Deixe-me ver?
(...)
— E os arquivos do orfanato, o senhor consegue achar?
— Isso é mais difícil, se teve envolvimento desse delegado ou mesmo dos
militares, devem estar muito bem escondidos ou talvez os tenham destruído, mas
vou tentar.
Júlia estende ao delegado os outros papéis que estavam no estojo, os depoimentos
datilografados e as cartas manuscritas. Magno os examina um a um, devagar, mas
sem se deter em nenhum, como para saber apenas do que se trata. (KUCINSKI,
2020, p. 97)
Para Derrida, o arquivo tem caráter dual e pode representar, ao mesmo tempo, a
conservação e a destruição de memórias e fatos, pois “o arquivo, se esta palavra ou esta figura se
estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência
espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e
estrutural da chamada memória” (DERRIDA, 2001, p. 22). O arquivo, nessa perspectiva, pode
operar em dupla função, como elemento desinstituidor e de apagamento de parte da história ou
como estratégia de conservação de elementos da história, como possibilidade de aproximar-se da
realidade dos fatos. Em outros termos, conforme Derrida (2001, p. 17), “todo o arquivo — tiramos
daí algumas consequências — é ao mesmo tempo instituidor e conservador, revolucionário e
tradicional.”
Primeiramente, observa-se o conflito interno de Júlia por não conhecer a história do seu
próprio país. Pode ser que, nesse aspecto, muitos identifiquem-se com a personagem e perguntem-
se, afinal, qual o papel da memória na história? Ao comentar sobre o tema, Le Goff (1996, p. 33)
aponta que “a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais
pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das
classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas”.
A ânsia de Júlia em encontrar respostas é a mesma de muitas outras pessoas, ainda hoje.
Muito mais do que uma necessidade, é, de fato, um direito à memória, um direito ao luto, um direito
à necessidade de prosseguir e não ter que reviver diariamente a mesma tragédia. Como comenta
Ricoeur (2007, p. 424), “a memória se define como luta contra o esquecimento.” É essa relação com
a memória e com a própria história de vida e do país que marca a narrativa de Júlia. Em suma, é
como se existisse “em cada sobrevivente uma necessidade imperativa de contar e portanto de
conhecer a sua própria história, desimpedido dos fantasmas do passado contra os quais temos de nos
proteger. Devemos conhecer a nossa verdade enterrada para podermos viver as nossas vidas.”
(LAUB, 1995, p. 63)
Considerações finais
Júlia: nos Campos Conflagrados do Senhor é uma obra instigante. Por ser uma narrativa
engajada, que discute um tema histórico e atual, concluímos que essa novela, com linguagem quase
detetivesca, pode ser usado no processo de letramento literário e também conscientização político-
social dos alunos do ensino médio. Por esta razão, pretendemos futuramente apresentar uma
proposta didática para trabalhar a referida obra no contexto da sala de aula, com alunos da escola
pública.
FARIA, Sofia Garcia; SILVA, Marcio Orlando Seligmann. K, de Kucinski: a autoficção como
instrumento para a elaboração do trauma. Disponível em:
https://proceedings.science/unicamp-pibic/pibic-2017/papers/k--de-kucinski--a-autoficcao-como-
instrumento-para-a-elaboracao-do-trauma Último acesso: 1 fev. 2022.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. A instalação da Comissão Nacional da Verdade.
Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/institucional-acesso-informacao/a-cnv/57-a-
instalacao-da-comissao-nacional-da-verdade.html Último acesso: 5 jan. 2022.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 [1995]
FINOTTI, Ivan. Tráfico de bebês durante ditadura inspira novo livro de Bernardo Kucinski.
Folha de São Paulo. Ilustrada. Livros. 10 jul. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/07/trafico-de-bebes-durante-ditadura-inspira-novo-
livro-de-bernardo-kucinski.shtml Último acesso: 30 jan. 2022.
KUCINSKI, Bernardo. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. 1ª edição, São Paulo: Alameda,
2020.
LAUB, Dori. Truth and Testimony: the Progress and the Struggle. In: CARUTH, Cathy (Ed.).
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LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
LORAUX, Nicole. La ciudad dividida: el olvido de la memoria de Atenas. Buenos Aires: Katz,
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ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 1. Ed. 2009.
RICOEUR, Paul. A história, a memória, o esquecimento. Trad. De Alain Francois [et al.].
Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2007.
REINA, Eduardo. ‘Julia’, um ficção que traz memórias reais sobre o sequestro de crianças pela
ditadura no Brasil. El País, Brasil. 21 jun. 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-21/julia-um-ficcao-que-traz-memorias-reais-sobre-o-
sequestro-de-criancas-pela-ditadura-no-brasil.html Último acesso: 29 jan. 2022.
SILVA, Marcio Orlando Seligmann. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In:
Seligmann-Silva, M. (org.). História, Memória, Literatura. O testemunho na era das catástrofes (p.
59-89). Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO-PPGLE
Campina Grande –
PB 30 de janeiro de
2022
RESUMO
Julia: nos campos conflagrados do senhor, romance de Bernardo Kucinski, traz à tona uma
parte da ditadura pouco explorada: a crueldade no sequestro de crianças, filhos de militares da
esquerda, com envolvimento das diversas camadas sociais. No entanto, importante para
compreender o sofrimento hereditário de muitas famílias. Sendo assim, este artigo tem o
objetivo de mostrar a partir da visão da personagem Júlia, neste romance, os traumas que
hereditariamente perpassam as famílias, por meio das descobertas em volta desses sequestros.
Metodologicamente faremos um estudo bibliográfico interpretativo-analítico do romance de
Bernardo Kucinski, elencando os traumas desenvolvidos por meio da ditadura, principalmente
o trauma sequencial. Em seguida elaboraremos uma sequência didática para discussão sobre a
Ditadura Militar no Brasil e suas consequências traumáticas. Nosso aporte teórico é ancorado
em Kucinski (2020), Freud (1917) e Ginzburg (2004).
ABSTRACT
Julia: in the fields of misfortune, a novel by Bernardo Kucinski, brings to light a little
explored part of the dictatorship: the cruelty in the kidnapping of children, children of left-
wing soldiers, with the involvement of different social strata. However, important to
understand the hereditary suffering of many families. Therefore, this article aims to show,
from the point of view of the character Júlia, in this novel, the traumas that hereditarily
permeate families, through the discoveries around these kidnappings. Methodologically, we
will make an interpretative- analytic bibliographic study of the novel by Bernardo Kucinski,
listing the traumas developed through the dictatorship, especially the sequential trauma. Then
we will elaborate a didactic sequence to discuss the Military Dictatorship in Brazil and its
traumatic consequences. Our theoretical contribution is anchored in Kucinski (2020), Freud
(1917) and Ginzburg (2004).
INTRODUÇÃO
Desta pacata cidade do Vale do Paraíba, bebês nascidos de mães brasileiras muito
pobres foram enviados para adoção no exterior, burlando as exigências legais.
Estima- se que em cerca de vinte anos, mais de 40 bebês foram levados ao exterior,
a maioria para a Itália. No centro dessa corrente está a Casa Maternal e Orfanato
São Vicente de Paula. As mães grávidas eram induzidas a se internarem na casa
maternal e de lá os bebês iam para o orfanato onde aguardavam a chegada de
casais do exterior que os adotavam. Certidões de nascimento e anotações em
passaportes eram providenciadas pelos cartórios de Jacareí. (Kucinski. p. 90. 2020).
O livro Júlia: nos campos conflagrados do senhor, Bernardo Kucinski, foi escolhido
para formulação deste artigo após estudo minucioso da obra na disciplina de mestrado:
Literatura e história, memória e esquecimento, na Universidade Federal de Campina Grande,
ministrada pelo professor José Edilson Amorim, no semestre 2021.2.
A metodologia utilizada para elaboração deste trabalho é norteada por uma perspectiva
qualitativa e analítica, coletando os dados do romance em questão e analisando as sensações;
pensamentos e percepções da personagem principal diante das situações que são impostas a
ela, através do procedimento bibliográfico.
O percurso utilizado para a formulação desta pesquisa também é exploratório e
interpretativo, trata-se de aumentar o saber sobre a obra e conhecer o verdadeiro intuito do
enredo apresentado. De acordo com Laville e Dionne (1999), “método indica regras, propõe
um procedimento que orienta a pesquisa e auxilia a realiza-la com eficácia”.
O referencial de análise para desenvolvimento desta investigação foi baseado na
construção interativa de uma explicação, em que são explicadas parte por parte do romance
explicando como são abordados os traumas na sequencia narrativa.
A fonte de pesquisa para este trabalho baseia-se na literatura, uma vez que, existe uma
ligação entre a realidade e ficção, o que permite uma compreensão mais clara do que a
personagem principal sofre. Compreendemos que a literatura não é encarregada de retratar a
realidade nem o sofrimento real daquele tempo é algo que inspire um compartilhamento
feliz, no entanto, a junção dos dois é importante para que as pessoas compreendam o que
acontece quando se tem um governo opressor, com acesso ao poder de uma nação, assim
como também é essencial para registro e divulgação da angústia vivenciada por nossos
antecestrais em um perído de muita tristeza.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De uma maneira geral, não existem motivos ou razões universais que possam se
caracterizar como trauma, pois cada pessoa percebe a realidade de uma forma
muito íntima, sendo mais ou menos sensível perante as experiências vividas, ou
seja, o que é captado como traumático para alguém pode não abalar outra pessoa.
Entre os sintomas de um trauma psicológico estão: a constante falta de sono e a
dificuldade de dormir, surtos de raiva, isolamento do próprio convívio social, o
sentimento de fugir de situações que lembrem o trauma e a constante lembrança
da situação traumática seja em sonhos ou durante o dia quando acordado. Quando
se torna ainda mais problemática, os sintomas podem se associar também a
depressão e a ansiedade. O tratamento depende da gravidade do trauma
psicológico do paciente, mas em geral é realizado através de conversas onde o
objetivo principal é reconhecer, entender e aceitar cada uma das emoções e
sentimentos. (Traumas Emocionais e Psicológicos, 2015-2021).
Desse modo, observa-se que até aqui o principal trauma da vida de Júlia era o luto pela
morte de seu pai, no entanto, encontramos mais traumas que se seguem na trama e refletem as
atitudes durante a ditadura.
A narrativa começa com a discussão entre os irmãos sobre a divisão de bens, após a
morte do pai. Tudo é dividido, exceto o apartamento, depois de muita discussão entram em
um
acordo e Júlia vai morar no imóvel. Ela mantém um apego pelo apartamento que nem ela
imagina o motivo, mas na verdade é porque ela sente-se próxima do pai ao ficar entre os
cômodos que ele viveu e do papagaio que seu pai adorava.
Ela não consegue ficar muito tempo longe do apartamento, este local passa a ser um
espaço entre dois momentos de sua vida, o passado que ela não quer perder e medo do que
poderia vir no seu futuro, desenvolvendo uma prisão psicológica entre a saudade, a dor e as
lembranças de sua família e infância, principalmente do seu pai.
Segundo Freud, o luto impede que a pessoa queira perder o que lhe traz uma memória
da pessoa falecida,
O luto profundo, a reação à perda de uma pessoa amada, contêm o mesmo estado
de ânimo doloroso, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que
este não faz lembrar o morto –, a perda da capacidade de escolher um novo objeto
de amor
Todavia, Ginzburg vai chamar esse momento de exílio, visto que, a vontade de ficar o
tempo todo no apartamento trata-se de uma forma da consciência preservar as memórias do
pai.
No meio deste exílio, Júlia começa a devanear sobre os acontecimentos de sua vida,
buscando as lembranças que são verdadeiras ou as que deseja que fossem:
Súbito, recorda-se de uma cena da infância que agora lhe parece espantosa.
Brincava de boneca e a mãe lhe disse: eu não sou sua mãe de verdade, sua mãe de
verdade é uma carvoeira. Ela perguntou: o Lair também é filho de uma carvoeira?
O Lair também, a mãe respondeu. O que é uma carvoeira, mãe? É uma mulher que
queima paus para fazer carvão. E o Beto? O Beto é filho de uma parteira. O que é
parteira, mãe? A mãe não respondeu. Foi para a cozinha. O pai lhe trouxera uma
boneca nova, agora recorda o episódio completo, era uma boneca de palha de
milho, pequena e curvada sob o peso de um amarrado de gravetos, igual a menina
da estrada. Brincava de faz de conta na casa de bonecas e fizera da nova boneca
sua avó porque nunca teve avó. Mas a mãe disse, não, a boneca carvoeira não é
sua avó, é sua mãe. Você não é minha filha, você é filha de uma carvoeira. Foi assim
que aconteceu. (Kucinski. p.63.2004)
O exílio é um dos sintomas de quem está passando por um trauma sequencial, mas não
sabe até encontrar o motivo que o está levando a tomar aquelas decisões.
TRAUMA SEQUENCIAL
Durante o período em que fica no apartamento, Júlia descobre um estojo muito bem
guardado, com cartas passadas, junto destas havia também uma lista com alguns nomes
seguidos de números, um relatório endereçado à anistia internacional sobre crianças
desaparecidas e depoimentos de pessoas que foram presas e torturadas. A partir das cartas ela
descobre que foi adotada, sendo seu segundo trauma: a perca do pai pela segunda vez.
Operação deu certo... Já tem dois filhos maravilhosos... Não pode mais ter filhos...
As frases parecem falar de outra família. Confusa, Júlia relê a carta e a confronta
com a anterior. Só então começa a sentir que está diante de uma revelação
assustadora. Se depois que nasceu o Lair a mãe operou e não podia mais ter filhos,
então, ela não nasceu da barriga de sua mãe!? Então, sua mãe não é sua mãe de
verdade?! Vai ver seu pai também não é seu pai... O quadro se impõe com a nitidez
e a violência de um raio. Ela é filha adotiva. Em pânico, desprende um último papel
colado no fundo ferruginoso do estojo. (Kucinski. p. 39-40. 2004)
Essa descoberta deixa Júlia desnorteada, sentindo-se perdida por ser órfã e com uma
história que não é sua. Devido a um universo paralelo, por meio das experiências vividas e as
não vivenciadas, ela começa a tentar buscar em sua memória fatos que façam sentido, pistas
que mostrassem esta verdade. Para Ginzburg, esta é uma maneira de diminuir a dor da
convivência passada.
— Você não é filha adotiva coisa nenhuma, isso foi uma farsa montada pelo Durval
e pela Maria do Rosário; você é a filha dele com a Maria do Rosário.
— Então meu pai é meu pai mesmo?
A jornalista confirma com um gesto de cabeça. [...] Meu Deus, como você é
parecida com ela... É a cara dela, só não tem a pinta na bochecha, o charme da
Rosário era a pinta.
— A Maria do Rosário não tinha pais nem irmãos. Ela, sim, é que foi adotada. Pelas
madres. Ela nunca soube quem foram os pais dela e nem fazia questão de saber.
Foi entregue ainda bebê no orfanato e criada pelas vicentinas.
— Por que ninguém a adotou?
— Essa parte da vida dela eu conheço pouco, a Maria do Rosário não gostava
desse assunto.
— Minha mãe nunca se queixou da falta de família?
— Ela teve sorte com uma das madres que dirigia o orfanato e cuidou dela
como filha. Dizia que a família dela era a comunidade eclesial e a organização.
— Que organização?
— A Ação Popular. Começou numa dessas juventudes católicas, a JEC, acho que no
ginásio, depois foi para a Ação Popular, como muitos deles
— Como é que meu pai entra na história?
— Teu pai não era de nenhuma organização, mas ajudava, diz Magno.
— Ajudava como?
— Ele ficou revoltado com a prisão dos seus estudantes e começou a se envolver;
foi quando ele me pediu ajuda. Depois, não paramos mais. Seu pai levava
mensagens, passava dinheiro, ajudava a esconder gente. Até documentos falsos ele
forjou. Foi assim que conheceu a sua mãe. Tua mãe me contou a história dos bebês
mandados pra Itália.
— A senhora conheceu bem a minha mãe? Como ela era?
— Tua mãe era uma mulher especial, liberada, o que naquela época não era pouca
coisa, ainda mais nesse interior...
— Que mais?
— Que mais? Tudo! Era cheia de vida, falava pelos cotovelos e queria saber de
tudo. E sempre atuando, além do expediente no orfanato fazia trabalho voluntário
nas comunidades.
— Ela era bonita?
— Muito bonita, morena, cor de mel de laranjeiras, como se diz, e de olhos
negros. Uma mulher formosa, pode-se dizer.
— A senhora tem alguma fotografia dela?
— Eu tinha fotografias de nós três, eu, teu pai e a tua mãe, mas queimei tudo
quando a coisa melou, eu já tinha sido presa uma vez...Teu pai também queimou
muita coisa.
— A senhora falou que adoção foi uma farsa, mas eu não entendi, uma farsa como?
— A Rosário engravidou de caso pensado, queria ter um filho do teu pai, mas na
situação de militância dela era perigoso, podiam chantagear, não vou nem te
contar o que faziam. Teu pai então acertou com a Rosário que se acontecesse o
pior ele levaria a criança para São Paulo como se fosse adotada. Deixaram tudo
preparado, para simular a adoção.
— Ora, Júlia, tua mãe ficou no meu apartamento até dar à luz! Não nesse aqui,
num outro maior. Você nasceu no meu apartamento! E tem mais, nasceu de parto
natural, sem parteira nem nada! A ideia da tua mãe era sair do orfanato faltando
uns quatro meses para dar à luz, mas a reportagem precipitou tudo e ela veio
antes.
— O Durval nunca me falou para onde ela foi quando abandonou o orfanato; veja
como ele era cauteloso.
— No que ela foi presa, teu pai pôs em prática o estratagema da adoção; fizemos
igual as madres, um registro de nascimento dizendo que a Rosário pariu em casa de
família, o que no caso era a pura verdade, mas pondo como nome da mãe a mulher
do Durval; escolhemos um cartório de uma cidadezinha que não tivesse
maternidade, mas não tão pequena que todos se conhecessem
Quem foi que prendeu?
Percebemos assim, que Júlia tinha um trauma sequencial, uma angústia que foi passada
através do sofrimento dos seus pais durante a ditadura, uma mãe biológica assassinada, um
pai que mentiu para ela a vida inteira, e uma mãe adotiva que foi enganada. Tudo causado
através do sofrimento e pressão psicológica, física e moral imposta pela ditadura militar.
Segundo Sven Kramer, o trauma sequencial acontece porque a dor é estendida aos familiares.
Por isso, quando Júlia descobre a verdade torna-se implacável, muda de emprego,
muda de cidade e passa muito tempo investigando o máximo que pode, do orfanato até
mesmo o cartório. E não polpa esforços para conseguir. Torna-se forte, mas não supera
totalmente, prova disso é que sua ação posterior é procurar provar que sua mãe foi uma das
pessoas assassinadas durante a ditadura.
Júlia então, segue sua vida um pouco mais tranquila que agora sabe da verdade, agora
pode finalmente encontrar sua história próxima de sua avó biológica, o que não quer dizer
que ela superou o trauma, pois ele faz parte da construção de sua vida.