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V. 25, p, 19-27

DEPRESSÃO
A DOR DA AIMA DE QUEM
SE PERDEU DE SI MESMO

Maria Zelia de Alvarenga*

o herói é o ator da transformação de Deus no homem.


JuNG (1976, par. 612)

A depressão é um quadro clínico de cará nos fala Nilton Bonder (1998) em seu texto Palavras-chave:
ter sindrômico descrito pela psiquiatria como A alma imoral.
alma, mito de
um processo mórbido das manifestações rela Podemos pensar a depressão como um Orfeu, logos
cionais, consigo mesmo e com o mundo. O processo desenvolvendo-se como decorrência espiritualizado,
de vários fatores desencadeantes e dando sabedoria
ser humano deprimido é irritadiço ou indife
rente profunda.
a tudo. Ao mesmo tempo, é ansioso, emergência a incontáveis sintomas físicos e
inquieto e se sente oprimido. O comporta psíquicos e a alterações profundas e muito Key words:
mento é pautado pela redução da energia comprometedoras das relações do sofredor depression, pain
of the soul, myth
global: cansaço fácil e dificuldade de concen- com seu mundo. No entanto, como expressão
of Orpheus,
tração. Os pensamentos têm um cunho nega do sofrimento da alma, a depressão pode ser spiritualized
tivo, o juízo da realidade está alterado, bem vista como um estado de aprisionamento no logos, deep
wisdom.
como a capacidade de planejar o futuro. O qual a pessoa se coloca, se sente ou se sabe,
deprimido sofre de uma incapacidade total mas sem entender emocionalmente o porquê
ou parcial para sentir alegria e experimentar de estar nessa condição. Estar aprisionado,
as vivências prazerosas. (Moreno e Moreno, sem poder se exercer com liberdade, sem
1995). competência para romper com o preestabele-
A depressão, no sentido simbólico, é, no cido faz o ser humano sentir-se escravo. Ser
meu entender, a melhor expressão da dor da escravo implica perder a criatividade, tornar-
alma que se perdeu de sua própria natureza. se infértil, submetido à obrigatoriedade de
A alma como sopro divino institui ou dá ao cumprir tarefas sem possibilidade de escolha.
corpo a condição de a criatura fazer-se Liberdade é a condição de poder viver
humana. Ser humano é ser corpo com alma, num lugar de fertilidade, onde nada prenda e
alma como desejo, demanda para se transfor se tenha o direito de ir e vir. O lugar fértil per
mar, ultrapassar, trair o preestabelecido, como mite que se crie, enquanto nos locais estéreis
nada germina. Quando está numa relação

●Médica psiquiatra. Membro analista da SBPA-SP.


estéril, a criatura toma-se escrava, e, por sua
e-mail: mza@flama.biz vez, tudo que se toma estéril escraviza e mata!

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Todo ser que se sabe livre trabalha, pois tra neira de uma relação tradutora da própria
balhar significa criar, estabelecer um processo escravidão, mesmo quando não consciente
interativo, profícuo com a vida. Dessa forma, dela, o desespero se instaura, explicitado pela
não há como ser livre sem trabalho, sem cria perda do desejo de encontrar saídas ou pela
ção. O aprisionamento causa desespero, desistência de lutar por liberdade. A condição
ansiedade, esvaziamento, sensação de nuli- de não poder criar um futuro diferente do
dade, perda de identidade, perda do próprio provável coloca os “escravizados” cada vez
senso de direção. mais prisioneiros de um passado idealizado e
O escravo é alguém com potencial para perdidos de si mesmos. Por mais “acomo
crescer, mas subjugado ã realização de tarefas dado” que o aprisionado-deprimido seja, o
que exigem potencial menor do que lhe con Self não deixa de mandar “notícias”: sonhos,
fere sua competência. Não há escravo que fantasias, ideação de morte — como expressão
não sonhe com liberdade e com o desejo de introvertida e subjetiva da dor da alma -, bem
romper com o estatuído - e essas demandas como os incontáveis sintomas físicos - como
sempre emergem quando o ser humano se expressão extrovertida, objetiva da dimensão
sente aprisionado. concreta da dor da alma. O até então lugar
Tudo que cresce precisa romper. Tudo que aprazível cede lugar ao desejo de “nascer”,
é vivo é uma constante seqüência de rupturas. deixar a casa, a cidade, a família e buscar o
O relacionamento pode, num determinado novo, mudar de emprego, mudar de parceiro,
momento, configurar um estado de continên mudar, mudar. A nova ordem é mudar. É o
cia, aconchego. Entretanto, como seres vivos, momento da ruptura. Para consegui-la, há
o processo de crescimento e transformações que deixar vínculos, heranças, expectativas...
acontece, seja no sentido físico, psíquico, Se não se aceitar o desafio de nascer, morre-
sociocultural ou noético - o termo noético é se, deprime-se, adoece. Quando o espaço em
aqui usado com o sentido proposto por Tei- que se vive não é mais competente e conti
Ihard de Chardin (1988) em seu livro Ofenô nente para o tamanho adquirido, quando não
meno humano. Por mais continente que uma há “permissão” para expressar idéias, quando
relação seja, só poderá manter-se nessa con a ordem é manter o comedimento, só resta
dição se, concomitantemente com as transfor romper. Quando não se rompe, a alma morre
mações de cada parceiro, qualquer que ele e a servidão se instaura. Todos os que são
seja, a própria relação sofra transformações escravizados se escravizam!
que acolham as demandas emergentes nos As antinomias estão presentes em todos,
partícipes, dando espaço para que elas se representadas pela demanda por crescer e
manifestem e interajam. Quando essas trans demanda por acomodar-se, estagnar; pelas
formações e crescimentos não encontram forças criativas e forças acomodatícias.
espaço, surge o sufocamento. “Aceitar” essa Dependendo da polaridade emergente que
condição de sufocamento significa deixar-se determina o comportamento, o ser será mal
aprisionar, negar-se, trair a si mesmo, seja por dito para o mundo porque rompeu com as
medo, insegurança ou covardia. Não “aceitar” normas, com os valores, com os dogmas, ou
a escravidão e romper com o estatuído faz a será maldito para si próprio por ter-se acomo
criatura experimentar um dos tantos ritos de dado e permanecido como “escravo”.
passagem, em comemoração ou celebração à E a alma dói...
ruptura ousada. A dor da alma que emerge para a consciên
Quando não consegue romper ou, pior cia, quando do saber-se perdido de si mesmo,
ainda, quando a pessoa se descobre prisio- expressa o sofrimento mais profundo do ser

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humano. Não há ninguém que, tendo passado quistá-la. A dor da feiúra, do desajeitado, do
por um processo de reflexão analítica, ignore mutilado, do abortado como pária maldito.
a intensidade dessa dor, dessa condição de Ser a dor de saber que o peso do desafio
ser. Essa dor que dói como dor da alma e dói foi maior do que a coluna podia suportar; a
mais que a dor do corpo, dói no desatino da dor por ceder diante do medo de não agüen-
vida quando o viver carrega-se de expressão tar o sofrimento de ser esmagado; a dor por
de morte. É uma dor incontável, aparente ter evitado o esforço, rendendo-se à humilha
mente intraduzível, que dói intensamente e ção de ser olhado como incapaz, desprezível
traz para a consciência a certeza subjetiva de e sentir vergonha de si mesmo.
ter-se perdido de si. É a dor do sentir-se apar Ah! Como dói a dor da alma!
tado, expulso do paraíso, acusado de infâmias Essa dor que dói em todos, que quando
que ignora ter cometido. É a dor do sentir-se acontece traz em cada um a sensação de sofri
culpado por não ser ou não conseguir ser o mento ímpar, inédito, sem parâmetro de
que a centelha da singularidade reclama comunhão com os outros. A dor que dói
como demanda por atualizar-se. E, nesse parece não ter paralelo no mundo. Seria
momento supremo, a dor é o próprio ser e o necessário que cada um se descobrisse como
ser só se sabe dor, ou seja, é a própria dor. parte integrante da humanidade, carregado de
Ser a dor como abandono, ser a dor como matrizes de dolorimentos da alma, compostas
incongruência, desacerto, incompreensão e de todas as dores do mundo, para encontrar
incompreendido no mundo, solidão na cami salvação. Dessa forma podemos tentar ser
nhada, perda e luto, derrota e fracasso. Ser a analistas, somente dessa forma podemos ser
dor de só ter levado porrada, tropeçado no analisandos.
tapete e caído de cara no chão. Ser a dor de A necessidade de entender e sofirer a dor
não pertencer, de ter sido abusado, vilipen do outro como de si mesmo, e não somente
diado, ofendido, não respeitado. A dor de não como sintoma, mas como símbolo da huma
ser amado, de ser ignorado, humilhado. A dor nidade, reclamante de espaço na consciência,
de ser covarde por não ter aceitado o desafio, traduz a realidade da própria identidade do
a dor de ser pateta, de ser servil, de ser o anti- ser: a condição de ser dor.
herói. A dor de ter tentado tirar a máscara e Dito dessa forma há como compreender a
descobrir ser a própria máscara, como disse dor da alma, que traduz, em última instância,
Fernando Pessoa. (1983). o conflito entre a certeza de que o chamado
Ser a dor do desalento, da desesperança, para um destino individual não pode mais ser
da incompetência, de não conseguir ser o que ignorado e a certeza de que o ser se exauriu
nasceu para ser. Ser a dor de perceber a opor de tal forma que não encontra mais condições
tunidade acontecendo ao seu lado e ter medo de corresponder ao chamado.
de tomar assento na viagem da vida. A dor da E o ser humano sofre quando fica e perma
inveja do sucesso e abastança do outro; a dor nece escravo. Mas sofre também quando
do ciúme pelo carinho que o outro recebe; do rompe e toma-se responsável por si mesmo.
prazer não sentido; da fome não saciada; do O custo da liberdade é muito alto.
corpo não tocado. Nesse caos de sentimentos, vivências, sen
Ser a dor de ver o tempo passar e envelhe sações, o deprimido se sente inútil; a vida não
cer sem ter sido jovem; de arrotar burguesia tem sentido, o desejo de morrer se instaura.
quando o revolucionário ficou preso no cala- Quando o analista se depara com essa situa
bouço da covardia. A dor de desejar a mulher ção, tendo diante de si seu paciente que
do próximo sem ter tido a coragem de con- deseja morrer, que se sente traído pela vida

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sem se dar conta do quanto se traiu, que se desespero, tempo de escravidão poderá,
sente vítima, abandonado, sem compreender entretanto, conter a semente do renascimento
o quanto é algoz e abandonador para si simbólico, anunciando um tempo novo. Se o
mesmo, parece-lhe que as saídas não existem processo de vida povoar-se de busca de
nesse estado de alma. emergências simbólicas decorrentes de regên
O texto da vida escrito e descrito pelos cias arquetípicas tradutoras da sabedoria pro
atos, relações, fracassos, sucessos, abandonos, funda, a possibilidade de refazer a ligação
traições, mutilações, feiúras, azares, sorte, com o Self, de religar-se consigo mesmo
insatisfações, angústias, lutos, fomes, covar- emerge como saída transformadora, como
dias, bravuras, casamentos, separações, acusa renascimento. As regências arquetípicas tra
ções, culpas, crimes, maldições, incompetên- dutoras da sabedoria profunda demandam
cias, porradas, ciúmes, invejas, pobreza, escra uma busca deliberada. Alcançar a compreen
vidão, deveres, heranças, nome e sobrenome, são simbólica, acessar o sentido oculto dessa
etc. retrata o caminho que leva à saúde, ao verdade escondida, como um segredo que se
bem-estar, à realização, à certeza de estar tri recusa a ser revelado, reclama por reflexões e
lhando seu processo de individuação. O questionamentos incansáveis sobre o que até
mesmo texto, porém, pode também retratar o então esteve encoberto.
caminho da doença, da tristeza, da depressão. Em meu entendimento, o mito de Orfeu
O texto da vida relata, retrata e delata! apresenta-se como um presente dos deuses
E, quando a depressão emerge, o tempo para nos conduzir ao entendimento desse
presente detecta um passado terrível e um fenômeno: acessar a sabedoria profunda e
futuro pior. O tempo presente não com alcançar a compreensão simbólica do texto da
preende o passado e não tem competência própria vida. Essa compreensão devolve a
para criar um futuro diferente do provável e criatura a si mesma, refaz a conexão com o
se traduz como o tempo do desespero, o Self, propicia a coniunctio simbólica consigo
tempo da escravidão. O deprimido-escravo é mesmo como um casamento através de Sofia.
uma criamra que se sente fora do tempo: o A coniunctio através de Sofia nos remete a
passado já foi, não é mais; o presente é Orfeu. O herói, depois de longa viagem ao
estreito, sufocante, mortífero; o futuro será, reino de Eetes, na Cólquida, compondo a tri
provavelmente, reedição e reedição de um pulação da nau Argos, comandada por Jasão,
presente que não se transforma. retorna à casa e, para seu desespero, encon
O deprimido é alguém que não tem fé ou tra sua esposa Eurídice morta, picada por uma
não acredita ou confia que algo possa mudar serpente quando perseguida por Aristeu.
em seu futuro, vendo-o sempre como a pro Orfeu, sem Eurídice, sente-se perdido de si
vável reedição do hoje. Sem fé não se atinge mesmo e decide descer aos ínferos para res-
a alegria. (Bonder, 2007). A fé pode estar ou gatá-la do reino dos mortos.
não ligada a um conceito religioso; o que a A viagem de Orfeu ao reino do Hades
define realmente é o acreditar e o confiar, configura um episódio iniciático de seu pro
independentemente de onde isso venha. Isso cesso de individuação. Quem quer que aden
é muito importante, pois a pessoa que perde tre o reino das profundezas haverá de morrer
esses valores deixa de ter a possibilidade de e renascer simbolicamente para um tempo
ser e estar alegre e com freqüência sente-se novo. Quem desce aos ínferos nunca mais
num “túnel sem saída”. No mínimo, ocorre o retorna, pois o que volta é outro ser, é o
marasmo antes do quadro depressivo. renascido. Orfeu canta e encanta a todos
A realidade que permeia o tempo de quantos o ouvem; toca sua lira com a compe-

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tência de mestre, filho insofismável do divino por um logos espiritualizado que promove a
Apoio, deus da música, da arte, da medicina emergência de manifestações simbólicas pro
e da cura. De outra parte. Apoio é o deus da venientes da sabedoria profunda. A instância
ordem, da lei, da justiça, da visão solar. Orfeu sabedoria profunda, conforme descrito no
pode ser considerado um duplo simbólico de texto Mitologia snnbólica (Alvarenga, 2007),
I
m ●
Apoio. Inflado, talvez, pelo poder de sua arte continente de regências arquetípicas traduzi ●
e tendo comovido tanto Perséfone quanto das por figuras míticas, encontra-se em contí . -S'
Hades com sua música, melodia, paixão, nua e constante demanda por atualização.
acaba por conseguir o retorno de Eurídice. Essas estruturas, componentes da instância Orfeu se indivídua
Havia, porém, uma interdição: não olhar para sabedoria profunda, quando atualizadas, através do logos
espiritualizado,
trás, não ficar no passado e, assim se dando, expressam momentos profundamente signifi
quando busca o
retornar permeado pela transformação ritua- cativos do processo de individuação, busca da divino em si
lística. Orfeu já era casado com Eurídice. Ao própria identidade, finalidade precípua de mesmo.
tentar resgatá-la do reino da morte, resgatava quem caminha para toma-se cada vez mais o
a si mesmo, porquanto transformado pela que nasceu para ser.
coniunctio simbólica com a anima. Mas Essas realidades estmturais arquetípicas de
Orfeu titubea; suas dúvidas o fazem olhar busca da própria identidade, traduzidas em
para trás, e sua anima Eurídice perde-se no incontáveis expressões simbólicas, podem ser
reino da morte. entendidas ou traduzidas por perguntas e res
Talvez, tomado pela inflação egóica, Orfeu postas próprias de cada um. Entretanto, pode
não consegue sua coniunctio com a anima. mos usar questões já pertencentes ao coletivo.
Sua juventude não lhe confere competência Para tanto, nos serviremos das quatro ques
para tão grande desafio, e, assim, não confiou tões filosóficas enunciadas por Kant para
no presente que o Self lhe oferecia. O deses melhor compreender o processo de busca de
pero toma conta de nosso herói. Retorna der si, busca de identidade, busca de sentido para
rotado. Não mais toca sua lira, não mais canta, a vida e os desafios a enfrentar na consecução
desdenha Afrodite, deprimi-se e perde-se de da tão demandada liberdade.
si mesmo. Orfeu não desiste, assim conta o As questões kantianas são: “Quem sou eu?
mito. Sua busca continua e seu encontro e Por que estou aqui? Qual o sentido da minha
co7iiuctio consigo mesmo se dará pela busca vida? Qual é minha responsabilidade diante
da sabedoria profunda, busca pelo conheci de tudo que me cerca?”.
mento, pelo religar-se através do logos da Essas quatro questões estão de tal forma
busca espiritual. O herói do tempo novo imbricadas que se torna inviável tentar res
ousou fazer perguntas e buscar respostas que pondê-las individualmente. Cada pergunta,
somente ele poderia responder. Orfeu se indi- quando puder ter uma resposta, se resolverá
vidua através do logos espiritualizado, pela conjunção de dados compostos de
quando busca o divino em si mesmo. O eros aspectos restritos da realidade.
da relação carnal, material concreta com seu A primeira questão reclamará sempre por
grande amor Eurídice transforma-se no amor respostas a cada tarefa cumprida, a cada
de Ágape sagrado com Sofia. (Souza, 2007). decepção vivida, a cada traição consumada. O
A busca por religar-se a si mesmo e tornar- “Quem sou eu?” será sempre a tradução de
se um com o todo poderá se fazer pela com um processo em contínua e constante trans
preensão simbólica, pelo conhecimento, pelo formação, portanto dependente da segunda
encontro com Sofia. Esse processo se realiza, questão: "Por que estou aqui?”.
no meu entender, por uma conduta regida A segunda questão, se respondida por

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inteiro, demanda saber o sentido da própria questões estarão implícitas, mesmo quando
vida, o que implicaria a presença da terceira; não conscientes.
“Qual o sentido da minha vida?”. Atentando para a primeira questão pode
A segunda e a terceira questões são tam mos perceber que para respondê-la precisa
bém complementares, pois o estar aqui con- mos saber de nossas origens, nossa ancestra-
solida-se com o sentido da própria vida. A lidade. Para nos sabermos “Quem sou eu?”
busca de sentido implica a inclusão da perti precisamos buscar nossa pertinência.
nência, o que a faz vinculada à quarta ques O conhecimento de que “decorremos de”
tão: “Qual é minha responsabilidade diante de está implícito na condição de termos e sermos
tudo que me cerca?”. consciência. Ninguém se vê ou se sabe como
A consciência plena da terceira e quarta “sem princípio nem fim”. Todos nos sabemos
questões somente se faz realidade após mui oriundos de alguém, vindos de algum lugar,
tos anos de vida. A quarta questão parece com a certeza da finitude impressa em nosso
emergir em tempos do herói revolucionário, código genético.
mas somente se coagula e se estmtura como A necessidade de resposta para a questão
consciência na segunda metade da vida. “Quem sou eu?” é condição imprescindível
Assim, podemos entender essas quatro para a estmturação de nossa identidade e
questões como uma forma completa de tradu pressuposto básico para o processo de indivi
zir a busca da própria identidade e as instân duação. Sempre que os elementos compo
cias abrangidas para que essa demanda se nentes da origem são negados ao ser
consume. O buscar-se, segundo os referencias humano, como nos adotados, a demanda por
traduzidos por essas quatro questões, é o pró saber quem são os pais, a terra e a família de
prio processo de individuação. origem torna-se imperiosa para a psique. A
A dinâmica da consciência que comporta impossibilidade de encontrar resposta a essa
as questões “Quem sou eu?” e “Por que estou questão traduz-se como sofrimento da alma
aqui?” só é possível se a totalidade da psique sem pertinência.
“souber” que para expressá-las é necessário A primeira questão, se respondida pelo
conter em sua inerência o reclamo por um próprio inquiridor, resulta ou em um “não sei”
sentido da vida. ou na enumeração de atividades ou relações
A dinâmica da consciência que comporta a ou afazeres desenvolvidos, tais como: ser pro
questão “Qual o sentido da minha vida?” só é fessor (atividade); ser filho ou pai ou amante
possível se a totalidade da psique “souber” (relações); ser responsabilidades, encargos...
que para expressá-la é necessário conter em (afazeres).
sua inerência o reclamo pela descoberta da Interessante atentar para o fato de que, se
responsabilidade diante de tudo. a questão for depositada no outro, a resposta
A dinâmica da consciência que comporta a virá com os mesmos predicados: o outro é
questão “Qual é a minha responsabilidade professor ou filho ou pai ou então um sujeito
diante de tudo que me cerca?” só é possível com muita responsabilidade. A resposta
se a totalidade da psique “souber” que para nunca traz a nossa natureza intrínseca. Não
expressá-la é necessário conter em sua ine podemos dizer de nós mesmos “Eu sou
rência o reclamo pela descoberta de “Quem aquele que é”, ou “Eu serei o que serei” - res
sou eu?”. postas dadas a Moisés por Jeová.
A questão “Quem sou eu?” reclamará por A questão “Quem sou eu?” talvez nunca
respostas diferentes em diferentes fases da encontre resposta satisfatória, pois, apesar de
vida. Cada vez que for formulada, as demais o sujeito saber-se um inteiro composto de rea-

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lidades conscientes e inconscientes, somente fas compõe-se como condição para a resposta
se sabe pelos referenciais da consciência. A ã quarta questão.
impossibilidade de uma resposta não exclui a A quarta questão, apesar de ainda não for
presença da pergunta; a resposta, quando mulada explicitamente, sempre esteve pre
vier, falará da origem, das razões do estar no sente como realidade da psique. A realização
aqui-agora, das responsabilidades com o das tarefas coagula a consciência da própria
todo, de funções e tarefas a cumprir. responsabilidade de ser e estar presente no
A segunda questão kantiana - “Por que mundo. A consciência da pertinência traz a
estou aqui?” - pode nos remeter a respostas sensação subjetiva de plenitude, e o saber-se
fatalistas como “a vida me colocou aqui’ ou “quem sou” implica saber-se na relação com
ao cumprimento de tarefas, condição precí- o outro, e responsável pelo outro, parte de si
pua da realização da jornada heróica, das mesmo, natureza própria, a par de ser parte
quais não se tem certeza do porquê de do outro.
cumpri-las. Apesar de não saber a razão de E, finalmente, a quarta questão - “Qual é
cumpri-las, sempre se estará ciente da certeza minha responsabilidade diante de tudo que
de ter que realizá-las, premido, de forma con me cerca?” — responde-se por si mesma, como
sciente ou não, pela demanda da terceira decorrência da consciência de saber-se sendo
questão. em função da relação, da interação, das sin-
O “Por que estou aqui?” consuma-se pelo cronicidades. Saber-se responsável por tudo
cumprimento de tarefas imprescindíveis para a quanto nos cerca confere um sentido gran
emergência de novas questões. Sem o cumpri dioso à vida, transforma a efemeridade dos
mento das tarefas não haverá transformação dias em capítulos substanciais do corpo sim
suficiente para formular a terceira peigunta. bólico de ser e estar aqui, agora.
A terceira questão da busca de si mesmo, O fechamento de um ciclo de questões nos
traduzida por “Qual o sentido da minha remete ao próximo, quando retomamos a pri
vida?”, revela a necessidade de encontrar a meira questão -“Quem sou eu?” -, com o que
condição prospectiva de tudo quanto é reali poderemos encontrar referenciais ímpares da
zado pelo cumprimento das tarefas. A aquisi própria identidade, até então nunca intuídos.
ção de uma consciência reflexiva pede um O propósito deste texto define-se pela con
futuro, com o que o cumprimento das tarefas dição: o perder-se de si mesmo, fundamento
deixa a condição da obrigatoriedade para se do processo depressivo, encontra respostas,
tomar uma escolha, uma opção. Inegavel num segundo momento da vida, pela via do
mente, por meio dessas escolhas é que pode conhecimento, por meio de um logos espiri
mos criar o futuro ou modificar o futuro que tualizado e veiculado pela sabedoria pro
se cumpre como decorrência de “escravidão”, funda. Se ousarmos fazer as perguntas have
da ausência de liberdade, da depressão. A remos de buscar as respostas. Não há como
condição de poder optar decorre certamente, viver um processo de análise sem que essa
cada vez mais, da estruturação da consciência busca órfica se consume.
reflexiva, com o que o cumprimento das tare¬ Recebido em-, 19/6/07
Revisão: 9/8/07

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SINOPSE ABSTRACT

A depressão, no sentido simbólico, é a Depression, in the symbolic sense, is the


melhor expressão da dor da alma que se per best expression of the pain of the soul bereft
deu de sua própria natureza. A alma como of its own nature. The soul as divine breath
sopro divino dá a condição de a criatura affords the means for the creature to become
fazer-se humana, ao atualizar as demandas human, renewing and calling for transforma-
para se transformar e trair o preestabelecido. tion and betrayal of the pre-established.
A depressão pode ser vista como um estado Depression may be viewed as a State of impri-
de aprisionamento. Os seres vivos estão sem sonment. The living being is ever in transfor-
pre em transformações físicas, psíquicas, mation: physical, psychic, socio-cultural and
socioculturais e noéticas. Quando as transfor noetic. When transformations do not find
mações não encontram espaço para se room for expression, suffering arises. The
expressar, surge o sofrimento. A solução seria solution would be mpture and this not hap-
romper e, quando não se consegue, a depres pening, depression ensues. This work propo-
são surge. A busca da possibilidade de refazer ses the search of symbolic emergences resul-
a ligação com o Self poderá ser feita por meio ting from archetypal translators of Deep Wis-
de um processo via logos espiritualizado, com dom, as a possibility of reconstructing the link
o que se mobiliza a emergência de símbolos with the Self The myth of Orpheus is used to
decorrentes das regências arquetípicas da elucidate the loss of coniunctio with the
sabedoria profunda. O mito de Orfeu é usado anima and the second search of one’s self
para explicitar a perda da coniunctio com a through deep wisdom. This search may be
anima e a segunda busca de si mesmo por translated as well by the Kantian questions:
meio da sabedoria profunda. Essa busca pode “Who am I? Why am I here? What is the mea-
ser traduzida também pelas questões kantia- ning of my life? What is my responsibility in
nas: “Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual face of all that surrounds me?”. The conclu-
o sentido da minha vida? Qual é minha res sion defines the condition of understanding
ponsabilidade diante de tudo que me cerca?”. that the very losing of one’s self, basis of
A conclusão sobre o texto define a condição depression, finds answers, at a second
do entender que o perder-se de si mesmo, moment in life, through knowledge, via
fundamento da depressão, encontra respos spiritualized logos and conveyed by deep
tas, num segundo momento da vida, pelo wisdom.
conhecimento via logos espiritualizado e vei
culado pela sabedoria profunda.

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REÍFERÊNCIAS

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