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Ray Bradbury
Título original: The golden apples of the sun
Tradução: Sérgio Flaksman
Capa: Frank Frederico Urban
Círculo do Livro
Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap
1. A Sirene do Nevoeiro
2. O pedestre
3. A bruxa de abril
4. Pioneiros
5. As frutas do fundo da fruteira
6. O menino invisível
7. Máquina de voar
8. O assassino
9. O papagaio de papel dourado, o vento prateado
10. Até nunca mais ver
11. O bordado
12. O grande jogo entre brancos e negros
13. Um som de trovão
14. O vasto mundo lá fora
15. Casa de força
16. En la noche
17. Sol e sombra
18. A pastagem
19. O lixeiro
20. O grande incêndio
21. O eterno adeus
22. Os frutos dourados do sol
1 . A S ire ne d o Ne vo e iro
2. O ped estre
3. A bruxa de abril
4 . P io n eiro s
5 . A s f r u ta s d o f u n d o d a fr u t e i r a
6. O menino invisível
7. Máquina de voar
11 . O b o r d a d o
Por volta das nove horas, o vale estava cheio de grilos que
pulavam no ar azul e perfumado, enquanto a fumaça erguia-se em
espirais para o céu.
Cora, cantando para seus potes e panelas enquanto os areava,
viu seu rosto enrugado refletir-se no fundo de cobre de uma panela,
fresco e bronzeado. Tom rosnava como um urso sonolento diante do
mingau, enquanto o canto da mulher esvoaçava à sua volta como um
pássaro preso em uma gaiola.
— Alguém está muito feliz — disse uma voz.
Cora transformou-se em uma estátua. Com o canto dos olhos,
viu uma sombra atravessar a sala.
— Sra. Brabbam? — perguntou Cora a seu pano de prato.
— Eu mesma! — E lá estava a viúva, arrastando seu vestido
de chitão pela poeira quente, levando suas cartas na mão, que mais
parecia uma pata de galinha. — Bom dia! Estou vindo de minha
caixa de cartas. Recebi uma carta de meu tio George, de Springfield,
que é uma beleza! — A Sra. Brabbam cravou em Cora um olhar que
parecia uma agulha de prata.
— Faz quanto tempo que a senhora não recebe uma carta do
seu tio?
— Todos os meus tios morreram — não foi propriamente
Cora, mas sua língua, quem mentiu. Quando chegasse a hora, Cora
sabia, seria só a língua quem precisaria comungar e confessar seus
pecados na terra.
— É realmente ótimo receber cartas. — A Sra. Brabbam
sacudiu sua correspondência no ar da manhã, como se suas cartas
formassem uma canastra real.
Sempre enfiando o dedo ria ferida. Há quanto tempo isso
vinha acontecendo, pensou Cora, a Sra. Brabbam e seus olhos
sorridentes, falando alto da correspondência que recebia, querendo
dizer que ninguém mais sabia ler nas redondezas? Cora mordeu os
lábios e quase lhe atirou uma panela, mas pousou-a na pia, rindo. —
Esqueci de contar-lhe. Meu sobrinho Benjy está chegando; os pais
dele não estão bem de vida e ele chega hoje para passar o verão
conosco. Ele vai me ensinar a escrever. E Tom vai fazer uma caixa
de correio para nós, não vai, Tom?
A Sra. Brabbam apertou suas cartas com força. — Mas não é
maravilhoso? Que mulher de sorte! — E subitamente não havia mais
ninguém na porta. A Sra. Brabbam havia ido embora.
Mas Cora seguiu-a. Porque naquele instante divisara algo
como um espantalho, algo como um raio da luz pura do sol, algo
como uma truta nadando rio acima, pulando a cerca do quintal. Viu
uma enorme mão acenando e pássaros levantando vôo da macieira,
aterrorizados.
Cora correu pelo caminho, deixando o mundo para trás. —
Benjy!
Correram um para o outro como os pares de um baile de
sábado, deram-se os braços, apertaram-se e valsaram. — Benjy!
Cora olhou rapidamente para a orelha do rapaz.
Sim, lá estava o lápis amarelo.
— Benjy, seja bem-vindo!
— Que é isso, tia? — Afastou-a de si, segurando-a pelos
braços. — O que é isso, tia, a senhora está chorando!
— Este é o meu sobrinho — disse Cora.
Tom levantou o rosto franzido de seu mingau de farinha de
milho.
— Muito prazer — sorriu Benjy.
Cora segurava seu braço com força para não deixá-lo
desaparecer. Sentiu uma fraqueza, uma vontade de sentar-se,
levantar-se, correr, mas apenas seu coração batia mais depressa, e ela
ria em momentos estranhos. Agora, de um momento para outro, as
terras distantes se aproximaram; aqui estava esse rapaz alto,
iluminando a sala como uma tocha de pinheiro, esse rapaz que tinha
visto cidades e mares, e que tinha estado em muitos lugares quando
as coisas corriam melhor para seus pais.
— Benjy, temos ervilhas, milho, toucinho, mingau, sopa e
feijão. O que você quer comer?
— Espere aí — disse Tom.
— Fique quieto, Tom, o rapaz está fraco de fome depois de
andar tanto. — Voltou-se para o rapaz; — Benjy, conte-me tudo
sobre você. Você foi mesmo à escola?
Benjy tirou os sapatos. Com um pé descalço, traçou uma
palavra nas cinzas da lareira.
Tom franziu a testa. — O que quer dizer?
— Quer dizer — disse Benjy — C e O e R e A. Cora.
— É meu nome, Tom, veja só! Oh, Benjy, que bom que você
sabe mesmo escrever, meu filho. Uma vez, há muito tempo, esteve
aqui um primo que dizia que sabia soletrar qualquer coisa, até de trás
para a frente. Por isso, nós demos montes de comida para ele e ele
escreveu muitas cartas, mas nós nunca recebemos resposta. Depois
de algum tempo, descobrimos que ele só sabia escrever o bastante
para mandar cartas para a seção de correspondência extraviada. Meu
Deus, Tom bateu no rapaz até achar que tinha descontado os dois
meses de comida, e ele saiu correndo pela estrada com Tom atrás,
batendo nele com um pau de cerca.
Riram nervosamente.
— Eu sei escrever direito — disse o rapaz, com ar sério.
— É só isso que queremos saber. — Cora passou-lhe uma
fatia de torta de amoras. — Vamos, coma.
Por volta de dez e meia, com o sol alto no céu, depois de ver
Benjy devorar pratos e mais pratos de comida, Tom deixou
intempestivamente a cabana, enfiando o boné na cabeça. — Vou sair
e derrubar metade da floresta, por Deus! — disse com raiva.
Mas ninguém ouviu. Cora estava sentada sem respirar,
enfeitiçada. Olhava para o lápis atrás da orelha de Benjy.
Vira-o apalpá-lo casualmente, com ar preguiçoso e indiferen-
te. Oh, não seja tão descuidado, Benjy, pensou. Trate-o como se trata
um ovo de pintassilgo. Ela queria tocar o lápis, mas há muitos anos
não pegava em um lápis porque isso a fazia sentir-se tola, e depois
deixava-a zangada e finalmente triste. Torcia as mãos no colo.
— Tem papel em casa? — perguntou Benjy.
— Oh, céus, não pensei nisso — gemeu Cora, e as paredes da
sala escureceram. — O que vamos fazer?
— Acontece que eu trouxe papel. — Tirou um bloco de sua
sacola. — Quer escrever uma carta para algum lugar?
Ela deu um sorriso desmesurado. — Quero escrever uma
carta para... para... — seu rosto desmanchou-se. Olhou à volta,
procurando alguém na distância. Olhou as montanhas ao sol da
manhã. Ouviu o mar batendo em praias amarelas a mil quilômetros
dali. Os pássaros voavam por sobre o vale, voltando para o norte, a
caminho de inúmeras cidades indiferentes ao que ela precisava
naquele instante.
— Ora, Benjy, só agora é que pensei nisso. Não conheço
ninguém no mundo lá fora. Só minha tia. E se eu escrevesse para ela,
ela iria sentir-se muito mal, a cem quilômetros daqui, tendo que
encontrar alguém para ler a carta para ela. Ela é muito orgulhosa, ia
ficar nervosa pelos próximos dez anos, com a carta na prateleira da
lareira de casa. Não, para ela não. — Os olhos de Cora desviaram-se
das montanhas e do oceano invisível. — Para quem, então? Para
onde? Alguém. Eu simplesmente preciso receber cartas.
— Espere aí. — Benjy pescou uma revista barata no bolso de
seu casaco. Na capa vermelha, uma moça nua fugia gritando de um
monstro verde. — Aqui há todo tipo de endereços.
Folhearam juntos a revista: — O que é isso? — Cora indicou
um anúncio.
— "RECEBA GRATUITAMENTE O PLANO DE
EXERCÍCIOS MAIS MÚSCULOS. Envie seu nome e endereço" —
leu Benjy — "para a Seção M-3, e receba seu Mapa de Saúde grátis!"
— E este aqui?
— "Detetives para investigações secretas. Detalhes grátis.
Escreva para a Escola de Detetives G. D. M."...
— Tudo grátis. Muito bem, Benjy. — Olhou para o lápis na
mão dele. Ele aproximou a cadeira. Ela ficou olhando enquanto ele
girou o lápis no dedo, fazendo pequenos ajustes. Viu-o morder
delicadamente a ponta da língua. Viu-o apertar os olhos. Conteve a
respiração. Inclinou-se para a frente. Apertou os próprios olhos e
mordeu a língua.
Agora, agora Benjy levantou o lápis, lambeu-o, e pousou-o
no papel.
Pronto, pensou Cora.
As primeiras palavras. Formaram-se vagarosamente no
incrível papel.
Prezada Companhia Mais Músculos
Caros senhores
A manhã desvaneceu-se no vento, a manhã escoou pelo
riacho, a manhã voou com uns corvos, e o sol ardia no teto da
cabana. Cora não se voltou quando ouviu alguém raspar a porta
quente e ensolarada. Tom estava lá, mas não estava no mesmo
mundo; diante de Cora havia apenas uma série de páginas
manuscritas, um lápis murmurante, e a mão de Benjy compondo uma
caligrafia caprichada. Cora movia a cabeça, acompanhando cada o,
cada l, cada pequena colina do m; a cada ponto sua cabeça bicava
como a de uma galinha; cada traço do t fazia sua língua passar pelo
lábio superior.
— É meio-dia e eu estou com fome! — disse Tom, quase
junto dela.
Mas Cora agora era uma estátua, fitando o lápis como se
acompanhasse um caramujo que ia deixando um rastro excepcional
sobre uma pedra chata numa manhã bem cedo.
— É meio-dia! — tornou a gritar Tom. Cora ergueu os olhos,
espantada.
— Ora, parece que foi há apenas um momento que nós
escrevemos para aquela Companhia de Coleções de Moedas da
Filadélfia, não é mesmo, Benjy? — Cora sorriu um sorriso vivo
demais para uma mulher de cinqüenta e cinco anos. — Enquanto
você espera sua comida, Tom, será que não podia fazer a caixa de
cartas? Maior que a da Sra. Brabbam, por favor.
— Vou pregar uma caixa de sapatos no poste.
— Tom Gibbs. — Ela se levantou alegremente. Seu sorriso
dizia que era melhor andar depressa, trabalhar logo e acabar logo. —
Eu quero uma caixa de cartas grande e bonita. Toda branca, para
Benjy pintar nosso nome em letras pretas. Eu não quero receber
minha carta de verdade numa caixa de sapatos.
E assim foi feito.
Benjy escreveu na caixa, quando ficou pronta: SRA. CORA
GIBBS, enquanto Tom rosnava atrás dele.
— O que está escrito?
— SR. TOM GIBBS — disse Benjy calmamente, sem parar
de pintar.
Tom ficou olhando para a caixa e piscando os olhos em
silêncio durante um minuto e finalmente disse: — Ainda estou com
fome. Alguém precisa acender o fogo.
16. En la noche
1 8 . A p a s ta g e m
1 9 . O lix eiro
FIM