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Copyright © 2010 Thaisa Frank

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e fatos são produtos da
imaginação da autora ou empregados num contexto fictício. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL
Heidegger's Glasses

PREPARAÇÃO
Clarissa Peixoto

REVISÃO
Milena Vargas

REVISÃO DAS CARTAS EM FRANCÊS, ESPANHOL, ITALIANO E ALEMÃO


Ana Resende

REVISÃO DE EPUB
Juliana Pitanga

GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca

E-ISBN
978-85-8057-307-7

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.


Rua Marquês de São Vicente, 99/3o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
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Este livro é dedicado à memória de
Stanley Adelman — datilógrafo experiente,
amigo de inúmeros escritores

E a DS, Fred e Ike Dude


SUMÁRIO

Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídia sociais
Dedicatória

Notas da curadora
Prólogo
As ordens
A barganha
A Floresta Negra
O Anjo de Auschwitz
Os fugitivos
O túnel
O baú

Sobre a autora
NOTAS DA
CURADORA
Essa exposição de cartas data, aproximadamente, de 1942 até o
final da Segunda Guerra Mundial. A maioria foi escrita sob coerção,
fazendo parte de um programa chamado Briefaktion, ou Operação
Postal. Algumas são cartas dos guetos ou bilhetes trocados entre
prisioneiros nos campos de concentração. As cartas da Operação
Postal esclarecem as estratégias alemãs durante a Segunda Guerra
Mundial que geralmente são ofuscadas por eventos mais históricos
e dramáticos.

OPERAÇÃO POSTAL OU BRIEFAKTION

O Briefaktion foi criado para tranquilizar os parentes ansiosos em


relação aos deslocamentos e deportações de seus familiares, assim
como para dissipar os rumores sobre a Solução Final, que o Reich
queria manter em sigilo a qualquer custo. Essas cartas eram, em
geral, escritas assim que os prisioneiros chegavam — normalmente,
antes de serem levados até um bosque idílico ou alamedas de
pinheiros que camuflavam as câmaras de gás. As cartas não eram
enviadas diretamente a seus destinatários, mas a partir de um
escritório situado em Berlim chamado Associação dos Judeus, o
que tornava impossível saber suas origens. As respostas eram
endereçadas mais uma vez a Berlim e raramente eram entregues; a
maioria não tinha mesmo como ser lida, já que grande parte dos
destinatários havia sido assassinada. Todo o sistema resultou em
enormes quantidades de correspondências nunca lidas, algumas
das quais foram recuperadas após a guerra.

O SOBRENATURAL E A SOCIEDADE THULE


Era de conhecimento geral que Hitler consultava astrólogos.
Bem menos conhecido é o fato de que o Terceiro Reich depositava
surpreendente confiança no mundo sobrenatural para estratégias
relacionadas à guerra e à Solução Final. Um grupo chamado Die
Thule-Gesellschaft (Sociedade Thule), composto de místicos,
médiuns, membros do Reich e homens selecionados da SS reunia-
se regularmente para canalizar os conselhos do plano astral. A
Sociedade Thule recebeu este nome com base no conceito de
Ultima Thule, de Lanz von Liebenfels, um local extremamente frio
onde viveria uma raça de super-homens. Hitler não comparecia a
essas reuniões e proibiu Liebenfels de publicar seus livros assim
que alcançou o poder, provavelmente para ocultar a própria
fascinação pela Ultima Thule. Heinrich Himmler (que supostamente
carregava um exemplar do Bhagavad-Gita consigo para todo lado, a
fim de abrandar sua culpa em relação à guerra) era o membro mais
proeminente da Sociedade Thule. As mensagens consideradas
oriundas do plano astral eram incorporadas às estratégias do Reich.
Embora evitasse essa Sociedade, Hitler confiava no apoio e nos
conselhos de inúmeros místicos, astrólogos e clarividentes. Dentre
eles, o mais famoso é Erik Hanussen, que ensinou Hitler a
hipnotizar as multidões.

JOSEPH GOEBBELS E O PARADOXO DA PROPAGANDA

Em trinta de abril, pouco antes de cometer suicídio, Hitler


nomeou Goebbels chanceler do Reich. Mas Goebbels manteve esse
cargo apenas por um dia. Quando os russos recusaram um tratado
que era favorável ao Partido Nazista, Goebbels acompanhou Hitler
no suicídio, juntamente com a esposa e seus seis filhos. Com a sua
morte, o Regime Nazista perdia a sua voz. Goebbels era um orador
brilhante — engraçado, sarcástico e imparcial. Seu lema mais
famoso era: Se quiser contar uma mentira, conte uma grande
mentira. Goebbels foi muito hábil ao esconder a confiança do Reich
no ocultismo — uma confiança que não compartilhava. Ele
desdenhava abertamente da obsessão de Himmler pelo
sobrenatural, e pode ter sido uma influência fundamental para
dissuadir Hitler de se unir à Sociedade Thule. No entanto, teve um
êxito bem inferior ao tentar esconder a Solução Final. Muitos
alemães foram convencidos pela propaganda de Goebbels; outros,
contudo, sabiam sobre os campos de concentração, como fica
evidente se considerarmos a participação dos alemães na
Resistência e a ação de membros do Partido Nazista que utilizavam
sua influência para salvar judeus, assim como o Partido da Rosa
Branca, um grupo radical de estudantes que distribuía panfletos a
respeito dos campos de concentração.

MARTIN HEIDEGGER E A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Entre os alemães que negavam ter qualquer conhecimento sobre


a Solução Final estava o filósofo Martin Heidegger — uma figura
enigmática do regime nazista. Em 1933, tornou-se membro do
partido e foi nomeado chanceler da Universidade de Freiburg. Um
ano depois de ter assumido o cargo, ele se demitiu. Alguns
membros do partido, que viam Heidegger como um rival, ficaram
ressentidos com a nomeação para a chancelaria. Outros
consideravam sua filosofia uma bobagem. E o próprio Heidegger
acreditava que a Alemanha estava traindo a promessa de retornar
às suas raízes culturais. Suas críticas ao partido eram vociferantes;
por outro lado, ele nunca renunciou ou denunciou o partido, nem
sequer numa evasiva entrevista póstuma publicada pela Der
Spiegel.
A filiação de Heidegger ao partido tem gerado acaloradas
discussões sobre se haveria doutrinas nazistas em sua filosofia.
Alguns filósofos sentem que existe clara evidência de que sim e,
com frequência, referem-se à famosa conversa com Karl Löwith
antes da guerra, na qual ele afirmou que uma de suas ideias mais
importantes (historicidade) era a base de seu envolvimento político.
Outros filósofos pensam que Heidegger foi incapaz de integrar sua
filosofia e sua política, e veem demasiado revisionismo nas opiniões
que ele exprimia. Heidegger é ainda reconhecido como uma grande
influência no pensamento filosófico moderno, assim como na poesia
e na arquitetura. Ironicamente — considerando sua filiação com as
opiniões produzidas pelo chauvinismo —, ele levantou questões
convincentes sobre a natureza da existência, a natureza do instinto
de rebanho e a natureza do próprio pensamento. Ele também
escreveu e discursou com grande sofisticação sobre o impulso
humano para evitar a consciência da mortalidade. Mais de dez anos
antes do Reich chegar ao poder, os óculos do próprio Heidegger
foram um dos vários catalisadores para uma revelação sobre esse
aspecto da existência humana, e ele os mencionou em sua obra
seminal, Ser e tempo.

Zoë-Eleanor Englehardt, curadora convidada


Museu da Tolerância, cidade de Nova York
PRÓLOGO
Em 1920, durante um inverno como todos os outros, o filósofo
Martin Heidegger olhou para seus óculos e sentiu-se alheio ao
mundo familiar. Ele estava em seu gabinete em Freiburg, mais de
cento e sessenta quilômetros ao sul de Berlim, olhando pela janela
os galhos secos e espessos de um olmo. Sua esposa encontrava-se
de pé a seu lado, servindo uma xícara de café. Os raios de sol
varavam a cortina de voile, lançando fachos sobre sua coroa de
tranças louras, sobre a mesa escura e a xícara branca. De repente,
um estorninho bateu contra a vidraça da janela e caiu lá fora.
Heidegger pegou seus óculos para observar e, ao se inclinar,
derramou o café. Sua esposa limpou a mesa com o avental, e ele
limpou óculos com um lenço. Inesperadamente, ele olhou para as
finas hastes douradas dos óculos e as duas lentes e não soube
dizer para que serviam. Como se nunca tivesse visto um par de
óculos ou não soubesse como eram usados. Então, o mundo todo
se tornou estranho: a árvore era uma confusão de formas, a janela
manchada de sangue, uma figura oblonga flutuante, e, quando outro
estorninho passou voando, ele viu somente a escuridão em
movimento.
Martin Heidegger nada mencionou à esposa. Juntos, eles
limparam tudo, enquanto resmungavam. Ela trouxe mais café e saiu
do gabinete. Heidegger esperou que o mundo voltasse a seu lugar
e, finalmente, o tique-taque pertencia de novo ao relógio, a mesa se
tornou uma mesa e o chão voltou a ser algo sobre o qual se pode
caminhar. Em seguida, ele foi até sua mesa e escreveu sobre esse
instante para um colega filósofo chamado Asher Englehardt.
Embora os dois se encontrassem com frequência para um café,
gostavam de escrever um ao outro sobre esses momentos
inusitados: o martelo tão frouxo que sua cabeça sai voando como
um passarinho. O quadro que está torto a ponto de fazer o cômodo
parecer sinistro. A maçã no meio da rua que nos faz esquecer para
que servem as ruas. A coisa que parece perto porque está sendo
vista de longe. A impressão de não estar em casa. O mundo
tornando-se alheio a si mesmo.
Alguns dias depois, Asher Englehardt respondeu-lhe em sua
caligrafia familiar e apressada, repreendendo Heidegger por sempre
agir como se a sensação fosse nova. “Não há nada de substancial
com que possamos contar, Martin”, ele escreveu. “Todas essas
xícaras e óculos e o que mais as pessoas têm ou fazem são arrimos
que nos protegem de um mundo que surgiu muito antes de alguém
saber para que serviam os óculos e que continuará por muito tempo
após não haver mais ninguém para se lembrar deles. É um mundo
estranho, Martin. Mas não podemos jamais ficar alheios a ele,
porque vivemos nele o tempo todo.”
Asher acreditava nisso resolutamente e continuou acreditando
vinte anos depois, quando ele e seu filho foram retirados de sua
casa em Freiburg e deportados em vagões de gado para Auschwitz.
Droga Mamo,

Czy mogłabyś przynieść mi buty które trzymałam w kredensie?


Wiem że będę je potrzebować do podróży.

Kocham,
Mari

C
Querida mamãe,

Pode me trazer os sapatos que eu guardo no armário? Sei que


precisarei deles para a viagem.

Com amor,
Mari
AS ORDENS
Quase um quarto de século após a revelação de Heidegger sobre
seus óculos, uma mulher com uma fita de seda vermelha no pulso
dirigia um jipe capturado do exército americano até uma aldeia no
norte da Alemanha. A energia elétrica havia sido cortada na aldeia e
o posto avançado — uma construção de madeira num local afastado
no campo — teria facilmente passado despercebido, se ela já não
tivesse ido muitas outras vezes até lá no escuro. Era uma noite
extremamente fria de inverno, a neve caía em seu rosto enquanto
caminhava pelo campo. Ela parou para limpar os olhos e observou o
céu. Estava deslumbrante, muito estrelado, tão vasto que parecia
cinzelado em diferentes galáxias. Mesmo àquela altura da guerra,
ela se sentia feliz. Acabara de levar clandestinamente três crianças
para a Suíça, enganando um guarda. Chamava-se Elie Schacten.
Elie olhou para os cães de caça de Órion e os dispersou em
pontos luminosos — flores de gelo no céu escuro. Depois, bateu
duas vezes numa porta encoberta. A porta se abriu, a mão de um
oficial da SS a puxou para dentro e ele a beijou na boca.
— O que aconteceu? — perguntou ele. — Você devia ter
chegado ontem.
— Tive um problema com a embreagem — explicou Elie. —
Você devia ficar contente por eu estar aqui agora.
— Eu estou contente — disse o oficial. — Mas acho que você
está aprontando alguma coisa, minha graciosa amiguinha.
— Eu não sou sua graciosa amiguinha — falou Elie, soltando-se
dele e dando uma olhada ao redor. — Como está o bazar?
— Você não vai acreditar no que conseguimos — disse o oficial.
— Cinco quilos de chocolate holandês. Conhaque francês. Estátuas
de um castelo austríaco.
Eles estavam falando do posto avançado — uma cabana de
pinheiro sustentada por vigas tortas. Havia uma janela comprida
com cortinas pretas e o local estava apinhado de objetos
provenientes das invasões a lojas e residências. Também estava frio
ali. O vento soprava pelas rachaduras da parede e o fogão a lenha
estava vazio. Elie apertou sua echarpe e avançou pelo labirinto de
relógios, livros, casacos, armários e duas cadeiras de oculista até
um sofá de veludo. O oficial arrastou oito malas abarrotadas de
cartas e se curvou tão próximo de Elie que ela sentiu sua
respiração. Soltando os cabelos, ela protegeu o rosto.
— A rosa híbrida não tem aparecido ultimamente — disse o
oficial, referindo-se ao perfume dela.
Ele se inclinou ainda mais e tocou os cachos louros de seu
cabelo.
Elie sorriu e começou e ler cartões-postais e cartas. A imensa
quantidade sempre a surpreendia. A maioria era da Operação
Postal — cartas escritas sob coerção nos campos de concentração
ou nos guetos e, com frequência, apenas momentos antes de o
autor ser levado para um vagão de gado ou para uma câmara de
gás. A maior parte era escrita em papel fino e frágil, e trazia um
carimbo vermelho sobre os endereços dos parentes. As instruções
no carimbo eram: “Encaminhar automaticamente todas as
correspondências judaicas para: 65 Berlim, Iranische Strasse.”
Elie examinou-as sem ler — seu único propósito era identificar o
idioma. Ela tentava ignorar a repulsa — nunca parava para olhar o
nome do autor ou o que estava escrito. Às vezes, enquanto tentava
dormir, frases dessas cartas passavam por sua mente — mentiras
apressadas e aterrorizadas, exaltando as condições dos campos de
concentração. Mas examinando-as rapidamente, não percebia nada
— exceto quando via a enorme mala postal marcada com um A de
Auschwitz. Além de ser uma mala maior do que as outras, também
parecia a mais abarrotada do mundo, como se viesse de outro
universo. Elie sempre tinha a impressão de ter chegado com aquela
mala, e fez uma pausa antes de ler a primeira carta.
— O que houve? — perguntou o oficial.
— Só estou cansada — respondeu ela.
— Só isso?
O oficial, que adorava uma fofoca, sempre tentava se intrometer
no passado de Elie, pois, naquele tempo, as pessoas caíam de
paraquedas no mundo, como se tivessem acabado de nascer, com
documentos novos para prová-lo, e ela não era diferente — a filha
de católicos poloneses transformados em alemães por Goebbels.
Sua aparência correspondia a todos os critérios arianos. Seu
sotaque alemão era perfeito.
Elie olhou para alguns rolos de lã enfiados entre duas bicicletas.
Depois voltou a arrumar as cartas. O oficial acendeu um cigarro.
— Você não vai acreditar — disse ele —, mas um judeu
conseguiu fugir de Auschwitz. Passou pela cerca com a benção do
Comandante.
— Não acredito — falou Elie.
— Todos já sabem no Reich — prosseguiu o oficial. — Um
homem da SS foi até o Comandante e disse que o sujeito possuía
um laboratório, e o Reich precisava usá-lo na guerra, portanto era
preciso que ele saísse para assinar alguns papéis. Então o
Comandante concordou e agora não conseguem encontrar o
laboratório ou o nome do homem da SS. Já estão achando que ele
nem existe. Eles o chamam de “Anjo de Auschwitz”.
— Meu Deus! — exclamou Elie.
— Isso é tudo que você tem para dizer? Porra, é um escândalo.
E Goebbels não vai fuzilar o Comandante. Disse que não devem
incomodá-lo.
Elie brincou com os fios de sua fita vermelha em volta do pulso.
Não podia tirar a fita porque, junto aos documentos especiais, ela
lhe dava liberdade incondicional para viajar e anistia em caso de
estupro, saque ou assassinato. O oficial se aproximou e se ofereceu
para desemaranhar os fios. Um deles tinha uma águia de metal na
ponta — tão pequena que o bico era do tamanho do buraco de uma
agulha. Ele parou e admirou a habilidade artesanal.
Ela o deixou desemaranhar a fita e contou os objetos encostados
nas paredes: cinco espelhos de moldura dourada, quinze máquinas
de escrever, um globo, sete relógios, oito mesas, rolos de lã de
caxemira branca, uma tigela, doze cadeiras, um manequim de
alfaiate, cinco abajures, inúmeros casacos de pele, baralhos, caixas
de chocolate e um telescópio. Um bazar, pensou ela. O Reich pode
saquear de tudo, menos o calor.
— Preciso voltar — disse ela, levantando-se. — Se eu perceber
algum código da Resistência, avisarei.
— Passe a noite aqui — pediu o oficial, batendo no sofá
confiscado. — Não encostarei a mão em você. Prometo.
— Você não tem só mãos — disse Elie.
— Meus pés são seguros também — disse o oficial. Ele apontou
para o buraco em uma de suas botas e ambos riram.

C
Como sempre, Elie aceitou a oferta de levar o que quisesse do
posto avançado — desta vez, quatorze rolos de lã, um relógio de
pêndulo, o telescópio, o globo, dez casacos de pele, o manequim de
alfaiate, dois espelhos dourados, três caixas de baralho e meio quilo
de chocolate.
Ela também aceitou quando ele se ofereceu para carregar tudo
aquilo através do campo, onde a neve ainda estava macia e o céu
ainda prometia um espetáculo de luz. Elie deixou o oficial beijar sua
boca uma só vez e abraçá-la por mais tempo do que ela gostaria.
Depois, saiu dirigindo pelas profundezas dos bosques do norte da
Alemanha, onde os pinheiros escondiam a lua.
A certa altura, uma menina descalça cruzou a estrada correndo.
Elie não se surpreendeu; no estágio em que se encontrava a guerra,
as pessoas surgiam de repente, como animais. Mas ela não podia
parar, nem sequer para oferecer um pedaço de pão. Havia tantos
guardas quanto árvores. E um único resgate já era suficientemente
perigoso.
Os pinheiros foram ficando mais espessos; o vento soprava
através do teto de lona do jipe, e o medo que Elie tinha do escuro só
aumentou, assim como o pavor de estar sendo seguida.
Concentrou-se na estrada, como se sua única missão fosse dirigir
para sempre.
Além de seus temores, havia o espanto causado pelo Anjo de
Auschwitz. Elie sempre encontrava boas rotas de fuga para as
pessoas — esgotos nos guetos, túneis sob as fábricas. Mas nunca
contemplara uma fuga de um campo de concentração. Ela se
perguntou se o anjo era um rumor. Que maneira melhor de irritar o
Reich do que sugerir que um lugar como Auschwitz não era
inviolável?
Perto das três da manhã, alcançou uma estrada de terra, e o
veículo começou a sacudir, fazendo soar o tique-taque do relógio de
pêndulo. A fita no pulso de Elie roçava contra a alavanca de marcha,
lembrando-lhe que estava acorrentada ao Reich. Depois de olhar
pelo retrovisor e certificar-se de que não estava sendo seguida, ela
fez uma curva fechada, entrando numa clareira onde outro jipe e
dois Kübelwagens estavam estacionados perto de uma cabana de
telhado arredondado. A clareira tinha uma torre de observação na
entrada e um poço atrás, perto do bosque.
Um homem alto de farda e suéter verde amarrotado correu em
sua direção e a abraçou. Em seguida, ele a ajudou a descarregar o
jipe. Levaram o telescópio, o manequim de alfaiate, os rolos de lã,
os casacos, os espelhos, o chocolate, os baralhos, o relógio, o
globo, as malas com as cartas e uma cesta de alimentos para
aquele trailer. No interior, havia um estrado e uma mesa de madeira
rústica. Do lado oposto à porta, uma lareira. À esquerda, outra porta
em arco, que dava para uma rampa. Elie e o oficial arrastaram tudo
pela rampa até um exíguo poço e carregaram o elevador. Ele se
inclinou para beijá-la, mas ela sacudiu a neve do casaco e se
afastou, os pensamentos tomados pelo anjo.
— O que houve? — perguntou ele. — Só metade de você gosta
de mim?
— Tudo em mim gosta de você — respondeu Elie. — Estou só
guardando a outra parte para mais tarde.
C
Caro Luigi,

Foi uma viagem tranquila, ainda que longa.


É lindo por aqui. Venha me encontrar.

Com amor,
Rosaria
O oficial foi para o quarto deles — quatro metros e meio acima da
rampa — e Elie seguiu pelo pequeno poço, descendo quase dez
metros. O elevador do poço era uma pequena gaiola abarrotada, e
ela ficou aliviada quando conseguiu girar a maçaneta em forma de
losango. Dava para um caminho de pedras rosadas iluminado pelas
lâmpadas a gás. Do lado oposto ao pequeno poço, havia uma
grande porta de mogno onde se lia Gleichantworten Mögen
(Responder da mesma forma), inscrito no mesmo garboso
semicírculo que Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta). Elie abriu a
porta e se viu em uma área do tamanho de um pequeno ginásio,
onde mais de quarenta pessoas dormiam sobre suas mesas. Ela
ouviu o som dos roncos e murmúrios. Se alguém se mexesse ou
mudasse de posição de maneira brusca, papéis certamente cairiam
no chão. As paredes estavam cobertas por máquinas de costura,
tigelas variadas, casacos, espelhos, máquinas de escrever. A mesa
de Elie ficava logo na entrada, de frente para as outras. Assim que
acendeu seu lampião a querosene, as pessoas acordaram e a
cumprimentaram. Uma porta na outra extremidade foi aberta, e mais
dezesseis pessoas entraram. Todos se amontoavam em torno de
Elie, perguntando se ela estava bem e correndo para apanhar o
tesouro que trouxera. Ela abriu o cesto de alimentos e eles
aplaudiram quando viram presunto, frango assado, salsichas, peixe
defumado, queijo, cigarros, vodca, fleischkonserve, Ersatzkaffee e
treze pães frescos — um presente do padeiro, cuja sobrinha Elie
ajudara a fugir para a Dinamarca. Eles abriram a vodca e brindaram
à notícia sobre o avanço dos russos. Em seguida, brindaram a Elie:
— A Elie! — disseram. — A nossa Gnädige Frau!
Elie ergueu seu copo e embrulhou a carne fresca e um pedaço
de pão em um tecido macio. Depois, voltou ao pequeno poço e
estava a caminho do quarto que dividia com o oficial quando o
encontrou subindo a rampa. Ele segurou a mão dela e seguiram
para o quarto, o último vestígio de vida na superfície. Era um
pequeno quadrado branco, com janelas retangulares que
começavam no teto e se tornavam trapezoidais à medida que se
aproximavam do chão. Elie só queria se aconchegar nos braços do
oficial e lhe dizer quanto sentira saudade, mas temia começar a
chorar, por estar tão exausta. Em vez disso, iluminou o quarto com o
lampião a querosene com um leve ar de desaprovação. Havia
meias, cartas de baralho, botas e livros espalhados pelo chão. Além
de outro suéter verde.
— Isso aqui está parecendo o posto avançado — comentou.
— Na verdade, Elie, troquei os lençóis — disse o oficial.
— Que bom!
— Então, estou desculpado?
— Talvez.
Ela colocou seu casaco sobre uma cadeira. Em seguida, abriu os
braços:
— Minhas duas metades estão prontas para você, agora —
disse ela.

C
Elie dizia que se mudara do pequeno quarto escuro sob a terra
porque as pessoas precisavam de mais espaço para dormir. Mas
todos sabiam que era porque ela amava Gerhardt Lodenstein, o
Oberst do Complexo.
— Quanto mais loucas são as coisas, mais longos parecem três
dias. Por que você demorou tanto? — perguntou ele, levando-a para
a cama.
— Quanto menos você souber, melhor — respondeu Elie.
— Os SS estão matando pessoas como se fossem moscas. Fico
preocupado.
— Nas fronteiras não há tanta loucura — disse Elie. — Eu estava
com três crianças sob os cobertores e o SS mal olhou. Eles pararam
de acreditar nesta guerra. Todo mundo parou.
— Não Himmler e Goebbels — disse Lodenstein. — Nem os
campos de concentração. Cada dia matam mais gente.
A menção aos campos fez Elie se lembrar da história do anjo.
Ela beijou Lodenstein, retirou o revólver da jaqueta e chutou as
botas para longe. Depois entrou sob as cobertas, de saia, blusa e
com a fita de seda vermelha.
— Você não pode dormir vestida, Elie.
— Hoje em dia, muita gente dorme — respondeu ela.
— Eu sei, mas ainda estamos seguros aqui.
— Ainda — disse Elie.
— Ainda é seguro o suficiente.
Elie sorriu e ele a despiu com cuidado. Quando a tocou, ela se
sentiu tão frágil quanto a fita que ele tinha desamarrado — a fita
que, com os documentos confidenciais, lhe davam liberdade para
viajar. Ele a puxou para si. Ela se afastou.
— Alguma coisa está errada. O que aconteceu com você lá fora?
— perguntou ele.
Ela tocou a colcha. Era um edredom de penas revestido de seda
cinza que viera de uma casa saqueada em Amsterdã.
— Está a maior confusão por lá — disse ela. — E temos que
dormir sob esta colcha idiota do Reich.
— Mas não é isso que está incomodando você.
Lodenstein apagou o lampião a querosene e a escuridão reinou
suave, quase tangível. Ele tocou em Elie e o corpo dela parecia feito
de renda. Fizeram amor lentamente.
Quem pode resistir à sensação de ser feita de renda?, ela
pensou. Só alguém que sabe que está a ponto de morrer asfixiado
ou não sabe se seus filhos vão comer no dia seguinte. Somente
alguém que tem de andar quilômetros perigosamente numa noite
fria de inverno.
Lodenstein adormeceu, mas Elie ficou acordada, pensando no
homem da SS que se transformara em anjo. Imaginou sua conversa
com o Comandante, o prisioneiro sendo avisado de que podia partir.
Imaginou os dois saindo de Auschwitz. Se uma pessoa consegue
sair, duas pessoas conseguem, pensou ela. E depois, três. E quatro.
Antes de Goebbels lhe dar os documentos de identidade, ele
mostrara a Elie fotografias de Auschwitz, procurando indícios de
compaixão. Ela tomara cuidado para não revelar nada enquanto
observava as fileiras de alojamentos e as cercas de arame farpado
avermelhadas erguidas em volta do campo, parecendo congeladas
pelo vento. Os arames empenachados lembravam runas, mas eram
capazes de rasgar a pele. O que seria preciso fazer para uma
pessoa passar pela cerca?, pensou.
C
Querida Herta,

Não consigo exprimir a falta que você me faz. Há uma pessoa no


campo que sabe cantar Lieder. Permitem que ela cante à noite
porque os oficiais gostam, e isso me faz lembrar de você. Posso
ouvir sua voz dentro dessas cercas. É tudo que posso escrever por
enquanto.

Com amor,
Stefan
Enquanto Elie permanecia acordada na cama, ela olhou para a
parte visível do telefone preto, quase escondido sob mapas e
papéis, e pensou em para quem poderia ligar e perguntar sobre o
anjo. Mas Lodenstein e ela já viviam em perigo por ajudarem os
fugitivos, e uma ligação para a pessoa errada poderia lhes render
uma morte por fuzilamento. Então Elie enfiou o rosto sob a colcha e
tentou ignorar o úmido odor mineral que impregnava o quarto,
proveniente da mina sob eles. À noite, o cheiro ficava mais forte,
como se a mina denunciasse sua transformação, após Hans
Ewigkeit, um famoso arquiteto alemão, tê-la inspecionado e dito está
bem assim.
Detalhe algum era pequeno demais: a mina ficava dissimulada
por uma estrutura e possuía três banheiros, uma cozinha, um
caminho de pedras, um céu artificial, espaço para mais de cinquenta
pessoas e uma pequena torre de sentinela. Todos que dormiam no
subsolo tinham vindo de um lugar ou outro. E, à noite, enquanto Elie
sentia o peso do edredom de penas, eles se contorciam e tossiam,
esforçando-se para se manterem aquecidos. Todo o projeto
dependia deles. Ali era a sede do Complexo dos Escribas.
Pouco antes do amanhecer, a neve começou a cair mais forte,
amontoando-se contra a janela e trazendo ao quarto uma luz azul.
Elie tocou nos cabelos castanho-claros de Lodenstein e percorreu
com o dedo a cicatriz em sua testa, à altura do couro cabeludo.
Tudo parecia tão macio, como se feito de outra substância, e ela
finalmente adormeceu, a anos-luz do Complexo.

C
Quando Lodenstein acordou, Elie ainda estava dormindo. Com
um dos braços estendido na lateral da cama, ele se lembrou da
primeira vez que a vira dormir — num trem, quando ela o trouxera
até o Complexo. Haviam viajado à noite, os bancos transformados
em um beliche. Ela dormiu na cama de cima, e ele, na de baixo, um
dos braços dela tão próximo que ele poderia tocar a fita vermelha
em torno de seu pulso. Assim que se levantou para observá-la,
sentiu tal arrebatamento — intensificado por seu fascinante
desgrenhamento matinal — que esqueceu seus apetrechos de
barbear no trem. Só os recebeu duas semanas depois, junto com
um recado do gabinete de Goebbels: Há uma guerra acontecendo.
Não esqueça os apetrechos de barbear como se fossem moedas
sem valor.
Ele pensou em tudo que Elie devia fazer em sua luta para ajudar
as pessoas. Com que homens da SS tinha flertado? Com que
mascates do mercado negro? Quantos jornais clandestinos
decadentes continuavam publicando porque ela lhes arrecadava
fundos? Quantos falsificadores fraudavam passaportes por ela ter
escondido um parente deles? Lodenstein compreendia que os
flertes e as alianças espúrias eram as ferramentas dos resgates:
apaziguavam os guardas, os senhorios desconfiados, os vizinhos
curiosos. Mas quando Elie ficava um dia a mais fora, ele se
inquietava com as fronteiras difusas entre os segredos pelo bem da
Resistência e os segredos que dissimulam uma vida oculta.
Elie acordou, olhou para ele e fechou os olhos.
— Queria que ainda não tivesse amanhecido — disse.
— Vou preparar o café da manhã — avisou ele. — A manhã
pode esperar.
Ele colocou o suéter verde sobre a farda e entrou no pequeno
poço, indo até o caminho de pedras e virando à esquerda, para a
cozinha — um espaço de quatro metros de comprimento com
panelas penduradas tão baixo que soavam como sinos quando as
pessoas esbarravam nelas.
Dois escribas levantavam uma lata de Ersatzkaffee, enquanto
outro colocava colheradas de pó dentro de jarras de vidro. Não
perceberam a presença de Lodenstein, e ele se perguntou, não pela
primeira vez, se sabiam que ela era um dos responsáveis por suas
vidas estarem próximas do suportável. Ainda que fosse muito cedo,
ele ouviu alguém oferecer cigarros como prêmio para alguém que
inventasse um jogo de palavras cruzadas em quinze idiomas.
Também ouviu datilografarem — provavelmente em diários
codificados — e uma loteria cujo prêmio era dormir no antigo quarto
de Elie. Goebbels não admitia essas coisas, é claro, mas fazia vista
grossa.
Mais pessoas apareceram para preparar o café. Estava frio na
mina, e todos usavam casacos de pele oriundos do posto avançado.
Ele viu peles de arminho, vison, raposa e lã de carneiro. Elas
roçavam em suas costas como animais amáveis.
Os pães que Elie trouxera na noite anterior estavam sobre uma
tábua de açougueiro, no meio da cozinha. Na véspera, o cesto
continha cinco pães brancos e oito de centeio. Nesta manhã, ainda
havia todos os oito de centeio e três pães brancos. Ele cortou
cuidadosamente duas fatias finas. Alguém viu e disse:
— Leve mais! Para Elie!
Outro escriba disse o mesmo e então outro e depois outro, até o
nome de Elie soar por toda a cozinha, como uma invocação. Ele
cortou um pouco mais de pão e agradeceu a todos em uma dúzia de
línguas. Eles riram e agradeceram também.
Todos falavam alemão, mas as conversas eram permeadas por
palavras estrangeiras — o húngaro para vergonha (szégyen),
italiano para tinta (inchiostro), polonês para sombra (cień). A cada
semana aumentava a quantidade de palavras, porque ali os
habitantes — coletivamente — eram fluentes em quarenta e sete
línguas e dialetos, fora o alemão. E era por isso que haviam se
livrado dos campos de concentração e podiam ficar no abrigo —
lutando, escrevendo, ralando para levar adiante uma missão
misteriosa e bizantina.
C
Minha querida Susanne,

Cheguei na semana passada e tive a sorte de encontrar trabalho na


construção de uma estrada. A comida é boa e me agrada ficar ao ar
livre. Há bons trabalhos para as mulheres também — costurar
uniformes, remendar, datilografar. Sei que você gostaria daqui.

Com amor,
Heinrich
Gerhardt Lodenstein falava fluentemente cinco línguas, mas não
teve que negociar em nenhuma delas para obter seu posto como
Oberst do Complexo; muito tempo antes, em troca de uma bicicleta,
ele prometera ao pai que se alistaria na polícia secreta, da qual o
progenitor era um membro proeminente. A polícia secreta era
chamada de Abwehr — uma antiga organização de elite
especializada em decifrar códigos e conhecida por seu ódio ao
Reich. Seu chefe, Wilhelm Canaris, tentara assassinar Hitler duas
vezes antes da guerra. Quando ingressou na organização,
Lodenstein pensou que passaria dois anos aprendendo os códigos e
depois exerceria a advocacia. Mas o Reich criou sua própria polícia
secreta, encolhendo a Abwehr e reduzindo o trabalho de Gerhardt
Lodenstein ao arquivamento de antigos documentos da Primeira
Guerra Mundial. Finalmente, Goebbels — com malícia, porque não
gostava do pai de Lodenstein — alistou-o na SS e fez dele o
relutante chefe do Complexo dos Escribas, obrigando-o a
supervisionar um projeto inútil e absurdo: responder cartas para
pessoas mortas.
Essa manobra fazia parte do plano denominado Briefaktion
(Operação Postal), no qual os prisioneiros eram forçados a escrever
a seus parentes, elogiando as condições dos campos de
concentração e dos guetos. Elas eram enviadas à Associação de
Judeus em Berlim, de modo que ninguém sabia de onde vinham.
O objetivo era camuflar o fato de que a maioria dessas pessoas
estava a ponto de ser assassinada e incentivar os parentes a irem
para os campos de concentração voluntariamente. Serviam também
para dispersar os rumores sobre essas instalações. Mas o sistema
postal era caótico e muitos parentes já haviam sido deportados, e,
sem dúvida, também foram obrigados a escrever. Dessa forma,
milhares de cartas não lidas retornavam para Berlim.
Himmler proibira que fossem queimadas: ele acreditava
incondicionalmente no mundo sobrenatural e achava que os mortos
atormentariam os médiuns em busca de respostas caso soubessem
que suas cartas haviam sido destruídas — expondo finalmente a
Solução Final. Goebbels, que desprezava tudo que fosse
sobrenatural, não pretendia queimá-las por outra razão. Queria que
cada carta fosse respondida a fim de manter um registro, assim não
haveria dúvida alguma após a guerra. Para que parecessem
autênticas, ele decidiu que deveriam ser respondidas em suas
línguas originais: daí o lema do Complexo dos Escribas ser
Responder da mesma forma. A SS procurou, então, entre os
deportados, os mais fluentes e cultos para se tornarem escribas.
Дорогой Μишенька,

Пожалуйста не волнуйся о нас: дети в порядке, и еда вкусная —


наваристьій суп с чёрньім xлебом. ȝдесь прекрасньій. Они нас
скоро поведут на прогулку. Тьі должен к нам присоединиться,
даже мьі не сможем тебя встретить.
Целую Крепко,

Соня

C
Meu querido Mishka,

Por favor, não se preocupe conosco. As crianças estão ótimas e a


comida é deliciosa — sopa espessa e pão preto. Há também uma
bela floresta aqui. Eles vão levar um grupo para passear daqui a
pouco. Você precisa vir para cá, mesmo que quando vier não
estejamos aqui para receber você.

Com amor,
Levka
No início da Operação Postal, os escribas eram mantidos num
bunker em Berlim. As instalações estavam lotadas, o cheiro de
repolho se espalhava por todos os cantos, mas — como as pessoas
costumavam dizer de brincadeira — dava-se um jeito. Ainda assim,
à medida que mais pessoas eram deportadas, Goebbels começou a
se preocupar, achando que os varais de roupa abarrotados no meio
da cidade levantariam suspeitas, e enviou soldados com a missão
de encontrar uma mina abandonada nos bosques do norte da
Alemanha. Então, com a benção de Hitler, ele convocou o arquiteto
Hans Ewigkeit e transformou a mina de forma a satisfazer suas
ideias românticas. Havia um caminho de pedras rosadas, iluminado
por postes de lampiões a gás. Havia um toldo com um céu artificial,
no qual um sol nascia e se punha, e estrelas que imitavam as
constelações no dia do aniversário de Hitler. Havia portas de mogno
e bancos de ferro fundido. A mina ficava isolada por uma estrada
estreita e escondida sob um trailer.
A ideia de responder aos mortos deixou Gerhardt Lodenstein
enojado; e ele ficou ainda mais enojado quando, ao chegar ao
Complexo um ano antes, encontrou-o em situação caótica: o
primeiro Oberst, que, como Himmler, acreditava que os mortos
esperavam respostas às suas cartas, foi surpreendido durante uma
sessão espírita. Este Oberst acabou sendo rebaixado a major e
odiava Lodenstein porque ele ficara com o quarto na superfície.
Alguns escribas queriam sair dali, muito embora isso praticamente
significasse a morte, e Himmler havia começado a falar abertamente
sobre a Solução Final que antes procurara esconder. Uma semana
após a chegada de Lodenstein, Goebbels escreveu-lhe dizendo que,
se ele não se dirigisse a Berlim imediatamente, seria mandado para
a linha de frente. Lodenstein passou a noite dirigindo e chegou em
Berlim na manhã seguinte, apresentando-se no prédio cor de
carmim da nova Chancelaria do Reich. Goebbels encontrava-se
sentado sobre alguns livros, a fim de parecer mais alto do que seu
um metro e sessenta, e resmungou para que Lodenstein fechasse a
porta.
— Como você deve saber — disse em voz baixa —, algumas
pessoas pensam que os mortos estão esperando respostas e que
eles nos atormentarão até que as recebam.
Lodenstein, não sabendo o que dizer, nada disse. Goebbels
esmurrou a mesa.
— Claro que você sabe. Não aja como um imbecil.
Ele lhe mostrou um panfleto onde se lia Estratégias de Guerra da
Sociedade Thule. Lodenstein viu uma lista de nomes — Himmler,
alguns oficiais da SS e místicos famosos.
— Esses idiotas acham que têm uma aliança com a porra do
além e se reúnem para receber conselhos do plano astral sobre a
guerra — disse Goebbels. — Assim sendo, certo Oberst que foi
rebaixado poderá incomodá-lo com isso. Mas, lembre-se, essa
merda de além não existe, e os mortos não podem ler. Dê respostas
breves e impeça que aquele babaca realize sessões espíritas. Trata-
se somente de um registro.
Lodenstein disse que, claro, faria isso, e Goebbels lhe mostrou a
maquete de um prédio destinado a expor as cartas após a guerra. O
prédio tinha colunas gregas e detalhes em mármore. Parece um
mausoléu, pensou Lodenstein.

C
Somente Elie tirava a vida de Lodenstein do completo absurdo. E
por isso, ele não lhe perguntou o que ela estava vasculhando
próximo ao telefone quando voltou com o café da manhã. Eles se
aconchegaram sob as cobertas e tomaram Ersatzkaffee que,
concordavam, estava cada vez mais fraco, e falaram sobre a guerra:
deserção de soldados, falta de comida, aumento do caos desde
Stalingrado. Elie se aninhou nele e disse que estava exausta. Ele
afagou seu cabelo e perguntou, tentando soar natural:
— Aconteceu alguma coisa na fronteira?
— Já falei, eles não criam mais problemas.
— Então por que levou um dia a mais?
— A mãe não queria deixar os filhos, e não havia espaço no jipe.
Tive que encontrar um guia para ela.
— E o padeiro?
— O que você quer dizer com o padeiro? O padeiro ofereceu os
pães porque eu consegui fazer sua sobrinha chegar à Dinamarca.
Por que você me interroga assim sempre que volto?
Era uma conversa antiga. Elie flertava em troca de favores.
Lodenstein ficava irritado. Já haviam falado sobre isso inúmeras
vezes, sem jamais chegarem a uma conclusão, sem jamais
deixarem de se amar. A voz de Elie soou fraca, como se estivesse
quase chorando. Ela largou o guardanapo e seguiu pelo poço até o
salão principal, onde acendeu um lampião sobre a mesa e começou
a anotar os suprimentos que não conseguira obter em sua incursão:
Querosene. Pavios. Bolachas. Em seguida, fez uma lista das
pessoas que poderiam ajudar a descobrir se o Anjo de Auschwitz
era real. Riscou alguns nomes, incluiu outros, escreveu nomes em
código e amassou a primeira folha. Mais tarde iria queimá-la. Elie
estava sempre queimando papéis. Ninguém mais se assustava no
Complexo ao ver pequenas fogueiras na floresta.
Enquanto Elie trabalhava, os escribas faziam jogos de palavras,
escreviam em seus diários e respondiam a algumas cartas da
Operação Postal. Às vezes, datilografavam uma ou duas frases
obrigatórias. Outras vezes respondiam com textos longos, em geral
escritos à mão, porque alguma coisa em relação ao autor da carta
os havia comovido: talvez a caligrafia os fizesse se lembrar de um
parente. Ou uma menção a alguma cidade que conheciam. Ou a
carta havia sido escrita no dia em que programaram sua
deportação. Eles guardavam essas cartas para si e não deixavam
que fossem encaixotadas. De vez em quando um deles se deparava
com a carta de um conhecido e então havia choro, alvoroço e
comoção. Mas hoje não. E Elie, como sempre, estava calma.
Sophie Nachtgarten pegou sua caneta. Acabara de ler a carta de
alguém do distrito de Fürth — o mesmo em que vivera com seu
namorado. Certo dia enfileiraram as pessoas na praça da cidade e
um guarda berrou “Sentido!” com um sotaque norueguês que
Sophie reconheceu. Impulsivamente, ela disse Com certeza em
norueguês, e fora retirada da fila. Foi um palpite feliz. O guarda fora
criado na Noruega. E enquanto seu namorado era levado para a
forca, ela embarcava num Kübelwagen.
Querida Margot, começou ela. Eu não a conheço, mas vivíamos
próximas uma da outra — tanto que é possível que tenhamos nos
cruzado na praça do mercado...
Elie deixava os escribas fazerem o que quisessem, porque não
importava quantas cartas respondessem: Goebbels ameaçava
visitá-los, mas nunca aparecia. Quanto ao prédio que exibiria as
cartas depois da guerra, Elie sabia que isso nunca aconteceria: a
Alemanha mal conseguia alimentar o próprio povo. Aquelas cartas
jamais seriam lidas. Nem ela, nem os escribas, nem Lodenstein
queriam favorecer uma distorção insultuosa da história.
Exceto pelos detidos ao cruzar as fronteiras, a maior parte dos
escribas fora retirada de uma fila na praça da cidade ou de uma
multidão transpirando pânico ao ser empurrada em direção aos
vagões de gado. Lembravam-se do interrogatório por que passaram
e de terem compreendido que sua vida dependia da língua
estrangeira que conheciam. Então, depois de uma série de
percursos confusos de trem, uma primeira visão da cabana, a
surpreendente descida para dentro da terra — e o alívio quando
encontravam Elie Schacten.
Agora, ela estava de pé e batia palmas.
— Hora de nos prepararmos para o banquete!

C
Em poucos instantes, os escribas enfileiraram dezoito mesas e
puseram outras dezoito na frente delas. Elie achou velas e taças de
vinho num armário de vassouras. Um escriba chamado Parvis
Nafissian distribuiu jarras com água do poço. Sophie Nachtgarten
subiu e foi até o bosque apanhar ramos de pinho que refrescavam o
ambiente e davam um ar festivo às mesas. Trouxeram pratos com
presunto, frango, pão e queijo. Elie acendeu as velas e serviu o
vinho. Em seguida, bateu numa panela de metal.
— Todos, venham até aqui! — chamou. — Hora do banquete!
As pessoas começaram a surgir dos lugares mais improváveis:
um homem baixo com quipá e uma mulher mais alta com uma longa
trança ruiva saíram de uma casinha ao final do caminho de pedras.
Uma mulher de olhos verdes com casaco de pele de arminho veio
correndo da esquina. Uma loura com uma piteira de cigarro e um
homem elegante vestindo uma casaca preta comprida saíram do
antigo quarto de Elie. E Lars Eisenscher, um guarda de dezoito anos
que quase sumia dentro do uniforme, veio do poço da mina. Assim
que Lars viu o homem de quipá, puxou uma cadeira para ele e
cortou-lhe uma enorme fatia de pão. Ele sentou-se atrás desse
homem durante toda a refeição, servindo-lhe vinho, assim como à
sua mulher com a longa trança ruiva.
Logo, cinquenta e oito pessoas estavam em volta das mesas —
Lodenstein numa extremidade, Elie noutra. A luz das velas fazia os
rostos oscilarem e os pratos brilharem. Toda aquela iluminação fez
com que Elie pensasse num castelo encantado, libertado de um
feitiço. Ela se levantou e ergueu sua taça de vinho.
— Ao final da guerra! — exclamou. — À vitória dos Aliados!
O lugar foi invadido pelo tilintar das taças. As pessoas passavam
os pratos umas para as outras e se divertiam procurando a melhor
palavra para “pão” nos diferentes idiomas.
— A melhor é pain — disse a mulher no casaco de pele de
arminho. — Basta dizê-la para ver uma baguete com manteiga.
— Brot é melhor — disse Parvis Nafissian. — Eu a pronuncio e
vejo uma sopa à minha frente.
— Quem se importa? — exclamou o homem alto de casaca
preta. — Nós precisamos é de mazurca!
Ele puxou a mulher loura e começaram a dançar.
Lá no alto, numa pequena torre de sentinela, um homem com o
rosto largo e vários queixos apoiou-se no vidro. Ele parecia pender
sob o peso dos queixos, preso num elemento diferente, com um ar
desamparado. Elie Schacten acenou para Lars, que levantou da
mesa e se dirigiu até a escada em espiral que levava à torre. Logo,
o homem gordo estava sentado ao lado dela. Elie deu um leve
tapinha em seu braço e encheu seu prato de comida. A mulher com
o casaco de pele serviu-lhe vinho.
— A todos nós! — brindou Elie, batendo em sua taça de vinho.
— A todos nós do Complexo! — exclamou Lodenstein,
levantando-se.
Mais de vinte escribas brindaram com o homem gordo. Ele foi
cercado por vultos que curvavam-se e solícitos. O tilintar das taças
se espalhou como o som de sinos.
— À vitória — disse ele num sussurro.
Kochany Dominiku,

Przykro mi że nie mogłam się pożegnać. Musiałam szybko opuścić


dom.

Kocham,
Krystyna

C
Amado Dominik,

Sinto muito por não ter me despedido. Tive que sair de casa às
pressas.

Com amor,
Krystiana
Quando Elie acordou na manhã seguinte, já era tarde, e a primeira
coisa que viu foi o telefone. Ele a atraía com tanta força que ela se
vestiu e correu para o poço da mina. Ao abrir a porta, quase
derrubou Lars, que havia desmaiado na rua por causa da bebida. O
salão principal da mina recuperara a calma habitual — taças sujas
de vinho, ramos quebradiços de pinho, escribas dormindo no chão.
Elie abriu caminho até sua mesa e pegou um caderno vermelho-
escuro com fecho de prata. Leu trechos de algumas páginas,
folheou as mais vazias, escolheu uma aleatoriamente e começou a
escrever. Quando os escribas se levantaram, revirando-se em seus
casacos, ela deixou o caderno sobre a mesa e foi até a cozinha.
— Leve mais — diziam as pessoas, vendo-a preparar sua
bandeja.
— É, pegue mais!
As vozes eram afetuosas, felizes em oferecer alguma coisa.
Quando Elie subiu, Lodenstein se precipitou para a bandeja.
— Deixe que eu faço isso — disse ele. — Você precisa dormir.
— Mas eu não consegui dormir — retrucou Elie. — Aliás, você
viu como Lars bebeu ontem à noite? Ele desmaiou lá embaixo, em
frente ao poço.
— Isso não me espanta. Ele é jovem demais, não tem
resistência para o álcool.
— E de que outra maneira poderia lidar com a perda do pai? —
perguntou Elie.
Apanhando uma fita de veludo vermelho do armário, ela
começou a mexer no cabelo. Depois, jogou a fita no chão e disse:
— Não estou mais aguentando isso.
— Isso o quê?
— Tudo isso. Pessoas perdidas. Pessoas morrendo. Nós não
damos conta de salvá-las.
O telefone tocou, sobressaltando Elie e Lodenstein. Ao atender,
ele adotou um tom agradável, que Elie percebeu ser falso.
— Aquele oficial no posto avançado quer vê-la esta noite —
disse ele, quando a conversa se encerrou. — Ele disse que surgiu
algo urgente.

C
Quando Elie partiu, o mundo parecia em blecaute. Ela passou
por casas de cujas janelas mal escapavam um pouco luz e por
aldeias praticamente invisíveis. Quando estacionou diante do posto
avançado, o oficial estava andando de um lado para o outro.
— Acabo de receber uma ordem do gabinete de Goebbels —
informou ele. — E nossas cabeças vão rolar se não tivermos êxito.
Ele entregou a Elie o papel do Ministério Nacional para
Esclarecimento Público e Propaganda, que dizia:
Segundo exigência de Joseph Goebbels, a carta anexa de Martin
Heidegger ao seu oculista, Asher Englehardt, deve ser respondida
por um filósofo do Complexo dos Escribas, que deverá responder
exatamente da maneira como Asher Englehardt o faria — em outras
palavras, agir como se fosse seu ventríloquo —, e em seguida a
carta deverá ser entregue junto com os óculos adequados no chalé
de Martin Heidegger, na Floresta Negra, em Todtnauberg. A missão
requer sigilo absoluto. Nenhuma discussão se faz necessária.
Nenhuma discussão se faz necessária significava que qualquer
um que falasse sobre isso com Goebbels seria fuzilado.
Elie esticou as mangas de seu espesso casaco de lã.
— Por que Martin Heidegger se daria o trabalho de escrever ao
oculista? — indagou ela, tomando cuidado para parecer calma.
— De fato, por quê? — concordou o oficial.
Ele sentou-se numa poltrona de couro e acendeu um cigarro.
Não parecia mais agitado: independentemente de sua força letal, os
rumores eram inebriantes, e ele parecia inalá-los direto de Berlim.
— Heidegger e esse sujeito lecionaram na mesma universidade
— disse ele. — Mas quando descobriram que o pai dele era judeu,
impediram-no de dar aulas, então ele abriu uma ótica, e Heidegger
recorreu a ele para comprar seus óculos. Não sei por quê. Ele é
excêntrico.
— Já ouvi falar sobre isso — disse Elie.
— Eles passaram a se corresponder — continuou o oficial. — E
neste outono, quando Heidegger não obteve resposta, sua esposa
começou a bisbilhotar. Primeiro, ela incomodou Himmler, depois
Himmler incomodou Goebbels, e então Goebbels convocou uma
reunião.
Elie apertou sua echarpe vermelha.
— E por que Goebbels se encontraria com a esposa de
Heidegger? — ela quis saber. — Ela é apenas uma hausfrau
comum.
— Shhh! — fez o oficial. — Essas paredes têm ouvidos. Você
sabe por que Goebbels a encontrou. Ele está sempre na praça do
mercado, conversando sobre a guerra. Portanto, qual o problema
em passar uma hora agradável com uma hausfrau? Além do mais,
se Goebbels está feliz, tudo fica melhor para nós.
O oficial entregou duas fotografias a Elie. Uma era da ótica de
Asher Englehardt, após a invasão, e a outra era de Asher
Englehardt e Martin Heidegger juntos. Na primeira, Elie viu as
palavras Fodam-se os judeus rabiscadas em tabelas de Snellen e
cacos de vidro sobre a cadeira de oculista. Na segunda, via-se
Asher Englehardt diante de um chalé alpino com a mão sobre os
ombros de Martin Heidegger. A foto trazia a inscrição Floresta
Negra, 1929.
— Eram muito amigos — disse o oficial.
— Que importância tem isso? — perguntou Elie. — A Gestapo
tem vigiado Heidegger há anos.
— Talvez — disse o oficial. — Mas eles não precisam vigiar a
esposa dele. Ela é muito considerada no Partido.
Elie olhou para o relógio, entre duas bicicletas, e tentou disfarçar
o aborrecimento com aquelas ordens. Por um lado, pareciam
impossíveis. Por outro, ordens impossíveis, às vezes, levavam a
resgates extraordinários.
— Qual é o problema? — perguntou o oficial.
— Nada — respondeu ela. — Exceto que eu não conheço um
ventríloquo que consiga escrever como um filósofo.
— Então, precisa encontrar um.
— Mas esta carta foi escrita no outono.
— Goebbels e Frau Heidegger só se encontraram há um mês.
Além disso, a esposa quer os óculos dele. E Heidegger deseja uma
resposta à sua carta.
O oficial entregou a Elie uma caixa de pinho cheia de óculos.
Todos levavam uma etiqueta branca na haste e havia um nome
diferente em cada uma. Numa delas estava escrito für Martin
Heidegger. Elie analisou a caligrafia de Asher Englehardt.
— Você precisa entregar os óculos e uma carta — disse o oficial.
— Estou entendendo — respondeu Elie, ainda tentando parecer
calma. — Aliás, você sabe o que aconteceu com o oculista?
— Você acha que ele foi passar férias em Badensee? —
perguntou o oficial. — O homem da SS que o vigiava foi morto, e
ele, enviado para Auschwitz. — Ele passou o dedo pelo pescoço,
como a lâmina de uma faca. — Talvez a mãe dele fosse ariana, mas
hoje em dia ninguém escapa. E aquele Anjo de Auschwitz só teve
uma chance.
Elie concordou. O oficial descartou seu cigarro.
— Você quer algo mais? — perguntou ele, apontando para as
paredes.
— Estamos sempre precisando de casacos — respondeu ela. —
E mais um quilo de chocolate.
O oficial carregou os casacos pela neve, e Elie levou os objetos
da ótica de Asher Englehardt, além dos óculos de Heidegger e de
sua carta para Asher, cuja última frase dizia:
Como poderíamos saber que você seria a pessoa capaz de me
fazer óculos de verdade — fonte involuntária de meu alheamento ao
mundo?
Elie, que havia conhecido e lido Heidegger, entendia exatamente
o que ele queria dizer. Mas concordou que a carta era louca.
Quando entrou no jipe, deixou o oficial beijar seus lábios outra vez e
abraçá-la por mais tempo do que gostaria. Depois, dirigiu para o
bosque no norte da Alemanha, pensando nas ordens de Goebbels.
Chegando à clareira, a moça olhou cuidadosamente as fotografias.
Depois as dobrou ao meio e enfiou no fundo do bolso.
C
Anna,

Você não deve acreditar no que as pessoas dizem. Este lugar é


bom, e se você receber esta carta, só posso lhe pedir que venha.
Traga a mamãe e o papai. Por favor, traga todos.

Com amor,
Mordecai
Quando Elie entrou no trailer, Lodenstein estava usando uma capa
de chuva da marinha e brincando com a bússola sobre a mesa de
madeira. Tratava-se de uma bússola líquida da Marinha Real
Inglesa — ele a encontrara em uma loja, antes da guerra. Era para
ser usada em navios, mas Lodenstein gostava de utilizá-la em terra.
Ajudava-o sentir-se perto do mar, especialmente do horizonte, onde
via o sol e a lua sobre águas remotas. Às vezes, ele brincava com
Elie: Imagina se a terra é plana, no final das contas? Se estiver
perto do mar, você pode fugir.
Ele pegou as ordens e a carta de Heidegger e a leu algumas
vezes procurando mensagens codificadas. Mas as mensagens eram
bem claras: a de Heidegger, brilhante e bombástica; a do gabinete
de Goebbels, com ordens para entregar os óculos de Heidegger e
uma carta sem vestígios do remetente.
— Uma hausfrau está influenciando Goebbels — disse Elie.
— Mas nem mesmo os generais conseguem isso! — exclamou
Lodenstein.
— É a esposa de Heidegger — esclareceu Elie. — Um belo
exemplo de Kinder, Küche e Kirche.
— Pensei que os filhos já tivessem saído de casa.
— Saíram. Mas Heidegger, não.
Lodenstein riu, e Elie não mencionou que, certa vez,
comparecera a uma festa na casa dos Heidegger e conseguira com
Frau Heidegger uma receita de bundkuchen.
— Talvez seja tudo inventado — sugeriu Lodenstein. — Ou
talvez queiram uma razão para me fuzilar.
— Ninguém quer uma razão para fuzilar você — disse Elie. — E
eu tenho certeza de que o oculista existe de verdade.
— Como tem tanta certeza? — perguntou Lodenstein. — As
pessoas estão sempre se inventando hoje em dia. Não ficaria
surpreso de saber que alguém nos inventou.
— Talvez tenham nos inventado. Mas acontece que conheci
Martin Heidegger.
— Pensei que você tivesse estudado Linguística.
— Estudei — respondeu Elie. — Mas todo mundo se conhecia.
Havia um espelho rachado sobre a lareira, e Elie andou na
direção dele, amarrando a fita no cabelo. Quando conseguiu dar um
laço que a satisfez, disse:
— Heidegger e Asher Englehardt eram amigos. Trocavam cartas.
Encontravam-se para tomar café.
— Só que, agora, Englehardt está num lugar onde ninguém
escreve cartas. Exceto aquelas ridículas que você lê.
Elie voltou para a mesa. Seus olhos ficaram repentinamente
brilhantes.
— Talvez essas ordens possam libertar Englehardt — disse ela.
— Ouça, Elie. Ninguém sai de Auschwitz.
— Conheço alguns casos — argumentou Elie.
— Claro. Na forma de cinzas.
— Nem sempre — protestou ela. — Há apenas uma semana, um
oficial da SS disse ao Comandante que um prisioneiro tinha um
laboratório e o Reich precisava dele para a guerra, e por isso
deviam deixá-lo sair de Auschwitz para que assinasse alguns
papéis. Assim foi feito. E adivinha? Não existe qualquer registro
desse laboratório, e ninguém conhece esse oficial da SS. As
pessoas acham que ele não existe. E o chamam de Anjo de
Auschwitz.
— Quem lhe disse isso?
— O oficial do posto avançado.
— Ele está perdendo o juízo — disse Lodenstein.
— Mas isso acontece em todo o Reich. E Asher Englehardt é o
único ventríloquo que jamais conseguiremos encontrar.
— Há muitas pessoas capazes de escrever uma boa carta.
— Quem?
— Tenho certeza de que encontraremos alguém — disse
Lodenstein, gesticulando com as mãos.
— Mas estas ordens podem tirá-lo de lá.
— Ouça, Elie. Se fizermos alguma bobagem, Goebbels fuzilará
todo mundo no Complexo. Além do mais, essa ordem não possui
sequer uma assinatura. Qualquer um pode tê-la enviado.
— Mas os óculos são reais. E vou falar com Stumpf sobre a
carta.
— Pode tentar — cedeu Lodenstein. — Mas o major Stumpf é
um imbecil.
— É exatamente por isso que quero falar com ele — disse Elie.
— Stumpf nunca poderá ajudar. E já foi bastante ruim que você o
tenha convidado para o banquete.

C
Dieter Stumpf era o homem que vivia na torre de sentinela,
vigiando os escribas. Era baixo e atarracado, e fazia Elie pensar
num cão shar-pei, que tem a pele toda enrugada. Não havia essa
raça de cachorro na Alemanha, mas aparecera uma pintura chinesa
que o retratava no posto avançado, e Elie a pegara porque lhe
lembrava Stumpf. A pintura se tornara uma piada entre ela e
Lodenstein.
Stumpf fora Oberst do Complexo antes de Lodenstein substituí-
lo. Por razões que ninguém se dera o trabalho de explicar, ele tivera
que se mudar do quarto na superfície para um cômodo exíguo
acessível através de uma escada em espiral. Ali era seu quarto e
seu escritório: além da mesa, havia um colchão, bolas de cristal e
livros sobre o plano astral.
Havia também uma grande janela que dava para o salão
principal do Complexo. Em outros tempos, uma guarda rotativa
patrulhava os escribas; mas, depois que a Alemanha perdera
Stalingrado, só sobrara Lars para vigiar a floresta e Stumpf para
fazer a patrulha. Ele racionalizava seu rebaixamento se
convencendo de que era a única pessoa em quem Goebbels
confiava para garantir que os escribas fizessem seu trabalho. Mas,
secretamente, agonizava.
Antes de Stalingrado, Stumpf ficava satisfeito em registrar as
respostas dos mortos e adorava seu enorme carimbo de metal e a
ampla almofada de tinta preta. Porém, os outros guardas foram mais
espertos em relação às línguas estrangeiras, e Stumpf nunca
aprendera uma. Se a correspondência fosse em alemão, Stumpf
utilizava seu enorme carimbo de metal com tanto vigor que a bola
de cristal sobre a mesa balançava. Mas se as cartas fossem em
idioma estrangeiro, ele não tinha como saber se os escribas o
estavam enganando, escrevendo coisas sem sentido. Às vezes, seu
carimbo pairava no ar. Outras, ele o usava com vigor. De vez em
quando, sentia-se oprimido. Então, descia pela escada em espiral e
dizia a todos no salão principal que eles eram uns parasitas.
Vociferava até que alguém — um escriba, ou Lodenstein, se
estivesse por lá — formasse um chifre com dois dedos atrás da sua
cabeça. Assim, todos riam, as rugas no rosto de Stumpf se
aprofundavam, e ele voltava para a torre, parecendo tão infeliz que
as pessoas sentiam pena dele. Mas durava apenas alguns
instantes. Ser ridicularizado era algo trivial em comparação a ter
uma arma apontada para a cabeça ou ver seu filho ser jogado
dentro de um vagão de gado.
C
Querida mãe,

Espero que você possa ler esta carta. Eles me pediram para
escrever em alemão padrão, não em nosso dialeto. Talvez eu ajude
com as traduções. Lotte e eu sentimos sua falta.

Com amor,
Franz
Stumpf, que ainda vivia a ilusão de que Lodenstein tratava os
escribas como prisioneiros, desprezava-os por não respeitarem o
que ele entendia ser o projeto do Complexo. Eles respondiam
apenas à metade do que podiam fazer num dia, e passavam o
restante do tempo escrevendo em seus diários e fazendo rifas para
o antigo quarto de Elie: eles rifavam cigarros, salsichas — pouco
importava o que fosse, desde que os divertisse. Enquanto isso,
milhares de cartas dos campos de concentração chegavam todos os
meses, e Stumpf fora notificado pelo gabinete de Goebbels de que
haveria uma inspeção em quinze dias. Não tinha como todas as
cartas serem respondidas. Havia mortos demais. Então,
contrariando bastante seus princípios, ele estava planejando
enterrar milhares de cartas no campo de centeio da fazenda de seu
irmão, perto de Dresden. Tinha certeza de que todos os mortos
mereciam respostas e essa decisão o irritava; mas era melhor do
que ser fuzilado. Os sacrifícios que Stumpf fazia pelos mortos
cessavam quando se tratava de unir-se a eles.
Ele estivera desviando cartas para a torre, tentando descobrir
como colocar todos os dezessete caixotes de correspondências
dentro de seu Kübelwagen, quando Elie Schacten bateu à porta. A
falta de privacidade o atemorizava tanto que ele trancava a porta
com trincos dourados — sete ao todo —, dando-lhe a aparência
daquelas botas antigas cheias de ganchos e colchetes. Stumpf abriu
cada um deles e Elie Schacten entrou, segurando um par de óculos
com lentes sem armação e hastes douradas que se agitavam como
as patas de um inseto. Ela também lhe mostrou uma carta
ininteligível e uma receita para óculos.
— Por que você está me mostrando essas coisas? — perguntou
Stumpf, espiando a carta.
— Porque elas precisam ser entregues — explicou Elie. —
Realmente entregues.
— Entregamos tudo — retorquiu ele. — Em caixotes.
— Eu me refiro aos óculos. Quer dizer, devem ser entregues a
alguém que está vivo — disse ela, mostrando as ordens emitidas
pelo gabinete de Goebbels.
Stumpf ergueu o papel contra a luz a fim de ver se continha os
selos oficiais, que vira várias vezes quando era um sub-sub-
secretário. Após concluir que os selos eram autênticos, disse:
— Talvez outra pessoa tenha escrito as ordens. Não estão
sequer assinadas.
— O posto avançado diz que ordens são ordens, não importa
quem as tenha escrito.
— E o posto avançado sabe de alguma coisa? — perguntou
Stumpf.
— Todo o Reich sabe disso.
Stumpf suspirou quando Elie mencionou o Reich: ele já
participara de conversas importantes atrás de enormes portas e
utilizara os selos que agora só examinava — selos com a suástica
gravada em metal. Os três queixos formados pelas dobras no rosto
de Stumpf com frequência davam-lhe uma aparência alarmada.
Agora, ele parecia triste — até mesmo seus queixos pareciam
tristes. Elie afagou sua mão.
— Mas por que agora? Esse homem foi para Auschwitz em
outubro.
— É urgente — disse Elie. — Heidegger era chanceler em
Freiburg, e ele precisa de seus óculos.
— Alguém que é suficientemente esperto para ser chanceler não
esperaria tanto tempo por um par de óculos — disse Stumpf. — Ele
compraria um novo de um oculista ariano.
— Não importa. Eles querem que Heidegger receba estes
óculos. Com uma resposta à sua carta.
— Mas nós só respondemos cartas para os mortos!
Elie tocou o carimbo de metal.
— Isso é uma ordem — disse ela, calmamente. — Sabe o que
significa?
— E como eu poderia estar encarregado desses canalhas se
não soubesse? Mas por que você acha que Goebbels quer que
façamos isso? Vai de encontro à nossa missão.
Stumpf parecia realmente confuso, como se sempre soubesse o
que Goebbels queria.
— Heidegger e o oculista eram amigos — explicou Elie. — Do
tipo que saem juntos para passear.
— Mas Heidegger não está numa boa posição. A Gestapo o está
vigiando.
— Ele ainda consegue ir a Paris para conferências. Além do
mais, o oculista e ele lecionavam filosofia.
Aquilo pareceu perturbar Stumpf, e as engrenagens em sua
cabeça começaram a ranger: se Heidegger e o judeu ensinavam
filosofia, então eles se correspondiam por cartas incompreensíveis.
E se escreviam cartas incompreensíveis, ora, segundo a regra
estrita de Responder da mesma forma, Heidegger precisaria de uma
resposta de alguém que pudesse escrever de maneira igualmente
incompreensível.
Ele olhou para Elie e se permitiu desfrutar da visão de seus
cachos louros e seu perfume de rosa híbrida. Chegou mesmo a
imaginar que podia sentir no cheiro o clima natural — os pinheiros, a
neve fresca, a fragrância da própria luz.
— Deixe tudo isso aqui — ordenou ele. — Vou falar com algum
superior.
— Já levei isso a um superior. Ele me disse para falar com você.
— Então, farei algo a respeito.
— Não acho que você fará.
— Então quem fará? Não será um daqueles lá embaixo.
Ele se referia aos escribas. Alguns estavam fazendo palavras
cruzadas no quadro-negro.
— Que bando de desgraçados — exclamou ele.
— Não são nem um pouco desgraçados — rebateu Elie. —
Apenas se encontram num lugar desgraçado.
— O mesmo acontece comigo. Mas continuo trabalhando.
Elie viu uma bola de cristal e três velas sobre a cômoda. Com os
pés, tocou numa mala postal cheia.
— O que tem aí dentro?
— Papéis para guardar — respondeu Stumpf.
Elie pegou um cartão-postal de dentro da mala. Era um cartão
comum, com os elogios coagidos de um prisioneiro e um selo de
Hitler. Stumpf olhou para Elie como um cachorro suplicante.
— Ponha isso de volta!— ordenou ele. — Vou achar um jeito de
responder. Prometo.

C
Stumpf não queria falar com seu substituto, Gerhardt Lodenstein,
que só ocupava aquele posto — disso Stumpf tinha certeza —, para
evitar que ele continuasse com as sessões espíritas. Resolveu
nunca mencionar o assunto Heidegger para ninguém e enterrar as
ordens, a carta, a receita e os óculos na fazenda de seu irmão. O
absurdo não merecia resposta. Um dia, Goebbels iria lhe agradecer.
Mas, quando voltou para sua mesa, ele se deu conta de que Elie
levara tudo, exceto a receita dos óculos de Heidegger. E, então, ele
percebeu a seguinte anotação naquele papel: Importante — para
uso futuro no caso de meu desaparecimento, Asher Englehardt. Tais
palavras o levaram a imaginar se Heidegger tinha problemas
especiais nos olhos — ouvira falar certa vez em algo chamado
córneas alongadas —, só Deus sabia o que mais podia haver de
errado. E se Heidegger não pudesse enxergar em consequência de
sua negligência e fosse perdoado, Stumpf corria o risco de ser
fuzilado.
Por isso, ele foi falar com o major-general Mueller, que viera para
o Complexo a fim de executar uma tarefa misteriosa para Goebbels
e estava a ponto de retornar à chancelaria do Reich, em Berlim.
Stumpf tirou seus sapatos de lã, calçou as botas e desceu da torre
pela escada em espiral. Precisou passar pelo salão principal para
chegar aos aposentos de Mueller. Acabou tropeçando no caminho,
mas ninguém lhe deu a menor atenção.

C
O major-general Mueller, que parecia um guaxinim com seu
casaco escuro e luvas de couro preto, estava comendo
fleischkonserve com gherkins (picles) sentado à sua mesa, no
espaçoso aposento à esquerda do salão principal do Complexo. Seu
quarto tinha uma cama de madeira de pau-rosa, uma cômoda
combinando, uma mesa de mogno e dois espelhos de molduras
douradas simulando janelas. Havia quatorze gherkins em seu prato
— doze a mais do que a porção diária. Ele estava comendo a mais
para se vingar por não ter sido convidado para o banquete.
Mueller não gostava de Stumpf nem de Lodenstein, mas tinha
algumas paixões em comum com eles. Com Stumpf, partilhava uma
paixão por Elie Schacten e pelo Reich. Com Lodenstein, por Elie
Schacten e pelo jogo de Paciência. Irritava-o que Lodenstein
pudesse satisfazer suas duas paixões, enquanto ele só satisfazia a
uma: a Paciência, que jogava enquanto lia seus papéis misteriosos,
dava seus telefonemas misteriosos e fazia as refeições. Quando
Stumpf entrou, ele estava concentrado num jogo chamado Czarina e
não se deu o trabalho de erguer o olhar.
— Preciso falar com você — disse Stumpf.
Mueller apanhou as cartas.
— Seja rápido, então. Estou de saída.
Stumpf não era esperto, mas possuía uma habilidade que o
tornava indispensável para o Reich, e, mais tarde, indesejável: ele
se recordava de tudo o que lia — palavra por palavra, vírgula por
vírgula — e então recitou as ordens com precisão. Quando acabou,
Mueller disse:
— Seu trabalho é responder às cartas dos mortos. E Heidegger
ainda não morreu.
— Exatamente o que pensei — concordou Stumpf.
— As pessoas estão começando a perder a noção das coisas.
Até mesmo Goebbels.
— Não deveria falar assim dele.
— Por que não? — reagiu Mueller, pegando outro legume. —
Himmler anda confuso. E Goebbels está se iludindo. Como chuva
numa noite escura.
Mueller frequentemente comparava as coisas ao clima, e Stumpf
nunca sabia ao certo o que ele queria dizer. A chuva caía no mesmo
lugar, fosse noite ou dia.
— Acho que você não está entendendo — disse ele. —
Heidegger e esse homem são amigos.
— Quem se importa? — exclamou Mueller. — Por outro lado —
continuou, fechando os olhos —, Goebbels tem sempre uma razão
para o que faz.
— E qual é a razão, desta vez?
— Eu estaria violando sua confiança se dissesse.
— Dê uma dica, então — pediu Stumpf.
— Mesmo uma dica seria errado — retrucou Mueller, que não
fazia a menor ideia de quais eram as razões de Goebbels. — Além
do mais — prosseguiu, dando um leve tapinha na própria cabeça —,
tenho que cuidar dela, e revelar segredos é uma boa maneira de
perdê-la.
— Elie Schacten acha que é porque são amigos — disse Stumpf.
— Elie Schacten é uma pessoa admirável — refletiu. — Mas está
tentando encontrar sentido em algo que não compreende.
Houve um momento de silêncio no qual ambos demonstraram
sua reverência por Elie Schacten — provedora de seus schnapps,
com seu perfume de rosa híbrida.
— Ele não a merece — concluiu Mueller, referindo-se a
Lodenstein. E guardou o baralho num estojo de couro. — Ele
deveria ser mandado para Berlim, porra!
— Talvez seja em breve — disse Stumpf.
— Com a sorte que tem, duvido. Vai ficar jogando baralho e
dormindo com ela para sempre.
— Goebbels está de olho nele.
— Goebbels está de olho em quase todo mundo. Sou uma
exceção — disse Mueller.
Stumpf tossiu e disse:
— Então você podia lhe perguntar sobre essas ordens? E sobre
a carta para Heidegger?
— Você enlouqueceu? Eu seria fuzilado. As pessoas estão fora
de si hoje em dia. Fazem exigências ridículas e recorrem a sessões
espíritas.
A menção às sessões espíritas deixou Stumpf tão nervoso que
ele comeu o gherkin que restava no prato de Mueller. Muitas vezes
achava que fora Mueller quem contara ao gabinete de Goebbels
sobre uma sessão espírita que tinha realizado, na qual uma vela
caíra e iniciara um incêndio num canto do quarto no andar superior.
Mueller o ajudara a apagar o fogo e era o único que tinha
conhecimento disso.
— Não acho que você deva fazer alguma coisa — continuou
Mueller, fechando o estojo de couro, onde guardava seus papéis
misteriosos. — O oculista era da mesma escola de Heidegger, antes
de Heidegger saber que ele era um ser inferior. Além disso,
Heidegger irritava todo mundo. Quero que ele vá para o inferno.
— Você está desejando que o antigo chanceler de Freiburg vá
para o inferno! Eu deveria denunciá-lo.
— Pois vá em frente. Deixe que me fuzilem.
A indiferença em sua voz era falsa. Muito embora se
preocupasse, achando que seus dias estavam contados, Mueller
ainda queria viver quanto fosse possível e estava furioso porque
fora ele, e não Lodenstein, o oficial a ser chamado de volta a Berlim.
Estava com tanta raiva que pensou em meter uma bala na cabeça
de Stumpf. Mas não poderia simplesmente jogá-lo na floresta e
cobri-lo com folhas. Haveria, sem dúvida, uma investigação.
— Faça o que quiser — disse ele, enfiando suas botas. — Leve
os malditos óculos. Deixe-os do lado de fora do trailer dele. Tenho
certeza de que Heidegger acredita em duendes. — Depois
continuou: — Mas não pense que os escribas vão ajudá-lo. Eles são
uns inúteis, só pensam em loterias e jogos de palavras. Você
deveria fuzilá-los.
— Não podemos fuzilar os escribas! Não haveria ninguém para
responder as cartas.
— Você realmente acredita que esses registros têm importância?
Stumpf, que nunca se esquecia de sua posição inferior, recuou.
— Tenho certeza de que os mortos estão esperando para lê-las
— respondeu.
— Ninguém acredita nisso.
— Himmler acredita.
— Mas Goebbels não — disse Mueller. — Ele não acredita nem
um pouco nisso. — Tirou o pó de uma das botas e entregou a
Stumpf uma pequena caixa de marfim e um baralho. — Diga a
Lodenstein que é um presente de despedida. E a caixinha é para
Elie Schacten.
— Não sou seu criado — reagiu Stumpf, recusando os objetos.
Em seguida, ele saiu do cômodo repleto de móveis de pau-rosa
ainda se sentindo sob pressão, porque ninguém no Complexo
encarava a missão com maior seriedade do que ele. Stumpf tinha
certeza de que a ideia de responder cartas aos mortos ou quase-
mortos ocorrera simultaneamente a ele e à Sociedade Thule, da
mesma forma que duas pessoas no século XVII — não se lembrava
dos nomes — tinham descoberto o cálculo matemático ao mesmo
tempo. Lodenstein tratava o projeto com tanta negligência que
Stumpf se irritava a ponto de acordar no meio da noite, convencido
de estar sendo perseguido pelos mortos. Ele teve certeza de que os
ouviu naquele momento.
C
Querido Abramo,

Por favor, não se preocupe. Tivemos que sair depressa do escritório


por conta de um trabalho importante. As condições são boas — bem
melhores do que em casa — e a comida é abundante. Se você
trouxer as crianças, poderemos ficar todos juntos.

Afetuosamente,
Vanessa
Após descer da torre de Stumpf, Elie Schacten sentou-se num
banco de ferro fora do salão principal do Complexo. Hans Ewigkeit,
junto a Thor Ungeheur, os projetistas do interior da mina, haviam
determinado que esses bancos fossem dispostos aleatoriamente
pela rua. A intenção era simular um exuberante parque municipal.
Elie sabia que Stumpf não faria nada, mas esperava ter plantado
a semente. Ela acendeu um cigarro e olhou para a fotografia de
Goebbels, pendurada perto do poço da mina. O retrato tinha um
metro e sessenta de altura, apenas alguns centímetros a menos do
que sua estatura real. Goebbels posava ao lado de um guarda-
chuva extraordinariamente pequeno, que o fazia parecer mais alto.
Quando Elie olhou para seu rosto, encontrou nele um bocado de
esperança. Mas quando se fixou em seus olhos, viu traços de uma
tristeza lacrimosa. Ela pegou as fotografias — a de Asher
Englehardt e Heidegger e a da loja destruída do oculista. Depois de
olhá-las, largou-as.
Alguns escribas lhe perguntaram se estava tudo bem, e Elie os
ignorou, folheando seu caderno vermelho-escuro. De tempos em
tempos, ela parava para ler alguma coisa — apenas alguns trechos
— uma floresta perto de casa, o gelo estalando na primavera —,
mas foi interrompida por Sonia Markova, uma bailarina russa que
praticava seus pliés num estado de eterna melancolia.
— Você parece preocupada — disse Sonia, sentando-se a seu
lado.
— Só estou cansada — respondeu Elie, fechando o caderno.
O casaco branco de pele de Sonia roçava em seu suéter de
caxemira e, por um momento, Elie se sentiu presa ao sonho de
Hans Ewigkeit: ela e Sonia não eram duas mulheres dez metros
abaixo da superfície, numa mina reformada, mas duas ricaças num
parque municipal. Ficou contente quando os escribas começaram a
discutir na cozinha, proporcionando-lhe uma desculpa para sair dali.
Todos queriam café, mas ninguém queria moer a quantidade
suficiente para todos. Elie se inclinou sob as panelas que se
entrechocavam e disse que ela mesma moeria os grãos. Mas os
escribas alegaram que ela já fazia muito por eles e pediram que
saísse dali. Então ela subiu até o quarto, onde Lodenstein estava
jogando a nona partida de Paciência do dia.

C
Lodenstein conhecia mais de cinquenta tipos de jogo. Entre eles,
o Zodíaco, Castelo da Indolência, Cinco Companheiros, Sete Irmãs,
Desperdice o Mesmo, Louva-a-Deus, Escaravelho, Rainhas
Gêmeas, Para Cima ou Para Baixo, Passo a Passo e Via Láctea.
Ele jogava fazendo pilhas e cascatas, e sentia uma excitação
sensual quando conseguia completar uma sequência. Além de Elie
Schacten, o baralho era a única coisa que o ajudava a manter a
sanidade. Quando ela entrou, ele estava jogando Czarina. Sua
bússola se encontrava no chão. Elie a pegou e a pôs sobre a mesa.
— Então — perguntou ele. — Stumpf é o seu anjo?
— Ele não entendeu nada — respondeu Elie.
— E alguma vez já entendeu alguma coisa?
— Nunca. Mas pensei que isso seria nossa vantagem desta vez.
— Nossa vantagem? — disse Lodenstein, olhando firme para
ela. — Tudo que eu quero é afastar os escribas da marcha da
morte.
— Você está imaginando o pior.
— Então por que você se incomoda com os resgates?
Elie não respondeu e despiu o cardigã. Os óculos de Heidegger
caíram do bolso. Lodenstein os pegou.
— Você acha que Goebbels dá alguma importância ao fato de
Heidegger precisar de seus óculos? — indagou ele. — A Alemanha
está perdendo a guerra; assim sendo, que outra maneira de se
sentir melhor, senão inventando ordens impossíveis?
— Ele não quer que Heidegger saiba sobre os campos de
concentração — disse Elie, pegando os óculos de volta. — E, se
eles não conseguirem o que querem, vão continuar fuçando.
— Ele daria um jeito, caso eles descobrissem.
— Ele não quer dar um jeito. Ele quer que nós façamos isso. E o
oficial do posto avançado está desesperado.
Lodenstein colocou algumas cartas de lado. Era uma jogada
especial chamada “calcanhar”.
— Você está vendo? — perguntou Elie, apontando para as
cartas. — Há sempre um jeito de quebrar as regras.
— É por isso que gosto de jogar Paciência. Não é um jogo
perigoso.
Elie ficou ao lado da janela, observando a neve salpicar os
ramos dos pinheiros. Perguntou-se se estaria nevando em
Auschwitz.
— Parece um quadro, lá fora — disse ela.
— Mas não é. Quem sabe quantos fugitivos estão escondidos na
floresta?
— E eu podia ter sido um deles.
— Graças a Deus, não é o caso.
— Exceto que não sou mais eu mesma. Às vezes, acho que
você não sabe quem sou.
— Claro que sei quem você é.
— Você sabe o que estou dizendo.
O que Elie queria dizer é que, frequentemente, se sentia duas
pessoas diferentes. Uma era Elie Schacten, nascida em Stuttgart,
tradutora na firma de importação Schiff und Wagg. A outra era Elie
Kowaleski, estudante de linguística em Freiburg.
Elie Schacten crescera na Alemanha com cantigas infantis e
aulas de culinária. Era noiva de um soldado que acabou morrendo
em combate. Elie Kowaleski fora criada por freiras polonesas que
batiam em seus dedos até sangrarem, seus pais a consideravam
uma desordeira e tinha uma irmã da qual sentia falta diariamente.
As duas Elies funcionavam juntas: a primeira, com cautela,
estabelecia laços com o mercado negro e conseguia comida para o
Complexo. A segunda era audaciosa, obtinha mais alimento do que
as pessoas pretendiam dar e enviava clandestinamente pessoas
para a Suíça.
— Eu gostaria que você me dissesse seu sobrenome verdadeiro
— pediu Lodenstein, não pela primeira vez.
— É segredo — disse Elie, e também não era a primeira vez.
— Não é bom se sentir como duas pessoas — insinuou ele.
— Mas eu sou duas pessoas. E algum dia podem fazer as
perguntas erradas para você. Portanto, quanto menos souber,
melhor.
Eles foram interrompidos pelo major-general Mueller, que entrou
sem bater e entregou um baralho para Lodenstein.
— Devo contar a Goebbels que você anda praticando qual jogo?
— perguntou ele. — Paciência Persa? Par ou Ímpar?
— Diga-lhe que estou jogando um que se chama Documentos
Embaralhados de Mueller — respondeu Lodenstein.
— Vá se foder — esbravejou Mueller.
Ele bateu a porta com força e puderam ouvir sua bolsa de lona
arrastar na rampa.
— Você o deixou furioso — disse Elie.
— Vá lá e tente consertar as coisas — sugeriu Lodenstein.
— Por quê? Ele é um porco.
— Quero que Goebbels continue satisfeito.
— Então, até você precisa da outra Elie.
— Não é isso. Você consegue encantar as pessoas — explicou
Lodenstein, abraçando-a. — Mas você é sempre a mesma para
mim.
C
Querida Yvonne,

Quando atravessei a fronteira, eles pegaram todos os meus


documentos e me levaram para um lugar agradável. Portanto, não
estou mais viajando incógnito. Parece ser da opinião da maioria que
aqui é um bom lugar e todos deveriam vir, inclusive você.

Com todo meu amor,


Maurice
Elie seguiu Mueller, que parecia incongruente com uma elegante
mala de couro e uma bolsa de lona surrada. Fora do trailer, havia
um atalho entre pedras ovais que conduzia à clareira. Mueller se
virou ao ouvir as botas de Elie quebrando o gelo.
— Que prazer vê-la — disse, segurando seu braço.
Elie manteve o braço esticado e o observou, levantando a mão
para o céu. O azul estava deslumbrante.
— Se ao menos pudéssemos ser como esse tempo — disse
Mueller.
— E quem disse que não podemos?
— A guerra. A chuva significa esperar para atacar, o sol significa
partir para o ataque, e o inverno significa Stalingrado.
— Mas Stalingrado foi no último inverno — disse Elie.
— E mudou o inverno para sempre.
Elie tentou soltar o braço. Mueller a puxou para mais perto.
— Deixe-me dar um conselho — pediu ele. — Não se envolva
com aquelas ordens.
— Que ordens?
— Você sabe quais. E sabe também que, se não fosse por certo
oficial, nós teríamos passado mais tempo juntos.
— Não sei do que está falando.
— Claro que sabe — disse Mueller.
Ele largou a bagagem e beijou a mão de Elie. Ela sentiu o bigode
roçar em seus dedos e lamentou não estar de luvas.
— Você é muito gentil — disse ela.
— Você sabe que eu não sou nem um pouco gentil.
— Eu sei que, para onde for, você fará o bem. E Gerhardt pensa
da mesma forma.
— Você está mentindo — disse Mueller. — Mas você, sim, fará o
bem. Sempre faz. Você é simplesmente boa demais para aquela
gente lá embaixo.
— Todos sofrem na guerra.
— Mas algumas pessoas não merecem sofrer tanto quanto
outras.
Eles chegaram até o Kübelwagen de Mueller, que se gabava de
ter recusado um jipe americano confiscado. Ele bateu levemente na
janela, depois inclinou-se na direção de Elie e disse em voz baixa:
— Em relação àqueles óculos, eu ignoraria tudo. As pessoas não
são mais as mesmas hoje em dia, e mesmo um coringa como
Heidegger não representa um problema. Quem se importará se ele
não receber os óculos? Nada é capaz de dobrar a vontade do
Reich. Nem mesmo os mortos.
Elie tentou parecer incrédula.
— Você acha mesmo? — perguntou ela.
— Claro que sim. O Führer não deixará seu bunker, e Goebbels
está sempre na praça do mercado, conversando sobre a guerra.
Quem pode realmente saber se foi ele mesmo que redigiu essas
ordens?
— Tenho certeza de que não foi ele — disse Elie.
— Fico contente que você concorde. — Ele retirou as luvas e
afagou as mãos dela. — Sentirei sua falta.
— Eu também. — Sua voz soou bem remota, como se viesse
dos confins da floresta.
— Será que o Oberst Lodenstein se incomodaria se eu a
beijasse?
— Ah... Você sabe... É melhor não criar problemas.
— Evidentemente. Mas se eu puder ajudá-la, avise. Enquanto
isso, certifique-se de que essa gente está respondendo as cartas.
Há idiomas demais convivendo naquele salão, e, se não se
mantiverem ocupados, será como a torre de Babel. E Stumpf
deveria deixar de incomodar Sonia Markova.
— Neste ponto, você tem razão — assentiu Elie.
— Pois bem, aqui está o beijo — disse Mueller, pressionando
seus lábios contra os dela, tão forte que suas medalhas
machucaram o queixo de Elie. — Você não imagina quanta
consideração tenho por você.
— Eu também — disse Elie. — Mas estou congelando aqui, sem
casaco.
Ela se virou para partir, mas Mueller a segurou pela manga e lhe
entregou a caixa de marfim.
— É uma caixa mágica — disse ele. — Tente abri-la.
Elie mexeu no objeto e a caixinha se abriu de repente. No
interior, havia um pé de ameixas esculpido em marfim.
— À primavera! — celebrou, com entusiasmo, Mueller. — A uma
estação totalmente nova!
— Ela é linda — elogiou Elie, devolvendo-a.
— É para você — disse ele.
— As coisas se perdem facilmente aqui.
— Ou será que certo Oberst ficaria com ciúmes? — disse ele,
forçando-a a manter a caixinha consigo. — De qualquer maneira, se
não ficar com ela, terei que contar uma ou duas coisas a Goebbels.
Ele se curvou com um floreio e saiu dirigindo pelo caminho de
terra. Os pneus do Kübelwagen partiam o gelo, lembrando a Elie
vidros estilhaçados.

C
Enquanto Mueller ia embora, Dieter Stumpf estava em sua torre,
decidindo qual escriba deveria responder à carta de Martin
Heidegger para Asher Englehardt. Era um aborrecimento responder
ainda que a uma única carta para um vivente, enquanto tantos
mortos aguardavam. Mas ele estava convencido de que, se
entregasse todas as cartas, Goebbels acabaria transferindo
Lodenstein para a torre e ele seria reempossado Oberst do
Complexo.
Com esse propósito, olhou para a grande área comum e
consultou a lista que detalhava a experiência profissional de cada
escriba: elaborada pela SS, a lista dizia onde cada um deles havia
nascido, assim como seus parentes, que escolas tinham
frequentado e o que haviam estudado. Enquanto lia a lista, Elie
Schacten abriu a porta para o salão principal e sentou-se à sua
mesa, que ficava diante dos escribas. Ela guardou os lápis dentro
dos potes, separou papéis e pegou seu caderno vermelho-escuro.
Olhando para o alto, viu Dieter Stumpf em sua torre. Ele desviou o
olhar.
Iluminado por lampiões a querosene, o amplo salão teria
parecido deprimente não fossem as manchas coloridas das
echarpes alegres dos escribas e de suas luvas sem dedo. Stumpf
olhava dos escribas para a lista, várias vezes. Na última vez que
contara, havia cinquenta e quatro escribas, e todos tinham estudado
alguma coisa que ele não entendia. Mas somente cinco possuíam
formação filosófica:
Havia uma mulher loura, de aspecto um tanto envelhecido,
chamada Gitka Kapusink, da Polônia, que fora retirada da fila de
deportação quando um homem da SS a ouviu falar em tcheco. E
seu namorado, Ferdinand La Toya, que usava um casaco longo e
preto e fumava charutos espanhóis bem fortes, escapou da
deportação quando um guarda mandou-o se foder e ele respondeu
— primeiro em catalão e depois em italiano: Em que circunstâncias?
E Niles Schopenhauer — que não era parente do Schopenhauer —,
que fora levado a um campo de trabalho porque falava sete línguas.
Havia também Sophie Nachtgarten, que tinha publicado um artigo
intitulado O tempo e o unicórnio: um tratado sobre a verdade
necessária. Ela surpreendera um guarda, cuja mãe era norueguesa,
ao entoar canções etílicas da Noruega, usufruindo de seu encanto
para ser enviada ao Complexo, e não a Bergen-Belsen. E Parvis
Nafissian, um homem de sobrancelhas escuras e grossas e
cavanhaque bem-aparado. Ele era o único escriba que tinha sido
forçado a escrever uma carta. Mas quando um guarda viu que havia
escrito uma em turco e outra em persa, retirou-o da fila em Treblinka
e o enfiou dentro de um Kübelwagen. Nafissian quase não
respondia a carta alguma. Preferia ficar lendo todas as histórias
policiais que Elie conseguia encontrar.
Stumpf resolveu que nenhum deles serviria, e — já que não
havia um que fosse capaz — os cinco poderiam escrever a carta
juntos. Estava a ponto de descer a escada em espiral para falar com
eles quando Sonia Markova bateu à porta e Stumpf deu início à
trabalhosa tarefa de destrancá-la. Sonia, que outrora dançara no
balé Bolshoi, fugira da Rússia para encontrar o namorado em
Berlim, foi presa na volta e demonstrou conhecer três dialetos
russos. Suas pernas eram magníficas, as maçãs do rosto,
proeminentes, tinha olhos verdes, pele translúcida e cabelo
cacheado preto. Ela era ainda clarividente e, às vezes, concordava
em participar de sessões espíritas secretas — não só para pessoas
que tinham morrido nos campos de concentração e nos guetos, mas
também para pessoas comuns: o alfaiate do século XIX, por
exemplo, cuja sessão espírita provocara o incêndio no andar de
cima, ou uma mulher que escrevera para seu amado que guerreava
na Crimeia. Stumpf pegara essas cartas sigilosamente nos sótãos
de pessoas que haviam sido deportadas ou em velhos depósitos e
arquivos dos escritórios do governo. Havia cartas de fabricantes de
botões, de vagões, de casacos de pele, de barcos, de carroças,
impressores, ilusionistas e artistas. Ele acreditava que todos os
mortos mereciam respostas.
Agora Sonia entrava com ar sombrio, dizendo que não
conseguia se concentrar em coisa alguma porque era o aniversário
da sua sobrinha.
— Ela está com dez anos — disse Sonia. — E nem sequer sabe
onde estou.
Stumpf disse que ela se sentiria melhor se segurasse uma de
suas bolas de cristal. Ele esperava que aquilo se transformasse
numa sessão espírita para todos os mortos cujas cartas enterraria
no campo de centeio do irmão e tencionava enviar uma carta
coletiva pedindo perdão por não responder a cada uma
individualmente. Mas Sonia sentou-se no chão, parecendo um
monte de neve dentro de seu casaco de pele, e começou a chorar.
Quando Stumpf perguntou por que estava chorando, ela respondeu
que sentia falta de todas as pessoas de sua família.
— Até mesmo daquelas de quem eu não gostava.
Stumpf retirou o casaco dela e a abraçou cautelosamente,
sentindo o volume de seu corpo. Sonia estava frequentemente triste,
e isso podia desencadear sua própria tristeza — profunda,
rudimentar, desde que fora deslocado para o subsolo. Mas se ele se
concentrasse no corpo dela, era quase possível tirar prazer de seu
sofrimento, já que ela lhe permitia reconfortá-la. Algumas vezes, os
dois acabavam deitados em seu colchão — ela chorando e ele a
acariciando. Mas não desta vez. Sonia recolocou o casaco e disse
que estava triste demais para o amor.
— Por favor, não vá embora — pediu Stumpf e então agarrou
uma das mangas do casaco de pele dela. — Se ao menos não
estivéssemos na camada mais baixa!
— O quê? — Sonia puxou o braço de volta.
— Se ao menos houvesse uma camada abaixo de nós. Com
pessoas que pudessem ajudar.
— Você quer dizer pessoas ainda mais abaixo do que nós, com
menos ar para respirar? Como pode pensar assim? Já vivemos feito
animais.
Sonia alisou a manga do casaco que Stumpf segurara e desceu
a escada. Momentos depois, ele a viu à sua mesa — as pontas
brancas dos dedos emergindo das luvas em tom vermelho-escuro.
Ela parecia zangada e irresistível. Stumpf desceu pela escada
em espiral a fim de lhe pedir que voltasse. Mas queria disfarçar suas
razões para se afastar do trabalho, então começou a examinar as
parafernálias nas paredes. Ele sabia que era o único exemplo de
diligência dentro do Complexo e não deveria desperdiçar muito
tempo. Então, mexeu de modo rápido e casual nos objetos e acabou
derrubando um rolo de lã. O novelo caiu sobre o telescópio, que
caiu sobre o manequim de alfaiate, e o manequim de alfaiate caiu
sobre um relógio. Os escribas aplaudiram, e Stumpf estava a ponto
de se esgueirar para sua torre quando sentiu o perfume de rosa
híbrida de Elie Schacten.
— Dieter — chamou ela, baixinho. — Justamente quem eu
queria encontrar.

C
Mesmo agora, que já havia tão precipitadamente apanhado tudo
que queria enterrar, Stumpf ficou feliz por ser interceptado por Elie
Schacten. Sempre que a via, ou a qualquer coisa que lhe
pertencesse, era tomado por uma inexplicável excitação, inclusive
em relação à sua enorme mesa, que ficava diante de uma multidão
de escribas e transmitia a ele uma impressão de onipotência, de
coragem — como Elie.
Foi para perto dessa mesa que ele puxou uma cadeira. Elie
deixou a lista de lado — ela nunca fingia monitorar os escribas — e
lhe ofereceu um pedaço de chocolate.
Stumpf degustou o recheio de conhaque explodindo em sua
boca. Ela lhe deu mais três pedaços. Ele não gostava da maneira
como Elie conseguia favores, mas adorava os chocolates e os
schnapps que ela trazia para o Complexo, e tinha certeza de que
ambos poderiam perfeitamente ser colegas, se pelo menos ela
acreditasse, como ele, que a Alemanha iria vencer a guerra. Ele
olhou para Elie melancolicamente, esperando que ela adivinhasse o
que estava sentindo. Ela sorriu para ele e disse:
— Sinto muito por Goebbels, Dieter. Ele anda com a cabeça
cheia ultimamente.
— É muito duro ficar à margem da vitória — retrucou Stumpf.
— Exatamente. E Gerhardt não quer incomodá-lo. Mas as
ordens são confusas. Então, seria útil se você ligasse. Você sabe
como falar com ele.
Stumpf sentiu um tique nervoso apoderar-se de seu olho
esquerdo. Começou a latejar.
— Ninguém telefona para Goebbels.
— Mas você tem influência, Dieter.
— Claro que tenho influência — disse ele. — No entanto, quanto
mais influência se tem, mais cuidado é necessário para usá-la.
Elie tocou em seu braço e se inclinou para perto dele. Mais uma
vez ele se viu envolvido pelo perfume de rosa.
— Talvez o oculista pudesse vir até aqui e responder ele mesmo
a carta — sugeriu ela. — Afinal de contas, Heidegger escreveu para
ele.
O toque da mão de Elie era delicioso; mas o tique nervoso o
distraía.
— Impossível — sussurrou Stumpf. — Nós só escrevemos para
os mortos. Eles precisam de nós. Estão esperando notícias.
— É por isso que as ordens são confusas — disse Elie. —
Aliás... acabei de ouvir uma história sobre uma pessoa que escapou
de Auschwitz.
— Você está se referindo à porra daquele anjo sobre o qual
andam falando? — inquiriu Stumpf.
— Não, não — respondeu Elie, que se referia exatamente a ele.
— Foi uma mulher que conseguiu tirar o marido de lá. A mãe dele
era ariana, assim como a de Asher Englehardt.
— Como ela conheceu o marido? — perguntou Stumpf.
— Num encontro da Juventude Hitlerista.
— Então é por isso que ele conseguiu sair de lá. Todos os jovens
deveriam frequentar esses encontros.
Stumpf olhou para a caixa retangular repleta de óculos sobre a
mesa de Elie. Ele se aproximou e tocou a caixa com furtiva
reverência.
— Todos eles pertencem a Heidegger? — perguntou ele.
— Só um deles — respondeu Elie.
— Como você sabe?
— Porque têm etiquetas — explicou Elie, puxando a caixa para
mais perto.
— Heidegger tem problemas graves de visão?
— Pode ser que sim — respondeu Elie, que sabia que ele era
apenas míope.
— Então precisamos entregar-lhe os óculos.
— Mas não sem a carta. Senão Frau Heidegger vai ter um
ataque.
— O que ela tem a ver com isso?
— Goebbels encontrou-se com ela. É por isso que essas ordens
foram redigidas.
— Goebbels encontrou-se com Frau Heidegger? Mas ele é muito
ocupado.
— Mas a encontrou — confirmou Elie. — Eles tiveram uma longa
reunião no gabinete dele.
O tique voltou e Stumpf levou a mão à testa, tentando
interrompê-lo. Mas o olho continuou se mexendo e pulsando, como
se estivesse em chamas. Então ele se recordou da decisão de que
todos os cinco escribas deveriam responder à carta — um assunto
que parecia urgente, desde que soubera do encontro entre Frau
Heidegger e Joseph Goebbels.

C
Quanto mais Elie persistia em obter uma resposta, mais o tique
nervoso de Stumpf se intensificava. Finalmente, ele virou-se para os
escribas e gritou:
— Preciso ver os cinco filósofos.
— Pelo amor de Deus — exclamou Elie. — Deixe-os fora disso.
— Escrever cartas é o trabalho deles.
E logo, para a consternação de Elie, Gitka Kapusinki, Sophie
Nachtgarten, Parvis Nafissian, Ferdinand La Toya e Niles
Schopenhauer rodeavam a mesa dela. Stumpf recitou a carta e
ordenou que eles a respondessem.
— Mas só respondemos às cartas dos mortos — protestou
Parvis Nafissian.
— Ou daqueles que estão para morrer — acrescentou Gitka
Kapusinki.
— Ou dos quase-mortos — disse por sua vez Sophie
Nachtgarten.
— Com Heidegger é diferente. — Foi a resposta de Stumpf.
— É por isso que não podemos responder a carta — disse
Ferdinand La Toya. — Vai de encontro à missão.
Em seguida, os cinco se inclinaram sobre a mesa de Elie e
começaram a conversar sobre Heidegger, como se Stumpf não
estivesse ali.
— A carta fala de caminhos e clareiras na Floresta Negra —
disse Niles Schopenhauer. — É impossível pensar nisso dentro
desta masmorra.
— Além disso, é preciso muito mais do que ar fresco —
interrompeu-o Sophie Nachtgarten. — Ele é um místico envolvido
com etimologia.
— Eu não concordo — exclamou Gitka Kapusinki. — Ele está
certo sobre um monte de coisas. Mas não tem a menor ideia de
como elas funcionam no mundo real.
Aquela conversa desnorteante aumentou a frequência do tique
nervoso de Stumpf. Ele bateu com a mão na mesa de Elie e recitou
o início da carta tão alto que todos no salão puderam ouvir.
Com relação à sua recente observação sobre a natureza do Ser,
eu queria enfatizar mais uma vez que foi a distância de meus óculos
que me aproximou deles.
Os escribas acharam graça, e Niles Schopenhauer disse que
eles deveriam traduzir a carta para a língua que haviam inventado, a
qual chamavam sonhatório.
Stumpf ergueu a mão na direção de Niles e roçou com ela a
bochecha dele.
— Ponha-se no seu lugar — ordenou. — Você não passa de um
escriba de merda.
— Não os envolva nisso — intercedeu Elie. — Não é culpa
deles. Se alguém nos pegar levando a carta, estaremos em apuros,
e se não a levarmos, estaremos em apuros do mesmo jeito.
— Um paradoxo! — exclamou La Toya.
— De fato! — concordou Gitka.
A noção de paradoxo era demais para Stumpf. Ele se dirigiu a
Sonia e pediu que ela o acompanhasse até em cima, mas sua
resposta foi que a leitura da carta a deixara pensativa e ela queria
se sentar à sua mesa para refletir sobre a distância.
C
Querido Xavier,

Fiz uma boa viagem e comi bem. Já é noite agora. O céu é tão
ofuscante que não consigo ver a lua nem as estrelas, mas tenho
certeza de que, se você vier para cá, nós poderemos passear à
noite, como costumávamos fazer.

Com amor,
Marie-Claire
O tique prosseguiu. Quando Stumpf voltou para a torre, sua vista
tremia da mesma maneira que seu cérebro. Apreensivo e receoso,
ele resolveu desobedecer a uma ordem estrita e abordar um escriba
que estava proibido de responder cartas em alemão: Mikhail
Solomon.
Quando projetou o Complexo, Hans Ewigkeit havia agrupado a
maior parte dos cômodos usando o exíguo poço como ponto de
referência. Dando as costas para o poço, a cozinha ficava à
esquerda, o quarto dos guardas e os aposentos dos oficiais à
direita, e o salão principal bem à frente. Mas o caminho de pedras
se estendia por trinta metros até um beco sem saída, finalizando em
uma parede que escondia a passagem subterrânea até a cidade
mais próxima. E a poucos metros dessa parede, havia uma casinha
branca com quatro vasos de rosas artificiais, um pé de pera artificial
e uma janela gradeada. Aquela rua não tinha nome, mas a casa
tinha um número — 917 — gravado em bronze sobre a porta.
Mikhail Solomon vivia ali com a esposa, Talia. Eles haviam sido
designados Echte Juden, judeus puros, e ficaram responsáveis por
responder a todas as correspondências redigidas em hebraico —
cartas de pessoas que o Reich considerava devotas. Para garantir
que as cartas estivessem de acordo com o lema Responder da
mesma forma, os Solomon moravam numa casa como a que o
projetista de interiores Thor Ungeheur imaginara que eles viviam
antes de serem enviados para o gueto de Lodz, na Polônia.
Possuíam duas pequenas cozinhas onde era impossível cozinhar, e
tinham permissão para preservar seus costumes, o que
correspondia ao vago entendimento do Reich sobre menorás e uma
vela trançada com mais de um pavio. Estavam proibidos de
trabalhar aos sábados.
Os Solomon formavam um casal improvável, retirado de um
vagão de gado quando estavam prestes a partir do gueto de Lodz
para Auschwitz. Mikhail era um homem fraco e bem escanhoado,
que cobria a cabeça com quipá. Talia era uns vinte centímetros mais
alta, com a sombra de um bigode sobre os lábios, ombros largos e
cabelos ruivos atados numa longa trança embutida. Antes da
guerra, Mikhail lecionara ética na Universidade de Berlim, e Talia
ensinava inglês. Os Solomon não eram ortodoxos. Ignoravam as
ordens de Goebbels de permanecerem isolados e iam para o salão
principal todos os dias, tomando parte nos jogos de palavras e na
troca de cigarros. Eles também utilizavam a cozinha principal.
Além do privilégio de uma casa, Mikhail era a única pessoa, além
de Elie Schacten, que podia sair do Complexo após meia-noite.
Muito depois de ser realizado o sorteio para usar o antigo quarto de
Elie, quando os escribas estavam fazendo amor, ouvindo a conversa
dos outros ou trocando bilhetes, Mikhail era o único a poder admitir
que estava acordado. Então, Lars Eisenscher batia à sua porta e o
conduzia em meio aos corpos e mesas do salão principal, ouvindo o
farfalhar de papéis e o barulho dos roncos. Entravam no poço,
passavam pela rampa e seguiam pelo caminho de pedras à
esquerda do Complexo, onde subiam até um posto de observação,
a pouco mais de doze metros da entrada.
O posto de observação tinha uma escada íngreme que conduzia
a uma plataforma com vista panorâmica do céu noturno. E, nesta
plataforma, Mikhail fingia ler as estrelas. Ele explicara para o Reich
que era cabalista, e os cabalistas precisam meditar sobre o céu
após meia-noite. Hitler não sabia que as estrelas eram anjos e
podiam prever o futuro?
Assim que o Reich ouviu isso, um memorando foi enviado:
Deixem o judeu ler as estrelas. Mikhail não se surpreendeu. Todo
mundo sabia que Hitler se aconselhava com um astrólogo sobre a
guerra, e que Churchill consultava outro para prever as estratégias
de Hitler. O próprio Mikhail não acreditava em anjos ou em
astrologia. Ansiava apenas por ar fresco e pela infinita liberdade que
sentia quando olhava para o céu, impermeável à guerra, sem
trincheiras, países ou fronteiras.
Às vezes, ele gostava de imaginar cada estrela como uma
palavra, e o céu, como um pedaço de papel. Então as estrelas se
desenrolavam em frases — uma proclamação para uma única noite.
Algumas vezes, ele as anunciava no salão principal pela manhã. A
última havia sido a persistência do fogo.
C
Querida mamãe,

Fiquei esperando você no trem e você não apareceu. Havia muitas


crianças no trem, algumas com mães e pais. Meus sapatos estavam
muito apertados, então eu os tirei e os perdi. Por favor, venha ficar
comigo.

Eu amo você.
Miep
O avô de Mikhail, que de fato acreditava que as estrelas eram
anjos, certa vez lhe dissera que, sempre que quisesse alguma coisa
— fosse patins ou uma jaqueta nova —, ele deveria acender uma
vela à meia-noite e rezar para as estrelas. Mikhail achou isso bizarro
na época e se sentiu desconcertado desde a ascensão do Reich ao
poder, quando passou a desejar que seu avô tivesse razão. Mas se
as estrelas eram anjos, então eram anjos mudos, indiferentes. Nem
uma única vez eles lhe haviam oferecido ajuda.
Na noite que se seguiu à chegada dos óculos de Heidegger, as
estrelas estavam deslumbrantemente visíveis. Mikhail observou a
constelação na forma de trono da rainha Cassiopeia, que esperava
pela rainha. E a de Aquário carregando a água — longe demais
para que a água alcançasse a terra. Seis plêiades dançavam, e a
sétima, como sempre, estava oculta.
Naquela noite, ele ficou olhando para as estrelas por menos
tempo do que de costume. Nesse mesmo dia, Stumpf lhe dera mais
de trinta cartas de crianças. Ele leu algumas, mas não respondeu a
nenhuma. Não estava inspirado. A maior parte das cartas passara
por sobre as cercas acorrentadas do gueto de Lodz, antes de o
vagão de gado levar as crianças para Auschwitz. Seriam essas
crianças devotas, por usarem o alfabeto hebreu? Mikhail não sabia
mais o que significava a palavra devoto. Tudo que sentiu foi alívio
por não reconhecer o nome de nenhuma daquelas crianças.
Lars sentou-se a seu lado, em silêncio. Eles haviam criado uma
singela amizade durante as noites em que Mikhail lia as estrelas.
Lars podia perceber quando Mikhail — que tinha aproximadamente
a mesma idade do seu pai — precisava de tempo para pensar e
quando tinha vontade de conversar. Depois de um momento, Lars
disse:
— Há alguma mensagem esta noite?
Mikhail sorriu. Lars tinha os mesmos olhos intensamente verdes
de seu filho, e a mesma curiosidade.
— Os anjos estão dormindo — respondeu.
— Mas você me contou que trabalham em turnos — disse Lars.
— Às vezes, trabalham. Mas até os anjos precisam descansar.
Lars subiu no parapeito e olhou para o céu. Parecia ter bem
menos do que dezoito anos.
— Elas não disseram nada?
— Só uma coisa — respondeu Mikhail. — Haniel, o guarda dos
Portões do Oeste, disse: Para que se incomodar respondendo às
cartas? É melhor deixar os mortos curiosos.
— Aposto que estão certos. Nunca enviei bilhetes de
agradecimento à minha avó, e ela nunca me incomodou por isso.
— Está vendo? — exclamou Mikhail.
— Mas o que você acha? — perguntou Lars. — Será que os
mortos leem mesmo as cartas dentro dos caixotes?
— Se os mortos fazem alguma coisa, é tapar os ouvidos quando
Stumpf começa a falar.
Lars riu e eles se sentaram na plataforma de madeira para dividir
um cigarro. Nenhum dos dois queria voltar para o Complexo. À
noite, desaparecia qualquer pretensão de ser um lugar para se viver
e o local se tornava apenas uma mina, com um surpreendente odor
mineral. Quando terminaram de fumar, Mikhail acendeu outro
cigarro e perguntou a Lars se ele tinha notícias do pai.
Lars balançou a cabeça em um gesto negativo. Seu pai era
pastor e havia sido preso três vezes por criticar Hitler. Ele temia que
suas cartas pudessem colocar o filho em perigo e raramente
escrevia.
— Deve ser difícil para ele, a sua ausência — refletiu Mikhail.
— Para mim também é.
No caminho de volta, eles pararam no poço e beberam água de
uma concha de metal. Lars lançou o facho de luz da lanterna na
floresta.
— Tome cuidado — pediu Mikhail. — Você pode provocar
alguém.
— Você não acredita em fantasmas.
— Não — disse Mikhail. — Mas eu acredito na SS.

C
Mikhail e Lars alcançaram o trailer, desceram a rampa e
entraram no poço da mina até chegar ao caminho de pedras, onde
Elie e Stumpf se encontravam sentados num banco de ferro fundido.
Stumpf estava com seus sapatos de lã e estendia as mãos num
gesto suplicante e inconveniente. Elie negava com um gesto de
cabeça.
— Eu preciso daqueles óculos — disse Stumpf. — Heidegger
merece enxergar.
— Você vai enterrá-los — disse Elie. — E nunca enviará a carta.
— Qualquer trapaceiro em Paris sabe que não se pode esperar
uma resposta de um judeu — respondeu Stumpf.
Lars apressou Mikhail pela rua. Achava que já era difícil demais
para Mikhail ter que se preocupar em ler cartas de pessoas que
conhecia, e ele não precisava escutar Stumpf reclamando sobre os
óculos de Heidegger e o maldito oculista judeu. Mas Stumpf correu
para alcançá-los, e os três seguiram andando sob as estrelas de
mentira.
— O que você acha? — perguntou Stumpf a Mikhail, sem
disfarçar que queria uma explicação.
— Existem excelentes oculistas arianos — respondeu Mikhail. —
A essa altura, Heidegger já deve ter conseguido óculos novos.
— Estou cansado de ouvir falar de oculistas arianos — queixou-
se Stumpf. — Um homem encomenda um par de óculos e nunca
recebe uma resposta.
— Heidegger gosta do desconhecido — disse Mikhail.
— Não estamos falando sobre o desconhecido — protestou
Stumpf. — Estamos falando sobre óculos. Além do mais, eles eram
amigos. Eles se correspondiam.
— Como você sabe? — questionou Mikhail.
— Pesquisei.
Stumpf estava sempre dizendo para Mikhail que fazia pesquisas.
Eles chegaram à casa branca com quatro vasos de rosas
artificiais, o pé de pera artificial e o número 917 na placa de bronze.
Mikhail contornou um dos vasos e abriu a porta. Stumpf empurrou
Lars e tocou no ombro de Mikhail.
— Posso entrar?
O rosto de Stumpf pareceu contrito, como as pessoas ficam
quando pensam que podem ser fuziladas. Mikhail conhecia aquela
expressão. Ele a vira nos olhos de Talia quando a SS invadira sua
casa. Ele a vira nos olhos do próprio filho, quando a polícia do gueto
o empurrara até a frente da praça, em Lodz.
— Um minuto — respondeu ele. — Antes deixe-me dar boa-noite
a Lars. Você sabe que ele se preocupa comigo.
C
Querida Ania,

Esperei alguns dias para escrever-lhe porque a viagem foi longa.


Mas o campo é lindo, cheio de bosques e lugares para as crianças
brincarem. Por favor, venha me encontrar.

Com todo meu amor,


Christofer
Lampiões do século XIX, época na qual Thorsten Ungeheur, o
projetista de interiores, pensava que os Solomon ainda estavam
confinados, iluminavam uma sala do tipo que tanto Mikhail quanto
Stumpf tinham visto apenas em gravuras — um ambiente todo em
madeira escura, metais polidos e mobílias aveludadas. Na sala de
estar havia cadeiras em veludo roxo, sofá no mesmo tecido, uma
cadeira de balanço com revestimento em crochê e mesas com
lampiões sobre pedestais de cobre. As paredes ostentavam quadros
de homens barbudos com quipás — supostamente retratos dos
ancestrais —, encomendados por Thorsten Ungeheur, que não
sabia que judeus ortodoxos não permitem culto às imagens. Havia
também um tamborete coberto de bordados com o alfabeto hebreu,
que não passava mensagem alguma. Talia dormia na alcova, à
direita da sala de estar.
Mikhail acendeu um dos lampiões e os dois se sentaram nas
cadeiras macias de veludo. Stumpf se instalou rigidamente, com os
sapatos de lã no chão. Mikhail sentou-se mais à vontade, com as
pernas cruzadas. Stumpf lhe ofereceu um cigarro. Mikhail o acendeu
e comentou que a brasa era mais brilhante do que as estrelas.
— Concordo — disse Stumpf. — Mas não podemos inalar as
estrelas.
— Com o tipo certo de fumaça, é possível.
Stumpf não fez qualquer comentário. Em vez disso, entregou-lhe
uma reprodução da carta de Heidegger, que redigira de memória.
Mikhail balançou a cabeça ao ler que o Reich não compreendia o
Ser da tecnologia, e pareceu confuso com o trecho sobre a
importância das raízes das palavras alemãs. Quando finalmente
terminou a leitura, colocou a carta sobre a mesa de tampo
ornamentado.
— Que rebuscamento mental! — exclamou ele.
— Mas você pode rebuscar uma resposta.
— Acho que não — respondeu Mikhail.
— Por que não? — indagou Stumpf. — É uma carta clara e
direta.
— É mesmo? Então responda você.
— Sou um homem prático.
Mikhail sorriu para Stumpf.
— A questão é que sou um Echte Jude — disse ele. — Só
respondo às cartas em hebraico e em iídiche.
— Mas você pode escrever uma boa carta em alemão — insistiu
Stumpf.
— É mesmo? — retorquiu Mikhail. — Você acha que alguém que
tenha estudado o talmude pode pegar qualquer tópico, virá-lo de
cabeça para baixo e disparar um monte de palavras que deixaria
qualquer filósofo feliz? Além disso, minha caligrafia é diferente.
Stumpf bateu a cinza de seu cigarro: uma estrela cadente.
— A carta pode ser datilografada.
— Goebbels determinou que Echte Juden não devem
datilografar.
— Eu penso diferente — disse Stumpf.
Mikhail começou a falar sobre máquinas de escrever: a
quantidade enorme que traziam para o Complexo, e como já
cobriam as paredes, parecendo cercas vivas. Como mais de
cinquenta pessoas datilografando ao mesmo tempo parecia um fogo
de artilharia.
Stumpf escutou sem compreender, até que Mikhail disse que a
questão não eram as máquinas de escrever, mas uma barganha. Na
verdade, Mikhail impunha uma condição — algo que deveria ficar
apenas entre os dois. Ele só escreveria a carta se Stumpf
concordasse com o trato.
A BARGANHA
C
Querido tio Johannes,

Estou escrevendo após uma bela viagem até Theresienstadt. É


muito bonito aqui. Há um lugar onde posso brincar de esconde-
esconde com outras crianças e vamos encenar uma ópera num
palco de verdade. Todos nós estamos com saudades. Faz alguns
dias que não vejo mamãe e papai, mas as camas aqui são bem
aquecidas, e mamãe e papai me disseram para lhe contar que há
também um bocado de tabaco para você fumar com seu cachimbo.

Com amor,
Pieter
Hans Ewigkeit tinha planejado inicialmente revestir a mina com
espessas paredes de tijolos. Contudo, antes mesmo de perder
Stalingrado, o Reich já estava em situação financeira difícil. Assim,
em vez de paredes de tijolos, o Complexo possuía finas paredes de
madeira de pinho cobertas por uma única camada de argamassa.
Os operários haviam acrescentado cinco demãos de tinta. Mas o
Complexo era uma concha frágil: os escribas tapavam os ouvidos
com as mãos quando queriam pensar. Mueller costumava usar
protetores auriculares.
Os únicos locais à prova de som dentro de todo o Complexo
eram próximos às paredes originais da mina. Havia quatro desses
lugares e, de longe, o melhor deles ficava entre dois pilares de
sustentação, com acesso através de uma passagem de ar, no teto
do banheiro menor. Era um lugar desagradável e apertado, mas
hermeticamente vedado. Foi para lá que Dieter Stumpf e Mikhail
Solomon se encaminharam, a fim de discutir a condição imposta por
Mikhail.
Quando saíram da casa de Solomon, já passava da uma hora da
madrugada e os escribas ainda estavam rindo na cozinha.
Normalmente, Stumpf teria reclamado com eles por estarem
acordados depois do toque de recolher. Mas ele apenas se agachou
para entrar no pequeno banheiro com Mikhail. Subindo em um
caixote, eles abriram a janela de ventilação, penetraram na caverna
irregular e fecharam a passagem. A caverna tinha menos de um
metro de altura, por isso tiveram que ficar agachados.
Mikhail e Stumpf se acomodaram no espaço exíguo, mantendo
alguma distância na completa escuridão. Ambos desejavam com
todas as forças que ninguém usasse o banheiro porque, às vezes,
as pessoas ficavam presas naquele claustro escuro quando um
infeliz após outro cismava de usar o sanitário. Stumpf e Mikhail não
queriam ficar confinados juntos. Além disso, ter que escutar alguém
urinar ou defecar era pior do que ser interrompido por outras
pessoas que quisessem vir para o esconderijo a fim de conversar a
sós. Num acordo tácito, todos os habitantes do Complexo
consideravam aquele espaço um refúgio. Mesmo que as pessoas
que viessem a utilizar o lugar fossem oficiais, elas se desculpavam e
iam embora.
A condição de Mikhail para responder à carta de Heidegger era a
seguinte: o resgate de sua sobrinha — a única filha de sua irmã.
Nos últimos cinco meses, ela vinha se escondendo num lugar
apertado, sob o forro do assoalho de uma casa no norte da
Alemanha. Todas as semanas, homens da SS iam até a casa e
colocavam um estetoscópio no chão, convencidos de que havia um
batimento cardíaco ali dentro. Até então, eles não tinham
conseguido localizar exatamente o batimento; mas era uma questão
de tempo. Mikhail queria que Stumpf trouxesse sua sobrinha para o
Complexo, antes que os homens da SS a fuzilassem ou a
deportassem para um campo de concentração.
As deportações não deviam ser de conhecimento público, mas
Stumpf não estava preocupado em negar coisa alguma. Em vez
disso, tentou argumentar que o Complexo não admitia crianças: os
pais não escreviam para as crianças pequenas, portanto, não havia
necessidade de existirem crianças para responderem às cartas.
Mikhail retrucou que a sobrinha não era exatamente uma criança, e
que nunca lhe ocorrera que ela tivesse que responder cartas. A
questão era salvar a vida dela.
— Mas todo mundo aqui tem que trabalhar — disse Stumpf.
— Neste caso, já que você não vai me ajudar, não posso
responder a Heidegger — ameaçou Mikhail.
Embora Mikhail não conseguisse enxergá-lo, Stumpf virou o
rosto para esconder sua decepção. Em seguida, perguntou:
— Quantos anos tem essa menina?
— Quase dezesseis. Por quê?
— Porque ela precisaria atravessar a cidade andando
calmamente. Ela consegue manter a calma?
— Claro que sim. De que outra maneira seria capaz de passar
cinco meses enclausurada em um espaço tão apertado?
Stumpf estendeu os braços num gesto de desamparo — invisível
no escuro. Acidentalmente, ele tocou o ombro de Mikhail, depois
recolheu os braços muito depressa e disse que não sabia o que
fazer. As ordens de Goebbels eram de entregar os óculos de
Heidegger com uma resposta convincente à sua carta. Mas Stumpf
não tinha condições de escrevê-la sozinho.
— Sou um homem prático — repetiu ele.
— Isso é um dilema — retrucou Mikhail.
— Um paradoxo — concluiu Stumpf.
Fizeram a trabalhosa descida até saírem pela janela de
ventilação e Stumpf disse a Mikhail que pensaria no assunto. Ele
passou como pôde pela cozinha para chegar até sua torre de
sentinela. Lá de cima, observou os escribas, aninhados nas mesas,
puxando os cobertores para se manterem aquecidos. Ocorreu-lhe
que pareciam jiboias. Alguém berrou dormindo. Outro mandou-o se
calar. Houve um coro de vários cale a boca e um levante de
sussurros.
Stumpf bateu na janela e gritou: Ordem! Um comando que fez
outro escriba berrar:
— Silêncio! Estamos tentando dormir!
Stumpf observava a cena com desprezo, enquanto os escribas
catavam mais cobertores e papéis espalhados pelo chão. Ele
considerou oferecer a todos os cinco filósofos um pedaço de
presunto e um suprimento extra de cigarros em troca de
responderem à carta. Mas um suborno visível poderia gerar fofocas,
e fofocas poderiam provocar o caos, e já havia caos suficiente no
Complexo.
Ainda na semana anterior, alguém rabiscara a palavra sonhatório
na porta principal. Stumpf a apagara, mas, no dia seguinte, lá estava
ela escrita novamente. Ele cogitou descer para apagá-la mais uma
vez. Mas, em poucos instantes, pegara no sono em sua cadeira, a
cabeça apoiada contra o vidro da janela da torre.

C
Todas as tardes, entre uma hora e uma e meia, era obrigação de
Stumpf ordenar aos escribas que imaginassem Joseph Goebbels,
chefe do Ministério Nacional para Esclarecimento Público e
Propaganda. O ritual era um ensaio para a visita de Goebbels ao
Complexo — um evento que era continuamente anunciado e adiado.
A razão para imaginá-lo, conforme explicava Stumpf, era para que
ninguém ficasse espantado quando ele chegasse e todos pudessem
responder às suas perguntas. Gerhardt Lodenstein permitia que
Stumpf realizasse esse exercício a fim de que se sentisse útil —
uma ilusão que poupava os escribas de seus discursos exagerados.
Durante o exercício, os escribas tinham que empurrar as
máquinas de escrever para a extremidade da mesa e deixar as
canetas e as cartas de lado. Em seguida, imaginar Goebbels na
sequência correta, começando pelas botas, passando por suas
calças e terminando em seu rosto. Nunca se mencionava seu pé
torto. E aquele que não o imaginasse na ordem certa era punido.
Stumpf andava entre as mesas, lamentando não poder fazer
com que os escribas imaginassem Heinrich Himmler no lugar de
Goebbels, e se sentindo confuso por não poder controlar algo que
não conseguia enxergar. Ele encarava os escribas, que se
esforçavam para não rir, e dava ordens:
— Imaginem mais rápido!
— Continuem imaginando!
— Procedam na ordem certa!
Nafissian estava contendo o riso. Stumpf foi até sua mesa e
perguntou o que ele estava imaginando.
— As botas de Goebbels — respondeu ele.
— Como elas são?
— Pretas.
— São brilhantes?
— Sim.
— Errado. Não sabemos como terá sido o dia de Goebbels
quando ele vier nos visitar. Ele pode ter andado na lama. Ou pode
estar de chinelos, por conta de um joanete. Estejam preparados
para qualquer coisa. Goebbels pode chegar usando uma rede no
cabelo. Mas vocês não olharão tanto para cima.
— Ou um vestidinho de ficar em casa — disse La Toya.
— Cale-se! — exclamou Stumpf.
Os escribas apertaram os lábios para não rir. Eles nunca
tentavam imaginar Goebbels. Em vez disso, pensavam numa xícara
de um bom café, ou em quem tentariam seduzir naquela noite, caso
fossem sorteados para dormir no antigo quarto de Elie. Tentavam
não pensar no que os tinha levado até ali ou no que havia
acontecido com as pessoas que deixaram para trás.
Mas, em outros momentos do dia — momentos aleatórios —,
indo até a cozinha para um café ou até o caminho de pedras para
fumar, eles viam o imenso retrato de Goebbels perto do poço e o
imaginavam, ainda que contra a vontade. Aquele homem era a
ameaça e a salvação deles, a razão pela qual ainda estavam vivos,
retirados da morte praticamente certa e levados para aquele lugar. E
somente a vontade de Goebbels em prosseguir com um esquema
tão ridículo preservava aquela mina fuliginosa, onde cartas eram
respondidas aos mortos e em seguida postas num caixote.
Naquele dia, quando o exercício de meia hora chegou ao fim,
Stumpf olhou para os escribas. Ele sentiu — como sempre
acontecia nessas horas — alívio e euforia. Batendo no quadro-
negro, anunciou que o Complexo receberia um novo membro —
uma garota de dezesseis anos que ficaria com o judeu puro.
— Como vocês sabem — disse ele —, há muito tempo
precisamos de uma criança para responder às cartas dos pais de
outras crianças, de acordo com o nosso padrão Responder da
mesma forma. Então, Fräulein Schacten trará uma menina para o
Complexo. E, quase sempre, ela responderá às cartas escritas por
pais que são considerados devotos. Mas, se o tempo permitir,
responderá também às cartas de pais que não são considerados
devotos. Portanto, se vocês lerem uma carta de pais que se dirijam
claramente ao filho, podem deixá-la de lado para uma possível
coleta.
— Possível ou provável coleta? — indagou Parvis Nafissian.
— Ambos — respondeu Stumpf.
— Ou uma coleta potencial? — sugeriu Ferdinand La Toya.
— Também.
La Toya piscou para Gitka, que retribuiu o gesto. Stumpf
percebeu e ficou furioso.
— Podem piscar entre si quanto quiserem — disse ele. — Trata-
se de mais uma boca para alimentar.
C
Querida mamãe,

Não sei onde você e o papai estão, mas estou escrevendo para
casa na esperança de que recebam esta carta. Marc e eu estamos
bem e há bastante comida aqui. Se você e o papai vierem,
poderemos ficar juntos novamente.

Com amor,
Pia
Wolfgang Maulhaufer, o engenheiro do Complexo, ficara tão
entretido em encontrar um canal subterrâneo por onde escoar os
detritos que acabara se esquecendo de suprir o Complexo com
água potável. E Thorsten Ungeheuer, responsável pelos projetos de
interior, estava preocupado com questões mais elegantes do que
água para beber ou se lavar.
Assim, o único suprimento de água era o poço original da mina.
Ficava na extremidade do bosque, a cerca de nove metros do trailer.
Antes de a Alemanha perder Stalingrado, doze guardas
transportavam baldes com o equivalente ao abastecimento de água
para um dia. Mas depois de Stalingrado, todos os guardas, exceto
Lars Eisenscher, foram enviados ao fronte. Lars e Lodenstein não
conseguiam levar, sozinhos, água suficiente para todos no
Complexo. E Stumpf e Mueller consideravam a tarefa indigna de
suas posições.
Assim, ao final da primavera de 1943, os próprios escribas
começaram a buscar água, tendo apenas Lars a vigiá-los. Isso
inquietava Stumpf, mas ele não pôde discordar de Lodenstein
quando disse que o Complexo era o lugar mais seguro àquela altura
da guerra, e ninguém tentaria escapar.
Na primeira vez em que os escribas foram até o poço de água,
houve uma grande sensação de celebração. Sophie Nachtgarten,
cuja claustrofobia levava-a às vezes a andar durante horas pelo
caminho de pedras, disse que era a primeira vez em meses que ela
conseguia de fato respirar. Ferdinand La Toya e Gitka Kapusinki
dançaram a mazurca. Parvis Nafissian e Sonia Markova deitaram-se
no chão da floresta.
Agora, quase um ano depois, ir até o poço tornara-se de tal
modo uma atividade rotineira que os escribas consideravam o ar
fresco garantido — exceto Sophie Nachtgarten, que subornava Lars
com cigarros a fim de poder ir ao poço sempre que quisesse. Os
demais escribas transportavam água duas vezes por dia,
geralmente em pares.
Mas depois que Stumpf anunciou a chegada da garota que iria
responder às cartas das crianças, Gitka Kapusinki, Ferdinand La
Toya, Sophie Nachtgarten e Parvis Nafissian se revezaram
carregando os baldes. Gitka usava um cachecol vermelho-brilhante
sobre um casaco preto feito da pele de um animal indeterminado e
fumava um cigarro com sua longa piteira. La Toya fumava um
charuto e vestia um comprido casaco preto, que o fazia parecer uma
planta de topiaria, devido à sua altura. Sophie usava um cachecol
bordado em verde sobre um paletó de veludo azul — ela odiava
sentir-se confinada em roupas quentes demais. E Parvis Nafissian,
que penteava sua barba imaculada com a água do poço, usava uma
jaqueta de aviador e carregava um espelho. Eles se agacharam em
torno do gelo e conversaram.
— Que babaca! — exclamou Gitka, referindo-se a Stumpf.
— Ele precisava encontrar alguém para escrever aquela carta —
disse La Toya. — E eu acho que é Mikhail.
— Ele nunca faria nada para Stumpf — disse Sophie.
— De que outra maneira você explica isso? — inquiriu La Toya.
— De repente, aparece uma menina na casa dos Solomon e Stumpf
anuncia a novidade. Aposto que os dois fizeram um acordo. E isso
começou com a esposa de Heidegger.
— Como você sabe? — perguntou Nafissian.
— Elie me contou — respondeu La Toya. — O nome dela é
Elfriede. Elfriede Heidegger.
O nome era engraçado. Todos riram.
— Elie diz que é uma verdadeira hausfrau — explicou La Toya.
— Com tranças louras sobre a cabeça. Um membro do partido em
boa situação.
— Como Elie sabe disso? — indagou Nafissian.
La Toya deu de ombros. Os demais entendiam. Algumas vezes,
Elie aludia a seu passado sem jamais mencionar nomes. De vez em
quando, o crepúsculo a fazia lembrar-se dos jantares com sua
família. Ou então o odor da tinta fresca e do papel a remetia ao
tempo em que era estudante em Freiburg. Ela nunca revelara a
ninguém seu verdadeiro sobrenome. Ou que tinha uma irmã mais
nova, de quem sentia saudades diariamente. Mas todos conheciam
uma pequena parte de quem Elie era antes de chegar ao Complexo,
e sentiam-se aliviados por nunca terem lido Heidegger atentamente,
pois seria difícil responder àquela carta.
— A esposa importunou tanto Goebbels — disse La Toya — que
ele a recebeu. Portanto, Goebbels tem agora outra missão: uma
carta para os vivos.
Tendo chegado ao poço, eles pararam para olhar o bosque e
beber água na concha de metal. Sophie acenou para Lars
Eisenscher, que estava de sentinela perto das árvores.
— É horrível que o bosque seja tão assustador — refletiu ela. —
Quando eu era criança, os bosques eram magníficos no inverno.
— E pode ficar ainda mais assustador se Mikhail tentar
responder à carta — comentou Nafissian. — Heidegger não é nada
estúpido. Ele vai perceber que há algo errado. Talvez nós
devêssemos ter tentado respondê-la, afinal de contas.
— Nós teríamos feito uma bagunça — concluiu Sophie. — E
Mikhail já estudou Heidegger, então a carta não vai parecer falsa.
Gitka e Nafissian pararam para acender outros cigarros; La Toya
acendeu novamente seu charuto. O vento soprou às costas deles,
enquanto se revezavam carregando os baldes para o Complexo.
Nafissian disse que dava a impressão de que estavam viajando.
— Não seja ridículo — disse La Toya. — Ninguém viaja por aqui.
— Se o vento soprar bem forte, é possível — contestou
Nafissian.
— Vamos apostar uma corrida com ele — disse Gitka, rindo.
— Até onde? — perguntou La Toya.
— Até o fim do mundo — respondeu ela.
C
Querida Bendykta,

Não disponho de muito tempo para escrever, pois tenho que


trabalhar. Por favor, venha logo.

Com pressa e amor,


Lucas
Dieter Stumpf jamais tivera a intenção de ir pessoalmente resgatar
a sobrinha de Mikhail, porque, caso fosse até o esconderijo, poderia
ser reconhecido e fuzilado. Além disso, era mais importante se
certificar de que o maior número possível de mortos recebesse suas
cartas. Então, ele pediu a Elie Schacten que fosse buscar a menina.
— O nome dela é Maria — disse ele, dando-lhe o endereço do
esconderijo e um bilhete de Mikhail para ela. — E Mikhail vai
escrever a carta se nós a trouxermos. Você conhece Mikhail. Quer
sempre barganhar.
— Claro que vou buscá-la, Dieter — concordou Elie.
— Eu sabia que você iria. Você resgata qualquer um.
— Só estou fazendo isso por você — disse ela.
Stumpf se inclinou em sua direção e se deleitou com o perfume
de rosa.
— Vamos manter isso entre nós, por enquanto — disse Stumpf,
tocando no braço de Elie. — Lodenstein não dá a mínima para essa
carta, e odeia barganhas. Talvez tente impedi-la.
Elie, que já concluíra que o que estava em jogo era mais do que
uma barganha, concordou. Antes de sair, disse a Lodenstein que
havia uma nova remessa de correspondências no posto avançado.
Em seguida, estendeu o braço para que ele pudesse amarrar em
seu pulso a fita de seda vermelha.
— Você acha que este lugar aqui funciona sozinho?
— Não — respondeu Elie. — Por que você está perguntando
isso?
— Porque às vezes você age como se funcionasse. Eu me
pergunto se você sabe quantos bilhetes eu envio a Goebbels para
deixá-lo contente. Caro Goebbels: adoramos suas histórias sobre
como venceremos a guerra. Continue contando-as. E sua negação
à Solução Final é de tirar o fôlego.
— Vou trazer algo especial para você — prometeu Elie.
— Só quero que você volte — respondeu Lodenstein.
Ele a acompanhou até o jipe e ela avançou pela estrada de terra,
que estava perigosamente escorregadia. Mas, ao alcançar a estrada
pavimentada, não se sentiu mais aliviada, já que havia outros carros
e todo resgate envolvia riscos. Em sua última incursão, Elie
escondera três crianças sob uma estátua de mármore coberta com
várias mantas. Tudo correra bem, até que um oficial da SS na
fronteira suíça começou a remexer os cobertores da estátua. Elie
disse que era para Frisch — um banqueiro que ela supôs que ele
conhecesse. Ele apertou seu braço, ela retribuiu o gesto e uma
corrente erótica passou por eles. “Vá”, disse-lhe ele. “E vá logo!”
Ela manteve os olhos no espelho retrovisor por um longo trecho
da estrada cheia de veículos. Sentiu remorso por ter mentido para
Lodenstein e ficou atormentada pela visão de que ele viria correndo
para alcançá-la.

C
O esconderijo de Maria ficava numa cidade ao sul do Complexo
e — para o alívio de Elie — ela teve que pegar uma estrada
secundária. Passando por fazendas e densas florestas, ela viu um
homem e uma criança atrás de uma árvore. Pensou no Anjo de
Auschwitz, que havia barganhado um laboratório por uma vida, e se
perguntou se uma carta poderia fazer o mesmo.
A cidade em que ficava o esconderijo era uma colcha de retalhos
feita de comércio e abandono, como outras que não tinham sido
bombardeadas até ficarem irreconhecíveis naquele estágio da
guerra. Depois de terem suas estruturas depredadas,
transformavam-se em um arquipélago de prosperidade. Uma rua
apresentava apenas prédios miseráveis. Outra estava repleta de
lojas elegantes. Uma terceira abrigava uma estação de trem, onde
várias pessoas esperavam com suas malas. Estavam vestindo bons
casacos, mas Elie sabia que, em menos de uma semana, usariam
uniformes listrados. Ela estacionou o jipe numa área movimentada e
começou a caminhar. Um jipe com a suástica na frente de um
esconderijo chamaria atenção.
Uma neve fina começou a cair — redemoinhos brancos sobre o
fundo cinzento. As ruas se alargavam, se estreitavam e se
alargavam novamente, expandindo-se e contraindo-se, como se
estivessem respirando. Nada parecia muito real para Elie — nem o
céu, nem o ar, nem a cafeteria na qual os clientes bebiam canecas
incongruentemente grandes de Ersatzkaffee. As pessoas passavam
apressadas, envoltas num ar esmaecido e cinzento — a única coisa
que parecia mantê-las unidas. Elie passou por uma rua enlameada
com cercas de arame que protegiam residências abastadas. A
cidade estava ruindo, e ela sentiu que ruía junto. A neve tornou-se
mais espessa, recobrindo todo mundo de branco. Estamos ligados
apenas por véus, pensou Elie, frágeis acidentes de coesão.
Ninguém era facilmente reconhecível sob aquela neve, e por
alguns instantes ela imaginou ter visto a irmã. A moça usava um
casaco vermelho-escuro, e as mãos estavam protegidas por luvas
brancas. Ela sorriu e desapareceu.
Perto da periferia, as ruas eram dispostas de maneira circular.
Elie passou por casas cinzentas, prédios de tijolos e mais fileiras de
residências. A última ficava próximo de onde seria o esconderijo de
Maria. Mas, antes de virar na última rua, um oficial da Gestapo a
interpelou, dizendo que perdera o relógio e desejava saber as horas.
O coração de Elie disparou, e sua resposta — Quatorze horas e
vinte minutos — soou como uma confissão. Ele agradeceu e
perguntou se podia ajudá-la a encontrar um endereço. Elie disse
que não, estava apenas dando uma volta. Ele pediu para ver seus
documentos — ela notou suas mãos carnudas — e mostrou-se
confuso quando ela lhe mostrou a fita de seda vermelha.
— O que você está fazendo aqui na periferia da cidade? —
perguntou ele.
— Uma missão para Goebbels. E eu seria fuzilada se dissesse
algo mais.
O oficial da Gestapo negou com um gesto de cabeça.
— Goebbels nunca fuzilaria uma mulher assim tão bela.
Somente as indesejáveis: fuzilamento ou guilhotina. É só escolher.
Ele riu ao dizer É só escolher e disse que Elie lembrava sua
esposa. Então, segurou no braço dela e caminhou, afastando-se
das casas enfileiradas, carregando-a para um parque onde os
galhos desfolhados das tílias estavam recobertos de gelo. Eles se
dirigiram até a estátua de Hitler e depois caminharam sem pressa
pelo parque. Finalmente, o oficial olhou para o relógio, que nunca
perdera, e disse:
— Meu Deus! Vão me fuzilar se eu não voltar para o meu posto.

C
Elie foi obrigada a refazer o caminho na outra direção, sob um
céu quase crepuscular. Ela bateu quatro vezes à porta de um prédio
de tijolos vermelhos — conforme lhe instruíra Stumpf. Um homem
magro em trajes escuros pôs a cabeça para fora.
— Qual é a senha? — perguntou ele.
— A queda — respondeu Elie.
Ele assentiu com a cabeça e ela entrou numa sala bolorenta,
cheirando a tapetes velhíssimos e purê de batatas. Dali, tinha-se
acesso a uma passagem subterrânea e ele a conduziu por um
labirinto escuro como um animal noturno. Em seguida, ao abrir a
porta para outro prédio, ele entregou uma lanterna a Elie.
— Siga até o saguão — orientou. — Bata na primeira porta à
esquerda, aguarde três batidas e então bata três vezes. Saia por
aqui e fique com a lanterna. Eu já aprendi a enxergar no escuro.
Elie chegou a outro saguão bolorento. Bateu à porta da
esquerda, aguardou as três batidas e bateu mais três vezes. Após
uma pausa que pareceu interminável, uma moça espantosamente
bonita abriu a porta. Seus cabelos eram louros, os olhos, azuis —
uma delicada feição ariana, pensou Elie, que provavelmente salvara
sua vida. Ela olhou para Elie com profunda desconfiança. Elie abriu
os braços.
— Maria — chamou ela. — Você está em segurança comigo.
Maria recuou e Elie, que percebeu que precisava apresentar
provas de suas intenções, mostrou os papéis que trazia consigo e o
bilhete de Mikhail. Depois de ver do que se tratava, Maria sorriu e
estendeu os braços. Elie entregou-lhe o pão que trouxera na bolsa.
Maria balançou a cabeça em um gesto negativo.
— Já estou escondida naquele forro do assoalho há meses. Eu
só queria sair daqui.
Elie observou seu vestido — era de algodão fino. E seus pés.
Estavam calçados com sandálias de verão.
— Ninguém lhe deu um suéter ou botas? — perguntou Elie. —
Nem sequer um casaco? Você andava assim pelas ruas?
— Eu me viro com esse vestido e as meias.
— Na neve? A SS prenderia você na hora.
Havia um armário no saguão — tão extenso que Elie se
perguntou se era uma passagem para a rua. Mas estava cheio de
porcelana, pratarias, discos, fotografias. Bem no fundo, ela
encontrou um par de sapatos resistentes, um suéter grosso, um
cachecol e um casaco preto com gola de pele. Ela pegou o casaco.
Atrás dele, encolhido na parede do armário, viu um menino de cerca
de sete anos. Os olhos dele se arregalaram, assustados, e ele
estava sentado tão imóvel que parecia feito de pedra.
— Qual é o seu nome? — perguntou Elie num sussurro.
Ele não respondeu. Ela o puxou pelo braço e o tirou dali.
— Meu Deus! — exclamou Maria. — De onde ele surgiu?
— De dentro do armário — respondeu Elie.
— Durante todo esse tempo nunca o ouvi.
As janelas do apartamento vazio estavam cobertas por panos
brancos, que forneciam ao ambiente uma luz arejada, criando a
impressão de um pé-direito elevado, mesmo ao crepúsculo. Elie
sentou-se no chão com o pequeno menino nos braços. Ele começou
a tremer.
— Qual é o seu nome? — sussurrou ela novamente.
Ele balançou a cabeça e tentou enterrar-se entre os braços de
Elie.
— Ele está assustado — disse Maria.
— E se nós dermos um nome para você? — disse Elie. — Você
gosta de Alberto?
Para sua surpresa, ele balançou a cabeça negativamente.
— E de Sergei? — perguntou Maria.
Ele também recusou esse nome com um aceno de cabeça. E fez
o mesmo com Luca, e com outros três nomes. Mas quando Elie
disse Dimitri, ele concordou.
— Este é o seu nome de verdade? — indagou ela.
O menino negou com a cabeça e mergulhou de volta nos braços
de Elie.
— Dimitri, nós vamos sair agora. Vou enrolar você em alguns
cobertores e carregá-lo no colo. E, se alguém perguntar, vamos
dizer que você não está se sentindo bem.
Dirigindo-se a Maria, perguntou:
— Entendeu?
Maria, que estava deslumbrante em seu casaco com gola de
pele, assentiu. Claro que entendia.
A cidade estava quase totalmente às escuras quando saíram do
esconderijo. Elie carregava Dimitri com cuidado, enquanto Maria se
extasiava por se encontrar ao ar livre. Mais de uma vez ela olhou
para seu reflexo na vitrine de uma loja.
— Não olhe para nada — disse Elie. — E não encare as pessoas
que carregam malas!
Quando chegaram ao jipe, Elie instalou Dimitri delicadamente e
cobriu os dois com cobertores. Dimitri estava tão imóvel quanto
Maria havia ficado no forro do assoalho. Mas Maria olhava com
tanta frequência por sob os cobertores que Elie lhe disse que podia
sair dali, desde que ficasse agachada abaixo da altura da janela.
Tudo agora era um breu, a estrada ficou estreita, as árvores
pareciam mais espessas, e o medo que Elie sentia do escuro voltou
a se abater sobre ela. Tentou reprimi-lo contando às crianças
histórias que ela e a irmã costumavam contar à noite, sob um
cobertor vermelho-escuro. Eram fábulas sobre lobos que concediam
desejos ou bonecos de neve que falavam. Ela voltou a se sentir
segura, até que Maria disse:
— Você realmente acredita em tudo isso?
— Eu acreditava — respondeu Elie.
— Eu nunca acreditei.
— Talvez você devesse começar agora — disse Elie.
Quando chegaram na estrada de terra batida e o jipe deu um
solavanco, Elie se deu conta de que não sabia onde Dimitri iria
dormir. E tampouco o que diria quando Lodenstein os descobrisse.
C
Querido Max,

Você deve estar surpreso com esta carta clandestina. Guardas


“bons”. Vá até a beira da caserna. Podemos conversar lá.

Nyikolaj
Se ao menos a paisagem fosse outra, pensou Elie. Uma estrada
ampla, linhas telefônicas, casas iluminadas. Eu poderia bater em
qualquer porta e pessoas que nunca vi antes aceitariam ficar com os
dois. E, além das casas, ela encontraria as ruas de sua infância,
onde ela e a irmã pulavam corda e implicavam com os meninos. E,
além dessas ruas, ela encontraria o convento onde as duas faziam
as outras meninas rir imitando a Irmã Ignatius, que tinha uma tosse
nervosa, e a Irmã Hildegard, que lambia o giz que se acumulava em
seus dedos. Vocês são teimosas, o pai delas sempre dizia, quando
eram punidas. Nunca param para pensar em como as coisas podem
acabar.
Isso não é verdade, pensou Elie. Estávamos apenas entediadas.
Ela viu o rosto da irmã. Atencioso, alerta. Combinava com seus
olhos.
— Em que você está pensando? — perguntou Maria.
— Em como é linda a floresta — respondeu Elie.
— É verdade. Apesar de qualquer um poder sair de trás
daquelas árvores e nos fuzilar.
— Mas isso não vai acontecer — disse Elie.
O carro derrapou no gelo e fez a curva, entrando na clareira
milagrosamente deserta. O trailer era a única figura sobre a neve —
um vulto escuro, os contornos realçados pelo luar. Elie carregou
Dimitri pelo caminho de pedras até o trailer e Maria os seguiu. A
porta que dava para a rampa não surpreendeu a garota —
obviamente ela reconhecia uma camuflagem. Tampouco pareceu
confusa quando Elie passou rapidamente com ela pelo quarto que
dividia com Lodenstein. Mas Maria ficou espantada com o caminho
de pedras e o céu congelado.
— É uma cidade de verdade? — indagou ela.
— Explicarei mais tarde — respondeu Elie.
— Há outras crianças vivendo aqui?
— Explicarei isso depois também.
Maria olhou pela enorme porta para o salão principal e sorriu
quando Parvis Nafissian apareceu. Elie a conduziu até a casinha
branca, onde viram Lars ao lado do pé de pera. Não diga nada,
sussurrou para ele.
Assim que viu Maria, Talia a abraçou e lhe disse que ela havia
crescido muito. Tocou na neve que havia sobre o casaco da garota e
disse-lhe que ela trouxera um pouco do tempo real. Maria riu e
explicou que o tempo real também viera até ela. Ao abraçar Mikhail,
olhou a sala e percebeu a presença de um espelho.
— Faz cinco meses que não me vejo — disse.
De início, Talia não notou o menino nos braços de Elie. Mas,
quando o viu, fez uma pausa que durou menos do que um pulsar de
coração, e também o abraçou.
— Este é Dimitri — apresentou ela.
— De onde você vem? — perguntou Talia.
— Quer contar? — sugeriu Elie.
Dimitri negou com um gesto de cabeça.
— Estava dentro de um armário, no esconderijo — explicou Elie.
— Foi abandonado.
Ela sentou-se no sofá e desembrulhou o cobertor. Dimitri tentou
se esconder atrás dela, como um camundongo se enfiando no
buraco.
— Ele precisa comer — disse Talia.
— Os dois precisam — acrescentou Elie.
Maria deu uma volta por ali, foi até a janela e observou o céu
congelado, com sua lua e suas estrelas.
— Este lugar é encantado — disse ela.

C
Logo, a atmosfera estava repleta de calma — como se as duas
crianças sempre tivessem vivido ali. Talia trouxe sopa de batatas da
cozinha principal. Mikhail contou uma história para Dimitri. Maria
postou-se na frente do espelho e prendeu os cabelos no alto com
uma agulha de tricô. Queria saber quando poderia ver a neve
novamente e ficou desapontada com a resposta de Mikhail:
amanhã.
Aquela serenidade lembrou a Elie de sua própria família ao
anoitecer — tricô, leitura, deveres de casa. Enquanto se deixava
embalar por aquela sensação de tranquilidade, pensou em
diferentes explicações para dar a Lodenstein: ela encontrara as
crianças na floresta. Ou dentro do jipe, quando voltara de sua
incursão. Ou, então, uma mulher no mercado implorara que ficasse
com elas. Cada história parecia melhor do que a anterior.
A melhor, sem dúvida, era que tinha encontrado as crianças em
uma cerca perto de uma estação de trem. Enquanto pensava nos
detalhes da história, Elie ouviu uma batida na janela e viu o imenso
rosto de Stumpf através do vidro.
Ela colocou Dimitri no colo de Mikhail e saiu correndo da casa.
— O que esse menino está fazendo aí? — berrou ele. — Por que
você não trouxe um só?
— E ia deixar o outro morrer?
— Mas a barganha envolvia só uma criança — protestou Stumpf.
— Barganha? Pensei que estávamos salvando vidas —
exclamou Elie.
— Quer dizer, o acordo tratava apenas de uma criança —
explicou Stumpf.
— O que você quer dizer com acordo? Tem a ver com as
correspondências em seu escritório?
Stumpf bebeu um gole de sua garrafa de schnapps e indicou
com a mão o salão principal.
— Este lugar está parecendo uma toca de coelhos — disse ele.
— Não dispomos de espaço para mais ninguém.
— O garotinho ficou pelo menos um dia inteiro sozinho no
esconderijo — comentou Elie.
— Mais uma razão para tê-lo deixado por lá — retrucou Stumpf.
Ele se pôs a andar de um lado para outro, parecendo refletir.
Finalmente, disse:
— Não tenho nada a ver com isso. Ele é de sua
responsabilidade.
— Eu não aceitaria que fosse de outra forma — respondeu Elie.
Ouviu-se um baque atrás dele: Lodenstein deixara cair o
tabuleiro de xadrez.
— Então foi isso que você trouxe do posto avançado! — gritou
com Elie.
— Falei para ela não se meter — disse Stumpf.
— Cale a boca, porra — berrou Lodenstein.
Ele chutou um banco. Talia puxou Maria, que estava assistindo à
cena pela janela.
— Eu sabia que era uma má ideia — murmurou Stumpf.
— Não fale comigo — disse-lhe Lodenstein. — Vocês dois
fizeram isso pelas minhas costas.
— Não fizemos — protestou Elie.
Lodenstein apanhou uma das rosas artificiais e espatifou o vaso.
— Desde quando trazer fugitivos para cá é o mesmo que trazer
correspondências?
Elie chutou um dos cacos.
— Não quero falar sobre isso agora — disse ela. — Você está
agindo como um animal.
Elie voltou para a casa dos Solomon e bateu a porta com tanta
força que o pé de pera artificial tremeu.

C
— Eu fiz isso por Elie — disse Stumpf, quando ela se foi. — E o
acordo incluía apenas uma criança.
— O que você quer dizer com acordo? — inquiriu Lodenstein.
— Quer dizer, fiz isso por Elie — repetiu Stumpf. — Ela é
generosa, mas não pensa nas consequências. Tome, beba um
schnapps.
— Não quero schnapps. Quero saber o que está acontecendo.
— Elie foi para a cidade buscá-los. Farei com que ela os leve de
volta.
— Você é um mentiroso e um idiota!
— Não grite comigo! — exclamou Stumpf. — Isso é assunto
particular.
— Particular, porra nenhuma. — Lodenstein pegou o tabuleiro de
xadrez e o ergueu acima da cabeça de Stumpf. — Eu poderia
esmagar seu crânio com isso, e ninguém ficaria sabendo. Você é
um imbecil.
O tique nervoso acima do olho de Stumpf voltou.
— Por favor! — implorou ele. — As paredes têm ouvidos.
De fato, todos os escribas estavam ouvindo. Nada era melhor do
que uma boa briga. Talvez Lodenstein matasse Stumpf, e poderiam
enterrá-lo no bosque.
— Eu disse que haveria confusão — comentou Ferdinand La
Toya.
— Talvez não seja uma confusão — argumentou Parvis
Nafissian.
— Acredite em mim, é uma confusão — insistiu La Toya. — Nós
deveríamos ter escrito a carta.

C
Logo pôde-se ouvir o barulho de panelas batendo em todo o
Complexo — era Stumpf, comendo mais do que sua porção de
salsicha, a fim de controlar a ansiedade. Elie enterrou o rosto no
sofá dos Solomon.
— Que lugar é este? — perguntou Maria.
— Fruto da invenção de alguém — respondeu Mikhail.
— Mas as pessoas vivem mesmo aqui?
— Pode-se dizer que sim.
— Onde elas dormem?
— A maior parte, no salão — explicou Talia —, mas você vai
dormir aqui.
— Posso ver esse salão? — pediu Maria.
— Amanhã — respondeu Mikhail.
— Eu gostaria de vê-lo agora.
Talia e Mikhail se entreolharam com ar desapontado. Maria, que
tinha nove anos da última vez que a viram, agora lhes lembrava
Aaron, antes de eles irem para Lodz: fascinado pelo mundo, o que
quer que fosse o mundo — e não muito interessado neles.
Elie se virou para Dimitri.
— Você também quer ver o salão?
— Não — respondeu o menino.
Era a primeira palavra que dizia.
Elie, feliz por ele ter falado alguma coisa, beijou-o e perguntou:
— Por que não?
— Porque aqui é muito macio — disse ele, apalpando uma
almofada.
Talia e Mikhail não pareciam à vontade. Então Talia disse:
— Ele é tão pequeno. Vocês dois podem dormir no sofá esta
noite.
— Eu não me importo de dormir no salão — sugeriu Maria.
— E há sempre espaço para mais um escriba por lá — disse
Elie.
Mikhail riu.
— Há sempre espaço para mais um escriba? Você está falando
como o Reich.
— Mas não estou pensando como o Reich — retrucou Elie.
Ela abraçou Dimitri e pediu a Talia e Mikhail que o levassem até
ela, caso ele ficasse com medo.
— Não perca Maria de vista — murmurou Talia.
— Não se preocupe — respondeu Elie.

C
Enquanto elas percorriam o caminho de pedras, Elie apontou
para cima e disse-lhe para não se preocupar com os rangidos das
polias e engrenagens — era apenas o céu passando da noite para o
dia e vice-versa. Maria respondeu que o único ruído que a
preocupava era o disparo de uma arma.
Havia quase um ano que não chegava alguém novo ao
Complexo, e Maria foi aclamada de pé por Parvis Nafissian, Niles
Schopenhauer e um homem chamado Knut Grossheimer, que nunca
falava com ninguém. Quando cessaram os aplausos, Elie levou
Maria de volta à rua e perguntou se ela já ouvira falar em cartas
francesas — a gíria usada para preservativos. A garota disse que
tinha recebido algumas do soldado que a retirara da fila para a
câmara de gás; mas só havia precisado abrir uma.
Então foi assim que ela conseguiu se salvar, pensou Elie.
Levando Maria até sua mesa, ela lhe mostrou onde achá-las na
gaveta de cima, e lhe disse para abrir quantas precisasse. Maria
assentiu e olhou para a parede.
— O que é tudo isso? — perguntou.
— Uma espécie de brechó — respondeu Elie.
Ela pegou um casaco azul e mostrou-o a Maria.
— Olhe — disse-lhe ela. — Este casaco é da cor da água.
Ficaria lindo em você.
Mas Maria — como se bruscamente tivesse sido transportada
para o momento em que viu seus pais serem conduzidos para a
câmara de gás — disse que não queria nada lindo. Ela pareceu
jovem demais e a ponto de chorar. Parvis Nafissian se aproximou
em silêncio, pegou o casaco das mãos de Elie e o colocou sobre os
ombros de Maria.
— Você está mais do que linda — comentou ele.
— Parvis — chamou Elie. — Ela já sofreu demais.
— Concordo — falou La Toya.
— E o que você tem com isso? — indagou Gitka.
— Ele está tentando corromper a mocinha — disse La Toya.
— A mocinha estaria agora num campo de extermínio se não
tivesse sido corrompida — argumentou Gitka.
Ela abriu seu casaco de pele e mostrou a La Toya um corpete
preto de renda — delicado, filigranado. La Toya se afastou e Elie se
lembrou — não sem tristeza — de que conseguira o corpete de
Gitka com o melhor fabricante de espartilhos de Berlim — uma
recompensa por ter levado clandestinamente o filho dele para a
Suíça. Afastando o telescópio, pegou grossos casacos de pele para
fazer uma cama para ela e Maria.
— De onde vêm todos esses casacos de pele? — quis saber
Maria.
Elie hesitou. Depois disse:
— De pessoas que não tiveram tanta sorte.
Os escribas estavam se preparando para a noite. Quem não
tinha ganhado o sorteio para dormir no antigo quarto de Elie
começava a juntar mesas, de forma a poderem fazer amor dentro de
túneis estreitos. Houve barulhos de fricção, coisas se chocando,
papéis farfalhando e algumas reclamações, como: Droga! Mas ainda
é melhor do que uma cama em Auschwitz.
Elie se instalou sobre várias camadas de casacos e sentou-se
com os braços em volta de Maria. Um lampião após outro foi
apagado, até que a escuridão finalmente tomou conta de todo o
ambiente.
C
Querido Joseph,

Quero que saiba que estou bem. A comida é decente — melhor,


eles dizem, que em casa. E há um bosque onde eles criam coelhos
angorás. Sinto falta, mais do que tudo, de nossos passeios e
jantares — e de ver seu rosto pela manhã. Penso em você o tempo
todo. Não posso imaginar a vida sem você.

Com todo meu amor,


Ernestine
Mais tarde, naquela noite, Elie deixou os escribas dormindo sobre
as mesas e embaixo delas para ir bater à porta dos Solomon. Dimitri
dormia no sofá de veludo, semicoberto por uma manta branca. Talia
estava dormindo em um canto reservado. E a eterna lua crescente
brilhava do lado de fora da janela. Elie ajeitou a manta, cobrindo o
garotinho por completo, e mais uma vez teve uma sensação de paz.
Foi quando viu um jogo de xadrez sobre a mesa redonda.
— Gerhardt esteve aqui? — perguntou ela a Mikhail.
— Eu ia liquidá-lo em cinco jogadas, mas ele se aborreceu —
respondeu Mikhail. — Ele disse que teria resgatado Maria, se eu
tivesse pedido. Ela está dormindo?
— Eu não viria aqui se estivesse acordada — disse Elie. — Na
verdade, ela foi recebida com palmas entusiasmadas. Ela é linda.
Isso salvou sua vida.
— Eu sei — assentiu Mikhail.
— E Gerhardt tem razão. Ele a teria resgatado, se você tivesse
pedido.
— Eu sei disso também.
— Mas você preferiu fazer um acordo com Stumpf.
— Como você pode ter tanta certeza? — perguntou Mikhail.
— Porque Stumpf me pediu para buscar Maria. E ele me contou
tudo.
Mikhail ajustou a lanterna e folheou um dicionário de alemão.
— Não vai dizer nada a respeito? — indagou Elie.
— Eu precisava salvar minha sobrinha. Diante da possibilidade,
lancei mão da barganha.
— Acho melhor lançar mão das garras — disse Elie — quando
se trata de um louco como Stumpf.
Eles se entreolharam placidamente, não sem uma ponta de
ressentimento: Elie, forçada a viajar, incapaz de parar de salvar as
pessoas; Mikhail, confinado, incapaz de ir salvar sua sobrinha. Elie
caminhou até a janela e acendeu um cigarro. Então disse:
— Fiquei contente por salvar Maria, mas agora quero um favor.
— Em troca de ter salvado uma criança? O que está havendo
com você?
— Quero que você escreva o tipo de carta que Asher Englehardt
nunca escreveria. — Elie prosseguiu, como se Mikhail não tivesse
falado nada. — Uma carta para Martin Heidegger que não faça
sentido.
— As ordens não são essas.
— Você nunca foi uma marionete de Goebbels — disse ela. —
Não venha agora se passar pelo ventríloquo de Englehardt.
— Trata-se de uma carta, não de um número circense.
— Um número circense é exatamente o que o Reich quer.
— Não insultarei a inteligência de Heidegger — afirmou Mikhail.
— Aliás, tampouco a minha própria; você sabe o que ele escreveu?
Você vê um quadro disforme e sente logo em seguida um
alheamento em relação ao mundo. Trata-se de uma mente notável,
mesmo que seja um nazista.
— Eu sei tudo sobre essas imagens disformes — disse Elie. —
Mas eu trouxe Maria para você. E se você escrever algo que Asher
Englehardt nunca escreveria, Heidegger perceberá e vai armar uma
confusão até encontrá-lo.
— Desde quando você sabe o que se passa na mente de
Heidegger?
Elie hesitou.
— Você não deve contar isso a ninguém. Mas eu o conheci em
Freiburg. E todo mundo sabia que ele e Asher Englehardt eram
bons amigos. Asher tinha um filho. Deve estar com dezessete anos
agora.
— Ainda é uma criança — disse Mikhail.
— Tem quase a mesma idade que Maria.
Ela buscou em seu bolso e mostrou a Mikhail a fotografia da
ótica de Englehardt e a que trazia Heidegger e Englehardt juntos na
Floresta Negra. As montanhas e o ar livre pareciam incongruentes
naquele ambiente estreito e escuro.
— Não conte a ninguém, nunca — pediu ela outra vez.
O olhar de Mikhail ficou mais suave.
— Claro que não contarei. Mas todo mundo conhece um
excêntrico famoso no Partido. Posso citar uma centena, e eles não
ajudaram ninguém. Heidegger não é diferente. E o Partido já não
gosta mais dele.
— Ele ainda consegue o que quer — ponderou Elie.
— Talvez. Mas esta carta que você quer que eu escreva pode
mandar tudo pelos ares.
— A carta que você prometeu a Stumpf também pode mandar
tudo pelos ares.
Elie ergueu um peso de papel de vidro e, sob o foco da lanterna,
viu a luz se dispersar pela parede. Em seguida, contou a Mikhail
sobre o Anjo de Auschwitz. A história preencheu a sala quase como
uma presença totêmica — mas só por um instante.
— Havia rumores como este em Lodz o tempo todo — disse
Mikhail. — Não deram em nada.
— Mas eu lhe trouxe Maria. Ela está dormindo no salão agora.
— Você conseguiu salvar Maria porque eles ainda não a haviam
achado. Mas resgatar alguém de Auschwitz é um sonho.
— Se não fosse por mim, Maria não estaria aqui. E agora
podemos usar essas ordens para salvar duas vidas.
Ela se dirigiu à estante de livros e pegou uma fotografia. Era um
retrato de Aaron, filho de Mikhail.
— Todo mundo merece ser salvo — disse ela.
— Não se já estiver morto — retrucou Mikhail.
Alguém bateu na porta. Era Lars, que viera buscar Mikhail para
observar o céu.
— Você não pode salvar o mundo — disse Mikhail, saindo.

C
Elie andou sozinha sob as estrelas sem vida e deu uma olhada
em Maria, que parecia mais jovem e menor sob a pilha de casacos.
Depois, ela subiu pelo poço até o quarto que dividia com
Lodenstein. Ele estava bebendo vodca e manuseando bruscamente
as cartas de seu jogo de Paciência, atirando-as no chão. Elie ficou
parada na porta, observando-o. Depois de um momento, disse-lhe:
— Então você não quer falar comigo.
— Por que deveria? — perguntou Lodenstein. — Você e Stumpf
agiram pelas minhas costas e trouxeram dois fugitivos.
— Desculpe-me — disse Elie em voz baixa. — Não tive tempo.
— Mas teve tempo para que eu amarrasse a fita no seu pulso.
Para isso eu sirvo.
— Gerhardt, por favor. Resgatei duas crianças. É isso que
importa.
— Então, por que Stumpf fez parte disso? Ele não se preocupa
em salvar ninguém. Por que não me pediu? Por que me deixou de
fora? Você colocou a todos nós em perigo.
Elie sentou-se na cama e tocou o braço dele.
— Porque tudo aconteceu rápido demais — justificou ela.
Lodenstein rasgou uma das cartas.
— Você nunca me dá respostas — disse ele. — Nunca sei quem
você é. Talvez existam duas Elies.
— Trata-se da sobrinha de Mikhail, Gerhardt. Ele estava
desesperado. E o menino estava sozinho no esconderijo.
— Ainda assim, você mentiu para mim, Elie. E se eu tivesse
ligado para o posto avançado, pensando que você estava lá? Todos
nós poderíamos ter sido fuzilados.
Ele se levantou e esvaziou a gaveta da escrivaninha. Gravatas,
corpetes e meias foram espalhados pelo quarto. Quando não havia
mais nada na gaveta, ele a arrancou e a atirou na parede.
— Como você pôde ser conivente com aquele imbecil? Como
pôde aceitar isso?
— Não foi assim.
— Então como foi?
— Mikhail estava desesperado.
— Você já disse isso.
Lodenstein jogou o colchão no chão, a colcha cinza caiu ao lado.
Ele abriu um velho baú, retirou um cardador de lã e o quebrou em
cima de uma cadeira.
— Não faça isso! — exclamou Elie. — É para nossa casa,
quando a guerra acabar.
— Que casa? Seremos todos fuzilados por escondermos
fugitivos.
— Ninguém vai descobrir.
— E se descobrirem?
— Nós podemos esconder as crianças. E não foram ordens
suas.
— Foram de quem, então? De Stumpf? Ele não pode dar ordens.
Você o subornou para fazer outro resgate?
— Você está louco?
— Então, por que não me contou nada?
— Não posso explicar.
— Você nunca pode.
Elie começou a arrastar o colchão de volta para a cama, mas
parou.
— Vou dormir lá embaixo — disse ela.
— Você não tem uma cama lá.
— Tampouco temos uma aqui. Vou dormir sobre os casacos.
— Leve o meu. Ele é bem grosso.
— Não preciso da porra do seu casaco. Não preciso de nada
seu.
C
Pieter,

Você diz que está bem, mas não nos informa um endereço de
verdade, apenas o de um escritório em Berlim. Por favor, me diga
onde você está.

Com amor e saudades,


Eleanora
Mikhail poderia nunca ter escrito a carta que Elie queria que
escrevesse se alguns noctâmbulos não tivessem aparecido uma
semana depois. Era este o nome que se dava aos fugitivos que se
deslocavam sob o manto da noite e dormiam em esconderijos
durante o dia. Eles abandonavam tudo que tinham, exceto as joias
que conseguiam costurar no forro das roupas, e percorriam
caminhos secretos até os portos, onde procuravam um barco que
pudesse levá-los para a Dinamarca. Havia uma cidade portuária
perto do Complexo. De vez em quando, Elie dava um jeito de deixar
os noctâmbulos dormirem nos antigos aposentos dos oficiais.
Eram cinco e meia da manhã quando uma dúzia de pessoas
cobertas de lama apareceu no fundo do poço. Mikhail, que estava
fazendo chá na cozinha, assistiu com eles aos primeiros raios de sol
— uma manobra que Hans Ewigkeit nunca conseguiu ajustar, na
qual uma esfera amarela rangia e oscilava numa polia, e sua corda
prateada era iluminada até que os refletores ofuscassem as
estrelas. Os noctâmbulos se agruparam próximos ao poço.
— Vocês podem se sentar ali — disse Mikhail, apontando para
os bancos.
— Neste inferno? — respondeu uma mulher que usava dois
chapéus e três cachecóis. — Vamos acabar derretendo.
Mikhail sentou-se num banco e, quando viram que ele não
estava derretendo, os noctâmbulos sentaram-se também e
começaram a se desfazer de várias camadas de roupas. Eles
usavam casacos sobre casacos, três ou quatro suéteres, mais de
uma calça, saias, blusas, meias. Alguns verificaram suas cintas,
onde haviam costurado joias.
Temendo que a SS encontrasse o rasto deles, ficaram ali por
mais um dia, enquanto Elie procurava alguém com um uniforme da
SS para guiá-los. Eles jogaram xadrez, aprenderam palavras em
sonhatório e beberam schnapps que Stumpf se esquecera de
esconder. Na última noite, houve um modesto banquete: Elie
acendeu velas. La Toya preparou uma sopa de batata apimentada.
Lodenstein fez um brinde.
Após o jantar, as pessoas ficaram conversando no salão
principal. De início, falaram sobre a guerra — como era difícil
encontrar falsificadores de documentos e como era impressionante
que as pessoas ainda acreditassem que as câmaras de gás eram
somente um rumor. Por fim, contaram casos de amigos que
desapareceram sem qualquer pista e crianças que nunca voltaram
da escola. Um homem relatou ter visto a filha ser espancada até a
morte numa rua da cidade.
— Você não deve pensar nessas coisas — disse Sophie
Nachtgarten.
— Quem é você para dizer isso? — questionou a mulher que
chamara o Complexo de inferno. — Vocês levam uma vida
encantada aqui embaixo.
— Não tão encantada assim — ponderou Sophie.
— Encantada o bastante — insistiu a mulher. — Meu tio estava
com setenta anos, e a SS lançou-o de cara na vitrine da própria loja.
Ele parecia um pássaro se estatelando no vidro. Em seguida o
fuzilaram.
Quando o guia com uniforme da SS chegou, os noctâmbulos se
foram e os escribas se amontoaram para dormir. Mas Elie e Mikhail
ficaram acordados, observando as velas. Quando elas começaram a
se apagar, Mikhail encostou a mão no braço de Elie.
— Vou escrever a carta que você quer — disse ele. — Pelo filho
de Asher Englehardt. E por Aaron. Escreverei a carta por Aaron
também.
Droga Matko i Ojcze,

Czy widzieliście mój odjazd z wszystkimi innymi dziećmi? Mam


nadzieję że tak. Widzieliście Łucję? Nigdzie nie czuję waszej
obecności.

Kocham,
Leokadia

C
Queridos mamãe e papai,

Vocês me viram indo embora com todas as outras crianças? Espero


que sim. Vocês viram Lucia? Não consigo achar vocês em lugar
algum.

Com amor,
Leokadia
Talia ficou contrariada quando Mikhail contou que ia escrever a
carta pedida por Elie e disse que ela precisava começar a praticar a
assinatura de Englehardt. Ela era uma falsificadora experiente e
havia fabricado carteiras de identidade no início da guerra, mas se
ressentia por participar de um esquema temerário.
— O que o faz pensar que uma carta conseguirá tirar alguém de
lá? — perguntou Talia. — E como sabe se ele ainda está vivo?
— De qualquer maneira, tenho que escrevê-la. Stumpf não sai
do meu pé por conta disso, e, se não o fizer, ele pode entregar
Maria à SS.
— Você não pode tirar pessoas de Auschwitz. Veja o que
aconteceu a Aaron na praça da cidade. E já foi tão difícil resgatar
Maria.
— Lodz era um gueto — disse ele. — E talvez a história do Anjo
de Auschwitz seja verdadeira. De qualquer forma, tenho que
escrever alguma coisa. E Elie entregará a carta.
— Elie não é um Anjo de Auschwitz.
— Ela trouxe Maria — disse Mikhail. — E ela sabe lidar com as
pessoas.
— E eu não sei disso?
Ela mexeu no cabelo, que, teoricamente, deveria ser uma peruca
ortodoxa, mas que nunca havia sido e certamente não o seria agora.
Tirou o grampo e deixou as madeixas caírem sobre os ombros com
seus longos cachos ruivos.
— Então, você vai fazer o que ela quer — prosseguiu Talia.
— Imagine se uma carta tivesse salvado Aaron?
— Mas não salvou. E nenhum pedaço de papel pode parar uma
bala.
C
Enquanto Talia estudava a assinatura de Asher a partir da receita
dos óculos de Heidegger, Mikhail começou a pensar na alegria de
Heidegger — ou, mais precisamente, sobre o que poderia
incomodá-lo. Esses pensamentos passaram a consumir todos os
minutos do seu dia. Quando saía com Lars para observar as
estrelas, quase não falava com ele. E, ao descer, relia a carta de
Heidegger para Asher e usava um dicionário alemão para
desvendar a etimologia que Sophie Nachtgarten considerava
absurda.
Stumpf lhe dera o dicionário. Disse-lhe que aquele continha mais
palavras do que qualquer outro do mundo, e Mikhail ficou tão
obcecado por cada palavra da carta de Heidegger que começou a
acreditar naquilo: Heidegger fizera um jogo de palavras com o termo
entfernen — distanciar-se — como em Eu me distancio da
controvérsia. A partir de entfernen, ele criara ent-fernen, que Mikhail
acreditou tratar-se de desembaraçar-se da distância. Ele se divertia
com as brincadeiras de Heidegger com as palavras. Isso o fazia
lembrar as discussões no Talmude.
Naquela noite, Mikhail olhou para o horizonte paralisado do outro
lado da janela e viu Áries, Sagitário e a estrela Polar num céu que
não era real. Aquilo lhe proporcionou a mesma sensação que tivera
quando, certa vez, vira uma carroça que transportava batatas virada
em Cracóvia, transformando a rua num leito de legumes. Por um
instante, não conseguiu lembrar-se de qual era a função das ruas —
um momento sem placas de sinalização ou referências. Deve ter
sido como Heidegger se sentira ao não reconhecer os próprios
óculos.
Mikhail acendeu um cigarro e abanou a fumaça para longe do
sofá onde Dimitri dormia. Quantas pessoas haviam pensado
naquele assunto do mesmo modo que Heidegger? E será que
Heidegger fazia alguma ideia da existência das câmaras de gás
quando afirmava que as pessoas não compreendiam o Ser das
máquinas e da tecnologia?
Ele permaneceu ao lado da janela por um bom tempo, tentando
imaginar o tipo de carta que Asher Englehardt escreveria e o tipo de
carta que Asher Englehardt jamais escreveria. A primeira seria
atenciosa e inteligente. A segunda, um disparate.
Ele queria escrever a primeira — nem que fosse só para
alcançar outra mente através de seu insuportável isolamento. Mas
sabia que deveria escrever a segunda, porque poderia salvar o filho
de Asher, que — se estivesse vivo — provavelmente estaria
aterrorizado. E ele se recordou do olhar de Aaron pouco antes de
ser fuzilado e buscou refúgio na lembrança da expressão do filho
com nove anos, depois de jogar lama na varanda da Sra. Mercier.
Ele tremia ao voltar para casa, e Mikhail lhe disse: Não tenha medo.
A Sra. Mercier gosta de gritar.
Além do dicionário, Stumpf deu-lhe uma máquina de escrever —
uma Adler. Mikhail começou a datilografar, evitando a etimologia
porque não queria escrever absurdos a partir do termo entfernen.
Enquanto escrevia, Mikhail ouvia um incessante murmúrio vindo
do salão. Parecia alguém falando consigo mesmo, como se
retomasse uma conversa interminável que não podia ter durante o
dia. Talvez reclamasse do cheiro de tinta e de terra. Ou talvez do
incômodo que era a missão do Complexo. Escutou também
resmungos que soavam como uma sessão espírita. Stumpf contara
a ele que iria invocar um comerciante de botões do século XIX: Um
dos mortos notáveis, como ele ressaltara.
Quando chegou à parte da carta de Heidegger que falava sobre
o Ser das máquinas, Mikhail refletiu. Em Cracóvia, ele tivera um
velho Renault que sempre enguiçava. Era o carro que decidia sua
vida e não ele mesmo.
Mas não podia mencionar um carro porque não sabia se Asher
Englehardt já possuíra algum. E a única outra coisa em que
conseguia pensar era nas câmaras de gás. Então ele não escreveu
sobre máquinas. Em vez disso, permitiu-se escrever sobre
etimologia. Depois, inventou um texto imaginário a partir do Talmude
— mas riscou a maior parte dele, porque achou melhor deixar o
Talmude fora disso. Ainda que não tivesse mais fé em nada.
Quando terminou, leu a carta outra vez e notou que estava
apropriadamente ridícula. A carta oculta, escreveu em seu caderno
codificado. As palavras com as quais apenas sonhamos.

C
— Que grande disparate — exclamou Talia lendo a carta.
— Poderá vir a salvar uma criança — reagiu Mikhail.
— Estou cansada de salvar os filhos dos outros — queixou-se
Talia.
Ela afastou a carta e se pôs a imitar a assinatura de Asher. Não
incluiu o sobrenome, porque Heidegger assinara apenas Martin.
Enquanto Talia escrevia, Mikhail prestava atenção à respiração
baixinha de Dimitri no sofá, aos murmúrios no salão e aos
resmungos da sessão espírita. Houve um estrondo repentino e um
coro de cale a boca e use a porra da caneta, pelo amor de Deus.
Era La Toya, que pretendia publicar suas memórias após a guerra.
Em seguida, sobreveio o silêncio e não se ouviam mais
resmungos. Sem dúvida, o deleitável traseiro de Sonia havia
distraído Stumpf. E passou pela cabeça de Mikhail que não
mostraria carta alguma a ele, mas a entregaria diretamente a Elie.
Por outro lado, Stumpf estava constantemente rondando. E ele
ajudara a salvar Maria, ainda que Elie tivesse feito todo o trabalho
sujo.
— Que disparate! — exclamou Talia novamente, quando
terminou de ler.
Mikhail disse que sua intenção era que a carta fosse absurda e a
levou até a torre de sentinela. Escutou as sete trancas sendo
abertas e entrou no quarto cheio de incenso. Stumpf ficou tão
satisfeito com a extrema incompreensibilidade da carta que largou
Sonia e acompanhou Mikhail pelo caminho de pedras. Lars, que ia
levar Mikhail para observar as estrelas, correu até eles.
— Está tudo bem — disse Mikhail. — Esta noite, vou com
Stumpf.

C
Mikhail e Stumpf atravessaram a clareira, o gelo estalando sob
seus sapatos. Stumpf subiu desajeitadamente até o posto de
observação e Mikhail o seguiu. As estrelas estavam
extraordinariamente brilhantes.
— O que você está vendo? — perguntou Stumpf.
— Um mundo do qual me sinto alheio — respondeu Mikhail.
— O que você quer dizer? O mundo está aí. — Ele fez um gesto
amplo com o braço. — Os bosques estão à sua volta. A Alemanha,
a pátria.
Ele continuou apontando para o bosque, como se lhe
pertencesse. Depois, disse:
— É uma carta magnífica. Acho que vou entregá-la
pessoalmente.
— Ainda não — disse Mikhail, pegando-a de volta. — Talia
precisa assinar o sobrenome de Asher. Senão, Heidegger não vai
acreditar.
— Mas eles eram amigos.
Mikhail o ignorou e voltou para o trailer, descendo rápido pela
rampa, com Stumpf a seu encalço. Depois de percorrerem a rua e
seguirem na direção do pé de pera, Stumpf pegou o dicionário no
banco.
— Você fez bom uso dele — disse.
Mikhail assentiu e abriu a porta. Um instante depois, sentiu o
dicionário acertar sua cabeça e a carta ser arrancada de sua mão.
Em seguida, Stumpf correu até o salão principal e pegou a caixa
com os óculos na mesa de Elie. Mikhail estava inconsciente. Ele não
ouviu Dimitri gritar. Não soube que Lodenstein correra atrás de
Stumpf, para tentar impedi-lo de sair dirigindo pela longa e estreita
estrada.
A FLORESTA NEGRA
Querido Martin,

Li sua carta com grande interesse e venho refletindo sobre o


termo Ent-fernen. Você obviamente ainda está preocupado com a
essência do distanciamento dos objetos de maneira que seja
possível vê-los e, é claro, compartilho das suas preocupações.
Quando não vemos as coisas como se ali estivessem para nosso
uso, nós as enxergamos de maneira diferente, talvez como pessoas
de outra cultura as veriam. E para esse propósito nada há de mais
interessante do que o termo Ent-fernen.
Porém, temo que você esteja brincando com as folhas das
árvores, enquanto deveria olhar para a floresta. (E você, mais do
que ninguém, conhece as florestas!) O mistério do Ser encontrado
caindo pelas trilhas é de extrema importância nos dias atuais. E as
trilhas podem se tornar abstratas, a menos que sejam reais e você
esteja andando por elas. Devo lhe dizer que, recentemente, deparei
com um texto antigo (logo no Zohar!) que cita o Mistério do
Triângulo e, por algum motivo, isso prendeu minha atenção. Diz o
texto:
“O triângulo é a mais paradoxal das situações humanas. Ele é o
segredo de todos os comprometidos e motivo de traição. Na
verdade, é um imenso desafio para o coração humano, porque tem
o poder de proporcionar um incrível bem e provocar incrível
sofrimento, assim como induzir estados de êxtase e demência. Criar
um triângulo com integridade é uma tarefa para Deus.”
Muito embora se trate de um texto arcaico, acredito que fale à
necessidade de um claro entendimento entre as pessoas,
especialmente durante períodos conturbados. Se existem dois
elementos, é necessário que haja um terceiro, para garantir o
equilíbrio. Esse terceiro elemento serve para manter os dois
primeiros no lugar, mas não deveria jamais interferir no espírito de
sua interação.
Quanto à poesia, esta pode ser evocada. E penso que a poesia
frequentemente leva as pessoas ao âmago da experiência. Mas
referências à etimologia, por mais maravilhosos que sejam os
radicais, escapam às pessoas com frequência.
E você quer que eles entendam, de modo a alcançarem uma
vantagem perigosa por meio da qual possam ousar saltar para um
novo nível de entendimento. Foi isso que aconteceu com seus
óculos, não foi? (Aliás, os novos seguem com esta carta.) Você os
experimentou — tanto quanto qualquer um é capaz — como coisas
em si, e devemos fazer o mesmo com tudo que nos cerca,
particularmente com nós mesmos.

Seu fiel amigo,


Asher
Stumpf saiu dirigindo imprudentemente, cantando pneus e
derrapando sobre um monte de neve alguns quilômetros depois de
deixar o Complexo. Na traseira do jipe, os três latões de gasolina
caíram. Stumpf estava com medo de que Lodenstein o seguisse. Ele
não tinha uma pá, então escorou as rodas traseiras do automóvel
com pedras e acelerou impiedosamente até desatolar. Um bom
sinal, pensou ele. Goebbels deve querer que eu entregue tudo esta
noite.
Mas quando alcançou a estrada principal, foi tomado por pânico
e angústia. Na pressa para sair, na euforia ao apoderar-se da carta
e encontrar os óculos, ele havia esquecido que a Floresta Negra
ficava a seis horas de viagem. Estimara somente uma hora — um
passeio agradável ao luar —, não uma viagem de mais de seis
horas a ser percorrida na estrada escura e deserta.
Stumpf relembrou que a Alemanha era um país imenso, a ponto
de expandir ainda mais, e ele deveria se sentir privilegiado em poder
percorrer distâncias assim tão longas. Mas o vazio absoluto da
estrada o deixava nervoso. E não conseguia parar de pensar em
Mikhail caído com o rosto no chão, depois de ter sido atingido pelo
dicionário. Lembrou-se da sua cabeça parcialmente coberta pelo
quipá; os braços frouxamente estendidos sobre o tapete oriental.
Tinha certeza de que não havia matado Mikhail. Tinha certeza de
que nem sequer o havia machucado. Apesar do ocorrido, conseguiu
se distrair, imaginando a melhor maneira de entregar a carta e os
óculos.
Deveria dizer Heil Hitler! antes ou depois de bater à porta do
chalé de Heidegger? E caso Heidegger o convidasse para entrar?
Deveria responder que precisava partir ou aceitaria um copo de
schnapps? Ele se esquecera de que as ordens eram para entregar
tudo sem deixar indícios sobre de onde tinha vindo e prosseguiu
reciclando as mesmas alternativas: entrar ou partir. Anunciar outras
missões ou manter-se enigmático.
Goebbels provavelmente iria querer que ele bebesse um drinque
com Heidegger. Ele mesmo valorizava a interação com as pessoas
e passava ao menos uma hora por dia na praça do mercado,
conversando sobre a vitória alemã. Por outro lado, Stumpf
esquecera sua jaqueta da SS, e era por pura sorte que se
encontrava de botas, e não com seus sapatos de lã, quando acertou
a cabeça de Mikhail e saiu correndo do Complexo. Seria melhor
dizer Heil Hitler! e ir embora. Sem mencionar que possuía outras
missões.
O céu lentamente deixava entrever alguma claridade, e os
pinheiros pareciam erguer-se suavemente ao longo da estrada. A
manhã fria e cinzenta se aproximava e Stumpf parou o carro para se
recompor, bem devagar para evitar os montes de neve. Ele inclinou-
se para trás e cochilou, mas acordou assustado quando sentiu algo
estalando em seu bolso. Era a carta de Mikhail — amassada demais
para ser entregue sem desonrar o Reich. Ainda bem que trouxera o
dicionário de alemão consigo; poderia usá-lo para desamassar a
carta. Mas ao perceber as manchas de sangue na capa do livro,
teve visões da ira de Goebbels, caso ele realmente tivesse matado
Mikhail, que era, afinal de contas, um Echte Jude — tão importante
para a causa.
Stumpf enfiou a carta entre as páginas do dicionário sem olhar
para o sangue e arrancou pela estrada principal. À medida que o sol
ficava mais alto, mais veículos apareceram, e houve um bocado de
buzina e acenos para a suástica sobre o Kübelwagen. Os
cumprimentos melhoraram o humor de Stumpf, e ele teve certeza de
que Goebbels o elogiaria. Muito bem, podia ouvi-lo dizendo. Um
trabalho de fato muito bem-feito.
Ainda assim, seu bom humor sumiu duas horas depois, quando
alcançou a Floresta Negra e não encontrou indicações para chegar
ao chalé de Heidegger. Esperava se deparar com uma placa
sinalizando Todtnauberg assim que saísse da estrada principal.
Entretanto, quanto mais dirigia, mais altos pareciam os pinheiros e
mais opaca a claridade, até que foi envolto pela escuridão. Stumpf
se recordou da história sobre uma estrada que levava a um lugar
onde era sempre noite. Tinha visto dois camponeses andando pela
estrada, mas eles logo desapareceram. Resolveu fazer uma curva
— numa manobra arriscada. Mas a estrada que surgiu à sua frente
também o decepcionou. Ele estava esperando encontrar chalés
pitorescos cercados por pequenas árvores. Em vez disso, viu
grandes chalés, afastados uns dos outros, sobre uma colina
despojada de árvores. Os moradores do local não se
impressionaram com seu quepe quando ele bateu à porta e lhe
deram informações vagas e escassas para chegar a Todtnauberg.
Ele seguiu por campos cobertos de neve, até encontrar um
gigantesco chalé alpino com dois sótãos, belo acabamento em
madeira escura e telhados bastante salientes. Era ali que Heidegger
morava.
Bom trabalho, ele ouviu Goebbels dizer outra vez, ao se
aproximar do chalé. Mas sua voz era quase inaudível. Stumpf
assoou o nariz e abriu o dicionário. Mesmo após duas horas entre
aquelas páginas, a carta de Mikhail continuava amassada. Eram
marcas profundas como os veios de uma folha de palmeira. E,
considerando que nenhum membro respeitável do Reich entregaria
uma carta em estado tão deplorável, Stumpf resolveu deixar tudo do
lado de fora da casa, e partir o mais rápido possível. Ele vasculhou
a caixa com os óculos, certo de que Elie lhe havia mostrado um par
marcado com für Martin Heidegger, mas não o encontrou, então
escolheu um que lhe pareceu familiar e não possuía etiqueta
branca. Em seguida, avançou na ponta dos pés até a casa, suas
botas deixando pequenas impressões sobre a neve. Faltavam
somente três passos escorregadios para alcançar a porta escura do
chalé, mas Stumpf achou melhor não se arriscar. Acabou deixando
a carta e os óculos sobre uma pedra e se virou para ir embora. Mas
então uma voz ressoou, deixando-o paralisado.
— O que você está fazendo aqui no meu chalé?
Stumpf virou-se e viu um homem baixo e impassível com botas
pretas e um macacão espesso da mesma cor. Sem dúvida, era
Martin Heidegger. Heidegger agitou a bengala que tinha na mão
diante de Stumpf.
— Explique-se — disse ele.
— Estou fazendo uma entrega — murmurou Stumpf.
— Que entrega?
— Uma entrega importante.
— Por que se evadir assim, se é tão importante? — perguntou
Heidegger.
— Porque tenho outras entregas a fazer — explicou Stumpf.
— Não justifica a maneira como agiu — contestou Heidegger.
Ele apontou para o chalé como se Stumpf fosse um cachorro.
Estava escuro lá dentro — a boca de uma caverna prestes a engoli-
lo. Stumpf se afastou e pegou a carta e os óculos.
— Não fique aí parado como um parvo na neve — disse
Heidegger.
Agarrando Stumpf pelo braço, ele o levou até um cômodo frio e
abarrotado de casacos, luvas, guarda-chuvas, botas e echarpes.
— Deixe tudo aí — prosseguiu ele, apontando para um
banquinho de ordenha com três pernas que parecia ter vindo de
algum estábulo.
— Não posso — disse Stumpf. — É importante demais.
— Então vamos para a cozinha — sugeriu Heidegger,
conduzindo Stumpf na direção de um aposento com vigas
rebaixadas e uma cama atrás de um fogão. Havia uma mesa ao
lado da janela, que deixava entrar uma luminosidade pálida e fraca.
Sobre a mesa, um pedaço de pão, alguns garfos e a Metafísica de
Aristóteles. Heidegger apanhou o livro e o agitou diante de Stumpf.
— Ninguém supera os gregos — disse ele. — Estou voltando à
fonte.
— Não quero interrompê-lo.
— Você já o fez — disse Heidegger. — Assim como da outra
vez, durante a conferência sobre a natureza do Ser.
— Nunca fui a essa conferência — exclamou Stumpf.
— Então foi um de seu bando.
— Não faço parte de um bando.
— O que é isso, então? — inquiriu Heidegger, apontando para a
insígnia no quepe de Stumpf.
— Quem faz entrega tem de usar — protestou Stumpf, dando-se
conta de que não devia estar usando aquele quepe.
— E desde quando a SS tem um sistema postal próprio?
Stumpf estava prestes a dizer que sempre o tiveram. Depois,
percebeu que deveria dizer o contrário. Em seguida, ouviu a voz de
Goebbels dizendo que o que ele devia fazer era ficar calado.
Colocou a carta e os óculos sobre a mesa, e se virou para partir.
Mas Heidegger pôs a mão sobre seu ombro.
— Você precisa caminhar comigo — disse ele. — Quero saber o
que o seu bando anda tramando.
Stumpf disse mais uma vez que tinha outra missão a cumprir.
Mas Heidegger achou graça.
— Você não acha que vai embora sem dar alguma explicação,
não é? Não, não pense que vai escapar assim.
Ele conduziu Stumpf de volta ao cômodo frio e procurou um
casaco, um chapéu verde pontudo com uma pena e suas botas. Era
tudo para Heidegger — não para Stumpf, que só agora reparava
que o macacão de Heidegger era, na verdade, uma roupa de
esquiar. Quem, a não ser uma pessoa perigosa e estranha, usaria
roupa de esquiar dentro de casa?, pensou ele. Ninguém com quem
se possa caminhar em total segurança.
Eles saíram do chalé e Heidegger indicou a direção de uma
colina coberta de neve.
— Agora conte-me sobre o seu equívoco — disse ele.
— Mas que equívoco?
— Você sabe qual. A porra da interrupção.
— Eu não sei nada sobre a interrupção.
— Claro que sabe — insistiu Heidegger. — Você faz parte do
rebanho, e cada animal do rebanho sabe o que os outros animais
estão fazendo.
Eles depararam com uma leve subida. Stumpf segurou num
galho de pinheiro para não cair.
— Não sei do que você está falando — disse ele.
— A Gestapo interrompeu minha conferência. Levaram-me para
o saguão. Armaram uma confusão. E isso ocorreu durante um
importante congresso internacional.
— Não tenho qualquer informação sobre congressos
internacionais.
— Então, por que a Gestapo está me vigiando? — perguntou
Heidegger.
Stumpf, que havia se esquecido de que a Gestapo estava
vigiando Heidegger, passou a ter certeza de que eles estavam
escondidos atrás dos montes de neve, prontos para saltar em cima
dele. Decidiu então não afirmar nem negar coisa alguma.
— Essa porra de rebanho — continuou Heidegger. — Claro que
você não entende, pois é um deles. Um bando de narizes seguindo
outros narizes. Vocês se esqueceram de suas raízes. Tudo o que
sabem fazer é pastar.
Stumpf não fazia ideia sobre o que Heidegger estava falando e
arquejava, tentando acompanhá-lo. Eles saíram em um bosque de
pinheiros que lhe deu uma impressão momentânea de abrigo, mas,
alguns passos depois, os troncos foram ficando mais espessos e o
ar, quase sombrio. Chegaram em outra clareira — pouco iluminada.
Em seguida, passaram por mais bosques, nos quais Heidegger
sacudia os galhos, encharcando Stumpf de neve. Ele continuava
resmungando sobre o congresso e Stumpf insistia que os únicos
congressos dos quais tinha conhecimento eram os do Partido.
Toda vez que entravam numa clareira, Heidegger dizia que era
como encontrar seu caminho na filosofia. Toda vez que se
encontravam sob a sombra dos pinheiros, dizia que era como perder
seu caminho. Na sequência, ele falou:
— Sempre seguimos por caminhos que nos levam a nos
perdermos novamente.
Stumpf perguntou-se vagamente se aquilo se tratava de um
paradoxo e soltou um grunhido. Por duas vezes, a pena do chapéu
de Heidegger se prendeu num galho e Stumpf teve que soltá-la. Ele
imaginou o que Heidegger fazia nessa situação quando caminhava
sozinho.
Stumpf ficou sem fôlego na parte mais escura da floresta e
precisou se apoiar em um tronco para descansar. Olhando para os
lados, procurou por lobos que podiam estar escondidos atrás dos
pinheiros. Heidegger bateu em seu joelho com a bengala.
— Você não me falou sobre o congresso — disse ele.
— Eu lhe falei tudo que sabia.
— E quanto à Gestapo?
Stumpf tentou se lembrar de por que a Gestapo estava vigiando
Heidegger: tinha certeza de que havia uma relação com o fato de
ele não respeitar as metas do Partido, mas sabia que uma simples
menção a isso deixaria Heidegger furioso. Então, olhando para os
pinheiros, se perguntou se, além dos lobos, haveria outras criaturas
escondidas ali: elfos, por exemplo, que poderiam levá-lo a dizer
exatamente o que não devia. Ele tentou escutar, mas só ouviu o
vento. Heidegger se levantou e chutou a neve.
— Você é um servidor público inútil — disse.

C
Quando retornaram ao chalé, o mundo inteiro estava submerso
em sombras. Stumpf disse que precisava partir numa missão, mas
Heidegger o puxou para a cozinha, onde uma mulher loura com uma
coroa de tranças mexia uma sopa.
— Olhe para isso — disse ele, apontando para Stumpf.
Stumpf bradou um Heil Hitler! e Elfriede Heidegger
cumprimentou-o sem se virar. Depois o encarou com os olhos
semicerrados.
— Quem é? — perguntou a Heidegger.
— Um imbecil do Partido — respondeu ele.
— Você não deveria falar assim — protestou ela. — E não
deveria usar esse chapéu na neve. — Ela o retirou e ajeitou a pena.
— Vai estragá-lo. Não volte a usá-lo antes da primavera.
— Não me chateie por causa do chapéu — reagiu Heidegger. —
Mas olhe isso. — Ele lhe mostrou a carta e os óculos.
Elfriede Heidegger voltou a semicerrar os olhos.
— O que pessoas como você fazem? — perguntou ela a Stumpf.
— Nós entregamos coisas — respondeu ele.
— Nós quem?
— Nós do escritório.
— Você disse que não trabalhava para um escritório — assinalou
Heidegger, pegando a Metafísica de Aristóteles e caminhando em
direção a outro cômodo, depois de dizer à esposa: — Tente
entendê-lo você.
Elfriede fez um barulho com a língua e se virou de volta para a
sopa.
— Queira sentar-se, por favor — pediu para Stumpf.
Stumpf não queria se sentar. Os móveis de madeira escura e a
luz mortiça vinda da janela fizeram-no sentir-se fora do tempo
normal — não era o tempo devaneador das sessões espíritas, mas
o tempo malévolo dos contos de fadas. Ainda assim, sentia-se
enfeitiçado, como os personagens sem sorte dos contos de fadas, e
acomodou-se em outro banquinho de três pernas, que também
devia pertencer a um estábulo. Olhando para as vigas, ele se
perguntou se elas cairiam sobre sua cabeça.
Elfriede continuou mexendo a sopa.
— Em que escritório você trabalha? — perguntou ela. —
Conheço todos eles.
— Nenhum.
— Então, por que está vestido assim?
— Protocolo.
Elfriede Heidegger balançou negativamente a cabeça.
— Não existe protocolo. Um uniforme é um uniforme.
Ela vasculhou um armário, colocou um cesto sob os pés de
Stumpf e lhe entregou uma faca e cinco batatas.
— Faça o favor de descascá-las — disse.
Stumpf as descascou nervosa e confusamente — metade das
cascas caindo sobre suas botas. Enquanto fazia esse trabalho, ele
olhava fixamente para as tranças louras de Elfriede e reparou que
ela parecia uma mulher chamada Frieda, com quem ele quase se
casara.
Àquela hora, era provável que Frieda também estivesse fazendo
uma sopa, pensou ele — mas numa casa comum com mobília
agradável. Por que ele a deixara partir e se envolvera tanto com o
trabalho? E como ele podia ser enfeitiçado por Sonia que, às vezes,
na privacidade parcial da sua torre, dava saltos, fazia piruetas,
arabescos, contorcendo seu corpo em formas do alfabeto,
surpreendendo-o ao pensar que as letras eram quase humanas;
ambos os calcanhares nos ombros para fazer o M, deslizando para
fazer o S, curvando-se para trás no O, uma perna tocando a testa
para o D. Sonia podia se transformar em qualquer letra do mundo,
até do alfabeto cirílico. Mas, quando olhou para Elfriede, Stumpf
percebeu que vivia se esquecendo de que Sonia era uma judia
russa — nada parecida com a mulher que certa vez ele quisera
desposar.
Enquanto ele descascava batatas, Elfriede Heidegger falava
sobre os congressos do Partido dos quais ele nunca soubera, pois
estava condenado à vida de uma criatura subterrânea, obrigado a
viver no Complexo. Pensou novamente em Frieda fazendo sopa
numa cozinha sem cama. Ele tinha certeza de que ela ia a mais
congressos do Partido do que Elfriede e era mãe de pelo menos
quatro filhos.
Elfriede Heidegger colocou as batatas na sopa e varreu as
cascas do chão.
— Foi Goebbels que o mandou até aqui? — perguntou ela.
— É exatamente isso que eu quero saber — berrou Heidegger
de seu escritório.
Stumpf disse que não podia divulgar informações, era enviado
apenas para fazer entregas particulares. Ele era uma simples
conexão entre pessoas de grande importância: um mensageiro, um
elo, um intermediário.
Andrzej,

Wciąż nie ma wiadomości od Ewy i dzieci. Rozmawiałem z kimś kto


może się swobodnie poruszać i mam inne wiadomości. Spotkaj się
ze mną na skraju baraków.

Janusz

C
Andrezej,

Ainda estou sem notícias de Ewa e das crianças. Mas tenho


conversado com alguém que pode viajar livremente e disponho de
outras notícias. Encontre-me nas cercas da caserna.

Januz
Pão preto acompanhava a sopa de batatas. Estava bem espessa,
mas nem de longe era gostosa como a que os escribas preparavam:
Stumpf pensou em Parvis Nafissian fazendo barulho com as
panelas, Niles Schopenhauer descascando batatas, Gitka Kapusinki
salpicando condimentos, Sophie Nachtgarten acrescentando o pão
e uma das russas sempre dizendo não mexa o chá com seu pau. La
Toya adicionava sempre algo extravagante, como vodca ou canela,
o que dava à sopa um sabor ainda melhor, e Elie os surpreendia
com salsichas ou queijos. E, de repente, como uma criança muito
distante de casa, ele sentiu saudade do odor mineral e úmido e do
conforto subterrâneo do Complexo. Sentiu falta até mesmo dos
escribas, divertindo-se à sua custa, e dos jogos de palavras que ele
não entendia. Naquele exato momento, ele sentiu saudades da cada
vez mais imaginária Frieda, servindo a sopa numa casa agradável
com móveis simples. Em outras palavras — ele sentia falta de tudo
ao mesmo tempo, e isso foi crescendo dentro dele como o balido de
um carneiro, muito embora não pudesse gritar. Tentou esquivar-se
do convite para pernoitar ali e ficou consternado quando Elfriede o
conduziu da mesa oblonga até a cama atrás do fogão da cozinha.
Ela disse que eles costumavam se deitar com os passarinhos e
acordar com eles, portanto ele poderia pegar a estrada ao
amanhecer. Stumpf deitou-se na cama e percebeu que o cheiro das
cascas de batatas o incomodava mais do que a umidade da mina.
As sombras das panelas e frigideiras pareciam ursos, prontos a
atacar e se vingar por ele ter acertado Mikhail na cabeça, apesar de
seu imenso trabalho em escrever aquela carta.
Stumpf não dormia na superfície da terra desde a última vez em
que visitara a fazenda de seu irmão, no outono. Ele permaneceu
algum tempo deitado na pequena cama, sem se mover, ouvindo
Heidegger tossir e temendo que os pinheiros farfalhantes fossem,
na verdade, a SS espionando a sua visita catastrófica. Ele rastejou
até a janela e só conseguiu enxergar um único pinheiro. Mas não
sentiu confiança naquela escuridão e percebeu as vantagens de
dormir abaixo do solo. Era isso que o Führer estava fazendo no
momento.
Deixou-se vagar e começou a imaginar Frieda numa grande
cama, sem o marido: ele teria ido para a guerra, como todo alemão
sensato. Infelizmente, tinha morrido e Frieda ficara sozinha. Stumpf
estava a ponto de tocar os seios dela quando viu luz vindo da sala
de jantar e ouviu uma forte pancada. Em seguida, Heidegger gritou:
— Não consigo enxergar com esses óculos!
Stumpf sentou-se e bateu com a cabeça numa panela. Por
alguma razão, aqueles dois, que se deitavam e levantavam com os
passarinhos, estavam acordados bem no meio da noite.
Esgueirando-se por trás do fogão, ele viu os Heidegger à mesa,
ambos vestindo roupão: o dele era marrom-escuro, o dela, azul-
claro. A cena lembrava um friso do gabinete de Himmler, com dois
deuses gregos que trabalhavam em conjunto. Stumpf perguntou a
Heidegger se tinha certeza de que não conseguia enxergar com
aqueles óculos, e ele respondeu que, evidentemente, tinha certeza.
Como poderia não ter?
— Agora — disse Elfriede —, diga-nos onde os conseguiu.
Stumpf respondeu que não podia revelar.
— Então, onde você conseguiu essa maldita carta? — perguntou
Heidegger.
— No escritório — respondeu Stumpf. — Eles nos dão as coisas
menores.
— Você considera essa questão sobre Ent-fernen algo menor?
Ou essa ridícula história de triângulos?
— O Reich não considera nada menor.
— Então você faz parte do Reich.
Stumpf repetiu que era apenas um emissário. E depois, como se
tivesse se esquecido do que precisava esconder, disse que Asher
Englehardt tinha perdido a ótica, e as pessoas que perdiam suas
lojas às vezes faziam coisas estranhas: talvez Asher tivesse feito os
óculos com a receita errada. Ou escrito uma carta sem sentido.
Heidegger não registrou a informação de que Asher perdera a
loja, mas Elfriede Heidegger, sim.
— Como você sabe disso? — perguntou ela.
— O escritório nos informou — foi a resposta de Stumpf.
— Quem são vocês?
— Não posso dizer.
— Eles nunca contam nada — disse Heidegger, jogando a carta
dentro da sopeira.
O papel flutuou na superfície e em seguida afundou entre as
batatas. Stumpf o recuperou e enxugou-o com a manga da camisa.
— Alguém que trabalha com você? — indagou Elfriede.
— Não tenho permissão para responder.
— Claro que tem! — exclamou Heidegger socando a mesa.
Stumpf estava prestes a revelar mais detalhes sobre as pessoas
que perdiam suas lojas. Ele ia falar sobre a confusão nos papéis —
arquivos desarrumados, malas postais abarrotadas. Mas o soco de
Heidegger na mesa e o barulho da panela deram-lhe vontade de
estar bem longe daquele escuro e lúgubre chalé, numa rua com
luzes suaves onde as pessoas usassem casacos de pele e o
perfume de rosa se mesclasse ao odor de terra. Podia sentir o
cheiro de rosa, como se estivesse no Complexo. Podia ver o abajur
na mesa de Elie e seu braço branco com a fita vermelha se
movendo na direção do chocolate que sempre lhe oferecia. E podia
sentir a aura que a envolvia no inverno — o clima verdadeiro, a neve
perfumada. Dieter, ele a ouviu dizer.
— Elie — chamou ele em voz alta.
Elfriede Heidegger arregalou os olhos.
— Elie — repetiu ela, como se o nome vibrasse numa escala
musical particular. — Elie.
Stumpf apoiou o queixo múltiplo sobre a mão. Heidegger
observava a sopeira.
— Eu me pergunto se ele se refere àquela Elie — disse Elfriede.
— Que Elie? — perguntou Heidegger.
— Aquela prostitutazinha que veio à minha festa. Ela pegou
minha receita de bundkuchen.
— Não sei de quem você está falando — disse Stumpf.
— Havia uma Elie em Freiburg — continuou Elfriede. — Ela
aparecia um dia e, no outro, sumia. Nem sequer prevenia a
senhoria. Uma daquelas polonesas de aparência ariana, com
cabelos louros e olhos azuis. Todos disseram que ela passou para a
Resistência.
— Há um bocado de moças chamadas Elie que são louras e têm
olhos azuis — disse Stumpf. — E esta Elie é da Letônia.
— Mas não há muitas que desaparecem — prosseguiu Elfriede.
— Ou muitas que saem surrupiando coisas por aí.
Stumpf sentiu sua cabeça ficar insuportavelmente pesada.
Segurou-a com a mão. Heidegger apanhou a carta.
— Agora, fale-nos sobre Asher Englehardt — exigiu ele.
— Não posso.
— Ele está morto?
— Não — respondeu Stumpf, que não fazia a menor ideia se ele
estava morto ou não.
— E quanto a esta outra entrega? — indagou Heidegger.
Stumpf não respondeu. Heidegger ergueu a cadeira do oficial,
segurando-a pelo assento de junco.
— Quero que você me leve até Asher Englehardt — disse ele. —
Quero ouvir da boca dele que ele mesmo escreveu os absurdos
desta carta.
— Não posso. Acredite. Eu o levaria se pudesse, mas não
posso.
— Então, Elfriede vai denunciar você. E essa tal de Elie também.
As ameaças eram a ordem do dia, como durante toda a guerra.
Elas vinham na forma de acenos com a cabeça, humilhações,
comentários, um revólver na costela de alguém, até mesmo como
um piscar de olhos.
Stumpf analisou a ameaça de Heidegger enquanto ele ainda
segurava sua cadeira. Tinha certeza de que Mikhail escrevera uma
bela carta, e qualquer um poderia ter se enganado com os óculos.
Por outro lado, ele era a única pessoa do Complexo que os
Heidegger tinham visto e podia ser fuzilado por revelar o projeto. E,
muito embora algumas vezes Stumpf já tivesse achado que não se
importaria de ser fuzilado, sempre pensara que caberia a ele decidir
onde e quando isso ocorreria. Assim, se surpreendeu dizendo algo
que nunca imaginou ser capaz — o impensável, o inexprimível.
— Vou encontrar um jeito de levá-lo até Asher Englehardt.
Heidegger abaixou a cadeira.
— Quando? — quis saber.
— Não posso dizer — respondeu Stumpf. — Essas coisas não
acontecem com a precisão de um relógio. Enquanto isso, farei com
que Asher assine uma declaração afirmando que escreveu esta
carta.
— Não confio em declarações — disse Heidegger. — Quero
ouvir dele. E quero meus óculos.
— Nós esperaremos por duas semanas, não mais que isso —
acrescentou Elfriede.
— Duas semanas, prometo. Pode me devolver a carta?
— Não — disse Elfriede, enfiando-a em seu roupão. —
Ficaremos com tudo até você promover o encontro entre Martin e
Asher. Ele era um homem maravilhoso, por sinal. Ninguém podia
imaginar que o pai dele fosse judeu.
Heidegger concordou com o plano. Ele começou a falar sobre o
Ser dos objetos perdidos — especificamente, seus óculos.
— Ou talvez eles não estejam perdidos — disse ele. — Talvez
tenham apenas sido mal categorizados, em uma gaveta com
botões, quinquilharias e cartas. E, talvez, o mesmo tenha ocorrido a
Asher Englehardt.
A menção a Asher Englehardt fez Stumpf temer que Heidegger
soubesse sobre os campos de concentração. E a menção às cartas
o fez temer que ele soubesse sobre o Complexo. Mas não era sobre
as cartas e os campos de concentração que ele estava falando.
Heidegger queria dizer que os óculos estavam em algum lugar no
mundo — objetos brutos, que não faziam parte da vida humana, do
mesmo modo como vira seus óculos sem os reconhecer.
Heidegger especulava, Elfriede ajeitava sua coroa de tranças e
Stumpf se lembrou de que tinha mais de vinte óculos no jipe. Um
deles poderia ser o de Heidegger. Mas a hipótese de esperar
enquanto ele os experimentasse era intolerável, e ele partiu assim
que possível, levando um pão preto, por insistência de Elfriede, e
dizendo Até muito em breve! Menos de duas semanas!
Finalmente, Elfriede fechou a porta e Stumpf saiu andando tão
rapidamente que deixou seu quepe cair. Ele o pegou sem olhar à
volta, como se uma simples espiadela no chalé pudesse enfeitiçá-lo,
transformá-lo em pedra. E ficou surpreso ao rever a maldita caixa
com os óculos e o dicionário manchado de sangue em seu
Kübelwagen. Era como se tivesse saído de um reino em que objetos
ordinários não existissem. Foi obrigado a dirigir devagar pela
estrada cheia de neve — passando novamente entre os pinheiros,
que pareciam ainda mais nefastos desde que ele fora enfeitiçado.
Por algum milagre, a neve havia sido retirada da estrada principal —
um sinal de redenção, ele tinha certeza. Respirando a plenos
pulmões, acelerou. Tudo que queria era voltar para suas bolas de
cristal e para Sonia dançando as letras do alfabeto. Mas quando se
lembrou da promessa de levar Heidegger até Auschwitz, reduziu a
velocidade a ponto de o Kübelwagen se arrastar pela estrada.
O ANJO DE
AUSCHWITZ
Marietto,

Wciąż myślę o tobie i czasem widzę twoją twarz patrzącą na mnie z


okna mieszkania na przeciwko jednej z naszych ścian. Dzięki bogu
że wyjechałaś. Ludzie są podzieleni, zawsze się kłócą i wszyscy są
zgodni że za parę miesięcy to getto zobaczy powstanie. Nikt z nas
tego nie przeżyje ale to nie ma znaczenia ponieważ teraz i tak nie
żyjemy.

Kocham,
Gustaw

C
Marietta,

Penso em você o tempo todo, e às vezes imagino que posso ver


seu rosto olhando para mim do apartamento oposto a uma dessas
paredes. Graças a Deus você se foi. Estão surgindo dissidências, há
muita discussão e todos concordam que em poucos meses este
gueto verá um levante. Depois disso, não sobrará nenhum de nós
vivo, mas não importa, pois nenhum de nós está vivo agora.

Com amor,
Gustav
Vinte e sete horas após Stumpf agredir Mikhail e sair do
Complexo, Gerhardt Lodenstein começou a arrumar o quarto, que
pusera abaixo pela segunda vez em dez dias após uma briga
violenta com Elie, na qual ele a chamara de intrometida e traidora.
Ela havia se trancado no antigo quarto de Mueller.
Talvez, pensou ele, seja apenas uma ilusão eu ser o Oberst.
Talvez minha vida realmente consista em destruir este quarto e
restaurar a ordem de novo. Ele começou recolocando no baú as
coisas que tirara de lá — um baú enorme que usava para guardar
as lembranças.
O baú era da Marinha e ele o guardava como memorabilia
porque, desde que chegara ao Complexo, algo acontecera com sua
noção do tempo: coisas comuns que tocava, que ouvia — até
mesmo Elie — pareciam passar por um nó corrediço e se tornavam
parte da memória das coisas acontecidas. Por um instante, uma
caneta, um pedaço de papel, um rosto, eram simplesmente o que
eram. No instante seguinte, tornavam-se parte do passado e
reverberavam como lembranças da infância — o som das
brincadeiras de rua, uma roda de patim. Ele se perguntava se isso
era devido ao fato de estar com medo de não sobreviver à guerra ou
com medo de que Elie morresse numa de suas incursões. Ou seria
a própria guerra que deformava o tempo, como que atraindo objetos
e fatos para dentro de fendas espaciais? Ele segurou uma rosa
branca de veludo e se recordou do perfume dos lilases no verão.
Elie fazia essas rosas para as mulheres no Complexo porque
não conseguia encontrar flores naturais, exceto as camomilas, que
floresciam no verão. Ela transformava o veludo em pétalas que
pareciam reais, aspergia sobre as flores perfume de rosa e as
oferecia com a mesma naturalidade com que oferecia casacos de
pele. De vez em quando, dava uma rosa para Lodenstein. Ela lhe
dera aquela quando ele a convenceu a voltar a dormir no andar de
cima — após brigarem por causa das crianças.
O baú estava repleto de objetos: carretéis usados de máquinas
de escrever, lampiões a gás, fotografias, frascos vazios do perfume
de Elie, um batedor de ovos torto, uma máquina de escrever, luvas
sem dedos. Ele pegou pedaços do cardador de lã e os colocou
cuidadosamente dentro do baú, ao lado dos óculos com uma
etiqueta branca marcada com für Martin Heidegger. Em seguida,
retirou dois mapas do baú. Um deles era uma cópia heliográfica
original do Complexo. O outro, uma duplicata do mapa — e seu
registro particular que mostrava como realmente era usado.
Lodenstein tinha batizado o antigo quarto de Elie como presente de
Fräulein Schacten para os escribas e desenhara um crânio com dois
ossos cruzados marcando o fim do Complexo no túnel. Na torre de
sentinela de Stumpf, ele rabiscara torre de sentinela e escrevera
sessões espíritas, invocação dos mortos. Ele mudara a inscrição
alojamento dos guardas para noctâmbulos e o quarto de Mueller
virara o canto dos mistérios. E marcara o banheiro onde as pessoas
tinham conferências como refúgio.
Agora, ele estava escrevendo esconderijo de Elie no antigo
quarto de Mueller e gaiola dos fiascos sobre a torre de sentinela de
Stumpf. Pensou em escrever traidor na casa dos Solomon. Mas
Mikhail e Talia já haviam sofrido demais com maledicências antes de
chegarem ao Complexo. Em vez de registrar isso, ele atravessou o
quarto para pegar outra rosa. E a guardou no baú.
Durante as vinte e sete horas desde que Stumpf saíra, uma
tristeza tomara conta do Complexo: Mikhail estava com uma enorme
ferida na testa e recolheu-se à casa de número 917, assim como
Talia, que lhe disse: Este lugar é tão ruim quanto Lodz. Lars, que se
culpava por não ter protegido melhor Mikhail, ficou de sentinela à
porta. Elie quase não saiu do antigo quarto de Mueller. Os escribas
se serviam silenciosamente na cozinha.
Apenas Dimitri estava feliz, porque Elie agora ficava lá embaixo
o tempo todo. Desde que ele chegara ao Complexo, ela levava o
menino para todo lugar. E, se não o fizesse, era Dimitri quem se
punha a segui-la feito uma sombra, surgindo ao lado de sua mesa
com tanta frequência que os escribas o apelidaram de pequeno
camundongo. Ele adorava observar os selos nas cartas, assim
como as imagens de animais que Elie encontrava nos livros. E, bem
cedo naquela manhã, Elie o levara até o poço de água e eles viram
uma gata malhada e magra sair da floresta. A gata o deixou
fascinado. Ele a chamou de Mufti.
Quanto a Lodenstein, até uma partida de Paciência o aborrecia.
Jogos que antes lhe divertiam, como Castelo Sitiado e Quarenta
Ladrões, agora o irritavam — por conta dos esquemas de Elie, dos
conluios de Mikhail e da carta a caminho das mãos de Heidegger.
Ele revirara a cama e fora obrigado a jogar sentado no chão. As
cartas iam desaparecendo sob as meias.
Ele pensou em tentar outro jogo, depois notou dois pedaços de
papel que havia achado no salão principal. Num deles estava
escrito: Quem diabo se dá o trabalho de escrever para nós? E no
outro: Se Lodenstein pensa que tudo isso é bobagem, por que
continua imaginando Goebbels?
Ambos pareciam ser de autoria de La Toya. Ele os dobrou e viu
pálidas faixas de luz atravessando as janelas oblongas. Já
amanhecia. Só dormira três horas.
De repente, enquanto pegava outra rosa, ouviu um motor rugir
na clareira e o som de botas quebrando o gelo. A porta da cabana
abriu-se e Lodenstein sentiu o vento frio em seu rosto. Em seguida,
viu Stumpf passar na ponta dos pés por seu quarto, segurando as
botas. Lodenstein seguiu-o e experimentou um momento de
pungente repulsa, o reconhecimento visceral que surge quando
alguém familiar vai embora e depois retorna: tudo que havia feito
para esquecer Stumpf foi por água abaixo.
Stumpf não sabia que estava sendo visto. Lodenstein sentiu um
prazer perverso ao colocar as mãos em volta de seu pescoço gordo.
— Seu maldito imbecil — xingou. — Eu devia fuzilá-lo na frente
de todos.
— Por favor — pediu Stumpf com a voz ofegante. — Eu não fiz
nada.
— Então por que encontramos Mikhail desmaiado? E por que os
óculos sumiram?
— Aconteceu algo terrível... — disse Stumpf. — Terrível...
— Em nome de Deus, homem, do que está falando?
— Por favor, não me fuzile.
— O que aconteceu?
— Não quero contar para você.
Os olhos de Stumpf eram duas manchas apavoradas no meio de
seu rosto enorme. Lodenstein sentiu um nó no estômago.
— O que você fez? — perguntou.
— É melhor você não saber, acredite em mim.
— Você precisa me contar.
— Não posso.
— Preciso saber.
Stumpf olhou para baixo. Lágrimas escorreram pelas fissuras de
seu rosto.
— Prometi levar Heidegger até Auschwitz — disse finalmente.
— O quê?
— Tenho que levar Heidegger até Auschwitz.
Lodenstein empurrou Stumpf contra a parede com tanta força
que o pedaço de pão que Elfriede lhe dera caiu de seu bolso.
Lodenstein apanhou o pão e o esfregou no rosto de Stumpf. Então
deu um soco em seu queixo, em seu pescoço e em seus pesados
ombros, e jogou a cabeça dele contra a parede, como se a surra
pudesse expurgar tudo que Stumpf tinha feito.
— Não posso acreditar que você existe. Você estraga tudo em
que mete a mão — disse ele.
Stumpf começou a se lamuriar.
— Heidegger é agora uma conexão viva! — soluçou ele. — Uma
conexão viva com o Complexo!
— Não precisa explicar. Você já me disse o bastante.
Mas Stumpf contou tudo: que Elfriede Heidegger lhe fizera
descascar batatas. Que Martin Heidegger o fizera caminhar pela
Floresta Negra. Que as vigas de madeira poderiam ter caído em
cima dele. Que tivera que dormir atrás do fogão. Que levara os
óculos errados. Que a carta de Mikhail fora parar na sopa.
Ele falou sem parar, até Lodenstein apertar as mãos em torno de
seu pescoço com tanta força que seu queixo múltiplo se deslocou
para as bochechas.
— Quero que você me fale sobre Elie — ordenou ele.
— Eles não sabem nada sobre Elie.
Mas Lodenstein derrubou-o no chão e os dentes de Stumpf
cortaram os próprios lábios, que começaram a sangrar.
— Diga-me — gritou ele.
Stumpf limpou o sangue com a manga da camisa.
— Eles sabem sobre Elie — admitiu finalmente.
C
Querida Cipriana,

As pessoas estão roubando descaradamente umas às outras — não


apenas comida, mas sapatos e casacos. Ainda assim, todo dia eu
guardo um pouco de pão para você. Por favor, venha falar comigo.

Com amor,
Mirella
Lodenstein deu um soco na boca de Stumpf, onde já havia um
corte, fazendo verter ainda mais sangue. Em seguida, ele o
arremessou rampa abaixo pelo poço. Então, arrastou Stumpf e
bateu à porta do antigo aposento de Mueller.
— Deixe-me entrar — gritou para Elie. — Senão, você só tem a
perder.
Elie destrancou a porta e encobriu o rosto com o cabelo, para
que Lodenstein não percebesse que ela estivera chorando.
— Diga-me uma coisa — disse ele. — Quantas vidas você
arriscaria para salvar uma criança?
— Nenhuma — respondeu Elie.
— Mas você o fez. E agora Heidegger quer ir a Auschwitz.
— Eu não estou entendendo.
— Pergunte a Elfriede Heidegger. Ela disse que você é uma
prostitutazinha.
Elie recuou.
— Ela não me conhece.
— Conhece, sim. Quantas polonesas em Freiburg têm a receita
do bundkuchen?
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que Stumpf disse seu nome a ela.
Elie tirou sua echarpe e a torceu como se fosse um pescoço.
— Como ele pôde fazer isso? — gritou ela.
— Porque ele é o Stumpf — disse Lodenstein. — E você tramou
para que ele fizesse o que sabe fazer tão bem.
— Eu devia ter trocado meu primeiro nome também.
— Você está louca? O problema não é o nome. Você agiu pelas
minhas costas duas vezes. E agora estamos todos em apuros.
— Pare.
— Por que eu deveria? Sempre paro. Sempre paro de perguntar
o que você faz com aquela gente do outro lado da fronteira ou por
que a SS é tão gentil com você.
— Não quero ouvir mais nada.
— Você precisa ouvir.
Elie saiu e sentou-se num dos bancos de ferro fundido.
Lodenstein a seguiu.
— Você está sempre flertando — acusou ele. — Com
falsificadores, com padeiros, com qualquer um que possa ajudar.
Elie começou a chorar.
— Eu disse a você que veria Heidegger pessoalmente —
explicou ela.
— E depois, o que ia fazer?
— Dar um jeito — respondeu ela, ouvindo sua voz reverberar em
todo o Complexo. Soou vazia, como a voz de um defunto.
— Você quer dizer dar um jeito em Martin Heidegger, que ama o
Reich, mas que o irritou tanto que agora a Gestapo está de olho
nele? Dar um jeito em Elfriede Heidegger, que não gosta nem um
pouco de você? Você quer levá-la até Auschwitz e resgatar Asher
Englehardt como se estivesse indo buscar alguém na estação de
trem?
— Você é impiedoso — protestou Elie.
— Você também — replicou Lodenstein.
Ainda não eram nem seis da manhã. Os escribas estavam
acordando e escutavam, preocupados. Mikhail Solomon abriu sua
porta.
— É melhor vocês entrarem — orientou ele. — E, pelo amor de
Deus, falem mais baixo. Vão acordar Dimitri.

C
Elie e Lodenstein sentaram-se afastados nas cadeiras de veludo.
Mikhail tocou a ferida em sua testa. Talia olhava para as próprias
mãos.
— Por acaso algum de vocês avaliou o risco disso tudo? —
perguntou Lodenstein, baixinho, notando Dimitri adormecido no
sofá.
— Nós fizemos isso para salvar Maria — disse Mikhail.
— Você sabia que eu a resgataria, se me pedisse — argumentou
Lodenstein.
— Isso não importa — interveio Elie. — Eu teria entregado a
Heidegger os óculos certos.
— Quem se importa com os óculos certos? — exclamou
Lodenstein. — Não cabia a você se meter nisso. Além do mais, Elie,
se você queria dar um jeito em tudo, por que não escreveu
pessoalmente a porra da carta?
— Não conheço suficientemente filosofia.
— Ah, nossa linguista de Freiburg. Por que se dar o trabalho de
escrever uma carta, para começar? Por que não simplesmente falar
com Elfriede Heidegger?
— Porque isso envolvia salvar Maria — explicou Elie.
— Isso é ridículo — protestou Lodenstein. — Stumpf é um idiota.
E agora Heidegger sabe sobre Elie.
— Meu Deus — exclamou Talia.
— O que mais você esperava? — perguntou Lodenstein. — E
ainda tem mais: Stumpf prometeu a Heidegger que ele poderia
visitar Asher em Auschwitz.
— Isso não é possível — disse Mikhail.
— Mas ele precisa fazer isso — prosseguiu Lodenstein. —
Porque, se não fizer, Elfriede Heidegger dirá a Goebbels que está a
par do Complexo. Vocês já pensaram que quase sessenta vidas
estão em risco? Ou em quem vai resolver isso?
Não houve resposta. Mikhail e Talia pegaram seus cigarros.
Enquanto fumavam, a lua crescente efetuava seu último
movimento de descida mecânica — as engrenagens estalando e
rangendo, como um gigante em agonia. Lodenstein caminhou até a
janela e se perguntou se todos estavam acordando para uma vida
que não tinham escolhido ou se ele era o único. Seria isso um
castigo por ter entrado no Partido sem pensar seriamente no
assunto? Ou por não ter ajudado Elie com os óculos de Heidegger?
Não importava. Ele chutou um sofá e saiu. Elie foi atrás dele.
— Para onde você está indo? — perguntou ela.
— Vou falar com Goebbels — respondeu ele.
— Você não pode. É perigoso demais.
— Eu preciso, Elie. Eles sabem seu nome.
— Mas Goebbels é louco.
— Você deveria ter pensado nisso antes — concluiu Lodenstein.
Ele se dirigiu ao poço rápido demais para que Elie pudesse
alcançá-lo, trancou a porta do quarto deles e iniciou uma partida de
cartas. Alguns escribas estavam na clareira e ele não queria
encontrá-los usando o uniforme da SS que precisava vestir quando
ia a Berlim. Enquanto isso, não podia sair do quarto e se sentiu um
prisioneiro, como se o tempo estivesse congelado e ele também.
Jogou mais uma partida de Paciência e sentiu um prazer perverso
ao ouvir Elie tentar abrir a porta.
— Já escureceu — disse ela. — Você não pode dirigir à noite.
— Claro que eu posso.
— Gerhardt, por favor. Desculpe-me por ter começado isso.
— Agora é preciso salvar você. E todos no Complexo.
Ele afastou um pouco a bagunça e continuou jogando. Estava
tudo amontoado no chão, mas ele considerou a mobília
desarrumada como símbolo da sua raiva e sentiu que colocar tudo
no lugar seria uma concessão — especialmente se Elie visse que
ele tinha arrumado o quarto.
Perto da meia-noite, ele colocou cueca, meias, sua arma e o
baralho dentro de um saco de lona. Verificou se a arma estava
carregada, deu um nó na gravata da SS, pensou em levar a
bússola, mas achou melhor não. Em seguida, vasculhou o baú em
busca da rosa que Elie lhe dera quando ele lhe pedira para voltar a
dormir no andar de cima. Ele a encontrou ao lado do cardador de lã
quebrado — macia, perfumada, como uma flor num jardim no verão.
Segurou-a por um instante e então a enfiou no fundo do baú. Mas,
em poucos segundos, começou a vasculhar tudo outra vez. A rosa
ainda estava em perfeito estado quando a achou, entre fotografias,
relógios e lampiões. Ele a pegou e a guardou no bolso.
Дорогое Дасюа,

мы не имеем никакую мысль наших жизней, больше. Мы как раз


знаем мы не может препятствовать нашим детям, нашим
друзьям, нашему супругу, нашим супругам, вспоминает нас как
идущ вниз.

Влюбленность
Николай

C
Querida Dasha,

Não sabemos mais de nossas vidas. Não podemos deixar nossos


filhos, nossos amigos, nossos maridos, nossas esposas lembrarem-
se de nós sendo dizimados.

Com amor,
Nicolai
Gerhardt Lodenstein saiu do trailer alguns minutos depois de
Mikhail e Lars voltarem do posto de observação. A neve estava
recente e suas botas deixavam marcas no caminho — pegadas que,
ele esperava, chamariam a atenção de Elie pela manhã. Uma
semana antes, ela havia usado seu jipe para comprar cigarros e
deixara um lenço vermelho no assento. Ele o jogou ao lado de sua
bolsa de lona. Em seguida, saiu dirigindo pela longa e estreita
estrada.
Havia montes de neve fresca acumulada e, de tempos em
tempos, ele precisava descer do carro e desobstruir o caminho.
Manuseava a pá com raiva, retirando grandes quantidades de neve
e lançando-as na direção da floresta. Enquanto fazia isso, lembrava-
se de Elie parodiando a saudação nazista quando ele começou a
atirar as gavetas no chão pela segunda vez. Ela havia chutado as
roupas pelo chão e lhe dissera que ele era um nazista de merda. Ele
revirara novamente o colchão e lhe dissera que ela estava com
sorte, porque só mesmo um nazista de merda para arrumar aquela
bagunça. Essas imagens explodiam em sua cabeça junto com o
arrependimento: devia ter deixado Elie entrar quando ela ficou
gritando do lado de fora do quarto. Deveriam ter feito amor. E se ele
não voltasse? E se jamais tornasse a vê-la?
Ele continuou dirigindo e desobstruindo a estrada com a pá, até
chegar ao entroncamento que conduzia à estrada principal.
Milagrosamente, ela estava sem neve, mesmo nesse estágio da
guerra — uma seta longa e escura indicava a direção de Goebbels e
dos escritórios do Reich. Ele saiu do jipe e olhou para o céu. Órion e
seus cães de caça brilhavam bem ao sul, a Ursa Maior tinha ramos
de pinheiros aninhados às suas patas e Lepus, a lebre, descrevia
um arco sobre a floresta. Tudo estava em ordem.
Por um momento, ele pensou em desaparecer — assim como
outros oficiais que haviam sumido sem deixar vestígios: o almirante
que ajudara Wilhelm Canaris a salvar os judeus desaparecidos na
Dinamarca. O oficial da SS que deu seu uniforme para os
noctâmbulos e se escondera num estábulo perto de Dresden. Um
antigo assistente de Himmler estava em algum lugar de Sussex, na
Inglaterra. Esses oficiais estavam espalhados como estrelas. A SS
os procurava tenazmente. A Resistência os protegia em troca de
uniformes, documentos de identidade e informações. Eles
passavam os dias sem ver ninguém, temendo ser descobertos —
como qualquer outro fugitivo. Imagens de uma vida assim
espocavam diante dos olhos de Lodenstein como granadas. Mas ele
sabia que, se desaparecesse, não poderia salvar Elie. Ou o
Complexo.
Voltando para o jipe, seguiu lentamente pela estrada
desobstruída e ampla. Antes de amanhecer, parou numa estalagem
onde costumava beber — havia mais de dez anos, quando estudava
direito em Berlim. O estalajadeiro não o reconheceu e se desculpou
pela chicória, no lugar do café. Em seguida, iniciou uma alegre
conversa sobre a guerra enquanto a esposa sorria atrás dele.
Lodenstein saiu sem se dar o trabalho de se despedir.
Quando finalmente chegou a Berlim, estava nevando. As ruas
pareciam bolos cobertos de açúcar, do tipo que ninguém mais
preparava desde o início da guerra, nem mesmo — ele pensou com
amargura — Elfriede Heidegger e seu bundkuchen. Ele se lembrou
de um dia ter amado aquela cidade e sua exuberância exposta em
ruas largas e arejadas. Lembrava-se das noitadas nas cervejarias,
onde as pessoas falavam sobre livros que seguramente haviam sido
queimados. Mas, no momento, a Gestapo estava por toda parte.
Ainda assim, as casas estavam intactas, e os pomares de
inverno pareciam promissores — não era como a cidade
bombardeada de Hamburgo, onde outro oficial da SS se escondia,
ou a cidade onde Elie havia resgatado as crianças. A única
evidência de guerra era a fila que se estendia até a esquina diante
de um açougue. Um homem com o rosto vermelho usando um
avental branco abriu a porta e gritou:
— Não abrimos antes das dez. E hoje não temos salsichas!
A multidão se dispersou e Lodenstein ignorou a saudação do
açougueiro ao notar a suástica no jipe. Queria sair da cidade o mais
rápido possível, mas, ainda assim, dirigiu devagar. Tudo parecia-lhe
acabado por ali — até o Portão de Brandemburgo. Outrora, ele
apreciara suas colunas dóricas — uma parte de Atenas presente no
norte. Agora, só havia estandartes nazistas pendurados sobre o
caminho que conduzia aos escritórios do Reich.
Lodenstein passou pelo Hotel Kaiserhof — uma enorme caixa de
música feita de pedras, enfeitada com estandartes e bandeiras.
Antes de chegar ao poder, Hitler havia ocupado um andar inteiro, e
todas as pessoas importantes — diplomatas, oficiais, amantes e
esposas — ainda estavam lá. Na frente do prédio, uma multidão de
oficiais da SS e de civis se distraía diante da fachada. Lodenstein
reconheceu um diplomata.
Como se tivesse vontade própria, o jipe seguiu pela frente do
Kaiserhof até chegar à sede do Reich: um monólito cinzento que se
estendia por dois quarteirões e fazia Lodenstein pensar num stalag,
o campo de prisioneiros. Ele teria preferido entrar por uma pequena
porta lateral para encontrar Goebbels, mas era obrigado a dirigir até
o pátio principal.
O pátio era a entrada formal para os oficiais e fora projetado para
expressar imensidão. Assim que Lodenstein entrou, sua visão se
voltou para o prédio principal. Era gigantesco, com uma escada
íngreme estendida entre duas estátuas idênticas de homens
musculosos em mármore preto. Um carregava uma tocha,
representando o Partido, o outro, uma espada, representando o
Exército. Dois outros edifícios cercavam este prédio. Todos os três
tinham colunas gregas.
Enquanto Lodenstein aguardava que alguém viesse estacionar
seu jipe, observou os oficiais subirem e descerem os degraus.
Pareciam presos com parafusos e a ponto de desmoronar, caso
algo se soltasse. Frequentemente, suas expressões eram de
espanto por terem acabado de sair, ou por estarem prestes a entrar
no Saguão do Grande Mosaico — um corredor cor de carmim de
uns quarenta e cinco metros, com uma claraboia de contorno
dourado e mosaicos de batalhas gregas. Lodenstein nunca gostou
daquele saguão. Tinha sempre a impressão de estar se afogando
no vermelho.
O oficial no balcão não o reconheceu e lhe pediu para esvaziar
os bolsos. Ele ficou contente por ter deixado a bolsa de lona no jipe,
e triste por ter trazido a rosa de Elie. Depois de ser conduzido por
outros corredores em tom carmim, Lodenstein foi deixado na
antecâmara de Goebbels.
Devia ter sido ali que Elfriede Heidegger aguardara para se
encontrar com Goebbels. Lodenstein imaginou que as cadeiras
fartamente acolchoadas e as mesas de madeira polida teriam lhe
agradado. Havia uma enorme fotografia de Goebbels e Hitler
apertando as mãos e, numa outra, Hitler beijava uma criança. Ele
folheou alguns panfletos de propaganda — todos exaltando a vitória
da Alemanha.
Após quase uma hora, ouviu o som de botas no mármore. O
major-general Mueller surgiu à sua frente com um ar venturoso.
— Que prazer vê-lo aqui nestes meses de inverno — disse ele,
apertando sua mão.
— Pensei que você tivesse ido para a frente de batalha —
comentou Lodenstein.
— De modo algum. Havia projetos mais importantes. E Goebbels
está sempre na praça do mercado. Posso convidá-lo para almoçar
comigo até que ele volte?
Lodenstein não queria passar sequer um minuto com Mueller,
mas percebeu que não tinha escolha. Percorreram outros
corredores em tom carmim até chegarem à sala de jantar, onde as
mesas estavam arrumadas com toalhas brancas e taças de cristal.
— Há notícias inacreditáveis sobre a guerra — disse Mueller,
após pedirem ensopado de coelho. — Na semana passada, todos
celebraram em Lustgarten. Que banquete! Mesmo no gelo!
Ele ajeitou seu bigode e abaixou a voz:
— Sorte sua ter sido transferido para a SS, porque Wilhelm
Canaris está prestes a ser condenado à prisão domiciliar. Talvez até
o mandem para Auschwitz, e assim poderá ver de perto quem ele
está tentando salvar, antes de ser enforcado.
— Tenho certeza de que ele é um agente duplo — disse
Lodenstein.
— É uma pena que você tenha servido na Abwehr.
— Graças a Deus só fiquei lá por poucos anos.
Eles terminaram o café — café de verdade — e desceram as
escadas em espiral até uma sala com um sofá verde-musgo e
paredes brancas.
— É mais sossegado aqui — disse Mueller. — Melhor do que
toda aquela agitação. E aqui está o último panfleto de Goebbels.
Quando ele voltar eu aviso.
Mueller fechou a porta e Lodenstein sentiu uma calma distinta,
como se a sala estivesse envolta em ataduras. Tocando nas
paredes, percebeu que eram de tijolo. A porta era fria, de metal, e
estava trancada. Ele abriu o panfleto, e a relação de tudo que ele
deixara na portaria caiu no chão. Aquilo lhe deu a certeza de que se
encontrava numa prisão, e que Goebbels ordenara sua detenção no
momento em que ele chegou. O Reich nunca encarceraria um oficial
sem lhe dar uma lista com seus pertences.
C
Querida Leonie,

Não tenho papel, então estou escrevendo esta carta na parede.


Tenho que ser rápido.

Amo você,
Niklaus
Lodenstein aguçou a audição e ouviu o som de chaves
chocalhando. Isso deveria significar que havia outras pessoas
naquela prisão subterrânea. Já ouvira falar de casos semelhantes —
oficiais caídos em desgraça, atirados em celas e esquecidos até se
tornarem corpos tão desprovidos de comida e água que nenhuma
bactéria era capaz de fazê-los apodrecer. Os cadáveres ficavam
totalmente limpos. Eram dobrados sobre si mesmos, como papel, e
jogados fora.
Agora, ele via que as celas eram vagamente disfarçadas como
salas de espera. O sofá era um banco estreito. As paredes de tijolo
eram pintadas de branco. Havia uma luz no teto e um chão de
cimento — imaculado, exceto por uma mancha escura, que ele
preferia não olhar de muito perto. De vez em quando, o chocalhar
das chaves aumentava. Às vezes, soavam como punhais. Outras,
soavam como os sinos de um trenó. De tempos em tempos, uma
brecha comprida da porta se abria, e ele via um par de olhos
vigiando a sala, mas logo a fenda se fechava rapidamente, como
uma guilhotina: era alguém verificando se ele não havia dado cabo
de si mesmo.
Lodenstein fez cinquenta flexões, evitando a mancha no chão.
Depois, se deitou no banco e jogou três partidas mentais de
Paciência. Leu a lista de tudo que havia entregado e criou teorias
para explicar por que não haviam confiscado seu cinto e os
cadarços das botas. Ele releu a lista várias vezes, até as letras
começarem a flutuar diante de seus olhos.
Um mapa, um baralho, três cigarros, uma caixa de fósforos, um
pedaço de veludo branco.
Sua boca estava seca e a sala estava fria. Ele começou a
tremer. Voltou-lhe à lembrança o modo como tinha sido instruído
sobre a tortura, durante o treinamento em Abwehr: formavam um
grupo refinado, encarregado de criar códigos secretos. Ele se
perguntou o que seria capaz de suportar. Se cederia rapidamente.
Se doeria muito. Se usariam Elie como refém.
Suas mãos estavam cerradas. Ele forçou-se a abri-las. Mas a
contração retornou quando se deu conta de que já fazia algum
tempo que não ouvia o barulho das chaves. E se fosse a única
pessoa ali? Nesse caso, ele teria sido selecionado para inquisição,
tortura e enforcamento. Ele jogou outra partida de Paciência
mentalmente, mas não conseguiu se concentrar nos diferentes tipos
de jogos. O Desfile Real se misturava com Citadela. Citadela se
fundia em Para Cima Para Baixo. Muro de Pedra virava Pulga. As
cartas se espalhavam, os tijolos brancos ondulavam e as suas
rachaduras ganhavam uma profundidade infinita. Dentro das fendas,
como pedras preciosas incrustadas, Lodenstein passou a enxergar
letras do alfabeto. Ele não as lia, mas observava a sequência
oscilante, que contava a história de um homem com um baralho,
três cigarros, uma caixa de fósforos e uma rosa de veludo. Este
homem que saiu das montanhas nevadas em direção a Berlim,
dirigiu até um prédio enorme e cinzento e acabou jogado em uma
cela.
A certa altura, a lista se destacou do papel e as letras voaram
para dentro dos tijolos. A sala ganhou um brilho delirante. E
Lodenstein levitou até o teto. Podia ver então toda a sala —
inclusive um homem igual a ele, deitado no banco verde-musgo.
O homem que via guardava um segredo: a correspondência com
os mortos não fora uma ideia da Sociedade Thule, mas de um
vidente. Tratava-se do extraordinário Erik Hanussen, que também
era telepata e hipnotizador. Ele havia previsto a ascensão de Hitler
ao poder e o ensinou a conquistar as multidões com um simples
gesto de mão. Mas ele também dissimulara o fato de ser judeu, de
ter emprestado dinheiro a um grande número de oficiais e de estar a
par de seus casos. E quando previu o incêndio no Reichstag alguns
dias antes de ele acontecer, ficou óbvio que também sabia que o
Reich buscava um pretexto para erguer justamente o prédio onde
Lodenstein estava preso. No inverno de 1933, Hanussen foi fuzilado
e seu corpo, largado num campo.
Devido a uma série de acidentes (ou teria sido uma premonição
do pai de Lodenstein, que ainda servia em Abwehr?), Lodenstein,
que à época estudava direito em Berlim, participou da audiência em
que Erik Hanussen revelou qual seria a chave para o Reich dominar
o mundo. Foi no final de 1932, meses antes de Hanussen ser
fuzilado. O local, o Palácio do Ocultismo de Hanussen, todo preto e
dourado, em Berlim, era um macabro cabaré frequentado por
membros do Partido Nazista todas as noites. O cabaré tinha um
cantor romântico, um grupo de dançarinos-cantores e um
fisiculturista que erguia pedras — além de Hanussen, que aparecia
ao final de cada espetáculo em um smoking. Ele convidava
mulheres com casacos de pele e diamantes ao palco, deixava-as
em transe, marcava suas mãos com moedas ardentes e triunfava
quando elas não sentiam dor. Certa vez, orientou um membro do
Partido para que mandasse uma brigada de incêndio à sua casa,
porque havia acontecido uma falha elétrica no sistema. Os
caminhões dos bombeiros chegaram e evitaram que a casa fosse
consumida pelo fogo.
Além do cabaré, o Palácio tinha um salão de mármore preto e
dourado para sessões espíritas. Nesta sala a reunião sobre o
segredo-chave de Hanussen foi realizada.
Lodenstein estava sentado no fundo, cercado pela fumaça e
pelos membros do Partido Nazista, e olhou para o palco onde
Hanussen realizava suas sessões. Havia uma plataforma circular de
mármore com uma mesa redonda também de mármore na qual
triângulos pretos apontavam para um centro vazio. Era neste ponto
que Hanussen concentrava sua mente a fim de poder viajar para
outros reinos, invisíveis aos demais. Suas viagens haviam sido
úteis: um juiz certa vez o absolvera num caso de fraude porque ele
soubera dizer onde um criminoso estava escondido.
Mais membros do partido Nazista chegaram à sala. Quando
Himmler e Goebbels entraram, todos se puseram de pé. Em
seguida, as luzes foram apagadas e Hanussen apareceu em seu
smoking. Houve um momento de silêncio quando ele olhou para a
audiência com olhos que pareciam saber tudo que as pessoas
mantinham em seus bolsos, assim como em suas almas. Depois,
ele mostrou a ilustração de um enorme globo cheio de rachaduras.
Dessas rachaduras esvaíam cartas e envelopes.
— Repugnante — dissera ele. — Mas verdadeiro. Hanussen
explicou então que as cartas representavam todas as
correspondências não respondidas no mundo, e que os mortos que
as haviam escrito ainda esperavam pela resposta. Toda carta não
respondida, disse ele, era como um tijolo numa construção sem
argamassa. Elas deixavam suturas perigosas e criavam lacunas
arriscadas na história. Para garantir que a argamassa estivesse
firme, todas as cartas escritas pelos mortos deviam ser respondidas,
ainda que se tratasse simplesmente de uma pergunta feita por um
alfaiate.
E por que a situação era urgente? Porque os mortos ficariam
transtornados se não obtivessem notícias. Na verdade, eles já
estavam agitados em suas obscuras moradas, prontos para
penetrar aquela sala, exigindo respostas para suas cartas. O próprio
Hanussen tivera de dispensar vários deles. Portanto, se o Reich
almejava o poder absoluto, deveria responder a todas as cartas
possíveis, a fim de preencher aquelas lacunas. Assim, a Alemanha
vedaria o mundo e conquistaria o domínio global.
Enquanto Hanussen falava, Lodenstein experimentou a distinta
impressão de alheamento do mundo. O oficial apático à sua
esquerda lhe pediu um pedaço de papel e desenhou uma réplica do
globo de Hanussen — como se ele pudesse preencher cada fissura
com cartas. Outros pegaram folhas de papel e escreveram nomes
de mortos que possivelmente estavam aguardando resposta. O
anfiteatro foi preenchido pelo som das canetas riscando e pelo
farfalhar de papéis. As pernas de Lodenstein começaram a se
contrair — um indício seguro de que ele queria ir embora. Mas se
deu conta de que alguém poderia denunciá-lo; então apanhou uma
folha de papel e olhou para ela como se estivesse tentando se
lembrar dos mortos em sua obscura morada. Quando Hanussen
acendeu a luz, a sala estava cheia de perguntas.
— Se os mortos não têm um endereço, como poderemos lhes
enviar as cartas?
— As cartas não precisam ser enviadas — respondeu Hanussen.
— Basta que sejam guardadas em caixas. Os mortos saberão
quando elas forem respondidas.
— Onde podemos encontrar essas cartas?
— Em todo lugar. Em sótãos, velhos navios, escritórios, museus.
— Mas é impossível achar todas elas.
— Um astrólogo lhes dirá quando tiverem achado o suficiente.
— Podemos confiscar essas cartas?
— Quando for o momento oportuno.
A última pergunta veio de um homem baixo e gordo na parte da
frente do anfiteatro, sentado entre Himmler e Goebbels. Ele
segurava dois copos de água e, de tempos em tempos, um ou outro
estalava os dedos e o homem gordo entregava-lhe um copo. Num
dado momento, ele se levantou e Goebbels puxou-o pela manga do
casaco — mas era tarde demais. Hanussen já o percebera.
— Podemos responder a todas as cartas em alemão? —
perguntou ele.
— Somente se elas tiverem sido escritas em alemão —
respondeu Hanussen. — Os mortos podem ler, mas não traduzir.
Nunca se esqueça disso. O lema deve ser Responder da mesma
forma. Fielmente.
Ouviram-se fartos aplausos. Todos os membros do Reich,
incluindo Himmler, Goebbels e o homem baixo e atarracado se
dirigiram até a plataforma para cumprimentar Hanussen. Lodenstein
ficara observando, fascinado pelas dobras no rosto do homem
gordo. Mais tarde, quando encontrou Stumpf, ele o reconheceu.
Marku,

Listy są cały czas ponoszone i więźniom udało się dostać pióra do


pisania za przekup od strażników. Nawet w tym niewymownym
miejscu ludzie piszą do siebie nieustannie. Z bożą pomocą wkró tce
się zobaczymy.

Kochający zawsze,
Urajsz

C
Querida Marek,

As cartas estão sendo enviadas o tempo todo, e os prisioneiros têm


subornado os guardas para conseguir canetas. Mesmo neste local
inexprimível, as pessoas se escrevem constantemente. Com a
vontade de Deus, tornarei a vê-la em breve.

Com o amor de sempre,


Urajsz
Antes de Lodenstein chegar ao Complexo, o oficial da SS que
evaporou na Dinamarca contara-lhe que a ideia de responder às
cartas dos mortos havia sido discutida durante dias, após a reunião
no Palácio do Ocultismo. Mas quando Hanussen foi fuzilado,
qualquer pessoa que mencionasse seu nome ou fizesse referência a
suas ideias também era executado. Foi por pura sorte que ninguém
fez a conexão entre a visão de Hanussen e a obsessão da
Sociedade Thule em responder às cartas escritas pelos mortos.
Talvez Hitler tivesse esquecido. Mas Lodenstein duvidava de que
Goebbels tivesse esquecido: Goebbels sempre se lembrava de
tudo. E Goebbels havia sancionado o cargo de Stumpf, sabendo
que Stumpf estava muito mais interessado em responder aos
mortos do que em manter um registro do projeto. A nomeação de
Stumpf provavelmente fora uma concessão de Goebbels à
Sociedade Thule, apesar de seu próprio desdém pelo ocultismo. E
ele autorizara o uso do lema de Hanussen: Responder da mesma
forma.
Agora, o homem sobre o banco verde-musgo resgatava todos os
detalhes do discurso de Hanussen no Palácio do Ocultismo, com
seus tons pretos e dourados. Ele relembrava a imagem das cartas
como pedras preciosas entre os tijolos, e agora conseguia lê-las.
Após ter lido tudo, as paredes pararam de ondular, e Lodenstein
desceu do teto e penetrou no homem que era igual a ele. Colocando
as mãos no bolso, ele se deu conta de que as letras do alfabeto não
estavam na parede, mas num pedaço de papel. Levantou-se e
apalpou as pernas e os braços, no apertado claustro daquela cela. E
quando o trinco da porta se abriu novamente, ele limpou a aridez de
sua garganta e berrou, com a voz rouca, o nome HANUSSEN! tão
alto que o vulto recuou e as chaves caíram no chão.
— HANUSSEN! — gritou ele outra vez. — Diga a Joseph
Goebbels que Lodenstein se lembra de Hanussen.
O som das chaves foi ficando inaudível e Lodenstein
permaneceu sozinho. Perguntou-se se seria fuzilado por mencionar
o nome de Hanussen, ou queimado por conta da reunião no Palácio
do Ocultismo. O som das chaves voltou, e suas pernas tremeram.
Mas o oficial apontou para a escada em espiral que conduzia ao
Saguão do Grande Mosaico e, mais uma vez, ele sentiu-se
devorado pelo mármore cor de carmim. Do cabaré dos oficiais
escapava o som de um acordeão. Já devia ser noite.
O oficial o levou de volta à antecâmara e abriu uma porta
enorme. Goebbels estava sentado atrás de sua mesa, em cima de
alguns livros, para parecer maior. Estava exatamente como
Lodenstein se lembrava dele — um rosto fino e sombrio, as
pálpebras pesadas, olheiras que Elie certa vez definira como
bizarras, quase como olhos românticos. Havia panfletos cobrindo
sua mesa, assim como dois exemplares de Mein Kampf, uma lata
de biscoitos, uma garrafa de vinho, outras de água e algumas taças
esguias.
Goebbels dispensou qualquer menção a Hanussen e ouviu
Lodenstein falar sobre a visita que Stumpf fizera a Heidegger.
Quando ele terminou, Goebbels especulou se devia matar
Heidegger, assim como Stumpf e todos os escribas, considerando
que ninguém realmente dava a mínima aos registros relacionados a
pessoas mortas. Mas... e se, continuou pensando, Heidegger fosse
desculpado depois da guerra e ninguém conseguisse encontrá-lo?
Então seu assassinato poderia ser descoberto, e o Complexo dos
Escribas poderia vir a ser revelado.
Enquanto falava, ele bebia água numa das taças de pé alto.
Após três taças, acendeu um cigarro.
— Eu devia mandar enforcar Stumpf — disse.
Quando for o momento conveniente, pensou Lodenstein.
— Heidegger também — acrescentou Goebbels. — Não entendo
por que aquela mulher se incomoda com ele.
Lodenstein supôs que se tratasse de Elfriede Heidegger, mas
não perguntou. Ele fechou suas mãos, que pareciam de madeira
ressecada, e aguardou, enquanto Goebbels olhava para a
esquerda, para a direita, para um afresco de Hércules no teto e para
a própria mesa. Ele juntou uns papéis e pegou uma fotografia da
esposa com os cinco filhos — uma família perfeita e uma esposa
perfeita. Depois de beber mais água, empurrou uma taça na direção
de Lodenstein, que se precipitou sobre ela. A água chegou a
machucar sua garganta quando a engoliu.
Goebbels o observou beber com tanta satisfação. Depois disse:
— Outras pessoas já visitaram Auschwitz antes. E Heidegger
não dirá nada por causa de sua esposa. Ele não passa de um
matuto ridículo, e tenho certeza de que ela sabe disso.
Lodenstein olhou para a taça.
— Não importa — prosseguiu Goebbels, que certa vez abraçara
a Sra. Heidegger numa reunião de esposas e ficara satisfeito em
reencontrá-la, quando ela foi até seu escritório.
Inclinando-se para trás na cadeira, ele olhou para Lodenstein e
depois desviou o olhar. Em seguida, apanhou o telefone, ligou para
Auschwitz e perguntou se o judeu chamado Asher Englehardt ainda
estava vivo. Dez minutos se passaram, enquanto alguém procurava
seu nome.
— Estas ordens são estritas — disse Goebbels ao telefone. —
Faça com que ele fabrique óculos para os oficiais e dê-lhe bastante
comida e um lugar para descansar durante o dia. O que eu quero
dizer? Quero dizer que ele é um fabricante de lentes, e a clínica dos
oficiais está uma bagunça. É melhor para eles ter óculos novos do
que catar um par que sirva no meio de milhares de óculos judeus. E
cuide de seu filho. Heil Hitler!
Depois de desligar, ele olhou de fato para Lodenstein pela
primeira vez.
— Podem levar Heidegger para Auschwitz — disse ele. — E
assumam as consequências. Mas você terá que esperar por aqui.
Não estou falando num quarto do Kaiserhof ou arrumando confusão
em Berlim. Depois, você irá até Auschwitz com Heidegger no
escuro, quero dizer, no meio da escuridão, numa noite sem lua.
Lodenstein salientou que todos os meses tinham somente uma
noite sem lua, e uma viagem até Auschwitz levava dois dias.
— Não me venha com minúcias — reagiu Goebbels. — E nem
mais uma palavra sobre Hanussen.
Em seguida, ele subiu na mesa e olhou de cima para Lodenstein.
Seus olhos se tornaram ranhuras, e, se suas pupilas pudessem
controlar o mundo, teriam esmagado tudo dentro da sala, inclusive
Lodenstein.
— Chantagista! — gritou ele. — Canalha! Pervertido! Imbecil!
Sua voz cresceu para enfatizar o argumento, criando um círculo
de dramaticidade no ar. Lodenstein deixou-o continuar. Não havia
escolha. Ele esperava também que, ao cuspir o veneno, Goebbels
nunca se vingasse, e o Complexo pudesse continuar como um
refúgio exótico e seguro em meio a uma guerra em derrocada.
Quando acabou, Goebbels desceu da mesa, sentou-se sobre
sua pilha de livros e apertou uma campainha.
— Este é o Oberst Lodenstein — apresentou ele, quando um
oficial entrou. — Dê-lhe a melhor comida, o melhor vinho e — ele
piscou o olho — a melhor mulher.
Lodenstein fez a saudação nazista e seguiu o oficial pelo
corredor carmim até o cabaré, surpreso que suas pernas ainda o
sustentassem. Uma mulher vestindo um corpete preto e justo estava
tocando acordeão, e um oficial cantava “Lorelei” olhando para seu
enorme busto. Lodenstein sentou-se perto da porta e comeu carne
de cervo com batatas. Em seguida, saiu do cabaré, foi para o quarto
e vomitou.
Logo depois, deitou-se numa cama — ampla, que lhe pareceu
estranha, bem maior do que aquela que dividia com Elie. Cochilou e
acordou quando ouviu um ruído do outro lado da porta. Por um
instante, temeu que Goebbels lhe tivesse mandado alguma mulher.
Mas, ao abrir a porta, encontrou um envelope com tudo que havia
deixado à portaria, incluindo a rosa branca, que ainda trazia o
perfume de Elie. Lodenstein dormiu com ela por quase duas
semanas. Então Heidegger chegou numa noite sem lua e eles
partiram de trem para Auschwitz.
C
Querida Gretchen,

Preciso vê-la.
Não tenha medo. Ninguém poderá descobrir. Os amigos nos
protegerão. Procuro por você nos portões. Procuro você entre as
pedras. Preciso falar com você, ver seu rosto, sentir seus braços,
beijá-la. Venha logo.

Com amor,
Paul
Asher Englehardt, um homem reservado de sagazes olhos azuis,
surpreendeu-se ao ser removido da tarefa de arrastar pedras sobre
a neve.
— Por aqui! — disse um guarda, agarrando-o pelo braço.
Ninguém parou de trabalhar, senão seria fuzilado, como
certamente estava prestes a acontecer com Asher. Ele pôs a pedra
no chão, pensando, ao sair da fila, que pelo menos não carregaria
tanto peso. Um Unteroffizier estava ao lado do guarda, e a presença
de um Unteroffizier em geral significava enforcamento — pior do que
uma bala veloz perto do muro vermelho da prisão. Os
enforcamentos aconteciam ao cair da tarde, quando os prisioneiros
eram reunidos para a lista de chamada. Daniel o veria morrendo.
O Unteroffizier conduziu Asher até seu Kübelwagen e saiu
dirigindo pela estrada sem pavimento. Ele parecia tão satisfeito que
Asher pensou que sua intenção era acalmá-lo, já que o pânico
dificultava a colocação da corda no pescoço. Seguiram até o campo
de concentração pela passagem lateral, evitando o portão principal,
onde todas as manhãs, quando partia para o trabalho, Asher via as
palavras Arbeit Macht Frei, o trabalho liberta. Em vez de ser levado
à prisão, ele foi conduzido a uma salinha no alojamento dos oficiais,
onde outro oficial lhe serviu uma sopa, espessas fatias de pão de
centeio e cerveja. Era a primeira mesa disposta com comida que
Asher via em quatro meses.
— Coma devagar — orientou o Unteroffizier. — Custa um pouco
a se acostumar, quando se fica tanto tempo sem comer.
Asher hesitou. Ocorreu-lhe que poderia estar participando de
uma das mórbidas experiências das quais ouvira falar — realizada
por Mengele, o médico que aguardava a chegada dos prisioneiros e
decidia quem iria viver ou morrer. Ele fazia experimentos, diziam os
prisioneiros, em pessoas doentes e sãs. E talvez esta, pensou
Asher, fosse sobre a capacidade de digestão dos esfaimados após
uma refeição completa. Haveria uma injeção para deixá-lo
desacordado e, depois, outra no coração: nada mau. Mas ele queria
morrer com o alimento do Reich em seu corpo?
O Unteroffizier puxou uma cadeira e ofereceu um cigarro a
Asher, que o aceitou sem hesitar. O Unteroffizier acendeu um
cigarro para cada um e disse:
— Cigarros. O que nos liga por aqui.
Asher riu, depois se perguntou se deveria tê-lo feito. As pessoas,
às vezes, morriam por rir na hora errada.
— Ouça — disse o Unteroffizier. — As coisas andam confusas
na clínica. Precisamos que você fabrique óculos.
Asher não perguntou a que tipo de confusão ele se referia, e o
oficial não explicou, porque houve um barulho provocado pelas
motocicletas de um batalhão, intensificado para abafar os berros
das pessoas recebendo gás. O oficial se ausentou da sala por mais
de dez minutos. Quando as motocicletas pararam, ele voltou.
— Ninguém está recebendo óculos corretos — informou ele. —
E é caótico selecioná-los no meio de tantos.
Asher entendeu que ele se referia às pilhas de óculos que
pertenciam às pessoas que morriam na câmara de gás.
— Assim sendo — concluiu o oficial —, precisamos realmente de
você.
Asher não acreditou. Mas, consciente de que acabara de haver
uma sessão de intoxicação, ele se encheu de uma convicção que às
vezes lhe sobrevinha quando alguma atrocidade acabava de ser
cometida: ele tinha sorte de estar vivo, era até mesmo especial. Isso
fez com que resolvesse comer enquanto ainda podia. A sopa estava
consistente, o pão de centeio, fresco. A cerveja tinha o sabor de um
maná. O Unteroffizier pareceu aliviado e disse que voltaria em cinco
minutos.
E é agora que vão agir, pensou Asher. Algumas seringas. Talvez
aplicadas pelo próprio Mengele.
Mas Mengele não apareceu. O Unteroffizier retornou trazendo
bons sapatos, meias quentes, um suéter grosso, uma touca de lã e
luvas. Então, eles seguiram para a clínica dos oficiais, passando
pelo viveiro dos coelhos angorás. Muitos campos de concentração
tinham coelhos criados pelos prisioneiros a fim de provar à Cruz
Vermelha que havia passatempos agradáveis nos campos de
concentração. O Unteroffizier tentou apressá-lo quando passaram
pelo alojamento de Mengele, mas ele teve tempo de ver dois
gêmeos presos imobilizados sobre macas.
C
Querida Petra,

Você se lembra de como nós quatro costumávamos rir no parque e


dizer que os gêmeos eram especiais? Pois é, estávamos certos!
Todos são gentis com Sylvia e comigo. E também serão gentis com
você e Miep.

Com amor,
Ania
A sala na clínica dos oficiais parecia a ótica de Asher em Freiburg
reduzida a um quarto de seu tamanho. Nessa versão em miniatura
de sua antiga oficina, ele viu uma cadeira de oculista, uma tabela de
Snellen iluminada com letras góticas e material para a fabricação de
lentes. Um homem com uma faixa verde no braço estava limpando
os instrumentos e disse que seria seu assistente, já que sabia soldar
as armações.
Asher ainda se perguntava se aquilo se tratava de um prelúdio
para a morte, mas, depois de dois dias, não deu mais importância,
pois a vida se tornara um pouco mais suportável. Após a lista de
chamada matinal, um guarda o escoltava pela neve até a sossegada
clínica dos oficiais. Sempre que abria a porta, Asher pensava que
iria deparar com Mengele e seus instrumentos de tortura. Mas
sempre via a sala de optometria — calma, silenciosa, eficaz. Os
oficiais que vinham até ele por causa dos óculos respondiam
educadamente às suas perguntas — tão educadamente que Asher
quase esquecia que era prisioneiro.
Ele foi removido do trabalho pesado em meados de fevereiro:
algumas manhãs depois, olhava pela janela de sua sala de trabalho
para a neve que caía, cobrindo tudo como um véu branco de noiva
— até mesmo as cercas de arame farpado e os cadáveres que
pendiam delas como lençóis. Ao meio-dia, houve um fuzilamento e
uma mancha escura se espalhou pela neve. A nódoa esmaeceu,
tornando-se rosa e, ao crepúsculo, havia apenas uma mácula cor de
ferrugem.
Alguns dias depois, houve outra nevasca, que encobriu o campo
de branco novamente. Ocorreu a Asher — não sem certa ironia —
que, enquanto houvesse neve, qualquer coisa que acontecesse em
Auschwitz era reversível. Ele gostava de ficar observando pela
janela de sua sala de trabalho. A neve o fazia lembrar-se de sua
infância no inverno, quando brincava com a irmã, que havia sido
suficientemente esperta para se mudar para os Estados Unidos.
Houvera uma época que os bosques eram um lugar seguro para as
crianças, e elas acreditavam na fada das neves que ganhava vida e
nos lobos que realizavam desejos. Ele e a irmã costumavam se
deitar na neve, sacudindo as mãos e deixando marcas que
pareciam anjos.
De vez em quando, ele trabalhava até mais tarde para ver o céu
noturno. Os holofotes tornavam-no sobrenaturalmente brilhante,
ofuscando as estrelas. Certa vez, ele viu a lua e se surpreendeu de
que ela ainda estivesse no céu. Às vezes, via caixas sendo retiradas
do aposento de Mengele — uma com a etiqueta Mobília, outra com
a etiqueta Ossos. Pelo menos uma vez por dia, ele ouvia o som das
motocicletas.
Numa noite, notou a chegada dos transportes. As pessoas
formavam grupos sem que houvesse espaço entre elas. Crianças
choravam. Um holofote iluminou a figura de Mengele. Era um
homem elegante, com o cotovelo esquerdo apoiado sobre o braço
direito, gesticulando com seus dedos na luva que se movia
imperceptivelmente. Na noite em que Asher e o filho chegaram,
Mengele tinha mandado um alfaiate de Freiburg para a esquerda e o
filho de Asher para a direita. Depois de uma pausa, ele mandara
Asher também para a direita. Asher não tinha entendido o que
aquilo significava até perguntar aos sussurros a um prisioneiro num
catre acima do seu. Só então compreendeu que o alfaiate havia sido
intoxicado na câmara de gás.
Assim que Asher Englehardt começou a fazer óculos, mais e
mais oficiais o procuravam. Não agradava a eles ter de vasculhar os
estoques da câmara de gás — um bazar caótico, que irritava a uns
e enfurecia a outros, porque tinham olhado por tempo demais nos
olhos de mulheres, homens e crianças que esperavam sua vez no
bosque que ocultava uma das câmaras de gás.
Alguns oficiais diziam que preferiam as novas armações feitas a
partir do ouro judeu derretido. Outros diziam apreciar a maneira de
Asher fazer perguntas — como se tudo que eles falassem fosse
importante. Mas havia também algo mais que os atraía para aquela
sala: a aura de sossego que Asher irradiava enquanto examinava os
olhos das pessoas que tinham matado seus amigos. Era uma
impressão profunda e quase audível de paz, que o próprio Asher
não compreendia — especialmente considerando que seu filho
Daniel estava cavando trincheiras em meio a um frio tão intenso que
a língua ficava colada a qualquer coisa em que tocasse. Ele via
Daniel à noite, quando lhe levava pão e uma porção extra de
comida. Os guardas fingiam não ver. Eles estavam a par das
instruções de Goebbels.
Uma semana depois, colocaram uma cama na sala, de modo
que Asher pudesse tirar um cochilo durante o dia. Ele conseguia
dormir, sem temer que o matassem. Desde que chegara a
Auschwitz, não se recordava de seus sonhos. A caserna estava
tomada de um cheiro repugnante. As pessoas gemiam e
imploravam por água. Havia sempre pelo menos uma pessoa
morrendo.
Agora, naquele quarto sossegado, Asher sonhava com a esposa
tocando Schubert ao piano. E com Daniel brincando no chão da sala
de jantar. Ao acordar, porém, ainda sentia o cheiro de carne
queimada. Ainda estava cercado por casernas e por neve
manchada de sangue.

C
De vez em quando, ele pensava em Martin Heidegger, que
costumava vir para fazer a manutenção de seus óculos uma vez por
ano, e o tinha visitado poucos dias antes de sua ótica ser invadida.
Aquele dia de outubro fora tépido, e Heidegger usava calça de couro
com suspensórios e um chapéu alpino. O homem da SS que era
amigo de Asher tinha acabado de lhe avisar que não haveria carvão
suficiente para atravessar o inverno e que estavam tomando
medidas em relação a pessoas com mães arianas e pais judeus,
tornando a visita de Heidegger tensa e dividindo Asher em dois —
de um lado o oculista que fazia piadas e conversava sobre filosofia,
do outro, um homem aterrorizado que achava que ele e seu filho
estavam prestes a morrer.
Heidegger sentou-se numa cadeira de espaldar alto olhando
para o alfabeto, enquanto Asher trocava lentes e fazia anotações.
Ele concordava com Heidegger quando dizia — e ele o fazia com
frequência — como era irônico que a primeira pessoa para a qual
relatara a revelação provocada por seus óculos houvesse se
tornado oculista.
Em geral, Asher conseguia ignorar o pavor. Era capaz de brincar,
dizendo que os óculos de Heidegger eram a única razão para ele ter
se tornado oculista — embora isso não tivesse nada a ver com a
perda de seu trabalho de professor ou com o fato de seu pai ser
judeu. Mas, naquele dia em particular, ele precisou se esforçar para
lembrar o que dizer.
Os olhos de Heidegger estavam um pouco piores, e Asher disse
que talvez ele devesse procurar um oculista ariano — porque, hoje
em dia, nunca se sabe. Heidegger dissuadiu-o da ideia e tentou
animá-lo, contando quanto se sentia decepcionado com o Partido
Nazista.
— Já os adverti de que não entendem que as máquinas tenham
seu próprio Ser — disse ele. — Não há visão, nem princípios
orientadores.
— A visão sempre supera as máquinas — disse Asher.
Heidegger assentiu e contou-lhe quanto vinha tendo a sensação
de estar alheio ao mundo nos últimos dias, na última semana.
Elfriede Heidegger servia para ele ensopado e o cabo se partiu,
deixando a concha cair dentro da panela. Sem a concha, o cabo da
concha se tornou uma haste ridícula e, finalmente, a cozinha inteira
pareceu enviesada. Elfriede ficou irritada porque ele não a ajudava.
— Martin — disse Asher, como de costume —, nós estamos o
tempo todo dentro do mundo. Portanto, não há nada a que
possamos ficar alheios.
— Eu sei — concordou Heidegger.
— Então, por que simplesmente não viver aqui? — questionou
Asher.
— Porque ninguém pode fazer isso o tempo todo.
Ainda assim, Asher havia conseguido, desde a Krystallnacht.
Depois desta “noite dos cristais”, ele nunca mais fora capaz de
repousar numa suave e acolchoada sensação de conforto — por
mais ilusória que fosse. Quando via Daniel dormindo, pensava: Ele
está seguro por enquanto. Quando conseguia um pedaço de pão
fresco, pensava: Este pode ser o último. E quando via as pessoas
na estação de trem com suas valises, pensava: Daniel e eu
podemos ser os próximos. Neste estado, muitas coisas ficavam
saturadas de significados. Valises e pães tinham formas oblongas.
Uma chave inglesa não era tão diferente de uma colher.
Asher tentou se esquecer dessa última conversa com Heidegger,
assim como tentava fazer em relação a todas as conversas com
pessoas com as quais já não podia mais conversar. Tentava se
esquecer das conversas acaloradas com a esposa, que se unira à
resistência bem cedo e o acusava de não prestar atenção à
ascensão do Partido. E as conversas animadas com uma mulher —
adorável, loura, compassiva — que se tornara sua amante quando a
esposa desapareceu. Essa mulher desaparecera também.
Enquanto Asher trabalhava as lentes, ele se perguntava se suas
intermináveis conversas com Heidegger sobre a morte eram
prescientes, porque em Auschwitz as pessoas eram empurradas
para tão perto da morte que não podiam se livrar de uma
consciência da mortalidade. O doce cheiro de carne queimada
permeava o campo de concentração. Havia disparos de cinco em
cinco minutos.
Mesmo os oficiais da SS caminhavam de forma tensa, como se
tentassem não esbarrar com a morte. Todo o campo de
concentração fazia Asher pensar numa mórbida Floresta Negra do
Ser, um grotesco parque de diversões, com casernas no lugar de
árvores.
A única pessoa que não parecia se sentir no precipício da morte
era o assistente de Asher, Sypco Van Hoot — um homem grande e
compassivo, que fora um próspero ladrão de banco na Holanda.
Sua generosidade confirmava a opinião disseminada em Auschwitz
de que os ladrões de banco eram os criminosos mais dignos de
confiança e sinceros de todos, pois sempre tinham sido honestos
em relação aos seus motivos. Sypco contou a Asher que ele se
acostumara a viver com o perigo, portanto, qual era a diferença
agora?
Sypco, que sabia soldar, levava as lentes e as instruções de
Asher para outra parte do campo de concentração, a fim de fazer as
armações. Sempre parava num lugar chamado Kanada, onde os
detentos, em sua maioria mulheres, quase todas lindas,
selecionavam os pertences dos recém-chegados. De vez em
quando, Sypco trazia para Asher presentes de Kanada — um
relógio, um par de sapatos, um agasalho. Asher os dava para
Daniel, para que ele pudesse trocá-los por comida.
Duas semanas depois de ser transferido para a clínica, Sypco
trouxe-lhe um terno e um chapéu fedora.
— Então eles vão me fuzilar com elegância — disse Asher.
— Eles nunca fuzilam ninguém em trajes elegantes — retorquiu
Sypco. —Dá muito trabalho retirar as roupas de qualidade depois.
— Então, na câmara de gás com elegância.
— Nunca me dão nada em Kanada para entregar a alguém que
esteja prestes a morrer. Daria trabalho demais depois.
Naquela noite, ninguém apareceu para escoltá-lo de volta à
caserna. Asher sentou-se à mesa de trabalho, certo de que estava
prestes a ser fuzilado. Ficou surpreso e ressentido, pois seus
instrumentos continuavam brilhando, e não conseguia parar de
pensar no filho. Depois do que lhe pareceu horas, um oficial lhe
trouxe carne, batatas, leite morno, um pedaço de pão e cerveja —
mais uma última ceia. Só que, desta vez, Asher estava tão
acostumado à comida que não lhe ocorreu não consumi-la. O
mesmo oficial voltou em seguida e ajudou-o a vestir o terno. Quando
ele pôs o chapéu na cabeça, o oficial lançou-lhe um olhar crítico, e o
ajustou até que ficasse satisfeito. Depois disso, saíram da clínica.
Asher já vira Auschwitz várias vezes à noite, mas agora ele se
perguntava qual seria o efeito do próprio sangue sobre a neve. Os
holofotes o escureceriam. Pela manhã, estaria rosa. À tarde, tomaria
aquela cor de ferrugem. Ninguém daria a mínima, exceto Daniel,
que perceberia o que havia acontecido no momento em que seu pai
não respondesse à lista de chamada.
Nos alojamentos dos oficiais, imperava uma cantoria ébria. Um
deles caminhou em sua direção, ergueu a caneca e derramou
cerveja sobre os sapatos de Asher.
— Pelo amor de Deus — protestou o oficial que o escoltava. —
Se você não é capaz de controlar a bebida, controle ao menos sua
caneca.
O outro oficial se inclinou e enxugou os sapatos de Asher.
Depois, eles seguiram até chegarem a uma porta de mogno.
— Você deve sentir-se honrado — disse-lhe o oficial. — É aqui
que o Comandante recebe suas visitas.

C
Asher entrou naquela sala com paredes revestidas de madeira,
poltronas de couro e uma lareira acesa — o primeiro fogo que via há
meses que não era destinado a queimar gente. O Comandante
levantou-se diante da lareira, havia um homem com o uniforme da
SS à sua direita e, ao lado, Martin Heidegger. Ele estava vestido
com um macacão de esqui e um chapéu alpino.
— Mas o que você está fazendo aqui? — exclamou Asher.
— Meu amigo — respondeu Heidegger —, eu precisava vê-lo. —
Ele deu alguns passos e colocou o braço sobre os ombros de Asher.
— Meu Deus, como você passa seu tempo aqui?
— Fabricando óculos.
— Você veio de tão longe para isso?
— Vim. Mas valeu a pena.
Eles riram e penetraram num reino onde ninguém podia segui-
los — o reino dos velhos amigos e das piadas internas.
Por alguns instantes, houve um clima festivo na sala. Mas,
quando o Comandante pediu a todos que se sentassem e serviu
uma garrafa de conhaque, o silêncio saturou a atmosfera. E o
silêncio continuou até o oficial da SS apontar para uma pintura do
século XVII de um homem com uma camisa de gola franzida.
— Este Rembrandt é maravilhoso — disse ele.
O Comandante concordou com um gesto de cabeça.
— Enfrentamos muitos obstáculos para consegui-lo.
— Todos deveriam enfrentar obstáculos para encontrar as raízes
no passado — disse Heidegger.
— Exatamente — assentiu o Comandante.
— A Das Volk, ao povo! — brindou Heidegger, erguendo seu
copo.
— Muito bem dito — concordou o Comandante.
O Comandante pigarreou e Heidegger pegou um papel no bolso
de seu traje de esqui. Ele estava manchado da sopa ressecada e
com pedaços de cascas de batatas.
— Foi você quem escreveu esta carta? — perguntou ele.
Asher olhou a carta que certamente não escrevera, mas viu a
própria assinatura. Será que a teria escrito, em seu sono? A carta
era sobre poesia e o mistério do triângulo e havia a palavra
distanciar como em Eu me distancio da controvérsia. Ele nunca teria
escrito uma carta como essa. Mas a assinatura estava ali. E uma
resposta errada poderia levá-lo ao fuzilamento.
— Não tenho certeza — respondeu ele.
— Pelo amor de Deus! — exclamou Heidegger. — Preciso saber.
Porque, se você escreveu isso, o mundo todo enlouqueceu.
O Comandante riu.
— Brindemos a isso — disse ele. — A sanidade do mundo
depende de quem respondeu a uma carta.
— Você não entende — ressaltou Heidegger. — Este homem era
meu colega. Ele trouxe Leibniz para a modernidade. Nós dois
somos homens que pensam.
— Eu não faço mais isso — corrigiu Asher.
— Então, você escreveu esta carta?
A essa altura, ouviu-se a deflagração de três tiros. O
Comandante foi até o gramofone e colocou um concerto para piano
de Mozart em dó maior.
— Sinto muito pela comoção — disse ele, dando corda à vitrola
como se girasse um moedor de carne.
— Então, você a escreveu? — repetiu Heidegger.
— O quê? — perguntou Asher.
— A carta, você a escreveu?
— Já faz tanto tempo.
— Mas não é possível — argumentou Heidegger. — Sua mente
é notável. Acredite em mim... — prosseguiu ele, virando-se para o
Comandante. — Você não imagina com quem está falando. Não se
trata apenas de qualquer coisinha que leu na escola sobre as
árvores fazerem ou não barulho quando caem na floresta. Este
homem realmente entende Leibniz.
O Comandante ergueu as mãos à altura de sua cabeça e puxou
os cabelos para trás. Depois, serviu outro conhaque para Asher.
— Podem conversar livremente aqui — disse-lhe ele. — Você é
um privilegiado. Creia-me: este homem tem recebido de tudo e faz
óculos excelentes.
Essas últimas palavras foram destinadas ao oficial da SS.
— Eu sei disso — disse Heidegger. — Sempre o procuro. Mas
não cheguei a receber os últimos óculos que ele fez para mim.
— Agora, ele tem feito os óculos dos oficiais — informou o
Comandante. — E todos estão muito satisfeitos. Tem toda garantia
de que continuará.
Tem toda garantia de que continuará podia significar ele está
prestes a ser fuzilado. Asher se perguntou se sua condição de
filósofo fazia com que merecesse uma testemunha como Heidegger.
O oficial da SS parecia partilhar sua suspeita, pois disse que havia
provavelmente uma coisa sobre a qual Asher não tinha certeza
alguma e esta era se seria capaz de continuar vivendo.
— Essa garantia ninguém mais tem. Nem mesmo eu — disse o
Comandante.
Houve mais disparos lá fora e o Comandante aumentou o
volume de Mozart.
— Estão vendo? Não sou sequer capaz de conseguir que façam
silêncio.
— Então, por que você me trouxe até aqui? — perguntou
Heidegger. — Estamos numa sala com uma lareira e meu amigo
parece um fantasma. Há tiros lá fora e não podemos sequer ouvi-
los. Este lugar não faz sentido.
— Como pode não fazer sentido? — inquiriu o Comandante. —
Estamos num local agradável. Acabamos de fazer um brinde ao
passado. Não existem mais lugares onde se possa conversar com
essa segurança.
— Posso citar outros lugares mais seguros — disse o oficial.
— Onde? — quis saber o Comandante. — O chalé alpino ridículo
onde vive aquele pontífice? Ou a rua na Holanda onde dizimaram
vinte pessoas por terem escondido dois fugitivos?
Ninguém disse nada. O telefone tocou e o Comandante não o
atendeu. Quando parou de tocar, ele disse:
— Entendo que os senhores tenham assuntos a tratar que
exigem certa privacidade. Assim sendo, nós os deixaremos
sossegados. Sirvam-se do conhaque.
Ele saiu da sala e Asher ficou sozinho com Heidegger. O
concerto de Mozart intensificava sua impressão de estar em
Freiburg: sua esposa tocara aquela peça várias vezes. Mas ele se
conteve para não recair numa sensação de bem-estar e olhou
cuidadosamente para o homem sentado à sua frente. Seria
Heidegger de verdade ou alguém se passando por ele? E seria uma
discussão filosófica o prelúdio da morte?
Mas aquela pessoa parecia tão bulbosa em seu traje de esqui —
na verdade, parecia que a cadeira estava a ponto de expeli-lo —
que Asher concluiu que, de fato, era Martin Heidegger.
— Martin — chamou ele, inclinando-se e tocando no seu ombro.
— Você fez uma longa viagem até aqui.
— Era preciso. Você não respondia à minha carta.
— Eu nunca a recebi.
— Mas, para começar, por que você partiu?
— Para fabricar óculos.
— Você chegou a fazer os meus?
— Sim, mas não sei se chegaram até você — explicou Asher. —
Você não lembra que eu lhe disse para procurar outro oculista?
— Pensei que estivesse brincando.
— Não estava.
O Comandante meteu a cabeça no vão da porta, querendo saber
se tinham acabado de conversar. Heidegger respondeu que não, de
maneira alguma. O Comandante desapareceu e Heidegger ficou
calado. Depois disse:
— Do que estávamos rindo, logo que você chegou?
— Não consigo me lembrar — respondeu Asher.
— Algo sobre mas valeu a pena — disse Heidegger, olhando
para os lados, como se pudesse encontrar a piada. Mas ela sumira
atrás das paredes. Então ele mudou de assunto.
— Você sabia que não estou mais lecionando?
— Você me disse — respondeu Asher.
— Sinto falta — disse Heidegger.
— Mas você disse que estava escrevendo.
— Não o tempo todo. E é difícil escapar da mortalidade sem
lecionar.
— Pensei que não tentar escapar era a mais elevada vocação.
— E é — disse Heidegger. — Mas ninguém consegue fazer isso
o tempo todo. O chalé está mais sombrio do que antes. Posso até
sentir o cheiro da escuridão.
— Você deveria escrever sobre isso.
— Já o fiz. O que mais há a dizer?
Mas Asher não queria explicar. Havia perdido a essência das
conversas da época em que Heidegger o visitava em sua ótica. E o
que quer que tivesse restado havia sido destruído pelo que ele vira
em Auschwitz. Então, em vez de se esforçar, ele disse:
— Martin, eu espero que você entenda que seu interesse pela
consciência do homem em sua mortalidade tem uma espécie
diferente de significado num lugar onde basta calçar o par errado de
sapatos para ser fuzilado.
— Não sei do que está falando...?
— Fico surpreso que não saiba — disse Asher. — Fico surpreso
que você não saiba que as pessoas aqui são obrigadas a se lembrar
de sua mortalidade nas mais terríveis condições. E nunca ninguém
lhes perguntou se queriam pensar sobre ela.
— Como eu poderia saber dessas coisas? — perguntou
Heidegger.
O tom mais elevado de sua voz fez com que o Comandante
abrisse a porta.
— Os senhores já concluíram?
Heidegger disse que não e o Comandante se foi. Heidegger se
pôs em pé ao lado da lareira.
— Qual foi a verdadeira razão para você não responder à minha
carta? — ele perguntou.
— Já lhe disse. Não a recebi.
— As cartas não chegam até aqui?
— Não.
— Mas isso é tão estúpido! As cartas precisam ser enviadas. É
para isso que existem.
O Comandante reabriu a porta.
— Vocês estão gritando — disse ele. — Não permitimos isso.
— Não me importo com o que vocês permitem — esbravejou
Heidegger. — Vocês não são sequer capazes de entregar uma
carta.
O telefone voltou a tocar. O Comandante puxou os cabelos para
trás. Quando parou de tocar, ele se virou para o oficial da SS e
disse:
— Ele está se tornando um incômodo. Daqui a pouco, vai cantar
um iodelei. E o judeu já ouviu demais. É melhor levá-lo para o lugar
de onde veio, ou o trataremos de outra maneira. Mas, qualquer que
seja sua decisão sobre o judeu, este alpino tem que partir. E saiba
que você está sozinho. Tudo o que posso lhe dar é um Kübelwagen
para ir até a estação.
O oficial da SS concordou e eles apertaram as mãos. O
Comandante olhou com pesar na direção de Heidegger.
— Eu gostaria de fuzilá-lo — disse ele. — Mas, depois da guerra,
vão transformá-lo em tesouro nacional.
— Ele tem imunidade — explicou o oficial num tom áspero.
— É verdade. E, aliás, eu tenho boas notícias para você —
acrescentou ele, virando-se para Heidegger. — Você e seu amigo
poderão conversar em paz.
— Onde? — perguntou Heidegger.
— A caminho da estação de trem. Sem este barulho todo.
— Não posso partir sem meu filho — disse Asher.
— Meu Deus! — exclamou o Comandante. — Daqui a pouco
você vai pedir caviar. Em que pavilhão de celas ele está?
Asher disse-lhe. Era um alojamento diferente do seu.
— Vocês, detentos — disse o Comandante. — Todas as noites
vocês ficam conversando, e nós continuamos trabalhando.
Ele abriu a porta e agarrou um guarda pelo colarinho.
— Você vai para a frente de batalha se não me trouxer este
prisioneiro em cinco minutos — ordenou.
Em seguida, voltou a encher seu copo de conhaque, sem
oferecer a mais ninguém.
— Nada está saindo como planejamos — prosseguiu ele. — Eu
lhes disse que não fizessem estardalhaço pelo menos uma vez, mas
nunca me escutam. Aqueles imbecis com suas deportações
desorganizadas.
Havia um grande mapa da Alemanha à direita da lareira. O
Comandante se aproximou e o removeu, revelando um cofre cheio
de alimentos no interior. Asher viu enormes pernis, garrafas de
champanhe, caixas de vinho, imensos queijos redondos e pesadas
barras de chocolate. O Comandante pegou alguns aleatoriamente,
jogando tudo dentro de uma bolsa de lona, e a entregou para o
oficial da SS.
— Leve isso. Leve tudo — ordenou ele. — E não diga porra
nenhuma sobre isso.
Em seguida, ele abriu a porta e berrou:
— Onde está aquele maldito garoto?
O pavilhão das celas ficava distante dos alojamentos dos oficiais,
mas em poucos minutos, um guarda apareceu com um garoto. Ele
era magro e possuía olhos azuis e sagazes, como os do pai. O
Comandante lhe entregou um casaco.
— Você vai fazer uma viagem. Vista isso.
O rosto de Daniel empalideceu.
— Vista — insistiu o Comandante. — Você vai com seu pai.
Asher olhou para o filho. Durante mais de quatro meses, ele
havia sido uma sombra, procurando comida no escuro. Agora, ele
se encontrava num cômodo aquecido, não muito diferente daquele
no qual havia crescido e onde sua mãe costumava tocar piano.
Quem podia saber o que aconteceria? Quem sabia para onde eles
estavam indo? Ainda assim, Asher falou sem emitir som: Você está
seguro.
Uma porta foi aberta. Um Kübelwagen apareceu lá fora. Eles
avançaram por um campo coberto de neve sem holofotes, guardas
ou cercas. Asher tinha a vaga impressão de que estava tomando
parte de algo que nunca deveria ter acontecido. Mas ele só tinha
olhos para o filho.

C
A figura de Heidegger se encolhia à medida que o trem ganhava
velocidade, e Lodenstein o observou desaparecer. Ele ficara sozinho
na estação, iluminado por uma luz vinda do abrigo sobre a
plataforma. Heidegger andava de um lado para outro, remexendo a
neve com sua bengala e discursando para a escuridão, ainda sem
seus óculos. Finalmente, tornou-se uma mancha e logo a estação
sumiu. Lodenstein virou-se para o interior do vagão, que estava
misteriosamente vazio. Talvez o Comandante tivesse dado ordens
para que fosse assim, de maneira que ninguém ouvisse as
divagações de Heidegger ou visse os dois esqueletos de Auschwitz.
Sem Heidegger, restaram somente Asher e Daniel, dormindo no
escuro. Num dado momento, Asher acordou e Lodenstein ofereceu-
lhe uma salsicha. Ele negou com um gesto de cabeça e voltou a
dormir.
E agora um cabineiro apareceu e perguntou a Lodenstein se ele
estava com sede. Pediu uma limonada e o cabineiro pareceu se
espantar — ninguém bebia limonada no inverno. Mas foi buscá-la
mesmo assim — o uniforme da SS o impressionara — e Lodenstein
bebeu-a de uma vez, desejando que ela alcançasse seu sangue
como uma transfusão instantânea. Sentia-se vazio, como um saco
de farinha que tivesse sido esmurrado e espancado, e nem ele nem
o trem pareciam muito reais. Tivera que escutar as divagações de
Heidegger desde que tinham saído de Auschwitz e ficou mais do
que contente ao vê-lo desembarcar na última estação, descendo
apressado do vagão, gesticulando com seus schnapps, ainda
discursando. Lodenstein custava a crer que Asher tivesse dormido
durante todo aquele tempo. Mas agora tudo estava calmo e o trem
seguia ribombando noite adentro num ritmo suave e reconfortante.
A limonada levou Lodenstein a pensar no verão, e sentiu
vontade de voltar ao passado, para o verão de sua infância, quando
os únicos indícios de guerra eram as trincheiras que cavava com
seus amigos. Na hora do jantar, sua mãe tinha ataques por causa
da lama nos sapatos e seu pai tentava convencê-lo de que decifrar
códigos era muito mais interessante do que lutar nos campos de
batalha. Mas ele não podia voltar para lugar algum, porque as três
últimas semanas pareciam ter moído seu corpo como se fosse vidro.
Atormentava-o a lembrança da cela, onde ele flutuara até o teto,
os olhos de Goebbels, o Comandante passando as mãos nos
cabelos e o sangue na neve — tudo o que sofrera para salvar a vida
de Elie Schacten.
Por um instante, suas ações pareceram opacas, como se
estivesse observando alguém que não entendesse. Ele olhou
detidamente para Asher e Daniel, que estavam juntos, como se
esculpidos a partir de uma mesma pedra. Pareciam um pai e um
filho comuns. Mas não eram apenas isso. Eram mais dois fugitivos a
caminho do Complexo.
Lodenstein remexeu na bolsa de lona que o Comandante lhe
dera e se deu conta de que havia ali alimento suficiente para quase
duas semanas. La Toya poderia fazer sopa com as salsichas. O
chocolate alegraria Dimitri. Todos adorariam ter café de verdade. Ele
pôde entender a animação de Elie quando ela conseguia trazer
quantidades suplementares de pão, além de uma grande
abundância de presunto. Ele sempre se empenhara para manter o
Complexo em segurança — escrevendo cartas ridículas para
Goebbels, sendo educado com Mueller, que provavelmente queria
vê-lo fuzilado. Tinha até mesmo deixado que Stumpf fizesse os
escribas imaginarem Goebbels, porque isso acalmaria seus
discursos inflamados. Mas trazer comida para o Complexo e ajudar
a combater a fome — isso era novidade. Começara a pensar como
Elie.
Ainda assim, o fato era que ele mal podia se lembrar dela. Era
apenas um vulto de cachos louros com perfume de rosa. Ele
imaginou-se chegando perto dela no escuro, contando-lhe que havia
sido preso e que tinha falado com Goebbels. E, depois, sobre os
disparos em Auschwitz e os discursos de Heidegger no trem. Ele a
conservaria em seus braços enquanto conversavam. Ela o
escutaria. Mas a quem estaria contando tudo isso? À Elie que
flertava com os oficiais? À que um dia conhecera Heidegger? Ou à
Elie com quem fizera amor sob a manta cinza? Ele sempre tentava
não pensar sobre o que Elie fazia para conseguir o que precisava
em suas incursões. Tentava transformar tudo o que ela fazia fora do
Complexo em partículas de pó que nem sequer a tocavam. Elie
também fazia isso: ele podia senti-la espanando-as assim que
voltava.
Lodenstein deu outro chute na bolsa de lona. Asher e Daniel
emitiram um som lamuriento enquanto dormiam. Era o lamento de
pessoas que haviam sido espancadas, maltratadas e não sabiam se
acordariam no dia seguinte. Ainda assim, o ruído o irritava, da
mesma forma que o cheiro da salsicha dentro da bolsa de lona e o
ar quente no trem.
Ele ficou andando entre os vagões, olhando a neve e os
pinheiros lá fora. De vez em quando, via alguma luz que escapava
das cortinas das casas, exatamente como as fissuras do globo de
Hanussen. Achava que o trem já saíra da Polônia e entrara na
Alemanha, mas não tinha certeza. Podia estar em qualquer lugar.
Antes de partir, Heidegger lhe dera a carta de Mikhail, e
Lodenstein ainda a tinha na mão — um catalisador naquela corrente
absurda. Ela viajara do Complexo para a Floresta Negra, depois até
os gabinetes do Reich e para Auschwitz. Ela fora roubada,
amassada, jogada dentro de uma sopeira. Estava enrugada, coberta
de crostas de batata. Parecia incapaz de sobreviver a mais uma
viagem.
Lodenstein ergueu a carta contra a luz e tentou lê-la, mas as
palavras não faziam sentido algum. Na verdade, cada letra do
alfabeto parecia um pequeno personagem do teatro de Hanussen.
Havia umas amontoadas no meio, outras sozinhas na extremidade
da linha. Algumas, porém, pareciam formar uma sequência de
palavras:
O triângulo é a mais paradoxal das situações humanas. É o
segredo de todas as convenções e uma causa de traição. Na
verdade, é um imenso desafio para o coração humano, porque tem
o poder para criar um incrível bem e provocar incrível sofrimento,
assim como induzir estados de êxtase e demência. Criar um
triângulo com integridade é uma tarefa para Deus.
Ele achou a carta estranhamente verdadeira, tanto quanto
irônica, porque a própria carta era a essência da traição. De Elie. E
dos Solomon, em quem ele sempre confiara. Era a razão que o
levara a viajar para Berlim, ver Goebbels, ser jogado na prisão. Era
a razão pela qual levara Heidegger a Auschwitz e acabara ouvindo
disparos acompanhados por Mozart. A razão pela qual arrasara seu
quarto e tivera todas aquelas brigas com Elie. Era a razão de tudo.
Aquela carta nunca seria respondida. Não deveria jamais ter sido
escrita, para início de conversa.
Ele abriu a mão e deixou a carta cair. Por um momento, ela
continuou dentro do vagão, por causa da força do vento. Depois,
esvoaçou na escuridão até o trem se afastar e ela desaparecer.
OS FUGITIVOS
C
Meus queridos avós,

Estou aqui há apenas uma semana e já estou engordando. Há um


bosque para brincar, um bocado de neve e um lugar especial onde
criam coelhos muito peludos. Eu até já dei comida para eles. Há
muita água e um bocado de gente interessante. Foi uma viagem
longa para este lugar maravilhoso. É o melhor lugar do mundo.

Com amor,
René
Certa tarde, Gitka, com seus cabelos louros desbotados, se
inclinou sobre a mesa de Maria e lhe ofereceu uma rosa de veludo
branco.
— Nós duas somos polonesas — explicou ela. — Sabemos
como nos virar neste mundo.
Maria jamais dissera que era polonesa. Ela falava alemão sem
qualquer sotaque e só respondia a cartas em italiano e em francês.
Assustou-a aquela impressão de que Gitka pudesse ler sua mente.
— Quero ensinar a você sobre o silêncio — disse Gitka.
— Preciso trabalhar — disse Maria, que na verdade estava
lendo.
— Ninguém trabalha aqui. E Die Gnädige Frau mal sabe se
estamos aqui ou não.
Era assim que ela se referia a Elie, que estava na verdade
folheando seu caderno vermelho-escuro. Seu rosto estava pálido e
ela mordia o lábio inferior; Dimitri a seu lado, num banco alto,
ordenava alguns selos.
— Está vendo? — pergunta Gitka. — Ela não come. Ela não
dorme. E nunca ri, exceto quando está conversando com o ratinho.
Ela só pensa nele. E não dá a mínima se trabalhamos ou não.
Então, deixe-me lhe mostrar algo.
Ela levou Maria para um cômodo escuro na parte posterior do
salão principal — o cômodo que era de Elie antes de ela se mudar
para o de Lodenstein. Estava escuro, frio, cercado pela mina por
três lados.
— Este é o primeiro lugar à prova de som — disse Gitka. — Só
que nunca está vazio.
Ela abriu ainda mais a porta e Maria viu Niles Schopenhauer
sobre Sophie Nachtgarten.
— O ponto, minha querida amiga, é: nunca venha aqui para
conversar.
— Eu nunca vim — disse Maria.
— Ótimo. E nunca virá.
Ela conduziu Maria através da grande porta de mogno, passando
pelos bancos de ferro fundido e pela cozinha. Estavam no meio da
tarde e o sol artificial inclinava-se para oeste, salpicando de luz o pé
de peras artificiais e as roseiras em frente da pequena e peculiar
casinha dos Solomon. Lars, que estava perto da porta descascando
uma maçã, acenou para elas. As duas continuaram andando até o
beco onde havia uma parede de barro. Gitka guiou Maria pelas
mãos em torno do trompe l’oeil, uma pintura que cria ilusão de ótica
— um arco perfeito que camuflava o túnel. Ela passou o dedo de
Maria em torno da fechadura.
— É uma porta — explicou ela, ao perceber a confusão de
Maria. — E ela leva ao segundo lugar onde o silêncio é completo.
Mas está trancado e ninguém tem a chave. Além disso, quem iria
querer entrar aí? Esta porta conduz a um túnel onde a Gestapo
colocava as pessoas da cidade e as fuzilava.
— Você não me assusta — disse Maria. — Venho de um lugar
muito pior.
No entanto, seus dedos estavam tremendo quando ela tateou a
porta. Gitka sorriu, mas nada disse. Deu meia-volta e parou em
frente a uma porta oposta à casa dos Solomon. Dava acesso a um
quartinho apinhado de engradados de madeira marcados com a
palavra Geantwortet, postado.
— Este lugar também é à prova de som — disse Gitka. — Mas
eles guardam as cartas aqui, então ninguém tenta entrar.
— Nunca pensei que fosse aqui.
— Bem, agora você sabe. Esqueça que o viu.
Depois, Gitka levou Maria até banheiro menor e abriu a janela no
alto. Apontando para um banco, disse a Maria para subir até a
abertura. Maria disse que não estava entendendo e Gitka respondeu
que Se você subir na porra desse banco, vai entender tudo. Maria
subiu no banco e, quando as duas se instalaram dentro daquela
cavidade escura, Gitka disse:
— É para aqui que você deve vir quando precisar falar alguma
coisa e não quiser ser ouvida.
— Ótimo, obrigada — respondeu Maria, e estava começando a
descer quando Gitka aproximou-se tanto que ela foi capaz de sentir
o cheiro de cigarro, o perfume inapropriadamente caro e o odor um
pouco bolorento de seu casaco de pele.
Gitka tocou-lhe com a mão e Maria sentiu suas unhas. Eram
longas e Maria quase podia ver o esmalte vermelho na escuridão.
— Espere — disse Gitka. — Tenho algo a dizer para você que
não quero que ninguém mais ouça. Você pode ficar com Parvis
Nafissian. Mas afaste-se de Ferdinand La Toya.
— Nunca pensei em me aproximar dele.
— Ótimo. Continue assim.
Alguém entrou no banheiro e urinou longamente. Depois, outra
pessoa entrou e tentou subir até o refúgio.
— Está ocupado — disse Gitka.
— Desculpe — disse a voz.
Era Elie Schacten. Depois que ela saiu, Gitka acendeu outro
cigarro.
— Aposto que ela perdeu peso depois que ele se foi — disse
Maria. — Está sempre preocupada.
— Estamos todos — disse Gitka. — Acredite em mim, ela não é
a única. — Ela soltou a fumaça inundando o ar. — Então? Estamos
combinadas em relação a Ferdinand?
— Estamos — respondeu Maria, omitindo que detestava os
charutos dele.
— Ótimo. Podemos ir, então.
Gitka esmagou seu cigarro contra a parede e ambas desceram
para o banheiro. Gitka pôs o casaco nas costas e outro cigarro em
sua piteira longa e preta.
— Não é todo mundo que aprecia uma jovem xoxota — disse
ela.

C
Depois de ser impedida de entrar no refúgio, Elie Schacten
desceu pela rua de pedras acompanhada pelo general Mueller, que
chegara sem avisar quinze minutos antes, para — em suas próprias
palavras — ver como Elie Schacten estava. Elie sentiu-se tomada
de pânico. Empurrou Dimitri até os casacos dispostos contra a
parede e sussurrou para um escriba que o escondesse na casa dos
Solomon.
Mueller, dissera a Elie que tivera sorte: não havia sido mandado
à frente de batalha, mas permanecera na Chancelaria do Reich
trabalhando num projeto especial. Ao mencionar o projeto, ele
fechou os olhos, sugerindo intriga. Ele trabalhava numa biblioteca
subterrânea, onde eram guardados documentos preciosos. E foi
assim que soube que Lodenstein estivera em confinamento solitário:
não, não numa prisão comum, mas numa cela que lembrava uma
sala de espera. Goebbels o jogou lá dentro assim que ele apareceu.
E depois o soltou, de modo que ele pudesse levar aquele filósofo
maluco até Auschwitz. Mas, agora, haviam dado pela falta de dois
prisioneiros. E o que se falava em todo o Reich era que Lodenstein
os levara embora. Ninguém sabia o que podia acontecer se os
pegassem. E era por isso que Mueller viera até o Complexo, ao
saber que Elie estava sozinha. Ele queria consolá-la.
— Quem sabe para onde foram? — perguntou Mueller. — Acho
que ele nunca mais voltará para cá.
— Talvez sejam somente rumores — ponderou Elie.
— Goebbels não espalha rumores — protestou Mueller.
— Mas por que o Comandante não o deteve?
As sobrancelhas de Mueller se uniram.
— Goebbels e o Comandante têm contas a acertar. Assim,
provavelmente, nada vai acontecer. Por enquanto.
Elie sugeriu que fossem até o refúgio para conversar em
particular. Ela planejara subir na frente e atirar entre os olhos de
Mueller, de modo que ele nunca viesse a descobrir Dimitri ou a
ameaçar alguém no Complexo novamente. Enquanto desciam pela
rua de pedras, recordou-se do que Goebbels lhe dissera sobre
fuzilar as pessoas. Sua mão está apenas se comunicando com o
gatilho. É a arma que está atirando. Ela pensava nisso ao passar
apressadamente pela casa dos Solomon e entrar no banheiro. Mas
o refúgio estava ocupado e tiveram que voltar. Elie deixou Mueller
pegar seu braço.
Eles passaram outra vez diante da casa dos Solomon. Dimitri,
que estava à janela de persianas metálicas, abaixou-se, e Elie
apontou para as nuvens no céu. Ela controlou o tremor de suas
mãos.
— O que foi aquilo? — perguntou Mueller, olhando para a janela.
— O gato dos Solomon — respondeu Elie.
— E desde quando eles têm um gato?
— Há meses.
— E qual é o nome dele?
— Mufti.
— Um gato com um nome assim deveria ficar lá fora — disse
Mueller.
Eles chegaram à extremidade da mina e ele sentou-se num
banco, perto do poço. Batendo com a mão no espaço a seu lado,
disse:
— Sente-se. Quero saber como posso ajudá-la.
Elie se obrigou a sentar e Mueller pressionou seu anel contra o
ombro dela — com tanta força que parecia carimbar sua pele. La
Toya apareceu, vindo do salão principal, e Mueller o encarou.
— Quem consegue conversar perto dessa piada de local de
trabalho? — resmungou ele.
— Ninguém — disse Elie. — Vamos lá para cima.
E desta vez, pensou ela, nada poderá me impedir de atirar em
você.
Mueller abraçou-a dentro do poço e subiu a rampa segurando
sua mão, dizendo que estavam dançando um minueto e era uma
pena que a cama deixasse pouco espaço no quarto para dançarem.
Mas, quando alcançaram a porta, seu rosto se contorceu e ele
precisou se apoiar no batente.
— Meu Deus, homem! — exclamou ele, como se falasse
sozinho. — Pensei que você tinha nos deixado para sempre.
Elie se virou e viu Gerhardt Lodenstein de pé ao lado do
clerestório. Chegara a pensar que nunca mais tornaria a vê-lo.
Ainda assim, lá estava ele, em pé diante dela — ileso, vibrante —,
como as pessoas que morrem e reaparecem nos sonhos. Ele estava
com a barba por fazer e vestia seu amassado suéter verde, que
procurara rapidamente, espalhando meias no chão e jogando sua
bússola sobre a cama. Isso agradou a Elie, que em geral odiava a
bagunça. Bastou para convencê-la de que ele estava realmente de
volta. Ela correu em sua direção, ele a abraçou e pôde ouvi-la
chorando. Mueller mexeu numa medalha de seu casaco e
finalmente disse:
— Ouvi dizer que você fez uma baita viagem.
Lodenstein olhou para Mueller como se estivesse prestes a dizer
algo perigoso. Mas conseguiu sorrir e apertar sua mão.
— Foi gentil de sua parte vir até aqui — disse ele.
— E como não viria, com a pobre Fräulein Schacten sozinha e
você passando por situações horríveis?
— Você se refere aos rumores que pairam sobre mim como
corvos? Não foi nada aterrador. Nem mesmo aquela sala de espera
verde.
Mueller mexeu outra vez em sua medalha, e Lodenstein segurou
a bolsa de lona que Mueller trouxera consigo, prevendo passar a
noite no Complexo.
— Eu gostaria de poder oferecer-lhe um conhaque. Mas querem
que você volte para Berlim.
— O que você quer dizer? — perguntou a Lodenstein.
— Não sei. É um segredo, como todas as suas missões.
Elie escutou a conversa em transe. Ela saiu com os dois homens
e juntos atravessaram o atalho de pedras, as botas fazendo um
ruído áspero. Um vento soprou neve fresca na direção deles e Elie
pegou o braço de Lodenstein, temendo que ele desaparecesse se
não o segurasse. Quando alcançaram o Kübelwagen de Mueller, o
general pegou a bolsa de lona de Lodenstein e a lançou no chão.
Ele pegou sua faca. Elie apalpou seu revólver.
— Você está satisfeito agora? — perguntou Mueller.
— Com o quê? — quis saber Lodenstein.
— Com os resultados.
— Ninguém anda satisfeito atualmente — refletiu Lodenstein.
— É mesmo? — Mueller pegou um lenço e começou a polir sua
faca, como se estivesse passando manteiga numa torrada. — As
pessoas simplesmente não são mais as mesmas.
— Goebbels me pareceu o mesmo.
— Isso é porque você não o conhece tão bem quanto eu —
retorquiu Mueller. Ele pigarreou. — Aliás, um gato a mais não é um
problema. Ou talvez até uma criança, embora isso possa acabar
ficando sério. Mas dois fugitivos, isso é diferente.
— É por isso que eles não estão aqui — disse Lodenstein.
— Ótimo. Porque, qualquer dia desses, Goebbels fará de fato
uma visita. Ou ele poderá enviar alguém que realmente se pareça
com ele. Ou, talvez, dez pessoas que finjam ser ele. Ouça o que eu
estou lhe dizendo: você está procurando problema.
— Não estou entendendo o que quer dizer.
— Você pode até jogar Paciência Persa. Mas você não sabe
blefar — disse Mueller. — Portanto, acho que você entende.
Ele ergueu sua faca contra o sol — Elie viu a luz brilhando na
lâmina. Depois, ele a guardou e se aproximou de Elie e puxou
Lodenstein pela manga do suéter: Elie viu de perto seus cabelos
gordurosos e sentiu o cheiro de sua repugnante brilhantina.
— O Reich é exatamente como qualquer outro gabinete com
uma missão — disse ele. — A longo prazo, as pessoas morrerão ao
aparecerem nos lugares errados. E o mesmo acontecerá com quem
as esconderam.
— Só um imbecil não sabe disso — reagiu Lodenstein.
— Então, deve haver alguns imbecis por aqui — disse Mueller.
Lodenstein sorriu e apertou a mão de Mueller. Ela parecia duas
vezes maior dentro da luva de couro.
— Faça uma boa viagem — desejou, finalmente.
Mueller se foi com seu Kübelwagen roncando pela estrada, como
uma fera perigosa. Elie e Lodenstein observaram-no sumir na curva.
Depois, Lodenstein apressou-a para voltar à cabana, dizendo que
estava frio, enquanto ele seguia até seu jipe. A luminosidade se
tornara uma cerração leitosa; aquela hora semissonolenta em que
as extremidades do mundo começam a perder a nitidez de seus
contornos. Lodenstein caminhou até seu jipe, e Elie notou uma
desordem de cobertores, sinistros panos que se mexiam sozinhos.
E, então, ela viu duas figuras emergirem — tão magras e
insubstanciais que mais pareciam fumaça, ou sombras. Lodenstein
as aqueceu com outros cobertores. Em seguida, os três
caminharam em direção à cabana. Elie começou a tremer quando
ouviu o gelo estalar no chão. Era como se a primavera começasse a
desabrochar dentro dela, como se todos os momentos que vivera se
reunissem de uma vez. As silhuetas se aproximaram da porta.
— Elie Kowaleski — disse uma voz sob os cobertores. — É
você, mesmo?
C
Elie não conseguia parar de olhar para o rosto de Asher quando
ele se sentou na rua de pedras, observando o falso céu. Não
parecia um rosto de verdade, mas uma pele cinzenta esticada sobre
ossos, um conjunto de ângulos e cavidades, uma substância feita de
exaustão e de fome — não um rosto. A pele retesada, a carne por
dentro que não existia mais. Seus olhos eram a única coisa que
parecia viva. Ainda assim, ela podia ver tudo naquele rosto — cada
disparo que ele escutara em Auschwitz, cada momento em que vira
pessoas morrerem. E a pessoa que conhecera em Freiburg, ela
podia ver também: o homem preocupado com a esposa que fazia
conferências entusiasmantes sobre Leibniz. O homem que ficava
lendo tarde da noite.
Elie e Lodenstein estavam retirando engradados do depósito que
Gitka havia mostrado a Maria horas antes. Seria o quarto em que
Asher e Daniel ficariam. Os dois se abaixavam e se mexiam no
ritmo das pessoas acostumadas a trabalhar juntas, como se jamais
tivessem se separado — e isso surpreendeu Elie. Ela se lembrou da
grande força de Lodenstein. As caixas pareciam levíssimas quando
ele as levantava. E o modo característico como puxava para trás
seus cabelos, rapidamente, como se não tivesse um segundo a
perder. A pilha se desequilibrou e ele deslocou as caixas para perto
do trompe l’oeil que conduzia ao túnel. Elie encontrou colchões,
cobertores, lampiões e um abajur Tiffany para prender na parede.
Ela parou na casa dos Solomon e entrou para dar uma olhada em
Dimitri. Em seguida, ela e Lodenstein foram buscar água na
cozinha.
— Meu Deus, tive medo de nunca voltar a vê-lo! — disse Elie,
entregando-lhe um copo d’água.
— Também senti esse medo. Você não imagina quanto.
— Você está aborrecido porque ele me conhece?
— Neste momento, não. Estou apenas feliz em vê-la.
— Você está dizendo isso para ser simpático? Ou é o que
realmente sente?
— Em grande parte — respondeu Lodenstein.
Asher começou a tossir e Elie levou-lhe um copo d’água. Daniel
ainda estava na rua, observando o céu imóvel. Asher se instalara
sobre um colchão no depósito.
— Jamais repita meu nome de família aqui — ela lhe disse. —
Agora, eu me chamo Elie Schacten.
Asher sorriu.
— Então você tem um pseudônimo. Como todo mundo durante a
guerra. Você apenas conseguiu novos documentos ou foi
rebatizada?
Elie disse que conseguira novos documentos e se deu conta de
que não se lembrava de como ela e Asher costumavam conversar.
Era uma língua de nuances, ironia e duplo sentido. Agora, ela falava
uma língua de tempo de crise, que era urgente, truncada e literal. Às
vezes, ela ressurgia com intimidades e revelações comuns, do
modo como as pessoas trocam confidências, quando nunca mais
voltarão a se ver. Mas, além dos momentos de perigo, suspense e
alegria, ela nunca passara muito tempo na companhia de alguém
que ajudara a resgatar. Finalmente, ela disse:
— Vocês estavam em segurança no trem?
— Duvido, tentei dormir, mas fiquei imaginando que seríamos
fuzilados. A única coisa que tornava tudo suportável era Gerhardt
Lodenstein. Acho que ele é uma espécie de anjo, e eu nem acredito
em anjos.
— Também acho — disse Elie. — E tampouco acredito neles.
— Mas para onde ele nos trouxe? Um paraíso movido a
roldanas?
— Ele os trouxe para um lugar onde nós respondemos às cartas
das pessoas que provavelmente estão mortas agora.
Asher se retraiu.
— Deve haver muito trabalho, então — refletiu ele.
Elie lamentou não se lembrar de como costumavam brincar
antes, nem que fosse para apagar a expressão que ela via em seu
rosto.
— Só escrevem para pessoas cujas cartas retornaram. É aí
dentro — disse ela, apontando para as caixas — que colocamos as
respostas.
— Retornaram de onde?
— Dos campos de concentração — respondeu Elie.
— Você recebeu alguma carta minha?
— Não. Mas recebemos uma carta endereçada a você, junto da
receita para os óculos de Heidegger. Essa é uma pequena parte da
razão de vocês estarem aqui.
Eles foram interrompidos por Stumpf, que passou andando ao
lado deles com passinhos afetados e arrumou algumas caixas perto
do trompe l’oeil.
Asher viu o uniforme de Stumpf e recuou contra a parede.
— Vocês têm guardas aqui? — perguntou ele.
— É só um lacaio — respondeu Elie.
— Eu não acho. Na minha opinião, este lugar é igual a
Theresienstadt.
Ele estava se referindo a um campo de concentração na
Tchecoslováquia, com algumas ruas agradáveis e casas decentes
que eram uma fachada para as visitas da Cruz Vermelha. As
crianças cantavam numa ópera e eram enviadas para uma câmara
de gás em Auschwitz no dia seguinte.
— Ninguém morre aqui — disse Elie.
— Isso é um alívio.
Elie olhou diretamente para Asher. E lá estavam eles: os
mesmos olhos azuis que ela vira em Freiburg.
— Você foi realmente para Auschwitz? — perguntou ela.
Asher olhou para ela do modo como fizera certa vez, quando Elie
disse ter certeza de que sua esposa estava em segurança. Elie
olhou para as próprias mãos. Estavam marcadas pela luminosidade
vermelha e branca do abajur, e ela as observou de diferentes
ângulos, até Lodenstein chegar com duas tigelas de sopa.
— Só duas tigelas de sopa? Onde estão a salsicha e o pão?

C
Naquela noite, Elie e Lodenstein dormiram no antigo quarto de
Mueller, para ficarem próximos de Asher e Daniel, que repousavam
no depósito que havia abrigado as caixas. Estavam perto da parte
principal do Complexo e podiam escutar os sobressaltos dos
escribas adormecidos — um som que outrora Lodenstein achara
lúgubre e agora considerava reconfortante, pois era familiar e
humano, não o ruído das chaves de um carcereiro e dos disparos
em Auschwitz. Ele se sentira próximo de Elie quando desejaram
boa-noite a Asher e Daniel. E se sentiu próximo dela quando
desejaram boa-noite para Dimitri. Haviam falado suavemente, como
quando se dá boa-noite às crianças. Mas, agora, ele sentia uma
tensão misteriosa, como se o ar entre eles vibrasse feito uma corda
muito esticada. Ele se inclinou e abriu a bolsa de lona que trouxera
de Auschwitz.
— Elie, tenho uma surpresa para você. Sabe a comida que você
sempre consegue? Finalmente trouxe alguma coisa também.
— Meu Deus! — exclamou ela. — Você se saiu muito bem.
Lodenstein abriu uma garrafa de vinho.
— O melhor — disse ele. — E agora, as pessoas que o
merecem podem bebê-lo.
Elie sorriu e se inclinou em sua direção.
— Sinto muito por nunca ter dito meu nome verdadeiro.
— É um nome comprido — disse Lodenstein. — Eu nunca
conseguiria me lembrar.
— Você está tentando ser gentil?
— Só um pouquinho. Mas só quero saber uma coisa: vocês dois
já ficaram juntos, alguma vez?
Elie hesitou. Depois, disse:
— Em Freiburg, sim. Sua esposa tinha ido embora. O Partido
estava começando. E ambos nos sentíamos muito sozinhos.
Lodenstein tomou um longo gole de vinho e enxugou a boca com
a mão, como se quisesse apagar alguma coisa.
— Isso não importa mais — disse finalmente. — Salvamos duas
pessoas.
Ele se aproximou de Elie no escuro. Mas Elie sentou-se e
abraçou as pernas.
— Mas não é só isso — sussurrou ela.
— Como assim?
— Mueller sabe.
— Sabe do quê?
— Mueller sabe que você saiu de Auschwitz com dois fugitivos.
Ele disse que todo o Reich está a par disso. Disse que as pessoas
estão espalhando rumores.
— As pessoas fazem isso o tempo todo, e não dá em nada —
disse Lodenstein. — Não pense nisso. Beba um pouco mais de
vinho.
— Mas ele chegou a ver Dimitri.
— Não se preocupe — disse Lodenstein. — Dimitri está em
segurança. Asher e Daniel estão em segurança. Todos nós
estamos.
Ele colocou a garrafa de vinho no chão e repetiu aquelas
palavras — Não se preocupe, não se preocupe — tantas vezes que
pareceu uma canção infantil. Elie ergueu o cobertor e ele caiu em
seus braços. Fazia tanto tempo que não sentia a força maleável de
seu corpo... E tanto tempo desde que sentira aquela sensação de
luz, unindo um ao outro... E o ato de fazer amor parecia a
culminância de todos aqueles momentos em que pensara nela — na
cela de tijolos, na imensa cama no Reich, segurando sua rosa,
viajando num trem vazio vindo de Auschwitz. Elie adormeceu. Ele
afagou seus cabelos e foi adormecendo, sentindo a tensão em seu
corpo se esvair pelo chão. Mas, quando estava prestes a pegar no
sono, despertou violentamente. Em meio à exuberância do encontro
com Elie — ouvindo sua voz, dividindo o vinho, fazendo amor — ele
esquecera que estavam no antigo quarto de Mueller. Agora, porém,
ele via as colunas da cama em pau-rosa como se fossem mastros
de um navio fantasma num mar bravio. Viu a faca de Mueller. Sentiu
sua luva enorme. Ouviu sua voz falando sobre os fugitivos. Um
indizível ato de traição, podia ouvi-lo dizendo. Uma flecha da morte
apontando para tudo sob o chão.
Lodenstein livrou-se das cobertas. Ali, no coração do Complexo,
sentiu-se repentinamente sepultado sob dez metros de terra. Ele
tinha sido preso, tinha suportado Goebbels, viajado para Auschwitz,
aturado Heidegger, resgatado duas pessoas. Mas o perigo era
ilimitado, infinito. Ele não tinha ideia do que devia fazer. Sabia
apenas que precisava respirar.

C
Lodenstein seguiu pelo poço e passou por Lars, que exibia uma
aparência jovial e despreocupada, dormindo sobre um estrado na
noite gelada. Naquele instante, ele sentiu desprezo por tudo que
formava o Complexo: o falso trailer, a rua de pedras, os baralhos
das pessoas que haviam sido sufocadas com gás. Sentiu desprezo
pelo caminho da frente com pedras propositadamente lascadas,
porque Hans Ewigkeit queria que parecessem antigas. Sentiu
desprezo pelo fato de que algo que nem sequer devia existir, desde
o início, fora criado para parecer normal.
Ele ouviu o som das próprias botas quebrando o gelo que cobria
o campo e subiu a escada estreita até o posto de observação.
Estava escuro e as estrelas estavam distantes, pequeninas moscas
brancas que nunca conseguiria alcançar. Ele procurou cigarros
sobre a plataforma da torre de observação e encontrou uma guimba.
Ainda bem que tinha fósforos.
Repentinamente, tomou consciência de suas mãos, de suas
pernas, de todo seu corpo. Não ficara só desde que se dirigira para
Berlim, e a sensação era ao mesmo tempo familiar e perturbadora.
Sua respiração se acalmou. Ele tocou no corrimão de madeira e
olhou para o imenso céu noturno. Estava claro, com uma panóplia
de estrelas. Ele olhou para a clareira lá embaixo, onde montes de
neve refletiam o luar. Voltou a olhar para o céu, ainda salpicado de
estrelas remotas.
Ocorreu-lhe que as estrelas estavam sempre surgindo e
sumindo. Às vezes, havia luzes. Às vezes eram anjos, animais ou
deuses. Às vezes eram ofuscantes. Outras, nem sequer era
possível enxergá-las. Respirando fundo, ele olhou a fumaça fina sair
de sua boca e concluiu que Heidegger provavelmente entedia como
era sentir-se alheio a um mundo tornado seguro por fins humanos.
Um mundo frágil, pensou ele. Pronto para se despedaçar.
Essa impressão de fusão com a filosofia de Heidegger, ainda
que tênue, e por mais que não gostasse do filósofo, deu-lhe a
certeza de que nada jamais ficaria pior do que já estava. Mas sua
triste impressão de tranquilidade foi destruída logo que acabou de
fumar. Apalpando a plataforma de madeira em busca de outras
guimbas, tudo o que conseguiu foram farpas que entraram em suas
mãos.
Houve um farfalhar no bosque — um cervo correndo entre as
árvores. Lodenstein olhou outra vez para as estrelas e desejou
acreditar que fossem anjos, de modo que pudesse pedir-lhes para
preservar a segurança de todos ali. Mas já passara tempo suficiente
no Complexo para saber que todos tinham um momento de crença
em uma coisa ou outra, e tinha certeza de que ele só poderia
acreditar naquilo que achava que provavelmente aconteceria: a SS
cairia sobre eles como uma tempestade, descobriria Asher,
arrastaria todos os escribas e fugitivos pela rua de pedras e os
fuzilaria, um por um. Ele e Elie seriam obrigados a testemunhar
cada morte, antes de serem eles mesmos fuzilados, pois eram os
maiores responsáveis.
Ele continuou a procurar guimbas de cigarros, mas não
encontrou. Depois, arrancou uma lasca de madeira apodrecida da
plataforma e a arremessou lá embaixo. Cada pinheiro era um
membro da Gestapo. Cada clareira, um campo minado. Cada pedra,
um torpedo. Ele desceu da torre de observação, tropeçou numa
prancha de madeira e a lançou na direção de onde Mueller havia
estacionado seu Kübelwagen. Desejou que aquele pedaço de
madeira fosse uma arma com a qual pudesse matar Mueller com um
tiro entre os olhos.
Quando desceu para a mina, Elie estava sentada na cama.
— Estamos em segurança? — perguntou ela.
— Não — respondeu Lodenstein. — Não estamos em segurança
de forma alguma.
C
Marianne,

Não sei se você receberá esta carta neste manicômio. As pessoas


estão a ponto de escapar, mas se desencorajam e, depois, tentam
escapar assim mesmo, só para serem fuziladas. Outro dia, dois
homens atacaram dois soldados da SS, vestiram seus uniformes e
saíram dirigindo um caminhão. Ao que parece, conseguiram
alcançar a fronteira. Houve dez enforcamentos no pavilhão de celas
onde estavam. Com tantos planos sendo preparados, consegui
trocar meus sapatos extras por um bom pedaço de pão. Assim
poderei guardar para você.

Com amor,
Luca
Desde quando tinha sido levado para lá, oculto sob os cobertores,
Asher Englehardt não sabia o que pensar do Complexo. O céu
imóvel e o imenso salão, onde mais de cinquenta pessoas em
casacos de pele e luvas sem dedos passavam horas respondendo
aos mortos ou escrevendo numa língua imaginária — sem
mencionar os estranhos jogos de palavras, sorteios de cigarros pela
metade e gritos noturnos —, era a essência do purgatório. O que
outrora havia obviamente sido uma mina, agora tinha uma rua de
pedras, lampiões a gás e bancos de ferro fundido. Até o céu era
contraditório: a lua estava sempre em fase crescente. As estrelas
eram sempre as mesmas, noite após noite.
Às vezes, era difícil para Asher saber se aquelas pessoas
estavam vivas, mortas ou no limbo, uma mulher com a qual ele certa
vez tivera um caso e na qual não pensara durante anos havia
reaparecido misteriosamente e agora deixava comida à sua porta.
Cartas dos mortos aguardavam em caixotes do lado de fora de seu
aposento. O guarda com uniforme da SS calçava sapatos de lã.
E duas pessoas e o espectro de uma criança moravam em frente
a seu quarto improvisado com um abajur Tiffany, numa casinha com
um número, muito embora a rua nem sequer tivesse um nome.
Asher fazia questão de evitá-los, porque Daniel, após ouvir rumores,
dissera-lhe que aquela mulher havia falsificado a assinatura do pai e
fora o homem quem escrevera a ridícula carta para Heidegger —
uma carta que talvez lhe tivesse salvado a vida, mas assim mesmo
o assustara, em Auschwitz. Ele fazia incursões furtivas até a
cozinha para tomar café e mantinha-se afastado do banheiro que
ocultava a caverna secreta no teto. Ele nunca aparecia no salão
principal, onde os escribas conversavam e dormiam. Em vez disso,
ficava sozinho, lendo as histórias policiais que Lodenstein lhe
trouxera.
Daniel, por outro lado, descobriu o salão principal no terceiro dia
e começou a recuperar sua aparência humana depois de duas
semanas, durante as quais comia tudo o que Elie lhe oferecia. Ele
aprendeu também a consertar máquinas de escrever e às vezes as
mostrava para Asher, espalhando pelo chão teclas, bobinas e os
carros das máquinas datilográficas — espantando o pai com sua
capacidade para desmontá-las e remontá-las tão facilmente. E
também começara a dormir com Maria, criando atrito com Parvis
Nafissian, que berrava com ele e o chamava de putz.
Daniel contou para Asher que alguns escribas o admiravam e o
consideravam quase mítico. Ele viera de um lugar que eles tinham
conseguido evitar e era a prova de que tal lugar existia — e a prova
de que algumas pessoas podiam sobreviver e retornar.
No início, os escribas lhe perguntavam sobre alguns de seus
parentes e amigos. Mencionavam nomes e mais nomes, lugares,
cidades em outro canto da Europa, descrevendo as fisionomias em
detalhes. Quando se deram conta de que ele nunca os havia
encontrado, nem sequer um deles, começaram a fazer perguntas
sobre o campo de concentração. Invariavelmente, eles
questionavam a mesma coisa:
— Havia chaminés de verdade com fumaça de verdade?
— Havia — respondia Daniel. — Havia chaminés de verdade. E
a fumaça que saía delas tinha um cheiro doce.
Ele se queixou ao seu pai de que ninguém jamais perguntava
sobre as degolas à luz de vela ou sobre as pessoas que eram
fuziladas durante a lista de chamada matinal. Asher dizia que era
porque, normalmente, as chaminés faziam parte de algo seguro,
todas as casas com lareira tinham uma.
Portanto, se havia chaminés, ele concluiu, as pessoas
compreendiam como algo seguro podia se tornar perigoso.
Já fazia quase um mês que tinham chegado ao Complexo, e era
a primeira vez que conversavam sobre Auschwitz. Durante mais de
três semanas, havia sido suficiente compartilhar a comida, os
rumores sobre os Solomon, adormecer sabendo que não haveria
uma chamada matinal e acordar sem temer que seus utensílios de
alimentação tivessem desaparecido — roubados por algum outro
prisioneiro.
— Você deveria sair deste quarto e lhes contar sobre as
chaminés — disse Daniel.
— Nunca — respondeu Asher, jogando pedaços de pão na sopa.
— Tenho certeza de que este lugar é como Theresienstadt. Parece
bonito para que as pessoas sejam sufocadas pelo gás sem
perceber, até não conseguirem mais respirar.
— Não é bem assim — insistiu Daniel. — As pessoas são
cordiais.
— Não quero tomar parte nessa exposição.
— Não precisa. Você iria gostar.
— Já estive em muitos lugares que as pessoas disseram que eu
ia apreciar — emendou Asher.
— Você poderia aprender o sonhatório.
— Prefiro ler.
Daniel se encostou à porta parcialmente iluminada pelo lampião
a querosene. Seus cabelos estavam crescendo — lisos e louros
como os da mãe — e ele usava uma capa impermeável verde-
escura que podia ter pertencido a um de seus vizinhos. Sorriu para
Asher.
— Às vezes, tenho a impressão de que você não quer ver a
mulher que nos acolheu, quando chegamos — disse ele.
— De quem você está falando? — perguntou Asher.
— De Elie. Elie Schacten. Aquela que está sempre com um
garotinho. Foi ela que ajudou a nos salvar? Quem é ela?
— Uma antiga aluna. Eu a conheci em Freiburg. E estou feliz em
revê-la, mas prefiro ficar lendo. — Ele fez uma pausa, respirou
profundamente e então disse: — Eu notei que você não tem
dormido muito neste quarto, ultimamente.
— Prefiro o salão principal.
— Há alguém lá de quem você gosta também?
— Você sabe que sim — respondeu Daniel. — Isso o aborrece?
Asher balançou a cabeça em um gesto negativo. E se Daniel não
sobrevivesse à guerra? Esta seria sua única oportunidade de se
deitar ao lado de alguém com quem pudesse partilhar alguns
momentos de intimidade durante a noite. Sua única chance de sentir
o calor de outro corpo.
— Só tome cuidado. Este lugar certamente não precisa de um
bebê.
Daniel pareceu ofendido: era um Complexo de Escribas. Havia
cartas francesas em todo canto.

C
Alguns minutos depois de Daniel sair, Asher ouviu uma batida na
porta e foi abri-la. Talia Solomon surgiu à sua frente com uma nódoa
de ressentimento no olhar — afinal de contas, ela falsificara sua
assinatura e ninguém lhe agradecera por isso. Mas, logo em
seguida, ela sorriu e disse:
— Você gostaria de vir à minha casa para jogar xadrez?
— Numa noite de sexta-feira? Você não é ortodoxa? Ou... —
Asher sorriu — Talvez você não se importe mais com isso.
— Estou convidando-o para jogar xadrez, não para alguma
discussão acalorada.
Asher hesitou. Por um lado, ele adorava xadrez. Por outro, não
queria fazer parte de um mundo em que as pessoas vivessem no
limbo eterno, e os Solomon com certeza estavam entre elas,
especialmente depois de terem escrito a carta para Heidegger.
— Lodenstein sugeriu que eu o convidasse — acrescentou Talia.
— Ele disse que você vive como uma toupeira.
Asher reconsiderou ao ouvir aquele nome, porque Lodenstein
era o único membro do Complexo que, com certeza, estava entre os
vivos. Aquele homem havia ido até Auschwitz, visto Auschwitz, e
tinha retirado ele e Daniel de lá. Então ele seguiu Talia, mas, quando
viu a sala de estar dos Solomon, ficou perplexo novamente: uma
réplica do início do século, com cadeiras de veludo, tecidos
bordados em um hebraico disparatado e retratos de homens com
quipá na cabeça que, em princípio, nunca teriam se deixado
fotografar, pois considerariam a idolatria uma blasfêmia.
— Devia ter um piano — disse ele para Talia.
— Por quê? Ninguém aqui sabe tocar.
— Porque sim. O quadro estaria completo.
— E que tal um clavecino? — sugeriu Mikhail.
— Seria pedir demais — retorquiu Asher.
— Um violino, então?
— Não. Um piano. Com algumas partituras.
— Wagner, não.
— Não! Scarlatti.
Todos começaram a rir. Talia e Asher iniciaram uma partida de
xadrez e Mikhail se pôs a jogar Castelo Sitiado — um jogo que
Lodenstein lhe ensinara. Um pouco antes de Talia capturar um bispo
de Asher, ela lhe disse que talvez ele não percebesse como Elie
havia se empenhado para salvá-lo.
— O que isso tem a ver com o xadrez? — perguntou ele.
— Nada — respondeu Talia.
Asher tomou-lhe um cavalo.
— Por que então você mencionou?
— Eu estava apenas pensando em Elie — respondeu Talia.
Asher capturou outro cavalo. Ele tinha certeza de que eles
queriam lhe falar sobre a carta e perguntar se de fato ele conhecia
Heidegger. Não importava onde se estivesse nessa guerra, havia
sempre fofocas. Era uma parte trivial da vida que ajudava a todos a
seguirem em frente.
Mas ninguém mencionou coisa alguma, e foi Asher que ficou
pensando em Heidegger na sala do Comandante, em seu traje de
esqui e chapéu alpino enquanto um concerto de Mozart abafava os
disparos e a carta dos Solomon era brandida diante de seus olhos.
Asher tinha uma vívida memória de Auschwitz — cadáveres
pendurados como roupas nas cercas de arame farpado, a neve
derretendo e revelando o sangue, o fedor e a morte nas casernas,
seu pavor diário e dilacerante em relação à segurança de Daniel. A
ideia de que tudo era infinitamente reversível parecia bem remota,
assim como a agitação de Heidegger por não conseguir seus óculos
parecia absurda. Da mesma forma que suas visitas à loja do oculista
em Freiburg e suas piadas incessantes sobre a ironia de Asher
acabar naquela profissão. Lembrou-se das boas gargalhadas que
davam quando lecionava na universidade, e nas montanhas e vales
ao redor do chalé de Heidegger — os passeios pela Floresta Negra,
seus momentos de alegria e diversão. Mas tudo isso lhe pareceu
distante, um mundo no qual não acreditava mais. Ele nunca mais
voltaria a passear com Heidegger.
C
Armesto,

Faz tanto tempo que eu o vi e, agora, dizem que os prisioneiros que


não tiram os números de sorte estão trocando identidades com
prisioneiros que os tiram por um pedaço de pão. Mas como saber
qual é um bom número e qual não é? E quem pode mudar a sorte,
quando esses números estão marcados em seu braço para
sempre?

Com amor,
Tahari
À esquerda da janela, escondida de Lars, Elie observava Asher
jogar xadrez. Se, por um lado, sentia-se culpada por observar
clandestinamente, por outro, sabia ser inocente, porque queria se
certificar de que aquele homem macilento era realmente Asher
Englehardt — o homem que ela conhecera. O vidro coberto pelas
persianas metálicas da janela era espesso e dava ao interior a
impressão de estar submerso em ondas, aumentando a sensação
de que nada do que estava acontecendo lá dentro era verdadeiro.
Ela se escondera atrás do pé de peras artificial e sua luz malhada
se inclinava, à medida que o sol subia em sua ascensão irregular.
Elie aproximou-se do banco.
Sem dúvida, aquele homem jogava xadrez como Asher —
aparentando indiferença, mas sem estar de forma alguma
indiferente. Ele não parecia se concentrar no tabuleiro e entregava
as peças com desenvoltura. Elie viu sua expressão divertida ao dar
um xeque-mate em Talia, assim como fizera certa vez com ela, e em
seguida desafiá-la para outra partida — que Talia aceitou com certo
desagrado. Asher estava bebendo chá — algo que Elie observava
com grande interesse. Ele pôs um torrão de açúcar na boca e
mexeu a bebida primeiro para a direita e depois para a esquerda.
Ele lhe dissera certa vez que seu avô bebia chá mantendo o torrão
de açúcar na boca — um hábito dos camponeses — e gostava de
pensar sobre as marés enquanto o mexia, porque tinha certeza de
que, um dia, os cientistas as descobririam dentro de algo pequeno
como uma xícara de chá. Observá-lo era como ler um livro que ela
não abrisse havia muitos anos. Ela se inclinou mais contra a janela
e deu um passo para trás quando ouviu alguém se aproximar. Eram
Lodenstein, Stumpf — ambos com a expressão grave — e Dimitri,
correndo à frente. Ela beijou o menino e pediu que entrasse.
— Eu me arrependo tanto! — ela ouviu Stumpf dizer, com a voz
afetada. — Se houver algo que eu possa fazer...
— Você nunca conseguirá deixar de ser um idiota.
Stumpf se afastou furtivamente, como um cão que tivesse
apanhado. Como se aparentar mais formalidade desfizesse o
desastre que ajudara a provocar, ele passou a usar seu casaco
preto da SS dentro do Complexo. Estava apertado demais para ser
abotoado e subia nas costas quando ele andava. Todavia, ainda
calçava seus sapatos de lã, o que lhe dava uma aparência ainda
mais incongruente e infeliz. Elie observou Stumpf caminhar
melancolicamente em direção à cozinha. Lodenstein se aproximou e
ela se sentiu constrangida, como se estivesse de volta a Freiburg,
jogando xadrez, frequentando as aulas de Heidegger. Naquela
época, não acreditara que poderia haver uma guerra. Chegara
mesmo a dizer para Asher que sua esposa estava em segurança.
Ainda assim, uma pessoa que ela mesma dera por morta caminhava
agora em sua direção.
C
Alain,

Às vezes, fico pensando em você. Nada de feitos notáveis, apenas


pegando leite na geladeira ou deixando o gato entrar. Ainda assim,
considero essas lembranças preciosas só porque você é como é.
Não sei se voltarei a vê-lo.

Com amor,
Sylvie
No escuro, sob a macia manta cinza de Roterdã, Elie e Lodenstein
estavam outra vez deitados na cama. Tinham feito amor como se, a
qualquer instante, a Gestapo pudesse arrombar a porta e
precisassem se agarrar com toda a força para que nada os
separasse. Em momentos como esses, Goebbels, Mueller — toda a
noção do perigo em si — tornavam-se a substância dos medos
exagerados. Mas, durante o dia, com o sol brilhando através das
janelas do clerestório e a luz que parecia persegui-los, eles ficavam
preocupados. Lodenstein interrompia suas partidas de Paciência
para patrulhar a floresta, aterrorizado pela ideia de que um
destacamento da Gestapo ou da SS estivesse se aproximando,
dissimulado atrás das árvores. Elie fazia listas com os nomes das
pessoas que poderiam ajudar Asher, Dimitri e Daniel a entrarem
num barco para a Dinamarca e as queimava na floresta. Certa vez,
Lodenstein a surpreendeu pondo fogo a uma lista de nomes sob um
pinheiro.
— Não faça mais isso — disse ele. — Você nunca sabe quem
pode estar observando.
— Você também não devia estar aqui fora — argumentou Elie.
— Sempre trago minha arma.
— Eu também.
— Mas eu estou patrulhando. E você escreve a mesma lista
várias vezes. Por quê?
— Porque isso me acalma — respondeu Elie.
Ambos se sentiam paralisados pelas atitudes e pelas conversas
que não davam em nada. Se o que Mueller dissera era verdade,
todo o Complexo estaria implicado por ter acolhido fugitivos. Talvez
Maria estivesse segura — poderia se misturar aos outros escribas
durante uma inspeção. Mas precisavam levar Dimitri, Asher e Daniel
para a Dinamarca. Com frequência, Elie repetia o que um
guerrilheiro da Resistência lhe dissera certa vez: Um fugitivo é como
uma marionete com os cordéis vermelhos. O Reich pode rastreá-lo
até o fim do mundo. Ao que Lodenstein replicava: Não podemos
pensar dessa forma. É como fazer os raios de sol convergirem
sobre um papel num dia quente. Se continuarmos por algum tempo,
haverá fogo.
Depois, concluíram que Goebbels estava ocupado demais para
pensar nisso. Os russos tinham entrado na Silésia. Tropas aliadas
estavam se aproximando do Reno. E os alemães não tinham sido
capazes de desintegrar as forças aliadas na região de Ardennes.
Além do mais, não haviam recebido mensagem alguma do posto
avançado desde que Asher e Daniel tinham chegado.
Pensar em todos esses fatos os consolou. Mas só por algum
tempo. Então, na próxima vez que foram surpreendidos pela luz do
dia, eles voltaram a se sentir atemorizados — não apenas por causa
de Asher, Daniel e Dimitri — mas por todo mundo no Complexo. O
Reich se tornava mais brutal a cada fracasso. Havia rumores sobre
táticas de terra arrasada e mais planos de explodir as câmaras de
gás.
Como se o sol artificial pudesse reconfortá-los, às vezes eles
desciam e sentavam-se num banco de ferro fundido, tentando
elaborar uma estratégia — para conseguir dinheiro para um suborno
irrecusável que garantisse uma passagem segura até a Dinamarca,
ou para descobrir um lugar onde pudessem esconder Asher, Daniel
e Dimitri. Um dia, Stumpf saiu de sua torre de sentinela e se juntou a
eles. Sentou-se bem na extremidade do banco, como se não
merecesse tomar muito espaço. Então disse:
— Ah! Se eu tivesse levado os óculos certos! Poderia ter saído
sem deixar vestígios, e Goebbels estaria feliz.
Elie disse que, para começar, ele nunca deveria ter se envolvido,
e Lodenstein manteve-se calado. Por que mencionar que Elie nunca
deveria ter ido atrás dele? Mas quando Stumpf falou sobre Elie ter
conseguido a receita de bundkuchen de Frau Heidegger, ele gritou:
— Volte para a porra de sua torre! Nunca mais quero falar sobre
isso.
Em seguida, ele foi até a cozinha e serviu-se de um copo de
schnapps. Elie o seguiu.
— Você está aborrecido comigo também.
— Talvez. Mas eu não gosto de Stumpf.
— Você foi muito duro com ele, mesmo assim.
Naquele exato instante, Asher e Sophie Nachtgarten vieram do
salão principal e seguiram até o poço. Elie tentou impedi-los de
subir, mas Lodenstein segurou-a pela cintura.
— Deixe-os tomar um pouco de ar. Não há perigo hoje.
— Como se você pudesse ter certeza disso — disse Elie.
Sophie e Asher desapareceram pelo poço e caminharam pela
mina. Elie sentiu uma pontada no coração — não de ciúmes, mas
de dor. Vendo Asher e Sophie, ela começou a pensar nas outras
pessoas que vira com ele, pessoas que nunca conseguiria resgatar.
C
Querida Tessa,

Um soldado que diz conhecer você me pediu para transmitir uma


mensagem: Quando a guerra acabar, venha encontrar comigo. Mas
tome cuidado, Tessa. Você não sabe o que está acontecendo, com
as pessoas desertando o tempo todo.

Com amor,
Lottie
Asher viera até o salão principal naquele dia, depois de um mês
tendo se encontrado apenas com Talia e Mikhail. Ele ressentia-se
por terem escrito a carta para Heidegger, mas ainda assim os
Solomon eram um elo, uma corrente atada a Auschwitz e,
supersticiosamente — embora desprezasse as superstições —, ele
temia que, esquecendo-se de Auschwitz, alguma força inexplicável
o mandasse de volta para lá. Ele também adorava xadrez e a
ilusória justiça dos romances policiais, nos quais todos os
criminosos eram punidos. Mas, um dia, ele fechou um livro e se deu
conta de que andara imerso num mundo de assassinos
antissépticos e de pequenas vitórias sobre um tabuleiro de madeira.
— Estou impaciente — disse a Talia. — E esta é a única virtude
de se viver com medo. Não há nada parecido com a monotonia, o
tédio, o enfado.
Ele ficou surpreso por confiar em Talia, e ela percebeu o
espanto. A mulher sorriu e capturou o bispo dele.
— Você deve estar realmente entediado para pensar em todas
essas palavras — disse ela. — E acabou de perder duas partidas
seguidas. Por que não passa um tempo com os escribas?
— Vão me fazer perguntas — respondeu ele.
— Não as responda.
Talia sorriu novamente, e ele lhe retribuiu o sorriso, percebendo
que havia perdoado a ela e a Mikhail pela carta para Heidegger que
— ainda que absurda — salvara sua vida. Ele levou um romance
policial e sua estimada xícara de café — uma caneca azul e branca
da Holanda — até o salão principal, onde achou uma mesa e
almofadas para sentar-se num canto e ler. Os escribas viram os
números marcados em seu braço e se recordaram, como ocorrera
com Daniel, de quanto haviam estado perto daquele lugar e até que
ponto estariam dispostos a se aproximar dele novamente apenas
para mantê-lo em segurança. Eles decidiram também não
incomodá-lo perguntando sobre as chaminés. Exceto Parvis
Nafissian, que queria perturbá-lo, pois ainda estava aborrecido por
Daniel ter-lhe privado de Maria.
— É claro que havia chaminés — explicou Asher. — Trabalham
muito em Auschwitz. Funcionam vigorosamente.
Sophie Nachtgarten sorriu para ele.
— Chaminés vigorosas — disse ela. — Esta é uma ideia
interessante. Aliás, você deveria pegar um casaco, assim poderá ir
lá fora.
— Casacos de pessoas mortas? — exclamou Asher. — Vocês
estão respondendo às suas cartas neste momento? Querida Frau
Fulana, não só o seu esposo está bem, como estou agora usando
um casaco dele!
— Ouça — interrompeu-o Sophie. — Não há um de nós que não
tenha lutado com garra para chegar aqui. Não há um de nós que
não tenha mentido ou fingido conhecer idiomas e feito o que foi
possível para ficar longe de onde você estava. Portanto, qual o
problema se usarmos luvas, chapéus e echarpes que pertencem a
pessoas que estão mortas ou sendo devoradas por piolhos?
Ele a observou remexendo os casacos com uma irritação
crescente e ouviu lágrimas em sua voz:
— Perdi toda a minha família — disse ela. — Minha mãe, meu
pai, meus dois irmãos, suas esposas e minha sobrinha de quatro
anos. Acho que tenho o direito de escolher um casaco.
Enquanto falava, ela vasculhava os casacos até encontrar uma
jaqueta de couro com gola de pele.
— Isto vai ficar interessante em você — disse ela, a voz
novamente calma.
— Depois de tudo o que você acaba de me dizer? Não.
— Experimente, apenas — ofereceu Sophie.
Asher vestiu a jaqueta e Sophie recuou para vê-lo melhor.
— Coube. Agora, pode fingir que é um oficial dos bombardeiros
aliados.
— Não, a menos que use uma echarpe.
— Aqui está uma — disse Sophie, retirando uma de dentro de
um saco de aniagem. — Perfeito! Pode fingir que é um oficial
britânico em seu dia de folga.
— Vou precisar jogar críquete?
— Jogar cartas já é o bastante — retrucou ela, pegando em seu
braço. — Por favor, leve-me para tomar um pouco de ar. Vamos sair
deste poço.
Asher se recusou. Por mais que desconfiasse daquele complexo
no purgatório, ele considerava que essa versão perturbadora da
eternidade devia ser melhor do que ser fuzilado ou enforcado na
floresta. Além disso, sua simples presença no Complexo era
suficiente para colocar a todos em perigo. Ele precisava ficar
escondido sob a terra.
Mas houve um coro crescente de “não” e Niles Schopenhauer
disse que ele viera de um lugar do qual todos ali por pouco haviam
escapado, e em consideração a eles, Asher devia sair e tomar um
pouco de ar fresco.
Asher disse que eles não agiriam de modo assim tão heroico se
tivessem estado realmente em Auschwitz, e seguiu Sophie pela rua
de pedras, evitando o grupo cabisbaixo no banco. O elevador
rangeu quando eles o tomaram e os sons ecoaram como disparos.
Sophie conduziu Asher até a rampa, atravessaram o trailer e
chegaram à clareira coberta de neve. Asher a seguia lentamente,
olhando a floresta. Sophie o estimulava a continuar. Era a primeira
vez em meses que podia ver o céu de verdade. O azul era
extraordinário, com nuvens brancas avançando, miraculosamente
ligeiras. Havia pouco tempo, ele se sentira como uma sucata,
coberto de farrapos, mais leve do que o vento. Agora, podia sentir o
peso de seu corpo, a substância, a gravidade. Tinha a impressão de
ser mais alto do que as árvores. Ele tocava em seus próprios
braços, pernas e no rosto.
Sophie continuava motivando-o, até alcançarem o poço de água.
E, embora seu rosto tremulasse na superfície da água, Asher pôde
ver que não era mais a fisionomia de um esqueleto, mas o rosto de
um homem vivo. Sophie passou-lhe a grande concha de metal.
— Beba! — ofereceu ela.
Asher bebeu. A água nunca lhe parecera algo tão gostoso.
C
Diane,

Você provavelmente está sabendo sobre a insurreição. Alguns dos


prisioneiros que remendavam uniformes encontraram um jeito de
invadir um arsenal. O tempo se esgotou e eles tiveram que levar as
armas de volta. Dois dias depois, eles as pegaram novamente.
Foram todos mortos, mas antes de morrerem eles mataram o oficial
com quem eu tinha que dormir. Ele estava protegendo meus pais,
por isso estou com medo...

Com amor,
Homa
Quando voltou do poço de água, Asher mal olhou para Elie, que
estava sentada à sua imensa mesa. Ela fizera parte daquilo que
acontecera antes de sua vida ser rompida em duas, e ele não queria
que fizesse parte dela agora. No fundo — como a trajetória de um
bumerangue no pensamento —, ele se perguntava se o caso entre
eles tinha alguma relação com o fato de sua esposa se engajar tão
cedo na Resistência, o que viria a resultar em sua morte. E, apesar
de ter conhecido Elie após o desaparecimento da esposa, ele
decidiu que tinha, e não lhe importava o fato de Elie ser responsável
por encontrar-se agora naquela masmorra, e não em Auschwitz. Ele
olhou para ela, por cima de seu romance policial, e se recordou de
tudo que havia sido desagradável no caso que tiveram: escondiam-
se em cafés, onde as pessoas da universidade não podiam vê-los;
faziam amor sobre os arquivos de seu escritório. Fora uma época de
muitas chuvas, e eles estavam sempre procurando abrigo sob as
marquises. Uma vez, Elfriede Heidegger passou e os viu. Desde
então, ela o tratara com desdém.
Ele se perguntava também por que Elie Kowaleski mereceria
toda aquela adoração, enquanto outras pessoas estavam morrendo
como moscas. E como uma aluna de linguística discretamente
rebelde havia renascido como uma estrela naquele mundo
subterrâneo. Quando ela voltava de uma missão, as pessoas
aplaudiam. E, às vezes, sem qualquer razão aparente, brindavam a
ela. O que ela fizera para merecer aquilo? Como ela conseguia
tanta comida?
Ainda assim, quando Gerhardt Lodenstein sentava-se à mesa de
Elie — como naquele momento —, Asher observava todos os seus
movimentos. Com frequência, eles pareciam apaixonadamente
assustados, e a intensidade de sua absorção fez Asher perceber
que se sentia solitário, porque fazia muito tempo desde que tivera
uma relação íntima o bastante para compartilhar o medo que sentia
com outra pessoa. E, muito embora ele já tivesse havia muito tempo
se esquecido de Elie, começou a sentir ciúmes de Gerhardt
Lodenstein — um sentimento que o perturbava, porque Lodenstein
lhe salvara a vida, e a vida de Daniel, e por pouco não morrera ao
fazê-lo.
Agora, ele se erguia, mantendo-se próximo da mesa de Elie,
fingindo estar fascinado com o monte de rebotalhos contra a parede.
Não conseguia escutar o que ela e Lodenstein estavam falando,
mas ouvia o tom de suas vozes. Era obviamente um tom alterado,
com um laivo de ansiedade, ou até raiva.
Ele se virou e deparou com o olhar de Lodenstein, que lhe sorriu
— um sorriso de trégua e boa vontade. É claro que ele sabe,
pensou Asher. E, quer saber?, não se importa muito.
Dificilmente ele pensava sobre o passado durante a guerra, pois
estava preocupado demais com a segurança de Daniel e com o
desaparecimento da esposa. Mas o rosto de Elie abria uma
comporta para tempos bem anteriores à guerra, tempos em que
algo tão simples como uma conversa podia deixá-lo feliz. Lembrou-
se de sua esposa lendo à noite, um facho de luz sobre o rosto, e
Daniel indo para cama querendo ouvir uma história. Ele se recordou
da neve sobre a claraboia, o clima ameno após o inverno, as
primeiras aulas no outono. Tudo aquilo fora uma patética impostura
em relação ao que havia sido sua vida desde então — até mesmo
aquele mundo subterrâneo. E toda vez que via Elie, ele era
arremessado para o mundo de outrora, do qual queria se esquecer,
porque nele havia sido feliz.
Ele mal direcionou o sorriso para ela e voltou para suas
almofadas, onde mergulhou em outra história policial e pensou
sobre a época em que fora relegado ao antes da guerra: pensou em
sua esposa tocando Mozart. Daniel fazendo o dever de casa, no
lugar desta dedicação absurda às máquinas de escrever. E pensou
em sua casa, cheia de plantas e livros. Ele se irritava com os
escribas, que se comportavam como crianças — escrevendo em
códigos secretos, inventando idiomas, se exaltando num clima de
privilégio e inquietação. Estava cansado de ver o amassado suéter
verde de Lodenstein e a bússola excêntrica que carregava
frequentemente consigo. Odiava também Mikhail e Talia Solomon e
a preocupação deles com o jogo de xadrez, como se fosse algo
grave. Assim como Dimitri, com sua coleção de selos.
C
Minha querida irmã,

Onde você está, quando eu venho até o limite do pavilhão das


celas, à noite? Dizem que você está encarregada de alimentar os
coelhos, mas ouvi falar em enforcamentos à luz de vela,
especialmente de moças com menos de vinte anos. Preciso que
você venha para fora, assim posso ver seu rosto.

Com amor,
Gijs
Um dia, quando Asher estava atormentado por pensamentos como
esses, La Toya lhe disse que queria discutir algo a sós. Asher falou
que nunca iria para aquele refúgio sobre o banheiro, onde as
pessoas se sentavam, ouvindo os outros urinarem e defecarem.
Então, La Toya sugeriu que fossem até o poço.
Era início de primavera e a neve estava derretendo. Asher viu
que já havia grama na clareira e os freixos começavam a brotar.
Não havia mais a neve que podia tornar as coisas infinitamente
reversíveis. Era um mundo diferente, sem camuflagem. Eles
seguiram por entre as poças de lama e La Toya lhe perguntou o que
havia entre ele e Elie Schacten. Asher segurou com mais força a
alça do balde que estava carregando.
— Nada. Por que a pergunta?
— Você parece aborrecido com ela — disse La Toya.
— Não estou, não.
— Dizem que vocês se conheceram em Freiburg.
La Toya apontou para o céu. Estava azul e as nuvens
trafegavam como comboios de algodão.
— Você teria visto algo assim em Auschwitz? — perguntou ele.
— Não tenho a menor ideia. Por quê?
— Porque Elie salvou sua vida.
— Não é verdade. Foi Lodenstein.
— Então, por que você acha que ela lutou por você?
— Não sei do que você está falando.
— Então vou lhe contar — disse La Toya. — Ela estava tentando
encontrar uma maneira de ver Heidegger e informar a ele onde você
estava. Ela achava que a esposa dele conseguiria tirar você de lá.
— Elfriede jamais gostou de Elie.
— Nós todos ouvimos a história sobre o bundkuchen — disse La
Toya. — Mas Elie é persuasiva. Onde você acha que arranja pão
fresco? E boas salsichas? Como é possível que haja sempre
mantas de casimira para as pessoas que precisam de cobertas? E
tantos schnapps? Você acha que caem do céu? Não. Tudo isso é
graças ao sufoco que Elie tem de passar e aos favores que faz para
as pessoas.
— Talvez você tenha razão — disse Asher. — Mas nós dois mal
nos conhecemos.
— Não é o que dizem.
— O que dizem, então?
— Você pode imaginar. As pessoas sabem de tudo, assim como
sabem sobre os campos de concentração.
— Mas não param de perguntar sobre as chaminés. Por que não
param?
— Porque... — respondeu La Toya — há uma diferença entre
saber alguma coisa e acreditar em alguma coisa. Eles sabem sobre
as chaminés, mas não acreditam nelas até que tenham falado com
alguém que as viu.
Eles voltaram ao trailer sem derramar sequer uma gota de água.
La Toya disse que o trabalho havia sido bem-feito, e Asher falou que
em Auschwitz aprendia-se a não desperdiçar água. Mas ele não
estava pensando em água. O que La Toya disse ficou na sua
cabeça até bem depois de retornarem ao Complexo, e, no final
daquela tarde, ele foi até a mesa de Elie. Ela fechou bruscamente
seu caderno vermelho e olhou para ele, como se estivesse
esperando outra pessoa — ninguém em particular, mas não ele.
— Quero agradecer a você — disse ele.
Mas Elie não o ouviu, porque alguém havia inventado uma
palavra para o sonhatório e os escribas a tinham achado hilária.
— O quê? — indagou ela, enquanto o som das gargalhadas os
envolvia.
De repente, Asher se sentiu envergonhado pela própria gratidão,
como se isso pudesse destruir a concha de proteção que ele teria
julgado necessária a si. Ele lhe disse que precisava de mais fitas de
máquina de escrever.
— Não sei para quê, se você só lê romance policial — disse Elie.
— É, mas eu vou começar a usá-las. Os mortos mal podem
esperar para ler minhas repostas.
— Ora, me poupe — repreendeu Elie.
Mas seu sorriso lhe trouxe a lembrança da primeira vez que
haviam se encontrado em Freiburg — numa festa na casa dos
Heidegger, diante de uma impressionante mesa de sobremesas. Ele
voltou para sua mesa e se recordou como sua esposa desaparecera
sem deixar vestígio, dizendo-lhe que ia para Berlim ajudar um aluno
de piano e, em seguida, o beijou, abraçou Daniel e desceu a escada
apressadamente.
Depois de Asher conseguir a fita de que não precisava, ele
começou a pensar no que teria acontecido se tivesse ficado com
Elie. Imaginou vidas diferentes — uma na qual ele lecionaria em
Cambridge e daria longos passeios pelo parque municipal. E outra,
na qual escapavam para a Argentina e administravam uma loja de
secos e molhados. Ainda outra, em que o navio para a Argentina
afundava. Vidas paralelas, escreveu ele num pedaço de papel,
como um truque de mágica, que torna vida e morte irreversíveis. Foi
a primeira vez que o viram escrever alguma coisa.
Gitka disse:
— Aquele cadáver está começando a relaxar.
C
Abella,

À noite, converso com um oficial. Ele diz que me ama. E me dá mais


comida, garantindo que irá procurar meus pais. Acho que ele está
tentando descobrir mais sobre a insurreição. Por favor, venha até a
cerca do pavilhão das celas. Não há ninguém vigiando por perto.

Leticia
Asher propôs uma nova frase para o sonhatório — infinitamente
reversível. Ela o fazia lembrar-se da neve fresca em Auschwitz
cobrindo poças de sangue, cadáveres e cordas, assim como da
neve velha que derretia revelando tudo. Fazia-o lembrar de si
mesmo também: a forma como haviam lhe dado uma vida, ele a
tinha rejeitado, e agora davam-lhe parte daquela vida novamente.
Os escribas aplaudiram, e Asher ganhou dois cigarros. Ele ofereceu
um a Elie.
— Oh, não! — exclamou ela. — Você os merece.
— Então fume um comigo — propôs ele.
— Bem, talvez uma quarta parte dele.
Eles saíram para o salão e sentaram-se num banco de ferro
fundido. Asher disse que era bom que os mortos pudessem receber
suas respostas numa atmosfera tão agradável.
— Você não perdeu seu sarcasmo — disse Elie. — Você nem
sequer parece estar contente por se encontrar aqui.
— Eu estou — respondeu Asher. — Principalmente por Daniel,
embora tudo que lhe interesse seja desmontar máquinas de
escrever e dormir com Maria.
— Mas não está contente por você mesmo?
Asher tragou intensamente seu cigarro. Ele vestia uma camisa
com as mangas arregaçadas. Elie olhou para os números azuis em
seu braço e disse que eram quase da cor de seus olhos. Ele pôs a
mão na cabeça, lembrando-se da manhã em que fora tatuado por
um companheiro de prisão — a agulha desenhando números que se
tornaram seu único nome no campo de concentração. Elie observou
e disse:
— Talvez, somando todos, o resultado seja um número de sorte.
— Você também acredita nessa bobagem de ocultismo?
— Foi apenas uma ideia engraçada — respondeu Elie.
Asher somou os números e o resultado foi nove, o número do
sacrifício.
— Talvez tenha alguma coisa a ver com isso — disse Asher.
— Talvez — aquiesceu ela, começando a costurar a manta que
ela vinha remendando, concentrando-se de modo tão determinado
no que fazia que Asher teve certeza de que ela sabia que ele a
estava observando.
— Elie, estão dizendo que você salvou Daniel e eu.
— Depois de muita confusão — disse ela. — As coisas são
assim, atualmente.
Ele segurou sua mão.
— Obrigado.
O poço começou a ranger. Elie se assustou e se levantou.
— Então, ainda é um segredo — disse Asher.
— Nada é secreto aqui — disse Elie. — Não acho que alguma
coisa precise ser.
C
Querida Eliza,

Você não imagina o que eu descobri, mas preciso contar


pessoalmente. Encontre comigo na caserna.

Com amor,
Andreas
Embora Daniel dormisse agora com os escribas, Asher Englehardt
continuava passando a noite no pequeno depósito, indiferente a
Sonia Markova e Sophie Nachtgarten, que tinham deixado claro que
lhes agradaria dormir também naquele cômodo — embora não ao
mesmo tempo.
Daniel ainda levava máquinas de escrever para o aposento de
Asher e, um dia, colocou uma máquina sobre a cama e começou a
desmontá-la, até só restar a carcaça e o chão ficar coberto por
misteriosas peças de metal. Depois, ele explicou cada mecanismo
— como funcionava, o que podia enguiçar, como se acoplavam, de
onde vinham. Era a primeira vez que Daniel lhe explicava alguma
coisa, e Asher sentiu-se orgulhoso e surpreso. E ficou ainda mais
surpreso quando Daniel lhe explicou como uma máquina de
escrever podia ser remontada. Aquilo era bem melhor do que
infinitamente reversível. Asher passou a, vez por outra, levar
máquinas de escrever para o quarto, desmontando-as e
remontando-as novamente. Ele memorizava as engrenagens,
molas, a ordem das teclas — que eram metais com poderes
especiais, pois podiam produzir qualquer combinação de palavras
no mundo. Ele gostava de adormecer envolto pelo cheiro da tinta.
Certa vez, ele tomou um conhaque com Elie, Lodenstein e os
Solomon e fez todos rirem ao contar para Mikhail que tivera um
carro, e que Mikhail podia tê-lo usado como exemplo em sua carta
para Heidegger do misterioso Ser das máquinas. As risadas, a
presença de Elie — e os Solomon, que pareciam saber de tudo —,
todo o ambiente o transportou para o período antes da guerra. A
tarde lhe trouxe de volta a memória de tudo o que perdera e o fez
sentir saudades da esposa. Assim, ele nunca mais voltou a tomar
conhaque com aqueles quatro. Ao cruzar com Elie, eles se
cumprimentavam com um ligeiro aceno de cabeça e continuavam
em seu caminho. Exceto uma vez, quando ambos disseram boa-
noite ao mesmo tempo.
Por algum tempo, então, ele foi capaz de viver em relativo
silêncio — um silêncio que desejava, porque os mais inexpressivos
gestos ou maneiras de falar podiam enervá-lo. Uma voz alta o fazia
lembrar as listas de chamada. Os escribas procurando um casaco
traziam-lhe à mente os companheiros de cela estendendo as mãos
para uma tigela de comida. Quando estava só, era capaz de ler e
inventar palavras para o sonhatório. Quando estava com outras
pessoas, pressentia a existência de um campo minado dentro dele,
que podia detonar a qualquer instante.
Mas seu silêncio prístino foi perturbado quando Dieter Stumpf
quebrou os próprios óculos. Ele os havia deixado sobre sua cadeira
enquanto etiquetava uma caixa de cartas, e sentou-se em cima
deles, ouvindo-os partirem-se. Stumpf era míope. Sem os óculos,
não poderia dirigir até a fazenda do irmão, próxima de Dresden,
para enterrar as cartas não respondidas. Então, ele levou seus
óculos quebrados para Asher.
— O que você quer que eu faça com isso? — perguntou Asher.
— Pensei que você pudesse consertá-los.
— Com as duas lentes quebradas?
— E se eu conseguir o equipamento para isso?
Stumpf, ainda vestido com seu casaco da SS, fazia Asher
lembrar-se do mais odioso dos guardas de Auschwitz, assim como
de Mengele, que fizera um gesto indiferente para a direita, decidindo
o destino de Asher e, com frequência, tinha caixas de ossos
descorados ao lado de sua porta. Asher sentiu vontade de dizer
não. No entanto, concordou. Fabricar óculos poderia ser uma
distração.
Stumpf pediu a Elie que conseguisse um equipamento de
optometria no posto avançado, e ela disse que o faria, muito embora
não lhe importasse que Stumpf conseguisse ou não recuperar seus
óculos. Seria uma oportunidade para dar uma volta, descobrir se
existiam outros rumores sobre os fugitivos e saber por que não
haviam recebido mais cartas.
Ela pediu a Lodenstein para amarrar a fita vermelha em seu
pulso.
C
Querida Marianne

Ninguém poderia imaginar que alguma coisa pudesse brotar num


lugar como este — mas há grama onde costumava haver neve
vermelha.

Com amor,
Patrice
Era a época da camomila. Antes de Elie seguir para o posto
avançado, ela colheu um grande buquê na floresta. A camomila
crescia em ramalhetes, espaçadamente, e Elie não se apressou.
Sem o peso da neve, os pinheiros pareciam flutuar, livres de todo o
fardo. O primeiro inverno depois do inverno de Stalingrado havia
passado, e parecia que o mundo completara um ciclo. Ela sentou-se
sob uma árvore — escondida, protegida, sentindo o odor cru da
terra. Lembrou-se de quando brincava de casinha com sua irmã sob
as árvores. Os gravetos eram bonecas. Os ramos serviam de
vestidos. Sua irmã Gabriela batizava as bonecas com os nomes das
amigas da escola, e Elie dava às suas os nomes das personagens
que apreciava nos contos de fadas. Numa primavera, elas acharam
um coelho selvagem. Alimentaram-no com cenouras e ele se
mantinha por perto, sob as árvores.
Quando Elie voltou, a tarde já ia avançada. Ela levou as
camomilas até o jipe e saiu dirigindo sob a luminosidade oblíqua,
sempre à espreita de pessoas no bosque. Ainda assim, sentia-se
leve, aliviada, e por um momento não se preocupou com o fato de
estar há meses sem notícias de Goebbels.
As casas naquela aldeia do norte da Alemanha ainda estavam
limpas, bem cuidadas, não tinham sido bombardeadas. Elie seguiu
até o posto avançado e atravessou o campo, as plantas roçando em
seus sapatos. Depois de bater duas vezes e ninguém responder, ela
entrou. O lugar estava mais do que nunca atulhado de coisas
usadas. Cadeiras sobre cadeiras, um sofá soterrado por armários de
arquivos. O oficial estava jogando roupas dentro de uma valise.
— O que está fazendo aqui? Você sabe que não há carta
alguma.
— Foi Lodenstein que me enviou — explicou Elie, entregando-
lhe a metade das flores. — As pessoas precisam se divertir.
O oficial jogou as flores sobre um divã.
— O que pode haver de divertido aqui?
Elie apontou para alguns baralhos. Depois, para instrumentos de
metal enferrujado, pedras polidas e um gráfico com o desenho de
um olho. Ela queria achar uma caixa com moldes de vidro fundido
do fabricante de lentes Saegmuller und Zeiss, mas só encontrou de
um fabricante que não conhecia. Uma das cadeiras de oculista
ainda estava encostada na parede. Ela apontou na direção dela.
— O que há de divertido numa cadeira de oculista? — indagou o
oficial.
— Stumpf quebrou seus óculos.
— Aquele matuto — disse o oficial.
Ele começou a remexer nos lençóis da cama para a qual certa
vez tentara levar Elie. Um revólver caiu no chão e ele o enfiou
rapidamente na sua valise.
— Stumpf tem sido um incômodo para você? — perguntou Elie.
— Não. E eu não daria a mínima para ele, de qualquer maneira.
Não dou a mínima para Goebbels também.
Elie sorriu.
— Então seu pescoço está a salvo — disse ela.
— Não me preocupo com o meu pescoço. A coisa toda está indo
para o inferno. Veja Ardennes, e os malditos aliados que cruzaram o
Reno. Ninguém está em segurança. Vou embora. Leve tudo o que
você quiser.
Ela o observou correndo para seu Kübelwagen e se viu sozinha
no posto avançado. As cortinas escuras balançavam. Algumas vigas
do teto estavam no chão. E o chão estava tomado por papéis. Elie
os observou. Os detalhes de cada carregamento de bens
confiscados, exceto uma nota, onde leu: SEM MAIS PORRA
NENHUMA DE MÓVEIS. ALGUÉM COM CERTEZA OS
ENCONTRARÁ.
Elie removeu tudo que havia junto à parede: as pedras de
amolar, as peças em metal, a tabela de Snellen, a caixa com moldes
de vidro e os baralhos. Em seguida, pegou rações de farinha, leite
em pó, salsichas, Knäckebrot, queijo — todo alimento que pôde
achar. A comida estava acomodada em pesadas caixas em mau
estado e ela teve que carregar um item de cada vez através do
campo coberto de asclépias. Por último, a cadeira de oculista, que
transportou com dificuldade. Ela a pôs no chão e fez uma pausa
para olhar o céu.
A noite quase caíra — ainda era cedo demais para ver alguma
coisa senão a estrela Vésper, uma suave luz no céu. Ela colocou a
cadeira no jipe e saiu dirigindo sob a noite primaveril. Uma meia-lua
iluminava os rododendros à beira da estrada e o medo que Elie
sentia da escuridão desapareceu — como se cada partícula das
trevas evaporasse sob o claro luar. Olhando pelo espelho retrovisor,
ela viu que ninguém a seguia.
Já basta, ela pensou.
C
Querida Dinka,

Você me perguntou quando poderei voltar e só posso dizer que,


todos os dias, ouço dizer que o fim está próximo. Mas ele ainda
recua, como uma fronteira que está sempre inspirando e expirando.
Talvez chegue em breve.

Com amor,
Piero
Asher havia se perguntado, com certa ironia, se conseguiria
recuperar sua própria cadeira de oculista de Freiburg. Mas esta
cadeira era marrom-clara e havia três perfurações de bala no
encosto. Para certificar-se da iluminação do gráfico, fez com que
Stumpf armasse uma tenda com os pedaços de tecido preto de
merino que Elie trouxera do posto avançado um ano antes. Era uma
tenda improvisada com uma abertura larga e que transformava
Stumpf num espetáculo público ainda maior. Os escribas
observavam enquanto ele segurava uma venda sobre um dos olhos
e gania Besser, melhor, e Nicht Besser, pior, ao experimentar
diferentes lentes. Considerando que Elie não fora capaz de
conseguir materiais de melhor qualidade, Asher se empenhava para
fazê-los funcionar. Ele limpou os instrumentos enferrujados, poliu o
vidro barato até conseguir lentes adequadas, fez as hastes duas
vezes, porque os queixos inflavam seu rosto como uma gola
franzida. Mas, quando finalmente terminou os óculos, Stumpf disse
que estava enxergando melhor com aqueles óculos do que com
quaisquer outros que tivera. De repente, os escribas quiseram
óculos também, quer precisassem ou não.
Asher fazia óculos sempre que estava com vontade. Ninguém
podia objetar, muito menos Stumpf, que estava abjetamente
agradecido, pois agora poderia dirigir até a fazenda do irmão — uma
visita que ficava adiando, pois agora sentia-se atraído por uma física
chamada Hermione Rosebury, que dissera ter conhecido Madame
Blavatsky. Hermione era a única escriba no Complexo proveniente
da Inglaterra, embora falasse alemão perfeitamente e sem sotaque.
Seu isolamento estimulava-a a ignorar o fato de Stumpf ficar
rondando furtivamente o Complexo, sempre servil, abandonado por
Sonia Markova, que se ligara a Parvis Nafissian. Havia muito tempo
que ele fora destituído de qualquer autoridade, inclusive do direito
de forçar as pessoas a imaginarem Goebbels. Da mesma forma,
sem novas cartas chegando ao Complexo, desistira de insistir para
que os escribas as respondessem. Ele se resguardava em seu
escritório e as respondia sozinho, ou — com maior frequência —
apenas pensava em responder, visto que só conhecia a língua
alemã.

C
Em meio àquele entusiasmo em relação aos óculos, Lars
Eisenscher andava em círculos dentro da cabana. Havia quase três
meses que não recebia uma carta do pai e não sabia se ele havia
sido preso novamente, se tinha ido para outro país, se fora fuzilado
ou se evitava escrever para não lhe criar problemas. Por duas
vezes, Lars se dirigira à agência do correio na cidade e lhe disseram
que o sistema postal estava funcionando precariamente. A
Alemanha estava esgotada, e a guerra exaurira todos os seus
recursos, até mesmo a simples atividade de enviar cartas. Papel,
tinta, as pessoas amadas — tudo parecia esquecido pela guerra.
Lars, que estava imerso em preocupação, buscou com os olhos
o carro cujo motor ele ouvia rugir a distância e viu um Kübelwagen
chegar à clareira. O veículo vinha rápido, amassando as flores do
caminho, fazendo curvas fechadas sobre as camadas de grama
fresca. Então, um oficial baixo e moreno saltou e perguntou pelo
Oberst Lodenstein. Se Lodenstein não tivesse passado um tempo
com Goebbels em seu odioso gabinete, ele poderia ter pensado que
o oficial era o próprio Goebbels, fazendo enfim sua mítica visita ao
Complexo. Lodenstein manteve o oficial à porta da cabana,
enquanto Lars esperava, afastado. O oficial estava coberto de
medalhas — mais do que Mueller, quase tantas quanto Goebbels.
Lars olhou para ele ansiosamente. Tantas medalhas significavam
poder.
— Aquele guarda ali precisa de um corte de cabelos — refletiu o
oficial.
— Ele fica de serviço mais de dezessete horas por dia —
ponderou Lodenstein.
— Não posso perder tempo com horas de serviço. Posso apenas
salientar nossos padrões.
Ele enfiou a mão no bolso e lhe entregou um memorando do
Ministério para Esclarecimento Nacional e Propaganda. O papel era
espesso, pesado e sem insígnias. Nele lia-se: O Ministério exige
uma lista de chamada de todos os escribas.
Lodenstein, agindo como se a carta não merecesse muita
atenção, sentiu as batidas fortes de seu coração.
— Como você interpreta isso? — perguntou ele.
— Não há o que ser interpretado — respondeu o oficial. —
Simplesmente chame todos aqui com seus documentos de
identidade.
— Mas eles estão imaginando Goebbels.
O oficial pareceu confuso, e Lodenstein prosseguiu:
— Você nunca ouviu falar desse importante ritual?
O oficial sacudiu a cabeça e Lodenstein explicou que todos os
dias os escribas passavam meia hora invocando a imagem de
Joseph Goebbels — o cérebro por trás daquele projeto vital.
— Se eles não conseguirem representá-lo em suas mentes —
disse Lodenstein —, nada será feito. Uma interrupção poderia
significar uma catástrofe.
O oficial concordou em aguardar no aposento de Lodenstein —
ao qual se referia como alojamento — até que os escribas tivessem
concluído seu exercício de imaginação. Ele chegou mesmo a voltar
até seu Kübelwagen para buscar uma garrafa de conhaque. Em
seguida, desceu lentamente pela rampa, examinando as paredes e
tomando notas de tudo. Não era um homem comunicativo, e olhava
com a vaga reticência de alguém que aprendera a observar
meticulosamente. Ele perguntou sobre o baú no chão, no canto do
quarto: Lodenstein disse que colecionava lembranças a serem
exibidas depois que a Alemanha vencesse a guerra. O oficial
pareceu satisfeito, e em seguida perguntou sobre a blusa feminina
sobre a cômoda: Lodenstein disse que sempre havia uma mulher ou
outra em seu aposento. O oficial quis saber a razão das janelas do
clerestório. Lodenstein falou-lhe sobre o arquiteto, Hans Ewigkeit,
que disfarçara a mina na forma de um trailer e fizera aquele
minúsculo quarto à superfície. O oficial perguntou sobre o baralho.
Lodenstein explicou que gostava de jogar Paciência. O oficial pegou
a blusa e disse que gostava do perfume de rosa. Lodenstein
concordou e lhe deu mais conhaque. Em pouco tempo, o oficial
estava razoavelmente bêbado e se deitou na cama, fechando os
olhos. O memorando escapou de suas mãos. Lodenstein desejou
que voasse para longe, como a carta no trem. Mas o papel ficou ali
no chão — tão pesado e inerte que ele se perguntou se ainda
flutuaria na água.
A ordem estava escrita num papel com o timbre do Ministério
para Esclarecimento Nacional e Propaganda e a assinatura era
ilegível. Embaixo, havia um antigo aforismo do qual o Reich se
apoderara: Übersetzter sind Verräter.
Tradutores, traidores.
Lodenstein deixou o papel sobre a cama e olhou a luz através
das janelas. Era nebulosa, uma claridade vespertina que caía em
flechas sobre a manta, os travesseiros, o rosto do oficial e o baralho
sobre a mesa de cabeceira. Tendo parado de jogar cartas, as
sequências agora pareciam imagens do mundo real em vez de
símbolos a serem separados, empilhados e distribuídos. As cartas
de copas eram esculturas feitas por amantes, as de espadas,
pedras. As cartas com figuras em suas imagens espelhadas fizeram
Lodenstein lembrar-se de alguém lhe ter dito sobre a superstição
daquilo: se uma imagem aparecia espelhada, então a realeza
estava salva e não podia ser degolada. Ele juntou as cartas, foi até
a janela e perguntou-se se a lista de chamada era somente uma
artimanha. Mas, ao ler as ordens novamente, viu os nomes de
Asher e Daniel. Havia também uma observação dizendo: criança
sem nome.
O memorando ao lado da cama parecia gritar: tradutores,
traidores.
De súbito, sem pensar no que estava fazendo, ele agarrou o
travesseiro do lado de Elie da cama e o segurou sobre o rosto do
policial. Em seguida, pressionou-o contra os ouvidos do homem,
mantendo-o sobre sua boca — sem olhar para o travesseiro,
somente para as próprias mãos, que o moldavam com a força de
alguém que empena uma barra de aço. Suas mãos não eram mais
mãos, mas blocos com vontade própria, isolados de sua mente e de
seu coração. Ele continuou apertando até o oficial começar a arfar e
a se debater. Seus movimentos fizeram com que a mesinha de
cabeceira se arrastasse até a cama, sacudindo tanto que o baralho
despencou no chão. Ocorreu a Lodenstein que aquele baralho
outrora pertencera a alguém que fora deportado e estava
provavelmente morto agora, e, enquanto suas mãos pressionavam o
travesseiro, ele teve a visão de todos os mortos discutindo com o
oficial e fazendo uma algazarra, dizendo que carta alguma no
mundo poderia impedi-los de se reunir, conspirar, reclamar e acusá-
lo.
Esses pensamentos só o fizeram apertar com mais força, até o
corpo do oficial ficar imóvel. Ele soltou o travesseiro e tentou não
pensar Eu matei alguém, tentou se afastar do sentimento
dilacerante, lancinante, em seu coração. Olhando para as próprias
mãos, pensou — como se falasse com mãos que pertencessem a
outra pessoa — Vocês mataram alguém. Estavam retesadas. Foi
difícil voltar a relaxá-las.
O travesseiro estava rasgado. A manta da cama estava imunda,
com a lama das botas do oficial. Lodenstein olhou para o travesseiro
por tempo suficiente para imaginar como seu rosto devia estar
parecendo um espantalho. Em seguida, afastou o olhar e começou
a pensar em como enterrar o cadáver: ele não podia levá-lo para a
floresta, porque o solo ainda estava muito duro do inverno. Não
convinha deixá-lo desenterrado porque poderia ser descoberto e,
além disso, havia o cheiro. A única solução era um cômodo que ele
conhecia. Esse cômodo ficava no túnel que levava à cidade e não
constava em nenhum mapa existente do Complexo.
O TÚNEL
Lodenstein apanhou uma pá e três chaves dentro do baú. Uma
delas era a da porta de seu quarto, e ele a trancou. Outra era da
porta que conduzia ao túnel que levava até a cidade, a cinco
quilômetros dali. A terceira chave abria a porta desse cômodo que
somente ele conhecia. Ficava no lado esquerdo do túnel que
terminava na mina. Misteriosamente, ele havia sido construído ali.
Ninguém explicou o motivo quando lhe deram as chaves.
Lodenstein passou pela casa dos Solomon e seguiu até a
mesma porta arqueada pela qual Gitka fizera Maria passar as mãos
— o trompe l’oeil que tinha a exata aparência de uma parede de
terra. Ele se certificou de que ninguém estava vendo e depois tentou
usar a chave. Talvez a porta nunca tivesse sido aberta. Ou talvez a
chave não servisse. Mas a porta se moveu, mergulhando
bruscamente Lodenstein na escuridão e no ar gelado com o cheiro
dos detritos fétidos que desciam pelo córrego. Ele entrou
lentamente, uma das mãos tocando o revólver e a outra apalpando
a parede. O cômodo estava completamente escuro.
Consistia de três paredes anexas à mina e uma parede suja que
acomodava a porta. Exceto pela quarta parede, as três outras e o
chão estavam cobertos de terra e de pedras, de modo que todo o
anexo era um terreno feito de encostas carboníferas e fossas
barrentas.
O odor sumiu assim que fechou a porta. Lodenstein mantinha-se
em absoluto silêncio, envolvido pelo cheiro de terra crua. O cômodo,
assim, lembrava um santuário — pequeno e seguro, esculpido no
solo. Ele sentou-se encostado em uma parede e acendeu um
cigarro, tentando esquecer que estava a ponto de enterrar alguém
que acabara de assassinar. Havia muito tempo, ele e os amigos
brincavam de esconde-esconde, achando os cantos mais obscuros
para aguardar até que fossem descobertos. Aquele podia ter sido
um dia comum de sua infância. Ele acabou de fumar, pegou a pá e
se pôs a cavar. A terra estava dura, a tarefa era exaustiva, e ele
teve que parar para descansar. Acendeu outro cigarro e observou
ociosamente o foco de sua lanterna. O facho de luz atravessava o
chão, tingindo-o com uma linha clara. Ele o moveu pelas paredes.
As rochas pareciam enormes e obsidianas — uma parede de gemas
negras. Era estranhamente belo, e por um momento ele se
esqueceu do oficial, até a lanterna iluminar outro objeto. Eram
gemas brancas, angulares. Brilhavam com um resplendor
desbotado sob o raio de luz.
Ele aproximou mais sua lanterna, e deixou que seus olhos se
adaptassem à profunda e abrangente escuridão do cômodo. As
gemas brancas pareciam ter arestas definidas, algo de outro mundo
e, ao mesmo tempo, familiar. Ele examinou os contornos, reticente.
Começava a perceber que as gemas brancas não eram gemas
quaisquer, mas algo bem mais humano. Identificou o contorno de
ossos púbicos. Suas curvas criavam um lugar para sentar e
estavam presas a quatro fêmures — uma caixa perfeita — que
pareciam atados a quatro esqueléticos pés. Havia também um
espaldar vertical no objeto, uma caixa torácica. Todos ossos
humanos. E Lodenstein se deu conta de que tinha uma cadeira
diante dos olhos. Ao lado, outra idêntica. E também uma pequena
mesa.
Por um momento, ocorreu-lhe o pensamento escandaloso de
que um dia haviam feito parte de uma sala de estar e, reunidas
naquele cômodo, tornariam-se móveis ordinários outra vez. Ele
imaginou tudo sendo transportado para o lugar certo, onde se
converteriam num tempo anterior à guerra, quando ninguém
pensava em responder aos mortos ou viajar pelas noites sem lua
até um local onde pessoas se amontoavam como um rebanho de
gados. Ele imaginou que aqueles ossos eram apenas uma aparição,
feita de pedras e trevas. Mas não havia para onde levá-los. Nenhum
lugar. E eles não eram uma aparição, mas móveis. Móveis que um
dia estiveram vivos.
Ele engasgou, agarrou-se às paredes e suas unhas ficaram
cheias de terra, mas conseguiu fechar a porta. Depois, saiu
correndo para a rua de pedras e trancou o trompe l’oeil.
Engasgou novamente.
C
Xavier,

Onde está você? Onde? Eu o procuro por todo canto, todo lugar. Se
eu não conseguir encontrá-lo, procure por mim.

Marianne
No salão principal do Complexo, ninguém sequer podia imaginar
que um oficial havia chegado. Elie estava à sua mesa, Stumpf, em
sua torre de sentinela e os escribas experimentavam óculos novos,
esperando que lhes servissem, ou deleitando-se de prazer
simplesmente por tê-los recebido. Gitka tinha os óculos na ponta do
nariz e estava segurando sua longa piteira. Niles Schopenhauer
usava óculos sem armação e um casaco de texugo. Lodenstein
observava a todos de longe. Suas mãos tremiam. Sua respiração
estava entrecortada. Ele comprimiu os cotovelos contra o corpo e
tentou respirar mais calmamente, enquanto observava os escribas
admirando seus óculos, como se nada houvesse mudado. Não
faziam a menor ideia de que a morte estava tão perto — na floresta,
no aposento com as janelas do clerestório, no cômodo com gemas
negras. Não faziam a menor ideia de que ele acabara de matar um
oficial e encontrara um mausoléu bizarro na extremidade da mina.
Nada jamais será como antes, ele pensou. Este Complexo é uma
sepultura.
As pessoas estavam ocupadas demais para perceber Lodenstein
quando ele remexeu um saco que estava encostado na parede. Ele
retirou botas, chapéus e echarpes até encontrar um par de luvas de
couro. Mas, quando a pá se chocou contra o telescópio, as pessoas
olharam.
Nafissian falou que ele também devia usar óculos.
— Vão dar a você um ar de dignidade — disse ele.
— Fora de questão — opinou Niles Schopenhauer.
Mas La Toya se levantou e disse:
— Todos nós sabemos que os óculos são apenas uma distração.
Aqui ainda é o lugar de onde escrevemos para os mortos.
— Ou para os quase-mortos — disse Nafissian.
— Ou os a ponto de serem mortos — acrescentou Gitka.
— E só podemos esperar que alguém leia essas cartas — disse
La Toya. — Se tivéssemos que dar um nome a este lugar,
poderíamos chamá-lo de Agência Otimista de Correios.
— Não, não — intercedeu Nafissian. — Aqui sempre será o
Sonhatório.
Absortas pelo tom geral de piada, as pessoas não notaram
quando Lodenstein foi até o armário de vassouras — sempre uma
mixórdia de fitas adesivas, velas, chapéus rasgados, caixas de
papelão e, agora, pilhas de casacos de pele. Lodenstein vasculhou
tudo até encontrar uma chave de fenda, um martelo e uma pá.
Ninguém sabe que eles chegaram perto de terem suas vidas
arrancadas por uma lista de chamada, pensou. Eles acham que isso
aqui é um carnaval. E, com um chute, fechou a porta do armário.

C
O oficial estava deitado imóvel, a expressão sem rancor,
parecendo cochilar, com um travesseiro a proteger os olhos do sol.
Lodenstein precisou dobrar seu corpo ao meio — tarefa difícil, pois o
oficial ainda estava rígido. Ele o enfiou num saco de lona com tanta
força que ouviu um estalo — talvez tivesse quebrado algum osso.
Segurando o saco sobre os ombros, trancou a porta e desceu pelo
poço. Se perguntassem, diria que estava trazendo mais cartas para
baixo — um pretexto nada crível, já que todos sabiam que ele não
tinha nada a ver com as cartas. Mas, quando passou pela casa dos
Solomon e Lars o viu com o saco de lona, o olhar incrédulo em seu
rosto deixou claro que não era preciso inventar uma desculpa.
— Está precisando de ajuda? — propôs Lars, dando um passo à
frente.
— Apenas mantenha o caminho desimpedido — respondeu
Lodenstein.
Lars assentiu e caminhou na direção de La Toya, que já o vira.
Ele pensou ter ouvido La Toya dizer É questão de tempo e ficou
ansioso para alcançar o trompe l’oeil. Mas, quando chegou, parou,
tomado por um medo crescente. Anos atrás, no início da guerra, a
Gestapo costumava fuzilar pessoas naquele túnel. Às vezes, o
disparo das armas era tão furioso, tão constante, que soavam como
máquinas de escrever. Quando Stumpf estava no comando, os
escribas escreviam tantas cartas quanto fossem possíveis, porque
tinham medo de serem arrastados para dentro daquele mesmo túnel
e fuzilados. E se a SS estivesse esperando por ele numa
emboscada? E se o Reich estivesse ansioso por se ver livre desse
oficial, e soubessem que Lodenstein usaria aquele cômodo para
enterrá-lo? Ele forçou-se a abrir a porta e, mais uma vez, aquele
cheiro fétido de detritos invadiu suas narinas. Arrastou o saco de
lona em meio à umidade e à escuridão sem fim.
As cadeiras e a mesa haviam sido fixadas com parafusos e
braçadeiras. Lodenstein desparafusou tudo, furioso com o tempo
que levou, mas grato por não produzir barulho demais, porque,
apesar de a passagem ser à prova de som, ele temia que os
Solomon ouvissem. Quando as braçadeiras estavam soltas, ele as
removeu com o martelo. Mas o assento da cadeira — a pélvis —
tinha sido colado, e foi preciso bater várias vezes até parti-lo. Uma
braçadeira não se soltou de um pé e ele o pulverizou até destruí-lo.
Quando os ossos estavam em pedaços, ele cobriu o saco de lona
com terra, misturando-a aos ossos, e aplainou tudo com a pá.

C
Antes de os guardas serem enviados para a frente de batalha,
tinham vivido no aposento de Mueller. Lodenstein se recordava do
local como um lugar de jogos de cartas, bebedeiras e discussões
bem-humoradas. Agora, estava apinhado com móveis de pau-rosa e
ainda conservava um vestígio dos segredos malévolos de Mueller.
Lodenstein odiava aquele aposento, mas estava coberto de terra e
pó de ossos, e teve que se lavar sorrateiramente na cozinha,
enchendo de água uma panela de sopa e a levando consigo para o
quarto. Ele rasgou alguns lençóis e esfregou o rosto, as mãos e os
cabelos. A água foi ficando espessa e turva com a imundície.
Furtivamente, ele voltou para a cozinha, encheu de novo a panela e
carregou-a novamente. Mueller deixara uma capa de chuva verde e
uma ceroula dentro do armário. Lodenstein as vestiu e arrancou a
insígnia da SS da capa. Em seguida, bebeu schnapps e ouviu os
barulhos dos escribas, que se preparavam para dormir.
Os sapatos se arrastavam e tecidos farfalhavam enquanto as
pessoas trocavam de roupa. Surgiu uma discussão sobre a loteria.
Depois, houve um disparo de teclas de máquinas de escrever — as
últimas anotações nos diários ou uma nova frase em sonhatório.
Ele ouviu La Toya propor um jogo, e outra pessoa dizer:
— Esta noite, não. E nada de datilografar aquele maldito diário.
— Há muito sobre o que escrever — protestou La Toya.
As pessoas estavam rindo de uma palavra em sonhatório. Em
seguida, realizaram um sorteio de cigarros. Depois, mais risadas
sobre outra palavra. Exasperava-o que as pessoas conseguissem
rir. Exasperava-o que o mundo ordinário pudesse seguir em frente.
Lodenstein saiu enfurecido até o salão, achando que ia se
aborrecer com os escribas, mas resolveu que preferia guardar tudo
para si mesmo — os escribas já viviam sob um pavor insuportável.
Ele parou do lado de fora do quarto de Mueller, ouviu vozes vindas
da extremidade do salão e, em meio ao tremeluzir dos lampiões a
gás, viu Elie e Asher no final da rua. Eles não podiam vê-lo, então
ele teve a impressão desinteressada, quase alheia, de que assistia
a uma peça de teatro. Os dois estavam sentados num banco,
compartilhando um cigarro, e pareciam encantadores, com os
modos ligeiramente afetados. Quando acabaram de fumar, Asher foi
para seu quarto e Elie veio caminhando pelo salão. Lodenstein
desviou o olhar, sentindo-se aliviado por se afastar daquele
sentimento de ciúmes. Elie tocou-lhe o braço.
— Pelo amor de Deus, o que aconteceu com você? — perguntou
Elie.
— Conto para você depois. Mas nós vamos dormir no antigo
quarto de Mueller esta noite. Sobre o que vocês estavam
conversando?
— Só estávamos nos indagando sobre nossa segurança —
respondeu Elie. Ela recuou e olhou para ele. — Suas mãos estão
geladas, e... o que você está fazendo com a ceroula de Mueller?
— Já lhe disse que explico depois.
Ela o conduziu até o quarto e fechou a porta. Começando a
desamarrar as botas dele, ela se espantou ao vê-las repletas de
lama e pedaços de ossos.
— Gerhardt — chamou ela. — Conte-me o que aconteceu.
Mas ele não conseguiu dizer nada — como se sua garganta
estivesse obstruída pela lama.
— Gerhardt, conte-me — insistiu ela.
Ele se virou e segurou seus ombros.
— Você tem certeza de que quer saber? Tem certeza de que
gostaria de saber, mesmo se tiver feito algo que ajudou a criar um
assassino? Fale! Gostaria realmente de saber?
Elie começou a chorar e ele soltou seus ombros e a abraçou. A
clavícula dela se moveu sem esforço, como asas. Mas o contorno
dos ossos dela voltou a transportá-lo para a escuridão do cômodo
bolorento e para a visão de uma cadeira sob o foco da lanterna. Ele
sentiu outra coisa, também — um inefável lugar dentro dela que
continha todos os mecanismos invisíveis que lhe permitiam sonhar,
caminhar, respirar e ser ela mesma. Então, ele também começou a
chorar.
— Gerhardt, por favor — disse Elie. — O que quer que tenha
feito, foi por uma boa causa.
— Já não sei mais o que é feito por uma boa causa — retorquiu
ele. — Nós nunca voltaremos a despertar numa manhã comum.
— Você não deve pensar assim.
Mas ele estava convencido de que nunca a teria do jeito que
desejava, e seus soluços se espalharam pelo salão e alcançaram os
escribas, a cozinha, e ecoaram nas panelas e frigideiras. Era um
choro doloroso que transpassava as teclas das máquinas de
escrever e as folhas soltas de papel, assim como metros de terra
morta acima deles. Era o som de um homem dilacerado. Atordoado,
o Complexo mergulhou em silêncio.
Adelajda,

Społecze stwo z nasz mie zniknł rezygnowa pewien toczy zawoła,


pewien wieszanie, albo pewien przestroga. Aden ma nadmieniony
im. Tam zostały nie publiczny wieszania. My pomyle oni maj
zostawia rezygnowa pewien trop.

Miło,
Kacper

C
Adelajda,

Duas pessoas no nosso pavilhão de celas desapareceram, sem que


tenha havido lista de chamada, enforcamento ou advertência.
Ninguém os mencionou. E não houve enforcamentos públicos. Não
sabemos como podem ter partido sem deixar vestígios.

Com amor,
Kacper
Elie apertou Lodenstein contra seu corpo até que ele mergulhou
num sono agitado. Quando a respiração dele ficou suave, ela se
enfiou sob a manta, mas foi incomodada pela imagem de suas
botas: lama, sujeira e raspas de ossos. Ao fechar os olhos, a
imagem das botas se tornou mais vívida. Ela se aproximou de
Lodenstein e sentiu o cheiro de terra. Nada de sono esta noite,
pensou.
Mas, quando abriu a porta, ela não sabia se conseguiria suportar
o silêncio do Complexo tão tarde da noite. Estava imaculado e
extraordinariamente sossegado, sem o som das máquinas, das
pessoas fazendo amor, dos gritos noturnos. Ela queria falar
novamente com Asher. Sentia que algo mais terrível do que podia
imaginar havia acontecido no Complexo, e Asher, que vivenciara
fuzilamentos e enforcamentos, provavelmente teria sentido também.
Ela se lembrou de que ele tinha uma maneira de ouvir as pessoas
que transmitia uma imensa tranquilidade. Ele a ouvira desse modo
em Freiburg, quando começou a se preocupar com a guerra. E
embora a própria esposa houvesse desaparecido, ele era capaz de
escutar com uma indescritível impressão de paz.
Ela caminhou até os caixotes contra a parede, onde terminava o
túnel. No chão, as sombras das grandes caixas pareciam quase
sólidas. As luzes das estrelas pareciam meros alfinetes brilhando.
Ela passou as mãos sobre o trompe l’oeil em forma de arco e soube,
além de qualquer conhecimento racional, que um oficial morto se
encontrava no túnel à sua frente. Era por isso que Lodenstein havia
chorado e que suas botas estavam cobertas de lama e de ossos.
Ela ouviu uma porta se abrir. Asher apareceu e se aproximou.
— Como está Lodenstein? — perguntou ele.
— Você o ouviu. Ele diz que eu o transformei num assassino.
Ela sentou-se no chão frio e empurrou um caixote, a fim de dar
lugar para Asher.
— As pessoas não dizem o que querem dizer quando estão
dilaceradas. E, geralmente, elas acabam se recompondo — disse
Asher, e sentou-se ao lado dela, nos caixotes. — Ninguém é
assassino aqui.
— Já não sei mais o que eu acho — retrucou Elie.
Asher pegou um cigarro.
— Nunca vi este lugar tão sossegado — disse ele. — Os
escribas pararam de fazer sexo.
— Eles têm muitas coisas em que pensar.
— Pelo menos, pararam com as perguntas. E com as máquinas
de escrever. Alguns adormeceram e outros conversam sobre suas
famílias. E eu nem sei o que aconteceu com a maior parte da minha.
Só agradeço que Daniel esteja aqui.
— Você deve sentir falta de sua esposa — disse Elie.
— O tempo todo. E de minha mãe também.
— Eu não tenho a menor ideia do que aconteceu com meus
pais.
— E sua irmã?
Elie esperou, escutando as roldanas e as engrenagens rangendo
para fazer a lua aparecer. Depois, disse:
— Você conheceu Gabriela há mais de dez anos.
— Foi. — Ele olhou para ela diretamente, e o azul de seus olhos
a transportou para Freiburg. Ele continuou: — Você se lembra da
época em que íamos à cafeteria? Gabriela imitava Hitler. Ela era
excelente nisso. A gente ria tanto que mal conseguia respirar.
— Não quero me lembrar — disse Elie.
— Ela gostaria que você se lembrasse. Vocês duas eram tão
próximas...
Elie acendeu um cigarro e se encostou num caixote.
— Você é a única pessoa que conheço que se recorda dela.
Talvez seja por isso que eu penso nela cada vez que o vejo.
— Você voltará a encontrá-la — disse ele. — As pessoas vão se
reunir, quando a guerra terminar.
Elie começou a chorar. Ela chorava sem se mexer, como se
pensasse que Asher não fosse notar. Asher vira pessoas chorarem
assim em Auschwitz: o menor movimento podia chamar a atenção,
então elas choravam como se não o estivessem fazendo.
Ele não tentou reconfortá-la. Falar sobre a irmã dela, enfiados
naquele lugar, cercados por caixotes cheios de cartas para os
mortos — tudo aquilo o oprimia. Tudo o que fez foi lhe oferecer outro
cigarro.

C
Elie descansou sobre um dos caixotes que morbidamente uniam
com seus veios de madeira os mortos e os vivos. Apagou o cigarro
e voltou para a cama de pau-rosa. Lodenstein ainda dormia
profundamente. Ela tocou nele outra vez — em seus cabelos, em
sua cicatriz na testa — e tentou não pensar no que ele havia feito.
Em vez disso, pensou sobre o que Asher dissera e depois sobre
Gabriela, há muitos anos, antes da guerra. Ela se recordou de sua
infância na Cracóvia, patinando, nadando, brincando na rua nas
tardes de verão — jogos alegres em que os meninos corriam atrás
delas. Lembrou-se de quando decidiram estudar na Alemanha e da
noite em que contaram para seus pais que pensavam em sair de
casa. Recordou-se do primeiro recital de piano de Gabriela e de
como ela ficou depois de terminar — iluminada, feliz — segurando
um buquê de rosas brancas. Muitas rosas brancas. Gabriela se
casara com um homem numa cidade próxima de Berlim logo após o
início da guerra. Pelo concerto, ele e Elie tinham lhe dado buquês
de rosas brancas.
Ela sempre acreditara que a razão de nunca ter contado a
Gerhardt sobre Gabriela era querer manter em segredo seu
passado, de forma que ele não soubesse muito se um dia viesse a
ser interrogado. Agora, porém, ela se dava conta de que era porque
temia que ele não entendesse o implacável desassossego de sua
dor. Asher tinha um jeito particular de compreender — um jeito que
assimilava o sofrimento tão inflexivelmente que o tornava
suportável. Isso a fez sentir-se infiel a Lodenstein, e ela apertou-o
com mais força. Ainda estava com cheiro de terra, e ela se lembrou
do oficial. Tinha visto uma pá ao lado da porta, e ela se virou para
observar seu contorno: madeira crua terminando no metal frio e liso.
Seus movimentos despertaram Lodenstein, que começou a tremer.
— Gerhardt — chamou ela suavemente, quase num sussurro. —
Isso vai passar.
Ele sentou-se e continuou tremendo — uma agitação tão intensa
como Elie nunca vira. Convenceu-o a se levantar e ir com ela
preparar um chá. Ela o conduziu até a cozinha.
O Complexo ainda estava calmo — embora essa calma
parecesse agora reconfortante. E o chá estava quente e gostoso.
Elie acariciou o pescoço de Lodenstein e insistiu para que bebesse
mais, segurando a caneca para ele. Eles ouviram o poço da mina se
abrir e Lodenstein se ergueu, pegando sua arma.
Mas era apenas Lars, vindo para saber como estava Mikhail. Ele
olhou para Elie, sem saber ao certo o que ela já sabia.
— Tudo bem com você? — perguntou ele a Lodenstein.
— Estou bem.
Elie serviu uma caneca de chá para Lars, mas ele a recusou.
Apanhou uma maçã e descascou-a como seu pai lhe ensinara —
produzindo um longo e perfeito espiral, como se removesse uma
pele. Em seguida, disse:
— Não faz sentido algum fingirmos que ganharemos esta guerra.
Devíamos fugir para a floresta.
— A sabedoria vem da boca das crianças... — disse Lodenstein.
— Aqui é mais seguro — opinou Elie. — Aqui estamos todos
juntos.
Lars balançou a cabeça e lhe deu fatias de maçã. As frutas
estavam ficando raras.
— Sabe o que meu pai me disse certa vez? Se você vai até o
coração de uma cidade à noite, é preciso conhecer a melhor saída
antes de entrar.
— Gostaria que mais pessoas tivessem pensado nisso — disse
Elie. Ela parecia prestes a recomeçar a chorar.
Eu deveria confortá-la, pensou Lodenstein. Não deveria deixá-la
ficar nesse estado. Ainda assim, sentia-se exausto, depois de tudo
pelo que passara, e continuou olhando a rua com coloração rosada
que havia se tornado seu mundo. Parecia reconfortantemente
agradável com seus lampiões cintilando, como uma rua de verdade
de um tempo em que ainda havia segurança. A casa dos Solomon
estava iluminada. Ele sentia-se interiormente confuso: precisava
falar sobre o que tinha acontecido. O assassinato, aquele cômodo
horrível, sua necessidade de proteger Elie, que não devia jamais
ouvir as coisas que precisava falar. Mas Mikhail podia ouvi-lo.
Mikhail podia entendê-lo.

C
Quando abriu a porta, Mikhail olhou para a capa amarrotada e as
ceroulas de Lodenstein.
— Estamos preocupados com você — disse ele. — Pensamos
que tinha caído no sono.
— Não consigo nem dormir.
— Então, por que você não entra?
Lodenstein entrou e olhou através da espessa cortina o céu
inerte. Mikhail o observava em silêncio. Lars lhe dissera que era
perigoso demais subir ao posto de observação para ver as estrelas
naquela noite. Ele e Talia haviam passado toda a noite fechados
dentro de casa. Quando o ouviram chorando, Talia disse mais uma
vez: Este lugar é tão ruim quanto Lodz.
Após um momento, Mikhail disse:
— Lars nos disse que era melhor não sairmos esta noite.
— Ele tem razão — confirmou Lodenstein. Vocês ficarão um
tempo sem ver as estrelas. Ninguém deve sair, exceto para ir até o
poço.
— Eu sei — disse Mikhail.
— Tenho certeza de que todos sabem algo sobre o que
aconteceu, mas há coisas sobre as quais não quero falar. Coisas
horríveis.
Ele parou. Mikhail esperou. Em seguida, ele contou a Mikhail
sobre o cômodo repleto de ossos.
Mikhail fechou os olhos por alguns instantes. Depois, levantou-
se, foi até a pequena cozinha e pegou o conhaque e dois copos.
— O que está acontecendo é inacreditável — disse, ao voltar. —
Maria sob aquele forro de assoalho. Aaron fuzilado em praça
pública. E agora este cômodo.
— Além disso — acrescentou Lodenstein —, há alguns móveis lá
dentro.
— Entendo — disse Mikhail. — Mas tente não pensar demais
nisso. Eu iria enlouquecer se ficasse pensando em Aaron sangrando
até a morte na praça.
— Não pensei nisso. Fiquei dilacerado. Enterrei tudo.
— O que quero dizer é que não fique pensando nisso agora. Se
eu pensasse em Aaron todas as noites, ficaria maluco.
Ele serviu outra dose de conhaque para Lodenstein e sentou-se
a seu lado.
— Você nunca deve pensar que tem sangue em suas mãos —
concluiu ele.
— Você nunca matou uma pessoa — disse Lodenstein.
— Nunca tive a oportunidade — respondeu ele, olhando na
direção do retrato de Aaron feito um ano antes de sua morte. Aaron
estava sorrindo e olhava diretamente para a câmera. Às vezes,
Mikhail o imaginava olhando bem nos olhos da própria morte.
— Coisas medonhas acontecem o tempo todo — continuou
Mikhail. — São atrocidades. A maioria, insuportável. Mas o que você
fez não foi uma delas. As pessoas vão agradecer. Você devia
agradecer a si mesmo.
Lodenstein pôs o rosto entre as mãos e tocou com o dedo sua
cicatriz na testa.
— Já lhe contei que ganhei esta cicatriz caindo da porra de um
trenó? Não teria sido melhor se fosse durante um duelo?
Mikhail sorriu.
— Acho que você está ficando um pouco bêbado. E isso talvez
seja o melhor a fazer.
— Talvez eu esteja mesmo — disse Lodenstein, olhando em
direção à janela, antes de perguntar a Mikhail se ele já ouvira algum
som vindo do túnel: disparos de arma, ruídos...
— Não. E daqui podemos ouvir tudo. Talia tem a audição de uma
raposa. Você estava pensando naquele lugar como um esconderijo?
— Estava. Até vê-lo.
— Poderia funcionar, num caso de emergência — disse Mikhail.
— Ninguém precisa saber o que você encontrou lá dentro.
Eles conversaram sobre Daniel, Asher e Dimitri, e sobre como
poderiam escondê-los naquele cômodo cravado na terra. Mas
Mikhail continuou voltando ao que Lodenstein havia feito e como ele
devia sempre se lembrar de que tudo o que fazia era para salvar as
pessoas. Sua voz era reconfortante, quase melodiosa, como se
estivesse contando uma história para uma criança antes de dormir.
Lodenstein acabou adormecendo, a cabeça apoiada na cadeira de
veludo.
C
Stefan,

Ainda estou aqui, mas não posso mais ir até a caserna. Alguém
entregará esta carta para você. Vejo-o em toda parte.

D.
Às quatro da manhã, Lodenstein acordou na cadeira de veludo dos
Solomon e saiu correndo à procura de Elie. Tivera um sonho em que
andava por uma cidade de ruas estreitas e labirínticas, sem
conseguir encontrá-la. Mas ele a viu imediatamente, dormindo sobre
uma mesa no salão principal. Elie trouxera aquela mesa do posto
avançado, para que Dimitri pudesse usá-la como uma carteira
escolar. No entanto, era para alunos mais velhos e, assim sendo,
grande demais para ele; então ela deslocou a mesa para perto do
salão, desafiando a visão de Ewigkeit de um parque municipal.
Agora, com a cabeça sobre a mesa, ela parecia uma criança de
castigo por mau comportamento, enquanto as outras crianças
brincavam lá fora. Lodenstein sentou-se a seu lado e cutucou-a até
que acordasse.
— Por que você está dormindo aqui fora? — perguntou ele.
— Estava pensando em quando eu era criança, perturbando as
freiras, brincando no bosque de pinheiros. Este lugar me lembra do
tempo de escola.
— Você se sentava a uma carteira como esta?
— Sentava.
— E às vezes dormia sobre ela?
— Não. Eu estava ocupada demais chateando as freiras.
Lodenstein contou que ele também usara uma carteira como
aquela. E embora a presença daquela mesa em particular no salão
parecesse tão incongruente, e muito embora ele viesse de uma
escola de onde crianças haviam sido deportadas, tinha a impressão
de que tudo — mesmo a luz dos lampiões a gás e a lua crescente
— fazia parte de um mundo em que haviam vivido outrora, na
superfície. Ele buscou sua faca e começou a esculpir as iniciais
deles sobre a parte interna da mesa.
— O que você está fazendo? — perguntou Elie.
— Uma lembrança de nós.
Elie disse que eles iriam se lembrar de qualquer jeito, mas ele
respondeu que não necessariamente desse modo — não dentro do
Complexo, não tão tarde da noite, não tão sós. Ele gravou ES + GL
dentro de um coração e a hora — 4:35. E em seguida: Eu amo você.
Elie passou o dedo sobre o coração bem devagar. Tudo parecia
distorcido pela luz, como se estivesse fundido em sépia e
emoldurado pela pura certeza de ter acontecido. Lodenstein deixou
que essa impressão de certeza se estendesse pelo futuro e
imaginou um tempo em que o oficial assassinado dentro do cômodo
repleto de ossos se tornaria menor do que as estrelas brancas
acima do posto de observação, recuando na maré cheia. Podia até
imaginar um tempo em que a guerra teria acabado, e ele e Elie
acordariam numa manhã como as outras, numa casa com muitas
janelas. Ele se sentiu capaz de grandes gestos, proclamações
despreocupadas — sobre o lugar onde viveriam depois da guerra,
quantos filhos iriam ter e os livros que leriam para eles, as
brincadeiras que fariam na neve, vivendo uma estação após outra,
imersos em felicidade.
Mas tudo o que fez foi erguer Elie em seus braços e carregá-la
até o antigo quarto de Mueller. Ele a fez sentar-se no chão, depois
abriu a porta e levantou-a novamente. Ela estava fumando enquanto
conversavam, e seu cigarro se tornou um ponto luminoso que se
movia próximo a ele, depois se afastando, quando ela o atirou no
chão e ele o apagou com o pé. Em seguida, ele a instalou na cama
e cobriu seus corpos com as mantas.
— Estamos em segurança? — perguntou ela.
— Por ora, sim.
Lizavita,

Lepsza pogoda podjęła pracę łatwiejszą: Nic nie jest trudniejsze niż
podnoszenia kamieni w zimnie. A ludzie znaleźli sposób przemycić
do kuchni oficerskiej, i umieścić litery w cieście chlebowym i rzucać
je do następnego bloku. Dam ci jeden następnym razem widzimy
sobą. Można by pomyśleć, że wszystko będzie lepiej, ale piece
zostały wysadzone i jest coraz więcej mówi się o marszach śmierci.
Czy można uwierzyć, że kochać to dziwne granicę, ponieważ jest to
gdy słyszę twój głos?

Krill

C
Lizavita,

O tempo melhorou e o trabalho ficou menos árduo. Nada há de mais


duro do que levantar pedras no frio. Algumas pessoas descobriram
um meio de se esgueirar na cozinha dos oficiais, colocar cartas
dentro do pão e arremessá-lo para a caserna vizinha. Eu lhe
mandarei uma quando voltarmos a nos ver. Quando pensamos que
as coisas vão melhorar, os fornos são acesos e aumentam os
rumores das filas da morte. Você acredita que acabei adorando esta
estranha fronteira porque é aqui que eu ouço sua voz?

Krill
Depois do assassinato do oficial, Lodenstein passou a se revezar
com Lars na vigilância noturna. O gabinete de Goebbels continuava
mudo, e não parecia haver investigações sobre o Complexo ou o
oficial desaparecido. Talvez Goebbels houvesse ordenado ao oficial
que fosse conferir como estavam os escribas e tivesse se esquecido
da missão, preocupado com as derrotas alemãs. Ou talvez
Goebbels enviasse alguém para investigar quando eles menos
esperassem. E havia sempre a chance de que o oficial tivesse vindo
por capricho próprio, e não obedecendo às ordens do Reich. Os
escribas sempre carregavam uma arma ao ir até o poço de água e
protegiam Dimitri quando ele estava lá fora. Asher, por sua vez,
dificilmente saía.
A primavera chegava ao fim, e então, o verão. Camomilas e
asclépias se esparramavam pelo caminho, e flores púrpura
demarcavam as margens do bosque. Tempos atrás, eles haviam
plantado uma horta de inverno, mas, agora, como praticamente não
existia mais comida, eles plantavam no verão também. Como
ninguém deveria saber que havia gente morando na cabana, os
legumes ficavam afastados — na clareira, na floresta, em meio às
flores selvagens e às camomilas. As rações eram cada vez mais
escassas. Lodenstein não deixava Elie ir sequer à cidade mais
próxima, mas enviava Lars, que voltava com uma débil quantidade
de caixas. Até mesmo o falso café, de chicória, se fazia raro. La
Toya começou a plantar chicória para tornar a mistura mais forte.
No início do outono, alguns noctâmbulos trouxeram notícias de
que os russos estavam próximos de Berlim. Houve uma festa no
Complexo para comemorar — só Stumpf não participou,
permanecendo no canto de uma mesa, constrangido, polindo os
óculos que Asher lhe fizera. O ambiente estava tomado pelo
entusiasmo em relação aos russos e os aliados estarem se
aproximando de Berlim. Os brindes se sucediam — até mesmo
Dimitri participava, sentado ao lado de Elie com um copo d’água.
Mas, cada vez que Stumpf escutava a palavra derrota, fechava os
olhos. Durante toda a festa — uma refeição feita de algumas latas
de presunto e algumas raízes, tudo regado a vinho —, ele ficara ao
lado de Hermione Rosebury. Mas, depois da refeição, quando as
pessoas ainda brindavam, Stumpf pediu-lhe que o ajudasse em
outra sessão espírita, dizendo:
— Os mortos não devem ser negligenciados.
Relutante, Hermione se levantou e eles subiram a escada em
espiral até a torre de sentinela, agora apinhada de caixas de cartas.
Stumpf não se incomodava com os sete trincos de sua porta;
Hermione avançava lentamente, acendendo as velas espalhadas
em todos os cantos. Ela era especialista no encontro mediúnico com
os autores de cartas de todos os séculos. Havia entrado em contato
com um fabricante de botões, um fabricante de sofás, vendedores
de peles, fabricantes de embarcações, mecânicos, impressores,
ilusionistas e artistas. Captara cartas de antigos armazéns,
gabinetes governamentais e lojas empoeiradas e esquecidas.
E, embora ele quisesse falar com alguém cujas cartas viessem
dos campos de concentração, Hermione lhe dissera que agisse
devagar, de modo que os mortos pudessem se reunir pacificamente.
Era melhor começar com alguém de muito antes da guerra, ela
dizia, talvez um negociante de botões em Dresden que nunca
respondera a três cartas de Frau Weil, uma costureira da Alsácia,
que queria botões de azeviche para um vestido de seda. Ou, melhor
ainda, Herr Ditcher, em Colônia, que encomendara uma caleche de
Herr Rahm, o famoso fabricante de carruagens de Stuttgart.
— Não me importa com quem você entre em contato — disse
Stumpf.
Ele beijou a bola de cristal para atrair a sorte. O vidro ficou
embaçado por causa de sua respiração.
— Queria falar com o fabricante de carruagens — disse
Hermione, acendendo a última vela.
Estavam sentados sobre caixotes de madeira. Hermione
chamava por Herr Dichter e começou a ler as cartas de Herr Rahm.
A primeira era respeitosa, hesitante... por favor... seria gentil se...
Herr Rahm queria saber se o interior da caleche podia ser pintado
de castanho-amarelado, no lugar do azul da Prússia, antes
combinado. A segunda indagava sobre a possibilidade de usar vidro
nas laterais da caleche. A terceira era direta e abrupta... três meses
sem resposta... já estamos nos meses do verão...
Hermione leu cada carta e Herr Rahm começou a responder com
sotaque inglês.
— Eu pretendia escrever para ele. Mas não se fazem caleches
com vidro. Este homem está vivendo num conto de fadas.
— Você devia ter achado um meio de dizer-lhe isso — retrucou
Hermione.
Houve um silêncio. Stumpf, como fazia frequentemente, dava
tapinhas nas amplas nádegas de Hermione. Ela batia em sua mão e
lhe pedia para parar.
— Transmita minhas desculpas — disse Herr Rahm.
— Não acho que desculpas bastem — explicou Hermione. — Ele
está num lugar lindo, mas não pode aproveitar, porque está
esperando notícias suas.
— Vamos rápido! — intimou Stumpf. — Não quero falar com ele
a noite toda. Diga-lhe apenas sobre as outras cartas que não
respondeu.
— Não me dê ordens dessa maneira — protestou Hermione.
Assim mesmo, ela disse:
— Há outras pessoas lá como ele, com os ouvidos voltados para
o céu.
Stumpf tentou permanecer sentado e sossegado. Mas as
notícias do avanço dos russos se revolviam em sua mente. Eram
horríveis, devastadoras; ainda assim, ele tinha certeza de que as
fissuras no mundo davam para o outro lado e os mortos sabiam de
coisas que os vivos ignoravam, ainda que as informações de que
gradualmente a Alemanha era derrotada na guerra fossem só um
rumor. Ele se levantou e abriu as mãos — dirigindo-se a todos os
mortos cujas cartas estavam nos caixotes.
— Digam-me o que está realmente acontecendo com esta
guerra. A verdade! — Houve uma pausa. Stumpf cerrou as mãos. —
Não estamos trabalhando o suficiente para vocês? Vocês não
sabem que temos caixotes cheios de cartas? Respondemos às
cartas todos os dias! O que vocês querem?
— Pare — ordenou Hermione.
— Eu mereço saber — insistiu Stumpf.
Ele atirou a bola de cristal no chão, que se espatifou, e neste
momento todas as velas se apagaram. O ambiente se encheu com
o cheiro de fumaça e cera derretida. Hermione o sacudiu.
— Nós os perdemos! — exclamou ela. — Você não devia ter
feito isso!
Stumpf pôs o braço em volta de Hermione. Ela não era tão
flexível quanto Sonia Markova, mas havia algo nela que ele não
sabia explicar, e seu corpo no escuro o confortava. Então ele disse
que a deixaria falar e a ajudaria a acender mais velas.
Porém, repentinamente, Hermione se afastou e correu para o
canto da torre. Stumpf sentiu uma presença elétrica ali dentro. Não
podia enxergar Hermione, mas ouvia sua respiração arquejante.
Então, ela disse que recebera uma mensagem do futuro — o que
era desconcertante, porque ela não era vidente. Abotoando sua
blusa, ela desceu correndo a escada em espiral da torre até o salão
principal do Complexo e gritou para todos ouvirem. Sua voz era
frenética, selvagem e ecoou por todo o salão da mina. Os escribas
se imobilizaram, olhando para ela.
— A Alemanha vai perder a guerra! — berrou ela.
— Como você sabe? — perguntaram os escribas, quase em
uníssono.
— Acabei de ver — respondeu ela. — Cidades em chamas em
todo o país. Os Aliados invadiram os campos de concentração. Sim,
acabo de ver.

C
Somente uma pessoa no Complexo não ficou entusiasmada com
a visão de Hermione: Elie Schacten. Era verdade — conforme
argumentara Lodenstein —, a Alemanha estava perdendo a guerra,
e havia sempre o depósito para esconder Asher, Daniel e Dimitri,
caso um destacamento de perquisição chegasse ao Complexo.
Ainda assim, ninguém se sentia em segurança e mais uma vez o
silêncio se fez. As rações estavam minguando; as hortas tinham de
ser replantadas constantemente. Lars instalou uma tranca a mais na
porta do trailer, e eles ocultaram todo alimento extra sob os casacos
ao longo da parede e nas mesas onde os escribas dedicavam suas
mentes ao sonhatório.
Quanto mais Elie pensava no que os noctâmbulos tinham dito,
mais o Complexo se dividia em dois mundos — de dia, um lugar de
silenciosos pressentimentos, destilando-se de um romance em
sonhatório. À noite, um inferno solitário, onde ela caminhava pela
rua de pedras e ainda tentava pensar nas pessoas que podiam
ajudar Asher, Daniel e Dimitri a chegarem à Dinamarca.
À noite, o perigo era maior a esta altura da guerra. Desertores
estavam em todos os lugares, e também a Gestapo, caçando-os,
atirando sem hesitar em tudo que se mexesse. Elie e Lodenstein
limparam a cama em que o oficial fora assassinado. Lavaram os
lençóis e puseram a manta para arejar. Depois, retornaram ao
quarto a fim de não se afastarem da porta da cabana de pastor.
Ninguém podia sair à noite, mas os escribas ansiavam pelo clima
mais ameno do verão, e Lodenstein deixou duas pistolas dentro de
um balde, ao lado da porta.
Elie carregava a própria arma no bolso do casaco, enquanto
fumava seus cigarros sob a proteção de uma echarpe. Às vezes, ela
pensava ver vultos se movendo no bosque — SS, fugitivos,
Gestapo, alces, não tinha como saber. Lodenstein vinha com
frequência procurar por ela — repreendendo-a, empurrando-a de
volta ao trailer. E os escribas ainda saíam para fumar.
Mas nenhum ficava muito tempo lá fora. Os escribas calculavam
o tempo de um cigarro, Elie, de três. De vez em quando, alguém
saía para colher legumes. Antes de ir para a cama, ela descia o
poço e ia até a casa dos Solomon para ver Dimitri pela janela. O
menino se tornara sua pedra de toque: se o visse dormindo, ela
acreditava que o Complexo estaria em segurança por mais uma
noite.
Com essa disposição de espírito, às vezes ela esquecia que era
Elie Schacten, provedora de alimento e também de desastres, e se
tornava Elie Kowaleski, filha renegada de católicos poloneses e que
tinha uma irmã pianista. As duas Elies faziam listas e caminhavam
pela rua de pedras. As duas Elies olhavam os escribas sob uma
echarpe. E foi desse ponto de vista privilegiado que ela observou
Stumpf sumir carregando vinte e dois caixotes de cartas na traseira
de seu Kübelwagen.

C
Era uma noite no final de setembro, e o clima estava
atipicamente tépido, lembrando Elie das noites de verão quando era
criança. Ela respirou profundamente e sentiu que o mundo
esquecera-se da guerra. Os pinheiros balançavam e arfavam com o
vento — levando-a a pensar em notas tocadas no piano. As árvores
ignoravam os fugitivos, desertores ou membros da SS que corriam
entre elas. O ar quente embalava Elie. Sentia-se livre das listas, dos
esquemas e das preocupações.
Então, ela viu a porta do trailer se abrir lentamente e um vulto
aparecer na soleira. Era Lars. Ele carregava um grande saco de
lona e seguiu rapidamente na direção da floresta. Elie estava a
ponto de chamá-lo, mas ele parecia envolvido por uma aura de
sigilo, num silêncio quase absoluto. Ela então esperou, observando-
o caminhar para a parte mais densa da floresta. Quando ele
alcançou um aglomerado de árvores, ela viu um braço surgir e
agarrá-lo, jogando-o contra o tronco do pinheiro.
— Aonde você vai? — perguntou uma voz atrás da árvore.
— Vou encontrar meu pai — respondeu Lars. — Esta guerra é
uma bosta.
Elie tomou um susto ao ouvir um tiro. Lars caiu no chão. Seu
corpo se contorceu e ela ouviu outro estrondo. Lars não se moveu
mais.
Uma silhueta vestida num longo casaco saiu de trás da árvore e
se aproximou. Elie pôs a mão sobre o revólver. Era Mueller.
— Fräulein Schacten — disse ele. — Sinto muito que tenha
presenciado essa comoção.
— Pode ter certeza, escutei tudo.
— Admiro sua perspectiva.
Mueller cheirava a pólvora e a folhas de pinheiro — aquela
combinação fez as tripas de Elie se contorcerem. Mueller pediu um
cigarro e ela deu o seu. Sua outra mão continuava sobre a arma.
— De onde você veio? — perguntou ela.
— Do bosque.
— Como um ogro.
— Como o Reich.
Ele pôs um braço sobre os ombros dela e perguntou como ela
estava. Elie respondeu que estava muito bem e Mueller disse que
talvez as coisas não estivessem tão bem quanto ela pensava.
Elie olhou para o corpo de Lars, imóvel como uma árvore
derrubada. Queria correr até ele — era um forte desejo que fazia
seu coração bater acelerado, mas ela se esforçou para se manter
quieta.
— Tenho tido sorte nesta guerra — disse ela.
— E sua sorte pode continuar, se você me escutar.
Segurando seu braço, ele a encaminhou até o tronco de um
imenso pinheiro. Ele andava com certa verve, como se tivesse
acabado de sair de uma ópera e passeasse por um bulevar. O ar
tinha uma doçura rançosa e nauseante.
— É ótimo ver você — disse Elie. — Mas tenho que ir embora.
— Talvez possamos ir até meu Kübelwagen. Não podemos ficar
aqui.
Elie se afastou um pouco. Mueller se aproximou e segurou seu
queixo:
— Tenho notícias para você. E não são as que você ouviria na
Rádio Europa Livre.
— Tenho todas as notícias de que preciso.
— Não essas — explicou Mueller, parecendo jovial e
despreocupado. — Elfriede Heidegger anda bisbilhotando por aí. Ela
diz que o marido fez uma viagem inútil até Auschwitz e que depois
foi deixado sozinho sob a neve numa estação de trem deserta.
Nenhum dos dois está contente. Uma viagem inútil, está
entendendo? E agora Goebbels tem o seu nome.
— Que outras mentiras você andou inventando? — perguntou
Elie.
Ele deu-lhe um forte tapa no rosto. Ela sentiu o choque nos
dentes.
— Não preciso inventar mentiras! — exclamou Mueller, quase
berrando. — Goebbels sabe que você desobedeceu a uma ordem e
vai matá-la. Mas eu posso esconder você. Estou indo embora desta
guerra. Você ficaria surpresa com os lugares aonde eu poderia levá-
la.
— Não quero ir para lugar algum com você!
— Venha comigo. Você já ficou tempo demais com aquele
arremedo de nazista.
Mueller pressionou Elie contra a árvore. Ela sentiu os galhos
ásperos espetando suas costas. Ele rasgou sua blusa e ela sentiu o
ar quente nos seios. Ele pôs a mão sobre um deles. Ela apertou o
revólver em seu bolso.
— Sempre houve algo entre nós — disse ele. — Há mais de um
ano tenho sido paciente.
— Nunca houve nada entre nós.
— Claro que sim — insistiu ele, arrancando uma das mangas da
blusa dela.
Elie ouviu a seda rasgar-se e, imediatamente, as protuberâncias
do tronco se tornaram cacos de vidro, o ar cheio de um doce
veneno. Imaginou-o tirando suas roupas, pressionando o anel contra
seu rosto, o bigode roçando em sua boca — enquanto ele se
apoiava contra ela. Elie sacou então seu revólver e o apontou contra
as costelas de Mueller. Ele recuou.
— Então, você está armada. Como todo mundo nessa merda de
guerra.
— A diferença é que eu não tenho medo de usá-la — disse Elie.
Ela disparou um tiro na floresta. E, depois, outro.
— Se você voltar a tocar em mim, eu o mato — concluiu ela.
— Acho que não. Logo estarão atrás de você. E o garotinho com
o Echte Jude? Eles também sabem dele. Eu me certifiquei de que
ficassem sabendo.
Elie disparou outro tiro.
— Vá embora daqui — disse ela.
Mueller retirou uma garrafa de dentro de seu casaco e bebeu um
longo gole. Em seguida, jogou-a no chão e seguiu na direção da
estrada. Ele não viera do bosque, mas de seu Kübelwagen.
Ouvindo-o sair rosnando noite adentro, Elie se aproximou do corpo
de Lars. Não viu sangue em seu peito, ele parecia apenas estar
dormindo. Ela pôs seus cabelos para trás e afagou sua testa.
Depois, fechou seus olhos. Com um lenço, limpou o sangue que
começava a escorrer do canto da boca. Após juntar alguns ramos
de pinheiro, cobriu o corpo dele. Em seguida, pegou a garrafa; era
um conhaque francês com uma pequena etiqueta em volta do
gargalo — as mesmas palavras de ordem que Lodenstein vira:
Tradutores, traidores.
C
François,

Talvez você não me veja outra vez. Por favor, saiba que eu o amo.

Robin
Elie desceu correndo e olhou pela janela de Solomon. Dimitri
dormia ao lado de Talia e Mikhail, que estavam outra vez jogando
xadrez — tão absorvidos na partida que nem sequer notaram sua
presença. Ela subiu novamente até o quarto, onde Lodenstein
estava guardando um bilhete dentro do baú.
— Você não se cansa nunca de achar coisas? — perguntou ela.
— As ondas continuam trazendo-as — respondeu Lodenstein.
— Como coisas que vêm do mar.
— Coisas que vêm da guerra.
Elie despiu-se de suas roupas rasgadas e deitou-se. Lodenstein
foi para a cama com ela.
— Você não pode sair assim tão tarde. Você sabe que eles
dinamitaram as câmaras de gás?
Elie hesitou. Depois, disse:
— Mueller estava na floresta. Agora é um desertor.
— Isso não me surpreende. Devíamos brindar por não termos
nunca mais que nos preocupar com ele.
Ele apanhou o que sobrara de conhaque.
— Gerhardt — disse ela. — Tenho péssimas notícias. Mueller
atirou em Lars. Ele o matou.
— Não entendo.
— Eu também não entenderia se não tivesse visto. Agora
mesmo. Na floresta.
Lodenstein começou a chorar, e Elie o acariciou, sentindo os
ferimentos causados pelo contato com a árvore doendo nas costas,
desejando nunca ter de contar isso para ele.
— Só trago coisa ruim para este lugar — disse Elie.
Lodenstein se forçou a interromper o choro.
— Você só traz coisas boas — falou.
— Não é verdade. Nem um pouco verdade.
Lodenstein acendeu o lampião e envolveu-a com o braço. Elie
observou o círculo suave de luz no teto.
— Ainda estamos neste quarto — disse ele. — E ainda estamos
juntos. Mueller não voltará mais aqui. Ele só queria assustar você.
— Mas é realmente assustador. Mueller contou para o Reich
sobre Dimitri. Ele falou que os Heidegger voltaram a incomodar
Goebbels. Eles sabem meu nome.
— Ele está blefando.
— Não, não está. Ele já havia saído do Complexo no momento
em que Stumpf foi entregar os óculos para Heidegger. Ele não sabe
que Stumpf lhes revelou meu nome.
— Elie, ouça: já passamos pelo pior. Conseguiremos nos safar.
— Eles ainda podem vir atrás de mim.
— Sempre teremos o esconderijo dentro do túnel.
— Imagine se a Gestapo aparece.
— Ninguém aparecerá. Esta guerra acabou.
Uma história que se conta para uma criança dormir, pensou Elie,
o tipo de coisa que diria para Dimitri. Assim mesmo, ela se
aproximou de Lodenstein, tentando ignorar as pontadas nas costas
e a imagem do corpo de Lars sozinho na floresta. Lodenstein era
verdadeiro, resistente. E estava vivo. E o quarto quase parecia um
local seguro. Ele apagou o lampião e ficaram deitados sob a manta
cinzenta. O tecido estava em farrapos. Elie enfiou o dedo num dos
buracos.
— Precisamos conseguir outra — disse ela. — Esta aqui está
nas últimas.
— Nas últimas — repetiu Lodenstein, um pouco antes de cair no
sono.
Elie ficou deitada a seu lado, tentando resgatar a impressão de
conforto que trazia a escuridão. Mas o escuro se dissolveu em
imagens do corpo de Lars e na sensação das mãos de Mueller
rasgando sua blusa.
A noite está arruinada para mim, pensou ela, sem saber se
estava lembrando algo que ouvira ou se era algo em que acabara
de pensar.
Não importava de onde tivesse vindo, o pensamento a noite está
arruinada para mim causou-lhe um estranho efeito. Ela não
conseguia ficar deitada e quieta, desfrutando do calor do corpo de
Lodenstein. Tampouco podia confiar no que ele lhe dissera. Voltou a
vestir suas roupas rasgadas, cobriu-se com um casaco e desceu
outra vez. Quando chegou à base do poço, viu Asher chegando do
salão principal.
— Estupidez minha — disse ele ao vê-la. — Que importância
tem se eu ficar perto deles?
Elie falou que não estava entendendo e ele lhe contou sobre sua
preocupação com a possibilidade de Daniel engravidar Maria e que,
às vezes, ficava perto da mesa deles — como se sua presença
fosse uma espécie de controle de natalidade. Ele disse que aquilo
era estranho e uma perversão, ficar escutando o próprio filho
fazendo amor.
— A coisa mais estranha que já fiz — concluiu ele.
— Não fique preocupado — disse Elie. — Maria tem um bocado
de cartas francesas.
— Isso é ótimo. Essas são as únicas cartas aqui que merecem
atenção.
Elie riu e ficou surpresa consigo mesma por isso. Asher sentou-
se no banco a seu lado. Ela tocou nos números azuis em seu braço.
— Combinam com seus olhos — disse-lhe novamente.
— Que bom, porque eles vão ficar comigo por muito tempo.
A frase a noite está arruinada para mim voltou a seu
pensamento. Ela ajeitou a blusa de modo que Asher não pudesse
notar que estava rasgada.
— O que é isso? — perguntou ele.
— Nada — respondeu Elie. — Apenas: como explicar que a
noite está arruinada?
— Ninguém precisa explicar.
Elie concordou.
De repente, ela se lembrou de um dia em que saíra cedo de uma
aula e vira Asher e Gabriela caminhando sob a chuva por um
pequeno parque. Estavam envoltos numa neblina, e Elie os via
como vultos distantes, prestes a desaparecer: embora aquela
imagem a entristecesse, ela a adorava. Ela correra para alcançá-los
e os três seguiram andando juntos em meio à neblina. Fazia anos
que essa lembrança a visitava. Um oceano de medo se assomou e
se acalmou dentro dela.
— O que você realmente viu em Auschwitz? — quis saber ela.
Asher respirou profundamente.
— Tudo.
Elie teve a estranha sensação de que ela e Asher partilhavam
um universo particular — diferente daquele que partilhava com
Lodenstein. Tratava-se de um mundo bem anterior à guerra — um
mundo de desvelamentos, revelações e descobertas. Ela e
Lodenstein eram parceiros numa missão. Eles partilhavam o temor
pelo Complexo assim como a esperança no futuro. Olhando para o
poço, ela via um fragmento da cozinha, onde Lars costumava
descascar maçãs em perfeitas espirais.
— Podemos conversar a sós? — perguntou ela.
Asher concordou e eles saíram andando.
Mais uma vez, Elie se lembrou do escritório de Asher em
Freiburg. Viu papéis com frases em sonhatório e livros. Havia
também máquinas de escrever em todos os estágios de
remontagem e desmontagem, e uma caneca azul e branca no chão.
Asher acendeu o abajur Tiffany e serviu uma taça de vinho para
Elie.
Mas Elie pôs a taça de lado e disse para Asher que tudo estava
muito confuso: Mueller acabara de matar Lars. Os Heidegger tinham
revelado seu nome para Goebbels. E Goebbels estava a par de
Dimitri. Sua voz estremeceu. Ela estava à beira das lágrimas.
— Este lugar não é mais seguro — disse ela. — Você, Daniel e
Dimitri não estão seguros. Você precisa descobrir um meio de levá-
los para a Dinamarca.
— Seríamos fuzilados na primeira noite que passássemos na
floresta.
— Asher, você não entende. Você estará correndo um enorme
risco se ficar.
Elie começou a chorar. Incapaz de se conter, enfiou a cabeça
num travesseiro.
— Elie — disse Asher.
— O quê?
— Isso — respondeu ele, envolvendo-a com seus braços.
Elie sentiu um arco de calor percorrer seu corpo. Asher a
abraçou e afagou seus cabelos. Era como se ele soubesse de tudo
— os espinhos da árvore nas costas dela, o som dos disparos, a
blusa de seda sendo rasgada. E sabia que, apesar de centenas de
incursões, ela nunca encontraria a única pessoa que estava
procurando.
Quando parou de chorar, Elie se levantou e olhou ao redor — a
coleção de livros, as anotações para o sonhatório, cartuchos, teclas,
bobinas e outros objetos metálicos.
— Obrigada — disse ela.

C
Alguns momentos mais tarde, ela se surpreendeu que a rua de
pedras estivesse idêntica. Seguiu andando pelo salão principal,
onde Parvis Nafissian manuseava um tecido. Anos antes, ele fora
aprendiz de alfaiate com o pai na Turquia e, às vezes, divertia-se
fazendo roupas para as pessoas no Complexo. Quando Elie se
aproximou, ele lhe mostrou um corpete de renda.
— Perfeito para Gitka — sugeriu ela.
— Nossa sereia — disse Nafissian.
Ninguém notou que conversavam. Tampouco a viram, quando
Elie foi sentar-se à carteira escolar e começou a escrever
novamente no caderno vermelho-escuro. Desta vez, ela escrevia
bem rápido, preenchendo uma página, depois outra, parecia que se
não escrevesse rápido o bastante as palavras descolariam do papel.
Quando acabou, Elie subiu e colocou o caderno no baú de
Lodenstein. Adormecido, ele buscou-a na cama enquanto ela se
deitava, apreciando a manta que estava em seus últimos dias e uma
parte da floresta pela janela — ramos de pinheiro de cada lado das
cortinas. Podia sentir a energia de Lodenstein. Podia sentir cada
osso de seu corpo. E quando ele acordou e fizeram amor, tudo que
tinha acontecido na floresta desapareceu. Ela só reconhecia o
próprio rosto quando ele o tocava — roçando seus cílios,
percorrendo as linhas de sua boca, acariciando a curva de suas
faces. Ela só reconhecia o quarto através do contato de seu corpo.
Nenhuma entrega física poderia ser profunda o suficiente. Ela não
cansava de tê-lo ali a seu lado, não cansava de tocá-lo ou de beijá-
lo. Eles sempre haviam sido parte de algo maior do que a guerra —
algo atemporal, secreto, indizível.
Ele adormeceu abraçado a ela, um sono profundo, distante dela.
A manta pareceu muito leve quando ela se descobriu. Postou-se ao
lado da porta e ali ficou por um bom tempo, observando-o.

C
Lodenstein despertou numa cama vazia algumas horas depois.
Colocou sua capa de chuva e saiu. Ainda amanhecia e os raios de
sol atravessavam os vãos entre os pinheiros. Ele a procurou na
horta e então viu marcas recentes de pneus no chão. O jipe dela se
fora.
Ele desceu pela rampa, batendo nas grades do poço como se
isso o ajudasse a ir mais rápido. Alguns escribas se encaminhavam
para a cozinha, esfregando os olhos. Ele ouviu alguém mencionar
um sorteio, em seguida o som de um fósforo sendo riscado para
acender o primeiro cigarro do dia.
Ele foi até a cozinha: Elie não estava lá. Maria, por um instante
agindo como a garota de dezesseis anos que era, encostou a
cabeça em seu ombro e disse que tivera um pesadelo. Ele afagou
sua cabeça e voltou para o salão principal do Complexo. Nenhum
sinal de Elie. Ele abriu a porta do antigo quarto de Mueller. Ela
também não estava ali.
Bateu na porta do depósito. Asher respondeu.
— Você viu Elie?
Asher disse que não.
— O jipe dela não está lá fora — acrescentou Lodenstein.
Naquele instante, Talia Solomon apareceu apressada, chegando
do salão principal do Complexo.
— Dimitri sumiu! — disse ela.
Os olhos de Lodenstein se fixaram nos de Asher. Ambos
sagazes, ambos azuis, ambos como os de Elie. Por acaso aquela
semelhança aleatória faria com que ela surgisse dentro do quarto?
Por um instante, Lodenstein achou que sim.
Ele voltou para o salão principal e abriu a gaveta superior da
mesa de Elie, onde encontrou um pedaço de papel escrito: Para
Gerhardt. Colocou-o no bolso e subiu novamente, passando
correndo pelo quarto.
Era final de verão e começava a esfriar. Os pinheiros se
alvoroçavam ao vento, como se pessoas comuns morassem
naquele trailer e fosse um dia comum, sem guerra, o que acabava
de começar. Outrora, Lodenstein tinha acreditado que a mente e o
clima funcionavam em conjunto, mas depois se deu conta de que o
clima ignorava tudo. Fazia sol e chuva sobre as atrocidades assim
como sobre as benevolências, sobre a mesquinhez, sobre a
violência e sobre a generosidade. O clima estava presente nas
guerras, casamentos, tratados de paz e traições. Por um momento,
sentiu ciúmes do clima, porque Elie sempre sentiria seu calor, sua
neve e sua chuva. Na verdade, ela estaria em algum lugar àquela
hora, sentindo a violência do vento.
Ele nunca conhecera aquele lugar sem Elie. Ela o conduzira pela
estrada estreita, mostrara-lhe a floresta, o trailer, o levara ao
subterrâneo, e ela o apresentara aos escribas. Explicara-lhe o
funcionamento mecânico do sol e o sonho do arquiteto sobre a rua e
o parque municipal. Ele nunca vira aquele lugar sem pressentir a
presença dela — mesmo quando estavam brigando ou quando ela
saía numa incursão. Agora, ele olhava sozinho para a floresta pela
primeira vez. Estava vazia, sem dimensões — não era uma floresta,
apenas um amontoado de árvores. As camomilas se agitavam em
arbustos esparsos. A clareira onde Elie costumava estacionar seu
jipe reverberava com sua ausência. Ele olhou as marcas dos pneus
e se deu conta de que nunca mais esperaria que ela retornasse de
suas incursões ou correria até lá fora, tarde da noite, para certificar-
se de que estava em segurança. Poucos meses antes, Lodenstein
fizera outra fotografia de Elie na clareira, que sempre guardava
consigo. Os cabelos estavam puxados para trás, presos por um arco
vermelho, e ela usava uma blusa branca de seda com uma rosa
branca de veludo espetada na gola. Ele olhou para o retrato e sentiu
sua presença bem próxima. Veio-lhe tudo que pertencia a ela: seus
ossos delicados, seu perfume de rosa, o modo como trazia o mundo
todo para o Complexo.
— Elie — chamou ele, como se o nome evocasse sua presença.
O BAÚ
Querido Gerhardt,

Sei que minhas atitudes foram extremamente danosas para o


Complexo. É inacreditável que isso tenha acontecido por causa de
um simples par de óculos. Pensei que conseguiria controlar tudo.
Mas não fui capaz. Nem sequer tinha certeza de que seria capaz de
partir. Mas Dimitri está em perigo — e preciso salvar o maior número
de pessoas possível. Espero que você entenda. Você não pode
mais deixar Asher e Daniel saírem da mina, e precisa fazer com que
tenham acesso rápido ao cômodo no túnel. Há trigo sobressalente
no armário da direita na cozinha e cinco latas de presunto num
caixote sob a pia. Não é muito, mas espero que dure.
Mal posso dizer quanto eu o amo. Mal posso dizer quanto pensei
em tudo que você fez por mim, por todos nós, e como sempre me
apoiou, mesmo quando eu trouxe indescritíveis riscos para esse
lugar. Sei que ambos concordamos em nos mantermos quase
invisíveis em benefício das outras pessoas. Sei também que você
fez isso muito melhor do que eu.
Eu me pergunto o que as pessoas pensarão do Complexo
depois da guerra, e se ao menos se recordarão de nós. Eu me
pergunto se as pessoas virão um dia visitar a rua de pedras,
apinhada de caixotes, e a cozinha onde La Toya preparava a sopa,
e a casa dos Solomon, onde Dimitri brincava com Mufti. Ou talvez
esse lugar venha a ser esquecido. Como é estranho pensar que
ninguém tomará conhecimento um dia desse local, onde tantas
pessoas fizeram jogos de palavras, dormiram e choraram. Como é
estranho pensar que ninguém nunca mais verá o sol subir sobre as
roldanas ou as falsas estrelas que brilhavam no aniversário de
Hitler. E como é triste pensar que ninguém jamais se recordará do
sonhatório.
Por favor, mantenha todos aí em segurança por mim. E por favor,
conserve-os bem perto de você, como eu os conservarei, como eu o
conservarei perto de mim.

Com amor, sempre,


Elie Kowaleski
Elie partiu oito meses antes da queda de Berlim. Uma semana
após Berlim ser capturada, os escribas sentiram cheiro de fumaça e
se assustaram, achando que o incêndio alcançaria a floresta.
Somente Asher e Daniel não sentiram medo. Ambos já haviam visto
a morte de perto.
Mas a floresta em volta do Complexo nunca pegou fogo, e, um
mês depois da rendição, Gerhardt Lodenstein guiou os escribas até
o túnel, passando pelo cômodo dos ossos, seguindo onze
quilômetros no escuro ao longo de um córrego subterrâneo, até eles
subirem de volta à superfície, numa cidade ao norte. Mulheres
macilentas que limpavam as ruas, incertas se aquela parte da
Alemanha havia se rendido aos russos, pareceram espantadas ao
ver quase sessenta pessoas em casacos de pele, muitas usando
óculos, emergindo de um buraco no chão. Elas também viram sair
um enorme baú, seguido de um carrinho de mão. O último a surgir
foi um homem alto e pálido, vestindo uma capa de chuva.

C
Antes de deixarem o Complexo, Lodenstein pediu a cada escriba
que pusesse uma lembrança dentro do baú. A cerimônia transcorreu
em meio a impaciência e indulgência. Os escribas tinham passado
oito meses com pouquíssima comida, mas Lodenstein arriscara sua
vida indo até a cidade a fim de conseguir as últimas rações
possíveis, sempre tomando o máximo de cuidado.
Dentro do baú, Sonia Markova depositou uma luva vermelha. La
Toya, duas piteiras. Gitka, um casaco de pele. Mikhail Solomon, seu
jogo de xadrez. Talia Solomon, um abajur Tiffany. Nafissian, o
dicionário do sonhatório. Alguns arrancaram páginas de um diário
codificado. Asher colocou sua caneca azul e branca. E Lodenstein
fechou tudo lá dentro, junto com os óculos de Heidegger.
Agora, o baú à frente deles parecia algo vivo, como se
aguardasse uma oportunidade para falar. Ninguém queria ficar com
ele, e ninguém quis dizer isso em respeito a Lodenstein. Todos
queriam partir de uma vez por todas do Complexo — caminhar em
ruas de verdade e viajar para lugares bem distantes daquela cidade.
Queriam ver se ainda tinham famílias. Queriam ver se ainda tinham
suas casas.
Lodenstein deu o baú para Daniel, pois ele era o mais jovem.
— Guarde-o — disse-lhe ele. — Guarde-o em segurança.
Daniel assentiu. Ele e Asher carregaram o baú, acomodado no
carrinho de mão. Os escribas se abraçaram e se beijaram,
chorando, e trocaram endereços de casas que talvez não existissem
mais. E Maria e os Solomon tiveram um desentendimento — o
primeiro que qualquer um ouviu —, porque Maria quis ir com Daniel.
— De forma alguma. Você é nossa.
Lodenstein viu Daniel e Maria se abraçarem, se beijarem e
chorarem. Asher e Mikhail trocaram cinco endereços para que os
dois pudessem se corresponder. Ele viu Gitka e La Toya
desaparecerem com suas piteiras e Sophie Nachtgarten se afastar
lentamente, carregando Mufti. Na verdade, ele ficou olhando cada
escriba deixando-o, sentindo-se cada vez mais abandonado. Por
tanto tempo, seu objetivo havia sido protegê-los, alimentá-los,
mantê-los em segurança. Agora, ele sabia que começaria uma
longa procura por Elie. Havia muitas Kowaleski no mundo, e muitas
delas não tinham voltado à Polônia porque a Polônia vivera tantos
pesadelos quanto a Alemanha.
C
Queridos pais,

Estou enviando cinco cópias desta carta para lugares que ajudam
as pessoas a se encontrarem. Estou num campo de concentração
agora, onde os soldados me alimentam, assim como a um bocado
de gente.
Tive sorte porque fugi para o bosque quando começaram a nos
levar embora. Durante uma semana, tudo o que tinha para me
alimentar era neve. E então, os russos me encontraram. Onde
vocês estão? Eu quero ir para casa.

Com amor,
Nathalia Vernetti
Elie nunca conseguiu levar Dimitri para a Dinamarca. Ela foi para
um esconderijo em Berlim e ficou lá até a cidade começar a
queimar. Por alguns momentos, Elie e Dimitri viram um brilho
sobrenatural pela janela — uma espantosa claridade nos telhados.
As chamas lambendo as fendas, como se sentissem falta umas das
outras e tentassem se reunir. Alguns dias depois, quando Berlim se
rendeu, Elie saiu do esconderijo e, com Dimitri, viu a cidade sob um
nevoeiro. Não o nevoeiro diáfano do Complexo, mas um nevoeiro
enfumaçado de poeira e cascalho. Elie achou um apartamento que
alguém abandonara havia muito tempo — com quatro quartos,
janelas destruídas pelas bombas e plantas mortas. No prédio havia
outros sete apartamentos com novos residentes em todos eles, todo
mundo vivendo em meio a artefatos de vidas que não haviam
conhecido, de fotografias de pessoas estranhas a pianos. E, como
três dos moradores não falavam alemão, eles nunca perguntavam
nada a Dimitri, apenas cantavam para ele, ensinavam-no a dançar,
davam-lhe comida de suas próprias e humildes rações. Talvez por
isso, Dimitri começou a falar cada vez mais — sobre seus pais,
sobre suas comidas prediletas, sobre os passeios que gostaria de
fazer.
No começo do outono, Elie conseguiu um emprego de tradutora
num hospital, um apartamento com janelas intactas, outro gato
malhado e uma escola para Dimitri, que desenvolvera um
surpreendente dom para fazer amigos. E durante todo esse tempo,
ela procurou por Lodenstein. Berlim parecia um misterioso pátio de
manobras ferroviárias onde, às vezes, ao mostrar um retrato para
uma pessoa estranha, você acabava numa reunião.
Homens e mulheres que Elie abordou — em restaurantes,
bancos, passeando no parque — olhavam para a fotografia de
Lodenstein e negavam com um gesto de cabeça. Ela visitara
cervejarias, residências, escritórios e vasculhara centenas de
arquivos — arquivos com nomes de pessoas no século XIX,
arquivos de oficiais anistiados. Chegou mesmo a bater na porta de
locatários com o sobrenome Lodenstein. Nada.
O hospital onde Elie trabalhava ficava perto do centro de Berlim
e, às vezes, no horário do almoço, ela cruzava o Portão de
Brandemburgo. A poeira se erguia entre as colunas perfuradas
pelos estilhaços de granadas. Ela caminhava até a Wilhemstrasse,
onde se encontrava a carcaça queimada e bombardeada do
Reichstag: era ali a prisão onde haviam jogado Lodenstein. E o
gabinete de Goebbels, onde Lodenstein negociara com ele. Elie
observava os pássaros revoando sobre estátuas decapitadas nos
telhados e, às vezes, se aproximava dos tapumes que cercavam os
prédios, como se assim pudesse prestar homenagem a Lodenstein
ou até mesmo encontrá-lo. Depois, voltava pela cidade estonteante,
suntuosa com suas tílias inclinadas, exalando um perfume que
misturava lilás e poeira. Todas as ruas de pedra haviam sido
destruídas. Ela tropeçava nos pedaços de calçamento rosado.
Elie continuou a procurar Lodenstein — arrastando Dimitri nos
fins de semana até a fronteira com a Alemanha ocidental, ou até
bairros diferentes, depois da escola. Independentemente do
caminho que tomavam, viam casas bombardeadas por todo canto
— janelas abertas para o céu, corredores vazios que levavam a
quartos sem chão ou salas enfumaçadas com móveis em pedaços.
Algumas casas só conservavam uma parede em pé, como se
tivessem sido amputadas.
Elie olhava para todas as casas, assim como para todos os
homens na rua. Um era alto como Gerhardt. Outro tinha seus olhos
azuis. Ainda outro, seu jeito de andar.
Certa noite, um homem de cabelo castanho acenou e Elie
retribuiu o gesto. Ela o conhecia, pois ambos tinham estado no
mesmo esconderijo. Mas os estranhos também se
cumprimentavam, porque supunham ter se encontrado num porão
escuro, durante um bombardeio. As longas horas num abrigo, junto
à combinação de anonimato e medo, encorajavam pessoas
totalmente desconhecidas a trocar confidências. Não era muito
diferente do Complexo, à noite.
Elie interpelou um policial da área para lhe dar um vale ilegal
para uma Brotbaum, árvore de pão, a única maneira que os
berlinenses tinham de conseguir alimento suficiente. Para aquela
noite, ela escrevera: chocolate, pão fresco, batatas em troca de
tradução para polonês, francês, holandês, alemão, inglês, russo e
tcheco, assim como aconselhamento técnico para reencontrar
parentes. Como sempre, Elie caminhou devagar, esperando que, ao
chegar em casa, Lodenstein a estivesse esperando na escada. Ela
o imaginava em seu amassado suéter verde — alto, tenso, olhando
em sua direção. Mas não havia ninguém na escada. Os degraus
estavam sempre vazios.
Ela começou a procurar suas chaves e ouviu vozes animadas no
vestíbulo. Eram vozes masculinas falando num tom de urgência.
Elie vasculhou sua bolsa, achou as chaves, deixou-as cair e
esperou que Dimitri as encontrasse no escuro. Abrindo a porta, ela
entrou aturdida como se tivesse ficado presa no gelo, correndo —
como sempre fazia — em precipitação. Estava certa de que uma
das vozes tinha o ritmo e o timbre de Lodenstein — seu jeito de
enfatizar as palavras quando estava tentando provar alguma coisa,
ou de falar rapidamente ao pressentir o perigo.
Mas só encontrou o senhorio e outro homem, um homem que
não era Gerhardt Lodenstein, falando sobre o preço das batatas.

C
Dois meses mais tarde, Elie levou Dimitri até o local menos
bombardeado que conseguiu encontrar — um parque municipal
abandonado, onde a grama começava a crescer em alguns trechos.
Era uma tarde úmida de primavera, o ar perfumado dos lilases e da
terra molhada, e ela e Dimitri passaram por um portão enferrujado e
se encontraram num terreno cercado. Dimitri carregava duas rosas
frescas e Elie — com certa dificuldade —, um tosco pedaço de
granito. Ela colocou o granito no chão e pôs uma rosa branca em
cima dele. Em torno do caule da rosa, amarrou sua fita vermelha,
desfiada e gasta. Gravadas na pedra, as seguintes palavras:
Gabriela. Você está sempre comigo. Afetuosamente, sua irmã,
Elie.
— Ela está mesmo morta? — perguntou Dimitri.
— Sim, está. Por quê?
— Não sei. Eu estava só pensando.
Elie sabia o que ele estava pensando. Ele vivia numa tênue linha
de esperança, sem saber se seus pais estavam vivos ou não. Era a
esperança de reencontros imaginados, e Elie ainda vivia o dia todo
com essa esperança, batendo nas portas, frequentando cervejarias,
pesquisando o tipo de arquivos e de cartas que deleitariam Stumpf.
Os mortos e os desaparecidos ainda a assombravam: só que agora
eles estavam debaixo da terra. Às vezes, ela se perguntava o que
teria acontecido com os caixotes. Às vezes, pensava nos escribas:
se ainda escreviam; o que acontecera com o sonhatório; se Gitka e
La Toya continuavam juntos; se Maria e Daniel estavam se
correspondendo. Ela se lembrava da luminosidade crepuscular, do
som das máquinas de escrever, dos lampiões a querosene, do frio.
Mas acabava sempre voltando a Lodenstein.
Agora, ela acendia incensos ao lado da sepultura. O cheiro era
adocicado e frígido, fazendo-a lembrar-se das catedrais polonesas
de sua infância, onde Gabriela a cutucava porque ela caía no sono.
Era impensável que ela tivesse sido morta — algo que não
conseguira dizer para Lodenstein, nem mesmo para Asher. Pois
esta era a verdade sobre sua irmã, contada por uma amiga que a
vira dez anos antes da guerra.
Gabriela fora obrigada a marchar até uma praça de uma
cidadezinha próxima de Berlim e a fuzilaram quase sete anos antes
de o Reich assumir o poder. Sua cabeça se reerguera algumas
vezes dentro de uma poça de sangue e seu corpo fora jogado
dentro de um vagão, abandonado em algum lugar no campo.
Ela participara da primeira fase da Resistência — interceptando
mensagens e enviando-as para a Inglaterra, começando a falsificar
passaportes. E você também deveria ajudar, ela dissera mais de
uma vez a Elie. Assim que soube da notícia, Elie se dirigiu para a
cidade em busca do corpo da irmã, sem acreditar na amiga que
dissera que ela fora jogada em um vagão. Mas tudo que encontrou
foi uma rala poça de sangue na pracinha da cidade cercada de
tílias. Alguns meses depois, ela saiu de Freiburg, deixando somente
um recado para Asher e para a Universidade. Começou a frequentar
reuniões do Partido. Lançava mão de seu charme para conhecer
membros mais conceituados, até chegar a Goebbels, que precisava
de um linguista. Estava decidida a achar um modo de resgatar
tantas pessoas quantas fossem possíveis — uma penitência
impossível e insaciável pela morte de Gabriela.
— Já terminamos? — perguntou Dimitri.
— Ainda não — respondeu Elie, entregando-lhe a rosa vermelha.
— Mas ela não é minha irmã!
— Isso é para todas as pessoas que você ama.
— E se eu não amar ninguém?
— Eu o amo o bastante por nós dois — disse Elie.
Ela se curvou e abraçou-o. Ele retribuiu o abraço.
— Agora, dê esta rosa para minha irmã.
Dimitri depositou a flor sobre a sepultura.
— Você se lembra de como me achou? — perguntou ele.
— Eu nunca me esqueço.
— E de como me levou para aquele lugar?
— Também nunca me esqueço disso.
— E daquelas pessoas todas escrevendo cartas?
— Eu me lembro.
Dimitri recuou um passo e olhou para a sepultura.
— Aquele cara com vários queixos me fez escrever algumas
cartas. Para crianças. Você também escrevia cartas?
— Só escrevi uma — respondeu Elie. — Mas eu a guardei em
meu caderno.

C
Quanto ao baú, ele iniciou uma diáspora: primeiro para um
campo de refugiados russo com Daniel e Asher. Depois,
atravessando o Atlântico até Nova Jersey, onde a irmã de Asher
lecionava piano numa rua arborizada em Hackensack. Em seguida,
para um apartamento em Greenwich Village, depois para o Brooklin,
e na sequência para uma loja de máquinas de escrever no Upper
West Side. O baú ficou em sótãos, porões, em casas amplas,
enfiado dentro de depósitos sob as escadas. Ninguém se deu o
trabalho de abri-lo. O conteúdo foi sendo tomado por mofo.
Esquecido.
Asher casou-se outra vez. Recusou um emprego de professor,
alegando que a filosofia não passava de uma série infinda de
argumentos inventados, e montou uma oficina de conserto de
máquinas de escrever na Broadway, no Upper West Side. Daniel fez
um doutorado em química. E Maria, que foi encontrá-los em Nova
York assim que completou vinte anos, tornou-se historiadora de arte.
Com seus vinte e poucos anos, Daniel e Maria se casaram numa
cerimônia simples em um templo no Brooklyn. Eles guardaram o
baú, mas às vezes discutiam sobre a possibilidade de jogá-lo fora.
— E por que não no rio? — indagou Maria.
— Ou num lago em Berkshires? — sugeriu Daniel.
Mas jogar o baú na água parecia impensável e então, num dia
calorento de verão, não podendo mais suportar sua presença, Maria
e Daniel deram o baú para Asher, que o guardou nos fundos de sua
loja. Lá ficou entre carretéis, teclas e outras peças opacas de metal.
Foi à filha mais nova de Daniel e Maria que coube abrir o baú.
Ela foi um acidente, uma surpresa, nascida quando Maria tinha
quarenta e seis anos. Seu nome era Zoë-Eleanor Englehardt —
todos a chamavam de Zoë. Era uma moça magra, loura, que
adorava enigmas matemáticos. Pelo menos uma vez por mês,
depois da escola, ela ia até a oficina de máquinas de escrever do
avô com a mesma postura imponente de alguém entretido com algo
muito importante.
— E aquele baú? — ela dizia ao avô — Preciso vê-lo.
Asher nunca encorajou Zoë a abri-lo. Mas, mesmo quando
tentou dissuadi-la, ela o abriu com uma alavanca, respirando o odor
de papel mofado, o vago aroma de perfume de rosa. A parte
superior estava coberta pelo lenço de Ferdinand La Toya, dobrado
tantas vezes que parecia a palma da mão de uma pessoa com mil
anos de idade. Zoë-Eleanor viu selos de todas as cores e
nacionalidades e retratos de certificados cujos nomes tinham trema,
cedilha, til e acentos graves, símbolos estranhos à sua língua. Viu
cartas em todos os idiomas imagináveis. A maioria das folhas de
papel se tornara fina e quebradiça, algumas estavam datilografadas
em papel grosso, com marcas profundas de carimbo e cabeçalho
oficial. Outras, escritas sobre pergaminhos antiquados, em caligrafia
refinada. Sob as cartas, havia alguns cadernos verdes que fizeram
Zoë se lembrar do próprio diário. Ela achou também um manuscrito
que seu avô disse ter sido escrito por quase sessenta pessoas, em
uma língua que só eles conheciam, e ele nunca se dera o trabalho
de traduzi-lo porque — com um sorriso irônico na expressão —
tradutores são traidores.
Havia também inúmeros objetos: rosas de veludo desgastadas
pelo tempo, frascos vazios de perfume, uma caneca azul e branca,
dois casacos de pele, cinco luvas sem dedos, uma blusa rendada,
uma echarpe de arminho, um corpete preto de renda, um espelho
manual de prata, um cardador de lã quebrado, piteiras pretas, dois
mapas, um revólver, fotografias e um par de óculos com uma
etiqueta für Martin Heidegger.
Quando Zoë experimentou os óculos, ela viu o mundo se
transformar num borrão, num lugar sem contornos distintos, e seu
avô lhe disse para tirá-los. Tudo dentro do baú viera de um lugar
inacreditável, dez metros sob a terra, ele disse. Era o lugar que
salvara sua vida e as vidas de sua mãe e de seu pai, embora
nenhum deles quisesse mais falar sobre isso. E ele continha uma
quantidade infinita de objetos. Toda vez que fechava a oficina, ao
entardecer, Asher precisava obrigar Zoë a ir embora com ele.
— É um baú mágico — disse-lhe ele. — Sempre haverá alguma
coisa para ser encontrada. E mais uma depois dessa.

C
Zoë cresceu e se tornou uma jovem de aspecto delicado,
formando-se em filosofia da ciência, apesar das críticas invariáveis
do avô que, mais de uma vez, lhe disse: Filósofos só fazem se
envolver em argumentos sem fim. Eles têm princípios, mas nunca
vivem de acordo com eles.
— Como Martin Heidegger? — perguntou Zoë, lembrando-se
daquele par de óculos.
— Como todo mundo — respondeu ele.
Zoë acabou por perder o interesse no baú, e Asher nunca o
mencionava. Mas, quando resolveu fechar a oficina de uma vez por
todas, ele convocou Zoë. Ela chegou, pairando com a mesma
autoridade distraída de seus tempos de criança, só que agora usava
um diamante no nariz e mechas de cor púrpura nos cabelos. Asher
a levou até os fundos da loja e puxou o baú.
— Quero que você fique com isso.
— Faz anos que não penso nele — disse Zoë.
— Mas você o adorava quando era pequena. Talvez queira
algum dia catalogar este mundo.
— Por que você não o fez?
— Você sabe por quê — respondeu ele. — Eu nunca mais quis
ver qualquer objeto do Holocausto. O mesmo aconteceu com seu
pai e sua mãe.
Zoë, que já ouvira tudo aquilo antes, ficou calada. Ela abriu o
baú e foi arrebatada pelo cheiro de mofo. Depois o fechou e o levou
de táxi até seu apartamento no Lower East Side. Quando voltou a
abri-lo, não conseguiu se lembrar do motivo de tê-lo achado tão
fascinante antes. O conteúdo, outrora misterioso e totêmico, agora
estava impregnado de trevas, cativeiro e exprobração. Ela pegou
uma carta em alemão — uma língua que conseguia ler agora — e
viu que ela exaltava as condições de vida nos campos de
concentração. Pegou uma em polonês, que era incapaz de ler, e
pressentiu o terror naquela escritura breve, apressada. Ela sabia
que estava lendo mentiras.
Além das cartas, havia os diários, escondendo velhas
fotografias. Zoë viu o rosto iluminado de um homem ruivo chamado
Benyami Nachtgarten. O rosto ligeiramente arredio de um bebê
chamado Shalhevet Nafissian. O rosto compenetrado de um
adolescente chamado Alexei Markova. O rosto enigmático e
alongado de uma mulher chamada Miriam La Toya, que parecia
estar rindo numa festa. Era óbvio que essas pessoas estavam
mortas, porque havia duas datas no verso dos retratos. Zoë juntou
todas e imaginou essas pessoas num país que lhes pertencia.
Pareciam vivas, curiosas, felizes juntas.
Ela olhou também as cartas antigas — uma endereçada a uma
costureira do século XIX na Alsácia, um comerciante de botões em
Dresden, um advogado em Stuttgart. Cartas anteriores às cartas da
época que interessava; uma época em que ninguém pensava em
escrever para registrar mentiras; em que os mortos não precisavam
de cartas a fim de impedir que o mundo caísse aos pedaços; em
que as pessoas não precisavam conhecer outras línguas para
salvarem as próprias vidas; em que as cartas eram úteis para os
vivos, não usadas para condená-los a viver embaixo da terra. E uma
época em que as cartas reuniam os vivos e não eram usadas como
armas ou para reescrever a História.
Porque a maioria das cartas era simplesmente isso. E, como
coisas que não se quer ver mas que são vistas assim mesmo, elas
lhe fizeram lembrar dos números nos braços do pai e do avô. Pior
ainda, as cartas transmitiam notícias terríveis por conta do que
deixavam de fora. Elas lembravam a Zoë os momentos de silêncio
que pressentira em sua infância, quando os adultos fingiam que não
havia tensão alguma, mas ela sabia — à mesa do jantar ou em sua
carteira na escola — que algo inexprimível estava sendo evitado.
Lembravam-lhe até dos silêncios, atualmente, quando as pessoas
evitavam mencionar algo difícil — em suas próprias vidas, nas vidas
de outras pessoas. A última vez que ouvira algo doloroso fora
quando um vizinho lhe falou que dissera ao filho para sair e ver o
mundo — querendo dizer que deveria visitar os parentes na Itália,
não se alistar como fuzileiro e urinar às margens do rio Eufrates.
Mas isso, na verdade, era exatamente o que ele ia fazer. Lugares
sagrados, ele dissera. Arruinados pelas bombas.
— De que adianta falar sobre o que é difícil, se as pessoas não
querem escutar? — perguntou Zoë ao avô, quando o visitou em seu
apartamento apinhado de livros. — E para que catalogar esse baú?
— Talvez para nada — disse Asher. — Mas nunca o jogue fora.
C
Quando Asher morreu, com noventa e sete anos, Zoë estava
morando no Upper West Side, num grande apartamento que fora
dividido em três menores. Ela morava na parte que ficara com o
quarto de empregada, e ali deixou o baú, de modo a nunca ter que
vê-lo. Depois do funeral, em que inúmeras pessoas haviam ido
cumprimentá-la, ela passou algum tempo observando o baú, mas
não o abriu. Era o elo mais vibrante com seu avô. Ela sabia que,
pelo menos, deveria examinar seu conteúdo cuidadosamente. Em
vez disso, bateu a porta.
Alguns dias depois, recebeu pela manhã o telefonema de um
homem com sotaque alemão que disse chamar-se Gerhardt
Lodenstein. Seu inglês era correto, e ele se desculpou por
incomodá-la. Disse que acabara de ler o obituário de seu avô —
eles tinham se correspondido por algum tempo. E que não estava
telefonando de um lugar sob a terra, mas da Alemanha.
Zoë precisou de certo tempo para acreditar que estava ouvindo a
voz de alguém que vivera naquele lugar. E, antes de conseguir dizer
que estava contente em ouvi-lo, Lodenstein falou que sabia que seu
avô lhe dera o baú e havia mais algumas fotografias que ele
gostaria de lhe enviar. Perguntou igualmente se ela considerava a
possibilidade de algum dia expor o conteúdo.
Zoë sabia que era isso que o avô queria. Seu desejo fora
transmitido quando lhe dera o baú. E ele sempre deixara claro o que
lhe havia acontecido, mantendo as mangas da camisa sempre
arregaçadas, mesmo no inverno — para que todo mundo pudesse
ver os números em seu braço. Mas Zoë acabara por detestar aquele
baú. E então ela disse a Lodenstein que precisava pensar no
assunto — certa de que sua resposta final seria negativa — e se
surpreendeu ao carregar algumas cartas até a biblioteca pública
naquela mesma tarde. As pessoas com suas fichas nas mãos
olhavam com curiosidade para aquela mulher tão delicada com
mechas púrpura nos cabelos. As cartas exalavam o bolor geológico
da mina, como se determinadas a difundir suas histórias dentro da
biblioteca.
Naquela noite, Zoë voltou até o quarto de empregada e abriu o
baú bem devagar. Viu um vidro vazio. Quase podia sentir o perfume
de rosa. E uma luva vermelha de lã. Podia ver as extremidades
esfarrapadas, onde o tecido cobrindo os dedos havia sido cortado. E
havia também os óculos de Heidegger — um objeto tão fascinante
quando ainda era criança. Lembrou-se de tê-los colocado, vendo o
mundo com contornos vagos, e a consternação de seu avô. E havia
também uma caneca azul e branca.
Ela levou todas as cartas para a área de serviço de seu
apartamento e as pendurou no varal. Mas elas ainda emitiam o bolor
de minerais e mofo — e pareciam emanar tanta censura que Zoë
começou a crer que os mortos realmente aguardavam respostas.
Como se capazes de perceber seu desalento, as pessoas na
biblioteca começaram a lhe dar coisas. Um homem que estudava o
comportamento afetivo entre os primatas comprou-lhe uma borracha
que brilhava no escuro. Uma mulher que fazia uma tese sobre
sequência numérica deu-lhe canetas com tinta vermelha e prateada.
Zoë ganhou marca-textos, clipes de papel, pastas transparentes. Ela
levava tudo para casa, precisasse ou não.
Lodenstein continuou lhe enviando coisas também — mais do
que algumas fotografias: enviou carretéis de máquina de escrever,
velas trançadas de dois pavios, diários decodificados por parentes
dos escribas, mais rosas de veludo, fios de casimira azul, outra luva
sem dedos vermelha. Romances policiais alemães dos anos 1930,
uma receita de sopa, uma espátula. Não havia mais espaço dentro
do baú. Zoë pôs algumas coisas sobre o sofá. Ela pensou que
aquilo parecia um bazar, e cobriu tudo com uma manta.
Ele também lhe enviou cartas de casas invadidas — obviamente
interrompidas no momento em que estavam sendo escritas.
Falavam sobre a necessidade de alongar as bainhas nas roupas
das crianças, de férias nos Alpes. Cada carta apontava para uma
vida bem distante no tempo, uma vida inatingível para Zoë. Às
vezes, ela ficava observando o tecido de seu suéter e achava que
era capaz de enxergar as pessoas do Complexo no meio da malha.
Outras, ela se divertia com a ideia de responder às cartas — como
se isso pudesse trazer as pessoas de volta à vida, ou pelo menos
ajudá-la a parar de imaginar suas vozes. E, uma vez, quando estava
visitando seus pais, ela começou a falar sobre a quantidade de
cartas não respondidas no mundo.
— Você está fazendo alguma coisa com aquele baú? —
perguntou Maria.
— Estou.
— Eu sabia que devíamos tê-lo jogado fora — disse Maria. —
Ele pertence ao fundo do rio Hudson.
Elas estavam na cozinha, e Maria estava preparando o jantar.
Zoë a observava jogando temperos na sopa de batatas com alho-
poró e fazer molhos com diferentes tipos de vinagre. Ela disse que
Maria não devia se dar tanto trabalho para fazer uma salada.
— Você o faria, se estivesse em meu lugar — disse Maria. — As
pessoas se esforçavam muito para fazer boa comida. E eram
sempre gentis. Tive sorte de estar lá durante a guerra.
— Então você não quer que aquele baú vá parar no fundo do
rio? — sugeriu Zoë.
— Não, acho que não — respondeu Maria. — E tampouco seu
pai. Portanto, faça o que quiser com ele.

C
Numa manhã de maio, mais de sessenta anos depois de Berlim
se render, Zoë passava as mãos sobre o baú. Podia sentir sob os
dedos a superfície rugosa da madeira da tampa, como o sentira
quando era criança — e também no fundo, que seu avô dizia não
existir. O baú foi finalmente esvaziado.
O homem que estudava os primatas descobrira um pequeno
museu em Manhattan — chamado Museu da Tolerância — que
queria expor aquele conteúdo. O diretor do museu ajudou Zoë a
catalogar os objetos e conseguiu encontrar tradutores para as cartas
e os diários. Dois dos tradutores, com números gravados em seus
braços, disseram que teriam feito o que quer que fosse para serem
acolhidos naquele lugar.
Zoë anotara tudo, chegou mesmo a rastrear a origem do abajur
Tiffany, e — prometendo que nunca contaria coisa alguma — ela
conseguiu que Lodenstein confessasse que quebrara o cardador de
lã num momento de cólera. E, agora, os objetos e as cartas estavam
prontos para a exposição. Um folheto explicava que o Complexo
fora um dos poucos lugares durante a guerra que haviam protegido
os sobreviventes de Auschwitz. Dizia também que os escribas, de
certa forma, haviam nascido para dominar aquelas línguas. Maria e
Daniel acharam que isso era um exagero — assim como Zoë, que
escrevera que os escribas foram escolhidos durante a deportação
porque conheciam outras línguas além do alemão. Mas o diretor do
museu gostou e colocou isso no folheto. Foi a primeira vez que Zoë
percebeu que as pessoas podiam revirar suas palavras e criar uma
frase diferente. Ela se recordou de como o avô costumava
desconfiar dos jornais e da História.
Lodenstein, a par da exposição, nada enviara no último mês.
Naquela manhã, Zoë mandou-lhe pelo correio o folheto e um bilhete
anexado, perguntando se ele queria o baú de volta.
Sua resposta — negativa — chegou duas semanas mais tarde
com um pacote que continha a receita original de seu avô para os
óculos de Heidegger, um caderno vermelho-escuro e a foto de uma
mulher ao lado de algumas árvores. A mulher tinha feições
delicadas, olhar penetrante e vestia uma blusa branca com uma
rosa presa ao colarinho. Seus cabelos louros estavam penteados
para trás, presos por um arco vermelho e alguns cachos
repousavam sobre os ombros. Seu rosto estava iluminado pelo sol.
Zoë olhou a fotografia durante um bom tempo. Depois, examinou
a receita de Heidegger com a caligrafia do avô. Quanto tempo fazia
desde que ambos tinham se encontrado, Heidegger olhando para a
tabela de Snellen, dizendo Besser e Nicht Besser, seu avô fingindo
não estar apavorado com a possível invasão de sua ótica ou a
deportação de sua família? Ela olhou novamente para a imagem da
mulher banhada pelo sol. Seu rosto era tão atraente que ela se
perguntou se haveria outras fotografias e se deu conta de que, se
não parasse de pedir a Lodenstein para enviar mais coisas, a
exposição nunca ficaria pronta. Parecia uma viagem sem fim.
Mas quando ela lhe telefonou, Lodenstein pareceu surpreso que
ela não quisesse mais nada. Ele tinha certeza de que Asher iria
querer incluir tudo o que tinha. E ele continuava encontrando
objetos. E os parentes dos escribas mandavam coisas para ele.
Zoë lhe contou que, certa vez, Asher lhe dissera que se tratava
de um baú mágico, cujo fundo ela jamais alcançaria. A perspectiva
de conseguir cada vez mais objetos da parte dele parecia-lhe
irresistível.
— Minha cabeça não para de girar — disse ela. — E toda vez
que você envia alguma coisa, eu só fico mais interessada. Como
aquela mulher com a rosa, por exemplo. Ela era uma escriba?
Lodenstein fez uma pausa. Quando voltou a falar, sua voz
pareceu hesitante.
— Ela era o coração do Complexo — respondeu. — Sem ela,
ninguém conseguia seguir em frente. Nós não teríamos sobrevivido.
— Ela era muito bonita.
— Mais do que bonita.
Havia tristeza em sua voz — uma tristeza embebida de
esperança. Zoë o imaginou, após a guerra, procurando por Elie em
todos os lugares onde havia ajuntamento de pessoas — nas filas,
sob abrigos, em livrarias, gente se refugiando da chuva. Também
imaginou que ela o procurara.
Bruscamente, Lodenstein disse:
— O caderno vermelho era dela.
Zoë olhou para o caderno surrado. O vermelho-escuro da capa
havia desbotado. As páginas estavam quebradiças. Muitas estavam
em branco ou continham somente poucas frases. Somente duas
páginas estavam preenchidas inteiramente.
— Você mandou traduzi-lo?
Por um instante, Lodenstein ficou calado. Depois disse:
— Nunca tive coragem.
Minha querida Gabriela,

Eu precisava escrever para você antes de sair deste lugar. Se


você soubesse como era este lugar, as coisas que fizemos aqui,
entenderia o motivo — porque, se houver uma chance de que venha
a ler esta carta, saiba que foi escrita aqui.
Ajudei a salvar um bocado de gente nesta guerra, mas nunca
consegui trazê-la de volta. E fico pensando no que eu teria feito se
tivesse sido mais atenta. Sempre que vou para uma cidade nova,
imagino que vamos nos encontrar. Revejo seu rosto todas as noites,
antes de adormecer.
Já fui duas vezes à cidade em que você foi fuzilada, pensando
que a acharia. Mas tudo o que encontrei foi uma mancha sob uma
tília.
Eu me lembro de tudo no tempo em que estávamos juntas,
Gabriela — fazendo anjos na neve, nadando no rio, ouvindo o gelo
estalar na primavera. Lembro-me da peça em que eu esqueci minha
fala e você a disse por mim. Lembro-me de como você me cutucava
quando eu cochilava nas missas. E aquela vez em que pegamos
escondidas as sombras para os olhos e nos transformamos em
estrelas do cinema.
Heidi me disse como você morreu. Ela disse que você soergueu
a cabeça várias vezes depois do fuzilamento.
Perdoe-me por não ter prestado atenção mais cedo. Eu deveria
ter sabido que você estava em perigo. Eu deveria ter ajudado. Em
vez disso, enquanto você falsificava passaportes, eu estava em
Freiburg, agindo como se nada de ruim pudesse jamais nos
acontecer. Nunca aos dissidentes. Nunca aos poloneses católicos.
E nunca, jamais, a você.
Nunca vou parar de falar com você, Gabriela. Nunca vou parar
de pedir perdão. Nenhuma das pessoas que um dia salvei poderá
compensar sua perda.

Com meu amor eterno,


Elie
O tradutor fechou o caderno vermelho-escuro e entregou a
tradução a Zoë.
— Eu não deveria ter feito isso para você — disse ele. — Certas
coisas deveriam permanecer só entre duas pessoas, quer estejam
vivas ou mortas.
Zoë concordou.
— Não deixarei ninguém ler isso.
— Ótimo — disse o tradutor, apontando para alguns fragmentos
na folha de papel. — Porque ela estava tentando escrever isso
havia muito tempo.
Ele mostrou as páginas em branco, os falsos começos, os
espaços entre elas.
E então, houve uma espécie de insight — quem saberia dizer?
— Alguém sabe o que aconteceu com ela?
— Não. Desapareceu antes do fim da guerra — respondeu Zoë.
— Como tantas pessoas — concluiu o tradutor.
Ela concordou. Sentia-se feliz por não saber. Podia quase ouvir o
gelo estalando na primavera; via a si mesma e à irmã fazendo anjos
na neve. Ela experimentou uma sensação impetuosa de proteção
pelas duas. Pôs o caderninho vermelho-escuro na bolsa.
O tradutor era bem magro e já devia ter mais de oitenta anos.
Ele acendeu um cigarro e Zoë começou a tossir. Em seguida, ele
abriu a janela e deixou entrar o ar do Lower East Side. Zoë ouviu
vozes de crianças, o barulho do trânsito. Podia sentir o cheiro da
fumaça dos carros.
— Você parece inquieta — disse o tradutor. — Quer beber
alguma coisa?
— Não — respondeu Zoë, que estava tentando conter as
lágrimas. — Só preciso andar um pouco.
A tarde chegava ao fim quando Zoë saiu do apertado escritório.
Ela atravessou a Canal Street, onde vendedores de rua negociavam
toda uma parafernália que transbordava de suas caixas. Havia
relógios baratos, bolsas falsificadas, pedaços misteriosos de metal e
todo tipo de ferramenta.
Outro bazar, pensou ela, passando por mais um amontoado de
bolsas falsificadas, camisetas com ilustrações cintilantes, anéis de
contas. Ela notou uma prateleira repleta de caixinhas de madeira:
uma delas tinha a superfície muito bem envernizada, com um fecho
de baú. Ela parou.
— Isso é antigo — disse o vendedor.
— Data de quando? — Zoë perguntou.
— Não sei dizer.
Zoë sorriu e seguiu andando, depois, voltou e comprou a
caixinha. Talvez pusesse ali a tradução da carta de Elie, talvez o
caderninho vermelho-escuro. Ou, talvez, a guardasse para si
mesma — para algo de sua vida que quisesse preservar.
Ela atravessou Chinatown, Little Italy, e seguiu andando mais
para o norte, até escurecer e alcançar a Times Square, entre os
prédios imensos, em meio ao ar viciado e estimulante, seu festival
de luzes vermelhas e brancas.
Zoë caminhou entre multidões e vendedores ambulantes e
percebeu, como nunca imaginara antes, que as cartas para os
mortos eram para os vivos: eram justificativas, registros, desculpas,
conciliações, explicações, satisfações, lamentos, confissões. Elas
refletiam. Elas suplicavam. Elas evocavam. Algumas falavam de
insuportáveis tristezas. Algumas reescreviam totalmente a história.
E, às vezes — com mais frequência do que qualquer um admitiria
—, mesmo o autor mais sofisticado de uma carta imaginava que o
morto poderia ouvi-lo. Zoë estava segurando a tradução da carta de
Elie e a sentiu roçar contra a manga da camisa de um
desconhecido. Por um instante, pensou em deixá-la revoar no ar
pungente. Então, simplesmente colocou-a dentro da caixinha de
madeira.
As conversas com os mortos continuam eternamente, ela
pensou, assim como tudo o mais dentro do baú: os carretéis e as
velas. As cartas e as lamparinas. As luvas e as rosas. Ela desejou
que o baú fosse o Complexo, e que tudo no seu interior pudesse
trazer as pessoas de volta. Mas isso nunca acontecerá. E sempre
restará algo mais a acrescentar. E depois, outra coisa mais.
Sobre a autora

CORTESIA DA AUTORA

Thaisa Frank cresceu entre o Meio-Oeste americano e o Bronx, em


Nova York. Neta de um teólogo presbiteriano e de um judeu
hassídico de origem romena que gostavam de discutir textos em
aramaico, sua obra reflete dualidade cultural. Formada em filosofia
da ciência, desenvolveu sua habilidade com a escrita trabalhando
como editora de textos e ghost-writer. Além do romance Os óculos
de Heidegger, publicou diversas coletâneas de contos e novelas e
também ensaios críticos sobre literatura e arte. Coautora de Finding
Your Writer’s Voice: A Guide to Creative Fiction, foi professora no
departamento de graduação da San Francisco State University e da
Universidade de San Francisco e professora visitante de escrita
criativa na Universidade da Califórnia.

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