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ARTE PÓS-PANDEMIA: NOVAS CONFIGURAÇÕES NA RELAÇÃO ENTRE


PÚBLICO E ARTISTAS

Karina de Faria1

Resumo
O presente artigo trata da relação entre público e artistas a partir do contexto de
confinamento vivido graças à pandemia do coronavirus (COVID - 19) que assola o
planeta, especialmente, no ano de 2020. O setor artístico e cultural, profundamente
abalado nesta conjuntura, uma vez que suas manifestações exigem a presença da
plateia, acabou por encontrar mecanismos para manter-se em atividade e para
assegurar vínculos com seu público, ou para estabelecer novos laços, com novos
apreciadores. O texto aborda também a importância da constituição dos indivíduos a
partir de uma perspectiva de valorização da sensibilidade como formadora do espírito
humano e toma de empréstimo conceitos pertinentes a arte/educação para analisar a
formação de públicos consumidores de conteúdos artísticos e culturais. Por fim,
aponta para as novas configurações das relações entre público e artistas
(especialmente os menos conhecidos) que acabaram por adaptar suas obras ou criar
novas para atender aos formatos mediados pelas tecnologias e plataformas, que estão
sendo cada vez mais acessadas pela população afetada pelo distanciamento social.

Palavras chave: arte e pandemia; educação sensível e arte; artistas e novos públicos.

Introdução

Muitas são as incertezas e apostas que acompanham o contexto da


pandemia de Covid-19 que assola o mundo neste ano de 2020. A expressão
“novo normal”, utilizada com frequência, aponta para uma necessidade de
prever o que ocorrerá no horizonte de retorno das atividades, quando o
controle da doença trouxer como consequência desejada a volta a um mundo
mais próximo do já vivido. Ressalva seja feita ao fato de que, dada a
degradação decorrente de uma configuração econômica e política que vem
transformando o planeta num lugar de graves injustiças sociais e depredação
ambiental, este “já vivido” merece ser radicalmente repensado e modificado. As
previsões, misto de esperança nestas transformações e apreensão com o caos
esperado, seguem seu rumo. Alcançam seja o nível planetário, onde espera-se
que países, regiões e continentes estabeleçam novos mapas de convivência e
relações políticas, comerciais e culturais, capazes (ou não) de enfrentar a crise

1
Doutora em Artes Cênicas / UFBA, mestra em Administração de Empresas / UFBA, graduada em
Ciências Sociais / UFBA. Professora da Licenciatura em Teatro DEDC/Campus VII / UNEB - Senhor do
Bonfim. E-mail: kasfaria@uneb.br

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que se avizinha, seja no âmbito doméstico, onde indivíduos, famílias e grupos


sociais desejam enxergar os rumos que suas vidas tomarão. Para alguns, a
ansiedade da espera, representa a certeza do enfrentamento de sérias
dificuldades, já sentidas através do desemprego e de uma economia em
dificuldades, ou pela ausência de entes queridos, perdidos para o vírus, entre
outros aspectos. Para outros, a perspectiva de voltar ao trabalho, ao ambiente
escolar, ao convívio social, significa grande alívio, sensação de
“descompressão” e uma volta à fluidez do movimento nas ruas, instituições,
espaços de convivência. De todo modo, entendemos que o que virá, está, em
grande medida, longe do nosso controle. Ora, se usamos o termo “novo
normal” é porque já consideramos que, de um modo ou outro, a vida cotidiana
não será a mesma.

Como afirma Boaventura de Souza:

No curto prazo, o mais provável é que, finda a quarentena, as


pessoas se queiram assegurar de que o mundo que
conheceram afinal não desapareceu. Regressarão
sofregamente às ruas, ansiosos por voltar a circular livremente.
Irão aos jardins, aos restaurantes, aos centros comerciais,
visitarão parentes e amigos, regressarão às rotinas que, por
mais pesadas e monótonas que tenham sido, parecerão agora
leves e sedutoras. No entanto, o regresso à “normalidade” não
será igualmente fácil para todos. Quando se reconstituirão os
rendimentos anteriores? Estarão os empregos e os salários à
espera e à disposição? Quando se recuperarão os atrasos na
educação e nas carreiras? Desaparecerá o Estado de
excepção que foi criado para responder à pandemia tão
rapidamente quanto a pandemia? (SOUZA, 2020, p. 29)

Como, então, podemos avançar no entendimento desta nova ordem das


coisas, para estarmos melhor preparados, adiante? Muitas são as respostas
possíveis para esta pergunta, uma vez que há nela este caráter de previsão
sobre o qual se assenta o debate aqui proposto. E toda previsão contém
indubitáveis níveis de incerteza. Um caminho possível para tornar tais
incertezas menos nebulosas (uma vez que resolvê-las parece mesmo
impossível) é encontrar, nas configurações da sociedade ora confinada - ou
mesmo aquela que volta às ruas, mas segue sendo monitorada e ameaçada
pelas ondas de retorno provocadas por novos contágios -, elementos
importantes para compreender o que virá.

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Neste espaço, pretendo fazer um exercício de análise, no sentido de


acompanhar alguns comportamentos e hábitos, potencializados pela presença
de grandes contingentes populacionais em ambiente doméstico,
especificamente no que se refere ao consumo artístico-cultural, através de
redes sociais e diversas plataformas. Não raros foram os depoimentos em
defesa das artes, no período pandêmico, exaltadas por propiciar bem estar e
como vetores que vem favorecendo a manutenção da sanidade de pessoas
confinadas. Não à toa, no Brasil, o consumo de conteúdos artísticos, via
plataformas digitais, cresceu significativamente já no primeiro mês de
distanciamento social. Em reportagem da Revista Exame, publicada em abril
de 2020 temos uma projeção do que ocorrera no segmento musical, por
exemplo:

O consumo por música cresceu 15% no Brasil, por exemplo, de


acordo com a lista de mais ouvidas no Spotify. Já as
visualizações no País de clipes musicais no YouTube
aumentaram em 30 milhões, no período de 3 de março a 9 de
abril, comparando-se ao mesmo período do ano passado. A
audiência no streaming cresceu tanto que as plataformas
tiveram que reduzir a qualidade da transmissão para não
sobrecarregar as redes. Diversos portais de cultura foram
criados para transmitir espetáculos, debates e oficinas. Prova
de que o trabalho do artista tem seu lugar na sociedade em um
período crítico. (EXAME, 2020)

Entretanto, esse lugar destacado e essencial parece não gerar


resultados econômicos compatíveis com o grau de importância do setor2 neste
momento histórico recheado de solidões, ócio (ou excesso de ocupações),
busca de sentido, etc. Eis que este protagonismo gera um importante debate
sobre a condição de artistas, técnicos, estudiosos, escolas, espaços e
instituições, portanto de toda a cadeia produtiva do setor cultural, que
reiteradas vezes é citado como “aquele que primeiro parou e o último que vai
voltar”3.

2
Importante deixar claro, já neste momento, que quando menciono “o setor”, estou me
referindo a um amálgama de profissionais cujas realidades são múltiplas. Algo que será
destacado ao longo do texto, quando pretendo dar destaque aos artistas que não alcançam
grandes públicos, seja porque não possuem fama, seja porque a natureza de sua atividade, ou
seu propósito não foi, até agora, obter este grande alcance.
3
Medidas emergenciais importantes vem sendo adotadas, em instâncias municipais e
estaduais, e, no âmbito federal, há que se destacar a lei 1.075/2020, aprovada pelo Congresso
Nacional e sancionada pelo presidente da República, em 29 de junho de 2020. Esta lei,

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Esse contexto acaba por lançar luzes sobre um aspecto fundamental


relativo a compreensão de que a arte, para além de seu valor simbólico,
movimenta um setor econômico que abriga grande e diversificado número de
profissionais que dela vivem. Assim, a discussão sobre as cadeias produtivas
que envolvem a produção cultural, e o que elas representam enquanto
importante geração de emprego e renda no país, tão cara a classe artística, ao
setor técnico que integra sua atividade e à gestão cultural, ganhou visibilidade
e aproximou-se da sociedade, ampliando a intimidade desta, com o tema.

Contudo, e isto é o que pretendo apontar neste trabalho, essa


aproximação entre o público e a engrenagem do setor cultural, especificamente
na situação de exceção que envolve o período da pandemia, ganha contornos
especiais relacionados a três aspectos que me parecem cruciais. O primeiro
deles se refere ao movimento gerado em torno dos artistas de menor
visibilidade que passam a encontrar instrumentos que lhes possibilitam uma
maior projeção, capaz de, em certa medida, reconfigurar e ampliar o mapa das
atrações e nomes que se apresentam nos cenários locais e nacional. O
segundo, intrinsecamente associado a este é que, possivelmente, esta
reconfiguração comportará formas, cada vez mais correntes, que tendem a se
perpetuar, rearrumando mecanismos de fruição de obras artísticas no contexto
artístico-cultural brasileiro pós pandemia. É de se destacar, neste contexto, o
fenômeno das lives, que tomaram de assalto o cotidiano das redes sociais e
vem marcando o consumo de conteúdos artísticos, bem como o acesso a
importantes discussões filosóficas e políticas. Em terceiro lugar, e por último, é
preciso entender a importância da apreciação, entendida enquanto elemento
formador de sensibilidade estética, que, agora, contará com um cardápio mais
diversificado e abundante, assim como mais acessível financeiramente. E isso
significa dizer que, numa via de mão dupla, artistas e público passam a fazer
parte de um processo de democratização do acesso que, ressalvados certos
limites especialmente vinculados à tecnologia (considerando inclusive a posse
dos equipamentos), à conexão e à transitoriedade do confinamento, pode
trazer benefícios a ambos.

batizada de Aldir Blanc, em homenagem ao grande compositor da Música Popular Brasileira,


que faleceu em decorrência da COVID-19, destina ao setor cultural R$ 3 bilhões, através de
recursos que devem ser repassados, pela União, para Estados, Municípios e Distrito Federal,
durante a pandemia.

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Esse é um tema que merece profundo aprofundamento, dadas as


ramificações que abraça. Sigo, por aqui, buscando suscitar reflexões e
contribuir, interrogando mais do que respondendo, para ampliação do debate.
Abordar um fenômeno em curso com todas as idiossincrasias que lhes são
inerentes, somadas aos contextos externos, nesse caso acrescidos de
elementos atípicos, quando o mundo enfrenta um cenário pandêmico, é
enfrentar o risco de uma interpretação eivada de lacunas e falhas. Aposto,
portanto em formulações ainda imprecisas, mas ainda assim, essenciais e em
completa consonância com as elucidativas vivências concretas dos
protagonistas desse processo, o que inclui a plateia.

Sobre os que assistem

O universo das virtualidades que envolve redes sociais, plataformas de


exibição, aplicativos, programas para encontros coletivos, acessos, curtidas,
seguidores, lives, etc., é, por excelência, objeto de estudo da Comunicação,
mas sem dúvida, alcança múltiplos outros campos e olhares investigativos. É,
portanto, especialmente no âmbito da produção artística e cultural que sigo
procurando entender caminhos e comportamentos. Falar das artes, nesse
sentido, é ingressar num mundo de especificidades, cujas arestas às vezes se
tocam, às vezes dialogam, às vezes se diluem, às vezes fazem questão de se
diferenciar. Como tratar de teatro, dança, circo, performances, música, artes
visuais, cinema e literatura em suas relações com o mundo virtual, como se
fossem uma coisa só? O desafio aqui, deste modo, é apresentar um recorte a
partir do qual seja possível pôr em relevo a sensação e, na medida do possível,
posterior verificação, de que as mudanças operadas nos hábitos do público e
dos artistas, mediadas pelas tecnologias e suas facetas, tem raízes e
consequências que ultrapassam índices tais como ampliação de número de
seguidores.

Me parece crucial entender o tema, considerando que o debate, sempre


pertinente, sobre o espaço dado em nossa sociedade à apreciação estética, se
apresenta sob nova roupagem, mas não perde a centralidade quando o tema é

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o público que acessa conteúdos artísticos. Mas, não apenas isso. De modo
mais ampliado, pode-se afirmar que há aí, um debate no plano dos direitos
humanos.4

Assim, as sociedades contemporâneas tem o direito de usufruir daquilo


que a humanidade produziu em termos de produção cultural bem como de se
beneficiar da ampliação dos sentidos que o contato com a arte proporciona. Eis
que, neste ponto, vem à tona a importância da sensibilização dos seres, em
seus processos formativos, quando a presença das artes mostra-se
fundamental. É inevitável inserir no diagnóstico acerca do desejo e interesse
pela arte (tão caro a classe artística e ao setor da produção cultural), a
intimidade com seus códigos, o que deve ser estimulado como uma espécie de
alfabetização sensorial. Falo, portanto, dos processos educativos direcionados
a formação sensível não exatamente direcionada aos artistas, mas aos seres
humanos de um modo geral.

Em sua obra “O Sentido dos Sentidos” (2006), João Francisco Duarte Jr.
disseca a sociedade moderna e contemporânea no que tange a seu
afastamento de um saber sensível que, articulado à racionalidade (e em grande
parte, a racionalidade científica) e não apartado dela, deveria estar integrado à
vida das pessoas. Isso se aplica de modo especial aos profissionais que vem
sendo formados em nossa sociedade, alguns por demais especialistas, e,
portanto, distanciados de um sentido mais abrangente do conhecimento e de
suas próprias atuações e vidas pessoais. Há aqui uma evidente consequência
de uma sociedade construída sob as bases de uma industrialização nada
preocupada com valores humanitários: Segundo o autor,

Decorrentes de nossa sociedade industrial, as condições de


mercado influenciam o tipo de educação a que estamos
submetidos, a qual contribui, sem contestação, para a
formação desse tipo de pessoa que, compartimentada,
movimenta-se entre uma vida profissional e um cotidiano
sensível, cotidiano para o qual parece não possuir o menor
treinamento com base no desenvolvimento e refinamento de
sua sensibilidade. (DUARTE JR., 2006, p. 165)

4
A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos define em seu 27º artigo XXVII que
“Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir
das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios” (Assembléia Geral da
ONU, 1948)

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Ora, me parece que essa formação profissional repartida, segmentada, pode


ser estendida ao perfil das pessoas que vemos espalhadas pelas ruas,
instituições e locais de convívio familiar e social que pouco ou quase nada
possuem de um histórico de valorização do potencial sensível de suas
individualidades.

João Francisco Duarte Jr. segue argumentando que ao investir “tempo e


energia num conhecimento altamente parcializado”, afastando-o de sua vida
cotidiana e desabilitando-o a desempenhá-la com “eficiência e leveza”, o
especialista apresenta-se como um alguém que é “manco da existência”.
Afastando-se de seu viver diário, ele arca com “toda a patologia individual e
social decorrente do fato”. Esse conhecimento fragmentado acabaria por afetar
negativamente os nossos sistemas de ensino que

“passaram mais e mais a investir não na formação básica do


ser humano, com todas as implicações sensoriais e sensíveis
que isso acarreta, mas estritamente num tipo de profissional
que, além de ser incentivado a se relacionar com o mundo no
modo exclusivo da intelectualidade, ainda a utiliza na estreita
forma de uma razão operacional, restrita e restritivamente.
(DUARTE JR.,1996, p. 166)

Mais uma vez, tomo emprestado o raciocínio do autor voltado para a


formação de profissionais, para encontrar nesse sistema educacional um
deformador das personalidades que habitam o mundo. Importante situar sua
defesa quanto a uma necessidade de educação do sensível (educação
estésica) como algo que transcende os conteúdos da arte-educação, que dela
devem fazer parte “como uma de suas componentes”. Assim,

Nos largos domínios da educação estésica (ou educação do


sensível), acha-se compreendida a educação estética,
tomando-se aqui o termo “estética” com o sentido restrito que
ele acabou adquirindo em nossos dias, ao dizer mais
especificamente à arte e à sua apreensão por um espectador,
num dado contexto histórico e cultural. Portanto, a relação
sensível, estésica, com a nossa realidade, deve constituir o
solo a partir do qual podem crescer e melhor se desenvolver as
plantas da percepção artística (ou estética). (DUARTE JR.,
2006, p. 184)

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Se, conforme o autor, devemos ensinar arte, não exatamente a partir de


seus conteúdos, mas a partir de uma prévia sensibilização e abertura para o
campo da estética, como proceder o compartilhamento de teores artísticos,
sem a pretensão de “ensiná-los”? É importante lembrar, que, nestas linhas,
busco investigar os elementos que compõem a aproximação de usufruidores
de conteúdos artísticos com as obras e gêneros que escolhem como suas
preferências estéticas e, consequentemente, de consumo. Ora, mas não há
aqui uma contradição? Fala-se de uma formação que valoriza a leveza das
pessoas, a sensibilização de seres, e, em seguida, usa-se a terminologia
“consumo”, associada a monetarização e/ou à mercantilização que, muitas
vezes deturpa o sentido do fazer artístico e da produção de obras que possuem
caráter não comercial. Esse debate será retomado adiante. Cabe, por
enquanto, mencionar o que significa construir a apetência pelas artes, pelas
sensações, reflexões, multiplicidade de inteligências que ela traz consigo. Esse
tema aparece de modo preciso na teorização e discussão presentes nas obras
que tratam da arte/educação, mais especificamente da Abordagem Triangular,
proposta pela pesquisadora Ana Mae Barbosa, e posteriormente, ampliada,
aprofundada, revista e debatida pela própria autora e por diversos estudos e
práticas espalhados em território Brasileiro5. Os vértices do triângulo são: o
fazer artístico, a contextualização das obras de arte (o que significa sua
historicização ampliada para além das biografias) e, a sua leitura, ou a sua
fruição.

Gostaria de pinçar esse último elemento, que entendo ser aquele que vai
ao encontro do esforço aqui empreendido no sentido de compreender o que os
estudiosos e estudiosas do ensino de arte podem trazer como contribuição
para iluminar o entendimento sobre o interesse das pessoas pela arte fora do
ambiente escolar. Assim, é que o termo leitura, - preferido por Ana Mae
Barbosa, em relação à noção de apreciação, que pode indicar deslumbramento
puro e simples – “sugere uma interpretação para a qual colaboram uma

5
Os debates sobre a Abordagem Triangular extrapolaram os limites da teorização acadêmica e
foram fundamentais na construção de leis que regulam o ensino das Artes no Brasil. Para
saber mais sobre o pensamento de Ana Mae Barbosa e os postulados e desdobramentos do
debate sobre a abordagem triangular ver: BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da Arte.
São Paulo: Perspectiva, 1991. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira (Orgs.).
Abordagem Triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2010.

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gramática, uma sintaxe, um campo de sentido decodificável, a decodificação do


mundo e a poética pessoal do decodificador”. (BARBOSA, 2002b, apud
CARVALHO, 2007, p. 42.). Esta definição traz uma ideia que me parece
essencial que é o sentido dado pelo sujeito que observa a obra. Sujeito este
que não apenas é atingido pela imagem que a ele se apresenta, mas que
empresta, ou acrescenta a ela, sua marca, seu entendimento de mundo. De
acordo com a pesquisadora Elisa Carvalho,

No processo de leitura, a obra de arte adquire conteúdo


expressivo para o educando, por isso é mestra para o
desenvolvimento da percepção estética. Quando se lê uma
obra — diga-se, quando se reconhecem sentidos nela —,
entram em ação conhecimentos artísticos e não artísticos. A
leitura ocorre no diálogo do expectador com a obra, num
tempo/espaço preciso (CARVALHO, 2007, p. 41)

O que este fundamental debate (aqui apenas esboçado), circunscrito a


processos educacionais, traz à tona nestas páginas, é a fundamental
importância que possuem as vivências culturais que atravessam as pessoas
envolvidas nesse caminhar. Daí que, a sensibilização associada a uma
“alfabetização” que introduza princípios estéticos nos sujeitos que haverão de
entrar em contato com a arte, como usufruidores é um elemento constitutivo do
processo de aprendizagem.

Mas, o que é preciso perguntar é: esta aprendizagem pode se dar fora


do contexto de sala de aula, com pessoas que talvez nunca tenham acessado
determinados conteúdos e que tenham profunda dificuldade de decifrar alguns
códigos contidos nas obras do agora? E, mais além, a presença dessas obras
em formatos virtuais, que nos casos das artes da cena, transformam
profundamente o caráter presencial dos produtos apresentados seria capaz de
gerar interesse em quem talvez nem sequer tenha pisado num teatro ou casa
de espetáculos? Que tipo de formação, ou “alfabetização”, aleatória e não
mediada pode haver nas novas configurações dadas por projetos artísticos e
formatos em transição e aperfeiçoamento, dados pelo confinamento da
pandemia?

Sobre os que se apresentam

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É comum encontrar no meio artístico brasileiro, certo desânimo, reflexo


do distanciamento do público, que não se mostra presente em casas de
espetáculo, museus, galerias, plateias de circo. Obviamente que a queixa não
se justifica, ou não se apresenta, quando se trata de artistas e produtos com
grande alcance junto às massas. Me refiro, assim, aos artistas comumente
citados como “independentes”, ou pertencentes ao mundo dos “alternativos”,
especialmente aqueles que, de fato, não possuem projeção num cenário
artístico mais amplo, nem mesmo no âmbito das redes, ou, que não possuíam
muitas alternativas, antes do distanciamento social forçado pela atual
pandemia.

Não são poucas as análises que podem ser encontradas nas redes
abordando a crise das artes, ou as alternativas do setor de produção cultural
durante esta mesma crise ou ainda os desafios a serem enfrentados quando as
atividades presenciais forem liberadas. Mas, também, são numerosas as
postagens que tratam das formas artísticas que estão se configurando ou
reconfigurando no ambiente virtual, considerando a aproximação de um público
curioso e afeito a novas experiências, uma vez que seu isolamento acaba por
proporcionar um tempo disponível e propício a tal aproximação.

O já citado fenômeno das lives, especialmente experimentado no


segmento da música, mas cada vez mais entendido como um espaço de
experimentação e diálogo entre pares, que se popularizou em diversas áreas
da produção artística, revela um canal de comunicação que garante imediata
conexão entre artista e público. Entretanto, e ainda se tratando das lives, é
preciso não perder de vista que o foco de análise aqui não é o seleto grupo de
artistas que, patrocinados, alcançam altos rendimentos, contando, em alguns
casos, com uma notável estrutura de produção. O esforço aqui é o de entender
o movimento feito pelos “pequenos”, e, evidentemente, não se trata de um
adjetivo que desqualifica seus trabalhos. Este movimento, feito com estratégia
e planejamento, embora inicialmente possa ter surgido de experiências
despretensiosas, é capaz de alavancar nomes e obras, antes invisíveis ou
inviabilizadas.

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Na ausência de dados precisos que contabilizem essa dinâmica, mesmo


porque estamos tratando de algo que está em andamento, resta tentar
entender alguns indícios sobre comportamentos e posicionamentos diante do
fenômeno. Muitos artistas, ainda atônitos diante da impossibilidade de
exercerem seu ofício, dependente que ele é do contato aproximado, acabaram
por reinventar seus modos de fazer, adaptando trabalhos e propostas. Mas, é
possível observar que alguns e algumas, passaram a criar, a produzir, a buscar
seu espaço, exatamente porque tinham no horizonte a possibilidade de
encontrar quem o apreciasse. Ainda que fossem, inicialmente, 10 pessoas.
Mas, se essa audiência, tão reduzida, não é capaz de gerar um retorno
imediato, financeiro ou de público, porque a insistência?

Cabe descrever a experiência do ator Eduardo Buttakka, que relatou ter


se abalado, num primeiro momento, diante do imprevisto de cancelar seus
compromissos profissionais. Decidiu, em seguida, pesquisar outras
experiências e se deparou com uma iniciativa americana de incentivo a
produções dramatúrgicas curtas, e suas respectivas leituras por artistas em
suas casas. Diz ele, reconhecendo a possível inadequação desta experiência
em Mato Grosso, onde mora, mas compreendendo sua contribuição, uma vez
que “traz luz a uma questão ainda mais importante: em tempos de crise, a
solução é se unir. Unir os artistas do segmento e o público”. Buttakka resume
ainda os desafios, listados a partir de um debate virtual para o qual foi
convidado, que trazem aspectos fundamentais para compreender o que artistas
estão elaborando em seus fazeres. Reproduzo, suas palavras:

1 – Conexão: é importante não perder a conexão com o


público. Para isso, a produção de conteúdo para os meios
virtuais é imprescindível, seja a leitura de um poema, a
publicação de fotos ou de textos que registrem a experiência
artística durante a pandemia. É necessário manter uma certa
frequência.
2 – Experimentação: utilizar o momento de isolamento
social para experimentar novos conteúdos. Testar novos
personagens, músicas, repertórios, ideias. Afinal,
experimentar-se é uma necessidade do artista.
3 – Interação: pensar sempre que o ambiente virtual é um
espaço democrático para todos que estão ali. O público precisa
ser visto como ator, como integrante da performance. Precisa
haver momentos de interação. Pensar de que modo essa
intervenção do público se dará é um desafio de cada artista.

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4 – Buscar formas de rentabilizar o trabalho artístico nas


redes, afinal, o artista precisa receber pelo que faz, seja por
meio de incentivo público, privado ou por cachês voluntários ou
ingressos virtuais. (BUKKATTA, 2020)

Este resumo, serve como inspiração para pensarmos o que pode estar
acontecendo, inclusive com os artistas que não tem a pretensão de seguir
todos esses passos. A possibilidade mesma de continuar trabalhando e se
reinventando, é extremamente potente, já que a própria natureza da exposição
nas redes, através de vídeos, ao vivo ou gravados, editados ou não, ou áudios,
no caso dos podcasts, acaba por dar aos formatos, ou a partir deles, grande
estímulo para que se desenhe e defina o conteúdo. Afora a chance de
encontrar inusitados expectadores, além dos costumeiros colegas e amigos
com quem é possível dialogar nesses encontros, que é real e promissora,
podendo ampliar o alcance das obras e, mais adiante, a visibilidade do nome
do artista. Ou seja, estamos falando de um posicionamento que exige
adaptações, mas, também, que permite descobertas capazes de apontar para
novos caminhos de criação.

Considerações finais ou trocas entre os que fazem e os que assistem

É certo que o confinamento provocado pala pandemia do COVID-19,


afetou o setor cultural de modo inegável. Os efeitos negativos e prejuízos para
trabalhadores e empresários da área, a despeito de todas as iniciativas
públicas e privadas que vem sendo tomadas para mitigar o problema do
cancelamento de suas atividades, estão longe de ser calculados com precisão.
Sobre este tema, arrisco incluir a classe artística, - especialmente composta
pelos pouco conhecidos, pelos anônimos e “figurantes” e pelos trabalhadores
da área técnica a eles associados -, entre os grupos sociais que estão a “sul da
quarentena”, expressão usada pelo cientista social Boaventura de Souza para
designar setores da sociedade que estão sendo (e/ou seguirão sendo)
brutalmente atingidos pela crise. Crise essa, não apenas causada, mas
aprofundada e ampliada pela pandemia. As perspectivas são assustadoras

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para aqueles que, de fato, não possuem outra fonte de renda. Auxílios existem,
mas as políticas de distribuição tem sido lentas e com certo nível de
burocratização, além de não atingir a todos e todas.

No entanto, e talvez por isso mesmo, pelo dramático estado de coisas


que envolve o setor, e pelo visível relevo de sua presença na vida das pessoas
que, em casa, puderam se conectar mais intensamente a obras e artistas,
arrisco afirmar que um fenômeno de valorização simbólica tenha se dado. Um
modo, talvez forçado, de aproximação entre artistas e público, ou entre estes
últimos e os formatos que talvez não fossem acessados se não existissem
essas circunstâncias especiais, acabou por provocar uma espécie de
aprendizado estético, apressado, caótico, mas, ainda assim, aprendizado.

A produção artística que se configurou nesses tempos de pandemia tem


alcançado públicos diversos, sedentos por conteúdo que já conhecem, mas
também expostos às novidades de formatos, conteúdos, e portanto à
possibilidade de se interessarem por artistas e gêneros a que nunca tiveram
acesso. Acredito que a ausência de processos educativos, tal como defendidos
aqui, apoiados numa condução sensível, em contextos escolares que
entendam a centralidade e a urgência de um ensino carregado de sentidos e
consciente do prejuízo causado a homens e mulheres submetidos a uma
especialização demasiado desumanizante, leva a um afastamento notório do
universo artístico. Ainda que pareça desconfortável associar a construção do
ser à ideia de consumo (palavra que expressa relação com o capitalismo que,
afinal de contas, exerce papel predatório junto a expressões artísticas fora dos
padrões consumistas), há que se observar que estamos tratando da
possibilidade de usufruir de uma arte diversificada, não necessariamente
submetida às regras de mercado, e que é praticada, idealizada e estudada por
artistas e intelectuais que contribuem para uma visão crítica do mundo. É um
segmento que, invariavelmente, se encontra à margem da circulação massiva
de ideias e estéticas e que, portanto, tem dificuldade de alcançar ouvintes e
apreciadores de seus conteúdos.

Esse panorama acaba por ser alterado com a aproximação promovida


pelo fenômeno da comunicação que encontramos nesses dias de

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confinamento. Novas experiências se apresentam como horizonte num mundo


de incertezas e angústias. Mais uma vez, citando o ator Eduardo Buttakka,

o artista não vai conseguir substituir a experiência da


presencialidade pelo virtual. Esquece. Mas podemos buscar
formas de tocar as pessoas de outra maneira por meio das
novas mídias, das mídias digitais. Esse é o nosso desafio. E é
aí que chegamos à grande questão: só estar nas redes e
postar conteúdo não bastam. Precisamos criar experiências.

É de se destacar que a multiplicação desse leque de opções de


experiências ou, ainda, a ampliação do repertório disponível, traz novamente a
questão da formação e o importante questionamento sobre como selecionar
conteúdos, se grande parte das pessoas não dominam os códigos que lhes
permitam buscar ou escolher produtos com os quais possa dialogar
criticamente. Ponto crucial, mereceria aprofundamento, que já não cabe nessas
páginas.

O que não se pode perder de vista, entretanto, é que essas experiências


estão sendo vivenciadas de ambos os lados. Pelos que apresentam, e pelos
que assistem e que, ambos, podem fazê-lo através de um processo de
interação que é além de inovador, renovador. Para os que se apresentam, é
potencialmente uma oportunidade de viabilizar e canalizar sua produção com a
real possibilidade de exibir-se sem mediação (a não ser a tecnológica) e sem
grandes custos, em se considerando os formatos mais simples e, porque não
dizer, mais criativos e desafiantes. Todo e qualquer artista, pode, neste
contexto, exibir-se e à sua obra a qualquer tempo, para qualquer navegante do
espaço virtual. Não seria esse um instrumento democrático, por excelência? Há
quem reclame do excesso de propostas disponíveis e até da qualidade de
algumas delas. Mas, neste instante, a decisão está nas mãos do artista. Já
não há como segurar quem está disposto a experimentar-se e a afirmar-se
como criador ou criadora, como cidadão ou cidadã da arte, não melhor, nem
pior do que aqueles que a acompanham ou interagem com ela, mas, parceiros
nessa nova, incerta, confusa e promissora configuração.

Para finalizar, trago novamente uma citação do autor João Francisco


Duarte Jr., que considero resumir a fundamental importância de apoiarmos nas
escolas, nas famílias, nos ambientes de trabalho e de sociabilidade a fruição e

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a valorização da arte, do sensível, do que transcende nossos corpos


cotidianamente tensionados e regulados pela lógica de uma racionalidade
descolada do sentido cotidiano e de nossas existências.

É preciso despertar e treinar a sensibilidade, a atuação dos


sentidos, na vida que se vive. Obras de arte, consagradas ou
não, apenas ganham significação na medida em que possam
ser vinculadas à vida e às experiências efetivamente vividas
pelas pessoas. E tais experiências precisam ser estimuladas e
desenvolvidas, num mundo sobre tudo sensível, antes de
intelectual. (DUARTE JR. 2007, p. 186)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTAKKA, Eduardo O teatro pós-pandemia: um desafio do nosso tempo.


Gazeta Digital, Cuiabá, 2020. Disponível em:
<https://www.gazetadigital.com.br/colunas-e-opiniao/colunas-e-artigos/o-teatro-
ps-pandemia-um-desafio-do-nosso-tempo/617990.> Acesso em 01 de agosto
de 2020.

CARVALHO, Elisa Muniz Barretto. Proposta Triangular para o Ensino de


Arte: concepções e práticas de estudantes-professores/as. 123 p. Dissertação.
(Mestrado em Educação). Universidade de Uberaba, 2007. Disponível em:
<https://www.uniube.br/biblioteca/novo/base/teses/BU000103753.pdf>
Acesso em: 01 agosto de 2020.

DUARTE JR. João Francisco. O Sentido dos Sentidos. Curitiba: Criar


Edições, 2006

Qual o impacto da pandemia do coronavírus na produção artística? Estadão


Conteúdo/Exame. São Paulo, 15 abr. 2020. Disponível em
<https://exame.com/casual/qual-e-o-impacto-da-pandemia-do-coronavirus-na-
criacao-artistica/>. Acesso em: 30/07/2020.

ONU. Assembléia Geral. Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Organização das Nações Unidas. Paris, 1948. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/.> Acesso em 02 agosto
de 2020.

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SANTOS, Boaventura de Souza. A Cruel Pedagogia do Vírus. São Paulo,


Boitempo, 2020. E-book. ISBN 978-85-7559-7767. Disponível em:
<https://play.google.com/books/> Acesso em 30 de julho de 2020.

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