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míriam da costa manso moreira de mendonça

o reflexo no espelho
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MENDONÇA, Míriam da Costa Manso Moreira de. O fenômeno moda. In: ____. O reflexo no espelho.
Goiânia: Editora UFG, 2006. pp.17-27.

<O 2006 Mlriam da Costa Maoso Moreim de ~k-ndonça


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Mendonça, Míriam da Cosm Manso Morcitn.


M539r O reflexo no t":'pel ho: o ve.<ruário c a moda como linguagem Mtística e
simbólica I tvliriam da Costa Manso Moreira de Mcndonç..1. - Goiânia:
Editora UFG, 2006.
260 p. : il.
Ribliografi" : p. 257.
ISHN : 85-7274-261-1
I. Moda - História 2. Trajes - Aspectos simbólicos 3. M<1da- Estilo
4. Vcsnlârio I. Titulo.

CDU: 391
MENDONÇA, Míriam da Costa Manso Moreira de. O fenômeno moda. In: ____.
O reflexo no espelho. Goiânia: Editora UFG, 2006. pp.17-27.

o FENÔMENO MODA
O vesruário, espelho do tempo, uma se às transformações periódicas nas
manifestação humana tão anúga quanto formas dos trajes e demais detalhes de
a própria cxis[ência do homem, reflete, ornamentação pessoal. É esse último as-
em sua composição, toda a filosofia que pecto, o vestuário com suas .inovações "r
organiza a trama da vida social dos formais mais rápidas e caprichosas, que
indivíduos, em qualquer época ou lugar. incorpora mais clara e positivamente o
É inconcescável que as roupas, desde os processo da moda, enquanto manifes-
tempos mais remotos, foram ucil..izadas tação mais divulgada e mais significativa
como mcio de expressão simbólica e ar- do fenômeno. Interessará à presente aná-
dsuca. Verifica-se, no entanto, gu e a lise, portanto, a moda como o estilo ou
moda vem ocupando, cada vez mais, um estilos dominantes de roupas, acessórios
lugar de destaque nas formações sociais e correlatos, usados_l2?r um g_rE_PO de
contemporâneas l]UC !:,'Tavirmn em rorno indivíduos_em uma época pru.L!_cular.
dQ.Sonsumo e da comunicação de mas- t\natole Francc conforme relata
sa. Em tempo relativamente pequeno, a Flügel ( 1966), afirmava que, se lhe fosse
compreensão do fenômeno deixou o permitido escolher entre publicações
terreno das frivolidades, a que era rele- posteriores a sua morte, escolheria um
gado, para assumir um expressivo lugar jornal de modas, pois o vestuário usado
na organização da vida coletiva e na pelas mulheres um século após o final de
consolidação das sociedades liberais. sua vida poderia dizer-lhe mais sobre a
Rm sentido lato, a moda compreen- humanidade futura~que todos os
de todas as manifestações exteriores de filósofos, romancistas, pregadores c
uso~cos rumcs consagradas dentro de sábios. Tratando o rema com o mais
um dercnninado período, desde compor- profundo rigor científico c lamentando
tamentos SOClaJS c conceitos morais, até que alguns o considerem frívolo, Flügel
o estilo prevalecente nas formas dos defende, dessa forma, a imponância de
objetos produzidos c do vestuário ado- seu objeto de estudo, salientando que "os
rado. Em scmido restrito, o termo aplica- contatos com as roupa s, através das
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avenidas da históJia ou da higiene, foram exemplo do jogo de luzes e somhras da


somente considerados dignos de atenção caYerna placônica, mascarando aquilo
pelos mais sérios de espírito" (FLÜGEL, que é verdadeiro para acorreota.r o ho-
1966, p. 9). mem a um sonho sedmor veiculado pela
Realmenrc, aquclcs que negam a mklia, n?io se.: pode desconhecer o pode-
importância das roupas e da moda como roso papel que ela desempenha nas soci-
objeto de estudo necessário e sério não edades civilizadas e em sua economja.
fazem mais do qu~.:: salientar essa Mesmo fazendo a apologia do descar-
importância. \. construção de extensas cávcl, da arúficialidade ela bele:r.a e do
argumentações para negar a validac..le prazer do consumo fácil. um megávd
desse objeto cnfaciza, necessariamente, processo de criatividade artística, sem-
o lugar de relevo que de ocupa no pre em efervescência, é desencadeado e
universo das preocupações cicndficas. alimentado pela moda, que promove,
Os csrudos sobre moda procuram, dessa maneira, um i.mportante impulso
geralmen te, s ub l inhar dois pomos em direção ao desenvolYimento de uma
principais. O primeiro destaca seu carárer consciência crítica c a um aumemo da
mutável, tratado sob o ponto de visra da produtividade técnica e operacional.
regularidade, periodicidade e rapidc7. de Como obser\·a Lipo,·etsky (1989, p. 18),
flutuações. Em conseqüência dessa "a moda prodm insepara,·clmcorc o me-
instabilidade, muitos amores rendem a lhor e o pior".
situar o fenômeno em esfera distinta O fenômeno, profundamente insrá-
daquela dos costumes, cuja maior vcl e sensível às m:us superficiais crans-
permanência no temp o é sustentada pela formaçücs do gosto, está indubiravcl-
tradição. O outro ponto ventilado pelos mente ligttdo às classes poderosas e ao
csrudiosos diz respeito às funçôes do talento c.le uns poucos que, nem sempre,
vestuário, ressaltando-se as de orna- conseguem se manter afastados das
mentação e distinção social, embora seja imposições do mercado na exploração das
dillcil uma pacífica concordância sobre fraquc:r.as humanas. Como a preocupação
a moti~açào inicial para o uso das roupas, com o vestuário é muito anterior ao
bem como sobre o início da moda, com fenômeno "moda", nota-se que a renova-
set1 reconhecido culta às novidades. ção pcrmaneme não é uma nc.;ccssidade
Uma das características da moda , própria à narure:ta h umana, mas provo-
como a entendemos modernamcntc, é cada e sustentada por uma conjuntura de
efctivameme a inconstância, a sucessão forças socioeconômicas relaavamentc
de formas diversas, adoradas a cada es- recenrcs na b.iscócia da humanidade. Isto,
tação; o prazer do novo, do renovado, do porém, em quase nada pode afetar a
diferente. Embora muito criticada como moda, se encarada como manifesração
ageme capa?. de cscravi:tar o espírito, a arústica capaz de criar um novo um verso,
() llEl·J.EXU :-.o F.Sl'EJ.IIO 19

l cxcrapolando as limitações c imperfeições imediata e precisa sobre outros porme- I


da realidade. nores, mis como sexo, faixa etária ou
i\ roupa concretiza um influente sentimentos dos individuas. Tais códigos
insrr~mento social para demonsrrar a constituem, além disso, exp ressivos
riqueza e posição do indivíduo. Thorste.in indicadores dos papéis assumidos pelo
Vcblcn (1965, p. 159) observa que indi.viuuo dentro de um grupo e, por esse
grupo, no contexto social. Oferecem,
outros modos de pôr em evidência assim, fartas informações sobre o craba-
a nossa situação pecuniária servem a lho, a origem, a personalidade, a 6Josofia
seus fins com eficácia, e há muitos de vida, os gostos, os desejos, os impulsos
em voga, sempre e por roda parte; sexuais e aré mesmo as variações de
mas o dispêndio com o vcsmário leva humor de alguém em determinado mo-
van tagem sobre a maioria pois o mento. Essas informações são incons-
"'JO:>so rmje está sempre em evidência cientemente regic;rradas pelos circuos-
e proporciona logo à primeira vista t:antes e, CJUando acontece a interferência
uma indicação ela nossa siruaçào verbal, os indivíduos já lerão esrabelccido
pecuniána a Lodos quanros nos um primeiro conrato por meio dessa
observam. antiga e unive_rsal forma de comunicação.
Além disso, uma das mais cxpn.:ssivas
De fato, a causa primeira e essen- finalidades da roupa refere-se à possi-
cial da m o da par ece prender-se à bilidade guc ela oferece ao sujeito de se
competição de ordem social e sexual, na imaginar ouuo alguém, por meio da
qual os elememos sociais apresema.m-se consu·ução simbólica de seu vestuário
de modo mais claro e evidcn rc, e os como forma de sustentar a imagem
sexuais são mais dissimulados c incon- avo cada.
ft:ssos, t:scudados por pretextos menos O estudo dos fenômenos da moda é
perturbadores. um componente fundamental n a análise •
Se uma de suas funções é a distinção das transformações socioculturais da
social, a moda resulla em inevitáveis nossa sociedade, pois o vestir demonstra
formas de ostentação que diferenciam os imediatamente que a pessoa pertence a
trajes dos ricos e dos pobres. O um dererminado grupo social c tem um
fenômeno, porém, não esgota sua ação certo cscilo de vida. É iocomcsráve.l que
nesse território, e oem o desejo de colocar as roupas escolhidas e a forma pela qual
em relevo a hierarquia de class.es pode cada um compõe seu indumenm sinali-
ser considerado seu objetivo maior. Os zam aspectos psicológicos e filQsóficos
códigos da moda - Llilla reconhecida do caráter de seu usuário. Por outro lado.
forma de comunicação não-verbal - têm os indivíduos podem administrar os có-
a capacidaJe de fornecer uma leitura digos \restimentá.rios de modo a, cansei-
20 MiRL\M 1),\ (OS"I \ M \N$0 MORI'.IIL\ DF MINOO!"Ç I

ente ou inconscientemente, dissimular ser diferente, ou para sentir-se igual,


alguns desses elementos, ou mesmo a sua irmanado ao grupo. Ainda que a compo-
totalidade, pois haverá sempre um sição indumentária tenha um caráter
perceptível tensionamento entre as emi.oentcmente pessoal, a moda estimula
imagens do "eu" e as do "ouuo eu", a mimese. A identificação com o grupo é
aquele que eu enxergo em mim. Por isso, famr natural de aurodefesa c de seguran-
se di7 que a roupa é um reflexo do que se ça de todo animal social, inclusive do
é ou se pretende ser. homem. Nessa disposição, cada tendên-
Como é comum na espécie humana cia assumida pelos lideres do grupo é
a aspiração de pertencer a uma classe aYidamenre copiad a. No entanto,
superior ou mais jovem, a tendência da paradoxalmente, o indivíduo ao se vestir
moda segue em direção ao padrão segundo o demier cri almeja, em última
adomdo pelas elites sociais e pela juven- análise, destacar-se dos demais, numa
tude. Não havendo, porém, limites para prazerosa realização da imagem gue fa7.
a ambição dos indiYíduos, mesmo dentro de si mesmo. Exerce, pois, como bem
das elites não deixa de existir um cerro observa Carlos Eduardo Machado Jr.
desejo de valorização social. D essa ( L979, p. 4), uma espécie de atividad e
maneira, ao verificar a popularização de artística criativa, que o individuali7a, c
uma moda adorada, largamcnrc copiada outra, harmônica, que o condu7 à
pelas massas, diaorc do temor de ser acciraçào das conyenções soci_ais gue o
confundida com a plebe, a alta sociedade identifiquem ao grupo. ~sses scnú.men-
0 levada a procurar imediatamente uma tos, contraditórios e igualmente forres,
forma diferem<.: de se vestir. Idêntico são imporranres fatores a esLabelecer um
processo ocorre com as gerações mais rirmo acelerado de metamorfoses no
jovens, que, com sua natural inclinação vestuárjo, com significado de aceitação
para o rompimento de padrões, receiam ou de recusa.
ser associ'ldas a estereótipos c buscam Assim, a moda viYe em clima de
consramerneme maneiras diferenciadas permancme subversão e paixão pela
de compor sw1 indumentária, para fugir novidade, insurgindo-se não contra esti-
dos padrões massificados ou retrógrados. los inaceitáveis, mas contra os demasia-
Verifica-se, cnrào, que tanro as classes dameme aceitos, que correm o risco de
influentes como a juventude são sólidas serem massivamente copiados. Sente
forças a impulsionar mudanças cada vez necessidade de contrariar o status q11o,
mais rápidas nas tendências propostas. instigar a imaginação, provocar a rebeldia
De fato, o modo de vestir dos po- para eYitar a todo custo o conformismo
vos sempre teve um significado oscilan- insuportável. Seus movimentos em
tt: enue dois oposLos: vestir-se para tentar direção a urna aparente descontração não
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devem scr enganosamentc interpretados dividem o mesmo espaço, embora a


como um rebelde afasramcnw dos ousadia dessa linguagem possa ser bas-
férreos ditame!> de seu credo. Para quem tante reprimida pela moral. A esse res-
segue a moda, qualquer padecimento peito é importante observar que, em ter-
físico parece preferível a um resignado e mos de moda, os conceitos de moralidade
descolorido bem-estar. \demais, no ou imoralidade, assim como os de beleza
vestuário, como nos demais anes, pro- ou feiúra, são bastante relativos. D epen-
blemas e desafios podem se tornar dem da cultura ou da época histórica c
elemenros definidores de soh!5ões, são, portanto, extremamente variáveis,
transformando-se em farores de distinção embora os elementos status e sedução
entre wna roupa elegante e ouu:a apenas marquem presença permanente no
confortável. Enquanto esta última é sistema do ves tuário e a competição
relegada à modesta classe servil, a elite social e sexual seja continuamente uma
ociosa, escravizada à moda, troca o des- forte motivação para o uso das roupas.
confono de um traje por pcças muitas Em verdade, a moda é uma das melhores
vezes mais desconfortáveis, em virtude formas de revelar as mais proFunda s
do peso excessivo, da complicação de compulsões humanas, como a virilidade
o rnamenlos ou da extrema constrição e masculina ou a força de sedução das
rigidez das formas. mulheres. Essas são consistentes mori-
,\ r o upa é também usada para vaçõcs que emergem de nosso
enaltecer ou inibir apelos sexuais. Já no subconsciente, com base em diferenças
rcxro bíblico que rehtra o episódio da biológicas e morfológicas, situando-se
queda do paraiso, a determinação ao acima ainda do desejo de diferenciação
homem para cobrir sua nudez denota social.
uma função simbólica atribuida à moda, A imporrânda da roupa varia ao
com a decorrente demarcação desse longo do tempo, em função da modéstia
homem como ser scxuado. Não é ou da valorização do corpo. É possível
pos!>ível, portanro, desconhecer ou des- registrar períodos em que triunfa o
prez~u· o apelo erótico que, dissimulado exibicionismo e outros em que se n ota
ou não, encontra-se sempre Latente na uma grande severidade no modo de vestir.
moda. O desejo humano rem uma cons- Por vezes, a moda serve apenas para
tituição pulsional, e a sexualidade dos realçar as formas do ser humano c corai-
uajes é, sem sombra de dúvida, um dos lo mais sedutor ou atraente, valendo-se,
morares expressivos fundamentai~ do para isso, de transparências ou desnuda-
fenômeno. A composição vestimentária mento parcial, e a roupa parece perder
pode ser entendida como um diálo_go parte de sua importância, comprazendo-
sensual entre homens e mulheres que se em feitios despojados e sim_ples. Em- - - , - ,
22 M!RHM n.\ Cos1 \ M.\NSO MoREm\ OI! tvlENDON< \

outros momentos, ainda que a intenção o efeito resultante é o seu sistemático


de colocar à mostra os encantos do corpo realce em termos de sedução. Por vezes,
seja a mesma, os trajes, embora extre- uma forma modestamente oculta provo-
mamente reveladores, são elaborados com ca o desejo de admirá-la desnuda, em grau
requintes de reflnamcntq, como que para bem maior do que provocaria a sua aberra
se1-vir de luxuoso escrínio para a seminudez. exposição. Houve épocas em que a
Existem épocas, pelo contrário, em simples visão de um tornozelo feminino,
que o corpo parece se tornar um mero normalmente recoberto pelos longos
suporte para o vestuário. A ênfase é co- trajes oiroceotistas, cinha o poder de exa-
locada diretamenrc sobre as roupas, que cerbar paixões avassaladoras, enquanto
aparecem em número excessivo, quase que, arualmcnre, pernas totalmente nuas
sempre em sobreposições. variando bas- podem passar despercebidas.
tann: nos talhes c nas cores. Perdido entre Os seios têm tido especial destaguc
os sunr:uosos pauejamenros e a espeta- como ponto de interesse no u:aje femini-
cular ornamentação, ao físico do portador no, embora outras partes do corpo, corno
só resta recolher-se a um humilde a cinrura, o colo, as ancas, o ventre, os
segundo plano. Entre esses extremos, co- braços e as pernas, ou até mesmo as mâos
loca-se uma ioflndávcl série de variaçôes, c os pés, tenham marcado seu reinado en-
em que se alterna o desejo de realçar as tre os predicados mais valorizados, em
formas do corpo e o de escondê-1-ls, com diversos períodos da história do vesruário.
maior ou menor empenho. As imposiçôes O corpo humano é, sem sombra de
da modéstia podem, por ou tro prism.a, dúvida, a base de toda c qualc1uer moda,
além de coibir qualquer tentativa de des- e cada época concebe formas ideais de
nudar a intimidade física do homem, elegância corporal. Grandes parceiras da
condenar os excessos de luxo, de vaidade humana, as roupas têm a
desperdício e de ornamenraçôes como possibilidadc de realçar ou disfarçar
uma d iYcrsa maneira de exibição. Não detalhes, segundo os padrões estéticos
foram raros os momentos históricos em vigentes. Tais padrões derer:minam as
que se baixaram leis suntl~rias na tenta- proporções físicas exibidas pelo indid-
r1,-a de, pelo menos aparentemente, duo, se alongadas e adelgaçadas ou, ao
reprimir abusos. contrário, acrescidas de formas volumo-
Diferentes partes do corpo foram, ao sas, para destacar um caráter de leveza c
longo dos tempos, mais ou menos graça, ou de dignidade e imponância
acentuadas com concentrado apelo eró- social.
tico. F. in teressante notar a esse respeito O traje masculino não foge a esse
que, seja evidenciando o detalhe com o jogo de realces, incluindo, ao longo do
intuito de exibição, seja recobrindo-o tempo. roupas gue alternadamente valo-
cuídadosameme em sacrifício ao pudor, nzaram a amplidão d o tórax c dos
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ombros, a par da esbelteza dos quadris, diferenças sociais. O trabalho, p or outro


exibiram ventres avantajados, narurais ou lado, passou a assumir um papel de
postiços, e até mesmo acentuaram reconhecida respeitabilidade, deixando de
intcigantemente o órgão genital, por meio ser considerado uma contingência
de aposição de formas acolchoadas degradante à dignidade das classes supc-
proeminentes e cores contrastantes. Nos .cion:~, que, de modo mais ostensivo,
primeiros tempos, diga-se a propósito, a sempre impuseram as tendências da
história do v estuário e da moda foi, moda. Tornou-se conveniente, por isso,
notadamente, uma história de homens, a adoção de uma indumentária mais sim-
aos quais eram destinados os tecidos mai.<; ples e adequada à atividade produtiva.
luxuosos, as roupas mais espetaculares e Se esses farores não afetaram de .igual
a mais pesada ornament.'lção, incluindo mancita o vestuário feminino, foi prova-
jóias, pedradas, peles e plumas, além dos velmente pelo fato de as qmlheres da
mais raros perfumes e cosméticos. Esse época não esrarem râo co nscientes das
costwr.e pxende-se à tradição ancestral transformações sociais c políticas por <1ue
de reservar ao chefe o uso das mais passava o mundo, além de serem, f'01"
visLOsas penas, presas, conchas ou outros ~, mais apegadas ao jogC2_ da
troféus conquistados às suas preias, em sedução e à competição pela admiração
uma inequívoca demons tração de sua do sexo oposto, inegavelmente favoreci-
superioridade sobre os demais. As mulhe- do pelo aparato de trajes e acessórios.
res, por muitos séculos, ocuparam uma Atualmente, quando ela passa a assumir
posição secundária nesse jogo exibitório, um papel reconhecidamente atuante nos
dcstrutando apenas de pálidos te11exos meios produtivos, co a firma- se um
do brilhante universo de seus pais ou direcionamento no sentido do uso de
maridos. roupas femininas mais uniformes e me-
A súbita redução da ornamentação nos rebuscadas, ao menos para as horas
dos trajes masculinos, ocorrida 11~0 final de trabalho. Como se pode notar, as mu-
do século :1_7\,lJil, com a conseqüente danças na moda não são arbitrárias; ao
valorização da austclidade conferida pela contr!rio, são sinais visíveis de alterações
m enor elaboração das roupas, deveu-se, sociais e culturais de maior profundidade. _
em grande parte, a causas de natureza Não se p ode, no entanto, pretender
política e social. Os novos ideais de li- que os movimentos da moda assentem-
berdade, igualdade e frarernidade mun- se tão-somente em fatores psicossociais
dialmente difundidos pela Revolução ou culturais. Caso contrário, seria possível
Francesa pareciam incompatíveis com o o registro de modas isoladas, elaboradas
esplendor e a sunruosidade de vesres que, por grupos sociais cspccificos, em função
até aquele momento, únbar.n por objetivo, de suas necess idades particulares de
oc ulto ou declarad o, acentuar as expressão. Mas não é isso o que se verifica
24 Mho ,IM 11,1 COST:I ~INSO M o ttEJRA n E MnNnONÇ;\

em termos globais. A moda encontra-se imprime em sua o bra como particular e


cada vez mais padronizada e submissa às original resposta às próprias inqucrações
idéias dos grandes centros criadores, anteriores, cita o seguinte depoimento de
mundialmente reconhecidos como "guias GabrieUc Coco Chanel: "Na origem da
da elegância c do bom gosto". criação está a invenção. A invenção é a
D en tre os significados específicos e semente, o gérmen. 1.--"azcr moda c criar
coocreros claramente definidos a que se moda são duas coisas bem distintas."
~ pode associru· a definição de moda, des- Cada estilo propostO guarda carac-
taca-se a sua concci_tuação comp ~ócio Leríscicas inerentes, gue determinam a
oricmado pelo mercado, subordinado ao aparência disün6va do traje através de
interesse comercial e ao lucro, que esri- suas formas, deLalhes c outros elemen-
mLlla continua inovação. A moda, portan- tos visuais. Consolidach sua larga accira-
to, liga-se ao moderno fenômeno do çào e imitação pelo mercado consumidor,
consumo, símbolo da economia capita- esse estilo vai se constituir na "moc.Ja"
Üsta, consagrada ao desperdício, à daguele período. Caso contrário, pode
fuci.lidadc e à produção incessante <.lo significar apenas uma tendência, ou seja,
novo. um movimemo que vai sendo gradati-
Integrados a esse sistema merca- vamente aceito por pequena parte de um
tório, os grandes desi,gner.r de moda grupo definido e que pode resulrar em
esforçam-se por apresentar, com uma inclinação passageira. Um estilo mui-
cspanrosa consrância, criações geniais e tas vezes não prevalece absoluto corre
revolucionárias, que ap arecem os i~<.lividuos de uma época. .É possível
saY.onalmentc nas passarelas entre uma a convivência de di"-ergeotcs formas de
revoada de elegantes manequins e vescir em um derennina<.lo momenro.
arrastam atrás de si todo um séquiro de F a ror es como f!ixa e Lá ria_,_ condição
prod utos avalizad os pela "g~ife" que ~ocioeconômica ou geográfica, dentre
promovem. , \ cada estação, a indústria e outros, detcrmjnam essas Yariações.
os esrilisras lançam novas tendências, em Assim, quando a juvcnrude passa a adorar
uma ftlosofia de renovação incessante dos saias extremamente curtas, as mulheres
modos de vestir ou de se comportar. de mais idade podem op tar pelo uso de
~lauro Mendes Dias (1997, p. 29) aponta calças compridas. De urna maneira geral,
o fato de que "o novo se alinha com a porém, mesmo em difer e ntes inter -
illve tlçào, s u a marca é traumática, pretações, a linha, as cores, as propostas
fulgurante, inscreve-se pela brevidade ... sào seguidas por expressiva parcela dos
Há para aquele que inventa uma marca fruidores.
diferenciadora das outras produções- ela Nesse p rocesso de renovª-ção pro-
se chama es6lo". E, para mostrar que o gramad_?, seoa imposskel desconhecer as
estilo designa essa marca que o sujeito deLerminames econômicas e as estraré-
() lti(I'J.IL'\0 ' 0 F.Sl'EJ.IIO 2S

gias da arte publicitária que, na busca da sucedido marketilzg procurou determinar


máxima dinamização do mercado, favo- posições objetivas centradas na satisfação
recem e divulgam, tanto quanto possível, c.lesses desejos e necessidades do consu-
as mudanças nas tendências. Essas midor. Portanto, a análise das ambições,
mudanças são impostas de cima para csrilo de vida e motivações ocultas que
bai.'l{o na pirâmide social, para atingir a governam o componamenro dos indiví-
!:,lTande massa compradora, e implicam duos, rornou-se essencial no plano
sempre uma rupmra com a VQga anterior. mercadológico.
O rompimento, no entanto, não é drásti- Com apoio nessas pesquisas, aquilo
co, para eYitar o choque violento com os que está em moda e cenamenre é arua-
padrões estéticos ou morais majorita- lissimo, tão logo é aceito pela massa, entra
riame nte aceitos. Os líderes, ao apresen- em um es úmuJ~do processo de declínio
tarem suas propostas, colocam-se não que, rapidamente, o leva à obsolescêncill
mais que um passo à frente dos demais, e determina a sua substiruição por uma
para que o grupo tenha. o desejo c condi- nova tendência. Os padrões de gosto são
ções de acompanhá-los. Uma nova moda, modificados cada ve7. com maior
para ter sucesso, necessita esrar de acordo velocidade, graças aos incentivos de um
com as aspirações comuns da época em enorme c com_plexo sistema industrial
gue é lançada. As rendências introduzidas produtOr, aliado aos meios de comuni-
não podem estar muúo distanciadas dos cação guc difundem, de maneira cxa:ema-
sentimentos e ideais do momenro, embora mcme ágil, as úl.timas criações nascidas
seja inegável a existência de um~ rêlação nos grandes centros decisores. Aliás, não
direta corre a possibilidade de aceitação é necessário um grande empenho no
de inovações mais profundas c o grau de incentivo às transformações, pois o gosto
prestígio desfrutado por aqueles que as por no,·idades é uma inclinação
lançam. estabelecida nas modernas sociedades.
O acolhimento c a consagração de No entanro, nessa bem-orquestrada
um cscilo de vestuário implicam que os sucessão de formas, sempre subsistirá
indivíduos o desejem c o comprem, ca- algo da antiga voga na mais recente, pols
racterizando-se, pois, um negócio que, o processo criativo é contínuo c nunca
como qualquer outro, rem por objetivo a sofre interrupções abruptas ou incoe-
larga aceiração e consumo. Para atingir reDLes. Nesse andaJnenLO, a moda se
c;eus fins, a indústria da moda serve-se desenvolve por um processo espiralado,
de um marketing vigorosamente orienta- no qual cada volta da espiral retoma algo
do. Senrindo que o público, cada vez mais do esrilo anterior, sem impedir, contudo,
exigcnre e informado, interessa-se em a marcha da renovação constante, deter-
compor seu próprio visual, de acordo com minada em função do consumo.
suas afinidades c gostos, esse bem- t\ intclcctualidade empenha-se em
26 MitUA~I n,\ CosTA M lu'ISO MoREm,, nE MENDONÇA

denunciar a institucionalizaçào do des- supõem. Se, por um lado, sempre existi-


perdicio nas contemporâneas sociedades ram aqueles cujos gostos e maneiras de
comandadas pelo processo da moda. trajar impuseram-se aos demais, por sua
Condena a criação em grande escala de reconhecida elegância ou propalado pres-
necessidades artificiais, em benefício da tígio, pot outro, é certo que a indl1stria
frivo lidade e da ilusão, a serviço do lucro encoraja essas caprichosas irnposiçõ<.:s da
ca pitalista e das classes dominantes. moda, sabendo que o homem não se
Baudrillard (1972, p. 168) refere-se ao conforma em ser considerado excluído
sisLema como uma estrutura perversa, dos padrões estéticos vigenres.
em que, "rodeado de mercadorias e de A obsessão denunciadora do poder
valor de troca, o próprio homem não é democrático-capitalista não pode ignorar,
mais que v alor de troca e mercadoria". porém, a obra histórica da moda naquilo
Realmente, muitos trajes de boa quali- qu e lhe é essencial: so b a enganosa
dade e bem confeccio nados poderiam aparência fútil, subsiste a importância da
resisúr por vários anos, sem a necessida- criatividade dos indivíduos na expressão
de de substituição imposta a cada esra- intencio nal das forma s es téticas gue
çào e, por ve~es , em um ainda menor compõem sua indumentária. Além disso,
espaço de tempo. Contudo, essa perda do não pode ser obscurecida a significação
sentido de continuidade e permanência social do ves tuário como discurso
costuma ser justificada pelo fato de ser simbólico e emocional, ou o peso da
catac terísrico da natureza do homem presença da moda na organização social
aborrecer-se facilmente de um visual, e na afLrmação da person alidad e do
se ntind o premente necessidade de homem. A roupa P-romove o relaciona-
renová-lo. A indústria da moda invoca, mento do indivíduo com seus seme-
assim, em sua defesa, o fato de estar dan- lhantes, satisfaz e sublima seus ocultos
do resposta a esse insaciável apetite hu- desejos de exibição, ostenração e vaidade.
mano, produzindo suficienres variações e A sociedade contemporânea,
interpretações de tendências, para que cada recnocrata c materialista, expulsou valo-
um possa decidir por aquilo que realmente res que eram imprescindíveis à narureza
venha a refletir seu julgamento e gosto. E dos indivíduos, privando-os do culto a
salienta que isso sem dúvida traz, como seus deuses e heróis, sacrificados no altar
desejável conseqüência, a movirnemação da racionalidade. Em todas as camadas
do mercado, a criação de empregos e o r efletiu-se a idé ia extremamente
desenvolvimento da economia. perturbadora da ausê n cia de Deus.
Embora não seja possível contradi- Nierzsche (apud JUNG, 1977) deu nome

- zer essa afirmação, não há como ignorar


que a decisão das pessoas por determi-
nado estilo não é tão livre como elas
a esse vazio terrível quando declarou:
" D eus está morto". Vários artistas
passaram a refletir em suas obras uma
lillfLEXO I'O EiPEU~O 27

profunda desesperança e solidão. pois, ·como um desses substitutivos, a


Kandinsky, em seu livro O espiritual na sacralização do corpo e dos prazeres
arte, afirmou: "O céu está vazio. D eus mundanos, entre eles o culto da moda,
está morto". A idéia da morte de Deus e cuja celebração implica um ritual de
do vazio metafísico atinge a muitos. Jung elegância e sedução sempre renovado.
(1977, p. 255) percebeu, através da Flügel (1966, p. 125) cita a frase de
análise dos sonhos de seus pacientes, esse Mallarmé: '' La Mode est la déesse des
inquietante fenômeno, como um fato apparencel'. E continua: "Deusa misteri-
psíquico de nossa época c escreveu em osa cujos decretos devemos obedecer
1937: "Sei - e expresso aqui o que mais que entender". Costuma-se dizer
inúmeras pessoas também sabem - que que os loucos inventam a moda e os
a época atual é a do desaparecimento e sábios a seguem. De fato, loucos podem
morte de Deus". A perda da crença nessa ser os caminhos e descaminhos da moda,
imagem de um ser superior é a perda do loucos podem ser seus geniais criadores,
fator supremo que dá significado à vida porém sensatos são aqueles que não se
humana. Era necess ário, então, que insurgem contra essa loucura, que movi-
fossem encontrados substitutivos para menta um terço da economia mundial
esses valores destronados. Instituiu-se,

Ü P ERCURSO HISTÓRJCO DO VESTUÁRIO E DA M ODA

A moda, regida pela eclosão do sen- vestir foram bastante lentas c menos
timento individualista e pelo prazer da profundas, o que leva os estudiosos a
sedução, fez seu aparecimento sistemá- localizarem a origem do fenômeno no
tico a arti.r do final da Idade Média, fascinante período final da Idade Média,
quando os mais corajosos, geralmente em que o amor e a elegância lançaram
membros destacados das elites2Qc.iais, suas raízes nos palácios e nos meios eru-
ousaram imprimir toques pessoais à d itos, que pass aram, desde então, a
maneira de vestir coletivamente aceita. cultivar com esmero as regras de corte-
Não mais, simplesmente, seguir a linha Sia.
adotada pela maioria dos poderosos, mas As damas - env ergando seus vesti-
acrescentar a ela seu pró prio estilo de dos suntuosos, com fartas caudas e man-
encantar, ou até mesmo de chocar e, em gas tão longas que por vezes tombavam
última instância, de trazer sobre si olhares até o chão abertas no antebraço de modo
admirativos. a não deixar de exibir o luxuoso tecido
Da Antigüidade até a época_medie- do fo.rro -,adquiriam um porte majestoso
val, as transformações nos modos de e requintado, em uma Europa que se

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