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ISSN 1679-4931

Independente da religião de cada um, todos, alguma vez na vida,


já ouviram falar dos milagres que Jesus teria feito durante sua pregação. A
multiplicação dos pães, a transformação da água em vinho, a pesca milagrosa,
a transfiguração, a ressurreição e a ascensão ao Céu são episódios narrados
na Bíblia, mais precisamente no Novo Testamento, que quase todo mundo
conhece, ao menos, de modo superficial.
Mas e os outros milagres de Cristo? Quais são eles e em que situações
aconteceram? O que eles implicam em termos de atestar que Jesus Cristo
realmente é filho de Deus? Bem, os milagres incluem desde cura de cegos,
leprosos, paralíticos e possuídos pelo demônio até a ressuscitação de pessoas,
como Lázaro e a filha de Jairo, por exemplo.
Sem dúvida, esses supostos acontecimentos contrariam as leis da biolo-
gia, da física, enfim, da ciência como um todo. E até seria fácil provar que eles
jamais poderiam ter sido realidade um dia. Mas, aqui, o que está em questão
Foto: Paulo Batelli

não é a busca de provas da veracidade dos milagres, mas, sim, o desejo de


conhecê-los de forma mais profunda e detalhada, especialmente porque es-
ses atos “sobrenaturais” são uns dos maiores responsáveis pela propagação e
Capa: Tela “Jesus Cristo, a Ternura”, de Jeferson Fernando de
Souza. Agradecimento à Art Place afirmação do cristianismo no mundo todo.
Então, a seguir, você vai conferir narrativas, pesquisadas pelo jornalista
Wendell Guiducci, de 41 feitos milagrosos atribuídos a Jesus Cristo, que
encontram suas bases na Bíblia e em outras fontes que se dedicam a divulgar
os acontecimentos que cercam a figura de Jesus Cristo.
Acreditar ou não nestes atos é uma outra questão, mas, sem dúvida
alguma, vale a pena saber mais sobre eles.

PRESIDENTE: Paulo Roberto Houch


Um grande abraço
ph@editoraonline.com.br

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33
S umário

05

10

SUMARIO
TRANSFORMAÇÃO DA ÁGUA EM VINHO 10
JESUS ESCAPA DE SEUS INIMIGOS EM NAZARÉ 11
CURA DE UM POSSESSO EM CAFARNAUM 11

CURA DA SOGRA DE PEDRO 11


MILAGRES NA NOITE DE SÁBADO 12
13 CURA DO FILHO DE UM CORTESÃO DE CAFARNAUM 12
CURA DE UM HOMEM PARALÍTICO 12
CURA DO LEPROSO 13
PESCA MILAGROSA 14

CURA DE UM PARALÍTICO EM BETHESDA 14


CURA DE UM HOMEM DE MÃO SECA 15
CURA DO SERVO DO CENTURIÃO 15
RESSURREIÇÃO DO FILHO DE NAIM 16

22 A PRIMEIRA TEMPESTADE ACALMADA 16


O POSSESSO DE GERASA 17
A RESSURREIÇÃO DA FILHA DE JAIRO 17
CURA DA MULHER HEMORROÍSSA 18
OS DOIS CEGOS 18
A MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES 19
Onde encontrar O POSSESSO MUDO 20
JESUS CAMINHA SOBRE AS ÁGUAS 21
POUCOS MILAGRES EM NAZARÉ 22
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SEGUNDA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES 24
A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS 25
Humberto Locoselli Filho Onil Mello O MENINO POSSUÍDO POR UM DEMÔNIO 26
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AGRADECIMENTOS O HOMEM COM HIDROPSIA 29
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Lurdinha Perina OS FENÔMENOS NA CRUCIFICAÇÃO E RESSURREIÇÃO 32
Igreja São Luis Gonzaga de Itu Tels.: (0**11) 4022-4368 / 9736-0235 COM CRISTO RESSUSCITADO 34
O REENCONTRO
ASCENSÃO DE CRISTO 34
4
Jesus
e os
milagres
J esus
Jesus e os milagres

VIA SACRA PINTADA PELA ARTISTA PLÁSTICA RITA BIAGIO. AGRADECIMENTOS AO COLÉGIO DIVINO SALVADOR DE ITU.

Jesus Cristo, filho de Maria, nasceu na região da Galiléia, entre os anos


6 e 7 a.C., na cidade de Belém, ou em suas proximidades - ou talvez em um
casebre no pequeno vilarejo de Nazaré, onde vivia sua família. Ele cresceu
naquele povoado, junto com sua mãe e seus irmãos e irmãs, filhos de José, vi-
vendo provavelmente da agricultura, do pastoreio e do artesanato. No início do
ano 28 d.C., já adulto, foi batizado pelo profeta João Batista, cujas diretrizes
religiosas ele absorveu e seguiu à sua própria maneira. Pregando sua visão de
um Deus misericordioso, Jesus se tornou um líder religioso rebelde, um profeta
judeu que desafiava as leis judaicas. Em meados do ano 30 d.C., na tarde
do dia 7 de abril, abandonado por seus seguidores, ele foi executado
por Pôncio Pilatos em Jerusalém, terminando na cruz sua
caminhada pelas terras da Palestina. Mesmo após a morte, sua
Pelos Evangelhos, é história e seus ensinamentos seduziram um número cada vez maior de
impossível organizar pessoas. Assim nasceu o cristianismo, o conjunto das religiões basea-
das nos ensinamentos de Jesus Cristo, que promoveu profundas
com precisão mudanças na história da humanidade.
cronológica o que É verdade que o pouco que temos da biografia de Jesus,
Jesus fez e quando, com sua postura revolucionária, já faria daquele judeu da Galiléia
uma figura histórica extraordinária. Mas é indiscutível que os feitos
pelo menos até Ele milagrosos de Jesus, narrados nos Evangelhos de João, Marcos,
ir para Jerusalém e Mateus e Lucas, foram determinantes na propagação do cristianismo
através dos tempos. Os milagres atribuídos a Jesus são tão recor-
viver seus últimos rentes e fortes nas narrativas evangélicas, que é impossível ignorá-los
dias antes de como um dos traços fundamentais da expansão da doutrina cristã.
É preciso ter em mente que os Evangelhos não foram escritos para
ser crucificado formarem uma biografia, mas, sim, para funcionarem como um
instrumento de propagação de fé.

Para o professor do departamento de Teologia da Puc-SP, Fernando


Altmeyer, é preciso, antes de mais nada, contextualizar os milagres. “Nos
textos bíblicos, o milagre é uma manifestação do amor de Deus. Para nós,
6
texto Wendell Guiducci arte Patricia Paiva

hoje em dia, milagre é alguma coisa sobrenatural, fantástica. Para um comuns àquela época porque muitas doenças para as quais não
judeu contemporâneo a Jesus, gestos muito simples poderiam ser se tinha explicação, como a epilepsia, eram atribuídas à presença
considerados milagrosos. Mas, hoje em dia, um sujeito portador do de espíritos malignos.
HIV ter o vírus extirpado é que é um milagre. Portanto, torna-se muito Outra característica milagrosa de Jesus é a cura de doenças.
difícil que algo nos maravilhe hoje. O que impressionava minha avó, Ele teria sarado leprosos, feito paralíticos andarem, cegos enxerga-
por exemplo, não me impressiona mais porque já pode ser explicado rem, hemorragias estancarem. O caso mais famoso de “cura” é o
pela ciência “, esclarece. Aliás, o termo milagre, explica Altmeyer, de Lázaro, ressuscitado por Jesus quando seu corpo já estava em
vem do latim mirari, que quer dizer algo como “espantar-se”. decomposição. Mas Ele fez muito mais que tornar sãos os doentes
O teólogo também chama a atenção para o fato de os e espantar demônios. Jesus teria caminhado sobre o mar e ordenado
Evangelhos terem sido escritos de forma comunitária, e não como à tempestade que se acalmasse para que o barco pudesse navegar
livros redigidos por uma só pessoa. Assim, cada cultura responsável em águas calmas. Teria multiplicado pães e peixes para alimentar
por um dos Evangelhos escolheu os milagres multidões. Teria transformado água em vinho. São
que quis para narrar. “Em Marcos, Jesus era o os “milagres da natureza”, como define o teólogo
curandeiro. Já em Lucas, Ele aparece fazendo É indiscutível que os inglês James Harpur, que rotula os demais feitos
milagres espetaculares diante de multidões, feitos milagrosos como “milagres de cura”.
enquanto Mateus encara-o como um segundo
Moisés. E João enxerga Jesus como aquele que
de Jesus foram
se contrapõe às forças da morte. Tanto que Ele determinantes na Claro que nada disso pode ser atestado ou
só promove sete milagres em todo o Evangelho propagação do contestado por historiadores. O que os estudiosos
de João, que é o menos histórico e o mais fazem, em vez de questionar se Jesus era um ser
simbólico dos quatro. Os episódios parecem cristianismo dotado de poderes divinos, ou se era uma espécie
escolhidos a dedo, de dois em dois capítulos, através dos tempos de ilusionista ou paranormal, é tentar entender o que
como um carimbo para começar ou terminar estes milagres representaram para a história de Jesus
determinada narrativa”, teoriza Altmeyer. e para o desenvolvimento do cristianismo. Segundo
O primeiro ato milagroso registrado nos Evangelhos o reverendo Vagner Bernardi, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil,
de Marcos e Lucas é o exorcismo praticado por Jesus em através dos milagres, Jesus manifestava o poder de Deus na Terra.
um homem possesso na sinagoga de Cafarnaum e este hábito “O propósito dos feitos era o de autenticar a Cristo como divino
de expulsar demônios seguiria com Ele durante todo seu e salvador”, afirma. “Isso podemos ver nos constantes pedidos
ministério. Narram a expulsão dos demônios da filha de uma que faziam para que Jesus operasse milagres.” Ou seja: ao pro-
mulher cananéia; do corpo de um geraseano, espíritos estes duzir eventos sobrenaturais, Jesus dava provas de que Deus agia
que entraram em cerca de dois mil porcos que se jogaram no por meio Dele porque aquelas coisas maravilhosas só poderiam
mar; do possesso mudo, entre outros. Atos de exorcismo eram ser obra de Deus mesmo.
77
7
Mas seriam todos estes milagres atribuídos a Jesus metáforas de Jesus. As listas de concordância resumida de várias traduções
usadas pelos Evangelistas, lendas colhidas nas do texto original grego dos Quatro Evangelhos
primeiras tradições cristãs, como acreditam alguns pes- são muitas vezes incoerentes. Em algumas
quisadores? Sabemos, por exemplo, que a doença Ao produzir eventos ocasiões, são apresentados 42 milagres, em
era associada à impureza naquela época e, portanto, sobrenaturais, Jesus outras, 45, 43... nenhuma tentativa de enumerar
a cura de enfermos seria uma forma de purificação estes feitos pode ser tomada como definitiva.
espiritual. Impossível dizer ao certo. Como provar que
dava provas de que Isso porque os próprios evangelistas narram
Jesus caminhou ou não sobre as águas? Ou saciou a Deus agia por meio diferentes passagens em seus livros. O milagre
fome de uma multidão de cinco mil pessoas multipli- Dele porque aquelas da transformação da água em vinho nas Bodas
cando o alimento? Se pouco sabemos sobre sua vida de Caná, por exemplo, tido por muitos como
cotidiana - se foi casado, quantos irmãos teve, como secoisas maravilhosas o primeiro ato milagroso de Cristo, só aparece
só poderiam ser
parecia -, o que dizer de feitos tão sobrenaturais? É por em João. Se tomarmos Marcos e Lucas,
esta porta estreita que deixamos para trás uma perspec- chegaremos à conclusão de que o exorcismo na
tiva histórica para adentramos os domínios da fé. obra de Deus sinagoga de Cafarnaum foi o primeiro milagre de
Mesmo esmiuçando os Evangelhos, é im- Jesus. Geralmente, os Evangelhos de Mateus,
possível determinar precisamente quantos e quais foram os milagres Marcos e Lucas são mais concordantes, por serem conhecidos como

8
sinóticos, ou seja: escritos sob o mesmo ponto de vista. O Evangelho ministério, e claro, pela sua força como instrumento simbólico
de João foi elaborado depois dos demais, e é aquele cuja estrutura de doutrinação. Para o reverendo Bernardi, os mais impor-
mais se aproxima de um livro “didático” de catequese. tantes milagres de Cristo para o cristianismo foram sua morte e
Para complicar mais ainda, Jesus curou, exorcizou e res- auto-ressurreição. “A mensagem do Evangelho é o Cristo crucificado
suscitou diversos personagens, e nem todos estes feitos são e ressurreto”, pondera.
relatados de forma muito clara. Em Mateus, por exemplo, a Por causa das diferenças e discordâncias entre os quatro
primeira citação do evangelista sobre os milagres de Cristo é bas- Evangelhos, únicas fontes disponíveis para pesquisa, fica impossível
tante genérica. Ele diz “Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando organizar os milagres de Jesus em uma ordem cronológica e afirmar
nas sinagogas, anunciando a Boa Nova do Reino e curando toda que esta seqüência de narrativas corresponde à realidade. Alguns
espécie de doença e enfermidade do povo. Sua fama também se feitos, inclusive, aparecem apenas em um livro, enquanto outros
espalhou por toda a Síria. Levaram-lhe todos os doentes, sofrendo aparecem em todos, ou somente em dois ou três Evangelhos. O
de diversas enfermidades e tormentos: possessos, epiléticos milagre da multiplicação dos pães, por exemplo, é narrado por todos
e paralíticos. E ele os curava.” Por isso, fica impossível quantificar os evangelistas. Já a cura da orelha de Malco aparece somente em
os milagres. No entanto, determinados feitos acabaram ganhando Lucas, não encontrando paralelo em nenhum outro livro. A ordem
mais destaque do que outros nos relatos dos evangelistas, em que foram organizados os milagres a seguir tentam, ao máximo
pela importância que têm na biografia de Jesus e em seu possível, preservar alguma coerência cronológica. s
Fotos: Paulo Batelli

99
M ilagres

TRANSFORMAÇÃO
DA ÁGUA EM VINHO
(AS BODAS DE CANÁ)
Jo 2, 1

Para o cristianismo, este foi o primeiro milagre de Jesus, o pioneiro


sinal de que ele era de fato o Filho de Deus. Depois de batizado por João
Batista nas águas do rio Jordão, Jesus foi a um casamento em Caná, na
Galiléia, acompanhado de sua mãe, Maria, e de alguns discípulos que já
o seguiam. Quando chegaram, Maria informou a Jesus que já não havia
mais vinho no lugar. Ele então pediu aos servidores que enchessem de
água as seis talhas que haviam ali. Cada uma delas comportava cerca de
100 litros. Então, Jesus pediu aos servidores que levassem a água trans-
mutada em vinho ao mestre-sala.
Ele provou do vinho e ainda
disse ao noivo que era costume
servir primeiro o vinho bom, para
depois, quando todos já estariam
bêbados, servir o inferior. “Mas
tu guardaste até agora o vinho
melhor”, narra João.
Esta passagem é impor-
tantíssima para a “biografia” de
Jesus registrada por João. Ao
transformar cerca de 600 litros
de água em vinho diante dos
Ilustração: Fábio Cobiaco

olhos de seus discípulos, que


o seguiam ainda sem saber qual
a verdadeira extensão de seu
poder, Jesus deu provas de
que o espírito de Deus realmente
se manifestava através dele. Se-
gundo João, “este foi o primeiro
sinal que Jesus fez, em Caná
da Galiléia, manifestando a sua
glória, e seus discípulos creram
n’Ele”. Para os critérios de confir-
mação histórica, no entanto, esta
passagem não tem valor, uma vez
que não encontra paralelo em
nenhum dos outros Evangelhos.
Apenas João afirma que Jesus
esteve em Caná, acompanhado
de Maria e de alguns discípulos,
Pedro entre eles. No entanto,
a força deste primeiro milagre,
como ensinamento religioso, não
pode ser subestimada. s
10
texto Wendell Guiducci arte Patricia Paiva

CURA DE UM POSSESSO EM
Foto: Paulo Batelli

CAFARNAUM
Mc 1, 23. Lc 4, 33

Para a maioria dos pesquisadores históricos, esta é tida como a primeira


narrativa de um milagre protagonizado por Jesus, pelo fato de ser o primeiro
registrado por dois evangelistas e, portanto, mutuamente confirmado no Novo
Testamento. Marcos e Lucas contam que, no início de suas pregações, Jesus
estava em uma sinagoga de Cafarnaum, ensinando. Todos prestavam atenção,
até que um homem começou a gritar, insultando o Nazareno e questionando
seu poder. Foi quando Jesus disse: “Cala-te, e sai dele”. Então, com uma
sacudida violenta, o “espírito impuro” que possuía o homem abandonou o
corpo de seu hospedeiro, sem machucá-lo.
Embora não seja tão significativo como o milagre da transformação
da água em vinho nas Bodas de Caná, este exorcismo na sinagoga de
Cafarnaum acontece em um lugar e em um momento estratégico da história
de Jesus. Ao protagonizar a cura de um homem possuído em uma sinagoga
cheia de fiéis à antiga doutrina, Jesus deu provas de seu poder a um grande
número de pessoas. Cafarnaum era uma cidade “grande” àquela época,
havia muita gente lá. Especula-se que mesmo José, pai de Jesus, passava
Tela “Divina Face”, de Alberto Pezzan. Agradecimento à Igreja São Luís Gonzaga de Itu longas temporadas trabalhando em Cafarnaum.
Em um lugar assim, a notícia de que havia um novo profeta,
JESUS ESCAPA DE capaz de expulsar os demônios dos corpos dos possuídos, espalhou-
se rapidamente. “A sua fama se estendeu por toda parte em todas as
SEUS INIMIGOS EM NAZARÉ regiões limítrofes da Galiléia”, conta Marcos, logo depois de relatar
Lc 4, 29 o exorcismo. Este tipo de “cura” se tornaria uma constante na vida
de Jesus, como poderemos atestar mais adiante. Foram inúmeros os
Segundo o Evangelho de Lucas, depois de se retirar para o exorcismo protagonizados por Jesus durante sua vida pública. s
deserto e ser tentado pelo Diabo por 40 dias, Jesus voltou para
a Galiléia para pregar seus ensinamentos. Em um determinado dia,
ele voltou a Nazaré, o vilarejo onde foi criado e de onde partira CURA DA SOGRA DE PEDRO
já há algum tempo. Era um sábado e, como de costume, foi até Mt 8, 15. Mc 1, 31. Lc 4, 38
a sinagoga. Chegando lá, leu uma passagem do profeta Isaías no
Antigo Testamento e afirmou que era o enviado de Deus, que A partir do exorcismo na sinagoga de Cafarnaum, seguem-se di-
estava na Terra para curar e libertar. Os demais judeus que estavam versos milagres na história de Jesus. A cura da sogra de Pedro aparece
na sinagoga acharam aquilo tudo um grande absurdo, uma heresia. em Marcos, Lucas e também em Mateus, embora, neste último, não
Enfurecidos, arrastaram Jesus para fora de Nazaré e o levaram ao se refira à expulsão do demônio anteriormente. Deixando a sinagoga,
alto do monte onde o vilarejo estava encravado, para jogá-lo lá de Jesus e alguns discípulos se dirigiram à casa de Pedro. Chegando lá,
cima. Mas Jesus se desvencilhou de seus perseguidores, atraves- encontraram a sogra do apóstolo ardendo em febre. Jesus chegou até
sando seus corpos e indo embora dali. ela, tomou sua mão e a febre desapareceu. Em seguida, ela deixou a
Esta passagem também deixa claro que Jesus foi hostilizado em cama, colocou-se de pé e começou a servir a todos que estavam em
sua cidade quando retornou para pregar. “O filho de José”, ou “o sua casa, como boa anfitriã.
filho do carpinteiro”, ou “o filho de Maria”, em algum momento de seu A cura da sogra de Pedro foi uma das raras ocasiões em que
ministério, voltou a Nazaré, não mais como um camponês, mas como Jesus promoveu uma cura longe do “público”. Neste caso, Ele
o Messias que anunciava a chegada do Reino de Deus e dizia ser filho rea-lizou uma cura particular para um amigo, dentro de sua casa,
do Próprio. Uma atitude corajosa diante de seus antigos vizinhos, que a portas fechadas. Para os pesquisadores, o episódio confere um
o viram crescer como um ser humano qualquer, igual a todos eles. Este sentimento de intimidade. Ali fica claro a forma como Jesus estava
é o primeiro ato fantástico de Jesus narrado em Lucas, exatamente antes ligado a seu discípulo Pedro, que acabara de ser “recrutado” junto
de ele praticar o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum. s com André, João e Tiago. s
11
11
M ilagres

MILAGRES NA NOITE professor Fernando Altmeyer, “Jesus deixava


de requerer para si a autoria de um milagre para
DE SÁBADO enfatizar a importância da fé. Era como se Ele
Mt 8, 16. Mc 1, 32. Lc 4, 40 dissesse ‘ah, isso aí não fui eu que fiz, foi sua
fé’. É paradoxal porque, ao realizar milagres,
No mesmo dia da cura da sogra de Pedro, segundo os estava confirmando que o poder de Deus se
Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, uma multidão se dirigiu manifestava através Dele. Ou seja, não era uma
a Jesus. Possuídos e doentes, todos que tinham algum tipo de campanha de ‘marketing da fé’, mas, sim ,uma
moléstia, ao cair da tarde, foram atrás daquele que podia curar forma de confirmação.” s
qualquer mal com um simples toque. Jesus passou a noite de
sábado realizando curas milagrosas e, no dia seguinte, deixou
Cafarnaum para pregar em outras regiões da Galiléia.
As pessoas não seguiram Jesus logo após o exor-
CURA DE
cismo na sinagoga. Isso porque era sábado, e a Lei Judaica UM HOMEM
proíbe qualquer tipo de trabalho neste dia, para que se
comemore o “sétimo dia”, aquele em que Deus descansou PARALÍTICO
depois de criar o universo. E esta proibição incluía curar Mt 9, 2. Mc 2, 3. Lc 5, 18
doentes. Então, eles aguardaram o sol se por, para só então
irem atrás dos milagres de Jesus. Através de um milagre, Jesus
Para alguns estudiosos, a estadia na casa de Pedro, além desafiou os doutores da lei e far-
de demonstrar a forte ligação entre o Profeta e seu discípulo, iseus que conversavam com Ele
indica também que aquele lugar era utilizado por Jesus em uma das cidades pelas quais
como uma espécie de “escritório central” em Cafarnaum, peregrinava. Jesus falava para uma
como define James Harpur. s multidão, quando quatro homens
trouxeram um paralítico deitado
em uma espécie de maca. Ele
CURA DO FILHO disse ao paralítico que seus pecados
DE UM CORTESÃO DE estavam perdoados. As pessoas se
revoltaram, e o Nazareno afirmou que ele
CAFARNAUM tinha o poder, na Terra, de perdoar os
Jo 4, 46 pecados dos homens. Então, ordenou que o
paralítico se levantasse, pegasse sua maca e
Este é mais um milagre narrado no Evangelho de João fosse para casa. E ele assim o fez, deixando
e que não é confirmado por nenhum outro evangelista. Aqui, todos maravilhados.
Jesus já havia expulsado os mercadores no Templo de Je- Esta passagem é de suma importância
rusalém e estava voltando da Judéia para a Galiléia. Sabendo para o ensinamento da profissão de fé do
disso, o régulo de Cafarnaum, uma espécie de político local, cristianismo. Para a antiga doutrina dos jude-
foi a seu encontro em Caná. Quando finalmente encontrou us, apenas Deus tinha o poder de perdoar.
Jesus, o cortesão pediu que Ele descesse em sua companhia No entanto, ao atestar na Terra que tinha a
até Cafarnaum, para que curasse seu filho doente, que se “autorização” para promover a remissão dos
encontrava à beira da morte. Jesus então ordenou ao régulo pecados, Jesus provou que aquela não era
que voltasse para Cafarnaum, pois seu filho estava curado. a verdade. Isso aconteceu bem no início
Ele acreditou na palavra do Homem de Nazaré e voltou do ministério público de Jesus. Mas, já
para sua cidade. No meio do caminho, o régulo encontrou aqui, os Evangelhos começam a mostrar a
seus servos, que lhe disseram que seu filho estava curado. oposição dos escribas e fariseus ao Nazare-
Eles contaram que a febre desapareceu na “hora sétima”, o no. Quando o homem saiu carregando sua
mesmo horário em que Jesus mandou o cortesão de volta maca para casa, os futuros perseguidores
para Cafarnaum. de Jesus ficaram diante de uma prova física
Esta é uma das diversas passagens do Novo Testamento de que realmente Ele podia realizar proezas
que dão conta da importância da fé. “Muitas vezes”, explica o fantásticas. s
12
Ilustração: Fábio Cobiaco
CURA DO LEPROSO
Mt 8, 2. Mc 1, 40. Lc 5, 12

Apenas no Evangelho de João a cura do


homem leproso não é narrada no Novo Testa-
mento. No entanto, Mateus, Marcos e Lucas

Foto: Paulo Batelli


situam o mesmo milagre em diferentes situações.
Segundo Mateus, aconteceu depois do Sermão da
Montanha. Na narrativa de Marcos, o fato ocorreu
quando Jesus deixou Cafarnaum após os milagres
de sábado à noite. Em Lucas, a cura veio logo
depois da primeira pesca milagrosa. Mas, apesar
de tantas discordâncias, não há dúvidas de que
os três evangelistas narram o mesmo fato, ocorrido
com o mesmo doente.
Em todos os três livros, um homem coberto de
lepra abordou Jesus e afirmou que, se o Nazareno
quisesse, poderia livrá-lo da doença. Jesus então
tocou o leproso e o deixou “limpo”. Mas pediu para
que ele não contasse o milagre a ninguém. De nada
adiantou, e o homem saiu pela cidade dizendo a
todos a maravilha que acontecera
com ele. Segundo Mar-
cos, a partir de então,
Jesus percebeu que
não poderia entrar
mais publicamente
em uma cidade e,
Tela “Jesus Cristo, a Ternura”, de Jeferson Fernando de Souza.
por isso, sempre ficava Agradecimento à Art Place

nos arredores. s
A lepra era associada à impureza naquela época e,
portanto, a cura de enfermos seria uma forma de purificação.
Para certos historiadores, a dedução da palavra lepra pode ser
equivocada. Algumas traduções citam o leproso, mas há quem
defenda que o texto original grego indique que o homem tinha
uma doença de pele, não necessariamente a lepra. Depois de
curar o doente, Jesus ordenou que ele fosse até seu sacerdote,
para mostrar que estava “limpo” e cumprir o que mandava a
Lei Judaica a respeito das doenças de pele.
Naquele tempo, quem tivesse algum tipo de enfer-
midade como essa deveria usar roupas rasgadas, manter os
cabelos despenteados e ficar gritando “impuro, impuro” pelos
cantos. Ao se recuperar, a pessoa deveria ir a Jerusalém orar
e fazer a seguinte oferenda ao Templo: dois pássaros limpos e
vivos, madeira de cedro, tecido vermelho e hissopo. Quando
mandou o leproso cumprir o que a Lei Judaica mandava, Jesus
deu mostras de que não pretendia desrespeitar as crenças dos
judeus de forma gratuita, mesmo acreditando em uma Nova Lei.
s

13
13
M ilagres

Ilustração: Fábio Cobiaco

PESCA MILAGROSA CURA DE UM PARALÍTICO


Lc 5, 5
EM BETHESDA
Mateus e Marcos narram o encontro de Jesus com os discípulos Jo 5, 2
Pedro, André, Tiago e João da mesma maneira: ele andava ao largo do
Mar da Galiléia, quando viu os quatro pescadores e os convidou (Pedro e Bethesda era, em hebraico, o nome de uma piscina situada
André primeiro) para se tornarem “pescadores de homens”. Em Lucas, no junto à “Porta das Ovelhas”, em Jerusalém. Ali ficavam centenas de
entanto, a narrativa ocorre de forma diferente. Um milagre é acrescentado na paralíticos, coxos, tuberculosos e cegos, esperando por um milagre.
passagem, que aconteceu em um outro momento da história. Jesus acabara de Acreditavam que, de tempos em tempos, um anjo descia sobre
sair de Cafarnaum e subiu na barca de Pedro, para pregar para uma multidão a piscina e agitava suas águas. Quem entrasse primeiro nas águas
que se aglomerava na costa. Depois de falar, pediu ao discípulo que levasse agitadas seria curado de qualquer mal. Em um sábado de festa em
o barco para dentro do mar e jogasse as redes. Pedro afirmou que ele e os Jerusalém, Jesus subiu à cidade e foi até Bethesda. Lá Ele viu um
outros pescadores haviam passado a noite toda trabalhando, sem conseguir homem que estava paralítico há 38 anos e perguntou se queria ser
pegar peixe algum. Mas obedeceu a ordem de Jesus assim mesmo. curado. O inválido disse que sim, mas que não tinha ninguém que o
Quando puxaram as redes de volta, havia tantos peixes dentro pudesse levar para a água quando ela se movesse. Então, Jesus man-
delas que as amarras arrebentaram e o barco quase afundou. Pediram a dou que se levantasse, pegasse sua cama e partisse dali andando.
ajuda de outra embarcação e lotaram ambas de peixes. Tiago e João, E foi o que ele fez. Saindo de Bethesda, o homem foi abordado
filhos de Zebedeu e sócios de Pedro, também ficaram abismados com pelos judeus, que quiseram saber quem o tinha curado em pleno
o poder de Jesus e, “atracando as barcas, eles deixaram tudo e O sábado, o que era proibido.
seguiram”. Quando fala sobre a ressurreição de Cristo, João cita uma O ato de curar um paralítico em Jerusalém, em um dia de
passagem muito parecida com esta, como veremos adiante. festa para os judeus, e ainda por cima em um sábado, pode ser
O peixe é um animal que aparece com muita freqüência encarado como mais um dos atos rebeldes de Jesus. À medida
nos Evangelhos. Há pescas milagrosas, multiplicação de peixes que se intensificava sua fama, crescia também o incômodo dos sacer-
para alimentar pessoas... estas constantes referências acabaram dotes do Templo de Jerusalém. Nesta passagem, que só aparece em
por torná-lo um dos símbolos do cristianismo. E com um detalhe João, o evangelista diz que “por isto os judeus procuravam com mais
interessante: ichthus, que era a palavra grega para peixe, é um acróstico afinco matá-lo, porque não só infringia o sábado como também dizia que
para Iesous Christos Theou Uios Soter, que quer dizer “Jesus Cristo, Deus era seu Pai, fazendo-se assim igual a Deus”. Em seguida, Jesus teve
Filho de Deus Salvador”. s uma grande discussão com os judeus, criticando-os por sua incredulidade.s
14
CURA DE UM ódio da elite judaica por Jesus. Marcos narra que, “
saindo os fariseus, logo entraram em combinação com os hero-
HOMEM DE MÃO SECA dianos contra Ele para matá-lo”. Os atos rebeldes de Jesus já come-ça-
Mt 12, 9. Mc 3, 1. Lc 6, 6 vam a preparar as retaliações que culminariam em sua crucificação. s

Esta passagem, embora não seja narrada em João, reforça um


aspecto da história do paralítico de Bethesda. No milagre da cura CURA DO SERVO
de um homem de mão seca, relatada em Mateus, Marcos e Lucas,
Jesus também desafia as tradições antigas, despertando a raiva da DO CENTURIÃO
elite judaica. Depois de permitir que seus discípulos, bem na frente Mt 8, 5. Lc 7, 1
de alguns fariseus, arrancassem espigas de milho de uma plantação
para comer, em pleno sábado, Jesus se dirigiu a uma sinagoga. Lá Narrado em Mateus e Lucas, este milagre também é localizado
chegando, havia um homem com uma das mãos secas. Os fariseus pelos evangelistas em momentos distintos da cronologia do ministério
- que seguiam rigorosamente a lei escrita - ficaram observando para de Jesus. Em Mateus, a cura acontece antes mesmo do fato envolven-
ver se Jesus teria coragem de desrespeitar a lei e promover cura no do a sogra de Pedro. Em Lucas, logo após o Sermão da Montanha.
sábado. Então, Ele pediu ao homem que mostrasse as duas mãos, e Trata-se de uma passagem especialmente curiosa, porque é narrada de
aquela que se encontrava seca estaria agora curada. forma diferente pelos dois apóstolos, e mais: é muito parecida com
Para a tradição judaica, o sábado é um dia sagrado, que aquela da cura do filho do régulo de Cafarnaum, que só aparece em
deve ser guardado e respeitado. No entanto, Jesus permitia que João. Segundo Mateus, o centurião se aproximou de Jesus, quando
seus discípulos colhessem e se alimentassem do milho. Pior que ele chegava a Cafarnaum, e disse que tinha um servo muito doente,
isso, promovia curas, como contam Mateus, Marcos e Lucas, na um servo do qual gosta muito. O centurião acrescentou que não era
passagem do homem de mão seca, e João, no milagre do paralítico digno de que Jesus entrasse em sua casa, mas acreditava que, com
de Bethesda. Como João, os outros três evangelistas, após um uma só palavra, Ele poderia curar o servo. Jesus ficou admirado com
milagre protagonizado no sábado, alertam para o aumento do tanta fé e curou o servo do centurião à distância.
Em Lucas, o centurião não se apresentou a Jesus, por
não se achar digno. Mandou em seu lugar anciãos judeus, para
Tela “Meditação de Jesus”, de Maria Tereza Freitas Vilela.
Agradecimentos à Art Molduras de Campinas
que intercedessem por ele. Convencido, Jesus desceu até onde
estava o servo doente, mas amigos do centurião o interceptaram
e disseram que o comandante romano não se julgava digno de
ter a presença do Filho de Deus em sua casa. No entanto,
acreditava que, com uma palavra, Cristo poderia curar o servo
doente. Jesus disse então que jamais tinha conhecido, em
toda Israel, homem com mais fé do que aquele centurião.
Ao retornarem, os amigos do comandante encontraram o
Foto: Paulo Batelli

servo em perfeito estado de saúde.


É a primeira vez, no Evangelho, que Jesus usa seu poder
divino para auxiliar um pagão: no caso, o representante do exército
romano que pedia ajuda para seu servo, que poderia ser até um es-
cravo. Embora fosse um homem diferente, um representante da classe
abominada pelos judeus, o centurião é apresentado aqui como um
homem bom, inclinado ao judaísmo. Lucas chega a dizer que aquele
comandante de centúria (destacamento militar romano que continha
100 homens) havia construído uma sinagoga para os judeus em Cafar-
naum. Ou seja: mesmo sendo romano, aquele era um homem bom,
e a manifestação de sua fé fez com que Jesus não fizesse distinção
entre ele e os judeus. Aliás, ele fez distinção sim: depois de dizer
que não havia visto tamanha fé em toda Jerusalém, Jesus afirmou
que “muitos virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa
com Abraão, Isaac e Jacó no reino dos céus, ao passo que
os filhos do reino serão lançados às trevas exteriores”.
s

15
15
M ilagres

RESSURREIÇÃO DO FILHO DE NAIM


Lc 7, 11

Apenas o Evangelho de Lucas narra esta passagem. Ela teria acontecido imediatamente após a cura
do servo do centurião. Jesus ia entrando em uma cidade chamada Naim, cerca de 13 km ao sul de Nazaré,
acompanhado de seus discípulos e de uma multidão - provavelmente seguidores que se juntaram a Ele
após suas pregações. Às portas de Naim, ele se deparou com um cortejo fúnebre que trazia o corpo de
um jovem. Compadecido com a dor da mãe, que era viúva, Jesus pediu a ela que não chorasse e, com
um toque, ressuscitou o rapaz. O garoto se sentou e começou a falar instantaneamente, deixando todos
maravilhados. Novamente, Lucas reforça o fato de que aquele milagre aumentou a fama de Jesus “por toda
a Judéia e por todas as regiões vizinhas”.
Este é o primeiro milagre de ressurreição que aparece nos Evangelhos. Ainda aconteceria o mesmo
com a filha de Jairo e com Lázaro. Para os estudiosos, Lucas tentou, através desta passagem, associar Jesus
ao profeta Elias. No Antigo Testamento, o profeta, através de orações, também conseguiu fazer o filho de
uma viúva ressuscitar. Até mesmo a expressão “o entregou a sua mãe”, usada por Lucas, aparece no
texto original hebreu que conta o prodígio de Elias. É comum, em diversos pontos do Novo
Testamento, que os evangelistas - ou tradutores, ou transcritores dos livros - forcem a
relação entre fatos da vida de Jesus e passagens registradas no Antigo Testamento
para narrar a vida dos grandes profetas. s

A PRIMEIRA
TEMPESTADE ACALMADA
Mt 12, 9. Mc 3, 1. Lc 6, 6

Esta passagem também é narrada apenas nos Evangelhos sinóticos


(de Mateus, Marcos e Lucas). Jesus passara o dia pregando e promovendo
curas em um barco, com a multidão o escutando da praia. Quando anoite-
ceu, Ele ordenou aos discípulos que atravessassem o Mar da Galiléia (um
grande lago de água doce, que ficava a cerca de 200 m abaixo do nível do
mar) até a outra margem. Durante a navegação, Jesus adormeceu, e o barco
foi assaltado por uma enorme tempestade. Apavorados, os discípulos cor-
reram até Ele e pediram que fizesse alguma coisa. Jesus então se levantou
e ordenou ao vento e ao mar que se acalmassem. As águas tornaram-se
plácidas e a tempestade foi embora. E Jesus disse a seus seguidores que
eles eram “homens de pouca fé”.
Este é o primeiro “milagre de natureza” a aparecer nos Sinóticos. Em
Mateus, este fato ocorreu logo após os milagres da noite de sábado. Em
Marcos, depois de Cristo apontar seus 12 apóstolos. Lucas abre a narração
de uma série de milagres contando esta passagem no Mar da Galiléia. No-
vamente aqui é possível encontrar uma relação muito clara com o Antigo
Testamento. O poder divino de dar ordens à natureza é destacado de
forma recorrente em vários trechos daquelas escrituras. No entanto, uma
delas é especialmente poderosa: a imagem de Moisés ordenando ao Mar
Vermelho que se abrisse, permitindo assim que o povo de Israel fugisse
dos egípcios. A tentativa de relacionar Jesus Cristo com o profeta maior
do judaísmo e fundador de Israel fica bastante clara aqui. s
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Ilustração: Fábio Cobiaco
O POSSESSO DE GERASA
Mt 12, 9. Mc 3, 1. Lc 6, 6

Ao chegar do outro lado do Mar da Galiléia, Jesus desceu da barca e, logo


em seguida, topou com um homem possuído. Segundo Mateus, que se detém menos
em detalhes nesta narrativa, o fato ocorreu em Gadara, e haviam dois homens endemo-
niados. Já em Marcos e Lucas, Jesus desembarcou próximo de Gerasa, e apareceu
apenas um homem possesso, saindo do meio das sepulturas, onde vivia, afastado da
cidade. Ele se debatia, se cortava, gritava e ninguém se atrevia a circular ali por perto. Os
cidadãos até tentaram amarrá-lo com correntes, mas ele despedaçava todos os grilhões.
Chegando perto, ele desafiou Jesus. O Nazareno então perguntou ao espírito qual era
seu nome. Ele respondeu: “Legião”. Na verdade, eram diversos espíritos impuros que
tomavam conta do corpo daquele (ou daqueles, segundo Mateus) homem. Eles então
pediram a Jesus que, se fosse expulsá-los daquele corpo, que os enviasse a uma vara
de porcos que pastava ali perto. Jesus assim o fez, mandando os demônios entrarem
nos porcos, que seriam dois mil, segundo Marcos. A vara então correu em direção ao
mar, despencando pelo barranco e morrendo afogada lá embaixo.
Embora Marcos e Lucas narrem a história com detalhes diferentes dos de Ma-
teus, os elementos são os mesmos: vários demônios possuindo um ou dois homens e
sendo enviados para o fundo do mar em uma manada de porcos. Depois do milagre,
os geraseanos (ou gadarenos), apavorados, pediram a Jesus que se retirasse de sua
cidade. Jesus foi, e pediu ao homem, agora agindo como uma pessoa normal, fosse e
espalhasse a notícia por toda a região de Decápolis, formada por 10 cidades. s

A RESSURREIÇÃO DA FILHA DE JAIRO


Mt 9, 25. Mc 1, 41. Lc 8, 54

Este milagre é a primeira ressurreição a aparecer em todos os Evangelhos sinóti-


cos. Antes, apenas Lucas registra o ocorrido com o filho da viúva de Naim. Este fato é
narrado em meio a uma série de outros milagres que aparecem próximos uns dos outros,
a partir da passagem da primeira tempestade acalmada. Jesus teria acabado de voltar de
Gerasa, atravessando novamente o Mar da Galiléia e, ao chegar em terra, uma multidão
o esperava. Segundo Marcos, um chefe de sinagoga chamado Jairo - Mateus ignora o
nome do personagem - chegou até Jesus e, jogando-se a seus pés, implorou a Ele que
salvasse sua filha da morte. Jesus então partiu com Jairo rumo a sua casa (no meio do
caminho, curou uma mulher que sofria de fluxo de sangue constante, como veremos
a seguir), onde as pessoas já velavam o corpo da menina. Jesus chegou até ela,
tomou sua mão e ordenou que se levantasse. A filha de Jairo se levantou e começou a
caminhar, para o espanto dos pais.
Quando aquela comitiva chegou à casa de Jairo - que era um chefe de sinagoga e,
portanto, representante da comunidade religiosa -, encontrou carpideiras, pessoas chorando
e muita agitação. Jesus então pediu que todos eles se calassem, pois a menina não estava
morta, apenas dormia. Esta passagem sempre foi tomada como uma ressurreição, mas alguns
pesquisadores modernos sustentam que Jesus, quando dizia que a menina estava dormindo,
queria dizer exatamente aquilo. Ela talvez estivesse doente, mas não estava morta e, de fato,
apenas dormia. Para estes estudiosos, quando Jesus ordenou “levanta-te”, ele somente
s
acordou uma jovem que estava, talvez, em estado de coma.
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17
M ilagres

Ilustração: Fábio Cobiaco

CURA DA MULHER havia parado. No entanto, em Mateus, a mulher só se vê livre da moléstia


depois que Jesus afirma que ela havia sido salva por sua própria fé. s
HEMORROÍSSA
Mt 9, 20. Mc 5, 25. Lc 8, 43
OS DOIS CEGOS
Este milagre também aparece nos sinóticos, interrompendo a história Mt 9, 27
da ressurreição da filha de Jairo. Jesus estava andando com seus discípulos
e o chefe da sinagoga, acompanhado de uma grande multidão. As pessoas Este episódio - ao qual não parece ser dada muita atenção pelos
se acotovelavam, tentando se aproximar do Cristo, quando uma mulher estudiosos da Bíblia - aparece somente no Evangelho de Mateus e,
tocou a borda do manto de Jesus. Esta personagem sofria de uma hemor- segundo sua cronologia, vem logo após a ressurreição da filha de Jairo.
ragia que, provavelmente, era uma extensão do ciclo menstrual. O fluxo Enquanto se encaminhava para casa (não é possível saber de quem),
contínuo de sangue já lhe afligia há 12 anos, e nenhum médico conseguia Jesus foi perseguido por dois cegos, que gritavam e imploravam
interromper a tal hemorragia. Mas ela foi curada pela fé. que Ele os curasse. Quando chegou em casa, Jesus perguntou aos
Em Mateus, as coisas são colocadas na seguinte ordem: a mulher dois se eles realmente acreditavam que Ele tinha o poder para tanto.
toca Jesus, crente de que ficará sã; Jesus olha para ela e diz que a fé a havia Responderam que sim, e Jesus, tocando os olhos de ambos, disse
curado; e então o evangelista narra que o fluxo de sangue finalmente pára. “faça-se em vós segundo a vossa fé”. Os dois voltaram a enxergar.
Em Marcos e Lucas, a hemorragia estanca no momento em que a moça Talvez esta passagem não mereça muita atenção porque, além de
toca a roupa de Jesus, sem que ele nem mesmo soubesse quem tinha lhe aparecer somente em Mateus, traz fatos recorrentes em outros episódios
encostado. Ele procura pela moça, quer saber quem o tocou e, quando a do Novo Testamento. Jesus curou inúmeros cegos, e estes dois não se
encontra, diz que a sua fé a havia salvado. Marcos e Lucas acabam sendo apresentavam em situação especial com relação aos demais. Não é o caso,
mais enfáticos que Mateus na questão da fé, elemento principal desta pas- por exemplo, do cego de nascença, que veremos mais adiante. E, sobre a
sagem. Isso porque fica claro que foi a fé da mulher em Jesus Cristo, a fé mensagem, que diz respeito ao poder da fé, também não há nada que já
de que ele poderia estancar sua hemorragia que a curou. Jesus, de certa não seja reforçado em outros momentos dos Evangelhos. Os homens só
forma, apenas consentiu o milagre posteriormente. Antes de Ele confirmar foram curados de sua cegueira porque acreditavam que o poder de Deus,
que ela estava curada, segundo os dois evangelistas, o fluxo de sangue já para quem tudo é possível, realmente se manifestava através de Jesus.s
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A MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES
Mt 14, 19. Mc 6, 43. Lc 9, 12. Jo 6, 10

Este é o primeiro milagre que aparece em todos os quatro Evangelhos do


Novo Testamento. E, sem dúvida, é um dos mais espetaculares e significativos da
Bíblia. Poucas outras passagens estão tão presentes no imaginário popular como esta.
Jesus estava na região de Tiberíades - a única das cidades bíblicas que ainda existe às
margens do Mar da Galiéia, que também é chamado na Bíblia de Mar de Tiberíades,
Mar de Chinnereth e Genesaré. Como sempre, a esta altura, uma multidão o seguia.
Eram, segundo Lucas, “uns cinco mil homens” que vinham ouvindo suas parábolas e
sermões e sendo abençoados com seus milagres. Jesus então disse a seus discípulos
que dessem de comer àquelas pessoas.
Em João, a passagem é narrada de forma mais detalhada. O apóstolo Filipe
afirma que nem mesmo “duzentos dinheiros de pão” seriam suficientes para alimentar
toda aquela gente. Então, André afirmou que só havia ali cinco pães e dois peixes, nada
além disso. Jesus pediu à multidão que se acomodasse no gramado e, tomando os
pães e os peixes, saiu distribuindo a todos, até que se fartassem do alimento. Terminada
a refeição, Cristo ordenou que fossem recolhidos os restos dos pães e dos peixes e,
segundo João, com o que sobrou, eles ainda encheram 12 cestos.
João narra esta passagem logo depois
da discussão de Jesus com os judeus, após
Ilustração: Fábio Cobiaco
curar o paralítico em Bethesda, no sábado.
Nos sinóticos, o milagre da multiplicação
dos pães ocorre logo em seguida à execução
do profeta João Batista por Herodes.
Nestes três Evangelhos, o milagre não é
localizado em Tiberíades, como aparece em
João, mas em algum ponto deserto para o
qual Jesus havia se retirado, na tentativa de
se afastar das multidões após saber o que
ocorrera com João Batista e dar um pouco
de descanso a seus discípulos. Apenas
Lucas afirma que este lugar deserto estaria
próximo à cidade de Betsaida.
Seja como for, aqui novamente o
milagre protagonizado por Jesus o aproxima
de Moisés, como que em uma ligação entre o
Antigo e o Novo Testamento. João é quem
mais reforça este elo na seqüência de sua nar-
rativa. Assim como Jesus produziu alimento
de uma forma milagrosa para seus seguidores,
o Velho Testamento conta que Deus enviou o
“maná do céu” aos israelitas que eram guiados
por Moisés para a Terra Prometida. E há
ainda uma passagem do profeta Eliseu, que
alimenta 100 homens com apenas 20 pães.
Para a tradição judaica, um dos sinais de que
o Messias estaria chegando seria a realização
de um “grande banquete”. s
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M ilagres

O POSSESSO MUDO falar em seguida. Todos ficaram maravilhados, mas os fariseus o acusaram,
Mt 9, 32. Lc 11, 14 dizendo que era através do poder de Belzebu que Jesus dava ordens
aos demônios. Neste ponto, a narrativa de Mateus termina, mas Lucas
Na seqüência da cura dos dois homens mudos, aparece em Ma- vai adiante, detalhando a discussão entre os fariseus e Jesus, que afirmou
teus a narrativa do exorcismo de um demônio mudo. Em Lucas, a mesma expulsar os demônios “pelo dedo de Deus”.
história é contada, só que em outro momento, já depois da transfiguração Para James Harpur, a acusação feita pelos inimigos de Jesus
de Jesus não eram provas irrefutáveis de que Ele era o Filho de Deus. Exor-
diante
Ilustração: Fábio Cobiaco

cismos não eram raros naqueles tempos e, vez ou outra, aparecia


d e Pe - algum charlatão, como o samaritano Simão, que era na verdade uma
dro, Tiago e espécie de mágico. Para os fariseus, Jesus era apenas mais um daque-
João. Apare- les exorcistas que carregavam “pozinhos mágicos”, por assim dizer,
ceu a Jesus um para realizar suas façanhas. Só que Jesus não usou nenhuma
mudo, que estaria abracadabra ou varinha de condão ou cartola. Ele apenas or-
possuído por um denou que o demônio deixasse o corpo de seu hospedeiro.
demônio. Ele colocou Para os escritores do Evangelho, aquilo era suficiente para mostrar
o espírito mudo para fora o poder divino se manifestando através Dele, o que o diferenciava
e o homem começou a dos mágicos da época. s

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JESUS CAMINHA SOBRE eles se acalmassem e fez com que as águas também se
tranqüilizassem. E, finalmente, juntou-se a eles na embarcação.
AS ÁGUAS Mateus insere nesta passagem um elemento que não aparece nem
Mt 14, 25. Mc 6, 45. Jo 6, 16 em Marcos e nem em João. Quando Jesus se apresentou aos apóstolos,
Pedro pediu que Ele comprovasse sua identidade, permitindo que o
discípulo também caminhasse sobre as águas. Pedro desceu do barco e
Este milagre acontece imediatamente após a multiplicação dos pães
começou a andar em cima do mar, indo em direção a Jesus. Mas o vento
nos Evangelhos de Mateus, Marcos e João. Após alimentar o povo,
forte o fez ter medo, e ele começou a afundar. Jesus então o pegou pelo
Jesus ordenou a seus discípulos que partissem na barca, enquanto ele
braço, criticando-o por ter deixado sua fé vacilar no meio do caminho.
dispensava a multidão. Depois que todos foram embora, ele se dirigiu a um
Fica claro, na narrativa de Mateus, que, embora fosse o principal
monte para orar. Já era tarde, quando a barca estava lá pelo meio do grande
discípulo de Cristo, “a pedra” sobre a qual Ele edificaria sua igreja, Pedro
lago, e Jesus resolveu se juntar a seus apóstolos. Então, foi em direção ao
era um homem cuja fé cambaleava. Para muitos pesquisadores bíblicos, o
barco, caminhado sobre o mar revolto. Seus discípulos não conseguiam
fato de ele duvidar do poder de Jesus e afundar nas águas do Mar da
chegar até a outra margem porque o vento estava contra eles. Quando
Galiléia é um claro indício do que viria acontecer depois. Quando os
avistaram Jesus andando sobre as águas, se apavoraram e começaram a
sacerdotes interrogavam Jesus, antes de entregá-lo para ser crucificado
gritar, pensando que fosse um fantasma. O Nazareno então pediu que
por Pôncio Pilatos, Pedro estava por perto. E, perguntado se era discípulo
do Cristo, o apóstolo negou que o seguisse e fugiu covardemente. s

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POUCOS MILAGRES
EM NAZARÉ
Mt 13, 58. Mc 6, 5

Em certos pontos dos Evangelhos, os milagres são narrados


de forma generalizada, pouco objetiva. Quando retornou a Nazaré
e falou para seus conterrâneos na sinagoga, Jesus promoveu alguns
milagres, mas eles não são descritos pelos evangelistas. Marcos fala
em imposição de mãos e cura de enfermos, não mais que isso. Jesus
não teria praticado maiores milagres por causa da incredulidade dos
habitantes de Nazaré, que questionavam, segundo o evangelista: “Não
é esse o carpinteiro, filho de Maria, e o irmão de Tiago, de José, de
Judas e de Simão? E não vivem suas irmãs aqui entre nós?”
Este retorno a Nazaré é narrado de forma diferente pelos dois
evangelistas, em momentos diferentes dentro da cronologia definida por
cada um, mas os pontos centrais são os mesmos: o deboche dos nazarenos,
a falta de fé, os poucos milagres ali praticados. Esta passagem encontra
ecos em Lucas, quando ele narra o retorno de Jesus a sua cidade. Só que
o milagre que ocorre em Lucas não é o de cura, mas, sim, o da fuga de
Jesus de seus perseguidores. Não é difícil acreditar que ambos os milagres
tenham sido recolhidos da mesma tradição oral e reinterpretados de forma
Foto: Paulo Batelli

diferente por cada um dos evangelistas.


Em todos os três, há a menção ao retorno a Nazaré, à pregação
na sinagoga, ao reconhecimento de Jesus por parte de seus antigos
vizinhos e à falta de fé dos nazarenos. Só que cada evangelista narra
a história de sua própria maneira - com Lucas se distanciando dos
outros dois -, inclusive organizando o fato em diferentes momentos
da cronologia estipulada por cada um. s
Foto: Arnaldo Bento / Tela de Liliane Bedros

JESUS PROMOVE CURAS


EM GENESARÉ
Mt 14, 34. Mc 6, 53

Em Mateus e Marcos, Jesus chegou finalmente a Genesaré (ou


Tiberíades), logo após revelar a seus discípulos o poder de caminhar
sobre as águas e, novamente, de acalmar tempestades. Segundo os dois
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Ao desembarcar na região de Genesaré, Jesus foi logo
reconhecido pelos habitantes do lugar. Em pouco tempo, uma
multidão de doentes, coxos, cegos e paralíticos foi levada até ele.
Onde quer que Jesus fosse, vinham os enfermos implorando para,
pelo menos, poderem tocar suas roupas. E todos que encostavam
nas vestes de Jesus ficavam curados. s

A CURA DA FILHA
DE UMA MULHER
SÍRIO-FENÍCIA
Mt 15, 22. Mc 7, 24

Nem Mateus nem Marcos explicam exatamente


quando, mas, por um período, Jesus se retira para a distante
região de Tiro e Sidom, cidades litorâneas ao norte da Galiléia,
na Fenícia. Mas, pela ordem apresentada nos Evangelhos,
pode-se subentender que foi após a execução de João Batista
por Herodes. Há uma grande discussão acerca dos motivos
que levaram Jesus à Fenícia. Para alguns, ele foi até lá para
levar a boa nova aos pagãos. Para outros, ele teria se retirado da
Galiléia por causa da crescente revolta da elite judaica com seu
comportamento e, claro, por causa do “recado” que representou
a execução de Batista.
De qualquer maneira - e de formas diferentes -, os Evan-
gelhos narram que Jesus chegou àquela região litorânea, e uma
mulher sírio-fenícia (ou cananéia, como prefere Mateus), veio a
seu encontro. Ela pedia que Ele curasse sua filhinha, que estava
possuída por demônios. Jesus afirmou então que sua missão era
para com os filhos de Israel. Ou seja: sua responsabilidade era
para com os judeus, não com os pagãos. A despeito disso, assim
como fez com o servo do centurião romano, Ele curou a filha da
mulher à distância. Mas só depois de ouvir da boca da mãe que
ela acreditava que, depois dos judeus, os demais povos também
seriam atendidos pelos poderes do Cristo.
Novamente Jesus ficou admirado com a fé de um não-
judeu e concedeu-lhe a graça. Embora desse atenção maior ao
povo judeu em seu ministério, os Evangelhos nunca mostram
Jesus negando que os pagãos pudessem também dividir o Reino
Tela “Lava Pés”, de Jéferson Fernando de Souza.
Agradecimento à Art Place de Deus. Já no episódio da cura do servo do centurião,
Jesus demonstrara que a fé de cada um no poder de Deus,
manifestando-se através Dele, é que era importante. Não por
sinóticos, eles estavam fazendo, portanto, o caminho inverso aquele acaso, antes do episódio da mulher cananéia, Jesus teve, em
narrado por João na passagem anterior, já que, segundo o evange- Marcos e Mateus, uma discussão com os escribas e fariseus sobre
lista, Jesus teria multiplicado os pães em Tiberíades e, em seguida, o que era ou não impuro, quando estes criticaram os discípulos
os discípulos tomaram o mar em direção contrária. Seja como for, em por não seguirem a tradição de lavar as mãos antes de comer.
Mateus e Marcos, agora é que Jesus estava chegando a Genesaré, Foi quando Jesus afirmou que “não é o que entra pela boca
atravessando o Mar da Galiléia vindo de algum “lugar deserto” onde que torna impuro o homem; mas o que sai da boca, isso é que
alimentara uma multidão de cinco mil pessoas. torna o homem impuro.” s
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M ilagres

Foto: Paulo Batelli


Tela “Multiplicação dos Pães”, de Jeferson Fernando de
Souza. Agradecimento à Art Place

A CURA DO SURDO-MUDO E
OS MILAGRES NO MONTE A SEGUNDA
Mt 15, 29. Mc 7, 31 MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES
Mt 15, 32. Mc 8, 5
Marcos conta que, depois de um período não definido, Jesus
deixou Tiro rumo ao Mar da Galiléia, passando pela região de Decápolis, A multiplicação dos pães é um dos mais fantásticos milagres de
ao leste do rio Jordão, região em que a cultura grega era predominante. Jesus e representa, para os estudiosos da Bíblia, um marco, por ser a
Enquanto passava por ali, Ele foi abordado por homens que levavam primeira vez que um milagre é narrado por todos os Quatro Evangelis-
um amigo surdo-mudo, pedindo que fosse curado. Jesus o tirou do tas. Só que, apesar de ser um fato espetacular, ele se repete nos livros
meio daquela gente e, em separado, enfiou-lhe os dedos nas orelhas. de Mateus e Marcos, passando em branco para João e Lucas. Isso
Cuspindo nos dedos, Jesus tocou a língua do mudo e disse aos céus que faz com que os pesquisadores acreditem que a segunda multiplicação
seus ouvidos e boca fossem abertos. E o surdo-mudo saiu tagarelando dos pães e dos peixes, que aparece somente em dois Evangelhos, seja
e também escutando tudo perfeitamente. oriunda do mesmo fato narrado anteriormente pelos quatro.
Este episódio também aconteceu em território pagão. Jesus estava rodeado de uma multidão com cerca de quatro mil
Marcos só não deixa claro se o homem agraciado com o milagre era homens que o seguiam já há três dias. Em Mateus, isso ocorreu após
ou não judeu. Novamente, Jesus pediu aqueles que testemunharam os milagres no monte, perto do Mar da Galiléia. Em Marcos, “naqueles
o acontecido que não saíssem espalhando o caso para todo mundo. dias” após a cura do surdo-mudo. Em ambos os Evangelhos, Jesus ficou
Claro que, como sempre, “quanto mais o recomendava, tanto com pena dos seus seguidores, que estavam com ele há tanto tempo no
mais eles o publicavam”. deserto e sem ter nada para comer. Então, os discípulos perguntaram
Em Marcos, a cura do surdo-mudo acontece entre o exorcismo de onde iriam tirar alimento para tanta gente. E Jesus perguntou o que
da filha da mulher cananéia e o segundo milagre da multiplicação tinham com eles, que apareceram com sete pães e “alguns peixinhos”.
dos pães e dos peixes. Em Mateus, entre um milagre e outro, Jesus Novamente, Jesus repartiu o pão e o peixe com toda a multidão. Ao
dirige-se também ao Mar da Galiléia, mas não há esta história sobre o fim da refeição, juntaram os restos e encheram sete cestas.
surdo-mudo. Em vez disso, Jesus se sentou em um monte e uma nova De fato, a narração é muito parecida com aquela do primeiro
multidão o cerca. E ali ele curou coxos, mudos, mancos e cegos. Pela milagre. E até o encerramento é semelhante. Após o milagre, os
ordem em que aparecem nos Evangelhos, é bem provável que estes discípulos entraram na barca e foram mar adentro. Só que, desta vez,
milagres narrados por Mateus venham de uma mesma tradição da qual Jesus foi junto com eles, em vez de ficar orando em terra para, depois,
foi recolhido o episódio da cura do surdo-mudo de Marcos. s ir ao encontro de seus apóstolos caminhando sobre as águas. s
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A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS
Mt 17, 2. Mc 9, 1. Lc 9, 28

Embora seja ainda mais fantástica que o milagre da multiplicação Maravilhado, Pedro começou a dizer que, se Jesus quisesse, ele
dos pães, a transfiguração de Jesus não aparece no Evangelho de e seus amigos discípulos poderiam construir no alto do monte três
João, sendo narrada apenas nos sinóticos. E, diferente da distribuição tendas, para Ele, Moisés e Elias. Os evangelistas deixam claro que
de pães e peixes, que teve uma multidão como beneficiada e teste- Pedro não sabia o que dizia, de tão emocionado que estava.
munha, apenas três pessoas estavam presentes diante de Jesus nesta Enquanto Pedro falava, uma nuvem se formou no céu e, de
nova passagem. Eles estariam todos na região de Cesaréia de Filipe, dentro dela, veio a voz de Deus, confirmando que Jesus era de fato
quando Jesus levou Pedro, Tiago e João a um monte “alto e afastado”. seu “filho”. Então, tudo se desfez e os três discípulos permaneceram
Acredita-se que os evangelistas estivessem se referindo ao Monte ali na frente de Jesus, que pediu a eles que não contassem nada do
Hermom. Chegando lá, Jesus se transfigurou diante dos três apóstolos. que viram a ninguém, pelo menos até depois de sua ressurreição.
Seu rosto mudou de figura e suas roupas começaram a brilhar de uma Além da óbvia tentativa dos evangelistas de colocar Jesus em
forma muito intensa. contato direto com Moisés e Elias,
Então, a seu lado, apare- alguns pesquisadores enxergam nesta
ceram Moisés e Elias (represen- passagem uma nova referência a outro
tando a Lei e os Profetas, se- fato narrado no Antigo Testamento.
gundo alguns estudiosos), duas Naquela tradição, Moisés também
marcantes figuras do passado de subiu em uma montanha para se en-
Israel. Mateus e Marcos narram contrar com Deus. Foi ali, no Monte
que os “dois varões” falavam com Sinai, que ele recebeu a tábua com
Jesus, mas não especificam o os Dez Mandamentos. No Novo
quê. Lucas, porém, afirma que as Testamento, Jesus subiu a mon-
duas entidades contavam a Jesus tanha para ter contato
fatos sobre sua morte, que com Deus diante de
ocorreria em Jerusalém. seus discípulos. s
Ilustração: Fábio Cobiaco

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M ilagres

O MENINO POSSUÍDO Assim que desceu da montanha com seus discípulos, con-
forme narram os três Evangelhos sinóticos, Jesus se deparou com
POR UM DEMÔNIO uma multidão. Logo depois de passar por uma experiência divina, lá
Mt 17, 14. Mc 9, 16. Lc 9, 38 estava Ele, rodeado de pobres e doentes, tão próximo da realidade
terrena quanto alguém poderia estar. Um homem chegou até Ele e,
Foto: Arnaldo Bento / Tela de
ajoelhando-se, pediu que curasse seu filho, que estava possuído por
Humberto Locoselli Filho um demônio desde a infância. Este demônio, que o pai chamava
de “espírito mudo” em Marcos, costumava jogar o garoto ao fogo
e à água, na tentativa de machucá-lo, e o menino rolava pelo chão,
“deitava espuma” pela boca e ficava rígido. O estranho falou a Jesus
que já havia pedido aos discípulos - a quem Ele já tinha concedido
o poder de expulsar demônios - que praticassem o exorcismo, mas
eles não conseguiram. Em Lucas e Mateus, Jesus simplesmente
expulsa o demônio do corpo do garoto. Em Marcos, Cristo afirma
que tudo é possível para quem crê e, ao perceber no pai a vontade
de acreditar, liberta o menino. Não restam muitas dúvidas, pelas
descrições bem claras dos Evangelhos, de que o tal “demônio” que
maltratava o menino era a epilepsia.
Todos os três Evangelhos tratam principalmente da questão da
fé - e a falta dela - neste episódio. Mateus, porém, deixa mais explícita
a decepção de Jesus com seus discípulos. Quando perguntaram
ao seu profeta porque não haviam conseguido expelir o demônio,
Jesus falou que foi por causa de sua “fé mesquinha”. E, tanto em
Mateus quanto em Marcos, o Nazareno disse que os espíritos só
podiam ser expulsos através da oração e, apenas em Mateus, do
jejum. Muitas correntes evangélicas usam esta “permissão” dada por
Jesus ao homem para praticar o exorcismo em seus rituais. Em Lucas,
logo em seguida ao episódio da expulsão do demônio mudo, o
apóstolo João chegou para Jesus e disse que eles haviam impedido
um homem de “expulsar demônios em Teu nome”. Cristo, porém,
condenou a atitude de seus apóstolos, dizendo que aqueles que
não estavam contra ele, estariam a seu favor. s

O CEGO DE BETSAÍDA
Mc 8, 22

Embora este milagre apareça somente em Marcos, muito


estudiosos acham esta passagem importante para o Evangelho, por
sua força simbólica. Pela cronologia de Marcos, o feito aconteceu
entre a segunda multiplicação dos pães e a transfiguração de Jesus.
Agora ele estava em Betsaída, cidade que ficava às margens do Mar
da Galiléia, mais para a região norte. Novamente as pessoas chegaram
até ele levando-lhe um cego. Jesus então o retirou da multidão,
levando-o para fora da cidade e, passando saliva em seus olhos,
perguntou se ele enxergava algo. No início, a visão não estava clara.
Jesus voltou a tocar o cego, que passou a ver tudo perfeitamente. Foi
a única vez em todo o Novo Testamento que Jesus não promoveu
uma cura instantânea.
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Para alguns especialistas, a importância deste episó-
dio está no fato de Marcos utilizar o homem cego, que
recupera a visão aos poucos, como uma metáfora para
a incompreensão dos discípulos. Antes do milagre, no
Evangelho de Marcos, Jesus censurou seus apóstolos
porque eles ainda não percebiam claramente o que os
milagres representavam ou a sua posição de Messias.
Após a cura do cego de Betsaída. Ele foi perguntando
a todos quem eles achavam que era Jesus. Eles foram
dizendo “Elias”, “profeta”, “João Batista”... até que
Pedro afirmou: “Tu és o Cristo”. Assim como o
cego que recuperou aos poucos a visão, os dis-
cípulos estavam compreendendo a magnitude
da missão de Jesus na Terra. s

PAGAMENTO
DO TRIBUTO
Mt 17, 24

Este milagre aparece somente


em Mateus e é a única vez em todo
o Novo Testamento que Jesus usou
o poder divino para conseguir
dinheiro. Quando o Nazareno e
os discípulos estavam entrando em
Cafarnaum, voltando de mais uma de
suas andanças - logo após a cura do
cego em Betsaída -, Pedro foi para-
do por um cobrador de impostos.
Ele perguntou ao apóstolo se seu
mestre pagaria o didracma, um
imposto que equivalia a dois
dracmas, unidade monetária da
Grécia ainda nos dias de hoje.
Para não ter problemas com
a lei ou “causar escândalo”,
Jesus então ordenou a Pedro
que fosse até o mar, lançasse
o anzol e puxasse o primeiro
peixe que fosse fisgado.
Dentro da guelra do peixe,
haveria um estáter . O es-
táter (de prata) equivalia a
dois didracamas (também
de prata). Com a moeda,
Pedro deveria pagar o imposto
por ele e por Jesus. E assim o
apóstolo o fez. s
Foto: Arnaldo Bento / Tela de Onil Melo
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M ilagres

O CEGO DE NASCENÇA
Jo 9, 1

O episódio narrado por João, sobre a cura de


um homem que nascera cego, não encontra paralelo em
nenhum dos Evangelhos sinóticos. A idéia básica aqui
é deixar claro que Jesus era a “luz do mundo”. Quando
andavam próximos ao Templo de Jerusalém, Jesus e seus
discípulos toparam com um cego de nascença que pedia esmo-
las. Os apóstolos então interpelaram seu Messias, perguntado-o
porque aquele homem havia sido castigado com a cegueira: quem
havia pecado, o mendigo ou seus pais? Jesus respondeu que o
cego estava ali para que o poder de Deus fosse manifestado sobre
ele. Então, Jesus cuspiu no chão e, misturando a saliva com a
poeira, passou o barro nos olhos do mendigo. Em seguida,
ordenou que ele fosse se lavar no Tanque de Siloé - que ainda
hoje existe em Jerusalém e por séculos forneceu água para a
cidade. O cego assim o fez e passou a enxergar.
As pessoas que conheciam o cego ficaram maravi-
lhadas ao vê-lo enxergando e a notícia se espalhou.
Logo levaram o homem à presença dos fariseus, que
lhe perguntaram como havia recuperado a visão. Para
variar, Jesus havia operado o milagre em pleno sábado,
justamente em Jerusalém e próximo ao Templo. O
homem contou o que acontecera com ele. Sem acred-
itar no mendigo, os fariseus mandaram que chamassem
os seus pais, e eles confirmaram que seu filho sempre fora
cego. Também afirmaram que, como o rapaz já era adulto, poderia
responder por seus atos. Então, os fariseus chamaram de volta o
ex-cego, que tornou a afirmar que fora curado por um profeta.
Os fariseus, irados, disseram que não poderia ser um homem de A MULHER ENCURVADA
Deus quem promovia curas aos sábados e expulsaram o mendigo. Lc 13, 11
Sabendo o que havia acontecido, Jesus se apresentou ao rapaz,
que ainda não tinha visto seu benfeitor. Jesus ensinava na sinagoga em um dia de sábado - Lucas,
No início do episódio, os apóstolos levantam uma questão o único a contar esta história, não especifica onde - quando notou
polêmica, sobre a relação entre o pecado e o sofrimento. O que havia uma mulher encurvada entre as pessoas que o ouviam. Ela
homem seria cego porque estava pagando os pecados dos pais? padecia de alguma doença que a mantinha corcunda já há 18 anos.
Na narrativa de João, Jesus parece evitar a polêmica, afirmando que Jesus então chamou a mulher e, impondo-lhe as mãos, a curou.
nem o cego nem seus pais haviam pecado. O mendigo estava ali Agora ela podia andar normalmente, com a coluna endireitada. O
para que o poder de Deus agisse sobre ele. O que não responde chefe da sinagoga ficou aborrecido com aquilo, porque era sábado e
à pergunta dos apóstolos. A idéia básica do episódio, então, é a tradição judaica não permite que se faça nenhum trabalho naquele
outra: a de que Jesus veio à Terra como a “luz do mundo”, para dia sagrado. Ele até disse aos presentes que tinham os outros seis
fazer com que a humanidade cega enxergasse a glória de Deus. dias da semana para serem curados. Mas não os sábados.
Mais que uma cura física, o milagre operado ali - além de provocar Novamente, neste episódio, Jesus reforça, através de um
ainda mais a ira crescente da elite judaica, é bom ressaltar - serviu milagre, sua posição revolucionária. Ao praticar um milagre no sábado
como um ensinamento espiritual. Ao narrar o interrogatório dos - e, como podemos perceber, ele o fez muitas vezes -, o Messias ia
fariseus, João mostra que mesmo eles estavam abalados com o de encontro às tradições judaicas. Mais que isso, abolia algumas das
acontecido. E fica claro também como o cego, aos poucos, se dá velhas leis em nome de um novo reino. E, neste novo reino, não
conta da grandiosidade do que estava acontecendo. s haveria dia algum em que a prática do bem seria proibida. s
28
Ilustração: Fábio Cobiaco
as hostilidades contra Jesus aumentavam a cada dia. A esta altura, Ele
já havia sido apedrejado e até mesmo se refugiado nas margens do rio
Jordão. Enquanto estava ali, as irmãs Marta e Maria - aquela que enxugou
os pés de Jesus com seus cabelos - foram procurá-lo. Elas contaram que
O HOMEM COM HIDROPSIA seu irmão, Lázaro, estava muito doente. Então, Jesus as mandou de
volta, afirmando que aquela não era uma “doença de morte”, mas, sim,
Lc 14, 1
um novo motivo para que o poder de Deus se manifestasse através do
Filho. E, a despeito da urgência, Jesus continuou ali por mais dois dias.
Logo depois da cura da mulher corcunda, Jesus já estava sen-
Então, chamou seus discípulos para que voltassrem à Judéia.
do ameaçado por Herodes, que pretendia matá-lo. Ele, no entanto,
Os apóstolos ficaram com medo, já que muitos estavam à procura
reafirmando as profecias do Antigo Testamento, continuou em Jerusalém, pois
de Jesus para prendê-lo. Mas Ele disse que seu amigo Lázaro estava
era ali que o profeta deveria morrer. Em um sábado, convidado a almoçar com
“dormindo” e precisava ser acordado. Os discípulos disseram então
um “dos principais fariseus”, Jesus percebeu que havia em sua frente um homem
que, se era sono, ele acordaria. Mas Jesus deixou claro: “Lázaro mor-
que sofria de hidropsia (acúmulo de líquidos em certas partes do corpo). Então,
reu”. Partiram então para Betânia, cidade vizinha a Jerusalém. Lázaro já
perguntou à mesa: “É lícito curar em sábado ou não?” Como todos ficaram
estava morto há quatro dias e havia sido sepultado em uma gruta.Há até
calados, ele curou o doente. E voltou a questioná-los, lembrando que a Lei
a menção, feita por Marta, de que o corpo já fedia. Todos questionavam
Antiga permitia que eles tirassem um boi que caísse em um poço num dia de
porque Jesus, tendo o poder, não havia curado um amigo que amava
sábado. Mas uma vida humana não era mais valiosa do que a de um animal?
tanto. Então, pedindo a Deus que o ouvisse, Jesus ordenou que Lázaro
É bom deixar claro que a lei judaica não proibia salvar vidas no sábado,
saísse de seu túmulo. E ele saiu caminhando da caverna, ainda enrolado
mas o hidrópico não estava à beira da morte e, por isso, este ato era proibido
na mortalha com as quais os mortos eram cobertos naquela época.
no sétimo dia. Em seu dia sagrado, os judeus faziam três refeições e recebiam
Esta é uma das passagens mais dramáticas do Evangelho.
convidados na principal, que acontecia no meio do dia, após o culto na
Afinal, Jesus já havia promovido outras ressurreições, mas ninguém
sinagoga. Acredita-se que Jesus tenha sido convidado pelos fariseus para
estava “tão morto” quanto Lázaro. A volta dos recém-falecidos poderia
esta refeição. Ora, Jesus já vinha sendo hostilizado há um bom tempo pelos
ser questionada, mas o que dizer de um homem cujo corpo já apo-
tradicionalistas. Mesmo assim, aceitou o convite deles para se sentar à mesma
drecia dentro da sepultura? Para alguns estudiosos, o fato de Jesus
mesa. Era um ato de coragem, mas também muito desafiador. s
ter esperado Lázaro morrer para ressuscitá-lo e dar uma demonstração
pública de seu poder foi como um anúncio da ressurreição do próprio
A RESSURREIÇÃO DE LÁZARO Cristo depois de sua crucificação. Este episódio também marca um
Jo 11, 1 ponto crucial na cronologia de João: após o milagre, muitos judeus
passaram a acreditar em Jesus, e a elite judaica começou a temer uma
Este é um dos mais famosos e espetaculares milagres de Jesus. rebelião popular, que seria duramente reprimida pelo Império Romano.
No entanto, apenas o evangelista João narra o episódio. Segundo ele, Eles começaram então a tramar a morte de Jesus. s
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M ilagres

OS DEZ LEPROSOS
Lc 17, 12

Apenas Lucas conta este episódio em seu Evangelho. Jesus estava dos outros. Em Marcos e Lucas, Jesus estava passando por Jericó,
caminhando rumo a Jerusalém, passando pela região da Samaria, quando acompanhado de uma multidão, quando um cego começou a pedir
dez leprosos foram se encontrar com ele. Não se aproximaram de Jesus, piedade. E gritava cada vez mais alto, até que levaram o cego -
mas o gritaram de longe, pedindo que tivesse piedade deles. O Nazareno que Marcos chama de Bartimeu - à presença do Nazareno. Jesus
então ordenou que eles fossem se apresentar a seus sacerdotes. No meio perguntou o que ele queria, e Bartimeu disse o óbvio: enxergar.
do caminho, os leprosos ficaram curados. Um dos doentes, no entanto, E Jesus o curou.
resolveu fazer meia volta para agradecer a graça concedida. Quando che- Em Mateus, não há apenas um, mas dois cegos. E Jesus não
gou até o Profeta, este ficou decepcionado por apenas um dos leprosos está chegando em Jericó, mas deixando a cidade. De qualquer forma,
ter voltado. E aquele ali era justamente um samaritano, não um judeu. no que mais interessa, os três sinóticos são convergentes: Jesus curou
A história conta que samaritanos e judeus eram povos que o cego (ou dois) que lhe pediu por piedade e tinha fé. E, após ser
não se davam bem ainda na época do Novo Testamento. E, como já curado, este homem foi atrás de Jesus, seguindo-o em sua viagem. Para
vimos, Jesus às vezes parecia mostrar uma certa predileção pelo povo certos estudiosos bíblicos, a cura do cego de Jericó é uma espécie de
judeu. No entanto, aqui fica claro - como no episódio do centurião, metáfora para os elementos básicos do discipulado cristão: o reconhe-
por exemplo - que Ele não fazia distinção entre homens de fé. Ao cimento de Jesus (o cego sabia quem Ele era), a fé (que Bartimeu
retornar a Jesus, o samaritano provou que havia sido curado não só demonstra no “Filho de Davi”), perseverança (quando mandaram que
física, mas também espiritualmente. Esta foi a última viagem que Jesus ele se calasse, passou a gritar mais alto), salvação (ele foi recompensado
fez a Jerusalém. Ele já estava em seus últimos dias e, em breve, seria com sua visão) e seguir o caminho de Jesus (o cego seguiu os passos
executado na cruz por Pôncio Pilatos. s de seu salvador).
Cronologicamente, aqui os sinóticos se encontram com
o Evangelho de João. Jesus estava indo rumo a Jerusalém e
O CEGO DE JERICÓ já havia anunciado a seus discípulos que seria morto pelos seus
Mt 20, 29. Mc 10, 46. Lc 18, 35 perseguidores. Nos sinóticos, para efeitos cronológicos, este é o
milagre que marca o começo dos últimos dias de Jesus, quando
A cura do cego de Jericó é narrada nos três Evangelhos sua morte já estava anunciada. Em João, como vimos, é a cura dos
sinóticos. No entanto, a descrição de Mateus é um pouco diversa dez leprosos que pontua este momento. s
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A MALDIÇÃO DA FIGUEIRA
Mt 21, 18. Mc 11, 13.

Naquelas últimas semanas, Jesus parecia passar os dias em Jerusalém


e as noites fora da cidade. Em uma daquelas manhãs, Ele entrou na cidade

Foto: Sidney Doll / Afresco da Catedral Ortodoxa (São Paulo / SP)


com seus discípulos e, sentindo fome, se dirigiu a uma figueira para pegar uma
fruta. Apesar da folhagem vistosa, não havia nenhum figo para comer. Jesus
então amaldiçoou a figueira, para que ninguém mais comesse seus frutos. Em
Marcos, Jesus entrou em Jerusalém, expulsou os mercadores do Templo
e, no dia seguinte, ao passarem novamente perto da figueira, os discípulos
notaram que ela estava completamente seca. Em Mateus, o episódio do
Templo já havia ocorrido, e a figueira secou instantaneamente ao comando
de Jesus. Nos dois Evangelhos - os únicos que narram a história -, Jesus
falou sobre o poder da fé e da oração após o milagre.
Este é um dos mais polêmicos pontos do Novo Testamento. É
a única vez em todos os Evangelhos que Jesus usa os poderes divinos
para uma espécie de punição. Além disso, a atitude do Nazareno pa-
rece intempestiva, vingativa, completamente destoante do resto de seu
ministério, sempre calcado no amor, na compaixão e na caridade. Esta
dissonância fez surgirem diversas teorias. Para alguns, é uma ação simbólica ao Evangelho como milagre por alguma confusão. E, realmente, há uma
para a maldição de Israel. Para outros, o milagre narrado por Mateus e parábola em Lucas que fala sobre uma figueira que não dá frutos. Talvez
Marcos era, na realidade, uma parábola que acabou sendo acrescentada os fatos tenham se misturado na tradição. s

A CURA DA
ORELHA DE MALCO
Lc 22, 50

Este milagre, narrado apenas em Lucas, acontece durante o episódio


da prisão de Jesus. Após a Última Ceia com seus apóstolos, Ele se retirou
Foto: Sidney Doll / Afresco da Catedral

com parte deles para o Getsêmani, um jardim que ficava fora de Jerusalém.
Enquanto orava, pediu a seus discípulos que guardassem vigília. No entanto,
Ortodoxa (São Paulo / SP)

eles fraquejaram e adormeceram. Nisso, Judas chegou com os soldados e


beijou Jesus, entregando-o a seus executores. Revoltados, os discípulos
ameaçaram reagir, e um deles desembainhou sua espada, cortando fora a
orelha do servo do sumo sacerdote. Jesus não aprovou aquela atitude e,
tocando a orelha da vítima, a curou. Os outros três evangelistas também nar-
ram a agressão, mas apenas Lucas relata o milagre. João afirma que foi Pedro
quem decepou a orelha do servo, que ele identifica como Malco.
Neste episódio, os evangelistas deixam claro que Jesus, embora
tivesse vivido uma noite de agonia por saber que seu fim estava muito
próximo, não queria resistir à prisão. De outra forma, as profecias não
poderiam se cumprir. Há quem acredite que, com a cura de Malco, Jesus
tentou deixar claro que não era um bandido, nem mesmo um rebelde
político, mas, sim, quem Ele disse ser: o Messias, o Filho de Deus, que
venerava a paz e curava os enfermos. Apesar de estar em uma de suas horas
mais sombrias, Jesus ainda teve o espírito de ensinar a seus discípulos uma
lição de não-violência, mandando que a espada fosse guardada e, de certa
forma, como disse no Sermão da Montanha, ofereceu “a outra face”.s
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M ilagres

Ilustração: Fábio Cobiaco

Ilustração: Fábio Cobiaco

e vários santos ressuscitaram. Mas este milagre não pode ser atribuído
a Jesus. Pode-se dizer que Deus manifestou sua decepção com os
homens através de fenômenos naturais, por crucificarem seu Filho. Mas
isso não caracterizaria um milagre como aqueles em que o poder de
Deus é exercido através de Jesus.
Com relação à ressurreição de Cristo, ocorre algo parecido.
João narra que Maria Madalena chegou ao túmulo onde fora depo-
sitado o corpo de Jesus e nada encontrou. Em Lucas, Maria Ma-
dalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, foram até o sepulcro, entraram
lá e encontraram dois jovens em roupas brancas. Elas anunciaram que
Jesus havia ressuscitado. Em Marcos, Maria Madalena, Salomé e
OS FENÔMENOS Maria, mãe de Tiago, fizeram o mesmo, mas encontraram um rapaz de
NA CRUCIFICAÇÃO túnica branca sentado na porta da sepultura e não chegaram a entrar.
Foi este jovem quem fez o anúncio da ressurreição. Em Marcos,
E RESSURREIÇÃO Maria e Maria Madalena foram até a tumba, que estava guardada
por soldados de Pôncio Pilatos. Então, um anjo desceu do céu e os
A crucificação de Cristo é um episódio que conta em todos guardas ficaram “como mortos”. Ele então removeu a pedra da entrada
os quatro Evangelhos com menores ou maiores diferenças entre os da gruta, sentou-se sobre ela e anunciou a ressurreição.
livros. Nos sinóticos, alguns fenômenos são descritos, ao passo que Em todos os Evangelhos, Maria Madalena correu para contar
João atém-se a uma narrativa mais seca. Em Mateus, Marcos e Lucas, aos discípulos que Jesus havia de fato ressuscitado. E, antes de
o céu escurece a partir da “hora sexta” e “estenderam-se as trevas até surgir novamente para eles, Cristo apareceu para Maria Madalena e
a hora nona”. Quando Jesus finalmente expirou, pregado à cruz, os confirmou que havia ressuscitado dos mortos. Apenas Lucas deixa
evangelistas contam que “o véu do templo rasgou-se de cima a baixo de narrar este encontro. De qualquer forma, a ausência de Jesus em
em duas partes”. Esta narrativa é convergente nos três livros. Mateus, sua sepultura confirmava o que ele havia dito a seus discípulos antes
porém, narra que um grande terremoto abalou a terra, o chão se abriu de ser executado: que ressuscitaria ao terceiro dia. s
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Ilustração: Fábio Cobiaco

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aparições distintas. Na primeira, os apóstolos estavam reunidos em
O REENCONTRO COM um local a portas fechadas. Era o primeiro dia da semana, o dia em

CRISTO RESSUSCITADO que Jesus ressuscitara. E Ele veio até seus discípulos, atravessando as
portas trancadas, e se apresentou a eles, mostrando as mãos e o tórax
Jo 20, 19.
perfurados. É nesta passagem que Jesus “autoriza” seus apóstolos a
perdoar os pecados dos homens em nome de Deus.
Todos os Evangelhos narram o reencontro de Jesus com seus Mas o discípulo Tomé não estava entre seus amigos nesta
discípulos, mas nem sempre em situações semelhantes. Seguiremos primeira aparição. Os outros foram até ele e contaram que estiveram
aqui a ordem dos acontecimentos narrados por João, que fala de três com Jesus ressuscitado. Tomé, no entanto, afirmou que só acreditaria
se encontrasse ele mesmo com Cristo, e enfiasse os dedos nas feridas
dele. Oito dias depois, os apóstolos estavam reunidos e Jesus tornou
Ilustração: Fábio Cobiaco

a aparecer para eles. Então, ofereceu as feridas para que Tomé as


tocasse e o censurou por seu ceticismo.
A terceira vez que Jesus apareceu foi no Mar da Galiléia. Sete
discípulos passaram a noite no mar, jogando suas redes, mas voltaram
sem nenhum peixe. Com o dia já amanhecendo, eles retornavam para
a praia quando viram uma figura na areia. Era Jesus, embora eles não o
tivessem reconhecido. Ele então disse para que os discípulos jogassem
a rede do lado direito do barco, porque ali encontrariam peixes. E eles
encontraram. Chegando à praia, se depararam com Jesus sentado à
beira de uma fogueira, com peixes na brasa e pães. Comeram juntos,
sem perguntar quem era Ele, porque sabiam que era Jesus, ressuscitado
dos mortos, aparecendo para eles pela terceira vez.
A narrativa deste último milagre protagonizado por Jesus é
muito semelhante àquela da primeira pesca milagrosa, registrada em
Lucas. Como na primeira, por exemplo, o discípulo Pedro tem um
papel destacado. Os pesquisadores da Bíblia acreditam que estas
semelhanças podem indicar que os dois episódios derivam de uma
mesmo acontecimento histórico. s

ASCENSÃO DE CRISTO
Mc 16, 19. Lc 24, 50. At 1, 9.

Esta é a última ação fantástica atribuída a Jesus Cristo. O


episódio é narrado no começo do livro dos Atos dos Apóstolos e
encerra os Evangelhos de Lucas e Marcos. Este último é o mais sucinto
deles e diz apenas que, “depois de falar com eles (os discípulos), foi
ao céu”. Já Lucas é um pouco mais detalhado. Conta que, depois
de aparecer para os apóstolos no local onde eles estavam reunidos,
Jesus os levou até Betânia e, após abençoá-los, começou a flutuar
rumo ao céu. Nos Atos dos Apóstolos é que está o registro mais
espetacular. Depois de falar a seus discípulos, Jesus passou a elevar-se
ao céu. Uma nuvem apareceu e os apóstolos não puderam mais ver
Cristo, quando dois anjos apareceram e disseram aos seguidores de
Jesus que, assim como eles estavam vendo seu mestre subir aos céus,
um dia eles o veriam voltando. Em todos os três livros que narram
a ascensão, Jesus se reuniu com os apóstolos para os abençoar e
passar-lhes novamente sua missão de “testemunhas em Jerusalém, em
toda a Judéia, na Samaria, e até nos extremos da Terra.”s
34

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