Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NORWEGIAN
WOOD
Tradução
Maria João Lourenço
For Many Fêtes
Na altura, eu tinha trinta e sete anos e seguia a bordo de um Boeing 747.
Descrito como um pássaro gigantesco, o avião deu início à descida,
atravessou as densas nuvens carregadas de chuva e fez-se à pista do
aeroporto de Hamburgo1. A fria chuva de novembro tingia de cinzento a
terra e transformava tudo em redor numa lúgubre paisagem digna da pintura
flamenga: o pessoal de terra com impermeáveis, a bandeira no topo de um
edifício térreo do aeroporto, um painel publicitário da BMW. Alemanha,
aqui estou eu de novo, pensei.
Mal o aparelho completou a aterragem, apagaram-se os sinais luminosos
que indicavam a proibição de fumar. Debitada pelos altifalantes, começou a
soar baixinho a música de fundo. «Norwegian Wood», dos Beatles, numa
versão orquestral delicodoce. Como de costume, a melodia teve o condão
de me comover. Não, em bom rigor, não me comoveu; produziu em mim
uma reação muito mais violenta do que era normal.
Para impedir que a minha cabeça estalasse, cobri a cara com as mãos,
inclinei-me todo para a frente e permaneci imóvel nessa posição. Segundos
depois, aproximou-se uma assistente de bordo alemã, que quis saber, em
inglês, se me estava a sentir mal. Respondi-lhe que não, que se tratava
apenas de uma ligeira tontura.
− De certeza que está tudo bem?
− Sim, obrigado pela atenção – disse eu.
A assistente de bordo sorriu e afastou-se. O som da música mudou,
passando a ser transmitida uma canção de Billy Joel. Desviei os olhos para
o céu e contemplei as nuvens escuras que pairavam sobre o mar do Norte.
Pensei em todas as coisas que perdera ao longo da vida. O tempo que
passara, as pessoas mortas ou desaparecidas do mapa, as emoções que
nunca mais tornaria a viver.
O avião imobilizou-se por completo. Enquanto os passageiros tratavam
de desapertar os cintos de segurança e de retirar a bagagem de mão e os
casacos dos compartimentos superiores, encontrava-me eu em plena
pradaria. Cheirei o perfume da erva, senti o vento na pele, ouvi o canto dos
pássaros. Era o outono de 1969, e estava prestes a fazer vinte anos.
A mesma assistente de bordo aproximou-se, sentou-se ao meu lado e
perguntou se me sentia melhor.
− Estou bem, obrigado – respondi em inglês, sorrindo. – De repente, deu-
me para a melancolia. Só isso.
− Compreendo. Às vezes também me acontece o mesmo. Compreendo
como se sente – declarou ela, em inglês. Abanando a cabeça, levantou-se do
assento e brindou-me com um sorriso encantador. – Desejo-lhe boa viagem.
Auf Wiedersehen.
− Auf Wiedersehen – repeti.
***
***
A memória é uma coisa estranha. Quando me encontrava naquele lugar, mal
prestei atenção à paisagem. Não me parecia que tivesse alguma coisa de
especial, e muito menos que, dezoito anos mais tarde, me lembraria dela
nos mais ínfimos pormenores. Para dizer a verdade, naquela época estava-
me nas tintas para a paisagem. Pensava apenas em mim, na rapariga
lindíssima que caminhava ao meu lado, na nossa relação, e em mim outra
vez. Estava numa idade em que não importava o que pudesse ver, sentir e
pensar: no final, regressava tudo ao ponto de partida, como um
bumerangue. A minha pessoa. Para piorar a situação, estava apaixonado, e
aquele amor conduzira-me a uma situação extraordinariamente complicada.
Não, decididamente, a paisagem era a última das minhas preocupações.
Nos dias que correm, a primeira coisa que me vem à lembrança é aquela
cena da pradaria. O cheiro da erva, a brisa fresca, a linha das montanhas,
um cão a ladrar: são as coisas que recordo. Com tanta nitidez que tenho a
impressão de que, se estendesse o braço, poderia tocar nelas, uma a uma,
com a ponta dos dedos. Acontece que essa paisagem se encontra deserta.
Não tem ninguém. Naoko não faz parte dela, e eu também não. Onde
teremos ido parar os dois, pergunto a mim próprio. Como pode isso ter
acontecido? Onde foi parar tudo o que parecia ser mais importante: ela, o
meu antigo eu, o nosso pequeno mundo? Neste momento, nem sequer
recordo o rosto de Naoko. O que ficou não passa de uma paisagem
despovoada.
Se me der ao trabalho, como é óbvio, sou capaz de recordar a cara dela.
As suas mãos pequenas e frias, o cabelo liso, tão suave e agradável ao
toque, o sinalzinho abaixo do lóbulo delicado e carnudo da orelha, o
elegante casaco de pelo de camelo que costumava usar no inverno, o hábito
de olhar toda a gente nos olhos quando fazia uma pergunta, a voz que, volta
e meia, tremia por alguma razão, como se estivesse a falar no cimo de uma
colina varrida pelo vento. Ao sobrepor estas imagens, o seu rosto surgia
naturalmente. Antes do mais, o perfil. Talvez pelo facto de caminharmos
quase sempre lado a lado. Sim, deve ser isso. Depois, ela vira-se para mim,
sorri docemente, inclina a cabeça e começa a falar, sem tirar os olhos dos
meus. Como se esperasse ver neles a sombra de um peixinho atravessando,
veloz, uma nascente de águas cristalinas.
Ainda demora até o rosto de Naoko surgir diante de mim. E, à medida
que os anos passam, mais tempo leva. Triste, mas verdadeiro. A princípio,
bastavam cinco segundos para me recordar do seu rosto, mas, às tantas, os
cinco converteram-se em dez, em trinta, num minuto. Posto de outro modo,
o tempo começou a alongar-se, tal como acontece com as sombras no lusco-
fusco. Sim, é isso. A pouco e pouco, as sombras serão engolidas pelas
trevas. O que significa que a minha memória acabará por se distanciar
definitivamente de Naoko. Assim como se afasta do meu antigo «eu». Só a
paisagem, a imagem daquela pradaria no mês de outubro, continua a
aparecer-me repetidamente, evocando a narrativa simbólica de um filme.
Quando aparece, é como se essa cena tivesse o condão de sacudir uma parte
do meu cérebro e gritar: «Vamos a acordar! Não vês que ainda estou aqui?
Acorda e vê se atinas, se compreendes o que ando a fazer!»
Não é que me faça doer. Apenas sinto o som seco que acompanha cada
pancada, um rumor que ecoa no vazio, e até mesmo esse som acabará por se
extinguir, aos poucos. Tal como tudo o mais, de resto. Mas a bordo daquele
avião da Lufthansa, no aeroporto de Hamburgo, a sacudidela foi mais forte,
mais prolongada do que nunca. «Acorda! Vê se atinas!» É por isso que
escrevo este livro. Sou uma daquelas pessoas que só conseguem
compreender seja o que for depois de pôr tudo no papel.4
***
***
***
O certo, porém, é que a memória acaba por nos atraiçoar. Confesso que me
esqueci não só daquele pinhal, como de muitas outras coisas. De vez em
quando, ao pôr no papel os meus pensamentos, sinto-me invadido por uma
angústia terrível. Terei deixado escapar as coisas mais importantes? E se as
lembranças fundamentais se tiverem acumulado num lugar obscuro do meu
corpo, numa espécie de limbo da memória, formando uma massa tão
inconsistente como o lodo? Assaltam-me dúvidas.
De momento, é o que se arranja. Por isso, escrevo este livro movido pelo
desespero de um homem faminto agarrado a um osso, apertando contra o
peito as recordações imperfeitas que desapareceram e continuam a dissipar-
se a cada segundo que passa. Essa é a única forma de manter a promessa
feita a Naoko.
Anos atrás, quando era ainda jovem e tinha as imagens vivas na memória,
tentei várias vezes escrever sobre ela. Na altura, porém, vi-me grego para
que me saísse uma única linha. No fundo, sabia que, se fosse capaz de
desencantar a primeira linha, o resto viria por acréscimo, com mais
facilidade, mas a primeira frase não havia maneira de surgir. Estava tudo
demasiado nítido e eu não sabia por onde começar. Como acontece quando
temos diante dos olhos um mapa muito pormenorizado e não somos capazes
de encontrar o fio da meada, estão a ver? Mas agora compreendo. No fim
de contas, só conseguirei preencher o recetáculo incompleto que é a escrita
recorrendo às recordações e aos pensamentos imperfeitos. E quanto mais se
desvaneceu a imagem de Naoko dentro de mim, mais tenho a impressão de
a compreender. Entendo agora a razão pela qual pediu para não me esquecer
dela. Naoko sabia, obviamente. Sabia que, aos poucos, estava condenada a
volatilizar-se da minha memória. Foi por isso que me pediu para a recordar
para sempre.
Pensar nisso deixa-me terrivelmente triste. Porque Naoko nunca chegou a
amar-me.
1 A cidade alemã nunca mais é referida. No entanto, convém acrescentar que se trata do lugar onde
nasceu Hans Castorp, personagem principal de A Montanha Mágica de Thomas Mann, referido por
várias vezes ao longo deste romance. Por outro lado, no ano de 1960, Hamburgo revelou-se fulcral na
afirmação dos Beatles (com Pete Best na bateria e Stu Sutcliffe no baixo) como banda de sucesso. (N.
da T.)
2 Miscanthus sinensis, uma espécie de gramínea que dá flor (eulália), pertencente à família das
Poaceae. (N. da T.)
3 A Naoko que aqui surge pode ser vista como a reencarnação da Naoko com tendências suicidas em
Flíper, 1973, outra personagem atraída por poços. Murakami diz o seguinte acerca da conceção do
romance: «Tirando o protagonista e narrador na primeira pessoa, criei cinco personagens, entre as
quais duas mulheres destinadas a morrer. Nem eu próprio sabia qual das cinco ficaria viva e quais as
que morreriam. O protagonista está apaixonado por duas mulheres que são o oposto uma da outra,
mas só muito próximo do fim descobri qual delas seria a tal. Escusado será dizer que havia sempre a
possibilidade de morrerem ambas e ele ficar sozinho e entregue à sua sorte», in Haruki Murakami
and the Music of Words. (N. da T.)
***
***
***
5 Hino nacional. Aos olhos de uns, símbolo do orgulho nacional; para outros, ícone de um passado
militarista. O hino de cada país continua a dividir os cidadãos, e o português é disso exemplo. Tanto o
Kimigayo, o hino japonês, como a Hinomaru, bandeira nacional do Japão, constituíram desde sempre
fonte de acesa controvérsia. Kimigayo (O Reino do Imperador) baseia-se num poema escrito no
Período Heian (794-1185) e contém versos que caíram em desuso no Japão moderno. (N. da T.)
6 Seis tatami (roku-jō) equivalem a cerca de dez metros quadrados. (N. da T.)
8 Nome de uma revista masculina dirigida a um público essencialmente jovem. (N. da T.)
9 Kinokuniya, a mais importante cadeia de livrarias que existe no Japão. (N. da T.)
10 Restaurante especializado em pratos de soba, massa fina e comprida de trigo-sarraceno. (N. da T.)
Naoko ligou-me no sábado seguinte e ficámos de nos encontrar no
domingo. Acho que posso chamar-lhe encontro, visto que não me ocorre
outra palavra.
Tal como da outra vez, percorremos as ruas sem rumo certo, parámos
para tomar café, retomámos o nosso passeio, jantámos ao cair da noite,
despedimo-nos e seguiu cada um o seu caminho. Para não variar, ela
praticamente não abriu a boca, mas como não parecia ralada com isso,
também não fiz grande esforço para alimentar a conversa. Quando nos
apetecia, discorríamos sobre as nossas vidas e sobre a universidade,
mantendo sempre um diálogo fragmentado, que não nos levava a parte
alguma. Não tocámos no passado. Limitámo-nos a deambular pela cidade.
Felizmente, Tóquio é uma cidade imensa e, por mais que se ande, abrem-se
sempre novos caminhos.
Ganhámos o hábito de nos encontrarmos quase todas as semanas. O ritual
pouco variava. Ela seguia uns metros adiante e eu mantinha-me meia dúzia
de passos atrás. Naoko tinha travessões de cabelo de várias formas e feitios,
mas deixava a orelha direita à mostra. Lembro-me desse pormenor na
perfeição, uma vez que a via sempre de costas. Brincava normalmente com
o travessão quando se sentia envergonhada, além de passar constantemente
o lenço pelos lábios: era sinal de que queria dizer qualquer coisa. Pouco a
pouco, observando os seus gestos familiares, fui começando a gostar cada
vez mais dela.
Naoko frequentava uma universidade feminina que ficava nos subúrbios
de Musashino. Era uma universidade pequena, famosa pelo ensino do
inglês. Perto do apartamento onde morava corria um canal de rega de águas
cristalinas, ao longo do qual costumávamos caminhar. Naoko convidara-me
por mais de uma vez a ir até ao seu apartamento e até já cozinhara para
mim. Nunca deu mostras de ficar constrangida na minha presença. O
apartamento, despretensioso e reduzido ao essencial, estava limpo e bem
arranjado. Se não fossem as meias de senhora estendidas a secar num canto,
perto da janela, ninguém diria que morava ali uma representante do sexo
feminino. Naoko levava uma existência espartana, e parecia não ter muitos
amigos. Para quem a conhecia desde o secundário, tornava-se difícil
imaginar aquele género de vida. Antigamente, usava vestidos bonitos e
vivia rodeada de amigos. Ao ver o interior do seu apartamento, dei-me
conta de que, tal como eu, Naoko fizera questão de se afastar da cidade
natal para recomeçar num lugar onde ninguém a conhecesse.
− Escolhi esta universidade pelo facto de saber que, à partida, não daria
de caras com uma das minhas antigas colegas de liceu – confessou-me ela,
sorrindo. – Todas optaram por universidades mais finas. Conheces o género.
Não se podia dizer, contudo, que o nosso relacionamento tivesse
estagnado. Aos poucos, Naoko foi-se acostumando a mim, e eu a ela.
Quando as férias de verão chegaram ao fim e teve início o novo ano letivo,
começou a caminhar ao meu lado com a maior naturalidade. Interpretei o
gesto como um sinal de que Naoko me aceitara como amigo e, pela parte
que me tocava, não me sentia minimamente constrangido por ser visto na
companhia de uma jovem tão bonita. E lá continuámos a calcorrear a
cidade. Deambulávamos por toda a parte: subíamos ladeiras,
atravessávamos rios, cruzávamos a linha do comboio... Vagueávamos sem
rumo. Andávamos por andar, como num ritual religioso destinado a mitigar
o sofrimento. Se chovia, abríamos o guarda-chuva e seguíamos em frente.
O outono chegou e o pátio da residência estudantil encheu-se de folhas de
olmo. Aspirei o aroma da nova estação ao vestir uma camisola de malha.
Substituí os meus velhos sapatos, todos cambados, por um novo par, de
camurça.
Não me lembro grande coisa dessas conversas. Possivelmente, não
deviam ser importantes. O passado ficava de fora, claro. Kizuki raramente
era mencionado. Continuávamos sem falar muito, e já nos habituáramos a
permanecer os dois calados, a olhar um para o outro, diante das chávenas de
café.
Naoko adorava ouvir as histórias que eu lhe contava acerca do Facho.
Certa ocasião, o Facho marcara encontro com uma colega de turma
(estudante de Geografia como ele, nem é preciso dizer), mas regressara
cedo ao quarto, com um ar nitidamente abatido. A cena passou-se em junho.
− Watanabe, quando sais com uma rapariga, so-sobre que tipo de co-
coisas costumas falar? – perguntou-me.
Não me lembro da resposta que dei na altura, mas, independentemente
disso, eu estava longe de ser a pessoa indicada para o aconselhar. Em julho,
quando ele se encontrava ausente, alguém arrancou o cartaz com a
fotografia do canal de Amesterdão e pespegou na parede uma fotografia da
ponte Golden Gate. A pessoa que fez isso queria ter a certeza de que o
Facho seria capaz de se masturbar enquanto contemplava a ponte de São
Francisco. Quando menti com todos os dentes que tinha e lhes disse que ele
ainda gozara mais, alguém sugeriu que se substituísse o dito cartaz pela
imagem de um icebergue. Sempre que havia mudança de póster, o Facho
ficava perturbado.
− Quem é o responsável por isto? – perguntou-me ele.
− Não faço a mínima ideia. Mas não ligues. As fotografias são bonitas,
todas elas. Seja quem for, deverias agradecer a essa pessoa... – declarei, à
laia de consolação.
− Pode ser que tenhas razão, mas não deixa de ser irritante – observou
ele.
Naoko desmanchava-se a rir com as histórias do Facho. Como era
raríssimo rir-se, eu recorria a esse estratagema o maior número de vezes
possível, se bem que, no fundo, não me sentisse confortável ao usar o meu
amigo como motivo de troça. Afinal, não passava do filho mais novo de
uma família de poucos recursos, de um rapaz demasiado sério. Desenhar
mapas era o sonho da sua vida simples e insignificante. Ninguém tinha o
direito de gozar com ele.
Digo isto, mas, naquela fase do campeonato, as «anedotas do Facho» já
se tinham transformado num dos tópicos obrigatórios, a tal ponto que,
mesmo que eu quisesse, seria impossível parar o comboio em andamento.
Além do mais, confesso que ver o rosto sorridente de Naoko constituía um
genuíno motivo de contentamento. Vai daí, continuei a alimentar o filão e a
proporcionar a todos episódios do meu companheiro de quarto.
Naoko perguntou-me uma única vez se eu gostava de alguma mulher em
especial. Contei-lhe a história do romance que terminara pouco antes.
Confessei que a achava boa rapariga, que tinha prazer no sexo e pensava
nela com saudade, embora houvesse qualquer coisa que não funcionava na
nossa relação. Podia dar-se o caso de o meu coração estar revestido com
uma dura carapaça e, por qualquer razão, ser praticamente impossível
penetrar nele. Daí resultaria a minha incapacidade de amar.
− Nunca amaste ninguém até hoje? – quis saber Naoko.
− Nunca – respondi.
Depois disso, não me fez mais perguntas.
O outono chegou ao fim e um vento gélido começou a varrer as ruas da
cidade. Às vezes, Naoko encostava-se a mim, e eu sentia a sua respiração
através da fazenda grossa do casaco de inverno. Passava o braço por baixo
do meu e enfiava a mão no bolso, e quando fazia realmente frio, tiritava
agarrada ao meu braço. Mas não era mais do que isso. Aqueles gestos não
tinham qualquer significado especial. Pela minha parte, continuava a andar
como se nada fosse, com as mãos enfiadas nos bolsos. Tanto ela como eu
usávamos sapatos com sola de borracha, que abafavam por completo o som
dos nossos passos. Só quando pisávamos as grandes folhas mortas dos
plátanos caídas pelo caminho se ouvia um estalido seco. Bastava-me ouvir
esse barulho para sentir pena de Naoko. Não era do meu braço que ela
precisava, mas do braço de outra pessoa. Não era o calor do meu corpo que
ela procurava, mas o calor de outra pessoa. Era caso para dizer que eu tinha
a consciência pesada pelo simples facto de ser essa pessoa.
À medida que o inverno avançava, comecei a reconhecer uma maior
transparência nos seus olhos. Uma transparência contida em si mesma. Por
vezes, sem nenhuma razão aparente, Naoko fitava-me como se procurasse
alguma coisa, e então apoderava-se de mim uma estranha sensação de
tristeza e impotência.
A páginas tantas, comecei a pensar que ela deveria querer transmitir-me
alguma coisa. Algo que porventura não conseguia traduzir. Melhor dizendo,
que ela própria tinha dificuldade em compreender. Por isso mesmo, não
atinava com as palavras. Brincava o tempo todo com o travessão do cabelo,
passava o lenço pela boca e punha-se a olhar para mim sem motivo
aparente. Sempre que ela fazia isso, sentia-me tentado a abraçá-la, mas,
depois de hesitar, acabava por desistir. Temia que o gesto pudesse ferir os
seus sentimentos. Percorríamos as ruas de Tóquio, e Naoko, como de
costume, perseguia palavras no vazio.
Sempre que recebia uma chamada de Naoko ou quando saíamos nas
manhãs de domingo, os meus colegas fartavam-se de fazer troça. Era
natural que eles pensassem que eu tinha arranjado uma namorada. De nada
serviria explicar-lhes a história, tão-pouco faria sentido, por isso deixava-os
imaginar o que quisessem. De regresso à residência, ao cair da noite, havia
sempre um ou outro que insistia em perguntar em que posição o tínhamos
feito, qual a forma do órgão sexual dela ou a cor da roupa interior.
Raramente perdia a oportunidade de lhes responder à letra.
***
Foi assim a transição dos meus dezoito para os dezanove anos. O Sol nascia
e punha-se todos os dias; a bandeira era hasteada e arriada. Aos domingos,
saía com a namorada do meu amigo morto. Não tinha a mínima noção do
que andava a fazer nem do que pretendia em termos de futuro. Lia Claudel,
Racine e Eisenstein nas aulas, mas esses autores pouco me diziam. Não
travei amizade com ninguém na universidade, e os relacionamentos que
mantinha na residência eram superficiais até dizer chega. Vendo que eu
passava os dias a ler, os colegas da residência concluíram que eu queria
tornar-me escritor, embora nunca tal me tivesse passado pela cabeça. Para
ser franco, não alimentava nenhuma ambição em particular.
Tentei por mais de uma vez partilhar o meu estado de alma com Naoko.
Acreditava que, até certo ponto, ela seria perfeitamente capaz de me
entender. Mas nunca fui capaz de encontrar as palavras. Que estranho,
pensei. Será que ela me contagiou?
Nos sábados à noite, sentava-me numa cadeira à entrada da residência, ao
pé do aparelho, e aguardava o telefonema. Dado que quase toda a gente
costumava sair para se divertir ao sábado, aquele sítio ficava muitíssimo
mais tranquilo do que era habitual, quase deserto. Aproveitava precisamente
essa altura para analisar com alguma profundidade o que me ia na alma,
dedicando-me a observar as partículas de luz naquele espaço silencioso. O
que procuro eu? E o que pretendem as pessoas de mim, ao certo?
Continuava sem encontrar uma resposta satisfatória. Estendia os dedos em
direção às partículas luminosas que flutuavam no ar, mas as pontas dos
dedos não tocavam em nada.
***
Lia muito, mas não se podia dizer que fosse o protótipo do leitor voraz.
Preferia reler os livros que mais me agradavam. Na época, os meus
escritores favoritos eram Truman Capote, John Updike, Scott Fitzgerald e
Raymond Chandler, apesar de não haver ninguém, quer na universidade
quer na residência, que gostasse desse tipo de literatura. Em contrapartida,
liam Kazumi Takahashi, Kenzaburō Ōe, Yukio Mishima ou autores
franceses contemporâneos. Em resultado disso, tínhamos poucos temas em
comum, e eu ia lendo os meus livros sozinho e em silêncio. Percorri os
mesmos romances repetidas vezes e acontecia-me fechar os olhos para
melhor aspirar o perfume dos livros. Sentia-me feliz por aspirar aquele
aroma e percorrer aquelas páginas.
Aos dezoito anos, o meu livro preferido era O Centauro, de John Updike,
mas, à força de o reler, acabou por perder algum do fulgor inicial, cedendo
o primeiro ligar no rol a O Grande Gatsby11, de F. Scott Fitzgerald. Devo
dizer que esse continuou a ser o meu predileto durante muito tempo. Pegar
no romance de Fitzgerald e abri-lo numa página ao acaso, ler alguns
parágrafos, converteu-se numa espécie de ritual. O livro nunca me
dececionou. Nenhuma das suas páginas se tornou entediante. Considerava-o
uma obra-prima e queria a todo o custo partilhar esse deslumbramento com
os outros. Para mal dos meus pecados, mais ninguém à minha volta tinha
lido o livro nem manifestara vontade de o fazer. Embora no ano de 1968 ler
O Grande Gatsby não fosse reacionário, também não era leitura
recomendável.
Que me lembre, apenas um dos meus camaradas tinha lido O Grande
Gatsby, e foi precisamente por isso que nos tornámos amigos. Chamava-se
Nagasawa, andava a estudar Direito na Universidade de Tóquio e era dois
anos mais velho. Conhecíamo-nos de vista, uma vez que vivíamos na
mesma residência, até que, um dia, estava eu sentado ao sol num canto do
refeitório a ler O Grande Gatsby, ele veio sentar-se a meu lado e quis saber
que livro era aquele. Quando lhe mostrei a capa do romance, perguntou-me
se estava a gostar. Respondi-lhe que era a terceira vez que o lia e a cada
leitura encontrava mais motivos para gostar.
− Uma pessoa que leu O Grande Gatsby três vezes tem todas as hipóteses
de se tornar meu amigo – murmurou ele. E ficámos amigos. Passou-se isto
em outubro.
À medida que conhecia melhor Nagasawa, mais o considerava um fulano
estranho. Ao longo da vida, encontrara muitas pessoas esquisitas, mas ele
batia toda a gente aos pontos. Além de devorar livros e livros (eu não lhe
chegava aos calcanhares, diga-se de passagem), adotara a seguinte filosofia:
nunca ler obras de autores que não tivessem morrido há pelo menos trinta
anos. Confiava apenas nesses livros, dizia ele.
− Não significa que encare a literatura contemporânea com desconfiança.
Só não quero gastar a minha preciosa energia com obras que ainda não
foram batizadas pelo tempo. A vida é curta.
− Quais são os escritores que preferes? – perguntei.
− Balzac, Dante, Joseph Conrad, Dickens – respondeu sem pestanejar.
− Estão longe de ser os escritores da atualidade.
− É por isso que os leio. Se tu só leres os autores que o resto das pessoas
lê, acabas por pensar como eles. Deixo isso para os medíocres e os
mentecaptos. Qualquer pessoa séria se envergonharia desse tipo de atitude.
Nesta residência de estudantes só nos safamos os dois, Watanabe. Ainda não
te tinhas dado conta? Os outros são puro lixo!
− Como é que sabes? – perguntei, desconcertado.
− Topo-os à légua. É como se tivessem todos uma marca no meio da
testa. Basta-me olhar para eles. Além disso, ambos lemos O Grande Gatsby.
Fiz um cálculo de cabeça.
− Mas ainda só passaram vinte e oito anos desde a morte do Fitzgerald...
− E depois? Que importam dois anos? – retorquiu. – Para um escritor
acima da média, como é o caso, abro uma exceção.
Na residência ninguém suspeitava que Nagasawa fosse um leitor avisado
de clássicos e, mesmo que soubessem, essa notícia nada teria de
sensacional. Para começar, ele era famoso pela sua inteligência. Entrara sem
dificuldade na Universidade de Tóquio, tirava notas fantásticas e estava nos
seus planos concorrer ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e seguir a
carreira de diplomata. O pai era administrador de um conhecido hospital em
Nagoia e o irmão mais velho, também formado em Medicina pela
Universidade de Tóquio, estava na calha para lhe suceder no cargo. Tudo
indicava tratar-se de uma família às direitas. Não lhe faltava dinheiro para
despesas pessoais e era um rapaz garboso. Como tal, todos, sem exceção, o
respeitavam, e até o diretor da residência, coisa rara e nunca vista, o trazia
sempre nas palminhas. Os seus pedidos eram ordens e ninguém se atrevia a
faltar-lhe ao respeito.
Nagasawa possuía, sem sombra de dúvidas, dotes inatos de sedução e
liderança, o que lhe permitia colocar-se numa posição de vantagem e avaliar
rapidamente a situação, fornecendo instruções precisas e fazendo-se
obedecer. Sobre a sua cabeça pairava uma auréola semelhante à dos anjos,
sinal inequívoco desse poder, e bastava olhar para ele para se notar que era
um homem superior, um ser especial, ao ponto de intimidar os outros. O
facto de Nagasawa me ter escolhido, a mim, um rapaz sem qualquer
característica especial, para seu amigo constituiu uma enorme surpresa e
levou a que as pessoas começassem a tratar-me com um certo respeitinho.
No fundo, a explicação era muito simples, se bem que todos parecessem
ignorá-la.
Nagasawa simpatizava comigo porque eu não o admirava
exageradamente nem tinha o hábito de o adular. Sentia-me atraído pelos
aspetos únicos e complexos da sua personalidade, embora me estivesse
marimbando para as notas brilhantes, a aura e o carisma que dele
emanavam. Para Nagasawa, creio, isso era perfeitamente inusitado.
Alguns traços da sua personalidade revelavam-se por demais
contraditórios. Às vezes, era de uma simpatia tocante, mas podia tornar-se
especialmente cruel enquanto o diabo esfrega um olho. Tanto dava mostras
de enorme nobreza de carácter como de uma vulgaridade insustentável.
Levava tudo e todos para diante, dotado de grande otimismo, mas o seu
coração debatia-se no pântano da solidão profunda. Apercebi-me
claramente deste paradoxo desde o primeiro dia, sem entender por que
razão os outros eram incapazes de ver o mesmo que eu. Nagasawa vivia o
seu próprio inferno.
No fundo, simpatizava com ele. A maior qualidade era a honestidade.
Nunca mentia e reconhecia os seus erros e defeitos, sem procurar esconder
o que não lhe convinha. Mais a mais, tratava-me sempre bem e ajudava-me
quando era preciso. Se não fosse Nagasawa, a minha vida naquela
residência teria sido bastante complicada e desagradável. Apesar disso,
nunca entrei em confidências com ele e, nessa medida, o nosso
relacionamento era completamente diferente da minha amizade com Kizuki.
Depois de o ter visto, bêbedo que nem um cacho, assediar sem dó nem
piedade uma rapariga, prometi a mim mesmo que, houvesse o que
houvesse, nunca me abriria com ele.
Circulavam várias histórias acerca de Nagasawa. A acreditar numa delas,
teria engolido três lesmas sem pestanejar. A outra era que tinha um pénis
enorme; e a terceira era que já fora para a cama com mais de uma centena
de mulheres.
O episódio das lesmas era verdade. Ele próprio mo confirmou.
− Sim, engoli três lesmas gigantescas.
− O que te levou a fazer semelhante coisa?
− É uma longa história – explicou ele. – Foi no ano em que cá cheguei.
Havia uma grande rivalidade entre caloiros e veteranos. Se bem me lembro,
aconteceu em setembro. Na qualidade de representante dos caloiros, coube-
me falar com os veteranos. Uns sujeitos ligados à extrema-direita, armados
de espadas de madeira, como os samurais. Mostraram-se irredutíveis. Então
disse-lhes que faria tudo o que eles quisessem para colocar um ponto final
naquela questiúncula. Aceitaram na condição de eu comer as lesmas.
Concordei. Portanto, comi três lesmas descomunais que puseram diante de
mim.
− Qual foi a sensação?
− A sensação? O que sente qualquer pessoa que se veja obrigada a engolir
moluscos daqueles. Só experimentando... As lesmas deslizaram pela minha
garganta, direitinhas ao estômago. Uma sensação asquerosa, realmente
repugnante! Além de estarem frias, deixam na boca um sabor horrível.
Ainda hoje fico arrepiado só de me lembrar. Tive de fazer um esforço
titânico para não cuspir tudo. Se vomitasse, ter-me-iam obrigado a novo
ordálio.
− E o que aconteceu a seguir?
− Voltei para o meu quarto e bebi quantidades industriais de água salgada
– respondeu Nagasawa. – Que outra coisa podia fazer?
− Sim, claro – reconheci.
− Mas a verdade é que, depois desse episódio, mais ninguém se meteu
comigo. Nem sequer os mais velhos. Era eu o único capaz de semelhante
proeza.
− Tenho a certeza disso.
Verificar o tamanho do pénis foi relativamente fácil. Bastou-me tomar
duche ao lado dele, na casa de banho coletiva. De facto, tinha um marsápio
descomunal. Em contrapartida, a história de que teria dormido com
centenas de miúdas pecava por exagero. Depois de refletir um pouco,
confessou-me que o número devia andar à volta de setenta e cinco. Não se
lembrava ao certo, por isso achou por bem arredondar para setenta. Quando
lhe contei que só fora para a cama com uma única rapariga, afiançou-me
que seria facílimo remediar a situação.
− Um dia destes, saímos juntos. Vais ver como consegues os teus intentos.
Não o levei a sério, mas aconteceu que ele tinha razão. De tão fácil, a
coisa quase perdia o interesse. Entrávamos num bar de Shibuya ou de
Shinjuku (regra geral, os mesmos estaminés), escolhíamos duas miúdas que
nos agradassem (o mundo está repleto de raparigas que saem aos pares),
tomávamos uma bebida juntos e íamos para um hotel qualquer ter sexo. O
que não faltava ao meu amigo era lábia. Não dizia nada de especialmente
importante, mas, ao ouvi-lo, as mulheres rendiam-se por completo,
mostravam-se encantadas, perdiam a conta ao que bebiam e acabavam na
cama com ele. Mais a mais, estamos a falar de um rapaz bonito, amável e
inteligente, o que era meio caminho andado para se sentirem bem na sua
companhia. E, pelos vistos, também me achavam a mim fascinante, pelo
simples facto de me encontrar na companhia dele. Quando, solicitado por
Nagasawa, eu abria a boca e dizia de minha justiça, as jovens manifestavam
interesse e riam-se, encantadas da vida, tal como faziam com o meu amigo.
Devia isso ao encanto natural de Nagasawa, que não parava de me
surpreender. Comparado com ele, os dotes de conversador de Kizuki
pareciam uma brincadeira de criança. Convenhamos que era outro
campeonato! Por mais fascínio que o poder de Nagasawa exercesse sobre a
minha pessoa, sentia saudades de Kizuki. Um companheiro leal e um
verdadeiro amigo do peito, não me cansava de repetir. Alguém que
partilhava o talento unicamente com Naoko e comigo. Nagasawa, pelo
contrário, alardeava o seu engenho ao deus-dará. No fundo, estava pouco
interessado em dormir com todas as raparigas que lhe apareciam à frente.
Para ele, aquilo não passava de um jogo.
Pela parte que me tocava, não me agradava muito a ideia de dormir com
uma desconhecida. Era uma forma cómoda de satisfazer o desejo sexual,
claro, e gostava de ter uma mulher nos meus braços e das carícias trocadas,
mas odiava acordar no dia seguinte ao lado de uma estranha, num quarto
que tresandava a álcool e que continha todos os elementos de gosto
duvidoso típicos dos love hotels, das lâmpadas aos cortinados, e, ainda por
cima, estando eu com o espírito embotado devido à ressaca. A seguir, a
rapariga despertava e punha-se a procurar a roupa em tudo quanto era canto.
Depois, enquanto calçava as meias, perguntava: «Tomaste precauções
ontem à noite? Olha que eu estava naquela altura do mês...» Então, à frente
do espelho, punha batom nos lábios ou pestanas postiças, enquanto se
queixava de dores de cabeça ou de não conseguir pintar-se decentemente.
Era a parte que eu mais detestava. Preferia mil vezes não ficar até à manhã
seguinte, mas não podia seduzir uma mulher e contar com ela para fechar a
loja à meia-noite (era humanamente impossível); por isso, não me restava
outra alternativa senão passar a noite no quarto de hotel (ainda por cima,
tinha de pedir autorização!) e regressar à residência desiludido e a odiar-me,
encadeado pela luz matinal e com a boca pastosa, a saber a manga de capote
encharcado.
Após três ou quatro experiências daquele género, perguntei a Nagasawa
se ele não sentia um vazio enorme por já ter feito aquilo setenta vezes.
− Bom sinal. Se te sentes um homem vazio, isso só prova que és um tipo
honesto – respondeu ele. – Não ganhamos nada em ir para a cama com
perfeitas desconhecidas. Além de cansativo, acabamos por nos detestar a
nós próprios. Também acontece comigo, acredita.
− Então, porque é que insistes?
− É difícil explicar. Lembras-te do livro que o Dostoiévski escreveu sobre
o jogo e os jogadores? Pois bem, neste caso passa-se o mesmo. Que é como
quem diz, quando à nossa volta tudo são oportunidades, é muito difícil
fechar os olhos e não aproveitar. Compreendes?
− Mais ou menos – respondi.
− O Sol põe-se. As raparigas saem à noite para dar uma volta e beber um
copo. Andam à procura de uma coisa que eu lhes posso dar. Tão simples
como abrir a torneira para beber água. Mal damos por elas, caem no nosso
colo, e é isso que pretendem, no fundo. Serias capaz de deixar escapar a
oportunidade? Tendo tu os meios para tal, passarias ao lado de uma ocasião
única?
− Não sei. Nunca me encontrei nessa situação. Nem sequer consigo
imaginar – disse eu, a rir.
− De certa maneira, invejo-te – concluiu Nagasawa.
Verdade seja dita que a razão pela qual Nagasawa se encontrava a viver
numa residência de estudantes, apesar de ser herdeiro de uma família
abastada, estava diretamente relacionada com as suas aventuras amorosas.
Receando que ele levasse uma vida de libertino pelo facto de viver sozinho
em Tóquio, o pai exigira que o filho permanecesse numa residência
estudantil durante os quatro anos do curso. Para Nagasawa era igual ao
litro. Levava a vida que bem queria, sem ligar nenhuma às normas. Quando
lhe dava na real gana, pedia autorização para passar a noite fora e ia à caça
de mulheres, ou dormia no apartamento de um amigo. Conseguir a dita
autorização não era fácil, mas, pelos vistos, tinha uma espécie de livre-
trânsito permanente, e o mesmo acontecia comigo, desde que fosse ele a
fazer o pedido.
Nagasawa tinha uma namorada fixa, com a qual saía desde que entrara
para a faculdade. Chamava-se Hatsumi e eram os dois da mesma idade.
Uma rapariga muito simpática, sem ser propriamente uma beldade.
Chegámos a encontrar-nos os três por mais de uma vez. A princípio,
perguntei a mim mesmo o que teria levado um tipo como Nagasawa a
escolher uma jovem como ela, dona de uma beleza que não fazia virar as
cabeças e com um aspeto comum, mas o certo é que bastava trocar meia
dúzia de palavras para nos rendemos. Era esse género de rapariga. Doce,
inteligente, com sentido de humor, atenta aos outros e sempre vestida com
elegância. Gostava imenso dela e imaginava que, se tivesse alguém como
Hatsumi na minha vida, seria incapaz de ir para a cama com outras
mulheres desprovidas de qualquer atrativo. Por seu turno, ela também
simpatizava comigo e insistia em apresentar-me às amigas, organizando
encontros duplos a torto e a direito, mas eu, que não estava interessado em
repetir os erros do passado, arranjava sempre uma desculpa para me safar. A
universidade feminina onde andava Hatsumi era famosa por ser frequentada
por filhas de boas famílias, e era pouco provável que eu tivesse assunto para
elas.
Embora soubesse vagamente que Nagasawa ia para a cama com outras,
Hatsumi nunca se queixou. Amava-o loucamente, e longe das suas
intenções exercer pressão sobre o namorado.
− Não mereço uma mulher como ela – dizia Nagasawa.
Nesse ponto, estávamos os dois de acordo.
***
No inverno, comecei a trabalhar a tempo parcial numa pequena loja de
discos. Apesar de receber pouco, o trabalho agradava-me e não exigia
grande esforço, considerando que só precisavam dos meus serviços três
noites por semana. Quanto mais não fosse, podia adquirir discos com
desconto. Por altura do Natal, comprei um álbum de Henry Mancini para
dar a Naoko, aquele que incluía a canção «Dear Heart», a sua preferida. Eu
mesmo embrulhei o disco e lhe pus um bonito laço vermelho. Naoko
ofereceu-me um par de luvas. Os polegares ficavam um nadinha curtos, mas
sempre serviam os dedos quentes.
− Desculpa. Sou mesmo desajeitada – disse ela, corando.
− Nada disso. Servem-me perfeitamente – respondi, mostrando-lhe as
luvas postas.
− Pelo menos, não vais precisar de andar com as mãos nos bolsos... –
acrescentou ela.
Nesse inverno, Naoko não regressou a Kōbe durante as férias. Quanto a
mim, continuei a trabalhar até ao fim do ano, acabando por ficar em Tóquio.
Não tinha nada de especial à minha espera em Kōbe, nem ninguém que me
apetecesse especialmente ver. Uma vez que o refeitório estava encerrado
durante aquele período das festas, fazia as minhas refeições em casa dela.
No Ano Novo, preparámos os dois uma refeição simples, à base de mochi e
de zōni12.
Entre janeiro e fevereiro de 1969, muita coisa aconteceu.
No fim de janeiro, o Facho caiu à cama com quase quarenta graus de
febre. Por causa disso, fui obrigado a desmarcar um encontro com Naoko.
Vira-me e desejara-me para arranjar dois convites grátis para um concerto
de música clássica e desafiara-a. Ela estava ansiosa porque a orquestra
sinfónica interpretava a Quarta Sinfonia de Brahms, uma das suas peças
preferidas. No entanto, com o Facho a rebolar na cama, dando a impressão
de estar a morrer aos bocadinhos, não podia de modo algum abandoná-lo.
Tão-pouco consegui arranjar uma boa alma disposta a tomar conta dele.
Comprei gelo e enchi vários sacos de plástico, humedeci uma toalha para
secar o suor, medi a temperatura de hora a hora e cheguei até a mudar-lhe o
casaco do pijama. A febre não baixou durante todo o dia. Na manhã
seguinte, levantou-se da cama e começou a fazer a sua ginástica como se
não fosse nada com ele. Quando tirou a temperatura, tinha trinta e seis e
dois. Decididamente, aquele rapaz não pertencia à classe dos humanos.
− Que estranho! Foi a primeira vez que tive febre – disse o Facho, como
se a culpa fosse minha.
− Pois eu garanto-te que estavas cheio de febre – retorqui, irritado,
acenando-lhe com os dois bilhetes desperdiçados.
− Ainda bem que eram convites – comentou ele.
Apeteceu-me agarrar no rádio e atirá-lo pela janela, mas doía-me a cabeça
e acabei por me enfiar na cama.
Durante o mês de fevereiro nevou por mais de uma vez.
Quase no fim do mês, envolvi-me numa briga estúpida com um aluno
mais velho que morava no mesmo andar e preguei-lhe um valente murro.
Resultado: ele bateu com a cabeça na parede de cimento. Por sorte, o golpe
não teve consequências graves e Nagasawa saiu em minha defesa. Isso não
impediu que eu fosse chamado ao gabinete do diretor, saindo de lá com uma
advertência. Depois desse episódio, acabou-se a boa vida na residência.
E assim chegou ao termo o ano letivo e começou a primavera. Devido à
falta de créditos em certas disciplinas, vi-me obrigado a desistir de várias
cadeiras. As minhas notas foram medíocres: quase tudo «C» e «D», com um
ou outro «B». Naoko passou para o segundo ano a tudo. Chegara ao fim o
ciclo das quatro estações.
***
Naoko festejou os seus vinte anos em meados de abril. Uma vez que nasci
em novembro, ela era sete meses mais velha do que eu. Fazia-me uma certa
espécie que ela tivesse vinte anos. Era como se fosse normal vivermos
eternamente entre os dezoito e os dezanove anos. Mas a verdade é que
completara vinte anos. E o mesmo aconteceria comigo, quando chegasse o
outono. Só os mortos é que tinham (acho) dezassete anos para sempre.
No dia do aniversário de Naoko, a chuva marcou presença. Depois das
aulas, comprei um bolo perto da universidade, meti-me no comboio e fui
até ao seu apartamento. Atendendo à data especial, tinha-lhe sugerido que
comemorássemos o dia de anos. Gostaria que ela fizesse o mesmo em
relação a mim. Deve ser muito triste uma pessoa passar o seu vigésimo
aniversário sozinha. O comboio estava apinhado de gente e as carruagens
oscilavam perigosamente. Quando cheguei a casa dela, o bolo de anos mais
parecia as ruínas do Coliseu romano. Mesmo assim, enfeitei-o com as vinte
velas que tinha levado, acendi um fósforo e, após correr as cortinas e apagar
a luz, criou-se ali uma digna atmosfera festiva. Naoko abriu uma garrafa de
vinho. Bebemos, comemos bolo e preparámos um jantar simples.
− Não sei porquê, mas acho uma estupidez fazer vinte anos – observou
ela. – Confesso que não estou preparada. Parece que alguém me empurra
pelas costas e me obriga a avançar.
− Ainda me faltam sete meses – respondi eu. – Tenho tempo de sobra para
me preparar.
− Tens sorte de ainda só ter dezanove anos – disse ela, cheia de inveja.
No decorrer do jantar, contei-lhe que o Facho tinha comprado uma
camisola nova. Até aí, andava sempre com o mesmo pulôver (o tal azul-
marinho, que fazia parte do uniforme). Era uma bonita camisola de malha
vermelha e preta, com um cervo bordado, mas quando o meu camarada
aparecia com ela vestida, toda a gente fazia troça dele. O Facho não
percebia o porquê da gargalhada geral.
«Diz-me uma coisa, Tōru Watanabe, qual é a graça?», perguntou-me ele,
sentando ao meu lado no refeitório. «Tenho alguma coisa na cara?»
«Não, confesso que não vejo nada de estranho», respondi, procurando
abafar o riso.
«Obrigado», agradeceu o Facho, todo satisfeito.
Naoko divertiu-se à brava com esta história.
− Quem me dera tê-lo conhecido. Nem que fosse apenas uma vez.
− Impossível. Bastaria olhares para ele e partias-te a rir.
− Achas que sim?
− Aposto o que quiseres. Até eu, que convivo diariamente com ele, tenho
dificuldade em conter o riso.
Após a refeição, levantámos a mesa e sentámo-nos no chão, a ouvir
música e saboreando o resto do vinho. Naoko bebeu dois copos, eu fiquei-
me por um.
Ao contrário do que era costume, Naoko fartou-se de conversar. Falou
acerca da sua infância, dos estudos, da família. Cada um dos temas mereceu
da parte dela um longo relato, repleto de pormenores, como uma miniatura.
Fiquei ali a ouvi-la discorrer, maravilhado com a sua capacidade de
armazenar recordações. A determinada altura, comecei a perceber que havia
algo de errado na sua forma de falar. Qualquer coisa de estranho, que soava
pouco natural e distorcido aos meus ouvidos. As histórias tinham princípio,
meio e fim; o que falhava era a relação entre cada uma delas. A história A
transformava-se, de repente, na história B, que fazia parte da história A;
depois, passava da história B à história C, implícita na história B, e assim
por diante, indefinidamente. De início, esforcei-me por acompanhar o fio à
meada, mas não tardei a dar-me por vencido. Pus a tocar um trinta e três
rotações e, quando a música chegou ao fim, levantei o braço da agulha e
troquei de disco. Naoko só tinha meia dúzia de álbuns: o primeiro do rol era
Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band e o último Waltz for Debbie,
de Bill Evans. Através das janelas, a chuva continuava a cair. O tempo
passava lentamente enquanto ela continuava com o seu monólogo.
A artificialidade do discurso devia-se, porventura, ao hábito que Naoko
tinha de abordar uma série de assuntos, sem no entanto aprofundar as
questões. Um dos temas, escusado será dizer, era Kizuki, mas palpitava-me
que não era o único. Por se tratar da primeira vez que a ouvia falar com
entusiasmo de alguma coisa, deixei-a dar livre curso às suas emoções.
Quando o relógio assinalou as onze da noite, comecei a ficar nervoso.
Naoko falara sem interrupções durante mais de quatro horas. Havia duas
coisas que me preocupavam: o horário do último comboio e a hora de a
residência encerrar as portas. Num momento que me pareceu adequado,
interrompia-a:
− Vou ter de me ir embora, senão arrisco-me a perder o último comboio –
disse eu, olhando para o relógio.
Pelos vistos, as minhas palavras não surtiram o desejado efeito. Ou então,
se as ouviu, fez ouvidos de mercadora. Calou-se por instantes, mas
recomeçou a falar logo a seguir. Desisti, mudei de posição e escorropichei a
segunda garrafa de vinho. Naquelas circunstâncias, pensei para comigo, o
melhor seria deixá-la desabafar. Quanto ao último comboio, ao toque de
recolher na residência de estudantes e ao resto, entreguei-me nas mãos do
destino.
Naoko não prolongou o relato por muito mais. Subitamente, calou-se. No
ar flutuaram fragmentos das derradeiras sílabas, como que arrancadas de
algum lugar. Em bom rigor, a conversa não chegara ao fim. Evaporara-se,
por assim dizer. Ela bem tentou continuar, mas algo ficara pelo caminho.
Talvez tivesse sido eu o responsável por isso, quem sabe? Se calhar, as
minhas palavras tinham acabado por chegar até ela, deixando-a sem
vontade de continuar. Com os lábios entreabertos, Naoko olhava fixamente
para mim. Fazia lembrar uma máquina que tivesse deixado de funcionar por
falta de energia. Tinha os olhos cobertos por uma ligeira membrana opaca.
− Desculpa, não quis interromper-te – disse eu. – Mas está a fazer-se
tarde e...
As lágrimas vieram-lhe aos olhos e correram pelas faces, produzindo um
som surdo ao caírem sobre a capa de um dos discos de vinil. Depois de ter
aberto a torneira, rompeu num pranto convulsivo. Chorava toda curvada
para a frente, apoiando as mãos no chão, como se estivesse prestes a
vomitar. Foi a primeira vez que vi alguém soluçar de forma tão violenta.
Estendi o braço e toquei-lhe no ombro, que tremia, sacudido por pequenos
espasmos. Quase inconscientemente, abracei-a. Agarrada a mim, Naoko
continuou a chorar de forma silenciosa. A minha camisa ficou húmida,
primeiro, e depois empapada com as suas lágrimas e o sopro quente da sua
respiração. Os dedos de Naoko percorreram as minhas costas como se
procurassem alguma coisa, uma coisa importante que sempre ali estivera. A
segurá-la com a mão esquerda, acariciei-lhe os cabelos lisos e sedosos com
a direita. Permaneci nessa posição durante muito tempo, na esperança de
que ela parasse de chorar. Mas o choro não parou.
Nessa noite, dormi com Naoko. Não sei dizer se fiz bem ou mal. Ainda
hoje, passados quase vinte anos, confesso que não tenho a certeza. O mais
provável é nunca vir a saber. Naquele momento, porém, não podia fazer
outra coisa. Ela mostrava-se extremamente nervosa, pedindo-me que a
abraçasse. Apaguei a luz do quarto e despi-a lentamente, com ternura; a
seguir, tirei a minha própria roupa. Abraçámo-nos. Apesar da noite tépida e
de estarmos nus, não sentíamos frio. Às escuras, explorámos em silêncio os
nossos corpos. Beijei-a e envolvi suavemente os seus seios macios com as
mãos. Naoko segurou no meu pénis duro. A vagina dela estava húmida e
morna, pronta para me receber.
Apesar disso, sentiu uma forte dor quando a penetrei. Perguntei-lhe se era
a primeira vez, e ela assentiu. Quem ficou confuso fui eu. Sempre pensara
que ela tinha ido para a cama com Kizuki. Enfiei o pénis ainda mais fundo,
permaneci imóvel, abraçado a ela. Quando pressenti que se tinha acalmado,
comecei a mexer-me devagar e aguentei o mais possível até ejacular. No
fim, Naoko agarrou-se a mim com força e gritou. De todos os gritos que
penetraram nos meus ouvidos durante o momento do orgasmo, o dela foi o
mais triste.
Após tudo ter terminado, perguntei-lhe por que razão nunca fizera amor
com Kizuki. Foi um erro da minha parte. Naoko afastou os braços do meu
corpo e começou a chorar de mansinho. Fui ao armário da roupa buscar o
futon e deitei-a em cima dele. A seguir, fumei um cigarro, observando a
chuva de abril que caía, inclemente, lá fora.
***
***
Uma semana mais tarde, continuava sem notícias. Dado que Naoko não
tinha telefone em casa, no domingo seguinte peguei em mim e resolvi ir até
Kokubunji. Não se encontrava no apartamento e a placa com o seu nome
fora arrancada da porta. Janelas e estores estavam completamente fechados.
Quando perguntei por ela ao porteiro, este respondeu-me que Naoko se
mudara três dias antes e que não fazia a mínima ideia do seu destino.
Regressei a casa e escrevi-lhe uma longa carta para a direção de Kōbe.
Independentemente do sítio onde ela estivesse a morar, por certo que os pais
lhe fariam chegar a missiva às mãos.
Na carta disse-lhe tudo o que me ia na alma. Havia uma data de coisas
que eu não entendia e, embora me esforçasse por compreendê-las, precisava
de tempo. Não fazia a mínima ideia de onde me encontraria quando o
momento chegasse. Por enquanto, tudo aquilo representava uma incógnita
para mim. Como nos conhecíamos mal, não podia prometer nem pedir
nada. Mas, se ela me concedesse mais tempo, faria os possíveis e os
impossíveis para aprofundarmos a nossa relação. De qualquer forma, queria
encontrar-me com ela de novo e conversar calmamente. Desde a morte de
Kizuki, perdera a única pessoa com quem podia desabafar, e Naoko
provavelmente sentia a mesma coisa. A necessidade que tínhamos um do
outro era maior do que poderíamos pensar. Graças a isso, acabáramos por
seguir a estrada mais longa para chegar onde nos encontrávamos. Num
certo sentido, algo se perdera pelo caminho. Talvez eu não devesse ter feito
o que fizera, mas não podia ter agido de outro modo. Confessei-lhe que
nunca sentira por ninguém a ternura e a sensação de intimidade ela me
proporcionava. Ficaria à espera de uma resposta. Precisava de uma resposta.
Pouco importava o teor da mesma. Era mais ou menos o que dizia na carta.
Não recebi resposta.
Sentia-me como se alguma coisa dentro de mim se tivesse desintegrado,
deixando no coração um grande vazio. O meu corpo revelava uma ligeireza
invulgar e, em simultâneo, uma espécie de ressonância oca. Frequentava a
universidade com maior assiduidade. Apesar de as aulas serem aborrecidas
até dizer basta e de não alimentar qualquer diálogo com os meus colegas,
não tinha mais nada para fazer. Sentado na extremidade da primeira fila,
seguia a aula, não trocava uma palavra com ninguém, fazia as minhas
refeições sozinho. Até deixei de fumar.
No final de maio, a universidade entrou em greve. «Abaixo a
universidade», gritavam os estudantes. Isso, acabem com ela, pensei.
Destruam-na de uma vez por todas. Façam-na em fanicos e reduzam-na a
um monte de pó e escombros. Pouco me importa. Se isso acontecer, será um
alívio. Mais, se precisarem da minha ajuda, contem comigo. Avante,
camaradas.
Com o campus ocupado e as aulas suspensas, comecei a trabalhar a
tempo parcial numa empresa de transportes. Viajava no camião, ao lado do
condutor, e estava incumbido de carregar e descarregar a mercadoria. O
trabalho era muito mais duro do que imaginara. Doía-me tanto o corpo, a
princípio, que mal me conseguia arrancar da cama de manhã. Mas o
ordenado compensava o esforço e, enquanto estava ocupado, conseguia
esquecer o vazio dentro de mim. Trabalhava cinco dias por semana na
transportadora e três noites na loja de discos. Nas noites em que estava de
folga, ficava no quarto a ler e a beber uísque. O meu amigo Facho, que era
abstémio, mostrava-se sobremaneira sensível ao cheiro do álcool. Quando
me viu deitado na cama a saborear um uísque puro, queixou-se
amargamente de não conseguir estudar com aquele pivete e convidou-me a
ir beber lá para fora.
− Vai tu – disse eu.
− Ma-mas é proibido beber álcool na residência. São as regras – insistiu
ele.
− Se não estás bem, muda-te – repeti.
Calou-se. A cena irritou-me supinamente. Ato contínuo, subi para o
terraço, onde podia beber à vontade.
Em junho, escrevi outra longa carta a Naoko e enviei-a de novo para a
casa da sua família, em Kōbe. O conteúdo não era diferente da mensagem
anterior. Para acabar, acrescentei que se tornava muito penoso esperar por
uma resposta que nunca mais chegava e que pretendia apenas certificar-me
de que não ferira os sentimentos dela. Assim que pus a carta no correio,
senti o vazio do meu coração aumentar um tudo-nada.
Durante o mês de junho, saí com Nagasawa duas vezes e fui para a cama
com duas raparigas. Foi facílimo, de ambas as ocasiões. Uma delas resistiu
violentamente quando tentei despi-la – estávamos no quarto do hotel –, mas
bastou-me começar a ler um livro na cama e ela chegou-se logo a mim. A
outra, depois de fazer amor, quis saber tudo e mais alguma coisa acerca da
minha pessoa: com quantas mulheres já tinha ido para a cama, onde
nascera, em que universidade andava a estudar, de que género de música
gostava, se lera algum romance de Osamu Dazai13, para que país estrangeiro
gostaria de viajar, se eu achava que ela tinha os mamilos demasiado grandes
em relação às outras, e por aí fora. Respondi-lhe o que me veio à cabeça
antes de adormecer. Ao acordar, anunciou que gostaria de tomar o pequeno-
almoço na minha companhia. Fui com ela a uma cafetaria e aí tivemos
direito à ementa fixa do dia: uns ovos intragáveis, umas torradas péssimas e
um café pavoroso. Durante a refeição, prosseguiu com o interrogatório.
Qual a profissão do meu pai, se tivera boas notas no secundário, em que
mês nascera, se alguma vez comera carne de rã. Começou a doer-me a
cabeça. Mal o pequeno-almoço chegou ao fim, disse-lhe que tinha de ir
trabalhar.
− Achas que voltamos a ver-nos? – quis ela saber, com uma certa
melancolia.
− De certeza que sim – respondi eu, e assim nos separámos.
Mas o que andas tu a fazer?, perguntei a mim mesmo, incomodado. Não
devia ter feito aquilo, mas não conseguia evitá-lo. O meu corpo, faminto,
estava sedento de outro corpo, um corpo de mulher. Mas quando me
encontrava na cama com elas, passava o tempo todo a pensar em Naoko. Na
palidez do seu corpo nu recortando-se no escuro, na respiração acelerada, e
até no barulho da chuva. Quanto mais pensava nela, mais fome sentia, mais
sede tinha. Fui até ao terraço beber um uísque, e a pergunta persistia: Mas o
que andas tu a fazer?
Recebi uma carta de Naoko nos primeiros dias de julho. Era muito curta.
Reli a carta mais de cem vezes. De cada vez que a lia, invadia-me uma
tristeza insuportável. A mesma que sentia quando Naoko me fitava olhos
nos olhos. Era uma sensação de profundo desconsolo, e impossível de adiar,
de esconder. Não tinha contorno nem peso, à imagem e semelhança do
vento que passa aflorando o corpo. De tão impalpável, nem sequer
conseguia aconchegar-me nela. A paisagem deslizava devagar à minha
volta. As palavras dos outros, porém, não me chegavam aos ouvidos.
Passava as noites de sábado sentado na entrada, fiel aos meus hábitos.
Não se podia dizer que estivesse à espera de um telefonema, mas não tinha
mais nada para fazer. Acendia o televisor e, pelo menos, sempre fingia que
estava a ver o jogo de basebol. Dividia ao meio o espaço
incomensuravelmente vazio entre o aparelho de televisão e eu, dividindo de
novo cada metade, e assim sucessivamente, até criar um espaço
suficientemente pequeno que coubesse na palma da minha mão.
Às dez da noite, desligava a televisão, voltava para o quarto e caía nos
braços de Morfeu.
***
***
12 Mochi é uma torta de arroz, e zōni, um caldo com arroz. São pratos típicos do Ano Novo. (N. da
T.)
13 Osamu Dazai (1901-1948), escritor maior e figura de culto da geração do pós-guerra, autor de
Não-Humano (Ningen shikkaku), romance autobiográfico e, porventura, a sua obra-prima, publicado
em 2014 pela editora Cavalo de Ferro com tradução de Ana Neto. (N. da T.)
Durante as férias de verão, a universidade requisitou a intervenção das
forças de segurança pública. Resultado: os polícias trataram de derrubar as
barricadas e de prender os estudantes que se encontravam refugiados no
interior do campus. Não era nada de novo. Acontecia o mesmo um pouco
por toda a parte. Apesar disso, a universidade ainda se mantinha de pedra e
cal. Um grande volume de investimentos fora canalizado para as
instituições de ensino superior, e não era a violência de um punhado de
estudantes que conduziria ao desmantelamento da instituição. Não se podia
dizer que os revoltosos pretendessem destruí-la. Os estudantes procuravam
apenas modificar o equilíbrio na gestão universitária, o que não me dizia
rigorosamente nada. Por isso, quando a greve foi cancelada, não
experimentei uma emoção fora do vulgar.
Quando regressei às aulas, em setembro, ia à espera de encontrar a
universidade quase em ruínas, mas verifiquei que estava intacta. Os livros
da biblioteca não haviam sido saqueados, e os estudantes não tinham
destruído as salas dos professores nem incendiado a associação. Fiquei
estupefacto. Afinal de contas, o que foi que andaram a fazer durante todo
este tempo?, perguntei a mim próprio.
Mal as aulas foram retomadas, após o fim da greve e a entrada em cena
das forças antimotim, os primeiros a comparecer na universidade foram os
alunos que tinham liderado o movimento de revolta. Compareciam às aulas,
tomavam apontamentos e respondiam à chamada como se não fosse nada
com eles. A bem dizer, era um bocado estranho, uma vez que ninguém tinha
desconvocado a greve... Pura e simplesmente, a universidade solicitara a
presença das tropas de choque, esperando que estas destruíssem as
barricadas, mas, em teoria, o movimento grevista continuava ativo. Refiro-
me concretamente àqueles que, ao votarem no início a favor da greve,
tinham liderado as hostes com os seus discursos inflamados e truculentos,
atacando tudo e todos, sobretudo os estudantes que não haviam aderido à
greve (ou que manifestavam algumas reservas). Fui ter com eles e
perguntei-lhes porque iam às aulas, em vez de prosseguirem com a greve.
Foram incapazes de me responder. O mais provável era terem medo de
perder os créditos por falta de comparência. Aquilo custou-me a engolir.
Não deixa de ser irónico, pensei, que sejam os mesmos indivíduos
apostados em apelar ao desmantelamento da universidade. Bastava o vento
mudar ligeiramente de direção e os gritos deles transformavam-se em
sussurros.
Como podes ver, Kizuki, disse para comigo, este mundo é uma merda!
Estamos a falar de gentinha que não tem problemas em sacar boas notas nos
exames e que, assim que começar a trabalhar, tudo fará para construir uma
sociedade podre e perigosa.
Durante um período, optei por não responder à chamada e não ligar
quando passavam a lista de presenças. Sabia perfeitamente que tal não
abonaria a meu favor, mas fazia com que me sentisse melhor. Escusado será
dizer que a minha tomada de posição reforçou o meu isolamento junto da
classe estudantil. Deixaram de me dirigir a palavra, e eu não falava com
ninguém.
***
***
***
***
Na quarta-feira, por volta do meio-dia, Midori não apareceu conforme
combinado. Pensei em esperar um bocado enquanto tomava uma cerveja,
mas o restaurante começou a encher-se e não tive outra hipótese senão
encomendar e almoçar sozinho. Acabei de comer eram vinte e cinco para a
uma. Midori ainda não dera um ar da sua graça. Saí depois de pagar e
sentei-me nas escadas de pedra de um pequeno santuário, do outro lado da
rua, enquanto esperava que o efeito do álcool passasse. A páginas tantas,
desisti. Regressei à universidade e fui ler para a biblioteca. Às duas, assisti
à aula de Alemão.
Depois da aula, fui até à associação, consultei a lista dos alunos
matriculados e encontrei o nome dela na turma de História do Teatro II.
Havia apenas uma Midori, de nome completo Midori Kobayashi, entre os
estudantes inscritos no ano de 1969. Tomei nota da morada e do número de
telefone. Morava em casa dos pais, nos arredores de Toshima. Entrei numa
cabina telefónica e liguei-lhe.
− Livraria Kobayashi? – respondeu-me uma voz de homem.
Livraria Kobayashi?
− Desculpe incomodar, mas posso falar com a Midori? – perguntei.
− A Midori não está – respondeu o meu interlocutor.
− Sabe dizer-me se terá ido à universidade?
− Não lhe sei dizer. Julgo que estará no hospital. Quem fala?
Agradeci sem me apresentar e desliguei. Hospital? Estaria doente ou ter-
lhe-ia acontecido alguma coisa? No entanto, não detetara qualquer tensão
associada a uma emergência na voz do homem. «Não lhe sei dizer. Julgo
que estará no hospital», tinha dito. Tudo indicava que o hospital fazia parte
da sua vida quotidiana. Como quem diz: «Foi à pesca.» Fiquei um bom
bocado a meditar naquilo, mas acabei por me fartar e regressei à residência.
Deitado na cama, acabei de ler Lord Jim, romance de Joseph Conrad que
Nagasawa me tinha emprestado. A seguir, fui ter com ele a fim de lho
devolver.
Uma vez que Nagasawa se preparava para ir jantar, decidi fazer-lhe
companhia.
Perguntei como lhe tinham corrido os exames no Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A segunda fase dos exames realizara-se em agosto.
− O costume – respondeu-me como se não fosse nada com ele. – Com
uma perna às costas. Apareces, fazes a mesma coisa de sempre, e és
aprovado. Discussão de grupo, entrevistas... Não é mais complicado do que
andar atrás de uma miúda.
− Sendo assim, estou a ver que foi canja. Quando é que saem os
resultados?
− No início de outubro. Se for admitido, convido-te para um jantar de
arromba.
− Diz-me uma coisa. De que consta exatamente essa segunda fase dos
exames de acesso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros? Os outros
candidatos que se apresentam a exame são como tu?
− Estás louco! Regra geral, não passam de uma cambada de cretinos. Para
não dizer imbecis ou desequilibrados. Dessa malta que aspira a fazer
carreira no aparelho de Estado, noventa e cinco por cento não passam de
lixo. Não é mentira nenhuma. São tudo pessoas que mal sabem ler e
escrever.
− Nesse caso, porque é que queres entrar para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros?
− Por várias razões – declarou Nagasawa. – Em parte, tenho vontade de
trabalhar num outro país. Mas, acima de tudo, interessa-me testar as minhas
capacidades. Quero ver até onde posso ir a trabalhar para a organização
mais poderosa, ou seja, o Estado. Até onde é que conseguirei chegar no
interior dessa enorme máquina administrativa e burocrática. Compreendes a
minha posição?
− Parece uma espécie de jogo.
− Exato. Não ambiciono dinheiro nem poder. Talvez não passe de um
egoísta, mas juro que sou um gajo completamente destituído de ambição e
desejo de poder. O que me move é a curiosidade. Sou curioso, pronto. E,
além disso, quero testar a minha força neste mundo vasto e cruel.
− E no que diz respeito aos ideais? Calculo que não persigas nenhum em
particular...
− Óbvio que não. Não servem para nada. Necessitamos é de um código
de conduta, e não de um ideal.
− Isso é no teu caso. Não quer dizer que aconteça o mesmo com as outras
pessoas – objetei.
− Não gostas do meu estilo de vida?
− Deixa-te disso – disse eu. – Não é uma questão de gostar ou não gostar.
Eu, por exemplo, não seria capaz de entrar para a Universidade de Tóquio,
nem de dormir com as raparigas que me agradam, só porque tomei essa
decisão. Não possuo o dom da palavra e não me sinto superior aos outros.
Também não tenho namorada. E não é por me licenciar em Literatura numa
universidade privada de segunda categoria que isso me abrirá grandes
portas no futuro... Como poderia eu invejar a tua maneira de viver?
− Quer então dizer que tens inveja da vida que levo?
− Não – respondi. – Estou demasiado habituado à minha vidinha. Além
do mais, para ser franco, não me interessa minimamente frequentar a
Universidade de Tóquio nem trabalhar para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A única coisa que invejo em ti é o facto de teres uma
namorada como a Hatsumi.
Durante um bom bocado, ele continuou a comer em silêncio.
− Sabes, Watanabe – voltou à carga, ao acabar de jantar −, tenho a
impressão de que os nossos caminhos tornarão a cruzar-se daqui a dez ou
vinte anos. E palpita-me que ficaremos ligados de alguma forma.
− Falas como uma personagem saída das páginas de Dickens – declarei, a
rir.
− Tens razão – disse ele, rindo-se também. – Mas olha que os meus
pressentimentos não costumam falhar.
A seguir ao jantar, fomos tomar um copo num bar ali perto. Ficámos a
beber até depois das nove.
− Então, Nagasawa, podes dizer-me qual é o teu modelo de conduta? –
atirei-lhe à queima-roupa.
− Se prometeres que não gozas comigo.
− Prometo – respondi.
− Quero torna-me um perfeito cavalheiro.
Não me ri, mas quase caí da cadeira.
− Um cavalheiro? Compreendi bem o que disseste?
− Sim, um perfeito cavalheiro.
− Mas o que é isso de ser um cavalheiro? Se me deres um exemplo,
agradeço.
− Um cavalheiro é aquele que não faz o que quer, mas sim o que é
necessário.
− És a criatura mais original que encontrei nos dias da minha vida –
afirmei eu.
− E tu és a mais honesta – retorquiu-me ele.
A seguir, pagou a conta dos dois.
***
***
Levou-me até à sua antiga escola secundária, que ficava a escassos minutos
a pé da estação de Yotsuya.
Ao passar diante da estação, vieram-me imediatamente à lembrança os
intermináveis passeio com Naoko. A bem dizer, tudo começara ali. Só então
me dei conta de que a minha existência teria sido muito diferente se não nos
tivéssemos encontrado por acaso na linha de Chūō, naquele domingo de
maio. No minuto seguinte, mudei de opinião: mesmo que não me tivesse
cruzado com ela, o resultado seria igual. Talvez nos tivéssemos encontrado
naquele dia por obra e graça do destino, mas, caso tal não sucedesse,
acabaríamos por nos encontrar, mais cedo ou mais tarde. Nada me garantia,
naturalmente, era apenas a sensação que eu tinha.
Midori Kobayashi e eu sentámo-nos num banco da praça e ficámos a
contemplar o edifício da escola onde ela andara a estudar. As paredes
estavam cobertas de hera e alguns pombos retemperavam forças nos beirais.
Tratava-se de uma construção antiga, com um encanto particular. Havia um
carvalho enorme no jardim e, ao lado, erguia-se uma coluna de fumo
branco, direita ao céu. A claridade do verão fazia sobressair a brancura dos
seus contornos.
− Sabes de onde vem este fumo, Tōru? – perguntou ela do pé para a mão.
Respondi que não sabia.
− Estão a queimar pensos higiénicos.
− Ah, sim? − Não me ocorreu outra coisa para dizer.
− Pensos, tampões – acrescentou Midori, sorrindo. – Toda a gente os atira
para o balde do lixo na casa de banho. Não te esqueças de que é uma escola
de raparigas. O velho zelador recolhe o material do lixo e queima tudo na
incineradora, produzindo esta fumarada que estás a ver.
− Pensando bem, há nisso qualquer coisa de perturbador – comentei.
− Sim, era o que eu pensava de todas as vezes que via esta fumarada pela
janela da sala de aulas. Parecia-me uma coisa ameaçadora. No colégio devia
haver umas mil alunas, somando as turmas todas. Tirando as que ainda não
tinham menstruação, para aí novecentas. Destas, uma em cada cinco estava
menstruada uma vez por mês, o que dá um total de cento e oitenta. Equivale
a dizer que, por dia, iam parar ao lixo os pensos higiénicos usados por essas
cento e oitenta.
− Acredito, apesar de não ser tão bom como tu a fazer contas.
− Sim, é uma quantidade considerável. Os pensos higiénicos de cento e
oitenta rapariguinhas, imagina! Qual será a sensação de recolher tudo isso
para depois ser queimado?
− Não faço a mínima ideia...
Como poderia eu imaginar sequer semelhante coisa? Continuámos os
dois sentados no banquinho, a contemplar o fumo branco.
− Para ser honesta, não gostava nada de andar nesta escola – prosseguiu
Midori, abanando ligeiramente a cabeça. – Preferia ter entrado para uma
escola pública. Uma escola vulgar de Lineu, frequentada por gente normal,
que me permitisse relaxar e divertir-me como qualquer adolescente. Vim
aqui parar por imposição dos meus pais. É a velha história das aparências.
Acontece quando se tem boas notas na escola básica. O professor dá a
conhecer aos pais que o aluno tem capacidade para entrar num determinado
colégio... Foi exatamente o que sucedeu comigo. Andei nesta escola durante
seis anos, mas nunca gostei de cá estar. Durante aquele tempo, só tinha uma
ideia fixa: ir-me embora o mais depressa possível. No final, recebi uma
menção honrosa pela minha assiduidade, apesar de detestar o colégio. E
sabes porquê?
− Não.
− Precisamente por ter um ódio de morte à escola. Foi por isso que nunca
faltei. Não queria dar-me por vencida. Se deixasse que eles me subjugassem
naquele terreno, seria o meu fim. Saindo derrotada, tinha medo de ir cada
vez mais ao fundo. Mesmo quando tinha trinta e nove de febre, pegava em
mim e arrastava-me até às aulas. Caso a professora me perguntasse se eu
estava maldisposta, mentia e dizia que me sentia lindamente. Foi assim,
graças à minha assiduidade, que recebi uma menção honrosa e um
dicionário de francês. Mais tarde, na universidade, inscrevi-me em língua
alemã. Porque não queria sentir que devia alguma coisa àquela escola. Não
estou a brincar!
− Mas porque é que odiavas tanto a escola?
− Tu gostavas da tua?
− Não gostava nem desgostava. Fiz o secundário numa vulgaríssima
escola pública e nunca pensei muito nisso.
– Esta escola – começou Midori − estava reservada à elite. Era aqui que
andavam as meninas bem. E não só: também aquelas que obtinham
melhores notas. Eram todas ricas e filhas das melhores famílias. Não havia
volta a dar. A matrícula era caríssima, sem contar com as inúmeras
solicitações, viagens de estudo, com direito a reservas feitas nos melhores
hotéis de Quioto, onde nos serviam refeições tradicionais em bandejas
lacadas, e, uma vez por ano, a obrigatoriedade de assistir a um curso prático
de boas maneiras à mesa no hotel Ōkura. Como podes ver, não estamos a
falar de uma escola comum. Sabias que, das cento e sessenta alunas do meu
curso, eu era a única que morava em Toshima? Um dia, lembrei-me de dar
uma espreitadela à lista das alunas matriculadas, para saber onde é que
viviam. Fiquei espantada! Tudo nos bairros de Chiyoda-ku Sanban-chō,
Minato-ku Moto-Azabu, Ōta-ku Denenchōfū, Setagata-ku Seijō17... e outros
que tais, lugares chiquérrimos. Havia apenas uma delas que tinha casa em
Chiba-ken18. Tentei fazer amizade com ela. Muito simpática, convidou-me a
ir visitá-la, pedindo desculpa por ser tão longe, e eu disse que sim. Quando
lá cheguei, não queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi preciso um
quarto de hora para darmos a volta à propriedade. Tinha um jardim incrível
com dois cães enormes, alimentados a carne de primeira. E, contudo, aquela
jovem sentia-se complexada pelo facto de viver em Chiba. Uma miúda que
chegava todos os dias à escola num Mercedes com motorista. Um chofer
que usava boné de pala e luvas brancas, como se tivesse saído da série
Green Hornet19. Apesar disso, ela sentia vergonha. Contado não se acredita!
Mostrei-me de acordo com ela.
− Investiguei o assunto e cheguei à conclusão de que eu era a única aluna
da escola que morava em Kita-Ōtsuka, no bairro de Toshima. Como se não
bastasse, no registo da profissão dos pais aparecia «livreiros». Graças a
isso, as outras olhavam para mim como se eu fosse uma espécie de animal
raro. Comentavam que devia ser estupendo poder ler os livros que quisesse.
Imaginavam todas que se tratava de uma livraria enorme, como a
Kinokuniya. Ao ouvirem a palavra «livraria», era a única imagem que lhes
ocorria. Nem sequer lhes passava pela cabeça que uma livraria pudesse ser
um espaço alternativo. Livraria Kobayashi. Pobre da nossa livraria! Abre-se
a porta, soa uma campainha e temos diante de nós pilhas e pilhas de
revistas. As que se vendem como pãezinhos quentes são as revistas
femininas, sobretudo quando trazem suplementos sobre novas técnicas
sexuais ilustradas com quarenta e oito posições. As donas de casa compram
aquilo, sentam-se à mesa da cozinha e desatam a ler avidamente enquanto
esperam que o marido chegue para experimentarem. É inacreditável, não
achas? Não se sabe o que passa pela cabeça dessas mulheres. As que mais
vendem, logo a seguir, são as de manga. Magazine, Sunday, Jump. Sem
esquecer, claro, as publicações semanais. Isto para dizer que, na nossa
livraria, praticamente só existem revistas. Temos um ou outro livro de
bolso, mas nada de excecional. Romances de mistério, obras antigas,
romances cor-de-rosa: é isso que as pessoas compram. Ah, e manuais
práticos. Como Jogar Go, Como Cuidar do Seu Bonsai, Prepare Um
Discurso de Casamento, Tudo o Que Precisa de Saber Sobre Sexo,
Conselhos para Deixar de Fumar, entre outras coisas do estilo. Até artigos
de papelaria vendemos. Ao lado da caixa registadora encontram-se canetas
esferográficas, lápis, cadernos e por aí fora. Só isso. Não encontras lá
Guerra e Paz, Sei-teki Ningen, de Kenzaburō Ōe20, nem sequer À Espera no
Centeio. Esta é a Livraria Kobayashi. Sempre gostaria de saber o que há a
invejar! E tu... Terias inveja de mim?
− Pois, estou a ver.
− Bom, é uma livraria desse género. As pessoas do bairro aparecem e
compram lá os seus livros desde sempre, e existe um serviço de entrega ao
domicílio. Sempre tivemos muitos clientes, o que permitiu alimentar quatro
bocas sem problemas. Não temos dívidas. Os meus pais conseguiram pôr as
duas filhas a estudar na universidade. E pronto. Nunca tivemos dinheiro que
nos permitisse alimentar luxos. A verdade é que não me deveriam ter
inscrito nesta escola. Só serviu para me causar problemas. Sempre que era
necessário fazer um gasto extra, lá tinha eu de ouvir as eternas
recriminações dos meus pais. Quando saía com as colegas e íamos a um
sítio caro, ficava sempre com o coração nas mãos, receando que o dinheiro
não chegasse. Uma vida ingrata, garanto-te. A tua família é rica?
− A minha família? Somos gente de trabalho, nem ricos nem pobres.
Calculo que seja difícil para eles manterem-me a estudar numa universidade
privada de Tóquio, mas sendo filho único, não é grave. Como me enviam
uma mesada modesta, sou obrigado a fazer uns biscates. Moramos numa
casa normalíssima, com um pequeno jardim. Somos donos de um Toyota
Corolla...
− Que trabalho fazes?
− Trabalho três noites por semana numa loja de discos em Shinjuku. Nada
de muito cansativo. Só tenho de ficar ali de pé, a vigiar a loja.
− A sério? – disse Midori. – E eu que pensava que fosses filho de papás
cheios de massa. Não me perguntes porquê. Talvez pela tua aparência.
− Na realidade, nunca passei por grandes necessidades. Mas não ando a
nadar em dinheiro. Imagino que aconteça o mesmo com a maioria das
pessoas.
− Bem, na minha escola, a maioria das pessoas era rica – disse ela,
pousando as mãos nos joelhos, com as palmas para cima.
− O meu problema residia aí.
− De hoje em diante, poderás ver o mundo de maneira diferente.
− Sabes qual é maior vantagem de ser rico? – perguntou ela.
− Não.
− Poder anunciar aos quatro ventos que se tem dinheiro. Por exemplo,
supõe que eu sugiro a uma colega de turma fazermos um programa
qualquer juntas, e ela responde: «Não posso, não tenho dinheiro.» Se
acontecesse a situação inversa, eu jamais poderia dizer o mesmo. Se eu
disser «não posso, não tenho dinheiro», significa que não tenho realmente
dinheiro. Patético! É como uma rapariga bonita dizer: «Hoje não quero sair
de casa porque estou horrorosa.» Se uma miúda feiosa disser isso, toda a
gente desatará a rir. Foi nesse universo que eu vivi durante seis anos, até ao
ano passado.
− Acabarás por te esquecer.
− Espero que isso aconteça quanto antes. Para mim, representou um
alívio entrar na faculdade. Encontrei por lá uma data de gente normal.
Passando as mãos pelo cabelo curto, Midori esboçou um sorriso tenso.
− E tu, trabalhas?
− Trabalho. Escrevo legendas nos mapas. Sabes aqueles folhetos
explicativos que vêm anexados aos mapas e que têm informações sobre as
cidades, a povoação, os lugares de interesse? Aqui fica o trilho tal, ali
contam esta e aquela lenda, existem estas flores e estes pássaros... O meu
trabalho consiste em escrever cenas dessas. Mais simples não podia ser.
Desenvencilho-me enquanto o diabo esfrega um olho. Vou até à biblioteca
de Hibiya, faço a minha pesquisa e no fim do dia tenho um folheto escrito.
Basta descobrir o truque e arranjo todo o trabalho que quiser.
− Truque? Que truque?
− Escrever o que não passa pela cabeça de mais ninguém. Dessa maneira,
os responsáveis pelas editoras de mapas acham que nascemos fadados para
aquele negócio. Ficam verdadeiramente impressionados. E começam a dar-
nos trabalho. Não é preciso ser uma coisa do outro mundo. Basta que seja
diferente. Por exemplo, referir a existência de um vilarejo que ficou
submerso devido à construção de uma barragem, mas onde as aves
migratórias continuam a regressar sempre que chega uma determinada
estação do ano. Toda a gente fica encantada quando tem conhecimento
desse tipo de episódios. Não achas pitoresco e comovente? Nem todas as
mulheres que trabalham fora de casa se dão a esse trabalho. Garanto-te que
esses textos dão-me bom dinheiro a ganhar.
− Acredito, mas obriga a desencantar histórias do arco-da-velha. Não
deve ser fácil...
− Tens razão – concordou Midori. – Mas se fores à procura delas,
encontras sempre qualquer coisa. Caso não encontres nada, inventas.
Refiro-me a uma historieta inofensiva, claro.
− Impressionante!
− Podes crer.
Depois, como percebi que queria sacar-me informações acerca do dia a
dia na residência, contei-lhe o ritual da praxe com a bandeira e a sessão de
ginástica do Facho. Também ela se fartou de rir com as anedotas do meu
camarada. Decididamente, aquele rapaz nascera para alegrar as hostes.
Midori confessou que achara tanta piada que gostaria de visitar a residência.
Disse-lhe que ficaria desiludida.
− Não passam de umas centenas de estudantes enfiados nos seus quartos,
a beber e a masturbar-se.
− Tu também fazes parte do lote?
− Claro – comentei. – Tal como as raparigas têm o período, os homens
masturbam-se. Todos, sem exceção.
− Até os que têm namorada? Quer dizer, quem anda a dormir com
alguém.
− Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O estudante de Keiō que
mora no quarto ao lado do meu bate sempre uma antes de se encontrar com
a namorada. Diz que é para relaxar.
− Não sei muito a esse respeito. Andei sempre numa escola de raparigas.
− É o género de coisas que não vem esmiuçado nos suplementos das
revistas femininas.
− Lá nisso tens razão! – concordou Midori. – Mudando de assunto. Estás
livre no domingo?
− Estou livre todos os domingos. Mas tenho de ir trabalhar às seis da
tarde.
− Que tal apareceres em minha casa? Que é como quem diz, na Livraria
Kobayashi? Apesar de a loja estar fechada, tenho de ficar à espera de uma
chamada importante. Podemos almoçar juntos. Preparo qualquer coisa.
− Gostaria muito.
Midori rasgou uma página do caderno e desenhou um mapa que mostrava
ao pormenor como lá chegar. Em seguida, pegou num marcador vermelho e
assinalou um «X» gigante no local onde ficava a casa.
− Não tem nada que enganar. Há uma placa enorme que tem escrito
Livraria Kobayashi. Podes aparecer por volta do meio-dia? Terei o almoço
pronto.
Agradeci e guardei o mapa no bolso. Disse-lhe que precisava de voltar à
universidade para a aula de Alemão, que começava às duas. Midori
anunciou que tinha onde ir e apanhou o comboio na estação de Yotsuya.
***
***
***
Ajudei-a a lavar os pratos. Ao seu lado, enxugava com um pano a loiça que
ela lavava, empilhando-a sobre a bancada.
− Por falar nisso, onde é que anda a tua família? – quis eu saber.
− A minha mãe está enterrada. Morreu há dois anos.
− Bem sei, já me contaste.
− A minha irmã saiu com o namorado. Devem ter ido dar uma volta de
carro. Ele trabalha numa empresa de automóveis e adora tudo o que tenha
rodas. Já eu, sou sincera, não ligo nenhuma a carros.
Midori calou-se e continuou a lavar os pratos, enquanto eu os limpava
também em silêncio.
− Depois, temos o meu pai – acrescentou Midori, passado um bocado.
− A-hã.
− O meu pai viajou para o Uruguai em junho do ano passado e ainda não
voltou.
− Para o Uruguai? – perguntei, apanhado de surpresa.
− Há muito que andava a planear essa viagem. É uma loucura, mas
acontece que um camarada dos tempos do Exército tem uma fazenda lá e,
de repente, o meu pai informou-nos de que estava na disposição de ir até ao
Uruguai tentar a sorte. Meteu-se no avião e foi-se embora. Fizemos por
dissuadi-lo, dizendo que a viagem seria uma perfeita insensatez, que nem
sequer falava o idioma, sobretudo quase nunca tendo saído de Tóquio, mas
em vão. A morte da minha mãe foi um rude golpe para ele. Mexeu com o
seu cérebro, e ele perdeu o tino. Amava a minha mãe. Com todas as forças
do seu ser.
Fiquei de boca aberta, incapaz de dizer fosse o que fosse, a olhar para
Midori.
− Sabes o que nos disse, à minha irmã e a mim, quando a minha mãe
morreu? «Estou de rastos. Preferia mil vezes que vocês tivessem morrido
em vez dela.» Ouvir aquilo foi como um soco no estômago! Nenhuma de
nós conseguiu reagir. Ninguém deveria dizer semelhante coisa, em
circunstância alguma. Eu entendo a dor e o desespero, a tristeza imensa e a
solidão por parte de quem perdeu a pessoa amada. Tenho muita pena dele.
Mas nenhum pai pode dirigir-se às filhas e dizer que preferia que tivessem
sido elas a morrer! É demasiado cruel, não te parece?
− Óbvio que sim.
− Ficámos profundamente feridas – afirmou Midori, abanando a cabeça. –
Bom, seja como for, na minha família temos todos pancada. Um parafuso a
menos.
− Pelos vistos – concordei.
− Ao mesmo tempo, não achas maravilhoso ver duas pessoas que se
amam tanto? Um homem que adora a mulher a tal ponto que gostaria de ver
as suas filhas morrer em vez dela?
− Se colocas a questão dessa forma...
− E pronto, lá partiu para o Uruguai, deixando-nos sozinhas.
Continuei a limpar a loiça sem abrir a boca. Quando terminei a minha
tarefa, Midori arrumou os pratos e os copos no armário.
− E nunca mais tiveste notícias dele desde essa altura?
− Recebemos um único postal, se bem me lembro. Mas não contava nada
de concreto. Escrevia a dizer que estava muito calor e que a fruta não era
tão boa como imaginava... Fiquei pior que estragada! Um postal feiíssimo,
com a imagem de um burro. O meu pai não bate bem da bola! E nem uma
palavra sobre ter conseguido encontrar o tal amigo ou camarada do
Exército! No final, acrescentava que, mal as coisas melhorassem, nos
mandaria ir ter com ele, a mim e à minha irmã. Depois disso, nunca mais
deu notícias nem respondeu às nossas cartas.
− E se o teu pai te pedisse para ires ter com ele ao Uruguai, ias?
− Ia. Parece divertido. Já a minha irmã diz que nem morta! Tem horror a
tudo o que esteja fora de ordem, aos lugares sujos.
− O Uruguai é um país assim tão sujo?
− Não faço ideia. Mas a minha irmã julga que as ruas estão repletas de
fezes de jumento, tudo aquilo coberto de moscas, que não há água nos
autoclismos nem nas casas de banho públicas e que se encontram osgas e
escorpiões a cada esquina. Deve ter visto isso num filme qualquer. Ela
odeia tudo o que seja insetos. Do que ela gosta é de andar a passear pela
costa de Shōnan24 num carro espampanante!
− Estou a ver o género.
− Em contrapartida, o Uruguai atrai-me. Não me importaria nada de ir lá
ter.
− Quem é que toma conta da loja?
− A minha irmã, contrariada. Um tio meu que vive aqui perto ajuda-nos
todos os dias e encarrega-se das entregas. Eu também contribuo com a
minha parte, sempre que posso. Bom, é preciso ver que o trabalho numa
livraria não é tão pesado quanto isso. E, depois, caso não seja possível dar
conta do recado, só temos de fechar a loja e vendê-la. É essa a nossa
intenção, aliás.
− Gostas do teu pai?
Midori abanou a cabeça.
− Não especialmente, para dizer a verdade.
− Nesse caso, por que carga de água estás disposta a ir ter com o teu pai
ao Uruguai?
− Porque tenho confiança nele.
− Confiança?
− Sim, não temos laços muito fortes, mas confio nele. Confio no meu pai,
um homem que recebeu um duro golpe ao perder a mulher, que deixou a
sua casa, as filhas e o trabalho para se refugiar no Uruguai. É meu pai.
Compreendes?
− Compreendo e não compreendo – disse eu, suspirando.
Midori riu-se, divertida, e deu-me duas ou três pancadinhas nas costas.
− Não te preocupes. Não é grave.
***
***
Meia hora mais tarde, o incêndio foi finalmente dado como extinto. Tudo
indicava que não alastrara e que não tinha havido feridos. Os carros de
bombeiros regressaram ao quartel; apenas um ficou no local. Os curiosos
dispersaram, no meio da vozearia. Com as luzes giratórias ligadas, uma
viatura policial permanecia de prevenção, tendo por missão controlar o
tráfego. Dois corvos apareceram vindos sabe-se lá de onde: empoleirados
em cima de um poste, observavam a movimentação na rua.
Midori parecia exausta. O corpo abandonado, o olhar perdido no
horizonte. Mal falava.
− Estás cansada? − perguntei.
− Não é isso – respondeu. – Há muito que não me sentia tão tranquila,
sem pensar em nada.
Olhei-a nos olhos e ela fez o mesmo. Pus os braços à volta dos seus
ombros e beijei-a. Por um momento, os seus ombros estremeceram
ligeiramente, mas depois descontraiu-se e fechou os olhos. Os nossos lábios
permaneceram unidos cerca de cinco ou seis segundos. A sombra das
pestanas, gravada no seu rosto graças ao sol de início de outono, agitou-se
num movimento impercetível.
Foi um beijo doce e carinhoso, sem grande significado. Se não
estivéssemos ali sentados a ver o incêndio e a beber cerveja, possivelmente
não a teria beijado nesse dia, e palpita-me que ela pensava o mesmo. Ao
contemplar os telhados cintilantes das casas, as libélulas avermelhadas,
tínhamos sido envolvidos por uma doce intimidade, que,
inconscientemente, desejáramos materializar desse modo. Estou a falar de
um beijo assim. Mas, tal como acontece com todos os beijos, não estava
isento de perigo.
Midori foi a primeira a manifestar-se. Agarrou ternamente na minha mão
e confessou-me que andava a sair com alguém. Respondi-lhe que já
calculava.
− E tu, gostas de alguma rapariga?
− Sim.
− Mas estás livre todos os domingos?
− É muito complicado.
Compreendi que a magia daquela tarde do início de outono se eclipsara.
***
***
No dia seguinte, Midori não pôs os pés na aula de História do Teatro II.
Terminada a aula, fui direito à cantina e comi sozinho um almoço frio e
desenxabido. Depois sentei-me ao sol a contemplar a cena que se
desenrolava à frente dos meus olhos. Ali perto, duas estudantes estavam
embrenhadas numa longa conversa. Uma delas apertava contra o peito uma
raqueta de ténis, como se abraçasse afetuosamente um bebé, enquanto a
outra tinha alguns livros na mão e um LP de Leonard Bernstein. Eram
ambas bonitas e via-se que tinham gosto em tagarelar. Do edifício onde
ficava o clube da universidade chegava até mim o som de alguém a praticar
escalas musicais no piano. Aqui e ali havia grupos de quatro e cinco
estudantes a falar de tudo e mais alguma coisa, discutindo e rindo. Alguns
andavam de skate no parque de estacionamento. Um professor que ia a
passar, carregado com uma pasta de couro, procurou esquivar-se. No
jardim, uma aluna de capacete estava agachada no chão, a escrever um
cartaz de protesto contra o imperialismo norte-americano. Era a típica
paisagem universitária durante o intervalo do almoço. E, no entanto, ao
observar aquela cena familiar, dei-me conta de uma coisa. Todas as pessoas,
cada uma à sua maneira, pareciam felizes. Não saberia dizer se estavam
realmente felizes da vida ou se não passava de uma encenação. Em todo o
caso, naquele agradável início de tarde em finais de setembro, toda a gente
parecia satisfeita, e isso fez com que me sentisse ainda mais solitário. Como
se fosse eu o único a destoar na paisagem.
A que paisagem pertencera eu durante todos aqueles anos? A última cena
familiar que me vinha à memória era a do salão de bilhar, à beira do porto,
onde eu e Kizuki tínhamos jogado juntos. Nessa mesma noite, Kizuki
suicidara-se, e, a seguir, formara-se uma corrente de ar gelado que me
separava do resto do mundo. Refleti sobre o que Kizuki representara para
mim, mas não encontrei resposta. A única certeza que tinha era que a sua
morte servira para destruir para sempre uma parte da minha adolescência.
Sentia e percebia isso com grande clareza. Mas desconhecia o significado
ou as consequências que daí poderiam advir.
Deixei-me ficar ali sentado durante um grande bocado, a observar a
paisagem e o vaivém das pessoas. Talvez encontrasse Midori: ainda não a
vira naquele dia. Terminado o intervalo de almoço, fui para a biblioteca
preparar-me para a aula de Alemão.
***
14 Além de ser um nome muito comum, Midori significa «verde» em japonês. (N. da T.)
15 Momo significa «pêssego». Ko (rapaz/rapariga) é uma palavra que serve de terminação a muitos
nomes femininos. Momo-iro (literalmente, cor de pêssego) significa rosa-pálido, como as pétalas de
rosa. (N. da T.)
19 Nome de uma produção televisiva emitida em 1967 pela estação japonesa Nippon Terebi. Mais
tarde, realizou-se uma versão cinematográfica protagonizada por Bruce Lee, que se estreou nos
Estados Unidos em 1974, sendo transmitida no Japão um ano mais tarde. (N. da T.)
20 Título original de um conto de Kenzaburō Ōe inédito em português. Poderia ser traduzido por «O
Homem Sexual» ou «O Ser Sexual». No Japão foi editado em 1963, na revista Shinchō. (N. da T.)
21 «Sete Narcisos», em português. Com letra de Fran Moseley e música de Lee Hays, a canção foi
lançada no início dos anos 1970, pelos Tarriers; existe uma versão mais recente interpretada pelos
Brothers Four. (N. da T.)
25 Bairro boémio de Tóquio, onde se concentram os bares e lugares de lazer. (N. da T.)
«Obrigada pela tua carta», escrevia Naoko. Tinha recebido a minha missiva
por intermédio dos pais, que a reenviaram de imediato para «ali». «Não só
não me importei de receber a tua carta como fiquei muito contente.
Também estava a pensar em escrever-te.»
Interrompi a leitura neste ponto: abri a janela, despi o casaco e sentei-me
na da cama. Chegava-me aos ouvidos o barulho dos pombos a arrulhar num
pombal perto. O vento fazia esvoaçar as cortinas. Segurando na mão a carta
de sete páginas escrita por Naoko, dei asas à imaginação. Ainda só tinha
lido as primeiras linhas, mas foi o suficiente para que o mundo em redor
começasse a perder a cor. Fechei os olhos e demorei uma eternidade a
ordenar as ideias. Após respirar fundo, retomei a leitura.
Já passaram quatro meses desde que aqui cheguei. Durante este tempo, pensei
imenso em ti. E de tanto pensar, dei-me conta de que tinha sido injusta. Devia ter-
me portado melhor, pois essa seria a atitude de uma pessoa íntegra.
Este raciocínio talvez não seja normal. Para começar, as raparigas da minha idade
não usam palavras como «justo». As miúdas da minha idade estão-se nas tintas para
o facto de as coisas serem ou não justas. Aos olhos da maioria, mais do que justo ou
injusto, interessa-lhes saber se é bonito ou como serem felizes. A «justiça» tem um
cunho eminentemente masculino. O que não impede que, na situação em que me
encontro, seja essa a palavra que descreve na perfeição as minhas preocupações.
Nesta fase, a busca da «beleza» e da «felicidade» é uma perspetiva tão distante e
difícil que prefiro agarrar-me a outros conceitos. A honestidade, a franqueza ou a
universalidade, por exemplo.
Seja como for, acho que fui parcial contigo. Andei em círculos, acabando por te
pressionar e só te causei mais problemas, além de me magoar a mim mesma. Digo
isto não para me defender, tão-pouco pretendo justificar o meu comportamento; é a
pura verdade. As feridas que deixei em ti também são as minhas feridas. Não sintas
ódio por mim. Sou um ser humano imperfeito. Muito mais do que tu imaginas. Por
isso, não quero que me odeies. Saber que me odeias deixar-me-ia de rastos. Ao
contrário de ti, não sou capaz de me refugiar dentro da minha couraça. Apesar de
não te conhecer muito bem, dá-me a impressão de que esse é o teu modo de
funcionar. Por vezes, invejo a tua forma de estar na vida, e se calhar foi essa a razão
por que te arrastei para o meio disto.
É possível que aches esta visão demasiado analítica. Isso não significa, contudo,
que a terapia aqui aplicada seja excessivamente analítica. No estado em que me
encontro, ao fim de vários meses de tratamento, acabo por analisar tudo o que me
rodeia, quer queira, quer não. «Isto aconteceu por causa daquilo», «isto tem este ou
aquele significado», «isto provocou aquilo», e assim por diante. Ainda hoje estou
para perceber se esta maneira de analisar as coisas ajuda a simplificar o mundo ou a
fragmentá-lo.
Seja como for, encontro-me melhor, em comparação com a minha condição
anterior, e os que me rodeiam são os primeiros a reconhecê-lo. Há muito que eu não
me sentava para escrever calmamente umas linhas. A carta que te enviei em julho
representou um esforço sobre-humano (para ser franca, nem me lembro do que
disse, e só espero que não tenha sido nada de terrível), mas desta vez escrevo-te de
uma forma mais leve e descontraída. Parece que era disto que eu precisava: ar puro,
um lugar tranquilo e afastado do mundo, uma vida regrada, exercício físico diário. É
fantástico ser capaz de escrever cartas, acredita! Sentar-me à escrivaninha, pegar na
caneta e alinhavar frases como estas, movida pelo desejo de transmitir os meus
sentimentos a outra pessoa. Se bem que haja uma parte que fique por dizer. Não
importa. Já me sinto feliz pelo simples facto de ter vontade de escrever a alguém.
Daí que tenha decidido entrar em contacto contigo. São sete e meia da tarde, acabei
de jantar e de tomar banho. Lá fora está escuro e silencioso. Não se vê nem uma luz
para amostra. Aqui é costume avistar nitidamente as estrelas do céu, mas hoje
ficaram encobertas pelas nuvens. As pessoas daqui conhecem as constelações todas
e passam o tempo a explicar-me onde fica a Virgem ou o Sagitário. Visto que não há
nada para fazer ao cair da noite, acabaram por se transformar em especialistas.
Sabem tudo e mais alguma coisa acerca de pássaros, flores e insetos. Sempre que
falo com elas, sinto-me uma ignorante de primeira! Confesso que não é uma
sensação lá muito agradável.
Ao todo, somos setenta pessoas a viver aqui. Sem contar com vinte funcionários,
entre médicos, enfermeiras e pessoal administrativo. Dado que este lugar é enorme,
não se pode dizer que seja um número elevado. Pelo contrário, dizer que se trata de
um «lugar deserto» estaria mais próximo da verdade. Fica num terreno espaçoso, no
meio da natureza, onde toda a gente leva uma vida tão tranquila que, às vezes, chego
a pensar que este é o mundo real. Obviamente que não é. No fundo, convém não
esquecer que vivemos todos sujeitos a condições especiais.
Jogo ténis e basquetebol. A equipa de basquetebol é composta por pacientes (uma
palavra detestável, mas que remédio) e funcionários. Acontece uma coisa estranha.
Quando estou concentrada no jogo, perco a noção de quem é quem e, aos meus
olhos, todos parecem deformados.
Um dia, contei isto ao meu médico e ele respondeu-me que essa perceção era em
parte exata. Adiantou que não estamos aqui para corrigir a deformidade, mas para
aprendermos a viver com ela. Mais, que um dos nossos problemas é precisamente a
incapacidade de reconhecer e aceitar essas deformidades. E que, tal como os outros
seres humanos, temos todos um modo distinto de andar, de sentir, de pensar e de ver
as coisas. Por mais que tentemos corrigi-las, dificilmente o conseguiremos. Como é
óbvio, a explicação peca por ser demasiado simplista, mas acho que percebi a
mensagem, até certo ponto. Possivelmente, somos incapazes de nos adaptar por
completo às nossas deformidades. Como tal, não conseguimos aceitar a dor e o
sofrimento reais que provocam. Estamos aqui para escapar a isso. Enquanto tal se
verificar, não faremos sofrer os outros nem os outros nos farão sofrer. Porque
sabemos que somos todos «deformados». É o que nos distingue do mundo exterior,
no qual muito boa gente vive sem ter consciência das suas deformações. Neste
pequeno mundo, porém, as deformações constituem uma condição prévia do nosso
ser. Carregamos essas alterações assim como os índios andam com um pena na
cabeça para indicar a tribo a que pertencem. Vivemos no maior recato a fim de não
nos magoarmos reciprocamente.
Tirando o desporto, temos uma horta e um pomar. Tomates, beringelas, pepinos,
melancias, morangos, cebolinho, repolhos, nabos, plantamos de tudo um pouco.
Sem esquecer a estufa, claro. Os residentes estão a par do cultivo de vegetais e
dedicam-se a fundo a essa atividade. Leem livros, convidam especialistas e passam
o dia, de manhã à noite, a discutir qual o melhor fertilizante ou tipo de terra. Até eu
dei por mim apaixonada pelo assunto. É maravilhoso ver as plantas crescerem aos
poucos. Alguma vez plantaste melancias? Incham como se fossem pequenos
animais.
Comemos diariamente legumes e frutos apanhados na horta. Também nos
alimentamos à base de peixe e carne, naturalmente, mas, uma vez que estamos
rodeados de fruta e legumes, acabamos por sentir menos vontade das outras coisas.
Volta e meia, andamos pelo campo e vamos até aos montes colher outro tipo de
legumes e cogumelos. Temos especialistas nisto (pensando bem, temos especialistas
para dar e vender!), que nos ensinam quais são os cogumelos comestíveis. Daí que
não seja de estranhar que eu tenha engordado três quilos desde que cá cheguei. Ou
seja, estou com o peso ideal, graças ao exercício físico e a levar uma vida regrada,
com refeições a horas.
Quando não ando de volta da horta, leio, ouço música e faço tricô. Rádio ou
televisão é coisa que não existe por estas bandas, mas, em compensação, possuímos
uma biblioteca muito completa e uma grande coleção de discos, desde as sinfonias
todas de Mahler aos álbuns dos Beatles. Habituei-me a pedir discos emprestados
para ouvir sozinha, no meu quarto.
O problema deste sítio é que, uma vez cá dentro, não sentimos vontade (ou, posto
de outro modo, temos receio) de voltar a sair. Aqui vivemos em paz e harmonia
connosco mesmos. Somos capazes de enfrentar as nossas próprias imperfeições.
Sentimo-nos recuperados. Mas não temos a certeza se o mundo lá fora nos aceitaria
de forma idêntica.
O médico responsável pelo meu caso diz que começa a ser altura de eu retomar o
contacto com as pessoas de fora. Por «pessoas de fora» entenda-se, em última
instância, as pessoas normais, que pertencem ao mundo comum. Quando ele me deu
a conhecer isso, o único rosto que me veio à lembrança foi o teu. Francamente, não
tenho grande vontade de rever os meus pais. Estão de tal modo preocupados comigo
que vê-los e conversar com eles só serve para me deixar mais deprimida. Além
disso, há certas coisas que gostaria de te explicar melhor. Ainda não sei quando
estarei em condições de o fazer, mas é muito importante e são coisas essenciais, que
não posso deixar em branco.
Mas, atenção, não quero de forma alguma que me consideres um fardo na tua
vida. Longe de mim tornar-me um peso seja para quem for. Sinto o afeto que tens
por mim, apenas isso, e quero que saibas até que ponto esse afeto é importante. Se
as minhas palavras te incomodam, peço desculpa. Perdoa-me. Tal como disse antes,
sou muito mais incompleta do que imaginas.
Às vezes penso: se tu e eu nos tivéssemos conhecido em circunstâncias normais e
gostado um do outro, como seria? O que teria acontecido se eu fosse normal, se tu
fosses normal (coisa que és, há que reconhecer), e se o Kizuki não tivesse existido?
Como vês, há demasiados «ses» pelo meio... Pelo menos, faço os possíveis por ser
justa e honesta. Neste momento, nada mais posso fazer. Espero conseguir transmitir-
te os meus sentimentos.
Neste centro onde me encontro, ao contrário do que acontece nos hospitais
tradicionais, não há horários de visita. Desde que telefones na véspera a marcar,
podes sempre aparecer. Até podes tomar as refeições comigo ou passar cá a noite.
Vem visitar-me assim que puderes. Estou cheia de saudades. Junto um mapa, para te
orientares melhor. Desculpa ter-me alongado tanto.
Naoko
***
***
***
***
***
***
***
***
Regressámos à cafetaria pouco passava das três da tarde. Reiko lia um livro
e ouvia o Segundo Concerto para Piano de Brahms.
Era uma experiência única ouvir a música de Brahms tendo diante de nós
uma paisagem deserta a perder de vista. Reiko assobiou a parte do
violoncelo no início do terceiro movimento.
− Backhaus e Böhm – disse ela. – Uma vez, ouvi este disco tantas vezes
que o gastei. Ficou cheio de riscos feitos pela agulha. Ouvi-o sem parar,
para absorver a música do princípio ao fim.
Naoko e eu pedimos café.
− Conversaram tudo? – perguntou Reiko, dirigindo-se a Naoko.
− Nem imaginas – respondeu ela.
− Depois logo me contas em pormenor. Se ele se portou à altura...
− Não fizemos nada – disse Naoko, corando.
− A sério? Nada? – insistiu Reiko, virada para mim.
− A sério. Nada de nada.
− Mas que desilusão! – exclamou Reiko, com uma expressão
dececionada.
− Tens toda a razão – concordei, bebendo um gole de café.
***
***
***
***
***
***
29 Em japonês, o tratamento para professora e médico é o mesmo: sensei. Como tal, Ichida-sensei
tanto significa «professora Ishida» como «doutora Ishida». (N. da T.)
30 Reiko refere-se ao facto de Tōru ter revelado porventura falta de sensibilidade ao levar na viagem
um romance cuja ação decorre num sanatório suíço especializado em tuberculose e problemas
psiquiátricos, embora, como escreve Jay Rubin em Haruki Murakami and the Music of Words,
utilizar a expressão «psicanálise» nos dias que antederam a Primeira Guerra Mundial pudesse fazer
Hans Castorp, a figura central da narrativa, rir a bandeiras despregadas. (N. da T.)
31 Nimono é um prato típico japonês preparado com verduras, peixe ou carne cozida. Misoshiro ou
sopa de miso é uma sopa tradicional japonesa: o dashi (caldo de peixe) é a base da sopa, onde se
dissolve o miso. (N. da T.)
32 À letra, «gato que convida ou chama». O maneki-neko é a figura de um gato com a pata levantada,
que os donos dos estabelecimentos comerciais japoneses utilizam amiúde para atrair clientes. (N. da
T.)
33 Amante da bossa nova, Murakami sempre revelou predileção por este tema de Vinicius de Moraes
e Antônio Carlos Jobim. Desse gosto particular nasceu «The 1963/1982 Girl from Ipanema», uma
história deliciosa e divertida, na qual, sempre ao som do sax tenor aveludado de Stan Getz, o escritor
japonês discorre sobre os temas da perda e do envelhecimento, da memória e da música, da realidade
e da descida ao poço. (N. da T.)
***
***
***
***
***
Pelo facto de ser domingo, a par dos doentes que apresentavam sintomas
ligeiros, o Hospital Universitário estava repleto de visitantes. Flutuava no ar
o cheiro inconfundível dos hospitais. Um odor a desinfetante misturado
com flores, urina e roupa de cama, no meio de um cenário por onde as
enfermeiras deambulavam fazendo soar o som seco das suas socas37.
O pai de Midori estava instalado num quarto duplo e ocupava a primeira
cama, junto à porta. A sua figura fazia lembrar um animalzinho
mortalmente ferido. Deitado de lado, sem se mexer, com a agulha de soro
espetada no braço direito. Tratava-se de um sujeito pequeno e magro, e ao
olhar para ele dava a impressão de que estava condenado a emagrecer e a
mirrar ainda mais. Tinha uma ligadura branca a envolver-lhe a cabeça e os
braços cheios de marcas feitas pelas picadas de injeções e agulhas de soro.
O olhar semicerrado fixava-se no vazio; quando entrei no quarto, senti os
olhos injetados de sangue cravarem-se em nós. Ao fim de alguns segundos,
voltaram a perder-se num ponto fixo.
Ao olhar para ele, percebi de imediato que não tardaria a morrer. Restava-
lhe apenas um sopro de vida. O seu corpo fazia lembrar uma velha casa
despojada de móveis e de alicerces, sem teto entre ruínas. À volta dos lábios
secos despontava uma barba rala com meia dúzia de pelos parecidos com
ervas daninhas. Achei estranho que a barba continuasse a crescer num
homem que perdera a sua energia vital.
Midori cumprimentou o indivíduo gordalhufo de meia-idade que se
encontrava deitado na cama ao lado da janela. O doente, incapaz de falar,
limitou-se a sorrir e a acenar afirmativamente. Após tossir várias vezes,
bebeu um pouco da água que tinha num copo pousado sobre a mesa de
cabeceira, e a seguir virou-se com dificuldade e ficou a observar a paisagem
lá fora. Através da janela viam-se apenas postos e fios elétricos. Nem
sequer uma nuvem para amostra.
− Estás melhor, pai? – perguntou Midori, encostando a boca à orelha dele,
como se estivesse a testar um microfone. − Como te sentes hoje?
− Mal – respondeu ele. Mais do que falar, limitara-se a expulsar o ar seco
que tinha no fundo da garganta, transformando-o em palavras.
− Dói-te a cabeça? – perguntou Midori.
− Sim – respondeu o pai.
Pelos vistos, não conseguia articular mais do que uma ou duas sílabas.
− Não há nada a fazer – disse Midori. – Depois de uma operação, é
normal que tenhas dores. Sei que deve custar-te horrores, mas procura ter
um pouco mais de paciência. Olha, este é o meu amigo Tōru Watanabe.
− Muito gosto – cumprimentei-o.
O pai dela entreabriu os lábios, fechando-os logo a seguir.
− Senta-te ali – disse Midori, apontando para uma cadeira de plástico
vaga aos pés da cama. Obedeci. A seguir, deu a beber ao pai água da garrafa
e perguntou-lhe se queria fruta ou gelatina.
− Não – respondeu o pai.
Quando Midori insistiu, dizendo que precisava de se alimentar, ele
retorquiu:
− Já... comi.
Ao lado da cama havia uma mesa de cabeceira com vários objetos. A
saber: um jarro com água, um copo, um prato e um pequeno relógio. De um
grande saco de papel guardado debaixo da mesa, Midori tirou um pijama
lavado, roupa interior e vários artigos, que arrumou no armário existente à
entrada. No fundo do saco ficou a comida destinada ao doente: duas
toranjas, gelatina de fruta e três pepinos.
− Pepinos? – exclamou Midori, sem crer no que os seus olhos viam. – O
que está isto a fazer aqui? Não sei onde é que a minha irmã tem a cabeça,
francamente! Como pode uma pessoa doente mastigar pepino? Disse-lhe ao
telefone tudo o que deveria comprar... e não lhe falei em pepinos.
− Se calhar, fez confusão com quivis38 – aventei.
Midori fez estalar os dedos.
− Deve ser isso. Se tivesse puxado pela cabeça, perceberia
automaticamente. Pai, queres um pepino?
− Não – respondeu o pai.
Midori sentou-se à cabeceira da cama e contou ao pai as novidades lá de
casa. Segundo ela, a televisão não andava a funcionar bem e tinham
chamado um técnico para resolver o problema de receção de imagem. A tia
Takai prometera fazer-lhes uma visita em breve, o Sr. Miyawaki da
farmácia dera novo tombo da moto, e assim por diante. O pai limitava-se a
dizer «a-hã» de vez em quando.
− Pai, não queres comer nada, a sério?
− Não – respondeu ele.
− Apetece-te uma toranja, Tōru?
Neguei com a cabeça.
Pouco depois, Midori propôs-me que fôssemos até à sala da televisão.
Sentámo-nos no sofá e ela fumou um cigarro. Havia três doentes de pijama
a fumar enquanto assistiam a um debate político na televisão.
− Estás a ver aquele sujeito de muletas? Desde que chegámos que não tira
os olhos das minhas pernas. Aquele que tem óculos e um pijama azul –
observou Midori com ar divertido.
− Elementar. Toda a gente repara numa saia desse tamanho.
− Qual é o mal? Esta gente aborrece-se de morte, é bom que tenham
oportunidade de recrear a vista de vez em quando. Aposto que um pouco de
excitação só lhes faz bem e contribui para a recuperação.
− Só espero que não tenha o efeito contrário!
Por momentos, Midori contemplou o fumo do cigarro desenhando uma
linha direita no ar.
− O meu pai não é má pessoa – declarou ela. – Por vezes, diz coisas
terríveis e aborreço-me com ele, mas, no fundo, é um homem de princípios,
e adorava a minha mãe. À sua maneira, levou uma vida intensa e foi um
lutador, apesar de se ter revelado fraco e sem jeito para o negócio. Nunca
gozou de grande popularidade, mas, comparado com os indivíduos
matreiros e sem escrúpulos que por aí andam, é um homem sério. Como eu
também sou do género de não dar o braço a torcer, sempre nos travámos de
razões. Mas não é má pessoa, palavra de honra.
Midori pegou-me na mão, como quem agarra num objeto caído na rua, e
colocou-a no colo. Metade em cima da saia, a outra metade sobre a coxa.
Deixou-se ficar a olhar para mim.
− Custa-me pedir-te isto, até porque sei que um hospital não é um lugar
agradável, mas ficas aqui comigo mais um bocadinho? – disse ela passado
um bocado.
− Posso ficar o tempo que quiseres, mas só até às cinco – respondi. –
Além de me agradar a tua companhia, não tenho nada de especial
combinado.
− Como é que costumas passar os domingos?
− A lavar roupa – respondi. – E a passar a ferro.
– Estou a ver que não tens grande vontade de falar acerca da rapariga com
quem andas.
− Nisso tens razão. Não quero mesmo. É complicado e dificilmente te
conseguiria explicar.
− Tudo bem. Não precisas de explicar nada – observou Midori. – Agora,
posso dizer-te como imagino a coisa?
− Claro. Deve ser interessante. Sou todo ouvidos.
− Para já, acho que é uma mulher casada.
− A-hã.
− Uma mulher bonita e cheia de massa, com os seus trinta e dois ou trinta
e três anos, que usa casaco de peles, sapatos Charles Jourdain, roupa
interior de seda e, além do mais, é ninfomaníaca. Daquelas que gostam de
se entregar a jogos lascivos. Durante a semana, vocês encontram-se todos
os dias ao fim da tarde e entregam-se ao prazer. Mas aos domingos, como o
marido está em casa, nada feito. Acertei?
− Parece-me uma teoria interessante – reconheci.
− Ela obriga-te a amarrá-la e a vendar-lhe os olhos, e deixa-te lamber
cada centímetro do seu corpo. Pensa nisso durante todo o dia, até porque
não tem mais nada com que se entreter. «Quando o Tōru chegar, fazemos
isto e aquilo.» Na cama, arde de desejo: recorrendo a posições dignas de
uma contorcionista, deixa que tu enfies nela objetos estranhos e tem três
orgasmos de seguida. E diz-te o seguinte: «Não tenho um corpo fantástico?
As jovenzinhas que andam por aí nunca te conseguirão satisfazer. Ou achas
que uma rapariga te fará sentir isto? Diz! Estás a sentir? Não te venhas
ainda.»
− Palpita-me que andas a ver demasiados filmes pornográficos... – disse
eu sem conseguir conter o riso.
− Se calhar, tens razão. A verdade é que adoro filmes pornográficos.
Vamos combinar ir juntos?
− Tudo bem. Quando tiveres uma aberta.
− A sério? Olha que é bem divertido! Vamos ver um filme
sadomasoquista, que tal? Daqueles em que os homens empunham o chicote
e obrigam as miúdas a urinar à frente deles. São os meus preferidos.
− Combinado.
− Sabes o que mais me atrai nos cinemas que passam fitas pornográficas?
− Não faço a mínima ideia.
− Pois bem, confesso que gosto das cenas de sexo, mas o melhor de tudo
é o barulho feito pelos espectadores a engolir em seco – disse Midori. –
Adoro esse som. É uma coisa do outro mundo.
***
De regresso ao quarto, Midori tornou a sentar-se ao pé do pai e começou a
contar-lhe certas coisas. Ele escutava a filha em silêncio, intercalando sinais
de aprovação e um ou outro grunhido breve à laia de resposta. Por volta das
onze chegou a esposa do paciente da cama ao lado, mudou o pijama do
marido e descascou-lhe uma peça de fruta. A mulher, que, diga-se de
passagem, tinha uma cara redonda e simpática, conversou um bocado com
Midori acerca de assuntos triviais. A enfermeira apareceu, mudou o saco de
soro e foi-se de novo embora, depois de ter trocado algumas palavras com
Midori e a outra senhora. Enquanto isso, sem nada para fazer, entretive-me
a examinar o interior do quarto e os cabos elétricos lá fora. De vez em
quando, os pardais pousavam sobre os cabos. Midori falava com o pai,
limpava-lhe o suor do rosto, ajudava-o a soltar o muco e a expetoração,
conversava com a senhora ao lado, com as enfermeiras e comigo. Sem
nunca deixar de lançar olhares atentos ao soro, que continuava a cair, gota a
gota.
Às onze e meia da manhã, o médico fez a ronda da praxe, e Midori e eu
ficámos a aguardar no corredor. Assim que o médico saiu, Midori
interrogou-o acerca do estado do pai.
− Acabou de ser operado e ainda se encontra sob o efeito dos analgésicos.
Como tal, está relativamente debilitado – explicou o médico. – Precisamos
de mais dois ou três dias para analisar o resultado da operação. Se tudo tiver
corrido bem, ótimo, caso contrário, então definiremos o que fazer a seguir.
− Não me diga que será necessário abrir outra vez o crânio dele.
− Neste momento, nada posso adiantar – disse o clínico. – Vejo que hoje
optou por uma minissaia reduzida até dizer basta!
− Bonita, não acha?
− Sem dúvida. Como é que faz para subir as escadas?
− Como sempre. Mostro tudo – respondeu Midori, enquanto a enfermeira
deixava escapar uma gargalhada.
− É melhor abrirmos a sua cabeça um dia destes, para vermos o que se
passa – afirmou o médico, estupefacto. – Já agora, enquanto estiver aqui no
hospital, faça-me um favor e utilize apenas o elevador. Não quero que o
número de doentes aumente por causa dessa minissaia. Já tenho trabalho
que chegue.
Perto do fim da hora de visita, chegou o almoço. A auxiliar percorreu os
quartos com o carrinho da comida, distribuindo os tabuleiros pelos
respetivos doentes. A refeição do pai de Midori consistiu em sopa, fruta,
peixe cozido e espapaçado, sem espinhas, que mais parecia uma massa
amolecida, e aquilo que parecia ser uma espécie de gelatina de legumes
triturados. Midori ajudou o pai a deitar-se de costas, deu a volta à manivela
para elevar a cabeceira da cama e começou a dar-lhe sopa à boca. Ao fim de
cinco ou seis colheradas, o pai virou o rosto e disse «não».
− Não podes comer só isto – disse ela.
− Depois − acrescentou o pai.
− Que vou eu fazer contigo! Se não comes, nunca vais melhorar – ralhou
Midori. – Tens vontade de fazer chichi?
− Não – respondeu o pai.
− Que tal irmos comer qualquer coisa à cafetaria do hospital, Tōru
Watanabe? − sugeriu ela.
Concordei com a cabeça, mas não estava com grande apetite, para falar
com franqueza. A cafetaria estava apinhada de médicos e enfermeiras,
misturados com os familiares dos pacientes. Cadeiras e mesas alinhavam-se
na ampla cave do hospital, sem janelas, e as conversas, na sua maioria,
giravam em torno da comida. Aquele som ecoava pelos corredores como
dentro de uma passagem subterrânea. Volta e meia, a chamada que chegava
pelos altifalantes sobrepunha-se ao burburinho de vozes. Enquanto eu
reservava lugar numa mesa, Midori foi buscar as nossas refeições servidas
em bandejas de alumínio. Da ementa do almoço constavam croquetes,
salada de batata, verduras cruas, legumes cozidos, arroz branco e sopa de
miso, tudo alinhado no tabuleiro nos mesmos recipientes de plástico branco
usados para a comida dos doentes. Comi metade e deixei o resto. Midori
comeu tudo com evidente prazer.
− Não estás com fome? – quis saber ela, bebericando o chá quente.
− Nem por isso.
− A culpa é do hospital – declarou Midori, olhando em volta. − Acontece
sobretudo a quem não está acostumado. O cheiro, os sons, o ar pesado, o
rosto dos doentes, o stresse, a irritação, o desespero, o sofrimento e o
cansaço: são tudo causas. Provocam a contração do estômago e a perda de
apetite. Mas se te habituares, já não há problema. Além disso, se numa
pessoa não se alimentar decentemente, não está em condições de tomar
conta de um doente. É a pura verdade. Sei do que falo porque tomei conta
de quatro doentes, ao todo: o meu avô, a minha avó, a minha mãe e, agora,
o meu pai. De repente, pode surgir algum imprevisto que te impeça de
comer. Por isso, convém alimentares-te enquanto podes.
− Percebo o teu ponto de vista – concordei.
− Quando as pessoas da nossa família vêm visitar o meu pai, comemos
sempre aqui na cafetaria, e também eles têm por hábito deixar metade no
prato. Ao verem que eu como cheia de apetite, dizem: «Que bom saber que
te alimentas como deve ser, Midori. No meu caso, não me passa nada pela
garganta. A emoção não me deixa comer, mas, vendo bem, quem cuida do
doente sou eu! Não estou a brincar. Os outros limitam-se a dar um ar da sua
graça, muito de vez em de quando. Mas quem limpa as necessidades, a
gosma e dá banho ao doente sou eu! Se a compaixão bastasse para limpar a
merda, eu teria mil vezes mais compaixão do que todos eles juntos. Em vez
disso, lançam-me olhares de desaprovação por me verem devorar tudo o
que está no tabuleiro. «Que bom saber que te alimentas como deve ser,
Midori.» Será que a família me toma por uma burra de carga? Por que raio é
que esta gente não compreende como funcionam as coisas? Falar é muito
fácil, mas o que importa é saber se algum deles está disposto a meter as
mãos na porcaria. Tenho alturas em que me vou abaixo, em que me sinto
completamente estafada. Só me dá vontade de chorar. Imagina a situação:
os médicos abrem a cabeça de um homem e andam a escarafunchar lá
dentro, apesar de saberem que não há qualquer esperança de melhoras, e
repetem o ritual, piorando sempre tudo e diminuindo cada vez mais as
faculdades ao pobre diabo. Quem aguenta isto? Sem contar com a questão
financeira. Sim, porque as nossas economias estão a ir pelo cano abaixo!
Nem sequer sei se conseguirei pagar os três anos e meio que faltam para
acabar a faculdade ou se poderei suportar as despesas do casamento da
minha irmã.
− Quantas vezes por semana vens ao hospital? – perguntei.
− Quatro vezes – respondeu Midori. – Em princípio, deveriam ser eles a
prestar total assistência aos doentes. Na prática, porém, as enfermeiras não
dão conta do recado. Fazem o melhor que podem, mas, como são em
número insuficiente, não têm mãos a medir. Como tal, a presença da família
torna-se indispensável. Uma vez que a minha irmã tem de tomar conta da
loja, acabo por passar por cá entre uma aula e outra. Ainda assim, a minha
irmã consegue vir três vezes por semana, e eu, quatro. Aproveitamos o
tempo que sobra para nos encontrarmos com amigos. Um programa muito
apertado, como podes constatar.
− Se estás tão ocupada, por que motivo te encontras comigo?
− Porque gosto de estar contigo – afirmou ela, brincando com a taça de
plástico vazia.
− Vai dar um passeio – disse eu. – Entretanto, fico aqui a tomar conta do
teu pai.
− Porquê?
− Vai fazer-te bem descansar um pouco, longe do hospital. Não fales com
ninguém, areja a cabeça.
Midori refletiu por momentos antes de concordar.
− Talvez tenhas razão. Mas sabes o que é preciso fazer? Alguma vez
tomaste conta de um doente?
− Estive a observar-te e não creio que tenha dificuldade. Verificar o soro,
limpar-lhe o suor da cara, as secreções. O urinol está debaixo da cama e, se
ele tiver fome, dou-lhe o que sobrou do almoço. Se acontecer alguma coisa
e eu tiver dúvidas, pergunto à enfermeira.
− É mais do que suficiente – disse Midori, sorrindo. – Às vezes, ele
começa a perder o tino e diz coisas que não fazem sentido, perfeitamente
incoerentes. Se te disser uma coisa do género, não ligues.
− Vai correr tudo bem – asseverei.
***
Ao voltar para o quarto, Midori explicou ao pai que tinha de sair por
momentos e que ficava outra pessoa a cuidar dele; que é como quem diz,
eu. O pai recebeu a notícia com indiferença. Ou também podia acontecer
que não tivesse percebido as palavras de Midori. Estava deitado de costas,
imóvel, com o olhar cravado no teto. Dir-se-ia que estava morto, não se
desse o caso de pestanejar de vez em quando. Tinha os olhos de um bêbedo,
injetados de sangue, e as narinas dilatavam-se um tudo-nada quando
respirava fundo. Tirando isso, não tugia nem mugia, e não reagiu
minimamente quando Midori lhe dirigiu a palavra. Pela minha parte, sentia-
me incapaz de adivinhar o que se passava nas profundezas da sua
consciência entorpecida.
Após Midori ter saído do quarto, ainda pensei em falar com ele, mas, sem
saber ao certo o que dizer, optei por ficar calado. Pouco depois, fechou os
olhos e adormeceu. Sentado à cabeceira da cama, observei as contrações
regulares das suas narinas, rezando para que não morresse. Seria estranho,
pensei, se ele soltasse o último suspiro comigo ao seu lado, a tomar conta
dele. Afinal de contas, acabava de conhecer o senhor e Midori constituía o
único elo de ligação entre nós. Sem esquecer que a relação que eu tinha
com ela ia pouco mais além de frequentarmos as mesmas aulas de História
do Teatro II.
Felizmente, o homem não estava a morrer. Dormia profundamente, tão-
só. Aproximei o ouvido do rosto dele e consegui ouvir-lhe a respiração
fraca. Aliviado, meti conversa com a senhora do lado. Pensando que eu era
o namorado de Midori, fartou-se de a elogiar.
− É uma joia de rapariga – disse. – Toma conta do pai, é amável,
carinhosa, atenta, forte e, além do mais, bonita. Trata-a bem e não a deixes
escapar. Moças como ela não se encontram por aí ao pontapé.
− Assim farei – respondi para lhe agradar.
− Tenho uma filha de vinte e um anos e um filho com dezassete que quase
nunca põem os pés no hospital. Quando têm tempo livre, arranjam sempre
uma desculpa: ou é o surf, ou um encontro marcado com os amigos... Que
tristeza. Só servem para nos sacar a mesada, e adeusinho que se faz tarde.
À uma e meia da tarde, a dita senhora abandonou o quarto, avisando que
tinha umas compras para fazer. Os dois doentes dormiam o sono dos justos.
Os suaves raios de sol da tarde inundavam o quarto e tive a sensação de
que, também eu, acabaria por passar pelas brasas, sentado na cadeira. Sobre
a mesa, ao lado da janela, os crisântemos brancos e amarelos enfiados numa
jarra eram sinal de que estávamos no outono. O cheiro adocicado do peixe
cozido servido ao almoço, que o pai de Midori deixara intacto, permanecia
no quarto. As enfermeiras que circulavam pelos corredores, produzindo o
habitual ruído seco de passadas, pareciam estar com a corda toda, e as suas
vozes estridentes e nítidas chegavam até mim. Volta e meia, entravam no
quarto e, ao ver os dois pacientes dormindo profundamente, dirigiam-me
um sorriso antes de se evaporarem. Desejei ter alguma coisa para ler, mas
não havia livros, nem revistas, nem jornais à vista. A única coisa que tinha
caracteres era um calendário pendurado na parede.
Pensei em Naoko, no corpo nu de Naoko, apenas com o travessão posto.
Evoquei a curva das suas ancas, a sombra dos pelos púbicos. Porque se teria
despido à minha frente? Teria tido algum ataque de sonambulismo? Ou não
passaria tudo de uma alucinação minha? Com o passar do tempo, ganhava
distância em relação àquele pequeno mundo, duvidava aos poucos da
autenticidade dos acontecimentos. Se me convencesse de que eram reais,
tornavam-se reais, e se acreditasse que não passavam de uma ilusão,
acabaria por acreditar nisso.
Os pormenores revelavam-se demasiado vívidos para serem uma ilusão, e
demasiado belos para serem reais. Tanto o corpo de Naoko como a
claridade do luar.
O pai de Midori acordou de súbito com um ataque de tosse,
interrompendo os meus devaneios. Recolhi as secreções com a ajuda de um
lenço de papel e limpei-lhe o suor da testa com a toalha.
− O senhor deseja beber água? – perguntei-lhe, e ele assentiu com um
vago aceno.
Conforme bebia a água devagar e em golinhos da pequena garrafa de
vidro, os seus lábios ressequidos tremeram e o pomo de Adão contraiu-se
ligeiramente. Bebeu o conteúdo tépido da garrafa inteira.
− Quer mais? – perguntei.
Deu-me a impressão de que pretendia dizer qualquer coisa. Aproximei o
ouvido. «Chega», murmurou num fio de voz, porventura ainda mais fraca.
− Gostaria de comer alguma coisa? Deve estar com fome – insisti.
O pai de Midori esboçou um aceno afirmativo. Tal como vira Midori
fazer, girei a manivela da cama e dei-lhe a comer, à boca, a gelatina de
verduras e o peixe cozido, alternando as colheradas. Demorou uma
eternidade a comer metade, até que virou a cabeça um nadinha de lado para
mostrar que não queria mais. Tudo indicava que qualquer movimento mais
amplo lhe faria doer a cabeça. Quando perguntei se queria uma peça de
fruta, fez que não. Limpei-lhe a boca com um guardanapo, voltei a colocar
a cama na horizontal e levei os pratos para o corredor.
− Estava bom?
− Bodega – respondeu.
− Imagino. Não tinha grande aspeto – disse eu a rir.
Ele manteve-se calado e de olhos postos em mim, como se não soubesse
se devia fechá-los ou mantê-los abertos. Será que sabe quem eu sou?,
perguntei a mim mesmo. Dava-me a ideia de que se sentia mais à vontade
comigo do que na presença da filha. Estaria a confundir-me com outra
pessoa? Se assim era, tanto melhor.
− Lá fora está um dia espetacular – d u, sentando-me de novo e cruzando
as pernas. – Em pleno outono, é domingo, o tempo está bom, dezenas de
pessoas por toda a parte. Nestes dias, o melhor é uma pessoa ficar
tranquilamente num quarto como este. Ajuda a descontrair a mente e o
corpo. Andar por sítios cheios de gente só serve para nos cansarmos e, além
disso, o ar está irrespirável. Regra geral, aproveito os domingos para lavar
roupa. Lavo-a de manhã, ponho-a a secar no terraço do meu prédio e, antes
de escurecer, levo-a para dentro e passo tudo a ferro. Gosto da sensação de
endireitar a roupa amarfanhada. A bem dizer, até sou bastante bom nisso.
Claro que ao princípio era um autêntico desastre. As peças de roupa
ficavam cheias de vincos. Precisei de um par de meses para dominar a
tarefa. Por isso, o domingo passou a ser o meu dia de lavar e passar roupa.
Hoje não deu, evidentemente. Pena, porque é o dia ideal.
«Não há problema. Amanhã levanto-me cedinho e trato disso. Não se
preocupe. Não tenho mais nada para fazer aos domingos.
«Amanhã de manhã, depois de lavar e estender a roupa ao ar livre, tenho
aulas às dez. A Midori também. A cadeira chama-se História do Teatro II e
estamos a dar Eurípides. O senhor sabe quem é? Um grego da Antiguidade,
considerado, juntamente com Ésquilo e Sófocles, um dos três grandes
dramaturgos gregos. Segundo parece, morreu depois de ter sido mordido
por um cão, na Macedónia, embora haja outras versões. Estamos a falar de
Eurípides... Pessoalmente, prefiro Sófocles, mas é uma questão de gosto.
«As suas tragédias caracterizam-se por haver muitos acontecimentos que
se misturam, obrigando por vezes a que as personagens não tenham por
onde escapar. Compreende? São muitas, as personagens, colocadas nas
mais diversas situações, com as suas razões e motivos, sempre à procura da
justiça e da felicidade. Como tal, enfrentam uma série de dilemas.
Elementar, não acha? Isto porque, fundamentalmente, é impossível que
todos obtenham justiça e alcancem a felicidade. O que prevalece, portanto,
é o caos. E que lhe parece que sucede? Na realidade, uma coisa muito
simples: por fim, entra em cena um deus que controla tudo. Tu segues
aquele caminho, tu vens para aqui, tu vais ter com aquele, tu ficas quietinho
por enquanto, e assim por diante. Alguém que tem a missão de pôr ordem
nas coisas. E tudo se resolve a contento. Chama-se a isso «deus ex
machina». Nas tragédias de Eurípides aparece quase sempre o deus ex
machina, e sobre esse ponto a crítica divide-se.
«Mas tudo seria mais simples se esse deus ex machina existisse no mundo
real, não lhe parece? Em circunstâncias difíceis, quando somos obrigados a
enfrentar situações de impasse, um deus desceria das alturas e resolveria
tudo. Nada mais simples. Aqui tem a matéria que damos nas aulas de
História do Teatro II. É o género de coisas que se aprende na universidade.
Enquanto eu discorria sobre o tema, o pai de Midori permanecia calado,
fitando-me com um olhar inexpressivo. Era impossível perceber se
entendera uma palavra do que eu dissera.
− Peace – experimentei dizer.
Aquele monólogo fizera-me fome. Além de ter comido pouquíssimo ao
pequeno-almoço, deixara metade do almoço no prato. Arrependi-me de não
ter almoçado decentemente, mas era tarde demais para alimentar
sentimentos desses. Procurei no armário, mas só encontrei uma lata de
algas, rebuçados Vicks e molho de soja. No saco de papel havia toranjas e os
famigerados pepinos.
− Importa-se que eu coma os pepinos? – perguntei.
O pai de Midori nada respondeu. Lavei os três pepinos39 no lavatório da
casa de banho. A seguir, coloquei um pouco de molho de soja num prato,
mergulhei os pepinos e deliciei-me com o repasto.
− Estão deliciosos, sabe? – comentei. – Leves, frescos, sabem-me pela
vida. Belos pepinos, sim senhor! Muito melhores do que os quivis.
Ao terminar o primeiro pepino, ferrei o dente no segundo. O curioso som
resultante de trincar um pepino ressoou em todo o quarto. Só depois de ter
acabado o segundo é que acalmei a fome. Predispus-me então a ferver água
e preparei um chá.
− Deseja beber alguma coisa? – perguntei ao pai de Midori. – Água,
sumo?
− Pepino – respondeu ele.
Sorri.
− Muito bem. Com algas?
Ele fez um ligeiro gesto afirmativo. Tornei a levantar a cama, usei uma
faca própria para fruta a fim de descascar o pepino no tamanho ideal para
ele comer, enrolei os pedaços em alga, molhei-o no molho de soja e,
espetando tudo num palito, dei-lhe a provar. Mastigou durante muito tempo,
sem nunca mudar de expressão.
− Que me diz? É bom ou não é?
− Bom – disse ele.
− É importante comer alimentos saborosos. Prova que estamos vivos.
Vendo bem, acabou por comer um pepino inteiro. Pareceu-me que tinha
ficado com sede e dei-lhe mais água da garrafa. Logo a seguir, indicou que
precisava de urinar: tirei o urinol de debaixo da cama e coloquei-lhe a ponta
do pénis na boca do urinol. A seguir, esvaziei a urina e lavei o recipiente na
casa de banho. Regressei ao quarto e acabei de beber o meu chá.
− Como se sente? – perguntei.
− Cabeça... – murmurou ele.
− Dói-lhe a cabeça?
Franziu de novo a cara, como quem quer dizer que sim.
− Bom, imagino que seja normal, uma vez que acabou de ser operado.
Apesar de não saber o que isso é, pois nunca fui operado.
− Bilhete – disse ele.
− Bilhete? Que bilhete?
− Midori. Bilhete.
Fiquei calado, sem saber a que se referia. Também ele guardou silêncio
durante algum tempo. Então acrescentou:
− Por... favor.
Pelo menos foi o que me pareceu ouvir. Arregalou os olhos, fitando-me
diretamente. Dir-se-ia que pretendia comunicar-me algo, mas eu não
imaginava o que pudesse ser.
− Ueno – disse ele. − Midori.
− Refere-se à estação de comboios de Ueno?
Ele assentiu ao de leve com a cabeça.
− Bilhete. Midori. Por favor. Ueno − recapitulei.
No entanto, continuava sem compreender. Calculei que fosse devido à
mente desorientada, mas o seu olhar mostrava-se mais firme do que nunca.
Estendeu o braço que não estava a receber soro gota a gota e estendeu-o na
minha direção. Para ele, aquele gesto deve ter representado um esforço
sobre-humano, pois a mão tremia-lhe. Pus-me de pé e agarrei a sua mão
engelhada. Ele correspondeu, pressionando a minha.
− Por... favor – repetiu.
Disse-lhe que não se preocupasse, eu encarregar-me-ia do bilhete e de
Midori. Só então ele baixou a mão, fechou os olhos e, exausto, adormeceu
finalmente. Depois de me certificar de que não estava morto, saí do quarto e
aqueci água para mais um chá. Foi então que me dei conta de sentir um
certo afeto por aquele homem à beira da morte.
***
***
***
***
Todavia, passou-se uma semana sem que desse sinais de vida. Não me
encontrei com ela na universidade nem recebi qualquer chamada. De todas
as vezes que voltava para a residência universitária, a primeira coisa que
fazia era averiguar se tinha algum recado, contudo, ninguém ligou. Uma
noite, para honrar a promessa feita a Midori, tentei masturbar-me a pensar
nela, mas não surtiu efeito. A meio do ato, vi-me obrigado a substituí-la por
Naoko. Porém, nem mesmo a imagem de Naoko resultou. Acabei por
desistir, sentindo-me totalmente estúpido. Bebi um dedal de uísque, lavei os
dentes e fui dormir.
***
36 Bolinhos de arroz embrulhados numa tira de alga (nori) e recheados de diferentes alimentos,
como, por exemplo, umeboshi (ameixas secas), sake (salmão). (N. da T.)
37 Geta são as ancestrais socas de madeira, que fazem parte integrante da vestimenta tradicional do
povo japonês. Nos nossos dias, já obedecem aos ditames da moda, conhecendo vários modelos mais
modernos. (N. da T.)
38 Kyūri, o termo japonês para designar o pepino, e kyuwi (quivi) têm um som idêntico. (N. da T.)
39 Os pepinos cultivados no Japão são mais pequenos do que os nossos. (N. da T.)
40 Tremor de terra seguido de um grande incêndio que assolou em 1923 a região de Kantō, onde se
ergue hoje a cidade de Tóquio. (N. da T.)
41 O culminar de uma série de tentativas de revolta contra o Governo por parte da extrema-direita, no
decorrer da qual alguns oficiais, comandando uma força de mil e quatrocentos homens, atacaram os
edifícios governamentais e assassinaram vários membros do executivo e do Ministério da Casa
imperial. Após três confrontos, a revolta foi dominada e os seus responsáveis conduzidos perante a
justiça. (N. da T.)
A meio da semana, sensivelmente, cortei-me com um pedaço de vidro e fiz
um golpe profundo na palma da mão. Não reparei que a divisória de vidro
de uma estante com discos estava partida. Para meu espanto, o sangue
escorreu de tal maneira que tingiu de vermelho o chão a meus pés. O
gerente da loja apressou-se a trazer várias toalhas e improvisou uma
ligadura apertada. A seguir, telefonou para as informações a fim de saber
onde ficava o serviço de urgências mais perto. O dito gerente costumava ser
um tipo desinteressante ao máximo, mas, por uma vez, revelou-se bastante
prestável. Por sorte, o hospital mais próximo ficava quase ao virar da
esquina, mas até lá chegar não só as toalhas ficaram empapadas de sangue
como o sangue não absorvido pingava em grossas bagas sobre o asfalto. As
pessoas afastavam-se automaticamente do meu caminho. Talvez pensassem
que o ferimento ficara a dever-se a uma rixa. Não sentia dores. O que não
impedia que o sangue continuasse a derramar-se.
Impassível, o médico removeu as toalhas ensanguentadas, apertou-me
com força o pulso para estancar a hemorragia, desinfetou a ferida e coseu-a,
pedindo-me para voltar no dia seguinte. Mal regressei à loja, o gerente
recambiou-me para casa e prometeu não descontar no ordenado. Apanhei o
autocarro e voltei para a residência. Quando cheguei, fui direito ao quarto
de Nagasawa. O incidente deixara-me nervoso e tinha necessidade de
conversar, além de que já não o via há uma data de tempo.
Nagasawa encontrava-se no quarto a beber cerveja enquanto assistia a
uma aula de espanhol na televisão.
− O que te aconteceu à mão? – perguntou ele assim que viu o penso.
Expliquei-lhe que me ferira, mas sem gravidade. Ele ofereceu-me uma
cerveja. Recusei.
− O programa está quase a acabar – disse Nagasawa, prosseguindo com
os seus exercícios de pronúncia do espanhol. Fervi água e preparei um chá
para mim. Uma rapariga espanhola lia uma frase. «É a primeira vez que
chove torrencialmente. Em Barcelona, várias pontes foram arrastadas pelas
águas.» O meu companheiro repetiu a frase em voz alta. – Que frases mais
idiotas! – disse ele em tom de protesto. – Inventam cada uma nestes cursos
de idiomas!
Assim que a aula de espanhol chegou ao fim, Nagasawa desligou o
televisor e foi buscar mais uma cerveja ao minifrigorífico.
− Atrapalho-te?
− Claro que não! Pelo contrário, estava chateado que nem um peru. De
certeza que não vai uma cervejinha?
Respondi-lhe que não me apetecia.
− Ah, é verdade. Já saiu o resultado das provas que fiz há dias. Passei! –
exclamou Nagasawa.
− Referes-te às provas para o Ministério dos Negócios Estrangeiros?
− Sim. O nome oficial é Prova de Seleção de Funcionários Públicos de
Classe 1 para o Serviço de Relações Exteriores. Que cambada de idiotas!
− Parabéns – disse eu, estendendo-lhe a mão.
− Obrigado.
− Não foi surpresa para mim.
− Para mim também não. – Nagasawa riu-se. – Seja como for, fico
satisfeito por ter sido oficialmente reconhecido.
− Vais trabalhar para fora? Quero dizer, logo que entrares para o
ministério?
− Não, durante o primeiro ano terei de fazer vários cursos de formação no
país. Só depois disso é que devo ser enviado para o estrangeiro.
Enquanto eu bebia o meu chá, ele saboreava a cerveja com evidente
satisfação.
− Se quiseres, podes levar este frigorífico quando eu me for embora –
disse ele. – Gostavas? Sempre dá para manter a cerveja gelada.
− Adoraria, mas não te vai fazer falta? Imagino que ficarás a morar num
apartamento...
− Não digas disparates! Quando me vir daqui para fora, faço tenções de
comprar um frigorífico com o dobro do tamanho deste, ter uma casa maior
e viver no luxo. Aguentei quatro anos neste humilde tugúrio. Não quero
voltar a pôr os olhos em cima desta tralha toda. Podes ficar com o que
quiseres: televisor, garrafa-termo, rádio...
− Aceito tudo o que me vier parar às mãos – disse eu. Peguei no livro de
textos de espanhol que estava em cima da mesa e passei os olhos por ele. –
Começaste a aprender espanhol?
− Comecei. Quanto mais línguas uma pessoa souber, melhor, e eu tenho
jeito. Aprendi a falar francês sozinho e desenrasco-me muito bem. No
fundo, é uma espécie de jogo. Assim que aprendes as regras de uma língua,
as outras são todas iguais. Acontece o mesmo com as mulheres.
− Uma maneira profunda de encarar a vida – observei com ironia.
− A propósito, que tal irmos jantar fora uma noite destas? – propôs ele.
− Para engatar miúdas?
− Não, desta vez é apenas para jantar. Eu, tu e a Hatsumi, num bom
restaurante. Para comemorar a minha colocação. Se possível, num sítio
chique. Afinal de contas, quem paga é o meu pai.
− Nesse caso, porque é que não vais jantar sozinho com a Hatsumi?
− Porque tanto para mim como para ela será mais divertido se tu estiveres
connosco – afirmou Nagasawa.
A história repetia-se. Tal qual como quando éramos eu, Kizuki e Naoko.
− Depois do jantar, passo a noite em casa da Hatsumi. Podemos jantar os
três nas calmas.
− Se vocês fizerem questão, tudo bem – concordei. – Mas o que é que
vais fazer em relação à Hatsumi? Depois do tal período de formação, serás
destacado para o estrangeiro. E ela?
− O problema é dela, não meu.
− Não entendo muito bem o que queres dizer com isso.
Com os pés em cima da mesa, ele bocejou e continuou a beber a sua
cerveja.
− Vamos lá ver uma coisa. Não está nos meus planos casar-me com
ninguém, e já disse à Hatsumi isso mesmo. Se ela achar melhor ficar à
minha espera, que espere. Aqui tens o que quis dizer.
− Caramba! – exclamei, perfeitamente estupefacto.
− Deves achar que sou um merdas!
− Podes crer.
− O mundo é injusto por natureza. Não tenho culpa. Sempre foi assim,
dizem, e nunca há de ser diferente. Não enganei a Hatsumi a esse respeito.
Ela está fartinha de saber o que eu penso e que pode separar-se de mim se
não estiver satisfeita. Já lho disse com todas as letras.
Nagasawa acabou de beber a cerveja e acendeu um cigarro.
− Não tens medo de nada na vida? – perguntei.
− Não sou idiota a esse ponto – respondeu ele. – A vida mete-me medo,
muitas vezes. Como acontece a todos os comuns mortais. A diferença é que
eu não admito que o medo funcione como premissa. Quero chegar onde
puder e estou disposto a ir até ao limite das minhas forças. Fico com o que
quero e deito fora o resto. É esta a minha filosofia. Quando a coisa não bate
certo, paro e reconsidero tudo. Se pensares bem, uma sociedade injusta,
pelo contrário, é uma sociedade que permite a exploração até ao limite das
tuas próprias capacidades.
− Sinceramente, parece-me uma forma muito egoísta de encarar a
existência humana.
− Não penses que fico a olhar para o céu, à espera de que os frutos caiam.
À minha maneira, esforço-me muito. Dez vezes mais do que tu, no mínimo.
− Ninguém põe em dúvida – concordei.
− Por isso, muitas vezes olho à minha volta e fico com o estômago feito
num oito. Porque será que as pessoas não se esforçam mais, em vez de
passarem a vida a queixar-se das injustiças deste mundo?
Olhei para ele, siderado.
− O quê? Na minha opinião, as pessoas matam-se a trabalhar – repliquei,
mas admito que possa estar enganado.
− Não me estás a entender. Aquilo a que tu chamas trabalho não passa de
trabalho braçal – retorquiu Nagasawa. – São duas coisas completamente
diferentes. Para mim, a noção de esforço é mais subjetiva, implica ter um
objetivo preciso e iniciativa própria.
− Por exemplo, estudar espanhol quando todos os outros estão de papo
para o ar depois de terem dado o litro?
− Acertaste em cheio. Espero conseguir dominar a língua espanhola antes
da primavera. Já falo inglês, alemão e francês. Ah, e pode dizer-se que
arranho o italiano. Achas que tudo isto se consegue sem esforço?
Enquanto Nagasawa fumava o seu cigarro, eu pensava no pai de Midori.
A uma pessoa como ele nunca lhe teria passado pela cabeça começar a
aprender espanhol seguindo os cursos dados na televisão. Provavelmente,
também nunca refletira sobre a diferença entre esforço e trabalho. Devia
estar demasiado ocupado para se preocupar com semelhante questão.
Trabalhava afanosamente na livraria e ainda se vira obrigado a ir até
Fukushima buscar a filha, que fugira de casa.
− Quanto ao nosso jantar, que tal marcarmos para sábado?
− Perfeito.
***
***
Só doze ou treze anos mais tarde vim a descobrir o que era. Deslocara-me a
Santa Fé, no Novo México, para entrevistar um pintor. Ao cair da noite,
entrei numa pizaria e, enquanto bebia uma cerveja e comia a minha piza,
foi-me dado ver um pôr do Sol tão belo que mais parecia um milagre. O
mundo dir-se-ia tingido de vermelho. As minhas mãos, os pratos, as mesas,
tudo o que via diante dos meus olhos era de um encarnado vivo e brilhante,
como se tivesse mergulhado num sumo de frutos vermelhos. Naquele
espantoso entardecer, recordei a imagem de Hatsumi. E compreendi, por
fim, em que consistia aquela agitação que ela me provocara. Era uma
espécie de aspiração ardente e pura, que vivia em mim desde os meus
verdes anos, como que adormecida, e que nunca lograra concretizar, ao
ponto de me ter esquecido da sua existência. Hatsumi tivera o condão de
despertar aquela parte de mim mesmo. Ao dar-me conta disso, apoderou-se
do meu ser uma tristeza tão grande que as lágrimas quase me saltaram dos
olhos. Ela era, de facto, uma mulher especial. Merecia que alguém a tivesse
salvado.
Mas nem eu nem Nagasawa fomos capazes de fazer isso. Tal como
aconteceu com tanta gente que eu conhecia, Hatsumi chegou a uma
determinada altura e decidiu, de repente, acabar com a própria vida. Dois
anos depois de Nagasawa ter partido rumo à Alemanha, casou-se com outro
homem e, passados outros tantos, cortou os pulsos com uma lâmina de
barbear.
Foi Nagasawa quem me comunicou a sua morte, obviamente. Escreveu-
me de Bona. «Alguma coisa se quebrou nas minhas veias com a morte da
Hatsumi, provocando em mim uma tristeza insuportável.» Rasguei a carta e
deitei-a fora. Nunca mais lhe escrevi.
***
***
Cheguei à residência por volta das onze e meia. Fui direito ao quarto de
Nagasawa e bati à porta. Depois de uma dúzia de toques, lembrei-me. Era
sábado. Aos sábados à noite, teoricamente, Nagasawa tinha autorização
para ir dormir a casa de uns parentes.
Fui para o meu quarto, tirei a gravata, pendurei as calças e o casaco num
cabide, vesti o pijama e lavei os dentes. Resignado à minha sorte, pensei
que no dia seguinte ainda só era domingo. Era como se fosse domingo de
quatro em quatro dias. Mais dois domingos e completaria vinte anos.
Deitado na cama, deixei-me ficar a olhar para o calendário, dominado por
pensamentos sombrios.
***
***
***
***
***
Feliz Aniversário! Desejo que passes os teus vinte anos com alegria. Pela parte que
me toca, tenho a impressão de que os meus acabarão mal, para não variar, mas
ficarei contente se a tua felicidade der para nós os dois. A camisola foi tricotada a
meias, por mim e pela Reiko. Se fosse apenas eu a trabalhar nela, não terias a
camisola pronta antes do Dia dos Namorados do próximo ano. A metade bem
tricotada é a da Reiko, e a malfeita é a minha. A Reiko tem jeito para tudo e mais
alguma coisa e, só de olhar para ela, há alturas em que me detesto. Afinal, não tenho
nada de que me possa orgulhar. Adeus. Fica bem.
Havia ainda uma curta mensagem da Reiko.
Como estás? Aos teus olhos, talvez a Naoko represente o cúmulo da felicidade, mas,
da forma como eu a vejo, é uma jovem muito pouco jeitosa de mãos. Com sorte, lá
conseguimos acabar a camisola a tempo. Que tal? Gostas? A cor e o formato foram
escolhidos pelas duas. Feliz aniversário!
42 Nara e Aomori são cidades localizadas nas províncias com o mesmo nome, respetivamente a sul e
a norte de Tóquio. (N. da T.)
Quando olho para trás e recordo o ano de 1969, a única coisa que me vem à
cabeça é um pântano imenso. Um lodaçal profundo e viscoso, onde os meus
sapatos pareciam ficar colados a cada passo que dava. Caminhava com
esforço sobre-humano na lama. Não via a ponta de um corno, nem à minha
frente nem atrás de mim. Apenas um lodaçal de cores sombrias estendendo-
se a perder de vista.
O tempo arrastava-se lentamente, ao ritmo dos meus passos. As pessoas à
volta tinham-se adiantado bastante, e apenas eu e o meu tempo
continuávamos a arrastar-nos vagarosamente por aquele pântano. Muito boa
gente morreu nesse ano, incluindo John Coltrane. A população exigia
grandes reformas, e a verdade é que as mudanças se encontravam ao virar
da esquina. Contudo, as alterações não passavam de um pano de fundo
destituído de substância e significado. Pela minha parte, limitava-me a
viver, dia após dia, de cabeça baixa. Nos meus olhos refletia-se apenas o
pântano infinito. Levantava o pé direito, depois o esquerdo, tornando a
levantar o direito. Ignorava onde me encontrava, tão-pouco sabia se
avançava na direção certa. Contentava-me em seguir em frente, colocando
um pé à frente do outro, sabendo que tinha de progredir no terreno.
Fiz vinte anos, o outono deu lugar ao inverno, mas a minha vida não
conheceu mudanças significativas. Profundamente desmotivado, continuei a
frequentar a faculdade, a trabalhar na loja de discos três vezes por semana, a
reler O Grande Gatsby sempre que podia e, chegando o domingo, a lavar a
roupa e a escrever longas cartas a Naoko. Volta e meia, encontrava-me com
Midori e íamos comer qualquer coisa juntos, passear pelo jardim zoológico
ou a uma sessão de cinema. O projeto de venda da Livraria Kobayashi
decorreu sem problemas e Midori e a irmã alugaram um apartamento com
sala e dois quartos, perto da estação de metro de Myōgadani. Midori tinha-
me dito que estava nos seus planos mudar-se logo a seguir ao casamento da
irmã. Convidou-me uma vez para almoçar e pude constatar que se tratava
de um belo apartamento, cheio de sol. Midori parecia muito mais feliz do
que quando morava na livraria.
Nagasawa convidou-me várias vezes para sairmos e andarmos juntos na
boa-vai-ela, mas desculpei-me sempre a pretexto disto ou daquilo. Não
estava para aí virado, pura e simplesmente... não quer dizer, como é lógico,
que não me apetecesse ir para a cama com uma rapariga. À partida, porém,
ficava desmotivado só de pensar na trabalheira que me esperava até atingir
esse fim: passar a noite nos copos, encontrar a miúda adequada, conversar
com ela, levá-la para um hotel. No fundo, admirava alguém que, como
Nagasawa, se mostrava capaz de repetir esse mesmo ritual sem desanimar
nem dar mostras de fastio. Talvez por causa do que Hatsumi me tinha dito,
sentia-me mais feliz a pensar em Naoko do que a dormir com jovens
mulheres pouco interessantes, das quais nem o nome sabia. O toque dos
dedos de Naoko fazendo-me vir no meio da pradaria permanecia mais
vívido em mim do que qualquer outra coisa.
No princípio de dezembro escrevi a Naoko e perguntei-lhe se podia ir
visitá-la durante as férias de inverno. Quem me respondeu foi Reiko. Na
carta, mandava dizer que ficariam muito contentes por me ver e que
aguardavam ansiosamente a minha chegada. Explicou que Naoko, nos
últimos tempos, não se sentia capaz de escrever, daí ter-se encarregado ela
disso. Acrescentava que eu não devia ficar preocupado, que o estado da
amiga não era preocupante. Acontece que passava por uma das suas fases
menos boas.
Assim que começaram as férias, enfiei meia dúzia de coisas na mochila,
calcei as botas de neve e pus-me a caminho de Quioto. Como o estranho
médico fizera questão de alardear, as montanhas cobertas de neve ofereciam
um espetáculo lindíssimo. Tal como da outra vez, dormi duas noites no
apartamento delas e passei três dias na companhia das duas, cumprindo
mais ou menos as mesmas rotinas. Ao fim da tarde, Reiko pegava na
guitarra e púnhamo-nos à conversa. Em vez do piquenique ao meio-dia,
fizemos esqui. Após termos deslizado pelas montanhas durante cerca de
uma hora, ficámos sem fôlego e cobertos de suor. No meu tempo livre,
ajudei a limpar a neve. O doutor Miyata, essa pitoresca figura, tornou a
aproximar-se da nossa mesa, um dia ao jantar, e fez questão de nos explicar
por que motivo o dedo médio da mão era maior do que o indicador, ao
passo que tal não sucedia no que tocava aos dedos dos pés. O guarda, de
nome Ōmura, voltou à carga, elogiando a carne de porco de Tóquio. Reiko
adorou os discos que lhe levei e transcreveu algumas canções para poder
tocá-las à guitarra.
Naoko mostrou-se muito mais taciturna do que durante a minha visita
anterior, no outono. Quando estávamos os três juntos, mal abria a boca.
Limitava-se a ficar sentada no sofá, com um sorriso nos lábios. Reiko
falava pelas duas.
− Não ligues – aconselhou-me Naoko. – É uma fase que estou a
atravessar. Diverte-me muito mais ouvir as vossas histórias, acredita.
Numa altura em que Reiko, por qualquer razão, saiu de casa, Naoko e eu
abraçámo-nos deitados na cama. Beijei ternamente o pescoço dela, os seus
ombros e os seios, e ela, tal como da outra vez, masturbou-me. Após ter
atingido o orgasmo, sempre abraçado a ela, confidenciei-lhe que, durante os
últimos dois meses, nunca mais esquecera o toque dos seus dedos. E que me
masturbara a pensar nela.
− Foste para a cama com alguém? – quis ela saber.
− Não – respondi.
− Então, vou dar-te outro motivo para te lembrares de mim – disse ela.
Curvou-se, tomou delicadamente o meu pénis nos lábios, introduziu-o na
boca e usou a língua para me excitar. Os seus cabelos lisos caíam sobre o
meu baixo-ventre e baloiçavam ao sabor do movimento dos seus lábios.
Ejaculei pela segunda vez.
− Achas que vais conseguir lembrar-te? – perguntou Naoko.
− Claro que sim. Vou lembrar-me sempre.
Puxei-a para cima e enfiei os dedos na sua vagina, mas estava seca. Ela
abanou a cabeça e afastou a minha mão. Ficámos agarrados durante algum
tempo, em silêncio.
− Quando acabar o curso, gostava de sair da residência e ir à procura de
um apartamento algures – contei-lhe. – Estou farto de viver ali, e creio que
o dinheiro que ganho chegará para cobrir as despesas. Se quisesses,
podíamos viver juntos. Que te parece? Já te tinha falado no assunto.
− Obrigada, Tōru. A tua proposta deixa-me muito feliz – agradeceu
Naoko.
− Repara, este não me parece um lugar mau para se viver – acrescentei. –
É tranquilo, e sempre tens a companhia da Reiko, que é uma excelente
pessoa. Mas acho que não se trata de um lugar para uma pessoa ficar
eternamente. E quanto mais tempo ficares aqui, mais te custará ires-te
embora.
Calada, Naoko contemplava a paisagem lá fora. Estava tudo coberto de
branco. Apenas uma estreita fresta entre a terra e o céu deixava perceber a
presença de nuvens ameaçadoras, carregadas de neve.
− Pensa no assunto – disse eu. – Em todo o caso, só me mudarei em
março. Podes ir ter comigo quando quiseres.
Naoko acenou afirmativamente com a cabeça. Abracei-a com todo o
cuidado, como se pegasse num frágil objeto de vidro. Ela passou o braço
em volta do meu pescoço. Eu estava completamente nu, e ela vestia apenas
umas cuecas brancas. Era espantosamente bem feita. Nunca me cansaria de
percorrer o seu corpo com o olhar.
− Porque será que não fico molhada? – sussurrou Naoko. – Só me
aconteceu uma vez. Em abril, no dia dos meus anos. Naquela noite em que
me abraçaste. Porquê?
− É psicológico. Vais ver que passa com o tempo. Não fiques angustiada a
pensar nisso.
− Os meus problemas são todos psicológicos – confessou ela. – E se
nunca me excitar ao ponto de ficar molhada, se nunca puder fazer amor o
resto da vida? Vais satisfazer-te se eu usar unicamente as mãos e a boca? Ou
resolverás a questão indo para a cama com outras?
− Sou uma pessoa otimista por natureza – disse eu.
Naoko sentou-se na cama, enfiou a T-shirt pela cabeça, vestiu a camisa de
flanela e as calças de ganga. Vesti-me também.
− Dá-me tempo para refletir – pediu ela. – E aproveita para pensar com
calma.
− Vou pensar no assunto – respondi. – Aproveito para dizer que apreciei
imenso o que acabaste de me fazer.
Naoko corou ligeiramente e sorriu.
− O Kizuki dizia a mesma coisa.
− Sempre tivemos os dois opiniões e gostos parecidos, eu e ele –
acrescentei a rir.
Separados pela mesa da cozinha, conversámos do passado enquanto
tomávamos uma chávena de café. Naoko começou a abrir-se mais e a falar
acerca de Kizuki. Exprimia-se numa voz entrecortada, escolhendo
cuidadosamente as palavras. Nevou e deixou de nevar, mas o sol nunca deu
um ar da sua graça durante aqueles três dias. Na hora de partir, disse-lhe
que poderia regressar em março.
A seguir, abracei Naoko ternamente por cima do grosso casaco de inverno
e beijei-a na boca.
− Adeus – despediu-se ela.
***
Deve ter sido extremamente difícil para ti esperar um mês inteiro pela resposta, mas
garanto-te que também para a Naoko esse tempo foi de grande sofrimento. Peço-te
que entendas. Para ser sincera, o estado dela inspira uma certa preocupação.
Esforçou-se por melhorar, porém, até à data, ainda não se registou qualquer sinal
positivo.
Olhando para trás, o primeiro sintoma foi precisamente a incapacidade de te
escrever, em finais de novembro ou no início de dezembro. Depois, começou a ouvir
vozes. Sempre que tentava escrever, as vozes de várias pessoas impediam-na de se
concentrar. Até à tua segunda visita, esses sintomas manifestaram-se ao de leve, e
eu, verdade seja dita, não lhes dei grande importância. Até certo ponto, os nossos
sintomas tendem a repetir-se. No entanto, depois de teres partido, os sintomas
agravaram-se. Nos dias que correm, a Naoko tem uma enorme dificuldade em
manter uma conversa normal. Mostra-se incapaz de encontrar as palavras. E isso
deixa-a confusa. Confusa e assustada. As alucinações aumentaram
consideravelmente.
Temos sessões diárias com especialistas. A Naoko, eu e o médico conversamos os
três sobre o assunto e procuramos encontrar o que lhe falta, quais as partes
danificadas. Propus, caso fosse possível, realizar uma sessão que te incluísse, mas a
Naoko opôs-se. Aqui tens o que ela disse, textualmente: «Quando estivermos juntos,
quero que ele encontre o meu corpo limpo.» Esforcei-me ao máximo por convencê-
la de que o problema não se encontrava aí, e que ela deveria recuperar-se quanto
antes, mas em vão.
Como julgo que já te expliquei, este não é um hospital especializado. Temos bons
médicos e dispomos de tratamentos eficazes, como é óbvio, mas seria complicado
seguir uma terapia intensiva neste local. O objetivo da instituição é criar um
ambiente propício em que os pacientes possam tratar-se a eles próprios, logo, tal não
inclui tratamentos médicos. Portanto, se o estado da Naoko se agravar, será preciso
transferi-la para outro hospital ou instituição médica. Confesso que eu iria sofrer
imenso com isso, mas se calhar é a única solução. Claro que, a realizar-se, essa
transferência funcionaria como uma espécie de «licença temporária», e ficaria
sempre em aberto a hipótese de ela regressar, uma vez completado o tratamento. Ou,
na melhor das hipóteses, de ela recuperar totalmente e ter alta. Em todo o caso,
estamos empenhados ao máximo no processo, e falo também pela Naoko. Por favor,
reza para que ela recupere. E continua a escrever-lhe como tens feito.
Reiko Ishida
***
***
Enquanto tomávamos café, entraram no restaurante duas raparigas, pelos
vistos colegas de Midori. Começaram logo a comparar os respetivos
horários e, durante um bom bocado, não fizeram mais nada senão falar disto
e daquilo: das notas que tinham tido no ano anterior a Alemão, de um
colega que ficara ferido no decorrer das manifestações, dos sapatos
lindíssimos de uma delas («Onde é que os compraste?»)... Ia ouvindo sem
dar grande importância, mas com a sensação de que a conversa parecia vir
do outro extremo do planeta. Ao mesmo tempo, observava através da janela
a paisagem lá fora e bebia o meu café aos golinhos. Era a paisagem típica
da universidade em plena primavera. Céu nublado, cerejeiras em flor e
estudantes com ar de caloiros passando na rua carregados de livros novos.
Mergulhado na contemplação, senti um enorme vazio interior. Pensei em
Naoko, que naquele ano não poderia regressar às aulas. Ao lado da janela
havia um pequeno vaso com anémonas.
Depois de as duas se terem despedido e encaminhado para outra mesa,
Midori e eu abandonámos o restaurante e fomos passear pelas ruas do
bairro. Demos uma volta pelos alfarrabistas e comprámos vários livros,
entrámos numa cafetaria e bebemos outro café, jogámos flíperes num salão
de jogos, sentámo-nos no parque e conversámos. Na maior parte do tempo,
Midori fazia as honras da conversa e eu apenas assentia com a cabeça. A
páginas tantas, disse-me que estava cheia de sede e fui a uma pastelaria
comprar duas latas de Coca-Cola. Entretanto, ela pegou na esferográfica e
garatujou qualquer coisa num bloco de notas. Quando lhe perguntei de que
se tratava, respondeu que não era nada de importante.
Às três e meia da tarde, comunicou-me que estava na hora de se ir
embora, pois tinha combinado encontrar-se com a irmã em Ginza.
Encaminhámo-nos para a estação de metro e aí nos despedimos. Na altura
de nos separarmos, ela introduziu-me uma folha de papel dobrada em
quatro no bolso do casaco. Disse-me para só ler o bilhete quando chegasse a
casa. Li-o no comboio.
Aproveito o facto de teres ido comprar Coca-Cola para te escrever esta carta. No
meu caso, é a primeira vez que escrevo a alguém sentada num banco de jardim. Mas
foi a única maneira que encontrei para comunicar contigo. Por mais que fale, parece
que não me ouves. Estou errada?
Hoje fizeste uma coisa terrível, pela parte que me toca. Não te apercebeste sequer
de que mudei de penteado! Tive um trabalhão enorme para deixar crescer o cabelo
e, na semana passada, consegui finalmente ficar com um penteado feminino
decente. Tu, porém, não reparaste em nada. E eu que pensava que estava bonita e
pretendia impressionar-te, imaginando que, após tanto tempo afastados, ficarias
admirado! É o cúmulo, não te parece? Aposto que nem te lembras da roupa que eu
vestia hoje... Sou uma rapariga, sabes? Por mais absorto que estejas nos teus
pensamentos, poderias ao menos olhar para mim com olhos de ver. Bastava que
tivesses dito uma frase do género «O novo penteado fica-te bem.» Teria perdoado
tudo, mesmo que estivesses com a cabeça noutro sítio.
Para castigo, vou revelar-te uma mentira. Não é verdade que tenha marcado
encontro com a minha irmã em Ginza. Planeava passar a noite em tua casa, e até
tinha trazido comigo o pijama. Podes crer! Na minha mala está o pijama e uma
escova de dentes. Ah, que estúpida! Tu nem sequer me convidaste para ir a tua casa.
Mas não é grave, deixa lá. Visto que te estás a marimbar para mim, deixo-te
entregue à tua solidão. Por mim, podes matar a cabeça à vontade.
Atenção, não penses que estou zangada contigo. Estou apenas triste. Pelos vistos,
não há nada que eu possa fazer por ti, apesar de tudo o que fizeste por mim. A
verdade é que estás sempre encerrado no teu próprio mundo. Por mais que eu bata à
porta e chame por ti, limitas-te a levantar os olhos, para logo a seguir voltares a
fechar-te.
Aproximas-te neste preciso momento com os nossos refrigerantes. Dir-se-ia que
tens a cabeça nas nuvens, e só espero que não dês um tombo valente... mas não
caíste. Acabas de te sentar ao meu lado, dando grandes goles na tua Coca-Cola.
Esperava que, ao aproximares-te, te saísses por fim com a frase da ordem: «Ah,
estou a ver que mudaste de penteado!» Mas não. Caso tivesses dado por isso,
rasgaria esta carta em pedacinhos e teria dito: «Vamos até tua casa.» A seguir,
preparar-te-ia um bom jantar e dormiríamos juntos. Mas és tão insensível como uma
chapa de aço.
Adeus.
P.S.: A partir de agora, peço-te que não me dirijas a palavra quando me vires nas
aulas.
Tentei ligar para casa dela da estação de Kichijōji, mas ninguém atendeu.
Como não tinha nada para fazer, deambulei pelas ruas da cidade à procura
de emprego, um trabalho a tempo parcial compatível com os horários da
universidade. Estava disponível para trabalhar aos fins de semana ou às
segundas, quartas e quintas, depois das cinco da tarde, mas não foi fácil
encontrar uma ocupação que se ajustasse aos meus horários. Desisti e
regressei a casa. Quando saí para comprar o jantar, tornei a ligar a Midori.
Respondeu-me a irmã, que me disse que ela ainda não regressara e que não
fazia ideia a que horas voltaria. Agradeci e desliguei.
Depois do jantar, tentei escrever-lhe uma carta. Após várias tentativas
infrutíferas, decidi escrever antes a Naoko.
Contei-lhe que a primavera chegara e que, com ela, novo ano letivo
começara. Sentia muito a sua falta e desejava vê-la e conversar com ela,
desse lá por onde desse. Acrescentei que decidira ser forte. Era o único
caminho a seguir.
Mas uma coisa te garanto. Talvez diga respeito apenas à minha pessoa e pode não
ter importância, aos teus olhos, mas não durmo com mais ninguém. Porque não
quero esquecer as tuas carícias. Para mim, aqueles momentos importam muitíssimo
mais do que possas pensar. Passo a vida a lembrar-me neles.
***
***
***
Venho por este meio agradecer todas as cartas que tens enviado. A Naoko gosta
imenso de receber cartas tuas e dá-mas a ler. Espero que não te importes.
Desculpa ter estado tanto tempo sem escrever. Para ser honesta, tenho andado um
bocado cansada e, além disso, as novidades boas escasseavam. A nossa amiga
Naoko não tem passado bem. No outro dia, a mãe dela veio de Kōbe e discutimos o
caso: a Naoko, a mãe, o médico e eu. Estamos todos de acordo. A Naoko deve ser
transferida para um hospital especializado e submetida a uma terapia intensiva.
Quanto ao regresso aqui, dependerá dos resultados obtidos. A Naoko preferia
continuar por cá até melhorar ou curar-se, mas, para falar com franqueza, torna-se
cada vez mais complicado para nós controlá-la. Na maior parte do tempo, não dá
sinal de estar com problemas, mas, por vezes, o seu estado emocional revela-se
terrivelmente instável e, quando tal acontece, não temos mão nela. Nunca sabemos o
que vai acontecer. Tem alucinações violentas e fecha-se na sua concha.
Por tudo isto, acho que a melhor solução é interná-la num estabelecimento
durante uma temporada a fim de receber o tratamento adequado. É triste, mas nada
podemos fazer. Como já te disse, há que ter paciência. Ir desenredando a meada,
sem perder a esperança. Por mais que o estado dela nos pareça desesperado,
acabaremos, sem dúvida, por compor o novelo. Quando nos encontramos às escuras,
não temos outro remédio senão acostumar os olhos à escuridão reinante.
Quando receberes esta carta, a Naoko já terá sido transferida para outro hospital.
Desculpa não te ter avisado antes, mas foi tudo decidido em cima da hora. O novo
hospital tem uma excelente reputação e ótimos médicos. Dou-te a morada. A partir
de agora, podes enviar a correspondência para lá. Pela minha parte, à medida que
me forem dando notícias, tratarei de entrar em contacto contigo. Calculo que para ti
também seja difícil lidar com esta situação, mas não percas o ânimo. Escreve-me de
vez em quando.
Até breve.
***
Ia às aulas na universidade todos os dias. Trabalhava no restaurante italiano
duas ou três vezes por semana, falava com Itō de livros e música, li vários
livros de Boris Vian que ele me emprestou, escrevi cartas, brinquei com a
Gaivota, preparei pratos de massa italiana, cuidei do jardim, masturbei-me a
pensar em Naoko e fui ver uma série de filmes ao cinema.
Íamos em meados de junho quando Midori se dignou dirigir-me a
palavra. Estivéramos dois meses sem nos falarmos. Quando a aula acabou,
ela veio sentar-me a meu lado e permaneceu em silêncio, com o queixo
apoiado nas mãos. Lá fora chovia. Era uma chuva que caía a direito, fina e
sem vento, própria da estação, empapando tudo de maneira uniforme.
Mesmo depois de os outros alunos terem abandonado a sala, Midori deixou-
se ficar calada, na mesma posição. Tirou então um Marlboro do bolso das
calças de ganga e entregou-me a caixa de fósforos. Acendi-lhe o cigarro.
Ela franziu os lábios, lentamente, e soprou o fumo devagarinho para cima
de mim.
− Gostas do meu penteado?
− Muito.
− Muito quanto?
− É tão bonito que podia derrubar as árvores das florestas do mundo
inteiro – disse eu.
− Estás a falar a sério?
− Estou.
Midori olhou-me nos olhos por momentos e estendeu-me a mão direita.
Apertei-a. Ela pareceu ficar ainda mais aliviada do que eu. Deixou cair a
cinza para o chão e levantou-se.
− Vamos comer qualquer coisa. Estou a morrer de fome.
− Onde?
− Ao restaurante dos grandes armazéns Takashimaya, em Nishonbashi.
− Porquê esse sítio?
− Apetece-me.
Apanhámos o metro e fomos até ao distrito de Nishonbashi. Devido à
chuva que não parava de cair, provavelmente, a loja estava praticamente
deserta. Lá dentro cheirava a terra molhada. Encaminhámo-nos para o
restaurante e, após estudar a ementa afixada num escaparate, decidimo-nos
por um maku no uchi-bentō44. Apesar de ser hora de almoço, o restaurante
não estava cheio.
− Há muito que não comia no restaurante de uns grandes armazéns –
disse eu, bebendo o chá verde por uma chávena branca, das que é costume
encontrar naquele género de locais.
− Gosto de cá vir – disse Midori. – Dá-me a sensação de estar a fazer algo
de especial. Deve ser por causa das recordações de infância. Os meus pais
quase nunca me traziam aqui.
− Pois eu passava a vida a comer em restaurantes destes. A minha mãe
adorava fazer compras.
− Sorte a tua!
− Não concordo. Nunca gostei de ir às compras.
− Não estás a perceber. Tiveste sorte em ter quem se preocupasse contigo.
− Sou filho único – afirmei.
− Na minha meninice pensava que, quando crescesse, iria sozinha aos
grandes armazéns e comeria tudo aquilo que me desse na gana. Patético,
não achas? Qual é o gozo de uma pessoa comer sozinha num lugar destes?
Além de a comida não prestar, nada tem de divertido. São restaurantes
demasiado grandes e cheios de gente, barulhentos até dizer basta. Mesmo
assim, volta e meia, apetece-me cá vir.
− Passei estes dois meses muito triste – disse eu.
− Senti isso nas tuas cartas – observou Midori, num tom pouco
expressivo. – Bom, vamos comer. Neste preciso momento não consigo
pensar em mais nada.
Comemos os alimentos servidos nas caixas lacadas em forma de meia-
lua, bebemos a sopa e o chá verde da ordem. Midori acendeu um cigarro.
Depois, sem dizer uma palavra, levantou-se e pegou no guarda-chuva.
Imitei-a e levantei-me.
− E agora, onde vamos? – perguntei.
− Ao terraço, claro. É onde as pessoas costumam ir quando vêm almoçar
aos grandes armazéns – declarou Midori.
Não se via ninguém no terraço batido pela chuva. Nem sequer os
vendedores da secção dos animais de estimação. Tanto os quiosques como a
bilheteira dos espetáculos infantis estavam fechados. Midori e eu abrimos
os nossos guarda-chuvas e passeámos pelo meio dos cavalos de madeira, as
cadeiras de jardim e os expositores. Espantou-me ver um lugar tão deserto e
desolado no coração de Tóquio. Midori queria à viva força espreitar pelo
telescópio, por isso não tive outro remédio senão meter uma moeda na
ranhura e segurar no guarda-chuva enquanto ela observava a cidade de
olhos semicerrados.
A um canto do terraço havia um salão de jogos coberto, onde se
alinhavam as mais variadas maquinetas mecânicas para miúdos. Midori e eu
sentámo-nos ao lado um do outro, numa espécie de plataforma, e ficámos a
ver a chuva cair.
− Fala comigo − disse ela. – Deves ter coisas para me dizer.
− Não é minha intenção justificar-me, mas naquele dia estava deprimido e
não conseguia raciocinar como deve ser – declarei. – Mas uma coisa
percebi durante o tempo em que ficámos sem nos vermos. Longe de ti,
sinto-me desesperado e profundamente sozinho.
− Não imaginas... Não imaginas, Tōru, como também eu sofri e fui infeliz
durante estes dois meses.
− Pois não – disse eu, admirado. – Pensei que não me quisesses pôr a
vista em cima, uma vez que estavas furiosa.
− Por acaso serás estúpido? Claro que queria encontrar-me contigo. Não
sou uma rapariga volúvel, que gosta e deixa de gostar por dá cá aquela
palha. Nem sequer isso és capaz de entender?
− Claro que sei disso, mas...
− Estava danada contigo, só tinha vontade de te bater! Estivemos sem nos
vermos durante uma eternidade, e tu, com a cabeça nas nuvens, sempre a
pensar na outra rapariga, sem me ligares a ponta de um corno. Era natural
que tivesse ficado piursa, não achas? Aliás, o sentimento não é recente. Já
há uns tempos que pergunto a mim própria se não seria melhor estar uma
temporada longe de ti. Para clarificar as coisas.
− Que coisas?
− A nossa relação, óbvio. O que pretendo dizer é que, aos poucos,
comecei a sentir-me melhor contigo do que com o meu namorado. E isso
não é normal, para não dizer que não é um bom sinal. Gosto dele,
naturalmente. É um bocado egoísta, intolerante e reacionário, mas tem
outras qualidades, além de ter sido o meu primeiro amor. Mas tu... tu és
uma pessoa muito especial. Quando estou contigo, sinto-me em perfeita
sintonia. Confio em ti. Gosto de ti. Não quero perder-te. Naquele
famigerado dia em que me fui embora furiosa, encontrei-me com o meu
namorado e abri-lhe o coração. Pedi-lhe conselho. Ele disse-me que não
devia tornar a ver-te. Caso contrário, acabaria tudo comigo.
− E o que foi que aconteceu?
− Acabei tudo com ele. – Midori levou um Marlboro à boca, acendeu-o
protegendo o cigarro com as mãos e inspirou o fumo.
− Porquê?
− Ainda perguntas? – gritou ela. – Serás bom da cabeça? Sabes tudo sobre
o conjuntivo dos verbos ingleses, entendes de trigonometria, consegues ler
Marx... e não entendes uma coisa tão simples como esta? Porque me fazes
essa pergunta? Porque é que obrigas uma rapariga a dizer isto? Acabei
namoro com ele porque gosto mais de ti. Preferia estar apaixonada por um
homem mais bonito, mas que se há de fazer? Apaixonei-me por ti.
Tentei dizer alguma coisa, mas sentia um nó na garganta que me impedia
de falar.
Midori atirou o cigarro para uma poça de água.
− Não faças essa cara de espanto! Deprimes-me! Vais acabar por me fazer
chorar. Não te preocupes. Sei que gostas de outra pessoa, por isso não tenho
esperança. Podes abraçar-me, ao menos? Estes dois meses foram muito
difíceis para mim.
Abraçamo-nos debaixo dos guarda-chuvas, nas traseiras do salão de
jogos. Pressionámos os corpos e encostámos os lábios. Os seus cabelos e as
mangas do casaco conservavam o cheiro da chuva. Foi com emoção que
descobri até que ponto o corpo de uma mulher consegue ser macio e quente.
Sentia os seios dela apertados de encontro ao meu peito, debaixo da roupa.
Ocorreu-me que há muito não tinha contacto físico com outro ser humano.
− Conversei com o meu namorado na última noite em que estivemos os
dois juntos – esclareceu Midori. – Separámo-nos.
− Midori, amo-te – disse eu. – Com todo o meu coração. Nunca mais te
deixarei. Mas nada posso fazer. Neste momento, estou de mãos e pés
atados.
− Por causa da tal?
Fiz que sim com a cabeça.
− Já foste para a cama com ela?
− Uma única vez, no ano passado.
− E não voltaste a vê-la depois disso?
− Encontrámo-nos por duas vezes. Mas não aconteceu nada – expliquei.
− Porquê? Ela não gosta de ti?
− Não te sei dizer – respondi. – A situação é muito complicada. Existem
vários problemas. Tudo isto se tem prolongado por demasiado tempo, e eu,
para ser sincero, já não percebo rigorosamente nada. Nem eu nem ela. A
única coisa que sei é que, como ser humano, sinto-me responsável. Não
posso fugir ao meu dever. Pelo menos, é como vejo a situação. Mesmo que
ela não goste de mim.
− Deixa-me que te diga isto – afirmou Midori, encostando o rosto ao meu
pescoço. – Sou uma mulher de carne e osso. Estou abraçada a ti e confessei
que te amo. Farei aquilo que me disseres. Apesar de ser um bocado maluca,
tenho-me na conta de boa rapariga e mulher honesta. Sou trabalhadora,
bonita, tenho seios perfeitos, cozinho bem e o meu pai deixou-me numa
confortável situação financeira. Não me achas um bom partido? Se me
deixares escapar, acabarei por encontrar outro homem.
− Preciso de tempo – disse eu. – Tempo para pensar, para pôr a cabeça em
ordem, para tomar a melhor decisão. Tenho muita pena, mas, neste
momento, é tudo o que posso dizer.
− Mas amas-me do fundo do coração e não te queres separar nunca mais
de mim, certo?
− Sim.
Midori afastou-se, olhou-me nos olhos e sorriu.
− Tudo bem, esperarei por ti. Porque confio em ti – disse ela. – Mas se
me escolheres, escolhe-me só a mim. Quando fizeres amor comigo, pensa
só em mim. Compreendes o que quero dizer?
− Perfeitamente.
− Podes fazer o que quiseres, desde que não me magoes. Já me magoaram
mais do que o suficiente. Quero ser feliz.
Apertei-a com força e beijei-a.
− Que tal se largasses a porcaria do guarda-chuva e me abraçasses com
força? – sugeriu ela.
− Sem o guarda-chuva vamos ficar encharcados...
− Não faz mal, estou-me nas tintas. Quero que me apertes nos teus braços
e não penses em mais nada. Há dois meses que espero por isto.
Pousei o guarda-chuva aos pés e abracei-a com toda a força, debaixo de
chuva. Apenas se ouvia o som abafado dos pneus dos carros que passavam
em direção à autoestrada. A chuva continuava a cair, silenciosamente, sem
parar, molhando-nos o cabelo, rolando pelas nossas faces como lágrimas,
tingindo de escuro o blusão de ganga dela e o meu corta-vento de nylon
amarelo.
− Que tal irmos à procura de um sítio abrigado?
− Vem até minha casa – sugeriu ela. – Não tem ninguém a esta hora. Aqui
vamos acabar por apanhar uma constipação valente.
− Podes crer!
− Parece que atravessámos o rio a nado – comentou Midori, rindo-se. –
Ah, que bom! Estou tão feliz!
Aproveitámos para comprar uma toalha na secção de atoalhados dos
grandes armazéns e, à vez, enxugámos o cabelo na casa de banho. A seguir,
apanhámos o metro e fomos até ao apartamento de Midori. Deixou-me
tomar duche primeiro, e depois foi a vez dela. Emprestou-me um robe até a
minha roupa secar e vestiu uma saia e um polo. Depois bebemos uma
chávena de café sentados à mesa da cozinha.
− Fala-me de ti – pediu ela.
− O que queres saber?
− Bom... O que mais detestas?
− Carne de frango, doenças venéreas e barbeiros demasiado faladores.
− E que mais?
− Noites solitárias de abril e telefones com capas de renda.
− E que mais?
Abanei a cabeça.
− Não estou a ver mais nada.
− O meu namorado, ou, melhor dizendo, o meu ex-namorado, detestava
uma grande quantidade de coisas. Detestava ver-me de minissaia, detestava
que eu fumasse ou ficasse com os copos, que dissesse asneiras, que
criticasse os amigos dele... Caso haja algo em mim de que não gostes, sê
franco, peço-te por tudo. Se puder, tentarei corrigir essa falha.
− Não estou a ver nada, assim à primeira – disse eu, após ter refletido um
pouco.
− Estás a falar a sério?
− Gosto da forma como te vestes, do que fazes, do que dizes, da tua
maneira de andar e de ficares bêbeda. Gosto de tudo em ti.
− Não há nada que gostasses de mudar em mim?
− Não estou a ver, o que significa que estás bem assim.
− Até que ponto me amas?
− Ao ponto de todos os tigres das selvas espalhadas pelo mundo inteiro se
dissolverem até ficarem transformados em manteiga.
− Hum... – murmurou ela, fingindo-se insatisfeita. – Podes abraçar-me
outra vez?
Deitámo-nos nos braços um do outro. Beijámo-nos debaixo da roupa da
cama ouvindo o barulho da chuva e falámos de tudo o que se possa
imaginar, desde a formação do Universo até ao tempo de cozedura dos
ovos.
− O que farão as formigas nos dias de chuva? – quis saber ela.
− Não faço a mínima ideia – disse eu. – Talvez limpem o formigueiro e
aproveitem para arrumar a despensa. Não sei se sabes, mas as formigas são
muito trabalhadoras.
− Nesse caso, porque é que não evoluíram e deixaram de ser formigas?
− Não te sei responder a isso. Mas estou em crer que a sua estrutura física
não favorece a evolução. Isto é, quando comparada com a dos macacos.
− Afinal de contas, Tōru, há muitas coisas que desconheces – observou
Midori. – E eu a pensar que o mundo não tinha segredos para ti.
− O mundo é infinitamente vasto – argumentei.
− As montanhas são altas, os mares profundos – disse ela. Fazendo
deslizar a mão por baixo do robe, agarrou no meu pénis ereto. Engoliu em
seco. – Agora a sério, Tōru. Não vai resultar. Uma coisa tão dura e tão
grande como a tua não caberá dentro de mim. Impossível
− Estás a gozar comigo? – disse eu, suspirando.
− Sim – respondeu ela, soltando uma gargalhada abafada. – Tudo bem.
Podes ficar descansado. De certeza que cabe. Posso espreitar melhor?
− Podes fazer o que quiseres.
Ela desapareceu debaixo da roupa de cama e apalpou-me de todas as
maneiras possíveis e imaginárias. Arregaçou-me a pele do pénis e sopesou-
o na palma da mão. Depois pôs a cabeça de fora e respirou.
− Aprovado. Gostei imenso do que vi. E não estou a dizer isto para te
agradar.
− Obrigado – agradeci educadamente.
− Mas tu não queres fazer amor, pois não, Tōru? Até esclareceres tudo,
certo?
− Não é que não queira, sabes? Morro de desejo. Mas julgo que não devo.
− És um obstinado da gaita! Se eu estivesse no teu lugar, saltava-me para
cima. Depois logo pensaria no assunto.
− Farias mesmo isso?
− Não, minto – disse ela num murmúrio. – Acho que não seria capaz. É
isso que aprecio em ti. Amo-te muito.
− Amas-me a que ponto?
Em vez de responder, ela encostou-se toda a mim, beijou-me os mamilos
e começou a mexer devagar a mão que segurava no meu sexo. A primeira
coisa que me veio à mente foi a diferença na maneira como Midori e Naoko
me agarravam no pénis. Eram as duas delicadas e maravilhosas, mas faziam
a coisa de maneira diferente.
− Estás a pensar na outra, Tōru?
− Não, não estou – menti.
− Juras?
− Juro.
− Odiaria que, nestes momentos de intimidade, pensasses noutra pessoa.
− Seria incapaz disso.
− Queres acariciar o meu peito ou tocar-me mais abaixo? – perguntou
Midori.
− Gostaria muito, mas é melhor não. Tantos estímulos de uma só vez são
demasiada areia para a minha camioneta.
Midori assentiu e meteu a mão por baixo da roupa para tirar as cuecas e
pô-las na ponta do pénis.
− Podes usar as minhas cuequinhas.
− Vão ficar sujas.
− Não digas disparates, que ainda me fazes chorar – disse ela com voz
lagrimosa. – Basta lavá-las a seguir. Por isso, não te reprimas e goza à
vontade. Se a questão te preocupa tanto, só tens de me comprar umas novas.
Ou vais dizer que não consegues ir até ao fim por serem minhas?
− Claro que não!
− Então vamos lá. Despacha-te.
Mal acabei, examinou o meu esperma.
− Nada mal! – comentou, aparentando estar admirada.
− Demasiado?
− Para com isso. Não sejas parvo. Goza à vontade – disse Midori a rir,
antes de me beijar.
***
Ao fim da tarde, saiu de casa para ir às compras ali perto e preparou o
jantar. Sentados à mesa da cozinha, bebemos cerveja e comemos tempura
com arroz de ervilhas.
− Tens de te alimentar bem para produzires bastante esperma – disse
Midori. – Já sabes que podes contar comigo para te libertares dele.
− Agradecido.
− Conheço várias maneiras. Quando éramos donos da livraria, aprendi
uma data de coisas nas revistas femininas. Por exemplo, fiquei a saber que
as mulheres grávidas que não podem fazer sexo têm à sua disposição as
mais variadas técnicas, tudo para evitar que os maridos se deitem com
outras. Queres experimentar?
− Mal posso esperar.
Depois de me despedir dela, já no comboio, abri o vespertino que tinha
comprado na estação, mas dei-me conta de que não me estava nada a
apetecer ler aquelas notícias. Fiquei a olhar fixamente para as
incompreensíveis manchetes, ao mesmo tempo que pensava no que faria a
partir daí e no modo como as coisas mudariam. Tinha a sensação de que o
mundo à minha volta pulsava. Soltei um suspiro profundo e fechei os olhos.
Não me arrependia de nada, e estava convencido de que, caso fosse possível
voltar atrás, repetiria todos os gestos. Teria abraçado Midori no terraço,
debaixo da chuva inclemente, ficaríamos os dois ensopados, teríamos ido
parar à cama dela e, uma vez ali deitados, deixaria que ela me masturbasse.
Disso não tinha a mínima dúvida. Amava Midori e estava feliz da vida por
ela ter voltado para mim. Acreditava que a coisa poderia funcionar. E, tal
como ela mesma dissera, tratava-se de uma mulher de carne e osso que se
abandonara nos meus braços. Fizera tudo ao meu alcance para reprimir o
violento desejo de a despir e de a penetrar, mergulhando no seu calor. Vi-me
incapaz de a impedir de me agarrar no sexo e de o acariciar com os seus
dedos experientes. Queria que ela fizesse aquilo, e ela própria desejava
fazê-lo. Estávamos apaixonados. Quem poderia impedir-nos? Sim, eu
estava apaixonado por Midori. E provavelmente já o sabia antes. Só que
evitara durante muito tempo chegar a essa conclusão.
O problema era que não podia de forma alguma explicar a Naoko o rumo
que as coisas tinham tomado. Em circunstâncias diferentes, talvez tivesse
conseguido dizer-lhe que me apaixonara por outra. Sem esquecer que eu a
amava, de facto. Por mais que esse sentimento conhecesse agora uma forma
estranha e distorcida, não tinha dúvidas quanto ao amor que sentia por ela,
nem ao espaço intacto que lhe reservava no meu coração.
Restava-me escrever a Reiko e contar-lhe tudo, sem esconder nada. Já em
casa, sentei-me na varanda, a observar o jardim fustigado pela chuva, e
alinhavei meia dúzia de frases. «É com a maior tristeza que te escrevo esta
carta», comecei. Passei então a explicar-lhe o relacionamento que mantinha
com Midori e o que sucedera connosco naquele dia.
Continuo a amar a Naoko da mesma forma. Mas o que existe entre mim e a Midori é
algo definitivo. Sinto que se trata de uma força irresistível que, muito
possivelmente, acabará por nos arrastar em direção ao futuro. O amor que sinto pela
Naoko é calmo, meigo e inocente, ao passo que os meus sentimentos pela Midori
são de natureza totalmente diferente. O meu amor por ela tem pernas para andar,
respira, palpita. Faz-me vibrar por dentro. Sinto-me confuso, sem saber o que fazer.
Longe de mim pretender justificar-me, mas tenho a consciência de ter vivido até à
data de uma forma honesta, até para comigo próprio, sem mentir a ninguém. Sempre
tive cuidado para não magoar os outros. Mesmo assim, vi-me atirado para dentro de
um verdadeiro labirinto. Como é possível? Não encontro explicação, sinceramente.
Não sei o que fazer. Podes ajudar-me? És a única pessoa a quem posso pedir
conselho.
Antes de mais, as boas notícias. Fui informada de que a Naoko está a recuperar bem
mais depressa do que se esperava. Falei com ela uma vez ao telefone e, só pela voz,
pareceu-me que estava bastante lúcida. É possível que ela regresse para junto de nós
dentro em breve.
Agora, vamos à parte que te diz respeito.
Penso que não deverias levar as coisas tão a sério. Amar outra pessoa é
maravilhoso, e se esse sentimento for sincero, ninguém pode sentir-se enfiado num
labirinto. Confia em ti.
O meu conselho é muito simples. Em primeiro lugar, se te sentes genuinamente
atraído por essa rapariga, de nome Midori, nada mais natural do que estares
apaixonado por ela. Pode ser que resulte, pode ser que não. Mas as coisas do
coração, regra geral, são assim mesmo. Quando amamos alguém, é normal que nos
entreguemos a essa paixão. Esta é a minha opinião, pelo menos, e também a minha
maneira de ser sincera.
Em segundo lugar, no que diz respeito às relações sexuais com a Midori, prefiro
não opinar, muito honestamente. Fala com ela e arranjem uma solução que vos
satisfaça a ambos.
Em terceiro lugar, não digas nada à Naoko. Se isso algum dia tiver de acontecer,
então logo discutiremos os dois a melhor maneira de abordar a questão. Por
enquanto, é melhor fechares-te em copas. Deixa, que eu trato do assunto.
Em quarto lugar, devo reconhecer que apoiaste imenso a Naoko, e mesmo que
não seja amor o que sentes, continuas a poder fazer muito por ela. Como tal, não
leves o assunto tão a peito. Todos nós (e refiro-me a todas as pessoas, tanto as
normais como as que não o são) somos seres imperfeitos vivendo num mundo
imperfeito. Não devemos encarar a vida de maneira tão rígida, medindo as nossas
ações com uma régua e o ângulo das questões com um transferidor, não te parece?
Pessoalmente, acho que a Midori deve ser uma jovem fantástica. Ao ler a tua
carta, compreendi porque te sentes atraído por ela. Ao mesmo tempo, também
compreendo por que razão estás apaixonado pela Naoko. Não é crime nenhum,
convenhamos. Acontece muitas vezes. É o mesmo que sair para dar um passeio num
belo barco, num bonito lago, e pensar que o céu e o barco são estupendos. Não te
tortures. Deixa as coisas seguirem o seu rumo. Por mais que te esforces, quando
chega a altura de uma pessoa se magoar, não há nada a fazer. É a vida. Pode parecer
pretensioso da minha parte, mas já está na hora de aprenderes a viver assim. Às
vezes, tenho a impressão de que exageras, por tentares que a vida se adapte à tua
maneira de viver. Se não queres acabar os dias num hospital psiquiátrico, abre o teu
coração e deixa-te levar pelo curso dos acontecimentos. Volta e meia, até mesmo
uma mulher impotente e incompleta como eu chega à conclusão de que a vida pode
ser maravilhosa. Procura ser feliz. Em frente é o caminho.
Naturalmente que fico triste pelo facto de as coisas entre ti e a Naoko não terem
tido o chamado final feliz. Mas quem pode saber o que teria sido melhor? Portanto,
agarra-te a essa oportunidade sem te preocupares com o que os outros pensam, já
que acreditas nela. Pela minha experiência pessoal, há que aproveitar e ser feliz.
Oportunidades destas aparecem duas ou três vezes na vida, e se as deixares escapar,
arrepender-te-ás para sempre.
Continuo a tocar guitarra todos os dias, embora não tenha quem me oiça. Uma
estupidez, não achas? Também eu detesto as noites sombrias e chuvosas. Espero vir
um dia a tocar de novo para ti e para a Naoko, enquanto saboreamos umas belas
uvas no nosso apartamento.
Até breve.
Reiko Ishida
44 Um tipo de bentō, apresentado numa caixa lacada e servido tradicionalmente no teatro, durante o
intervalo. O menu variado consiste em arroz e vários alimentos: picles, peixe grelhado, tempura e
frango. (N. da T.)
Reiko escreveu-me umas quantas vezes depois da morte de Naoko. Não era
culpa minha nem de ninguém, disse-me e tornou a dizer, tal como não se
podia assacar a responsabilidade da chuva a quem quer que fosse. Mas
nunca lhe respondi. O que poderia dizer-lhe? Além do mais, nada adiantava.
Naoko já não fazia parte deste mundo; transformara-se num punhado de
cinzas.
No final de agosto, logo a seguir ao discreto funeral de Naoko, em Kōbe,
regressei a Tóquio. Fui bater à porta do meu senhorio para lhe comunicar
que precisava de me ausentar durante uns tempos. Aproveitei a onda e
comuniquei ao dono do restaurante italiano que não regressaria ao trabalho.
A seguir, escrevi a Midori umas curtas linhas a explicar que tinha muita
pena e que, de momento, não podia adiantar muito. Pedi-lhe para esperar
mais um pouco. Passei três dias mergulhado numa verdadeira maratona de
filmes. Após ter visto todos os filmes exibidos nas salas de cinema de
Tóquio, meti as minhas coisas na mochila, levantei o dinheiro que tinha à
ordem na conta bancária, dirigi-me à estação de Shinjuku e apanhei o
primeiro comboio.
Não me lembro dos sítios por onde passei, nem de como lá fui parar.
Lembro-me, isso sim, e com uma nitidez espantosa, das paisagens, dos
cheiros e dos sons. Quanto aos nomes das localidades, não tenho qualquer
memória. Tão-pouco me recordo da ordem por que os visitei. Apanhei o
comboio e fui de cidade em cidade, meti-me no autocarro, apanhei boleia
de um camião, passei noites em descampados, numa estação, num parque, à
beira-rio ou na praia, em qualquer sítio onde pudesse estender o saco-cama.
Cheguei a dormir numa esquadra de polícia e paredes-meias com um
cemitério. Adormecia em qualquer lado, desde que não incomodasse
ninguém e pudesse dormir tranquilamente. Cansado de tanto andar, enfiava-
me no saco-cama e caía nos braços de Morfeu depois de ter emborcado uma
dose de uísque barato. Nas cidades hospitaleiras, as pessoas traziam-me
comida e davam-me paus de incenso para afastar os mosquitos; nas cidades
pouco acolhedoras, chamavam a polícia ou expulsavam-me dos parques
públicos. Estava-me perfeitamente nas tintas. Tudo o que eu queria era
dormir num lugar desconhecido.
Quando o dinheiro se acabava, trabalhava no duro durante três ou quatro
dias, o suficiente para ganhar umas massas que me permitissem satisfazer
as minhas necessidades imediatas. Encontrei sempre trabalho, fosse onde
fosse. Deambulava de cidade em cidade, sem destino. O mundo estava
repleto de coisas (e pessoas) estranhas. Certo dia, liguei para casa de
Midori. Morria de vontade de ouvir a voz dela.
− Não sei se reparaste, mas as aulas começaram há séculos – disse ela do
outro lado da linha. – Os professores de algumas disciplinas já começaram a
marcar data de entrega para os trabalhos. Afinal de contas, qual é a tua
ideia? Onde é que estás? O que andas a fazer?
− Desculpa, mas por enquanto não posso regressar a Tóquio – respondi.
− É só isso que tens para me dizer?
− Não posso mesmo explicar nada agora. Em outubro...
Midori desligou-me o telefone na cara.
Continuei viagem. Volta e meia, passava a noite numa pensão para tomar
banho e fazer a barba. O espelho devolvia-me uma imagem desanimadora.
Tinha a pele tisnada pelo sol, os olhos afundados e as faces cheias de cortes
e de manchas. Parecia um homem acabado de sair das profundezas de uma
caverna, mas reconhecia-me naquele rosto.
***
***
Quatro dias depois de regressar a Tóquio, recebi uma carta de Reiko.
No envelope reconheci um selo de correio urgente. O conteúdo era
extremamente sucinto. «Não consegui entrar em contacto contigo e estou
preocupada. Gostaria que me telefonasses. Vou esperar a tua chamada junto
do telefone todos os dias, das nove da manhã às nove da noite.»
Liguei para o número dela às nove da noite. Reiko atendeu ao primeiro
toque.
− Como estás? – perguntou-me.
− Vou indo – respondi.
− Posso ir visitar-te depois de amanhã?
− Visitar-me? Aqui em Tóquio?
− Sim. Preciso de conversar calmamente contigo.
− Quer dizer que vais abandonar a residência?
− É a única maneira de poder estar contigo – disse ela. – Já não era sem
tempo. Estou aqui há oito anos. Se ficar mais um dia que seja, arrisco-me a
apodrecer.
Fiquei calado por momentos, sem saber o que dizer.
− Chego à estação de Tóquio no comboio-bala das três e vinte. Podes ir
buscar-me? Ainda te lembras da minha cara, espero... Ou, agora que a
Naoko morreu, já não te interessas por mim?
− Não digas disparates! Podes contar comigo amanhã na estação de
Tóquio, quando forem três e vinte.
− Vais reconhecer-me logo. Não devem andar por aí muitas senhoras de
idade com uma guitarra às costas.
***
***
***
***
***
***
No quarto às escuras, com as persianas corridas, Reiko e eu abraçámo-nos
espontaneamente e os nossos corpos procuraram-se como se fosse a coisa
mais natural do mundo. Despi-lhe a blusa e as calças, bem como a roupa
interior.
− Aconteceram-me muitas coisas curiosas, mas nunca imaginei ver um
rapaz de dezanove anos a despir-me as cuecas.
− Preferes ser tu a despi-las? – propus.
− Não, força – consentiu ela. – Mas aviso-te já que o meu corpo está
marcado pelas rugas, espero que não fiques dececionado.
− Adoro as tuas rugas.
− Cala-te, que ainda me fazes chorar...
Beijei-lhe o corpo todo e percorri com a língua cada uma das suas rugas.
Envolvi com a minha mão os seus seios de menina, mordendo
delicadamente os mamilos, e depois enfiei os dedos na vagina cálida e
húmida e comecei a movimentá-los.
− Tōru – sussurrou Reiko ao meu ouvido. – Aí só encontras uma ruga...
− Como é que consegues dizer piadas num momento como este? –
perguntei, siderado.
− Desculpa – disse Reiko. – Tenho medo, entendes? Há muito que não sei
o que é fazer amor. Sinto-me como uma jovenzinha de dezassete anos que
foi ter com um rapaz ao quarto dele e de repente se viu nua.
− E eu sinto-me como se estivesse a violar uma rapariga de dezassete
anos.
Introduzi os dedos naquela «ruga», beijei-a do pescoço à orelha e
belisquei-lhe os mamilos. Quando a respiração dela acelerou e a garganta
começou a palpitar, abri-lhe as pernas esguias e penetrei-a.
− Tomaste as devidas precauções para não me engravidar, espero? –
perguntou-me Reiko baixinho. – Seria uma vergonha ficar grávida nesta
idade.
− Tudo bem. Não te preocupes.
Quando toquei no ponto mais profundo, ela estremeceu e suspirou.
Acariciei delicadamente as suas costas, como se as estivesse a massajar;
ejaculei com violência, sem conseguir conter-me. Agarrado a ela, senti o
meu sémen pulsar dentro do seu sexo quente.
− Desculpa. Não me consegui aguentar – disse eu.
− Não sejas parvo. Não tens nada que pedir desculpa – disse Reiko,
dando-me uma palmadinha nas nádegas. – Pensas sempre nisso quando vais
para a cama com uma mulher?
− Pode dizer-se que sim.
− Comigo não precisas de te preocupar. Esquece. Goza quando te
apetecer e quantas vezes te der na gana. Foi bom?
− Melhor do que bom. Por isso é que me vim desta maneira, sem me
conseguir controlar.
− O controlo não é para aqui chamado. Deixa lá isso. Também foi muito
bom para mim.
− Ouve uma coisa, Reiko – disse eu.
− Diz lá.
− Tens de te apaixonar novamente por alguém. És uma mulher
extraordinária, seria uma pena ficares sozinha.
− Prometo pensar no assunto – replicou ela. – Resta saber se será possível
uma pessoa apaixonar-se num lugar como Asahikawa.
Pouco depois, voltei a introduzir o pénis na sua vagina. Debaixo de mim,
Reiko contorcia-se de prazer e respirava de forma entrecortada. Abraçado a
ela, mexia-me lentamente, trocando frases sussurradas. Era maravilhoso
conversar dentro dela. Sempre que eu dizia uma coisa engraçada, Reiko ria-
se. Ficámos abraçados assim durante muito tempo.
− É a melhor sensação do mundo – afirmou ela.
− Também não é mau quando nos movemos – disse eu.
− Apetece-te experimentar?
Levantei-lhe os quadris e penetrei-a até aos copos, deleitando-me com a
sensação de me mexer dentro dela até que, atingindo o máximo prazer,
ejaculei de novo.
***
Naquela noite, fizemos amor quatro vezes46. Ao fim da cada uma delas,
Reiko abandonava-se nos meus braços, fechava os olhos e suspirava
profundamente. O seu corpo estremecia.
− Agora posso ficar sem fazer amor, não é? – disse ela. – Diz que não,
peço-te por tudo. Sinto que já fiz amor para o resto da vida.
− Quem sabe?
***
***
Telefonei a Midori.
− Preciso de falar contigo. Tenho muitas coisas para te contar. Precisamos
de conversar a sério. És tudo o que desejo neste mundo. Quero estar contigo
para conversarmos. Começar uma vida nova contigo a meu lado – disse-lhe.
Do outro lado da linha, Midori permaneceu calada durante muito tempo.
O silêncio prolongou-se, como se toda a chuva do mundo desabasse sobre a
face da Terra. Enquanto isso, de olhos fechados, eu encostava com força a
testa no vidro da cabina telefónica. Midori quebrou finalmente o silêncio.
− Onde estás neste momento? – perguntou numa voz calma.
Onde estava eu naquele momento?
Com o auscultador na mão, ergui o olhar e olhei em redor. Não fazia a
mínima ideia de onde estava. Afinal, que lugar era aquele? As minhas
pupilas refletiam apenas a sombra da multidão que passava por mim a
caminho de nenhures. E no meio desse lugar sem lugar, eu chamava por
Midori.
45 Planta da família da Colocasia, originária da Ásia tropical. A partir da raiz moída obtêm-se massas
de consistência gelatinosa, que se utilizam como ingrediente na nabe-ryōri, comida que se cozinha à
mesa num pequeno fogão, nomeadamente o sukiyaki. (N. da T.)
46 Em japonês, o número quatro pronuncia-se como a palavra «morte» (shi). Os japoneses evitam o
«quatro», conforme os mais supersticiosos tentam esquivar-se ao 13. Anteriormente, já tinha havido
referência às quatro visitas semanais de Midori ao pai no hospital e ao facto de Tōru reler a carta de
Midori quatro vezes. (N. da T.)