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Ficha Técnica

Título original: Noruwei no mori / Norwegian Wood


Autor: Haruki Murakami
Tradução: Maria João Lourenço
Editora: Marta Ramires
Revisão: Rui Augusto
ISBN: 9789897416279
CASA DAS LETRAS
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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico


HARUKI MURAKAMI

NORWEGIAN
WOOD
Tradução
Maria João Lourenço
For Many Fêtes
Na altura, eu tinha trinta e sete anos e seguia a bordo de um Boeing 747.
Descrito como um pássaro gigantesco, o avião deu início à descida,
atravessou as densas nuvens carregadas de chuva e fez-se à pista do
aeroporto de Hamburgo1. A fria chuva de novembro tingia de cinzento a
terra e transformava tudo em redor numa lúgubre paisagem digna da pintura
flamenga: o pessoal de terra com impermeáveis, a bandeira no topo de um
edifício térreo do aeroporto, um painel publicitário da BMW. Alemanha,
aqui estou eu de novo, pensei.
Mal o aparelho completou a aterragem, apagaram-se os sinais luminosos
que indicavam a proibição de fumar. Debitada pelos altifalantes, começou a
soar baixinho a música de fundo. «Norwegian Wood», dos Beatles, numa
versão orquestral delicodoce. Como de costume, a melodia teve o condão
de me comover. Não, em bom rigor, não me comoveu; produziu em mim
uma reação muito mais violenta do que era normal.
Para impedir que a minha cabeça estalasse, cobri a cara com as mãos,
inclinei-me todo para a frente e permaneci imóvel nessa posição. Segundos
depois, aproximou-se uma assistente de bordo alemã, que quis saber, em
inglês, se me estava a sentir mal. Respondi-lhe que não, que se tratava
apenas de uma ligeira tontura.
− De certeza que está tudo bem?
− Sim, obrigado pela atenção – disse eu.
A assistente de bordo sorriu e afastou-se. O som da música mudou,
passando a ser transmitida uma canção de Billy Joel. Desviei os olhos para
o céu e contemplei as nuvens escuras que pairavam sobre o mar do Norte.
Pensei em todas as coisas que perdera ao longo da vida. O tempo que
passara, as pessoas mortas ou desaparecidas do mapa, as emoções que
nunca mais tornaria a viver.
O avião imobilizou-se por completo. Enquanto os passageiros tratavam
de desapertar os cintos de segurança e de retirar a bagagem de mão e os
casacos dos compartimentos superiores, encontrava-me eu em plena
pradaria. Cheirei o perfume da erva, senti o vento na pele, ouvi o canto dos
pássaros. Era o outono de 1969, e estava prestes a fazer vinte anos.
A mesma assistente de bordo aproximou-se, sentou-se ao meu lado e
perguntou se me sentia melhor.
− Estou bem, obrigado – respondi em inglês, sorrindo. – De repente, deu-
me para a melancolia. Só isso.
− Compreendo. Às vezes também me acontece o mesmo. Compreendo
como se sente – declarou ela, em inglês. Abanando a cabeça, levantou-se do
assento e brindou-me com um sorriso encantador. – Desejo-lhe boa viagem.
Auf Wiedersehen.
− Auf Wiedersehen – repeti.

***

Ainda hoje, e já lá vão dezoito anos, recordo nitidamente aquela pradaria e


a paisagem à volta. A montanha, que uma chuva fina e persistente libertara
da poeira acumulada durante o verão, cobrira-se de um verde profundo e
vivo. As espigas de suzuki2 que baloiçavam ao sabor do vento de outubro,
as nuvens compridas que aderiam na perfeição ao cimo do céu, azul e
transparente como uma lasca de gelo. Lá no alto, o Sol: se alguém o fixasse
durante muito tempo, ficava com os olhos a doer. O vento que varria a
pradaria fazia ondular os cabelos dela, antes de se aventurar bosque dentro.
(Nos ramos das árvores, as folhas murmuravam e, ao longe, um cão
ladrava.) Fracos e apagados, os latidos faziam lembrar uma voz do outro
mundo. De resto, silêncio absoluto. Não se ouvia rigorosamente mais nada.
Não se via ninguém. Apenas dois pássaros vermelhos, que levantaram voo
em direção ao bosque, como se alguma coisa os tivesse assustado. Enquanto
caminhávamos, Naoko3 contou-me a história do poço.

***
A memória é uma coisa estranha. Quando me encontrava naquele lugar, mal
prestei atenção à paisagem. Não me parecia que tivesse alguma coisa de
especial, e muito menos que, dezoito anos mais tarde, me lembraria dela
nos mais ínfimos pormenores. Para dizer a verdade, naquela época estava-
me nas tintas para a paisagem. Pensava apenas em mim, na rapariga
lindíssima que caminhava ao meu lado, na nossa relação, e em mim outra
vez. Estava numa idade em que não importava o que pudesse ver, sentir e
pensar: no final, regressava tudo ao ponto de partida, como um
bumerangue. A minha pessoa. Para piorar a situação, estava apaixonado, e
aquele amor conduzira-me a uma situação extraordinariamente complicada.
Não, decididamente, a paisagem era a última das minhas preocupações.
Nos dias que correm, a primeira coisa que me vem à lembrança é aquela
cena da pradaria. O cheiro da erva, a brisa fresca, a linha das montanhas,
um cão a ladrar: são as coisas que recordo. Com tanta nitidez que tenho a
impressão de que, se estendesse o braço, poderia tocar nelas, uma a uma,
com a ponta dos dedos. Acontece que essa paisagem se encontra deserta.
Não tem ninguém. Naoko não faz parte dela, e eu também não. Onde
teremos ido parar os dois, pergunto a mim próprio. Como pode isso ter
acontecido? Onde foi parar tudo o que parecia ser mais importante: ela, o
meu antigo eu, o nosso pequeno mundo? Neste momento, nem sequer
recordo o rosto de Naoko. O que ficou não passa de uma paisagem
despovoada.
Se me der ao trabalho, como é óbvio, sou capaz de recordar a cara dela.
As suas mãos pequenas e frias, o cabelo liso, tão suave e agradável ao
toque, o sinalzinho abaixo do lóbulo delicado e carnudo da orelha, o
elegante casaco de pelo de camelo que costumava usar no inverno, o hábito
de olhar toda a gente nos olhos quando fazia uma pergunta, a voz que, volta
e meia, tremia por alguma razão, como se estivesse a falar no cimo de uma
colina varrida pelo vento. Ao sobrepor estas imagens, o seu rosto surgia
naturalmente. Antes do mais, o perfil. Talvez pelo facto de caminharmos
quase sempre lado a lado. Sim, deve ser isso. Depois, ela vira-se para mim,
sorri docemente, inclina a cabeça e começa a falar, sem tirar os olhos dos
meus. Como se esperasse ver neles a sombra de um peixinho atravessando,
veloz, uma nascente de águas cristalinas.
Ainda demora até o rosto de Naoko surgir diante de mim. E, à medida
que os anos passam, mais tempo leva. Triste, mas verdadeiro. A princípio,
bastavam cinco segundos para me recordar do seu rosto, mas, às tantas, os
cinco converteram-se em dez, em trinta, num minuto. Posto de outro modo,
o tempo começou a alongar-se, tal como acontece com as sombras no lusco-
fusco. Sim, é isso. A pouco e pouco, as sombras serão engolidas pelas
trevas. O que significa que a minha memória acabará por se distanciar
definitivamente de Naoko. Assim como se afasta do meu antigo «eu». Só a
paisagem, a imagem daquela pradaria no mês de outubro, continua a
aparecer-me repetidamente, evocando a narrativa simbólica de um filme.
Quando aparece, é como se essa cena tivesse o condão de sacudir uma parte
do meu cérebro e gritar: «Vamos a acordar! Não vês que ainda estou aqui?
Acorda e vê se atinas, se compreendes o que ando a fazer!»
Não é que me faça doer. Apenas sinto o som seco que acompanha cada
pancada, um rumor que ecoa no vazio, e até mesmo esse som acabará por se
extinguir, aos poucos. Tal como tudo o mais, de resto. Mas a bordo daquele
avião da Lufthansa, no aeroporto de Hamburgo, a sacudidela foi mais forte,
mais prolongada do que nunca. «Acorda! Vê se atinas!» É por isso que
escrevo este livro. Sou uma daquelas pessoas que só conseguem
compreender seja o que for depois de pôr tudo no papel.4

***

O que me contava Naoko, naquele dia?


Ah, sim, já me lembro. Era a história do poço. Se o tal poço realmente
existiu, não sei dizer. Pode muito bem acontecer que se tratasse de uma
imagem ou de um símbolo, fruto da imaginação dela. Como muitos outros
fios próprios da efabulação que, por aqueles dias, se enredavam na sua
mente. No entanto, depois de ter ouvido a história, é impossível observar a
paisagem sem a associar ao poço. Na realidade, a imagem do poço que eu
nunca vira na vida fundia-se, na minha mente, com a paisagem da qual este
formava parte indissociável. Sou capaz de descrever ao pormenor as suas
características. O poço encontra-se na fronteira que separa o prado do
bosque. Forma um grande buraco negro com um metro de diâmetro, que se
afunda no solo, engenhosamente escondido no meio da erva. Não se vê
nenhuma vedação nem existe qualquer muro de pedra, por pequeno que
seja. Trata-se de um mero buraco a céu aberto. Expostas às forças da
natureza, as pedras que formam a boca do poço adquiriram uma tonalidade
branca estranhamente turva e, aqui e ali, estão rachadas e desmoronaram-se.
Dá para ver pequenas lagartixas esverdeadas esgueirando-se por entre as
fendas. Mesmo que me incline ao máximo para espreitar, não consigo
distinguir a ponta de um corno. É de uma profundeza assustadora,
inimaginável. No seu interior reina a mais esmagadora escuridão: é como se
ali se concentrasse toda a escuridão do mundo, devidamente destilada.

***

− Olha que é fundo, muito fundo mesmo – dizia Naoko, escolhendo as


palavras com todo o cuidado. Às vezes, falava assim. Pausadamente,
procurando os termos apropriados. – É extremamente fundo, mas ninguém
consegue dizer onde fica. Só sei que fica aqui ao pé. Se alguém tiver o azar
de cair dentro do poço, é morte certa.
− Se alguém tiver o azar de cair, acabou-se. Catrapum! É a morte do
artista.
− Será que essas coisas acontecem?
− Volta e meia. De dois em dois anos... ou de três em três. Alguém
desaparece sem dizer água-vai, e as buscas não resultam em nada. Nesses
casos, os habitantes da região têm por hábito dizer: «Ah, mais um que caiu
ao poço!»
− Não deve ser uma morte agradável! – comentei.
− Pois não, é uma forma horrível de morrer – exclamou Naoko,
sacudindo com a mão os fragmentos de erva agarrados ao casaco. – Se uma
pessoa partir o pescoço e tiver morte imediata, ainda vá, mas no caso de
torcer o pé, ou coisa do género, não há nada a fazer. Por mais que grite,
ninguém vai ouvi-la, não há esperança de ser encontrada. Imagina o que
será ficares ali enfiado naquele buraco escuro e húmido, em contacto com
ossos de pessoas mortas, com as aranhas e as centopeias a passearem pelo
teu corpo... Lá em cima recorta-se um pequeníssimo círculo de luz, que faz
lembrar a Lua no inverno, enquanto tu vais morrendo aos poucos, na mais
profunda solidão.
− Fico arrepiado só de pensar nisso – disse eu. – Alguém devia encontrar
esse poço e construir uma vedação à volta.
− Mas é impossível dar com ele. Por isso, o melhor é teres cuidado e não
te afastares muito do caminho.
− Prometo não me afastar.
Naoko tirou a mão esquerda do bolso e pegou na minha.
− Tu não corres perigo, não precisas de estar preocupado. Poderias
caminhar por aqui de noite, com os olhos vendados, que nunca cairias
dentro do poço. E eu, desde que esteja contigo, também não corro esse
risco.
− Tens a certeza?
− Absoluta.
− Como podes afirmar isso?
− Intuição pura – respondeu Naoko, agarrando-me na mão com mais
força. Durante algum tempo, continuámos a andar em silêncio. – Tenho
queda para essas coisas. É um pressentimento, não tem nada que ver com a
lógica. Por exemplo, agora que caminho ao teu lado, não tenho medo. Nem
o mal nem a escuridão poderiam fazer-me mal.
− Nesse caso, a questão é muito simples. Basta que fiquemos eternamente
assim – disse eu.
− Estás a falar a sério?
− Claro que sim.
Naoko parou de repente. Eu também. Ela pousou as mãos sobre os meus
ombros e encarou-me. Possuía uns olhos bonitos, à sua maneira. No fundo
das pupilas, um líquido negro e denso desenhava uma estranha espiral. Por
um breve instante, que durou uma eternidade, aqueles belíssimos olhos
mergulharam nos recessos mais profundos do meu ser. Depois, erguendo-se
na ponta dos pés, Naoko encostou carinhosamente a face à minha. Diante
daquele gesto de ternura tão afetuoso, o meu coração quase parou de tanto
bater.
− Obrigada – disse Naoko.
− De nada – respondi.
− Fico contente por te ouvir dizer isso. Muito contente – declarou ela com
um sorriso triste. – Infelizmente, não é possível.
− Porquê?
− Porque seria errado. Seria absurdo. Seria...
Naoko calou-se de repente e recomeçou a andar. Ao dar-me conta do
torvelinho de pensamentos que iam na sua cabeça, continuei a caminhar ao
lado dela, calado.
− Porque seria injusto. Tanto para ti como para mim – acrescentou,
rompendo o longo silêncio.
− Injusto em que sentido? – perguntei baixinho.
− Na medida em que se torna impossível alguém proteger sempre outra
pessoa. Imagina que nos casávamos... Tu arranjarias emprego numa
empresa qualquer, certo? Quem me protegeria nas ocasiões em que
estivesses fora de casa, a trabalhar? E quem me protegeria quando partisses
em viagem de negócios? Achas que uma pessoa pode ficar presa a outra até
ao fim da vida? Onde é que está a igualdade? Não se pode chamar a isso
uma verdadeira relação, pois não? Mais cedo ou mais tarde, acabarias por te
fartar de mim. «Que vida é esta?», perguntarias a ti próprio. «Fazer as vezes
de ama-seca de uma mulher?» Quero evitar a todo o custo que isso
aconteça. Como vês, não resolveria nenhum dos meus problemas.
− Mas esses problemas não vão prolongar-se para sempre. – Reagi de
imediato pousando a mão nas suas costas. – Um dia, acabarão de vez. E,
nessa altura, podemos parar e repensar tudo. Só temos de decidir o que
fazer a partir daí. Talvez então sejas tu a ajudar-me, quem sabe? Não temos
forçosamente de funcionar com essa certeza matemática, como se a nossa
vida fosse um livro de deve-haver. Se tu precisas de mim agora, qual é o
mal de eu te apoiar? Compreendes o que quero dizer? Porquê essa rigidez
de princípios? Procura descontrair-te. É precisamente por estares tensa que
vês as coisas de forma pessimista. Se te descontraíres um bocadinho, vais
ver que te sentirás mais leve.
− Como podes afirmar semelhante coisa? – perguntou Naoko, num tom
despojado de calor humano.
Ao ouvi-la, percebi que cometera um deslize.
− Porque dizes isso? – voltou ela à carga, sem levantar os olhos. – Toda a
gente sabe que, se uma pessoa se descontrair, fica mais leve. De que adianta
dizer-me isso? Se eu abrandar agora, ficarei despedaçada. Sempre vivi
assim, e seria incapaz de viver de outra maneira. Se me descontrair por um
segundo que seja, não poderei voltar atrás. E se ficar feita num oito, o vento
encarregar-se-á de dispersar os bocados que restarem de mim. Custa-te
muito a perceber? Como podes pensar sequer em tomar conta de mim, se
nem isto consegues entender?
Fiquei calado.
− Sinto-me muito mais perdida do que possas imaginar. À minha volta só
existem trevas e um frio de morte... Por que razão foste para a cama comigo
daquela vez? Porque é que não me deixaste em paz?
Passeávamos pelo meio de um pinhal terrivelmente silencioso.
Espalhadas pelo caminho, carcaças ressequidas de cigarras mortas
estalavam debaixo dos nossos pés. Naoko e eu percorríamos o pinhal
lentamente, com os olhos postos no chão, como se procurássemos algum
objeto perdido.
− Desculpa – disse Naoko, agarrando-me carinhosamente no braço e
abanando a cabeça. – Longe de mim ferir os teus sentimentos. Não faças
caso do que eu disse. Lamento muito, a sério. No fundo, só estava
aborrecida comigo mesma.
− Se calhar, ainda não te conheço bem – desabafei. – Demoro a
compreender as coisas, falta-me perspicácia. Mas, com um pouco mais de
tempo, penso que chegarei lá. Estou em crer que serei capaz de vir a
compreender-te na perfeição, talvez até melhor do que qualquer outra
pessoa neste mundo.
Parámos os dois e ali ficámos, deixando-nos tocar pelo silêncio que nos
envolvia. Entretive-me a fazer rolar as carcaças secas das cigarras e as
pinhas com a ponta dos sapatos; a páginas tantas, inclinei a cabeça e
contemplei o céu através dos ramos dos pinheiros. De mãos enfiadas nos
bolsos, Naoko permanecia absorta, sem olhar para nada em concreto.
− Diz-me uma coisa, Tōru. Gostas de mim?
− Claro – respondi.
− Posso pedir-te dois favores?
− Até três, minha senhora, se for caso disso.
Naoko abanou a cabeça, a rir.
− Dois é quanto basta. O primeiro é compreenderes a importância que
dou ao facto de teres vindo ter comigo. Estou muito contente... e ajudou-me
imenso, acredita. Pode não parecer, mas é verdade.
− Prometo vir mais vezes – disse eu. – Qual é o outro?
− Gostaria que nunca te esquecesses de mim. Recordar-te-ás até ao fim
dos teus dias da minha existência e da minha presença ao teu lado, como
acontece neste momento?
− Recordarei sempre isso, como é óbvio – respondi.
Sem acrescentar mais nada, Naoko começou a caminhar à minha frente. A
claridade outonal infiltrava-se através das copas das árvores e as sombras
dançavam-lhe nos ombros do casaco. Ouvimos o cão ladrar de novo, agora
mais perto. Naoko subiu a um ligeiro promontório, que mais parecia uma
pequena colina, e, saindo do pinhal, ágil e despachada como era seu
costume, desceu a encosta suave. Eu segui-a à distância de dois ou três
passos.
− Anda. O poço deve estar por estas bandas – chamei-a.
Naoko parou de repente, sorriu-me e deu-me o braço. Percorremos o resto
do caminho ao lado um do outro.
− Prometes não roer a corda. Que é como quem diz, nunca me
esquecerás? – perguntou ela num murmúrio.
− Nunca – respondi. – Como poderia esquecer-te?

***

O certo, porém, é que a memória acaba por nos atraiçoar. Confesso que me
esqueci não só daquele pinhal, como de muitas outras coisas. De vez em
quando, ao pôr no papel os meus pensamentos, sinto-me invadido por uma
angústia terrível. Terei deixado escapar as coisas mais importantes? E se as
lembranças fundamentais se tiverem acumulado num lugar obscuro do meu
corpo, numa espécie de limbo da memória, formando uma massa tão
inconsistente como o lodo? Assaltam-me dúvidas.
De momento, é o que se arranja. Por isso, escrevo este livro movido pelo
desespero de um homem faminto agarrado a um osso, apertando contra o
peito as recordações imperfeitas que desapareceram e continuam a dissipar-
se a cada segundo que passa. Essa é a única forma de manter a promessa
feita a Naoko.
Anos atrás, quando era ainda jovem e tinha as imagens vivas na memória,
tentei várias vezes escrever sobre ela. Na altura, porém, vi-me grego para
que me saísse uma única linha. No fundo, sabia que, se fosse capaz de
desencantar a primeira linha, o resto viria por acréscimo, com mais
facilidade, mas a primeira frase não havia maneira de surgir. Estava tudo
demasiado nítido e eu não sabia por onde começar. Como acontece quando
temos diante dos olhos um mapa muito pormenorizado e não somos capazes
de encontrar o fio da meada, estão a ver? Mas agora compreendo. No fim
de contas, só conseguirei preencher o recetáculo incompleto que é a escrita
recorrendo às recordações e aos pensamentos imperfeitos. E quanto mais se
desvaneceu a imagem de Naoko dentro de mim, mais tenho a impressão de
a compreender. Entendo agora a razão pela qual pediu para não me esquecer
dela. Naoko sabia, obviamente. Sabia que, aos poucos, estava condenada a
volatilizar-se da minha memória. Foi por isso que me pediu para a recordar
para sempre.
Pensar nisso deixa-me terrivelmente triste. Porque Naoko nunca chegou a
amar-me.

1 A cidade alemã nunca mais é referida. No entanto, convém acrescentar que se trata do lugar onde
nasceu Hans Castorp, personagem principal de A Montanha Mágica de Thomas Mann, referido por
várias vezes ao longo deste romance. Por outro lado, no ano de 1960, Hamburgo revelou-se fulcral na
afirmação dos Beatles (com Pete Best na bateria e Stu Sutcliffe no baixo) como banda de sucesso. (N.
da T.)

2 Miscanthus sinensis, uma espécie de gramínea que dá flor (eulália), pertencente à família das
Poaceae. (N. da T.)

3 A Naoko que aqui surge pode ser vista como a reencarnação da Naoko com tendências suicidas em
Flíper, 1973, outra personagem atraída por poços. Murakami diz o seguinte acerca da conceção do
romance: «Tirando o protagonista e narrador na primeira pessoa, criei cinco personagens, entre as
quais duas mulheres destinadas a morrer. Nem eu próprio sabia qual das cinco ficaria viva e quais as
que morreriam. O protagonista está apaixonado por duas mulheres que são o oposto uma da outra,
mas só muito próximo do fim descobri qual delas seria a tal. Escusado será dizer que havia sempre a
possibilidade de morrerem ambas e ele ficar sozinho e entregue à sua sorte», in Haruki Murakami
and the Music of Words. (N. da T.)

4 Torna-se desde os primeiros parágrafos evidente a estratégia narrativa de Haruki Murakami. A


personagem Tōru Watanabe («Tōru» significa a passar através de) dirige-se diretamente ao leitor,
reforçando assim a impressão de sinceridade. (N. da T.)
Em tempos (há cerca de vinte anos, para ser exato,), morei numa residência
para estudantes universitários. Tinha dezoito anos e acabara de entrar para a
universidade. Como não conhecia Tóquio e era a primeira vez que me
encontrava a viver sozinho, foram os meus pais, preocupados comigo, que
se encarregaram de me arranjar alojamento. Pensaram que seria mais fácil
para um rapaz da minha idade, inexperiente, morar num local que dispunha
de boas instalações e refeitório. Como é óbvio, a questão financeira também
pesou na decisão. Ficar instalado na residência representava uma despesa
muito inferior em comparação com um quarto particular. Só precisava de
comprar um futon e um candeeiro. Por mim, teria preferido mil vezes alugar
um apartamento, se possível, e preservar a minha liberdade, mas,
considerando a avultada quantia que os meus pais se viram obrigados a
desembolsar com a matrícula numa universidade privada e o custo das
propinas, além da minha mesada, não podia dar-me ao luxo de exigir mais.
Além disso, tanto se me dava viver num sítio como no outro.
Situada no alto de uma colina, a residência universitária tinha uma bonita
vista sobre a cidade. Ocupava uma área bastante extensa, delimitada por
altos muros de betão. Mesmo em frente do portão principal, direito e
aprumado, erguia-se um olmo gigantesco. Dizia-se que tinha no mínimo
cento e cinquenta anos. De pé, junto à árvore, a densa folhagem verde não
deixava ver o céu por completo.
O caminho asfaltado que levava ao portão contornava a árvore gigante,
voltando depois a formar uma extensa linha reta. De ambos os lados do
pátio alinhavam-se dois prédios de três andares em betão armado. (Era aí
que ficavam os dormitórios.) Os enormes edifícios tinham janelas que
nunca mais acabavam, dando a impressão a quem olhasse de estar a ver
uma prisão convertida em prédios de apartamentos, ou, se quiserem, prédios
de apartamentos convertidos em celas de prisão. Mas, atenção, nada ali
denotava um aspeto sujo ou deprimente. Através das janelas abertas ouvia-
se muitas vezes o som do rádio ligado. As cortinas eram todas em tons de
creme, para melhor disfarçarem a perda de cor provocada pelo sol.
Seguindo pelo caminho de asfalto, íamos dar ao edifício principal de dois
andares, onde funcionava também a administração. No andar de baixo
tínhamos um refeitório e uma grande casa de banho coletiva; no primeiro
andar ficava o gabinete do reitor, várias salas de reuniões, inclusivamente
uma sala destinada a receber visitantes ilustres, cuja utilidade nunca percebi
bem. Ao lado do edifício principal existia um terceiro prédio destinado a
albergar os estudantes, este com três andares. Na relva do amplo pátio, um
sistema automático de rega andava às voltas, refletindo a luz do sol. Nas
traseiras do pavilhão principal havia um campo de basebol, outro de futebol
e meia dúzia de courts de ténis.
Resumindo, não faltava nada. A única coisa suspeita prendia-se com o
facto de a administração estar envolvida em negócios um tanto suspeitos. A
residência era gerida por uma fundação pouco transparente, dirigida por um
indivíduo de extrema-direita cujo estilo (aos meus olhos, naturalmente) se
revelava muito estranho e nada credível. Bastava ler o folheto de admissão
e o regulamento para se ficar com uma ideia disso mesmo. Em teoria, o
princípio fundador que presidia àquele alojamento universitário consistia
«na formação de homens promissores e capazes de servir o país, através do
que melhor existe em matéria de fundamentos de ensino». Muitos
empresários apoiavam esta filosofia, tendo contribuído para o efeito com
significativas doações monetárias. No entanto, era tudo fachada: por trás,
escondia-se uma história qualquer de origem altamente duvidosa. Ninguém
sabia de ciência certa como as coisas eram feitas. Alguns afirmavam tratar-
se apenas de uma estratégia para usufruir de benefícios fiscais, outros
sugeriam que não passava de pura propaganda, ou que, sob o pretexto de
construir uma residência, aquele terreno sobrevalorizado fora obtido de
forma fraudulenta. Havia até um cavalheiro que defendia uma perspetiva
ainda mais sofisticada. Segundo ele, o objetivo dos fundadores da
residência seria a criação de um grupo secreto, formado por antigos
residentes, com capacidade para intervir junto da sociedade política e
financeira. E, com efeito, existia um clube restrito, composto pela elite dos
estudantes que ali residiam, e embora eu desconhecesse pessoalmente os
pormenores, esses grupos de estudo, ao que tudo indica, organizavam, em
conjunto com os sócios fundadores, uma espécie de seminários; aqueles que
pertenciam ao dito clube deixavam de se preocupar com o futuro, uma vez
que tinham emprego garantido no final do curso. Pela parte que me tocava,
sentia-me incapaz de decidir qual das teorias estava mais próxima da
verdade, mas, vendo bem, todas elas iam dar ao mesmo mesmo: ali havia
gato!
Isto para dizer que passei dois anos da minha vida naquele lugar. Mais
concretamente, da primavera de 1968 até à primavera de 1970. Se alguém
me perguntasse por que carga de água permaneci em semelhante sítio
durante tanto tempo, não saberia responder. No que dizia respeito à vida
quotidiana, quer fosse de direita ou de esquerda, um covil de hipócritas ou
um ninho de benfeitores, pouca ou nenhuma diferença fazia.
O dia começava com a cerimónia solene do hastear da bandeira. Como
calculam, o hino nacional não podia deixar de ser executado. Bandeira e
hino, os dois eram indissociáveis. Tal como as notícias desportivas se fazem
acompanhar ao ritmo das marchas. O mastro da bandeira ficava no centro
do pátio, a fim de poder ser visto de todos os edifícios.
A prerrogativa de hastear a bandeira pertencia ao diretor da ala leste
(onde ficava o meu dormitório). Era um homem na casa dos sessenta, alto e
de olhar penetrante. Já contava uns quantos fios brancos na cabeleira
hirsuta, e uma longa cicatriz marcava a sua nuca bronzeada. Corriam
rumores de que ele passara pela Academia Militar de Nakano, ainda que
nenhum de nós se tivesse dado ao trabalho de confirmar a veracidade da
informação. Ao seu lado, um estudante desempenhava o papel de assistente
no hastear da bandeira. Ninguém sabia ao certo quem ele era. Tinha a
cabeça rapada e vestia sempre o uniforme azul-marinho. Por mim falo
quando afirmo que ignorava o nome dele e a localização do seu quarto.
Nunca o vira mais gordo na cantina, por exemplo, ou a tomar duche nos
balneários. Nem sequer podia jurar a pés juntos que fosse um dos nossos
estudantes, apesar de usar uniforme. Bom, uma vez que tinha a farda de
estudante, partíamos do princípio de que era estudante. Ao contrário do
senhor da Academia de Nakano, era baixo e anafado, de pele clara. Todos
os dias, às seis da manhã em ponto, aquela dupla sinistra procedia ao
hastear da bandeira do Sol Nascente no meio do pátio.
Nos primeiros tempos, movido pela curiosidade, cheguei a levantar-me às
seis da matina para presenciar a patriótica cerimónia. Quase à mesma hora a
que o sinal horário dava na rádio, a dupla entrava em cena. O «rapaz do
uniforme», como lhe chamávamos, vestia o seu uniforme, para não variar, e
calçava sapatos de couro preto, enquanto o senhor da Academia usava
casaco curto e ténis brancos. O estudante transportava uma pequena caixa
de madeira de jacarandá; por seu turno, o senhor da Academia trazia um
gravador portátil Sony, que colocava na base do mastro. Nessa altura, o
estudante abria a caixa de madeira. Lá dentro estava a bandeira nacional,
cuidadosamente dobrada. O estudante depositava a bandeira nas mãos do
senhor, acompanhada da devida vénia, e este amarrava-a ao poste. O rapaz
do uniforme carregava então no botão do gravador.
Soavam os primeiros acordes do Kimigayo5.
«Que o teu reinado...»
Em perfeita sintonia com as palavras do hino, a bandeira deslizava pelo
mastro acima.
«... perdure até que...»
A bandeira encontrava-se a meia haste.
«... as pequenas pedras...»
Nesse momento, alcançava o topo. Os dois acompanhavam aquele ritual
em sentido, de olhos cravados na bandeira. Era uma cena digna de se ver,
sobretudo nos dias em que o céu estava limpo e soprava um ventinho à
maneira.
Ao cair da tarde, durante o arriar da bandeira, era dado a observar
idêntico cerimonial, mas pela ordem inversa à da manhã, claro está. A
bandeira deslizava pelo mastro abaixo, passando a ser guardada na caixa de
jacarandá. De noite, a flâmula não drapejava ao vento.
Nunca cheguei a perceber bem a razão pela qual a bandeira tinha de ser
arriada. O país continuava a existir no mapa, e havia muito boa gente que
trabalhava de madrugada, a saber: operários ferroviários, taxistas,
empregados de bar, bombeiros do turno da noite, guardas-noturnos, entre
outros. O facto de todas essas pessoas não poderem contar com a proteção
da bandeira (logo, da nação) afigurava-se-me uma grande injustiça. Diga-se
em abono da verdade que talvez isso não seja assim tão significativo.
Provavelmente, só eu é que lhe dava importância. Para ser franco, foi uma
ideia que me passou um dia pela tola, e não me apeteceu aprofundar o
assunto.
No que respeitava à instalação dos estudantes, o regulamento estipulava
que os caloiros e os alunos do segundo ano ficassem em quartos duplos, ao
passo que aos alunos do terceiro e quarto anos eram atribuídos aposentos
individuais. Os quartos duplos eram um nadinha mais estreitos e alongados
(para aí a superfície ocupada por seis tatami juntos6), com uma janela de
alumínio na parede oposta à porta; diante da janela, um par de secretárias,
cada qual com a sua cadeira, dispostas de modo que os estudantes ficassem
sentados de costas um para o outro. Mal se entrava, à esquerda via-se um
beliche de ferro, tipo militar. Os móveis eram, sem exceção, austeros e
resistentes. Além das escrivaninhas e do beliche, havia uma mesinha baixa e
várias prateleiras na parede. Por mais boa vontade que uma pessoa tivesse,
saltava aos olhos que os quartos nada tinham de estimulante e de inspirador.
As prateleiras, na sua maioria, serviam para guardar os aparelhos de rádio,
secadores de cabelo, garrafas-termo, aquecedores elétricos, café solúvel,
saquetas de chá, açúcar em cubos, panelas e tacinhas para cozinhar ramen7.
Nas paredes de argamassa branca destacavam-se fotografias de pin-ups
recortadas da revista Heibon Panchi8, ou cartazes de filmes pornográficos
tirados sabe-se lá de onde. Numa delas, alguém se lembrara de colar a
fotografia de dois porcos a copular em jeito de brincadeira, mas era a
exceção à regra, já que quase todas as imagens reproduziam mulheres
despidas, jovens cantoras e atrizes em voga. Em cima das secretárias
alinhavam-se livros didáticos, dicionários e romances.
Por se tratar de instalações destinadas apenas a elementos do sexo
masculino, os quartos eram autênticas pocilgas. Os cestos de papéis
estavam atulhados de cascas de laranja; latas vazias de refrigerantes faziam
as vezes de cinzeiro, acumulando mais de dez centímetros de beatas, que,
quando começavam a arder, apagávamos ensopando-as em café ou cerveja,
libertando um cheiro nauseabundo. A loiça estava sistematicamente
encardida, com restos de comida de duvidosa proveniência. Espalhados
pelo chão, numa desordem pegada, viam-se embalagens rasgadas de massa
instantânea, garrafas de cerveja vazias, tampas e outras coisas que tais...
Não passava pela cabeça de ninguém agarrar numa vassoura e, com a ajuda
de uma pá, varrer tudo para dentro do caixote. Quando o vento uivava com
mais violência, levantava nuvens de poeira do chão. Além disso, os quartos
tresandavam, cada um à sua maneira, à base dos mesmíssimos
componentes: suor, odor corporal e lixo. Enfiávamos a roupa suja debaixo
da cama e, visto que ninguém se lembrava de os arejar uma vez por outra,
os futons ficavam impregnados de suor e exalavam um fedor insuportável.
Ainda hoje estou para saber como é que aquele caos nunca deu origem a
uma epidemia fatal.
Comparado com os outros, o meu quarto estava mais limpo do que uma
morgue. Não se via um grão de pó no chão, as vidraças brilhavam na sua
límpida transparência, o futon era posto a arejar todas as semanas, os lápis
estavam colocados no respetivo porta-lápis, e as cortinas eram lavadas
todos os meses. Tal acontecia porque o meu colega de quarto era doentio no
que dizia respeito à limpeza. «Fogo, o tipo até as cortinas lava!», comentava
eu com os outros companheiros de alojamento, ainda que eles não
acreditassem em mim. Ninguém ali parecia saber que as cortinas
precisavam de ser lavadas de tempos a tempos... Para eles, não passavam de
um pedaço de tecido pendurado nas janelas para toda a eternidade. «O gajo
tem um comportamento muito esquisito», comentavam à boca pequena.
Não tardou que começassem a chamar-lhe «fascista» ou «facho».
No meu quarto nem uma pin-up para amostra havia. Em contrapartida,
tínhamos a fotografia de um canal de Amesterdão. Ainda tentei colar na
parede a foto de uma mulher nua, mas o meu companheiro apressou-se a
tirá-la, dizendo: «Wa-watanabe... eu... não sou adepto deste tipo de coisas.»
Uma vez que eu também não fazia questão naquilo, calei os meus protestos.
Quem passava pelo nosso quarto exclamava ao ver a fotografia do canal:
«Mas que diabo é isto?» Eu respondia: «O Facho gosta de bater uma a olhar
para a paisagem.» Dizia aquilo a brincar, mas os outros levavam-me tão à
letra que eu próprio comecei a perguntar a mim próprio se não haveria ali
um fundo de verdade.
Apesar de todos terem pena de mim por me ver obrigado a partilhar o
quarto com o Facho, isso nunca me causou engulhos. Desde que eu
mantivesse o meu lado do quarto em ordem e limpo, ele não interferia nos
meus assuntos. O que, por seu turno, me facilitava a vida. Era ele quem se
incumbia das limpezas, quem arejava os futons, quem deitava fora o lixo.
Sempre que eu andava assoberbado de trabalho e me esquecia de tomar
banho três dias a fio, aconselhava-me a fazê-lo, fingindo que farejava o ar à
minha volta, da mesma forma que me avisava sempre que estava na altura
de cortar o cabelo ou aparar os pelos do nariz. O que nele mais me
incomodava era que, ao ver um inseto no quarto, desatava a pulverizar
inseticida por tudo quanto era canto. Nessas ocasiões, tinha bom remédio!
Procurava exílio no caos dos companheiros do lado.
O Facho estudava Geografia numa universidade pública.
− Estudo Car-cartografia... – disse-me ele quando nos conhecemos.
− Gostas de mapas? – perguntei-lhe.
− S-sim. Depois de me licenciar, quero trabalhar no Instituto Nacional de
Geografia e de-desenhar ma-mapas.
Fiquei espantado quando me dei conta da existência de pessoas com
sonhos e objetivos tão variados. Esse foi, sem dúvida, um dos aspetos que
mais me marcou ao chegar a Tóquio. Bem vistas as coisas, se não houver
pessoas (por poucas que sejam) interessadas, para não dizer apaixonadas,
pela cartografia, seria um problema sério. Ao mesmo tempo, não deixava de
ser estranho ver alguém que pretendia entrar para o Instituto Nacional de
Geografia gaguejar de todas as vezes que pronunciava a palavra «mapa».
Claro que ele nem sempre gaguejava, mas acontecia em cem por cento dos
casos que envolviam o vocábulo «mapa».
− Tu andas a es-estudar o quê – perguntou ele.
− Teatro – respondi.
− Fazes teatro?
− Não, não é bem isso. Lemos e estudamos peças teatrais. Racine,
Ionesco, Shakespeare.
Confessou-me que, tirando Shakespeare, não conhecia nenhum dos
autores citados. Expliquei-lhe que, na realidade, também eu pouco ou nada
sabia acerca deles. Limitava-me a repetir os nomes que vira escritos no
programa do curso.
− De qualquer forma, é disso que go-gostas, certo?
− Não especialmente – respondi.
A minha resposta deixou-o meio desconcertado. Quando tal acontecia, a
gaguez piorava. Senti que tinha algumas culpas no cartório.
− No meu caso, tanto faz um curso como outro – justifiquei-me. −
Etnologia, História Oriental... Escolhi Teatro mais por acaso do que por
convicção.
A minha desculpa não pareceu tê-lo convencido.
− Não estou a en-entender – disse ele, e a expressão não o deixava mentir.
– No meu caso, adoro ma-mapas e é por isso que estudo Car-car-
cartografia. Foi precisamente por isso que entrei para a Universidade de
Tóquio, e os meus pais pagam-me os estudos. Mas tu dizes que contigo é
diferente...
A perspetiva dele tinha mais lógica. Deixei-me de explicações. Pegámos
num pau de fósforo e tirámos à sorte para ver quem ficava a dormir onde.
Ele ficou com o beliche de cima; a mim, calhou-me o de baixo.
O Facho era alto, tinha a cabeça rapada e as maçãs do rosto vincadas.
Andava sempre com uma camisa branca, calças pretas e uma camisola de
malha azul-marinho. Tanto a pasta como os sapatos eram de couro preto.
Tinha todo o ar de ser um estudante de direita, daí que os outros lhe
tivessem posto aquela alcunha, mas, em boa verdade, mostrava-se
completamente alheio à política. Vestia-se sempre da mesma maneira por
ter preguiça de escolher a roupa. Os seus interesses limitavam-se às
transformações na linha costeira, à conclusão de um novo túnel da rede
ferroviária e a coisas do género. Era capaz de passar duas horas a dissertar
sobre esses assuntos, tartamudeando e tropeçando nas palavras, até que eu
me pisgava do quarto ou adormecia de cansaço.
Levantava-se às seis da manhã. O hino nacional servia-lhe de despertador.
Como se pode ver, aquele cerimonial ostensivamente pomposo afinal não se
revelava de todo inútil. A seguir, vestia-se e fazia as suas abluções matinais.
Demorava-se uma eternidade no balneário, ao ponto de eu perguntar a mim
próprio se ele não tiraria os dentes, um a um, para os lavar como deve ser.
De regresso ao quarto, alisando com esmero as rugas da toalha, punha-a a
secar sobre o aquecimento; tornava então a guardar a escova de dentes e o
sabonete na prateleira. Por fim, ligava o rádio e iniciava a sessão de
ginástica.
Pela minha parte, acostumado a ler pela noite dentro e a dormir que nem
um anjinho até às oito, continuava como se nada fosse, mesmo com o
barulho todo que o meu companheiro de quarto fazia e a ginástica
radiofónica. Só acordava na fase em que ele se punha aos saltos, como seria
de esperar. Cada vez que ele saltava – e estamos a falar de grandes saltos –,
a vibração do solo fazia estremecer a cama. Aguentei aquilo durante três
dias. Ouvira dizer que a resignação, com conta, peso e medida, era a base
de uma convivência saudável. Ao quarto dia, cheguei à conclusão de que a
minha paciência atingira o limite.
− Desculpa, mas importas-te de praticar os teus exercícios no terraço ou
noutro sítio qualquer? – disse eu, sem papas na língua. – Não consigo
pregar olho.
− Mas já são seis e meia da manhã! – exclamou ele, perplexo.
− Bem sei. Para mim, ainda é hora de estar a dormir. Não te posso
explicar melhor, só sei que, comigo, é assim que funciona.
− Impo-possível. Se eu fizer ginástica no terraço, o pessoal do terceiro
andar vai cair todo em cima de mim. Por baixo de nós temos apenas um
armazém, o que significa que não incomodo ninguém.
− Então vai lá para fora fazer ginástica, no pátio. Em cima da relva.
− Também não é po-possível. O meu rádio é um transístor. Não funciona
sem eletricidade. E, sem música, não há ginástica para ninguém.
De facto, possuía um rádio antigo, daqueles que funcionavam sem pilhas,
ligados à corrente. Embora o meu fosse um transístor, só apanhava estações
de música em FM. Comecei a perder a paciência.
− Vamos fazer um pacto – sugeri. – Podes fazer a tua ginástica aqui,
desde que pares com os saltos. É barulho a mais para os meus ouvidos
sensíveis. Estamos de acordo?
− Saltos? – repetiu, atónito. – Como assim?
− Saltos. Dar pulos no mesmo lugar, para cima e para baixo.
− Quem disse que eu faço isso?
Comecei a sentir dores de cabeça. Estava prestes a render-me, mas, às
tantas, com vista a deixar bem clara a minha posição, já que tinha sido eu a
trazer o assunto à baila, desatei aos pulos no quarto, trauteando a primeira
parte da música de abertura do tal programa radiofónico transmitido pela
NHK.
− Isto! Estás a ver? Percebes agora?
− Ah, isso! Tens razão. Não me tinha da-dado conta.
− Compreendes, não compreendes? – declarei, sentado na cama. – A
única coisa que peço é que saltes essa parte. O resto aguento bem. Para lá
com os pinotes e deixa-me dormir sossegado.
− Impo-possível – afirmou ele, com o ar mais calmo deste mundo. – Está
fora de questão eliminar uma parte dos exercícios. Há dez anos que faço a
mesma ginástica todas as manhãs. Uma vez começado o exercício,
desenrola-se tudo em piloto automático. Se eu saltar uma etapa, depois não
consigo chegar ao fim...
Fui incapaz de argumentar com ele. O que poderia eu dizer? Havia uma
solução à mão de semear, claro. Bastava-me pegar na maldita telefonia e
atirá-la pela janela mal o Facho saísse do quarto, mas, como era óbvio, isso
desencadearia um caos infernal. Afinal de contas, ele era
extraordinariamente cioso dos seus pertences. Quando, sem argumentos, me
sentei na cama, derrotado, ele consolou-me com um sorriso que me
desarmou por completo.
− Wa-Watanabe, que tal levantares-te à mesma hora e fazermos ginástica
juntos? – propôs, saindo de seguida para ir tomar o pequeno-almoço.

***

Naoko achou graça à história do Facho e da ginástica matinal. Longe de


mim transformar aquilo num episódio cómico, mas a verdade é que acabei
por me rir também. Há muito que não a via sorrir assim, apesar de o sorriso
se ter apagado do seu rosto num abrir e fechar de olhos.
Tínhamos descido do comboio na estação de Yotsuya e caminhávamos ao
longo da via que segue junto ao rio, até chegar a Ichigaya. Era uma tarde de
domingo, em meados de maio. A fina chuva intermitente que caíra durante a
manhã tinha parado por completo antes do meio-dia e o vento sul varrera as
nuvens baixas que cobriam o céu. As folhas das cerejeiras, de um verde
intenso, refletiam a luminosidade dos raios solares. Aquela luz era o
prenúncio do verão. As pessoas com quem nos cruzámos tinham despido os
agasalhos e traziam camisolas e casacos na mão ou pelo ombro. Sob o sol
quente daquela tarde de domingo, toda a gente parecia satisfeita. Nos courts
de ténis que ficavam do outro lado da encosta, um rapaz despira a camisola
e jogava apenas de calções. Só duas freiras sentadas num banco, lado a
lado, usavam os hábitos negros, severos e invernosos; embora não
parecessem estar em sintonia com a mudança de estação, conversavam
amenamente ao sol.
Ao fim de quinze minutos de passeio, o suor começou a escorrer-me pelas
costas abaixo. Despi a camisa de algodão grosso e fiquei de T-shirt. Naoko
enrolara as mangas do seu casaquinho cor de pérola. Com o uso, calculo eu,
desbotara. O casaco perdera a cor uniformemente. Tinha a impressão de já a
ter visto antes com um casaco parecido, mas podia ser a imaginação a
pregar-me partidas. Talvez não passasse de uma ilusão. Naquela época, as
recordações que tinha dela contavam-se pelos dedos das mãos.
− Qual é a sensação de estar alojado numa residência? É divertido
conviver com os outros?
− Ainda é cedo para dizer. Só lá estou há um mês – respondi. – Mas não é
mau de todo. Pelo menos, ainda não encontrei nada que não conseguisse
aguentar.
Naoko parou diante de um bebedouro público e bebeu um gole de água. A
seguir, tirou um lenço do bolso das calças e limpou a boca com ele. Depois,
acocorou-se e tornou a dar um nó nos atacadores dos sapatos.
− Achas que eu seria capaz de levar uma vida assim?
− Uma vida comunitária, queres tu perguntar?
− A-hã – respondeu Naoko.
− Bom, tudo depende da mentalidade da pessoa. Há uma série de
inconvenientes, lá isso é verdade. A rigidez de algumas regras, uma data de
imbecis com o rei na barriga, companheiros de quarto que começam a fazer
ginástica às seis e meia da manhã... No entanto, se pensares que esse tipo de
coisas existe em toda a parte, até dá para sobreviver. Basta uma pessoa
consciencializar-se de que não tem safa e tudo se torna mais fácil. Tão
simples quanto isso.
− Tens razão – concordou ela, e durante um bocado pareceu absorta nos
seus pensamentos. A seguir, olhou para mim como se estivesse diante de um
objeto raro. Vistos de perto, os olhos de Naoko eram de tal modo profundos
e transparentes que senti o bater do meu coração. Até aí, nunca reparara que
ela tinha os olhos tão claros. Pensando bem, nunca tivera oportunidade de
olhá-la nos olhos. Era a primeira vez que passeávamos juntos e que
conversávamos durante tanto tempo.
− Tencionas ir viver para uma residência? – perguntei.
− Não, não é isso – disse Naoko. – Estava apenas a imaginar como seria
viver em comunidade. E, vendo bem, queria... – Naoko mordeu os lábios, à
procura da palavra ou da expressão exata. – Olha, não sei. Esquece.
O diálogo ficou por ali. Naoko retomou o caminho em direção a leste, e
eu segui atrás, a alguns passos dela.
Passara-se quase um ano desde a última vez que nos encontráramos.
Durante esse período, ela tinha emagrecido, chegando a parecer uma pessoa
diferente. As bochechas, dantes bolachudas, tinham praticamente
desaparecido, e o pescoço estava mais fino. Apesar de magra, não
transmitia a ideia de ser esquelética nem fraca. A magreza resultara de um
processo natural, que nada tinha de doentio. Dir-se-ia que se escondera, por
uma temporada, num espaço estreito e esconso, até finalmente o seu corpo
ganhar a forma dessa superfície. Além do mais, Naoko revelava-se
muitíssimo mais bonita do que a imagem que eu guardava dela. Ainda
pensei em dizer-lhe isso, mas não sabia bem como, por isso calei-me.
Não marcáramos encontro naquele lugar. Naoko e eu tínhamo-nos
encontrado por casualidade na linha de Chūō. Ela acabara de sair de casa
para ir ao cinema e eu ia a caminho de uma livraria em Kanda9. Nenhum
dos dois tinha um compromisso importante. Naoko propôs que saíssemos
do comboio, e calhou descermos na estação de Yotsuya. Na companhia
dela, faltava-me sempre tema de conversa. Também não me perguntem
porque sugerira ela que abandonássemos o comboio a meio da viagem.
Desde a primeira hora que nunca tivéramos muito para dizer um ao outro.
À saída da estação, Naoko começou a andar sem me dar cavaco. Não tive
outra hipótese senão segui-la, procurando manter-me a um metro e meio de
distância. Se eu quisesse, poderia ter reduzido o espaço, mas, devido a um
súbito ataque de timidez, não fui capaz. Como tal, mantinha-me atrás dela,
a contemplar as suas costas e os cabelos negros e lisos. Usava um grande
travessão castanho, que me permitia ver as pequenas orelhas brancas
sempre que virava o rosto. De tempos a tempos, voltava-se na minha
direção e fazia um comentário qualquer. Algumas vezes era uma pergunta
para a qual eu tinha resposta, mas, outras, ficava aflito, sem atinar com a
réplica. Havia ainda alturas em que nem sequer ouvia a pergunta. De certo
modo, parecia indiferente ao facto de ser escutada ou não pelo seu
interlocutor. Depois de dizer o que queria, tornava a virar-se para a frente e
continuava o seu caminho. Às tantas, acabei por desistir e decidi aproveitar
aquele magnífico dia de sol, ideal para um passeio.
A forma de Naoko caminhar indiciava que, no entender dela, não se
tratava de um simples passeio. Ao chegar ao bairro de Iidabashi, virou à
direita e dirigiu-se para o fosso do palácio imperial; depois de atravessar o
cruzamento de Jinbōchō, subiu a encosta de Ochanomizu, indo ter a Hongō.
Continuámos até Komagome, ao longo da linha do elétrico. Devo referir
que nos fartámos de andar. Quando chegámos a Komagome, já o Sol se
pusera. Era um fim de tarde calmo de primavera.
− Onde estamos? – perguntou Naoko, como se só então se tivesse dado
conta do local onde nos encontrávamos.
− Em Komagome – disse eu. – Não te apercebeste disso? Olha que ainda
demos uma volta enorme.
− E o que estamos aqui a fazer?
− Foste tu quem me trouxe. Limitei-me a seguir-te.
Entrámos num pequeno soba-ya10 e fizemos uma refeição ligeira. Pedi
uma cerveja para matar a sede. Naoko não bebeu nada. Não trocámos uma
palavra entre o momento de mandarmos vir a comida e o fim da refeição.
Depois daquela caminhada, estava de rastos, e por mim falo; quanto a ela,
ficara de novo pensativa, com as mãos pousadas sobre a mesa. No
telejornal, a notícia do dia era o facto de, nesse domingo, os locais turísticos
se terem enchido de visitantes. E nós, pensei, acabámos de vir a butes de
Yotsuya até Komagome.
− Estás em boa forma – disse eu quando acabei de comer a massa.
− Isso surpreende-te?
− Sim.
− Pois fica sabendo que, nos tempos de liceu, fui corredora de fundo.
Cheguei a correr dez ou quinze quilómetros. Além disso, o meu pai gostava
de praticar montanhismo e, desde pequena, começou a levar-me com ele
todos os domingos. Estás a ver aquela montanha que fica por trás da minha
casa? Foi graças às caminhadas que as minhas pernas se fortaleceram.
− Olha que não parece!
− Bem sei. Toda a gente pensa que sou uma rapariga de constituição
delicada. As aparências iludem – declarou ela, deixando escapar um
pequeno sorriso.
− Vais desculpar-me, mas não posso com uma gata pelo rabo.
− Eu é que tenho de pedir desculpa por te ter obrigado a andar atrás de
mim o dia inteiro.
− Foi bom, sempre pude conversar a sós contigo. Que me lembre, foi a
primeira vez que isso sucedeu – comentei, continuando sem fazer ideia das
coisas que tínhamos dito, por mais que puxasse pela cabeça.
Naoko entretinha-se a brincar com o cinzeiro que havia em cima da mesa.
− Se quiseres, isto é, se não te importares, podemos encontrar-nos de
novo. Sei que não tenho o direito de te pedir isto...
− Direito?! – exclamei, admirado. – O que é que queres dizer com isso?
Ela corou. Arrependi-me logo de ter reagido a quente.
− É difícil explicar – observou ela, para se justificar. Arregaçou as
mangas do casaco até aos cotovelos e tornou a baixá-las. A luz do candeeiro
de mesa conferia um bonito tom dourado aos pelos dos seus braços. – Saiu-
me «direito», mas andava à procura de outra palavra.
Naoko apoiou os cotovelos na mesa e manteve os olhos fixos no
calendário de parede. Dava a impressão de que esperava encontrar ali a
expressão adequada. Como se imagina, tal não se verificou. Suspirando,
fechou os olhos e ajeitou o travessão do cabelo.
− Deixa lá, não penses mais nisso – declarei. – Julgo ter compreendido o
teu comentário. Também eu tenho alguma dificuldade em encontrar as
palavras certas.
− Não consigo exprimir-me como gostaria – afirmou Naoko. – Sobretudo
nos últimos tempos. De todas as vezes que tento ilustrar alguma ideia, só
me vêm à cabeça as palavras erradas, e acabo por afirmar o contrário do que
queria. E o pior é que, quando procuro corrigir o que disse, ainda me
embrulho mais, acabando por não saber o que queria inicialmente dizer.
Sinto-me como se o meu corpo estivesse dividido ao meio e as duas partes
andassem a brincar às escondidas. No meio existe um poste muito grosso,
em torno do qual as duas partes se perseguem mutuamente. Nunca consigo
alcançar a outra parte de mim, a que tem sempre a palavrinha certa.
Naoko levantou a cabeça e olhou para mim.
− Entendes-me, Tōru?
− Acontece aos melhores – disse eu. – Queremos expressar-nos e ficamos
frustrados ao máximo quando não encontramos as palavras que
pretendemos.
Naoko pareceu ficar um nadinha desapontada com o meu comentário.
− Não é bem isso – voltou à carga, sem acrescentar nada.
− Gostaria imenso de te ver de novo. Em princípio, aos domingos nunca
tenho programa. Além disso, caminhar faz bem à saúde.
Apanhámos o comboio na linha de Yamanote e, em Shinjuku, Naoko fez
o transbordo para a linha de Chūō. Vivia em Kokubunji, num pequeno
apartamento arrendado.
− Achas que me expresso de um modo diferente, em relação a
antigamente? – perguntou-me na hora da despedida.
− Dá-me a impressão de que mudaste um bocado – respondi. Mas, para
ser sincero, não seria capaz de referir o que mudara nem porquê. Apesar de
nos encontrarmos com alguma frequência naquela época, não me lembro de
termos falado tanto quanto isso.
− Tens razão – reconheceu ela. – Posso telefonar-te no sábado que vem?
− Claro. Fico à espera.

***

Conheci Naoko na primavera do meu segundo ano do secundário. Ela


também frequentava o mesmo ano, mas andava num colégio de freiras. Um
colégio de tal forma sofisticado que, se estudassem com afinco, as jovens
arriscavam-se a ser acusadas de vulgaridade. Naoko namorava com um
grande amigo meu chamado Kizuki (em abono da verdade, o único amigo
que tinha). Os dois conheciam-se praticamente desde que nasceram e
moravam a duzentos metros um do outro.
Tal como sucede a muitos casais que convivem desde tenra idade, aqueles
dois mantinham uma relação extremamente aberta e não sentiam grande
necessidade de ficar sozinhos. Passavam a vida na casa um do outro e
costumavam jantar juntos e jogar mah-jong com as respetivas famílias. Por
mais de uma vez combinámos encontros a quatro: Naoko ligava a uma das
sagradas companheiras de colégio e íamos os quatro ao jardim zoológico, à
piscina ou ao cinema. As amigas dela eram todas bem-parecidas, mas, devo
confessar, demasiado finas para o meu gosto. Preferia mil vezes falar com
as minhas colegas de turma, apesar de serem menos sofisticadas. Nunca
sabia o que ia na cabeça das raparigas que Naoko costumava arranjar, por
mais bonitas que fossem. Palpitava-me que o sentimento era recíproco.
Resumindo, Kizuki deixou de me convidar para aqueles encontros duplos
e passámos a sair a três. Eu, Kizuki e Naoko. À primeira vista, poderá
parecer estranho, mas, no fim de contas, era a melhor solução. Bastava uma
quarta pessoa para estragar o bom clima da nossa relação. Quando
estávamos os três juntos, a coisa funcionava como num talk show
televisivo: eu era o convidado, Kizuki fazia na perfeição o papel de
apresentador e Naoko era a sua assistente. Convenhamos que Kizuki
parecia fadado para estar no centro das atenções. Tinha uma veia sarcástica,
que muitos − sobretudo os que não o conheciam bem − interpretavam como
uma manifestação de arrogância, mas, no fundo, era um tipo simpático e
justo. Nas ocasiões em que estávamos os três juntos, cavaqueava e metia-se
comigo e com Naoko, sem dar mostras de parcialidade, procurando acima
de tudo que nenhum dos dois se sentisse posto à margem. Mal um de nós
permanecia em silêncio durante demasiado tempo, virava a sua atenção para
a pessoa em questão e esforçava-se por lhe puxar pela língua. Ao vê-lo em
ação, lembro-me de ter pensado que aquela postura devia dar muito
trabalho, mas, no fundo, não devia ser tão difícil quanto isso. O meu amigo
possuía o dom de distinguir instantaneamente o ambiente à sua volta e de se
adaptar a ele como se estivesse nas suas sete quintas. A isso era preciso
acrescentar a capacidade, porventura mais importante e rara, de encontrar
no discurso dos outros, por muito maçador que fosse, um ou outro ponto de
interesse. Estar à conversa com ele fazia com que me sentisse uma pessoa
particularmente interessante, levando uma vida fora do comum.
Contudo, não se podia dizer que Kizuki fosse muito sociável. Na escola,
tinha um único amigo: eu. Intrigava-me o facto de uma criatura tão
inteligente, com os dotes de oratória dele, se contentar com o nosso círculo
limitado, em vez de dar a conhecer os seus atributos a um universo mais
vasto. Também não compreendia a razão pela qual me escolhera como
confidente. Sou um tipo normal, que gosta de passar despercebido, de ler
livros e ouvir música, e nada tenho suscetível de chamar a atenção de
Kizuki, ao ponto de ele me dirigir a palavra no meio de um grupo. Apesar
disso, estabeleceu-se desde logo entre nós uma cumplicidade extraordinária
e ficámos amigos. O seu pai era um dentista famoso, conhecido pelo
profissionalismo e por cobrar caro as consultas.
− A minha namorada anda a estudar num colégio de freiras e vai trazer
uma colega gira para te fazer companhia. Que tal irmos sair os quatro no
domingo que vem? – propôs-me ele, pouco depois de travarmos
conhecimento. Aceitei o repto. Foi assim que conheci Naoko.
Passávamos muito tempo juntos, mas, a partir do momento em que
Kizuki nos deixava sozinhos, Naoko e eu éramos incapazes de sustentar o
diálogo. Nenhum de nós sabia o que dizer. Para ser mais rigoroso, não
tínhamos nenhum tema em comum. Como tal, não nos restava outra
alternativa senão permanecer quase sem abrir a boca, a beber água em
pequenos goles ou a brincar com os objetos em cima da mesa. Mal ele
chegava ao pé de nós, retomávamos o fio à meada. Naoko não falava muito,
e eu preferia mil vezes escutar o que os outros diziam, o que explica por
que razão me sentia pouco à vontade quando nos encontrávamos os dois a
sós. Não se tratava de uma questão de incompatibilidade, mas, pura e
simplesmente, de falta de conversa.
Duas semanas após o funeral de Kizuki, Naoko e eu voltámos a
encontrar-nos. Marcámos encontro numa cafetaria a pretexto de tratar de
um assunto. Uma vez resolvido o problema, ficámos sem nada para dizer.
Esforcei-me por trazer vários temas à baila, mas a conversa morreu. Além
disso, notei nela uma certa agressividade. Pressentia que Naoko estava
irritada comigo, embora não atinasse com o motivo. Separámo-nos naquele
dia e nunca mais nos vimos, a não ser um ano mais tarde, num dia em que
nos cruzámos por mero acaso num comboio da linha de Chūō.

***

Provavelmente, Naoko ficara zangada comigo por eu ter sido a última


pessoa a ver Kizuki e a conversar com ele. Talvez não seja esta a forma
correta de traduzir o que me vai na alma, mas creio que entendo como se
sentia. Se estivesse ao meu alcance, de boa vontade teria trocado com ela.
Mas o que acontecera pertencia ao passado, e tudo o que eu dissesse não
poderia alterar aquele estado de coisas.
Numa agradável tarde de maio, logo a seguir ao almoço, Kizuki sugeriu
que fizéssemos gazeta e fôssemos jogar snooker. Como eu próprio não
tinha grande vontade de assistir às aulas da parte da tarde, saímos da escola,
descemos a encosta com todo o vagar e, uma vez chegados ao porto,
entrámos no salão de jogos e jogámos quatro partidas de uma assentada.
Depois de eu ter ganho a primeira nas calmas, Kizuki empenhou-se a sério
e venceu as restantes três. Na qualidade de derrotado, coube-me a mim
pagar a despesa. Enquanto durou o jogo, ele não gracejou nem disse uma
única piada. Assim que pousámos os tacos, fomos fumar um cigarro.
− O que foi que aconteceu para estares tão sério? – perguntei.
− Não me apetecia perder hoje – respondeu ele, com um sorriso de
satisfação.
Naquela mesma noite, matou-se na garagem. Ligou uma mangueira de
borracha ao tubo de escape do seu Honda N360, selou as frestas das janelas
com fita adesiva e pôs o motor do carro a funcionar. Não sei dizer quanto
tempo demorou a morrer. Já estava morto quando os pais chegaram, depois
de terem ido visitar um familiar doente; chegaram a casa e abriram o portão
da garagem. O rádio do Honda estava ligado e havia um recibo de gasolina
preso ao limpa-para-brisas.
Kizuki não deixou qualquer carta de despedida e ninguém foi capaz de
apresentar um motivo plausível. Por ter sido eu a última pessoa a vê-lo, fui
interrogado pela polícia. Expliquei ao inspetor encarregado do caso que
nada no seu comportamento fazia prever semelhante desenlace, que ele se
tinha comportado como de costume. O polícia não parecia ter uma opinião
muito favorável, nem de mim nem de Kizuki. Para ele, nada havia de
estranho no facto de um rapaz faltar às aulas para ir jogar snooker e, depois,
cometer suicídio. Saiu uma pequena notícia no jornal, e o caso foi dado por
encerrado. A família desfez-se do Honda N360 vermelho. Durante uma
temporada, havia sempre flores brancas em cima da carteira que ele ocupara
na escola.
Nos dez meses que decorreram entre a morte de Kizuki e o fim do
secundário, vi-me e desejei-me para definir o lugar que me pertencia no
mundo à minha volta. Andei com uma rapariga e dormimos juntos, mas a
nossa relação não chegou a durar seis meses. Não conseguia sentir nada de
especial por ela. Candidatei-me a uma vaga numa universidade privada de
Tóquio, na qual poderia ser admitido sem ter de me esforçar muito, e lá
entrei. Contudo, o entusiasmo não era grande. A tal rapariga pediu-me por
tudo que não me fosse embora para Tóquio, mas eu só pensava em afastar-
me de Kōbe. Desejava começar vida nova num sítio onde ninguém
soubesse quem eu era.
− Agora que te deitaste comigo, já não queres saber de mim – queixou-se
ela, lavada em lágrimas.
− Isso não é verdade – respondi. De facto, só queria ver-me livre daquela
cidade. Mas não havia maneira de ela perceber. Acabámos por nos separar.
No comboio-bala, a caminho de Tóquio, evoquei as suas qualidades e
arrependi-me do desgosto que lhe causara, embora fosse tarde para voltar
atrás. Decidi que estava na hora de a esquecer.
Ao chegar a Tóquio, dei início à minha nova vida na residência
estudantil, norteado por um único objetivo: não levar as coisas demasiado a
peito e manter a devida distância em relação ao mundo. Mais nada. E foi
assim que decidi apagar tudo da memória: o pano verde que revestia a mesa
de bilhar, o Honda N360 vermelho, as flores brancas sobre a carteira
escolar. Tudo e mais alguma coisa: o fumo a sair em espiral da chaminé do
crematório, o pisa-papéis de cristal maciço na sala de interrogatórios da
polícia. De início, a coisa parecia funcionar. Todavia, à medida que eu me
esforçava por destruir aquelas lembranças, crescia dentro de mim uma
espécie de massa de ar de contornos imprecisos. Com o tempo, essa massa
começou a adquirir uma forma simples e concreta. Consigo traduzi-la em
palavras. Qualquer coisa do género: «A morte não é o oposto da vida, mas
sim uma parte integrante dela.»
Expressa em palavras, torna-se um lugar-comum, mas naquela altura eu
não via a coisa dessa maneira; aos meus olhos, não passava de uma massa
de ar no mais recôndito de mim. A morte também estava presente no
interior do pisa-papéis e das quatro bolas vermelhas e brancas sobre o pano
verde. E eu sentia que passávamos a vida a respirá-la, enchendo os pulmões
de uma poeira fina.
Até à data, concebia a morte como uma realidade independente, separada
da vida. É certo que, um dia, no futuro, a morte estenderá os seus braços
para nos envolver. Até lá, porém, estamos livres dela. Para mim, era a
verdade absoluta e lógica. A vida está deste lado, a morte do outro. Eu estou
deste lado, e não do outro.
Após a morte de Kizuki, fui incapaz de conceber a morte (e a vida) de
uma maneira tão simplista. A morte não era o polo oposto da vida. Fazia
parte integrante da minha existência desde o início, e tornou-se impossível
ignorar esse facto por mais que me esforçasse. Naquela noite de maio em
que a morte levou Kizuki, aos dezassete anos, levou também uma parte de
mim.
Vivi toda a primavera dos meus dezoito anos paredes-meias com essa
massa de ar dentro de mim. Ao mesmo tempo, esforçava-me por não levar a
vida demasiado a sério. Tinha a ligeira sensação de que a seriedade não
significava necessariamente que estivesse mais próximo da verdade. Por
mais voltas que desse à cabeça, a morte era um assunto grave. Mergulhado
naquela sufocante contradição, deixei-me cair num círculo vicioso. Foram
dias estranhos, aqueles. Quando olho para trás, tenho a perfeita noção disso.
Em plena vida, tudo girava em torno da morte.

5 Hino nacional. Aos olhos de uns, símbolo do orgulho nacional; para outros, ícone de um passado
militarista. O hino de cada país continua a dividir os cidadãos, e o português é disso exemplo. Tanto o
Kimigayo, o hino japonês, como a Hinomaru, bandeira nacional do Japão, constituíram desde sempre
fonte de acesa controvérsia. Kimigayo (O Reino do Imperador) baseia-se num poema escrito no
Período Heian (794-1185) e contém versos que caíram em desuso no Japão moderno. (N. da T.)

6 Seis tatami (roku-jō) equivalem a cerca de dez metros quadrados. (N. da T.)

7 Massa instantânea chinesa servida num caldo. (N. da T.)

8 Nome de uma revista masculina dirigida a um público essencialmente jovem. (N. da T.)

9 Kinokuniya, a mais importante cadeia de livrarias que existe no Japão. (N. da T.)

10 Restaurante especializado em pratos de soba, massa fina e comprida de trigo-sarraceno. (N. da T.)
Naoko ligou-me no sábado seguinte e ficámos de nos encontrar no
domingo. Acho que posso chamar-lhe encontro, visto que não me ocorre
outra palavra.
Tal como da outra vez, percorremos as ruas sem rumo certo, parámos
para tomar café, retomámos o nosso passeio, jantámos ao cair da noite,
despedimo-nos e seguiu cada um o seu caminho. Para não variar, ela
praticamente não abriu a boca, mas como não parecia ralada com isso,
também não fiz grande esforço para alimentar a conversa. Quando nos
apetecia, discorríamos sobre as nossas vidas e sobre a universidade,
mantendo sempre um diálogo fragmentado, que não nos levava a parte
alguma. Não tocámos no passado. Limitámo-nos a deambular pela cidade.
Felizmente, Tóquio é uma cidade imensa e, por mais que se ande, abrem-se
sempre novos caminhos.
Ganhámos o hábito de nos encontrarmos quase todas as semanas. O ritual
pouco variava. Ela seguia uns metros adiante e eu mantinha-me meia dúzia
de passos atrás. Naoko tinha travessões de cabelo de várias formas e feitios,
mas deixava a orelha direita à mostra. Lembro-me desse pormenor na
perfeição, uma vez que a via sempre de costas. Brincava normalmente com
o travessão quando se sentia envergonhada, além de passar constantemente
o lenço pelos lábios: era sinal de que queria dizer qualquer coisa. Pouco a
pouco, observando os seus gestos familiares, fui começando a gostar cada
vez mais dela.
Naoko frequentava uma universidade feminina que ficava nos subúrbios
de Musashino. Era uma universidade pequena, famosa pelo ensino do
inglês. Perto do apartamento onde morava corria um canal de rega de águas
cristalinas, ao longo do qual costumávamos caminhar. Naoko convidara-me
por mais de uma vez a ir até ao seu apartamento e até já cozinhara para
mim. Nunca deu mostras de ficar constrangida na minha presença. O
apartamento, despretensioso e reduzido ao essencial, estava limpo e bem
arranjado. Se não fossem as meias de senhora estendidas a secar num canto,
perto da janela, ninguém diria que morava ali uma representante do sexo
feminino. Naoko levava uma existência espartana, e parecia não ter muitos
amigos. Para quem a conhecia desde o secundário, tornava-se difícil
imaginar aquele género de vida. Antigamente, usava vestidos bonitos e
vivia rodeada de amigos. Ao ver o interior do seu apartamento, dei-me
conta de que, tal como eu, Naoko fizera questão de se afastar da cidade
natal para recomeçar num lugar onde ninguém a conhecesse.
− Escolhi esta universidade pelo facto de saber que, à partida, não daria
de caras com uma das minhas antigas colegas de liceu – confessou-me ela,
sorrindo. – Todas optaram por universidades mais finas. Conheces o género.
Não se podia dizer, contudo, que o nosso relacionamento tivesse
estagnado. Aos poucos, Naoko foi-se acostumando a mim, e eu a ela.
Quando as férias de verão chegaram ao fim e teve início o novo ano letivo,
começou a caminhar ao meu lado com a maior naturalidade. Interpretei o
gesto como um sinal de que Naoko me aceitara como amigo e, pela parte
que me tocava, não me sentia minimamente constrangido por ser visto na
companhia de uma jovem tão bonita. E lá continuámos a calcorrear a
cidade. Deambulávamos por toda a parte: subíamos ladeiras,
atravessávamos rios, cruzávamos a linha do comboio... Vagueávamos sem
rumo. Andávamos por andar, como num ritual religioso destinado a mitigar
o sofrimento. Se chovia, abríamos o guarda-chuva e seguíamos em frente.
O outono chegou e o pátio da residência estudantil encheu-se de folhas de
olmo. Aspirei o aroma da nova estação ao vestir uma camisola de malha.
Substituí os meus velhos sapatos, todos cambados, por um novo par, de
camurça.
Não me lembro grande coisa dessas conversas. Possivelmente, não
deviam ser importantes. O passado ficava de fora, claro. Kizuki raramente
era mencionado. Continuávamos sem falar muito, e já nos habituáramos a
permanecer os dois calados, a olhar um para o outro, diante das chávenas de
café.
Naoko adorava ouvir as histórias que eu lhe contava acerca do Facho.
Certa ocasião, o Facho marcara encontro com uma colega de turma
(estudante de Geografia como ele, nem é preciso dizer), mas regressara
cedo ao quarto, com um ar nitidamente abatido. A cena passou-se em junho.
− Watanabe, quando sais com uma rapariga, so-sobre que tipo de co-
coisas costumas falar? – perguntou-me.
Não me lembro da resposta que dei na altura, mas, independentemente
disso, eu estava longe de ser a pessoa indicada para o aconselhar. Em julho,
quando ele se encontrava ausente, alguém arrancou o cartaz com a
fotografia do canal de Amesterdão e pespegou na parede uma fotografia da
ponte Golden Gate. A pessoa que fez isso queria ter a certeza de que o
Facho seria capaz de se masturbar enquanto contemplava a ponte de São
Francisco. Quando menti com todos os dentes que tinha e lhes disse que ele
ainda gozara mais, alguém sugeriu que se substituísse o dito cartaz pela
imagem de um icebergue. Sempre que havia mudança de póster, o Facho
ficava perturbado.
− Quem é o responsável por isto? – perguntou-me ele.
− Não faço a mínima ideia. Mas não ligues. As fotografias são bonitas,
todas elas. Seja quem for, deverias agradecer a essa pessoa... – declarei, à
laia de consolação.
− Pode ser que tenhas razão, mas não deixa de ser irritante – observou
ele.
Naoko desmanchava-se a rir com as histórias do Facho. Como era
raríssimo rir-se, eu recorria a esse estratagema o maior número de vezes
possível, se bem que, no fundo, não me sentisse confortável ao usar o meu
amigo como motivo de troça. Afinal, não passava do filho mais novo de
uma família de poucos recursos, de um rapaz demasiado sério. Desenhar
mapas era o sonho da sua vida simples e insignificante. Ninguém tinha o
direito de gozar com ele.
Digo isto, mas, naquela fase do campeonato, as «anedotas do Facho» já
se tinham transformado num dos tópicos obrigatórios, a tal ponto que,
mesmo que eu quisesse, seria impossível parar o comboio em andamento.
Além do mais, confesso que ver o rosto sorridente de Naoko constituía um
genuíno motivo de contentamento. Vai daí, continuei a alimentar o filão e a
proporcionar a todos episódios do meu companheiro de quarto.
Naoko perguntou-me uma única vez se eu gostava de alguma mulher em
especial. Contei-lhe a história do romance que terminara pouco antes.
Confessei que a achava boa rapariga, que tinha prazer no sexo e pensava
nela com saudade, embora houvesse qualquer coisa que não funcionava na
nossa relação. Podia dar-se o caso de o meu coração estar revestido com
uma dura carapaça e, por qualquer razão, ser praticamente impossível
penetrar nele. Daí resultaria a minha incapacidade de amar.
− Nunca amaste ninguém até hoje? – quis saber Naoko.
− Nunca – respondi.
Depois disso, não me fez mais perguntas.
O outono chegou ao fim e um vento gélido começou a varrer as ruas da
cidade. Às vezes, Naoko encostava-se a mim, e eu sentia a sua respiração
através da fazenda grossa do casaco de inverno. Passava o braço por baixo
do meu e enfiava a mão no bolso, e quando fazia realmente frio, tiritava
agarrada ao meu braço. Mas não era mais do que isso. Aqueles gestos não
tinham qualquer significado especial. Pela minha parte, continuava a andar
como se nada fosse, com as mãos enfiadas nos bolsos. Tanto ela como eu
usávamos sapatos com sola de borracha, que abafavam por completo o som
dos nossos passos. Só quando pisávamos as grandes folhas mortas dos
plátanos caídas pelo caminho se ouvia um estalido seco. Bastava-me ouvir
esse barulho para sentir pena de Naoko. Não era do meu braço que ela
precisava, mas do braço de outra pessoa. Não era o calor do meu corpo que
ela procurava, mas o calor de outra pessoa. Era caso para dizer que eu tinha
a consciência pesada pelo simples facto de ser essa pessoa.
À medida que o inverno avançava, comecei a reconhecer uma maior
transparência nos seus olhos. Uma transparência contida em si mesma. Por
vezes, sem nenhuma razão aparente, Naoko fitava-me como se procurasse
alguma coisa, e então apoderava-se de mim uma estranha sensação de
tristeza e impotência.
A páginas tantas, comecei a pensar que ela deveria querer transmitir-me
alguma coisa. Algo que porventura não conseguia traduzir. Melhor dizendo,
que ela própria tinha dificuldade em compreender. Por isso mesmo, não
atinava com as palavras. Brincava o tempo todo com o travessão do cabelo,
passava o lenço pela boca e punha-se a olhar para mim sem motivo
aparente. Sempre que ela fazia isso, sentia-me tentado a abraçá-la, mas,
depois de hesitar, acabava por desistir. Temia que o gesto pudesse ferir os
seus sentimentos. Percorríamos as ruas de Tóquio, e Naoko, como de
costume, perseguia palavras no vazio.
Sempre que recebia uma chamada de Naoko ou quando saíamos nas
manhãs de domingo, os meus colegas fartavam-se de fazer troça. Era
natural que eles pensassem que eu tinha arranjado uma namorada. De nada
serviria explicar-lhes a história, tão-pouco faria sentido, por isso deixava-os
imaginar o que quisessem. De regresso à residência, ao cair da noite, havia
sempre um ou outro que insistia em perguntar em que posição o tínhamos
feito, qual a forma do órgão sexual dela ou a cor da roupa interior.
Raramente perdia a oportunidade de lhes responder à letra.

***

Foi assim a transição dos meus dezoito para os dezanove anos. O Sol nascia
e punha-se todos os dias; a bandeira era hasteada e arriada. Aos domingos,
saía com a namorada do meu amigo morto. Não tinha a mínima noção do
que andava a fazer nem do que pretendia em termos de futuro. Lia Claudel,
Racine e Eisenstein nas aulas, mas esses autores pouco me diziam. Não
travei amizade com ninguém na universidade, e os relacionamentos que
mantinha na residência eram superficiais até dizer chega. Vendo que eu
passava os dias a ler, os colegas da residência concluíram que eu queria
tornar-me escritor, embora nunca tal me tivesse passado pela cabeça. Para
ser franco, não alimentava nenhuma ambição em particular.
Tentei por mais de uma vez partilhar o meu estado de alma com Naoko.
Acreditava que, até certo ponto, ela seria perfeitamente capaz de me
entender. Mas nunca fui capaz de encontrar as palavras. Que estranho,
pensei. Será que ela me contagiou?
Nos sábados à noite, sentava-me numa cadeira à entrada da residência, ao
pé do aparelho, e aguardava o telefonema. Dado que quase toda a gente
costumava sair para se divertir ao sábado, aquele sítio ficava muitíssimo
mais tranquilo do que era habitual, quase deserto. Aproveitava precisamente
essa altura para analisar com alguma profundidade o que me ia na alma,
dedicando-me a observar as partículas de luz naquele espaço silencioso. O
que procuro eu? E o que pretendem as pessoas de mim, ao certo?
Continuava sem encontrar uma resposta satisfatória. Estendia os dedos em
direção às partículas luminosas que flutuavam no ar, mas as pontas dos
dedos não tocavam em nada.
***

Lia muito, mas não se podia dizer que fosse o protótipo do leitor voraz.
Preferia reler os livros que mais me agradavam. Na época, os meus
escritores favoritos eram Truman Capote, John Updike, Scott Fitzgerald e
Raymond Chandler, apesar de não haver ninguém, quer na universidade
quer na residência, que gostasse desse tipo de literatura. Em contrapartida,
liam Kazumi Takahashi, Kenzaburō Ōe, Yukio Mishima ou autores
franceses contemporâneos. Em resultado disso, tínhamos poucos temas em
comum, e eu ia lendo os meus livros sozinho e em silêncio. Percorri os
mesmos romances repetidas vezes e acontecia-me fechar os olhos para
melhor aspirar o perfume dos livros. Sentia-me feliz por aspirar aquele
aroma e percorrer aquelas páginas.
Aos dezoito anos, o meu livro preferido era O Centauro, de John Updike,
mas, à força de o reler, acabou por perder algum do fulgor inicial, cedendo
o primeiro ligar no rol a O Grande Gatsby11, de F. Scott Fitzgerald. Devo
dizer que esse continuou a ser o meu predileto durante muito tempo. Pegar
no romance de Fitzgerald e abri-lo numa página ao acaso, ler alguns
parágrafos, converteu-se numa espécie de ritual. O livro nunca me
dececionou. Nenhuma das suas páginas se tornou entediante. Considerava-o
uma obra-prima e queria a todo o custo partilhar esse deslumbramento com
os outros. Para mal dos meus pecados, mais ninguém à minha volta tinha
lido o livro nem manifestara vontade de o fazer. Embora no ano de 1968 ler
O Grande Gatsby não fosse reacionário, também não era leitura
recomendável.
Que me lembre, apenas um dos meus camaradas tinha lido O Grande
Gatsby, e foi precisamente por isso que nos tornámos amigos. Chamava-se
Nagasawa, andava a estudar Direito na Universidade de Tóquio e era dois
anos mais velho. Conhecíamo-nos de vista, uma vez que vivíamos na
mesma residência, até que, um dia, estava eu sentado ao sol num canto do
refeitório a ler O Grande Gatsby, ele veio sentar-se a meu lado e quis saber
que livro era aquele. Quando lhe mostrei a capa do romance, perguntou-me
se estava a gostar. Respondi-lhe que era a terceira vez que o lia e a cada
leitura encontrava mais motivos para gostar.
− Uma pessoa que leu O Grande Gatsby três vezes tem todas as hipóteses
de se tornar meu amigo – murmurou ele. E ficámos amigos. Passou-se isto
em outubro.
À medida que conhecia melhor Nagasawa, mais o considerava um fulano
estranho. Ao longo da vida, encontrara muitas pessoas esquisitas, mas ele
batia toda a gente aos pontos. Além de devorar livros e livros (eu não lhe
chegava aos calcanhares, diga-se de passagem), adotara a seguinte filosofia:
nunca ler obras de autores que não tivessem morrido há pelo menos trinta
anos. Confiava apenas nesses livros, dizia ele.
− Não significa que encare a literatura contemporânea com desconfiança.
Só não quero gastar a minha preciosa energia com obras que ainda não
foram batizadas pelo tempo. A vida é curta.
− Quais são os escritores que preferes? – perguntei.
− Balzac, Dante, Joseph Conrad, Dickens – respondeu sem pestanejar.
− Estão longe de ser os escritores da atualidade.
− É por isso que os leio. Se tu só leres os autores que o resto das pessoas
lê, acabas por pensar como eles. Deixo isso para os medíocres e os
mentecaptos. Qualquer pessoa séria se envergonharia desse tipo de atitude.
Nesta residência de estudantes só nos safamos os dois, Watanabe. Ainda não
te tinhas dado conta? Os outros são puro lixo!
− Como é que sabes? – perguntei, desconcertado.
− Topo-os à légua. É como se tivessem todos uma marca no meio da
testa. Basta-me olhar para eles. Além disso, ambos lemos O Grande Gatsby.
Fiz um cálculo de cabeça.
− Mas ainda só passaram vinte e oito anos desde a morte do Fitzgerald...
− E depois? Que importam dois anos? – retorquiu. – Para um escritor
acima da média, como é o caso, abro uma exceção.
Na residência ninguém suspeitava que Nagasawa fosse um leitor avisado
de clássicos e, mesmo que soubessem, essa notícia nada teria de
sensacional. Para começar, ele era famoso pela sua inteligência. Entrara sem
dificuldade na Universidade de Tóquio, tirava notas fantásticas e estava nos
seus planos concorrer ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e seguir a
carreira de diplomata. O pai era administrador de um conhecido hospital em
Nagoia e o irmão mais velho, também formado em Medicina pela
Universidade de Tóquio, estava na calha para lhe suceder no cargo. Tudo
indicava tratar-se de uma família às direitas. Não lhe faltava dinheiro para
despesas pessoais e era um rapaz garboso. Como tal, todos, sem exceção, o
respeitavam, e até o diretor da residência, coisa rara e nunca vista, o trazia
sempre nas palminhas. Os seus pedidos eram ordens e ninguém se atrevia a
faltar-lhe ao respeito.
Nagasawa possuía, sem sombra de dúvidas, dotes inatos de sedução e
liderança, o que lhe permitia colocar-se numa posição de vantagem e avaliar
rapidamente a situação, fornecendo instruções precisas e fazendo-se
obedecer. Sobre a sua cabeça pairava uma auréola semelhante à dos anjos,
sinal inequívoco desse poder, e bastava olhar para ele para se notar que era
um homem superior, um ser especial, ao ponto de intimidar os outros. O
facto de Nagasawa me ter escolhido, a mim, um rapaz sem qualquer
característica especial, para seu amigo constituiu uma enorme surpresa e
levou a que as pessoas começassem a tratar-me com um certo respeitinho.
No fundo, a explicação era muito simples, se bem que todos parecessem
ignorá-la.
Nagasawa simpatizava comigo porque eu não o admirava
exageradamente nem tinha o hábito de o adular. Sentia-me atraído pelos
aspetos únicos e complexos da sua personalidade, embora me estivesse
marimbando para as notas brilhantes, a aura e o carisma que dele
emanavam. Para Nagasawa, creio, isso era perfeitamente inusitado.
Alguns traços da sua personalidade revelavam-se por demais
contraditórios. Às vezes, era de uma simpatia tocante, mas podia tornar-se
especialmente cruel enquanto o diabo esfrega um olho. Tanto dava mostras
de enorme nobreza de carácter como de uma vulgaridade insustentável.
Levava tudo e todos para diante, dotado de grande otimismo, mas o seu
coração debatia-se no pântano da solidão profunda. Apercebi-me
claramente deste paradoxo desde o primeiro dia, sem entender por que
razão os outros eram incapazes de ver o mesmo que eu. Nagasawa vivia o
seu próprio inferno.
No fundo, simpatizava com ele. A maior qualidade era a honestidade.
Nunca mentia e reconhecia os seus erros e defeitos, sem procurar esconder
o que não lhe convinha. Mais a mais, tratava-me sempre bem e ajudava-me
quando era preciso. Se não fosse Nagasawa, a minha vida naquela
residência teria sido bastante complicada e desagradável. Apesar disso,
nunca entrei em confidências com ele e, nessa medida, o nosso
relacionamento era completamente diferente da minha amizade com Kizuki.
Depois de o ter visto, bêbedo que nem um cacho, assediar sem dó nem
piedade uma rapariga, prometi a mim mesmo que, houvesse o que
houvesse, nunca me abriria com ele.
Circulavam várias histórias acerca de Nagasawa. A acreditar numa delas,
teria engolido três lesmas sem pestanejar. A outra era que tinha um pénis
enorme; e a terceira era que já fora para a cama com mais de uma centena
de mulheres.
O episódio das lesmas era verdade. Ele próprio mo confirmou.
− Sim, engoli três lesmas gigantescas.
− O que te levou a fazer semelhante coisa?
− É uma longa história – explicou ele. – Foi no ano em que cá cheguei.
Havia uma grande rivalidade entre caloiros e veteranos. Se bem me lembro,
aconteceu em setembro. Na qualidade de representante dos caloiros, coube-
me falar com os veteranos. Uns sujeitos ligados à extrema-direita, armados
de espadas de madeira, como os samurais. Mostraram-se irredutíveis. Então
disse-lhes que faria tudo o que eles quisessem para colocar um ponto final
naquela questiúncula. Aceitaram na condição de eu comer as lesmas.
Concordei. Portanto, comi três lesmas descomunais que puseram diante de
mim.
− Qual foi a sensação?
− A sensação? O que sente qualquer pessoa que se veja obrigada a engolir
moluscos daqueles. Só experimentando... As lesmas deslizaram pela minha
garganta, direitinhas ao estômago. Uma sensação asquerosa, realmente
repugnante! Além de estarem frias, deixam na boca um sabor horrível.
Ainda hoje fico arrepiado só de me lembrar. Tive de fazer um esforço
titânico para não cuspir tudo. Se vomitasse, ter-me-iam obrigado a novo
ordálio.
− E o que aconteceu a seguir?
− Voltei para o meu quarto e bebi quantidades industriais de água salgada
– respondeu Nagasawa. – Que outra coisa podia fazer?
− Sim, claro – reconheci.
− Mas a verdade é que, depois desse episódio, mais ninguém se meteu
comigo. Nem sequer os mais velhos. Era eu o único capaz de semelhante
proeza.
− Tenho a certeza disso.
Verificar o tamanho do pénis foi relativamente fácil. Bastou-me tomar
duche ao lado dele, na casa de banho coletiva. De facto, tinha um marsápio
descomunal. Em contrapartida, a história de que teria dormido com
centenas de miúdas pecava por exagero. Depois de refletir um pouco,
confessou-me que o número devia andar à volta de setenta e cinco. Não se
lembrava ao certo, por isso achou por bem arredondar para setenta. Quando
lhe contei que só fora para a cama com uma única rapariga, afiançou-me
que seria facílimo remediar a situação.
− Um dia destes, saímos juntos. Vais ver como consegues os teus intentos.
Não o levei a sério, mas aconteceu que ele tinha razão. De tão fácil, a
coisa quase perdia o interesse. Entrávamos num bar de Shibuya ou de
Shinjuku (regra geral, os mesmos estaminés), escolhíamos duas miúdas que
nos agradassem (o mundo está repleto de raparigas que saem aos pares),
tomávamos uma bebida juntos e íamos para um hotel qualquer ter sexo. O
que não faltava ao meu amigo era lábia. Não dizia nada de especialmente
importante, mas, ao ouvi-lo, as mulheres rendiam-se por completo,
mostravam-se encantadas, perdiam a conta ao que bebiam e acabavam na
cama com ele. Mais a mais, estamos a falar de um rapaz bonito, amável e
inteligente, o que era meio caminho andado para se sentirem bem na sua
companhia. E, pelos vistos, também me achavam a mim fascinante, pelo
simples facto de me encontrar na companhia dele. Quando, solicitado por
Nagasawa, eu abria a boca e dizia de minha justiça, as jovens manifestavam
interesse e riam-se, encantadas da vida, tal como faziam com o meu amigo.
Devia isso ao encanto natural de Nagasawa, que não parava de me
surpreender. Comparado com ele, os dotes de conversador de Kizuki
pareciam uma brincadeira de criança. Convenhamos que era outro
campeonato! Por mais fascínio que o poder de Nagasawa exercesse sobre a
minha pessoa, sentia saudades de Kizuki. Um companheiro leal e um
verdadeiro amigo do peito, não me cansava de repetir. Alguém que
partilhava o talento unicamente com Naoko e comigo. Nagasawa, pelo
contrário, alardeava o seu engenho ao deus-dará. No fundo, estava pouco
interessado em dormir com todas as raparigas que lhe apareciam à frente.
Para ele, aquilo não passava de um jogo.
Pela parte que me tocava, não me agradava muito a ideia de dormir com
uma desconhecida. Era uma forma cómoda de satisfazer o desejo sexual,
claro, e gostava de ter uma mulher nos meus braços e das carícias trocadas,
mas odiava acordar no dia seguinte ao lado de uma estranha, num quarto
que tresandava a álcool e que continha todos os elementos de gosto
duvidoso típicos dos love hotels, das lâmpadas aos cortinados, e, ainda por
cima, estando eu com o espírito embotado devido à ressaca. A seguir, a
rapariga despertava e punha-se a procurar a roupa em tudo quanto era canto.
Depois, enquanto calçava as meias, perguntava: «Tomaste precauções
ontem à noite? Olha que eu estava naquela altura do mês...» Então, à frente
do espelho, punha batom nos lábios ou pestanas postiças, enquanto se
queixava de dores de cabeça ou de não conseguir pintar-se decentemente.
Era a parte que eu mais detestava. Preferia mil vezes não ficar até à manhã
seguinte, mas não podia seduzir uma mulher e contar com ela para fechar a
loja à meia-noite (era humanamente impossível); por isso, não me restava
outra alternativa senão passar a noite no quarto de hotel (ainda por cima,
tinha de pedir autorização!) e regressar à residência desiludido e a odiar-me,
encadeado pela luz matinal e com a boca pastosa, a saber a manga de capote
encharcado.
Após três ou quatro experiências daquele género, perguntei a Nagasawa
se ele não sentia um vazio enorme por já ter feito aquilo setenta vezes.
− Bom sinal. Se te sentes um homem vazio, isso só prova que és um tipo
honesto – respondeu ele. – Não ganhamos nada em ir para a cama com
perfeitas desconhecidas. Além de cansativo, acabamos por nos detestar a
nós próprios. Também acontece comigo, acredita.
− Então, porque é que insistes?
− É difícil explicar. Lembras-te do livro que o Dostoiévski escreveu sobre
o jogo e os jogadores? Pois bem, neste caso passa-se o mesmo. Que é como
quem diz, quando à nossa volta tudo são oportunidades, é muito difícil
fechar os olhos e não aproveitar. Compreendes?
− Mais ou menos – respondi.
− O Sol põe-se. As raparigas saem à noite para dar uma volta e beber um
copo. Andam à procura de uma coisa que eu lhes posso dar. Tão simples
como abrir a torneira para beber água. Mal damos por elas, caem no nosso
colo, e é isso que pretendem, no fundo. Serias capaz de deixar escapar a
oportunidade? Tendo tu os meios para tal, passarias ao lado de uma ocasião
única?
− Não sei. Nunca me encontrei nessa situação. Nem sequer consigo
imaginar – disse eu, a rir.
− De certa maneira, invejo-te – concluiu Nagasawa.
Verdade seja dita que a razão pela qual Nagasawa se encontrava a viver
numa residência de estudantes, apesar de ser herdeiro de uma família
abastada, estava diretamente relacionada com as suas aventuras amorosas.
Receando que ele levasse uma vida de libertino pelo facto de viver sozinho
em Tóquio, o pai exigira que o filho permanecesse numa residência
estudantil durante os quatro anos do curso. Para Nagasawa era igual ao
litro. Levava a vida que bem queria, sem ligar nenhuma às normas. Quando
lhe dava na real gana, pedia autorização para passar a noite fora e ia à caça
de mulheres, ou dormia no apartamento de um amigo. Conseguir a dita
autorização não era fácil, mas, pelos vistos, tinha uma espécie de livre-
trânsito permanente, e o mesmo acontecia comigo, desde que fosse ele a
fazer o pedido.
Nagasawa tinha uma namorada fixa, com a qual saía desde que entrara
para a faculdade. Chamava-se Hatsumi e eram os dois da mesma idade.
Uma rapariga muito simpática, sem ser propriamente uma beldade.
Chegámos a encontrar-nos os três por mais de uma vez. A princípio,
perguntei a mim mesmo o que teria levado um tipo como Nagasawa a
escolher uma jovem como ela, dona de uma beleza que não fazia virar as
cabeças e com um aspeto comum, mas o certo é que bastava trocar meia
dúzia de palavras para nos rendemos. Era esse género de rapariga. Doce,
inteligente, com sentido de humor, atenta aos outros e sempre vestida com
elegância. Gostava imenso dela e imaginava que, se tivesse alguém como
Hatsumi na minha vida, seria incapaz de ir para a cama com outras
mulheres desprovidas de qualquer atrativo. Por seu turno, ela também
simpatizava comigo e insistia em apresentar-me às amigas, organizando
encontros duplos a torto e a direito, mas eu, que não estava interessado em
repetir os erros do passado, arranjava sempre uma desculpa para me safar. A
universidade feminina onde andava Hatsumi era famosa por ser frequentada
por filhas de boas famílias, e era pouco provável que eu tivesse assunto para
elas.
Embora soubesse vagamente que Nagasawa ia para a cama com outras,
Hatsumi nunca se queixou. Amava-o loucamente, e longe das suas
intenções exercer pressão sobre o namorado.
− Não mereço uma mulher como ela – dizia Nagasawa.
Nesse ponto, estávamos os dois de acordo.

***
No inverno, comecei a trabalhar a tempo parcial numa pequena loja de
discos. Apesar de receber pouco, o trabalho agradava-me e não exigia
grande esforço, considerando que só precisavam dos meus serviços três
noites por semana. Quanto mais não fosse, podia adquirir discos com
desconto. Por altura do Natal, comprei um álbum de Henry Mancini para
dar a Naoko, aquele que incluía a canção «Dear Heart», a sua preferida. Eu
mesmo embrulhei o disco e lhe pus um bonito laço vermelho. Naoko
ofereceu-me um par de luvas. Os polegares ficavam um nadinha curtos, mas
sempre serviam os dedos quentes.
− Desculpa. Sou mesmo desajeitada – disse ela, corando.
− Nada disso. Servem-me perfeitamente – respondi, mostrando-lhe as
luvas postas.
− Pelo menos, não vais precisar de andar com as mãos nos bolsos... –
acrescentou ela.
Nesse inverno, Naoko não regressou a Kōbe durante as férias. Quanto a
mim, continuei a trabalhar até ao fim do ano, acabando por ficar em Tóquio.
Não tinha nada de especial à minha espera em Kōbe, nem ninguém que me
apetecesse especialmente ver. Uma vez que o refeitório estava encerrado
durante aquele período das festas, fazia as minhas refeições em casa dela.
No Ano Novo, preparámos os dois uma refeição simples, à base de mochi e
de zōni12.
Entre janeiro e fevereiro de 1969, muita coisa aconteceu.
No fim de janeiro, o Facho caiu à cama com quase quarenta graus de
febre. Por causa disso, fui obrigado a desmarcar um encontro com Naoko.
Vira-me e desejara-me para arranjar dois convites grátis para um concerto
de música clássica e desafiara-a. Ela estava ansiosa porque a orquestra
sinfónica interpretava a Quarta Sinfonia de Brahms, uma das suas peças
preferidas. No entanto, com o Facho a rebolar na cama, dando a impressão
de estar a morrer aos bocadinhos, não podia de modo algum abandoná-lo.
Tão-pouco consegui arranjar uma boa alma disposta a tomar conta dele.
Comprei gelo e enchi vários sacos de plástico, humedeci uma toalha para
secar o suor, medi a temperatura de hora a hora e cheguei até a mudar-lhe o
casaco do pijama. A febre não baixou durante todo o dia. Na manhã
seguinte, levantou-se da cama e começou a fazer a sua ginástica como se
não fosse nada com ele. Quando tirou a temperatura, tinha trinta e seis e
dois. Decididamente, aquele rapaz não pertencia à classe dos humanos.
− Que estranho! Foi a primeira vez que tive febre – disse o Facho, como
se a culpa fosse minha.
− Pois eu garanto-te que estavas cheio de febre – retorqui, irritado,
acenando-lhe com os dois bilhetes desperdiçados.
− Ainda bem que eram convites – comentou ele.
Apeteceu-me agarrar no rádio e atirá-lo pela janela, mas doía-me a cabeça
e acabei por me enfiar na cama.
Durante o mês de fevereiro nevou por mais de uma vez.
Quase no fim do mês, envolvi-me numa briga estúpida com um aluno
mais velho que morava no mesmo andar e preguei-lhe um valente murro.
Resultado: ele bateu com a cabeça na parede de cimento. Por sorte, o golpe
não teve consequências graves e Nagasawa saiu em minha defesa. Isso não
impediu que eu fosse chamado ao gabinete do diretor, saindo de lá com uma
advertência. Depois desse episódio, acabou-se a boa vida na residência.
E assim chegou ao termo o ano letivo e começou a primavera. Devido à
falta de créditos em certas disciplinas, vi-me obrigado a desistir de várias
cadeiras. As minhas notas foram medíocres: quase tudo «C» e «D», com um
ou outro «B». Naoko passou para o segundo ano a tudo. Chegara ao fim o
ciclo das quatro estações.

***

Naoko festejou os seus vinte anos em meados de abril. Uma vez que nasci
em novembro, ela era sete meses mais velha do que eu. Fazia-me uma certa
espécie que ela tivesse vinte anos. Era como se fosse normal vivermos
eternamente entre os dezoito e os dezanove anos. Mas a verdade é que
completara vinte anos. E o mesmo aconteceria comigo, quando chegasse o
outono. Só os mortos é que tinham (acho) dezassete anos para sempre.
No dia do aniversário de Naoko, a chuva marcou presença. Depois das
aulas, comprei um bolo perto da universidade, meti-me no comboio e fui
até ao seu apartamento. Atendendo à data especial, tinha-lhe sugerido que
comemorássemos o dia de anos. Gostaria que ela fizesse o mesmo em
relação a mim. Deve ser muito triste uma pessoa passar o seu vigésimo
aniversário sozinha. O comboio estava apinhado de gente e as carruagens
oscilavam perigosamente. Quando cheguei a casa dela, o bolo de anos mais
parecia as ruínas do Coliseu romano. Mesmo assim, enfeitei-o com as vinte
velas que tinha levado, acendi um fósforo e, após correr as cortinas e apagar
a luz, criou-se ali uma digna atmosfera festiva. Naoko abriu uma garrafa de
vinho. Bebemos, comemos bolo e preparámos um jantar simples.
− Não sei porquê, mas acho uma estupidez fazer vinte anos – observou
ela. – Confesso que não estou preparada. Parece que alguém me empurra
pelas costas e me obriga a avançar.
− Ainda me faltam sete meses – respondi eu. – Tenho tempo de sobra para
me preparar.
− Tens sorte de ainda só ter dezanove anos – disse ela, cheia de inveja.
No decorrer do jantar, contei-lhe que o Facho tinha comprado uma
camisola nova. Até aí, andava sempre com o mesmo pulôver (o tal azul-
marinho, que fazia parte do uniforme). Era uma bonita camisola de malha
vermelha e preta, com um cervo bordado, mas quando o meu camarada
aparecia com ela vestida, toda a gente fazia troça dele. O Facho não
percebia o porquê da gargalhada geral.
«Diz-me uma coisa, Tōru Watanabe, qual é a graça?», perguntou-me ele,
sentando ao meu lado no refeitório. «Tenho alguma coisa na cara?»
«Não, confesso que não vejo nada de estranho», respondi, procurando
abafar o riso.
«Obrigado», agradeceu o Facho, todo satisfeito.
Naoko divertiu-se à brava com esta história.
− Quem me dera tê-lo conhecido. Nem que fosse apenas uma vez.
− Impossível. Bastaria olhares para ele e partias-te a rir.
− Achas que sim?
− Aposto o que quiseres. Até eu, que convivo diariamente com ele, tenho
dificuldade em conter o riso.
Após a refeição, levantámos a mesa e sentámo-nos no chão, a ouvir
música e saboreando o resto do vinho. Naoko bebeu dois copos, eu fiquei-
me por um.
Ao contrário do que era costume, Naoko fartou-se de conversar. Falou
acerca da sua infância, dos estudos, da família. Cada um dos temas mereceu
da parte dela um longo relato, repleto de pormenores, como uma miniatura.
Fiquei ali a ouvi-la discorrer, maravilhado com a sua capacidade de
armazenar recordações. A determinada altura, comecei a perceber que havia
algo de errado na sua forma de falar. Qualquer coisa de estranho, que soava
pouco natural e distorcido aos meus ouvidos. As histórias tinham princípio,
meio e fim; o que falhava era a relação entre cada uma delas. A história A
transformava-se, de repente, na história B, que fazia parte da história A;
depois, passava da história B à história C, implícita na história B, e assim
por diante, indefinidamente. De início, esforcei-me por acompanhar o fio à
meada, mas não tardei a dar-me por vencido. Pus a tocar um trinta e três
rotações e, quando a música chegou ao fim, levantei o braço da agulha e
troquei de disco. Naoko só tinha meia dúzia de álbuns: o primeiro do rol era
Sargeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band e o último Waltz for Debbie,
de Bill Evans. Através das janelas, a chuva continuava a cair. O tempo
passava lentamente enquanto ela continuava com o seu monólogo.
A artificialidade do discurso devia-se, porventura, ao hábito que Naoko
tinha de abordar uma série de assuntos, sem no entanto aprofundar as
questões. Um dos temas, escusado será dizer, era Kizuki, mas palpitava-me
que não era o único. Por se tratar da primeira vez que a ouvia falar com
entusiasmo de alguma coisa, deixei-a dar livre curso às suas emoções.
Quando o relógio assinalou as onze da noite, comecei a ficar nervoso.
Naoko falara sem interrupções durante mais de quatro horas. Havia duas
coisas que me preocupavam: o horário do último comboio e a hora de a
residência encerrar as portas. Num momento que me pareceu adequado,
interrompia-a:
− Vou ter de me ir embora, senão arrisco-me a perder o último comboio –
disse eu, olhando para o relógio.
Pelos vistos, as minhas palavras não surtiram o desejado efeito. Ou então,
se as ouviu, fez ouvidos de mercadora. Calou-se por instantes, mas
recomeçou a falar logo a seguir. Desisti, mudei de posição e escorropichei a
segunda garrafa de vinho. Naquelas circunstâncias, pensei para comigo, o
melhor seria deixá-la desabafar. Quanto ao último comboio, ao toque de
recolher na residência de estudantes e ao resto, entreguei-me nas mãos do
destino.
Naoko não prolongou o relato por muito mais. Subitamente, calou-se. No
ar flutuaram fragmentos das derradeiras sílabas, como que arrancadas de
algum lugar. Em bom rigor, a conversa não chegara ao fim. Evaporara-se,
por assim dizer. Ela bem tentou continuar, mas algo ficara pelo caminho.
Talvez tivesse sido eu o responsável por isso, quem sabe? Se calhar, as
minhas palavras tinham acabado por chegar até ela, deixando-a sem
vontade de continuar. Com os lábios entreabertos, Naoko olhava fixamente
para mim. Fazia lembrar uma máquina que tivesse deixado de funcionar por
falta de energia. Tinha os olhos cobertos por uma ligeira membrana opaca.
− Desculpa, não quis interromper-te – disse eu. – Mas está a fazer-se
tarde e...
As lágrimas vieram-lhe aos olhos e correram pelas faces, produzindo um
som surdo ao caírem sobre a capa de um dos discos de vinil. Depois de ter
aberto a torneira, rompeu num pranto convulsivo. Chorava toda curvada
para a frente, apoiando as mãos no chão, como se estivesse prestes a
vomitar. Foi a primeira vez que vi alguém soluçar de forma tão violenta.
Estendi o braço e toquei-lhe no ombro, que tremia, sacudido por pequenos
espasmos. Quase inconscientemente, abracei-a. Agarrada a mim, Naoko
continuou a chorar de forma silenciosa. A minha camisa ficou húmida,
primeiro, e depois empapada com as suas lágrimas e o sopro quente da sua
respiração. Os dedos de Naoko percorreram as minhas costas como se
procurassem alguma coisa, uma coisa importante que sempre ali estivera. A
segurá-la com a mão esquerda, acariciei-lhe os cabelos lisos e sedosos com
a direita. Permaneci nessa posição durante muito tempo, na esperança de
que ela parasse de chorar. Mas o choro não parou.
Nessa noite, dormi com Naoko. Não sei dizer se fiz bem ou mal. Ainda
hoje, passados quase vinte anos, confesso que não tenho a certeza. O mais
provável é nunca vir a saber. Naquele momento, porém, não podia fazer
outra coisa. Ela mostrava-se extremamente nervosa, pedindo-me que a
abraçasse. Apaguei a luz do quarto e despi-a lentamente, com ternura; a
seguir, tirei a minha própria roupa. Abraçámo-nos. Apesar da noite tépida e
de estarmos nus, não sentíamos frio. Às escuras, explorámos em silêncio os
nossos corpos. Beijei-a e envolvi suavemente os seus seios macios com as
mãos. Naoko segurou no meu pénis duro. A vagina dela estava húmida e
morna, pronta para me receber.
Apesar disso, sentiu uma forte dor quando a penetrei. Perguntei-lhe se era
a primeira vez, e ela assentiu. Quem ficou confuso fui eu. Sempre pensara
que ela tinha ido para a cama com Kizuki. Enfiei o pénis ainda mais fundo,
permaneci imóvel, abraçado a ela. Quando pressenti que se tinha acalmado,
comecei a mexer-me devagar e aguentei o mais possível até ejacular. No
fim, Naoko agarrou-se a mim com força e gritou. De todos os gritos que
penetraram nos meus ouvidos durante o momento do orgasmo, o dela foi o
mais triste.
Após tudo ter terminado, perguntei-lhe por que razão nunca fizera amor
com Kizuki. Foi um erro da minha parte. Naoko afastou os braços do meu
corpo e começou a chorar de mansinho. Fui ao armário da roupa buscar o
futon e deitei-a em cima dele. A seguir, fumei um cigarro, observando a
chuva de abril que caía, inclemente, lá fora.

***

Na manhã seguinte, chovia menos. Naoko dormia de costas para mim. Ou


estaria acordada, sem ter pregado olho durante a noite? Acordada ou
adormecida, a boca estava muda e o corpo rígido que nem uma pedra.
Tentei falar com ela por mais de uma vez, mas nunca obtive resposta. Não
tugiu nem mugiu. Deixei-me estar ali, a admirar os seus ombros nus. Acabei
por renunciar à ideia e levantei-me.
Espalhados pelo meio do chão viam-se vestígios da noite anterior: capas
de discos, copos, garrafas de vinho, um cinzeiro... Sobre a mesa, meio bolo
de anos feito em papa. Dir-se-ia que o tempo parara de repente. Apanhei
tudo o que se encontrava pelo chão e bebi dois copos com água de uma
assentada. Na estante, um dicionário e um guia de conjugação de verbos
franceses. Havia um calendário pendurado na parede, mesmo à frente da
mesa. Desprovido de fotografias ou ilustrações, mostrava apenas os
números que indicavam as datas. Estava totalmente em branco.
Peguei na minha roupa e vesti-me. A camisa ainda estava fria e húmida
no peitilho. Ao aproximá-la do rosto, reconheci o perfume de Naoko. Numa
folha arrancada de um bloco de notas que encontrei na secretária, escrevi
que gostaria de conversar com mais calma e pedi para ela me ligar logo que
fosse possível, aproveitando para lhe desejar feliz aniversário. Contemplei
uma vez mais os seus ombros e, ao sair do quarto, fechei a porta
devagarinho.

***

Uma semana mais tarde, continuava sem notícias. Dado que Naoko não
tinha telefone em casa, no domingo seguinte peguei em mim e resolvi ir até
Kokubunji. Não se encontrava no apartamento e a placa com o seu nome
fora arrancada da porta. Janelas e estores estavam completamente fechados.
Quando perguntei por ela ao porteiro, este respondeu-me que Naoko se
mudara três dias antes e que não fazia a mínima ideia do seu destino.
Regressei a casa e escrevi-lhe uma longa carta para a direção de Kōbe.
Independentemente do sítio onde ela estivesse a morar, por certo que os pais
lhe fariam chegar a missiva às mãos.
Na carta disse-lhe tudo o que me ia na alma. Havia uma data de coisas
que eu não entendia e, embora me esforçasse por compreendê-las, precisava
de tempo. Não fazia a mínima ideia de onde me encontraria quando o
momento chegasse. Por enquanto, tudo aquilo representava uma incógnita
para mim. Como nos conhecíamos mal, não podia prometer nem pedir
nada. Mas, se ela me concedesse mais tempo, faria os possíveis e os
impossíveis para aprofundarmos a nossa relação. De qualquer forma, queria
encontrar-me com ela de novo e conversar calmamente. Desde a morte de
Kizuki, perdera a única pessoa com quem podia desabafar, e Naoko
provavelmente sentia a mesma coisa. A necessidade que tínhamos um do
outro era maior do que poderíamos pensar. Graças a isso, acabáramos por
seguir a estrada mais longa para chegar onde nos encontrávamos. Num
certo sentido, algo se perdera pelo caminho. Talvez eu não devesse ter feito
o que fizera, mas não podia ter agido de outro modo. Confessei-lhe que
nunca sentira por ninguém a ternura e a sensação de intimidade ela me
proporcionava. Ficaria à espera de uma resposta. Precisava de uma resposta.
Pouco importava o teor da mesma. Era mais ou menos o que dizia na carta.
Não recebi resposta.
Sentia-me como se alguma coisa dentro de mim se tivesse desintegrado,
deixando no coração um grande vazio. O meu corpo revelava uma ligeireza
invulgar e, em simultâneo, uma espécie de ressonância oca. Frequentava a
universidade com maior assiduidade. Apesar de as aulas serem aborrecidas
até dizer basta e de não alimentar qualquer diálogo com os meus colegas,
não tinha mais nada para fazer. Sentado na extremidade da primeira fila,
seguia a aula, não trocava uma palavra com ninguém, fazia as minhas
refeições sozinho. Até deixei de fumar.
No final de maio, a universidade entrou em greve. «Abaixo a
universidade», gritavam os estudantes. Isso, acabem com ela, pensei.
Destruam-na de uma vez por todas. Façam-na em fanicos e reduzam-na a
um monte de pó e escombros. Pouco me importa. Se isso acontecer, será um
alívio. Mais, se precisarem da minha ajuda, contem comigo. Avante,
camaradas.
Com o campus ocupado e as aulas suspensas, comecei a trabalhar a
tempo parcial numa empresa de transportes. Viajava no camião, ao lado do
condutor, e estava incumbido de carregar e descarregar a mercadoria. O
trabalho era muito mais duro do que imaginara. Doía-me tanto o corpo, a
princípio, que mal me conseguia arrancar da cama de manhã. Mas o
ordenado compensava o esforço e, enquanto estava ocupado, conseguia
esquecer o vazio dentro de mim. Trabalhava cinco dias por semana na
transportadora e três noites na loja de discos. Nas noites em que estava de
folga, ficava no quarto a ler e a beber uísque. O meu amigo Facho, que era
abstémio, mostrava-se sobremaneira sensível ao cheiro do álcool. Quando
me viu deitado na cama a saborear um uísque puro, queixou-se
amargamente de não conseguir estudar com aquele pivete e convidou-me a
ir beber lá para fora.
− Vai tu – disse eu.
− Ma-mas é proibido beber álcool na residência. São as regras – insistiu
ele.
− Se não estás bem, muda-te – repeti.
Calou-se. A cena irritou-me supinamente. Ato contínuo, subi para o
terraço, onde podia beber à vontade.
Em junho, escrevi outra longa carta a Naoko e enviei-a de novo para a
casa da sua família, em Kōbe. O conteúdo não era diferente da mensagem
anterior. Para acabar, acrescentei que se tornava muito penoso esperar por
uma resposta que nunca mais chegava e que pretendia apenas certificar-me
de que não ferira os sentimentos dela. Assim que pus a carta no correio,
senti o vazio do meu coração aumentar um tudo-nada.
Durante o mês de junho, saí com Nagasawa duas vezes e fui para a cama
com duas raparigas. Foi facílimo, de ambas as ocasiões. Uma delas resistiu
violentamente quando tentei despi-la – estávamos no quarto do hotel –, mas
bastou-me começar a ler um livro na cama e ela chegou-se logo a mim. A
outra, depois de fazer amor, quis saber tudo e mais alguma coisa acerca da
minha pessoa: com quantas mulheres já tinha ido para a cama, onde
nascera, em que universidade andava a estudar, de que género de música
gostava, se lera algum romance de Osamu Dazai13, para que país estrangeiro
gostaria de viajar, se eu achava que ela tinha os mamilos demasiado grandes
em relação às outras, e por aí fora. Respondi-lhe o que me veio à cabeça
antes de adormecer. Ao acordar, anunciou que gostaria de tomar o pequeno-
almoço na minha companhia. Fui com ela a uma cafetaria e aí tivemos
direito à ementa fixa do dia: uns ovos intragáveis, umas torradas péssimas e
um café pavoroso. Durante a refeição, prosseguiu com o interrogatório.
Qual a profissão do meu pai, se tivera boas notas no secundário, em que
mês nascera, se alguma vez comera carne de rã. Começou a doer-me a
cabeça. Mal o pequeno-almoço chegou ao fim, disse-lhe que tinha de ir
trabalhar.
− Achas que voltamos a ver-nos? – quis ela saber, com uma certa
melancolia.
− De certeza que sim – respondi eu, e assim nos separámos.
Mas o que andas tu a fazer?, perguntei a mim mesmo, incomodado. Não
devia ter feito aquilo, mas não conseguia evitá-lo. O meu corpo, faminto,
estava sedento de outro corpo, um corpo de mulher. Mas quando me
encontrava na cama com elas, passava o tempo todo a pensar em Naoko. Na
palidez do seu corpo nu recortando-se no escuro, na respiração acelerada, e
até no barulho da chuva. Quanto mais pensava nela, mais fome sentia, mais
sede tinha. Fui até ao terraço beber um uísque, e a pergunta persistia: Mas o
que andas tu a fazer?
Recebi uma carta de Naoko nos primeiros dias de julho. Era muito curta.

Desculpa só agora te responder, mas peço-te que me compreendas. Demorou


bastante tempo até me sentir em condições de o fazer. Reescrevi esta carta uma
dezena de vezes. Passar para o papel aquilo que me vai cá dentro representa um
esforço penoso.
Começo pelo fim. De momento, decidi interromper os estudos durante um ano.
Mesmo que se trate apenas de um afastamento provisório, suspeito bem que nunca
regressarei à universidade. Deixar de ir às aulas mais não foi do que uma mera
questão administrativa. Isto pode parecer-te uma decisão precipitada, mas a verdade
é que pensei maduramente no assunto. Senti-me tentada, por mais de uma vez, a
falar contigo, mas nunca fui capaz de abordar o tema. Faltou-me coragem para
traduzir os sentimentos em palavras, por recear a tua reação.
Não te preocupes comigo. O que aconteceu ou não aconteceu nada tem que ver
com a minha atual situação. Longe de mim ferir os teus sentimentos. Se for o caso,
peço que me desculpes. Dito de outro modo, não suporto a ideia de que te sintas
culpado por minha causa. Assumo inteira responsabilidade pelo que aconteceu.
Ando há mais de um ano a adiar este momento, e creio que isso terá contribuído
para te prejudicar. Mas agora cheguei ao limite.
Após ter saído do apartamento de Kokubunji, regressei a casa dos meus pais, em
Kōbe, e estive internada durante um certo período. Os médicos falaram-me numa
casa de repouso nas montanhas de Quioto, e estou a pensar seriamente em passar lá
uma temporada. Não se trata exatamente de um hospital, na aceção rigorosa do
termo, mas de um lugar que me permitirá recuperar o meu próprio ritmo. Os
pormenores ficam para segundas núpcias. Ainda tenho dificuldade em pôr tudo no
papel. Neste momento, preciso é de descansar e acalmar os nervos num local
isolado do mundo.
À minha maneira, estou-te imensamente grata por teres permanecido ao meu lado
no último ano. Acredita nestas palavras. Não me magoaste. Fui eu quem saiu
magoada. Tenho perfeita consciência disso.
Ainda não me sinto preparada para me encontrar contigo, o que não significa que
não tenha vontade. Acontece que não me sinto pronta. Logo que estiver, escrevo-te.
Acho que nessa altura poderemos conhecer-nos melhor. Tal como tu disseste,
precisamos de saber mais coisas um do outro.
Adeus, até breve.

Reli a carta mais de cem vezes. De cada vez que a lia, invadia-me uma
tristeza insuportável. A mesma que sentia quando Naoko me fitava olhos
nos olhos. Era uma sensação de profundo desconsolo, e impossível de adiar,
de esconder. Não tinha contorno nem peso, à imagem e semelhança do
vento que passa aflorando o corpo. De tão impalpável, nem sequer
conseguia aconchegar-me nela. A paisagem deslizava devagar à minha
volta. As palavras dos outros, porém, não me chegavam aos ouvidos.
Passava as noites de sábado sentado na entrada, fiel aos meus hábitos.
Não se podia dizer que estivesse à espera de um telefonema, mas não tinha
mais nada para fazer. Acendia o televisor e, pelo menos, sempre fingia que
estava a ver o jogo de basebol. Dividia ao meio o espaço
incomensuravelmente vazio entre o aparelho de televisão e eu, dividindo de
novo cada metade, e assim sucessivamente, até criar um espaço
suficientemente pequeno que coubesse na palma da minha mão.
Às dez da noite, desligava a televisão, voltava para o quarto e caía nos
braços de Morfeu.

***

No fim do mês, o Facho ofereceu-me um pirilampo.


Vinha num frasco de café solúvel. A tampa tinha uns quantos furos
minúsculos feitos de modo a permitir a entrada do ar; lá dentro havia tufos
de erva e um pouco de água. Àquela hora do dia, os pirilampos tinham o
aspeto dos vulgares insetos que se encontram à beira-rio, mas o Facho
insistiu em que se tratava de vaga-lumes.
− Sei muito acerca de pirilampos – disse ele.
Pela minha parte, não tinha motivos (nem provas, diga-se de passagem)
para contestar a afirmação. Portanto, vamos partir do princípio de que se
tratava de um pirilampo. Bem sonolento, por sinal. Sempre que tentava
subir pela parede de vidro, escorregava e caía.
− Encontrei-o no jardim.
− Neste jardim? – perguntei, surpreendido.
− Sim. Num ho-hotel que fica aqui perto costumam so-soltar pirilampos
no verão, para atrair os hóspedes. Deve ter-se perdido e veio aqui parar –
referiu ele, ao mesmo tempo que enfiava roupas e cadernos no saco de
viagem preto.
Tinham decorrido várias semanas desde o início das férias de verão e
éramos os únicos que ainda continuavam ali alojados. Eu não queria voltar
para Kōbe, porque ainda estava a trabalhar; quanto a ele, andava a fazer um
estágio. Contudo, à medida que o estágio chegava ao fim, preparava-se para
o regresso a casa. A família do Facho vivia em Yamanashi.
− Que tal ofereceres isso a uma miúda? Aposto que irá gostar.
− Obrigado – agradeci.
Ao final da tarde, a entrada da residência estava silenciosa, à imagem de
umas ruínas. A bandeira era arriada no mastro e as luzes brilhavam nas
janelas do refeitório. Dado que o número de estudantes diminuíra
significativamente, era costume acender apenas metade das luzes. A metade
da direita era apagada, ficando acesa apenas a metade da esquerda. Fosse
como fosse, ficava sempre no ar o leve aroma do jantar. Carne estufada,
adivinharam.
Subi ao terraço levando na mão o frasco com o pirilampo. O lugar estava
deserto. No varal, uma camisa que alguém se esquecera de apanhar
ondulava ao sabor da brisa noturna, fazendo lembrar a pele de um animal.
Subi pelas escadas metálicas ao canto do terraço até ao alto da torre de
água. O tanque cilíndrico ainda estava quente devido ao calor absorvido
durante o dia. Sentei-me no espaço exíguo, apoiado ao corrimão, tendo
diante dos olhos a imagem da Lua branca quase cheia. À direita, via as
luzes de Shinjuku e, à esquerda, as de Ikebukuro. Os faróis dos carros
formavam um rio luminoso fluindo entre esses dois bairros. Um rumor não
sabido, mescla de vários ruídos, pairava como uma nuvem sobre a cidade.
O pirilampo brilhava indistintamente no fundo do frasco. A luz que
produzia era demasiado débil; a sua cor demasiado pálida. Passara uma
eternidade desde a primeira vez que vira brilhar um pirilampo, mas, que me
lembrasse, os pirilampos emitiam uma claridade muito mais intensa e nítida
no negrume das noites de verão. Gravada na memória subsistia a imagem
dos pirilampos produzindo uma luz viva, incendiária.
Talvez o pirilampo estivesse fraco, à beira da morte. Segurei no frasco
pelo bocal e experimentei abaná-lo ao de leve. O inseto foi bater na parede
de vidro e ameaçou levantar voo. Mas a luminosidade que dele se
desprendia continuava mortiça.
Tentei lembrar-me da última vez que estivera na presença de um
pirilampo. Onde teria sido? Consegui recordar a cena, mas fui incapaz de
me lembrar do local e do momento em questão. Ouvia o som de água na
noite escura. Havia um dique de tijolos ao estilo de antigamente, que se
abria e se fechava fazendo rodar uma manivela. O rio não tinha uma largura
por aí além. Era um pequeno curso de água, com a superfície coberta pelas
plantas aquáticas que cresciam nas margens. Para vos dar uma ideia da
escuridão em redor, basta dizer que, com a lanterna de bolso apagada, nem
sequer víamos os próprios pés. Centenas de pirilampos voavam sobre o
tanque. O seu brilho refletia-se à superfície das águas como faíscas
ardentes.
Fechei os olhos e deixei-me afundar nas trevas da memória. Ouvia
distintamente o vento, porventura mais do que era costume. Não era um
vento muito forte, mas, espantosamente, deixava um rasto nítido atrás de si,
uma espécie de figura geométrica. Quanto tornei a abrir os olhos, a ausência
de luz que se fazia sentir naquela noite de verão adensara-se.
Abri o bocal do frasco, tirei de lá o pirilampo e pousei-o no rebordo do
tanque, a cinco centímetros do reservatório de água. O inseto não deu sinal
de reconhecer a mudança de meio ambiente. Parecia não saber onde estava.
Descreveu uma curva em torno de um parafuso, um tanto titubeante,
tentando subir por uma parte solta da pintura que fazia lembrar uma crosta.
Ao avançar um pouco para a direita, apercebeu-se de que se encontrava
num beco sem saída e deu meia-volta, regressando à esquerda. Depois,
muito devagar, lá conseguiu erguer-se até à cabeça do parafuso,
permanecendo agachado. Perfeitamente imóvel, parecia ter soltado o último
suspiro.
Apoiado ao corrimão, eu não tirava os olhos do pirilampo. Durante um
bom bocado, permanecemos os dois assim, sem fazer o menor movimento.
A única coisa que se mexia à nossa volta era o vento. As inúmeras folhas
dos olmos sussurravam no escuro.
Esperei uma eternidade.

***

Demorou até o pirilampo levantar voo. Como se finalmente tivesse


acordado, abriu as asas e, no instante seguinte, flutuava numa ligeira
obscuridade, do outro lado do corrimão. Descreveu vários círculos rápidos
junto à torre de água, tentando talvez recuperar o tempo perdido.
Imobilizou-se logo a seguir, como se observasse os traços luminosos por ele
deixados serem levados pelo vento, e afastou-se finalmente em direção a
leste.
Os motivos geométricos traçados no rasto da luz permaneceram dentro de
mim muito depois de o pirilampo ter desaparecido. Atrás das minhas
pálpebras cerradas, aquela pálida luz, semelhante a uma alma inquieta,
seguiu ternamente sem destino.
Estendi várias vezes os braços em direção a essas trevas. Os meus dedos
não tocaram em nada. A luz ténue ficava sempre um pouco para lá do meu
alcance.

11 Um dos romances de cabeceira de Haruki Murakami. O escritor alimentava desde os dezasseis


anos o firme propósito de traduzir The Great Gatsby para japonês, o que aconteceu em 2016.
Anteriormente, traduzira vários contos do escritor norte-americano. (N. da T.)

12 Mochi é uma torta de arroz, e zōni, um caldo com arroz. São pratos típicos do Ano Novo. (N. da
T.)

13 Osamu Dazai (1901-1948), escritor maior e figura de culto da geração do pós-guerra, autor de
Não-Humano (Ningen shikkaku), romance autobiográfico e, porventura, a sua obra-prima, publicado
em 2014 pela editora Cavalo de Ferro com tradução de Ana Neto. (N. da T.)
Durante as férias de verão, a universidade requisitou a intervenção das
forças de segurança pública. Resultado: os polícias trataram de derrubar as
barricadas e de prender os estudantes que se encontravam refugiados no
interior do campus. Não era nada de novo. Acontecia o mesmo um pouco
por toda a parte. Apesar disso, a universidade ainda se mantinha de pedra e
cal. Um grande volume de investimentos fora canalizado para as
instituições de ensino superior, e não era a violência de um punhado de
estudantes que conduziria ao desmantelamento da instituição. Não se podia
dizer que os revoltosos pretendessem destruí-la. Os estudantes procuravam
apenas modificar o equilíbrio na gestão universitária, o que não me dizia
rigorosamente nada. Por isso, quando a greve foi cancelada, não
experimentei uma emoção fora do vulgar.
Quando regressei às aulas, em setembro, ia à espera de encontrar a
universidade quase em ruínas, mas verifiquei que estava intacta. Os livros
da biblioteca não haviam sido saqueados, e os estudantes não tinham
destruído as salas dos professores nem incendiado a associação. Fiquei
estupefacto. Afinal de contas, o que foi que andaram a fazer durante todo
este tempo?, perguntei a mim próprio.
Mal as aulas foram retomadas, após o fim da greve e a entrada em cena
das forças antimotim, os primeiros a comparecer na universidade foram os
alunos que tinham liderado o movimento de revolta. Compareciam às aulas,
tomavam apontamentos e respondiam à chamada como se não fosse nada
com eles. A bem dizer, era um bocado estranho, uma vez que ninguém tinha
desconvocado a greve... Pura e simplesmente, a universidade solicitara a
presença das tropas de choque, esperando que estas destruíssem as
barricadas, mas, em teoria, o movimento grevista continuava ativo. Refiro-
me concretamente àqueles que, ao votarem no início a favor da greve,
tinham liderado as hostes com os seus discursos inflamados e truculentos,
atacando tudo e todos, sobretudo os estudantes que não haviam aderido à
greve (ou que manifestavam algumas reservas). Fui ter com eles e
perguntei-lhes porque iam às aulas, em vez de prosseguirem com a greve.
Foram incapazes de me responder. O mais provável era terem medo de
perder os créditos por falta de comparência. Aquilo custou-me a engolir.
Não deixa de ser irónico, pensei, que sejam os mesmos indivíduos
apostados em apelar ao desmantelamento da universidade. Bastava o vento
mudar ligeiramente de direção e os gritos deles transformavam-se em
sussurros.
Como podes ver, Kizuki, disse para comigo, este mundo é uma merda!
Estamos a falar de gentinha que não tem problemas em sacar boas notas nos
exames e que, assim que começar a trabalhar, tudo fará para construir uma
sociedade podre e perigosa.
Durante um período, optei por não responder à chamada e não ligar
quando passavam a lista de presenças. Sabia perfeitamente que tal não
abonaria a meu favor, mas fazia com que me sentisse melhor. Escusado será
dizer que a minha tomada de posição reforçou o meu isolamento junto da
classe estudantil. Deixaram de me dirigir a palavra, e eu não falava com
ninguém.

***

Na segunda semana de setembro, cheguei à conclusão de que o ensino


superior não tinha qualquer significado para mim. Como tal, decidi utilizar
as aulas como uma espécie de exercício para suportar o tédio. Isto porque
não estava nos meus planos interromper os estudos e dar o passo seguinte,
ou seja, entrar na vida ativa. Aparecia na universidade todos os dias, assistia
às aulas, tomava notas e, nos tempos livres, ia até à biblioteca e lia um livro
ou fazia trabalho de pesquisa.

***

Chegada a segunda semana de setembro, o Facho ainda não regressara.


Mais do que insólito, o facto assumia contornos inquietantes. As aulas do
curso dele já tinham começado, e era impensável aos olhos de toda a gente
que o Facho se tivesse atrevido a fazer gazeta. Sobre a escrivaninha e o
aparelho de rádio depositara-se uma fina camada de pó. Na estante, o copo
de plástico, uma escova de dentes, uma lata de chá verde e o inseticida
mantinham-se perfeitamente alinhados.
Durante a ausência do Facho, coube-me fazer limpeza ao quarto. Ao
longo de um ano e meio, habituara-me a mantê-lo limpo e agora, não se
encontrando ele ali, tinha de ser eu a ocupar-me da tarefa. Varria o chão
todas as manhãs. Lavava os vidros da janela de três em três dias e, uma vez
por semana, arejava o futon. Esperava que, no regresso, o Facho se dignasse
louvar o meu esforço: «Ah, Wa-Watanabe, que se pa-passa? Está tudo
impecável!»
Mas não regressou. Um dia, ao voltar das aulas, os seus pertences tinham
desaparecido. A placa com o nome dele fora retirada da porta; ficara apenas
a minha. Procurei o diretor com o intuito de tirar nabos da púcara.
− Abandonou a residência – disse o diretor. – Por agora, ficas com o
quarto só para ti.
Contudo, recusou-se a fornecer-me quaisquer explicações quanto ao
motivo da partida. Estamos a falar de um indivíduo manipulador até dizer
chega, cujo prazer máximo consistia em controlar tudo e deixar os outros na
ignorância.
A fotografia do icebergue permaneceu colada na parede durante um
período, mas acabei por substituí-la por uma de Jim Morrison e outra de
Miles Davis. Agora, sim, começava a parecer o meu quarto. Com o dinheiro
que tinha de parte, comprei uma aparelhagem estereofónica. À noite, bebia
um copo enquanto ouvia música. De vez em quando, lembrava-me do
Facho, mas viver sozinho não era mau de todo.

***

Naquela segunda-feira, às dez da manhã, tínhamos História do Teatro II: a


aula sobre Eurípides acabou às onze e meia. A seguir, fui a pé até um
pequeno restaurante e comi uma omeleta acompanhada de salada. Ficava
ligeiramente afastado das ruas principais, com preços um bocadinho mais
caros do que os praticados na cantina dos estudantes, mas era sossegado e
silencioso, e tinha umas omeletas de trás da orelha. Os donos eram marido e
mulher, por sinal um casal pouco falador, e havia uma rapariga que fazia
meia dúzia de horas. Estava a comer numa mesa junto à janela quando
entraram quatro estudantes: duas raparigas e dois rapazes vestidos de ponto
em branco. Escolheram uma mesa perto da entrada, consultaram a ementa e
discutiram as várias opções, e depois um deles recolheu as ordens e
transmitiu o pedido à empregada.
A páginas tantas, dei-me conta de que uma das miúdas não parava de
olhar para mim. Tinha cabelos curtos, usava óculos escuros e trazia um
reduzido vestido branco de algodão. Visto que a cara dela não me dizia
nada, continuei a comer nas calmas, mas, passado um bocado, ela levantou-
se e encaminhou-se na minha direção. Com a mão apoiada na mesa, disse o
meu nome:
− Chamas-te Tōru Watanabe, não é?
Levantei a cabeça e olhei-a nos olhos. Porém, continuava a não me
lembrar dela. Além do mais, tratava-se do tipo de rapariga que nunca
passaria despercebida e, caso me tivesse cruzado com ela, de certeza que a
teria reconhecido. Por outro lado, não devia haver muita gente na
universidade que soubesse o meu nome.
− Posso sentar-me? Ou estás à espera de companhia?
Acenei com a cabeça.
− Não estou à espera de ninguém. Senta-te.
Ela arrastou uma cadeira, sentou-se à minha frente, observou-me
atentamente sem tirar os óculos escuros e, por fim, olhou para o meu prato.
− Tem bom ar.
− Está ótimo. Omeleta de cogumelos com salada de ervilhas.
− Hum – murmurou ela. – Vou pedir isso da próxima vez. já mandei vir o
meu prato.
− Pediste o quê?
− Macarrão gratinado.
− Também é uma boa escolha – comentei. – Diz-me uma coisa: de onde é
que nos conhecemos? Não há maneira de me lembrar.
− Eurípides – retorquiu ela laconicamente. – Electra. «Os deuses fazem
ouvidos surdos às nossas desventuras.» A aula acabou agora, não foi?
Olhei-a fixamente. Ela tirou os óculos de sol. Finalmente, reconheci-a.
Era uma estudante do primeiro ano que vira por mais de uma vez nas aulas
de História do Teatro II. Mudara radicalmente de penteado, daí não a ter
reconhecido.
− Antes das férias, tinhas os cabelos por aqui! – Juntei o gesto à palavra e
apontei uns bons dez centímetros por baixo dos ombros.
− Sim, mas este verão fiz uma permanente. Uma experiência horrorosa,
só te digo. Cheguei a pensar em suicidar-me. Parecia uma mulher afogada
com um monte de algas na cabeça. Desesperada, decidi cortar o cabelo
muito curto... Sempre é mais fresco. – Passou a mão pelos cabelos e sorriu-
me.
− Acho que não está nada mal – disse eu, acabando com a omeleta. – Põe-
te de lado, para ver melhor.
Virando-se de perfil, ela permaneceu imóvel durante cinco segundos.
− Sim. Fica-te lindamente. Tens uma cabeça muito bem feita. E
aproveitas para realçar as orelhas, perfeitíssimas.
− Tens razão. Penso exatamente o mesmo. Quando cortei o cabelo, disse
para comigo que não estava nada mal. Embora nenhum rapaz tenha
elogiado o meu corte de cabelo. Dizem que pareço uma aluna da primária,
que acabei de sair de um campo de concentração... e outros mimos que tais.
Porque será que os homens adoram ver as mulheres com o cabelo
comprido? A atitude tem qualquer coisa de fascista! Sempre gostava de
saber qual a razão que leva os homens a acreditar que as mulheres de
cabelos compridos são mais elegantes, doces e femininas. Juro que conheço
para aí umas duzentas e cinquenta mulheres de cabelo comprido, qual delas
a mais vulgar...
− Pela minha parte, prefiro assim – disse eu.
Não era mentira nenhuma. Se bem me lembrava, de cabelos compridos
ficava igual às outras. Ao passo que a rapariga sentada diante de mim
respirava energia e vitalidade por todos os poros, fazendo lembrar um
animal pequeno acabado de vir ao mundo para receber a primavera. Os seus
olhos exprimiam felicidade, riam-se, mostravam irritação, espanto,
impotência, como se possuíssem vida própria. Há muito tempo que não via
um rosto tão vivo e tão expressivo, e deixei-me ficar ali a observá-la,
profundamente impressionado.
− Estás a falar a sério? – perguntou-me.
Fiz que sim com a cabeça enquanto comia a salada. A jovem voltou a pôr
os óculos de sol e olhou-me através das lentes escuras.
− Não serias capaz de mentir, pois não?
− Procuro ser o mais sincero possível – afirmei.
− Hum... – murmurou ela.
− Porque é que andas de óculos escuros? – Foi a minha vez de perguntar.
− Desde que cortei o cabelo, sinto-me mais desprotegida. Dá-me a
impressão de ter sido lançada nua para o meio da multidão. É por isso que
uso óculos.
− Estou a ver.
Comi o resto da omeleta. Ela olhava para mim fixamente, cheia de
curiosidade.
− Não tens de regressar para junto dos teus amigos? – perguntei,
indicando com a cabeça a mesa com os três estudantes.
− Não te preocupes. Quando trouxerem a comida, volto para ao pé deles.
Não é importante. A menos, claro, que esteja a atrapalhar a tua refeição.
− Não te preocupes. Além do mais, já acabei – respondi.
E como ela não parecesse ter pressa de voltar para junto dos amigos,
mandei vir um café. A empregada levantou o prato e trouxe-me açúcar e
leite.
− Diz-me uma coisa: porque é que não respondeste hoje quando fizeram a
chamada? O teu nome é Watanabe, certo, Tōru Watanabe?
− Exato.
− Nesse caso, porque não respondeste?
− Hoje não estava para aí virado.
Ela tirou de novo os óculos, pousou-os em cima da mesa e fixou os olhos
em mim, mais parecendo que estava a observar um animal raro no jardim
zoológico.
− «Hoje não estava para aí virado» − repetiu. – Já te disseram que falas
como o Humphrey Bogart? Durão e com pinta.
− O quê?! Esquece. Sou uma pessoa normalíssima. Como eu há muitos.
A dona do restaurante trouxe-me o café. Bebi-o em pequenos goles, sem
leite nem açúcar.
− Estás a ver? Não puseste açúcar nem leite.
− Não gosto das coisas muito doces – expliquei, cheio de paciência. – Se
calhar, estás a confundir-me com alguém?
− Porque é que estás tão bronzeado?
− Passei quinze dias a caminhar. Andei um pouco por toda a parte,
sempre de mochila atrás.
− Por onde?
− Parti de Kanazawa e fui até à península de Nōtō. Niigata foi o local de
chegada.
− Sozinho?
− Claro – respondi. – Pelo caminho, cruzei-me com outros viajantes.
− Já te aconteceu teres algum romance? Quero dizer, conheceres uma
rapariga a meio caminho e...
− Romance? – exclamei surpreendido. – Decididamente, não acertas
uma! Acreditas realmente que um tipo que anda por aí a viajar de mochila
às costas, com a barba por fazer, tem hipótese de viver um romance?
− Viajas sempre sem comitiva?
− Sempre.
− Gostas da solidão, é isso?
Apoiou a cara na palma da mão e insistiu na mesma tecla.
– Gostas de viajar sem companhia, de comer sozinho, de te sentares sem
ninguém ao lado, distante dos outros, nas aulas...
− Ninguém gosta da solidão. O que acontece é que não me esforço por
fazer amizades. Só serviria para ficar desiludido – expliquei.
Com uma das hastes dos óculos na boca, ela murmurou:
− «Ninguém gosta da solidão. O que acontece é que não me esforço por
fazer amizades» − tornou a repetir. – Se algum dia escreveres uma
autobiografia, podes usar essa frase.
− Obrigado.
− Gostas da cor verde?
− Porquê?
− Trazes uma camisola verde. Daí a pergunta.
− Não especialmente. É igual ao litro.
− «Não especialmente. É igual ao litro» − voltou a dizer. – Gosto da
maneira como falas. Dir-se-ia que estás a alisar a argamassa para estucar
uma parede. Já alguém te disse?
Respondi que não.
− O meu nome é Midori14. No entanto, se há cor que não combina comigo
é o verde. Não achas estranho? Funciona como uma espécie de maldição. A
minha irmã mais velha chama-se Momoko15.
− E o rosa fica-lhe bem?
− Sim, lindamente. Parece que veio a este mundo para usar roupa cor-de-
rosa. É uma grande injustiça!
Os pratos foram finalmente servidos na outra mesa e um rapaz com um
casaco de algodão aos quadrados gritou:
– Ei, Midori! Já chegou o teu pedido!
Ela acenou-lhe com a cabeça, como quem diz «já vou».
− Só mais uma coisa, Watanabe. Tens ido às aulas de História do Teatro II
e tomas apontamentos?
− Sim – respondi.
− Achas que mos podes emprestar? Faltei duas vezes. E não conheço
ninguém que frequente essa cadeira.
− Claro – disse eu, retirando o caderno da pasta.
− Obrigada. Vais à faculdade depois de manhã?
− Vou.
− Queres encontrar-te aqui comigo ao meio-dia? Nessa altura, devolvo-te
o caderno e convido-te para almoçar. Ou será que comer acompanhado te
estraga a digestão?
− Óbvio que não – disse eu. – Mas não precisas de me pagar o almoço,
basta que me devolvas o caderno.
− Não te preocupes. É a minha maneira de retribuir. Pode ser? Não é
melhor tomares nota na agenda?
− Deixa, não me esqueço. Encontramo-nos aqui depois de amanhã, ao
meio-dia.
Voltou a fazer-se ouvir uma voz vinda da outra mesa.
− Midori! Tens a comida a arrefecer!
− Falas sempre assim? – perguntou-me ela, ignorando os companheiros.
− Penso que sim. Para ser franco, não o faço de forma consciente –
respondi.
Era a primeira vez que alguém me dizia que me expressava de um modo
pouco comum.
Ela refletiu por momentos, depois levantou-se com um sorriso de orelha a
orelha e regressou à sua mesa. Quando passei perto dela, virou-se na minha
direção e ergueu a mão. Os outros três limitaram-se a lançar-me um olhar
de esguelha.

***
Na quarta-feira, por volta do meio-dia, Midori não apareceu conforme
combinado. Pensei em esperar um bocado enquanto tomava uma cerveja,
mas o restaurante começou a encher-se e não tive outra hipótese senão
encomendar e almoçar sozinho. Acabei de comer eram vinte e cinco para a
uma. Midori ainda não dera um ar da sua graça. Saí depois de pagar e
sentei-me nas escadas de pedra de um pequeno santuário, do outro lado da
rua, enquanto esperava que o efeito do álcool passasse. A páginas tantas,
desisti. Regressei à universidade e fui ler para a biblioteca. Às duas, assisti
à aula de Alemão.
Depois da aula, fui até à associação, consultei a lista dos alunos
matriculados e encontrei o nome dela na turma de História do Teatro II.
Havia apenas uma Midori, de nome completo Midori Kobayashi, entre os
estudantes inscritos no ano de 1969. Tomei nota da morada e do número de
telefone. Morava em casa dos pais, nos arredores de Toshima. Entrei numa
cabina telefónica e liguei-lhe.
− Livraria Kobayashi? – respondeu-me uma voz de homem.
Livraria Kobayashi?
− Desculpe incomodar, mas posso falar com a Midori? – perguntei.
− A Midori não está – respondeu o meu interlocutor.
− Sabe dizer-me se terá ido à universidade?
− Não lhe sei dizer. Julgo que estará no hospital. Quem fala?
Agradeci sem me apresentar e desliguei. Hospital? Estaria doente ou ter-
lhe-ia acontecido alguma coisa? No entanto, não detetara qualquer tensão
associada a uma emergência na voz do homem. «Não lhe sei dizer. Julgo
que estará no hospital», tinha dito. Tudo indicava que o hospital fazia parte
da sua vida quotidiana. Como quem diz: «Foi à pesca.» Fiquei um bom
bocado a meditar naquilo, mas acabei por me fartar e regressei à residência.
Deitado na cama, acabei de ler Lord Jim, romance de Joseph Conrad que
Nagasawa me tinha emprestado. A seguir, fui ter com ele a fim de lho
devolver.
Uma vez que Nagasawa se preparava para ir jantar, decidi fazer-lhe
companhia.
Perguntei como lhe tinham corrido os exames no Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A segunda fase dos exames realizara-se em agosto.
− O costume – respondeu-me como se não fosse nada com ele. – Com
uma perna às costas. Apareces, fazes a mesma coisa de sempre, e és
aprovado. Discussão de grupo, entrevistas... Não é mais complicado do que
andar atrás de uma miúda.
− Sendo assim, estou a ver que foi canja. Quando é que saem os
resultados?
− No início de outubro. Se for admitido, convido-te para um jantar de
arromba.
− Diz-me uma coisa. De que consta exatamente essa segunda fase dos
exames de acesso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros? Os outros
candidatos que se apresentam a exame são como tu?
− Estás louco! Regra geral, não passam de uma cambada de cretinos. Para
não dizer imbecis ou desequilibrados. Dessa malta que aspira a fazer
carreira no aparelho de Estado, noventa e cinco por cento não passam de
lixo. Não é mentira nenhuma. São tudo pessoas que mal sabem ler e
escrever.
− Nesse caso, porque é que queres entrar para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros?
− Por várias razões – declarou Nagasawa. – Em parte, tenho vontade de
trabalhar num outro país. Mas, acima de tudo, interessa-me testar as minhas
capacidades. Quero ver até onde posso ir a trabalhar para a organização
mais poderosa, ou seja, o Estado. Até onde é que conseguirei chegar no
interior dessa enorme máquina administrativa e burocrática. Compreendes a
minha posição?
− Parece uma espécie de jogo.
− Exato. Não ambiciono dinheiro nem poder. Talvez não passe de um
egoísta, mas juro que sou um gajo completamente destituído de ambição e
desejo de poder. O que me move é a curiosidade. Sou curioso, pronto. E,
além disso, quero testar a minha força neste mundo vasto e cruel.
− E no que diz respeito aos ideais? Calculo que não persigas nenhum em
particular...
− Óbvio que não. Não servem para nada. Necessitamos é de um código
de conduta, e não de um ideal.
− Isso é no teu caso. Não quer dizer que aconteça o mesmo com as outras
pessoas – objetei.
− Não gostas do meu estilo de vida?
− Deixa-te disso – disse eu. – Não é uma questão de gostar ou não gostar.
Eu, por exemplo, não seria capaz de entrar para a Universidade de Tóquio,
nem de dormir com as raparigas que me agradam, só porque tomei essa
decisão. Não possuo o dom da palavra e não me sinto superior aos outros.
Também não tenho namorada. E não é por me licenciar em Literatura numa
universidade privada de segunda categoria que isso me abrirá grandes
portas no futuro... Como poderia eu invejar a tua maneira de viver?
− Quer então dizer que tens inveja da vida que levo?
− Não – respondi. – Estou demasiado habituado à minha vidinha. Além
do mais, para ser franco, não me interessa minimamente frequentar a
Universidade de Tóquio nem trabalhar para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A única coisa que invejo em ti é o facto de teres uma
namorada como a Hatsumi.
Durante um bom bocado, ele continuou a comer em silêncio.
− Sabes, Watanabe – voltou à carga, ao acabar de jantar −, tenho a
impressão de que os nossos caminhos tornarão a cruzar-se daqui a dez ou
vinte anos. E palpita-me que ficaremos ligados de alguma forma.
− Falas como uma personagem saída das páginas de Dickens – declarei, a
rir.
− Tens razão – disse ele, rindo-se também. – Mas olha que os meus
pressentimentos não costumam falhar.
A seguir ao jantar, fomos tomar um copo num bar ali perto. Ficámos a
beber até depois das nove.
− Então, Nagasawa, podes dizer-me qual é o teu modelo de conduta? –
atirei-lhe à queima-roupa.
− Se prometeres que não gozas comigo.
− Prometo – respondi.
− Quero torna-me um perfeito cavalheiro.
Não me ri, mas quase caí da cadeira.
− Um cavalheiro? Compreendi bem o que disseste?
− Sim, um perfeito cavalheiro.
− Mas o que é isso de ser um cavalheiro? Se me deres um exemplo,
agradeço.
− Um cavalheiro é aquele que não faz o que quer, mas sim o que é
necessário.
− És a criatura mais original que encontrei nos dias da minha vida –
afirmei eu.
− E tu és a mais honesta – retorquiu-me ele.
A seguir, pagou a conta dos dois.

***

Midori faltou à aula de História do Teatro II na segunda-feira seguinte.


Depois de ter passado os olhos pela sala e de confirmar que ela não se
encontrava lá, sentei-me na primeira fila, como sempre, e, enquanto o
professor não chegava, decidi escrever a Naoko. Contei-lhe a viagem
efetuada nas férias de verão. Falei-lhe em pormenor da rota percorrida, das
cidades por onde passei e pessoas com quem me cruzei. Escrevi: «Todas as
noites, pensava em ti. Desde que te foste embora, comecei a entender a falta
que me fazes e até que ponto gostaria de te ter ao meu lado. A universidade
continua a mesma pasmaceira de sempre, o que não me impede de estudar e
assistir às aulas. Digamos que considero isso uma espécie de treino
personalizado. Sem ti ao meu lado, tudo o que faço parece-me
desinteressante. Gostaria de te ver de novo para podermos conversar
calmamente. Achas que poderei ir ter contigo ao sanatório, nem que fosse
apenas durante algumas horas? Se não for pedir demais, gostaria de passear
ao teu lado, como costumávamos fazer. Talvez seja difícil para ti, mas peço-
te que me respondas a esta carta. Já me contento com meia dúzia de linhas.»
Quando acabei de escrever, dobrei cuidadosamente as quatro folhas e
coloquei-as num envelope, no qual escrevi a morada da casa da sua família.
Pouco depois, entrou na sala o professor, um homem franzino e de
expressão sombria. Procedeu à chamada enquanto enxugava o suor do rosto
com um lenço. Dado que tinha um problema na perna, usava sempre uma
bengala metálica para se apoiar. Apesar de não ser propriamente divertida, a
cadeira de História do Teatro II era sobejamente interessante e valia a pena.
Após ter comentado connosco o calor inclemente que se fazia sentir, o
professor começou a discorrer sobre a função do deus ex machina nas
tragédias de Eurípides. Explicou-nos que os deuses de Eurípides eram
diferentes dos deuses que apareciam nas peças de Ésquilo e Sófocles.
Passado um quarto de hora, a porta da sala abriu-se e Midori entrou. Trazia
uma blusa desportiva azul-escura e calças creme, além dos eternos óculos
de sol. Sentou-se ao meu lado, depois de ter lançado um sorriso como que a
pedir desculpa pelo atraso. A seguir, tirou do saco os meus apontamentos e
passou-mos. Juntamente com as folhas vinha um papelinho que dizia:
«Desculpa aquilo de quarta-feira. Ficaste zangado?»
A aula ia mais ou menos a meio, e o professor desenhava no quadro um
esquema cénico do teatro grego, quando entraram dois alunos de capacete
na cabeça. Parecia uma parelha de atores cómicos. Um era alto, pálido e
franzino, ao passo que o outro, moreno e de cara redonda, usava uma barba
que não tinha nada que ver com ele. O estudante alto trazia uma mão-cheia
de panfletos com mensagens políticas. O estudante baixo dirigiu-se ao
professor e pediu-lhe licença para dedicar a segunda metade da aula ao
debate. Acrescentou que o mundo estava cheio de problemas muitíssimo
mais graves do que os da Grécia antiga. A bem dizer, foi mais uma
afirmação do que uma exigência. Ao que o professor respondeu que, na sua
opinião, não havia no mundo problemas mais importantes do que os
propostos pelo teatro grego, embora tudo o que ele pudesse dizer não
acrescentasse nada à discussão e tão-pouco servisse para os convencer do
contrário. Concluiu dizendo: «Por isso, meus senhores, façam o que bem
entenderem.» A seguir, agarrando-se à mesa, pôs-se de pé, pegou na bengala
e abandonou a sala a mancar.
Enquanto o tipo alto distribuía os panfletos, o de rosto bolachudo subiu
ao estrado e tomou a palavra. Através de frases lapidares escritas em
caracteres tipográficos, no estilo simplista do costume, os panfletos
incitavam à revolta: «Boicote às eleições fraudulentas para reitor»,
«Apelamos a todos os estudantes que façam greve geral», «Abaixo o
imperialismo! Lutemos para acabar de vez com o poder industrial e o poder
académico, contra o imperialismo japonês!» A teoria era mais do que
válida, e pouco ou nada havia a objetar quanto ao conteúdo, mas o estilo
deixava muito a desejar. Que é como quem diz, aquelas frases não
inspiravam confiança nem possuíam criatividade para cativar as pessoas. O
mesmo acontecia com o discurso do rapaz de rosto redondo, acrescente-se.
A cassete nunca mudava. A melodia era idêntica, apenas diferiam os
vocábulos. Pensei com os meus botões que o verdadeiro inimigo daquela
malta não era o poder político, mas a falta de engenho.
− Vamos embora daqui – sussurrou Midori.
Assenti e levantámo-nos ambos. À saída, o rapaz da cara redonda
abordou-me, mas não percebi bem as suas palavras. Midori fez-lhe adeus
com a mão e disse «até logo».
− Achas que somos contrarrevolucionários? – perguntou-me ela assim
que abandonámos a sala. – Se a revolução triunfar, ainda acabamos os dois
pendurados pelo pescoço, um ao lado do outro...
− Se possível, gostaria de comer qualquer coisinha antes que isso
aconteça – disse eu.
− Tens razão. Quero levar-te a almoçar a um sítio, mas fica um bocado
longe. Não te importas?
− Tenho todo o tempo do mundo... até à aula das duas.
Apanhámos o primeiro autocarro e fomos até Yotsuya. O estaminé onde
Midori me queria levar era um pequeno restaurante de bentō16 que ficava
por trás da estação. Quando nos sentámos, trouxeram-nos a sopa e o prato
do dia numa caixa quadrada, lacada a vermelho. Aquele sítio valia bem a
deslocação.
− Que delícia – exclamei.
− Sem dúvida. E barato, ainda por cima. Quando andava no secundário,
costumava almoçar aqui. A escola ficava perto. Tinha normas muito rígidas,
por isso vínhamos até cá às escondidas. Era aquele tipo de escola em que te
suspendem automaticamente, caso te apanhem a comer fora de portas.
Quando ela tirou os óculos escuros, reparei que os seus olhos pareciam
mais cansados. Brincava com a pulseira fina de prata que usava no pulso
esquerdo e, volta e meia, esfregava a vista com a ponta do dedo.
− Estás com sono? – perguntei-lhe.
− Um bocadinho – respondeu. – Não ando a dormir bem. Tenho mil e
uma coisas para fazer. A propósito, desculpa aquilo do outro dia. Apareceu-
me um imprevisto, logo de manhã, e não pude adiar. Ainda pensei em ligar
para o restaurante, mas não me lembrava do nome. E não tinha o teu
número de telefone, claro. Esperaste muito?
− Deixa, não interessa. Se há coisa que não me falta é tempo.
− Estás a falar a sério?
− Se pudesse, dava-te um pouco do meu tempo para poderes dormir.
Com o queixo apoiado nas mãos, Midori desatou a rir e, olhando-me
fixamente, disse:
− És um querido.
− Não tem nada que ver com ser querido ou não. Tenho tempo para dar e
vender, é tudo – repliquei. – Um destes dias, telefonei para tua casa e
disseram-me que estavas no hospital. Passou-se alguma coisa?
− Para minha casa? – Midori franziu as sobrancelhas. – Onde foi que
arranjaste o número?
− Procurei junto da associação de estudantes. Qualquer pessoa pode
aceder aos ficheiros.
Ela assentiu duas ou três vezes com a cabeça e voltou a mexer na pulseira
que trazia no braço.
− Sim, claro. Devia ter-me lembrado disso. Quanto ao hospital, fica para
outro dia. Desculpa, mas não me apetece falar no assunto.
− Não faz mal. Tenho a impressão de que fui demasiado longe com as
minhas perguntas.
− Nada disso. Sinto-me cansada, mais nada. Cansada como um macaco
molhado pela chuva.
− Não será melhor voltares para casa e pores o sono em dia? – sugeri eu.
− Agora não tenho sono. Vamos antes dar um passeio.

***

Levou-me até à sua antiga escola secundária, que ficava a escassos minutos
a pé da estação de Yotsuya.
Ao passar diante da estação, vieram-me imediatamente à lembrança os
intermináveis passeio com Naoko. A bem dizer, tudo começara ali. Só então
me dei conta de que a minha existência teria sido muito diferente se não nos
tivéssemos encontrado por acaso na linha de Chūō, naquele domingo de
maio. No minuto seguinte, mudei de opinião: mesmo que não me tivesse
cruzado com ela, o resultado seria igual. Talvez nos tivéssemos encontrado
naquele dia por obra e graça do destino, mas, caso tal não sucedesse,
acabaríamos por nos encontrar, mais cedo ou mais tarde. Nada me garantia,
naturalmente, era apenas a sensação que eu tinha.
Midori Kobayashi e eu sentámo-nos num banco da praça e ficámos a
contemplar o edifício da escola onde ela andara a estudar. As paredes
estavam cobertas de hera e alguns pombos retemperavam forças nos beirais.
Tratava-se de uma construção antiga, com um encanto particular. Havia um
carvalho enorme no jardim e, ao lado, erguia-se uma coluna de fumo
branco, direita ao céu. A claridade do verão fazia sobressair a brancura dos
seus contornos.
− Sabes de onde vem este fumo, Tōru? – perguntou ela do pé para a mão.
Respondi que não sabia.
− Estão a queimar pensos higiénicos.
− Ah, sim? − Não me ocorreu outra coisa para dizer.
− Pensos, tampões – acrescentou Midori, sorrindo. – Toda a gente os atira
para o balde do lixo na casa de banho. Não te esqueças de que é uma escola
de raparigas. O velho zelador recolhe o material do lixo e queima tudo na
incineradora, produzindo esta fumarada que estás a ver.
− Pensando bem, há nisso qualquer coisa de perturbador – comentei.
− Sim, era o que eu pensava de todas as vezes que via esta fumarada pela
janela da sala de aulas. Parecia-me uma coisa ameaçadora. No colégio devia
haver umas mil alunas, somando as turmas todas. Tirando as que ainda não
tinham menstruação, para aí novecentas. Destas, uma em cada cinco estava
menstruada uma vez por mês, o que dá um total de cento e oitenta. Equivale
a dizer que, por dia, iam parar ao lixo os pensos higiénicos usados por essas
cento e oitenta.
− Acredito, apesar de não ser tão bom como tu a fazer contas.
− Sim, é uma quantidade considerável. Os pensos higiénicos de cento e
oitenta rapariguinhas, imagina! Qual será a sensação de recolher tudo isso
para depois ser queimado?
− Não faço a mínima ideia...
Como poderia eu imaginar sequer semelhante coisa? Continuámos os
dois sentados no banquinho, a contemplar o fumo branco.
− Para ser honesta, não gostava nada de andar nesta escola – prosseguiu
Midori, abanando ligeiramente a cabeça. – Preferia ter entrado para uma
escola pública. Uma escola vulgar de Lineu, frequentada por gente normal,
que me permitisse relaxar e divertir-me como qualquer adolescente. Vim
aqui parar por imposição dos meus pais. É a velha história das aparências.
Acontece quando se tem boas notas na escola básica. O professor dá a
conhecer aos pais que o aluno tem capacidade para entrar num determinado
colégio... Foi exatamente o que sucedeu comigo. Andei nesta escola durante
seis anos, mas nunca gostei de cá estar. Durante aquele tempo, só tinha uma
ideia fixa: ir-me embora o mais depressa possível. No final, recebi uma
menção honrosa pela minha assiduidade, apesar de detestar o colégio. E
sabes porquê?
− Não.
− Precisamente por ter um ódio de morte à escola. Foi por isso que nunca
faltei. Não queria dar-me por vencida. Se deixasse que eles me subjugassem
naquele terreno, seria o meu fim. Saindo derrotada, tinha medo de ir cada
vez mais ao fundo. Mesmo quando tinha trinta e nove de febre, pegava em
mim e arrastava-me até às aulas. Caso a professora me perguntasse se eu
estava maldisposta, mentia e dizia que me sentia lindamente. Foi assim,
graças à minha assiduidade, que recebi uma menção honrosa e um
dicionário de francês. Mais tarde, na universidade, inscrevi-me em língua
alemã. Porque não queria sentir que devia alguma coisa àquela escola. Não
estou a brincar!
− Mas porque é que odiavas tanto a escola?
− Tu gostavas da tua?
− Não gostava nem desgostava. Fiz o secundário numa vulgaríssima
escola pública e nunca pensei muito nisso.
– Esta escola – começou Midori − estava reservada à elite. Era aqui que
andavam as meninas bem. E não só: também aquelas que obtinham
melhores notas. Eram todas ricas e filhas das melhores famílias. Não havia
volta a dar. A matrícula era caríssima, sem contar com as inúmeras
solicitações, viagens de estudo, com direito a reservas feitas nos melhores
hotéis de Quioto, onde nos serviam refeições tradicionais em bandejas
lacadas, e, uma vez por ano, a obrigatoriedade de assistir a um curso prático
de boas maneiras à mesa no hotel Ōkura. Como podes ver, não estamos a
falar de uma escola comum. Sabias que, das cento e sessenta alunas do meu
curso, eu era a única que morava em Toshima? Um dia, lembrei-me de dar
uma espreitadela à lista das alunas matriculadas, para saber onde é que
viviam. Fiquei espantada! Tudo nos bairros de Chiyoda-ku Sanban-chō,
Minato-ku Moto-Azabu, Ōta-ku Denenchōfū, Setagata-ku Seijō17... e outros
que tais, lugares chiquérrimos. Havia apenas uma delas que tinha casa em
Chiba-ken18. Tentei fazer amizade com ela. Muito simpática, convidou-me a
ir visitá-la, pedindo desculpa por ser tão longe, e eu disse que sim. Quando
lá cheguei, não queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi preciso um
quarto de hora para darmos a volta à propriedade. Tinha um jardim incrível
com dois cães enormes, alimentados a carne de primeira. E, contudo, aquela
jovem sentia-se complexada pelo facto de viver em Chiba. Uma miúda que
chegava todos os dias à escola num Mercedes com motorista. Um chofer
que usava boné de pala e luvas brancas, como se tivesse saído da série
Green Hornet19. Apesar disso, ela sentia vergonha. Contado não se acredita!
Mostrei-me de acordo com ela.
− Investiguei o assunto e cheguei à conclusão de que eu era a única aluna
da escola que morava em Kita-Ōtsuka, no bairro de Toshima. Como se não
bastasse, no registo da profissão dos pais aparecia «livreiros». Graças a
isso, as outras olhavam para mim como se eu fosse uma espécie de animal
raro. Comentavam que devia ser estupendo poder ler os livros que quisesse.
Imaginavam todas que se tratava de uma livraria enorme, como a
Kinokuniya. Ao ouvirem a palavra «livraria», era a única imagem que lhes
ocorria. Nem sequer lhes passava pela cabeça que uma livraria pudesse ser
um espaço alternativo. Livraria Kobayashi. Pobre da nossa livraria! Abre-se
a porta, soa uma campainha e temos diante de nós pilhas e pilhas de
revistas. As que se vendem como pãezinhos quentes são as revistas
femininas, sobretudo quando trazem suplementos sobre novas técnicas
sexuais ilustradas com quarenta e oito posições. As donas de casa compram
aquilo, sentam-se à mesa da cozinha e desatam a ler avidamente enquanto
esperam que o marido chegue para experimentarem. É inacreditável, não
achas? Não se sabe o que passa pela cabeça dessas mulheres. As que mais
vendem, logo a seguir, são as de manga. Magazine, Sunday, Jump. Sem
esquecer, claro, as publicações semanais. Isto para dizer que, na nossa
livraria, praticamente só existem revistas. Temos um ou outro livro de
bolso, mas nada de excecional. Romances de mistério, obras antigas,
romances cor-de-rosa: é isso que as pessoas compram. Ah, e manuais
práticos. Como Jogar Go, Como Cuidar do Seu Bonsai, Prepare Um
Discurso de Casamento, Tudo o Que Precisa de Saber Sobre Sexo,
Conselhos para Deixar de Fumar, entre outras coisas do estilo. Até artigos
de papelaria vendemos. Ao lado da caixa registadora encontram-se canetas
esferográficas, lápis, cadernos e por aí fora. Só isso. Não encontras lá
Guerra e Paz, Sei-teki Ningen, de Kenzaburō Ōe20, nem sequer À Espera no
Centeio. Esta é a Livraria Kobayashi. Sempre gostaria de saber o que há a
invejar! E tu... Terias inveja de mim?
− Pois, estou a ver.
− Bom, é uma livraria desse género. As pessoas do bairro aparecem e
compram lá os seus livros desde sempre, e existe um serviço de entrega ao
domicílio. Sempre tivemos muitos clientes, o que permitiu alimentar quatro
bocas sem problemas. Não temos dívidas. Os meus pais conseguiram pôr as
duas filhas a estudar na universidade. E pronto. Nunca tivemos dinheiro que
nos permitisse alimentar luxos. A verdade é que não me deveriam ter
inscrito nesta escola. Só serviu para me causar problemas. Sempre que era
necessário fazer um gasto extra, lá tinha eu de ouvir as eternas
recriminações dos meus pais. Quando saía com as colegas e íamos a um
sítio caro, ficava sempre com o coração nas mãos, receando que o dinheiro
não chegasse. Uma vida ingrata, garanto-te. A tua família é rica?
− A minha família? Somos gente de trabalho, nem ricos nem pobres.
Calculo que seja difícil para eles manterem-me a estudar numa universidade
privada de Tóquio, mas sendo filho único, não é grave. Como me enviam
uma mesada modesta, sou obrigado a fazer uns biscates. Moramos numa
casa normalíssima, com um pequeno jardim. Somos donos de um Toyota
Corolla...
− Que trabalho fazes?
− Trabalho três noites por semana numa loja de discos em Shinjuku. Nada
de muito cansativo. Só tenho de ficar ali de pé, a vigiar a loja.
− A sério? – disse Midori. – E eu que pensava que fosses filho de papás
cheios de massa. Não me perguntes porquê. Talvez pela tua aparência.
− Na realidade, nunca passei por grandes necessidades. Mas não ando a
nadar em dinheiro. Imagino que aconteça o mesmo com a maioria das
pessoas.
− Bem, na minha escola, a maioria das pessoas era rica – disse ela,
pousando as mãos nos joelhos, com as palmas para cima.
− O meu problema residia aí.
− De hoje em diante, poderás ver o mundo de maneira diferente.
− Sabes qual é maior vantagem de ser rico? – perguntou ela.
− Não.
− Poder anunciar aos quatro ventos que se tem dinheiro. Por exemplo,
supõe que eu sugiro a uma colega de turma fazermos um programa
qualquer juntas, e ela responde: «Não posso, não tenho dinheiro.» Se
acontecesse a situação inversa, eu jamais poderia dizer o mesmo. Se eu
disser «não posso, não tenho dinheiro», significa que não tenho realmente
dinheiro. Patético! É como uma rapariga bonita dizer: «Hoje não quero sair
de casa porque estou horrorosa.» Se uma miúda feiosa disser isso, toda a
gente desatará a rir. Foi nesse universo que eu vivi durante seis anos, até ao
ano passado.
− Acabarás por te esquecer.
− Espero que isso aconteça quanto antes. Para mim, representou um
alívio entrar na faculdade. Encontrei por lá uma data de gente normal.
Passando as mãos pelo cabelo curto, Midori esboçou um sorriso tenso.
− E tu, trabalhas?
− Trabalho. Escrevo legendas nos mapas. Sabes aqueles folhetos
explicativos que vêm anexados aos mapas e que têm informações sobre as
cidades, a povoação, os lugares de interesse? Aqui fica o trilho tal, ali
contam esta e aquela lenda, existem estas flores e estes pássaros... O meu
trabalho consiste em escrever cenas dessas. Mais simples não podia ser.
Desenvencilho-me enquanto o diabo esfrega um olho. Vou até à biblioteca
de Hibiya, faço a minha pesquisa e no fim do dia tenho um folheto escrito.
Basta descobrir o truque e arranjo todo o trabalho que quiser.
− Truque? Que truque?
− Escrever o que não passa pela cabeça de mais ninguém. Dessa maneira,
os responsáveis pelas editoras de mapas acham que nascemos fadados para
aquele negócio. Ficam verdadeiramente impressionados. E começam a dar-
nos trabalho. Não é preciso ser uma coisa do outro mundo. Basta que seja
diferente. Por exemplo, referir a existência de um vilarejo que ficou
submerso devido à construção de uma barragem, mas onde as aves
migratórias continuam a regressar sempre que chega uma determinada
estação do ano. Toda a gente fica encantada quando tem conhecimento
desse tipo de episódios. Não achas pitoresco e comovente? Nem todas as
mulheres que trabalham fora de casa se dão a esse trabalho. Garanto-te que
esses textos dão-me bom dinheiro a ganhar.
− Acredito, mas obriga a desencantar histórias do arco-da-velha. Não
deve ser fácil...
− Tens razão – concordou Midori. – Mas se fores à procura delas,
encontras sempre qualquer coisa. Caso não encontres nada, inventas.
Refiro-me a uma historieta inofensiva, claro.
− Impressionante!
− Podes crer.
Depois, como percebi que queria sacar-me informações acerca do dia a
dia na residência, contei-lhe o ritual da praxe com a bandeira e a sessão de
ginástica do Facho. Também ela se fartou de rir com as anedotas do meu
camarada. Decididamente, aquele rapaz nascera para alegrar as hostes.
Midori confessou que achara tanta piada que gostaria de visitar a residência.
Disse-lhe que ficaria desiludida.
− Não passam de umas centenas de estudantes enfiados nos seus quartos,
a beber e a masturbar-se.
− Tu também fazes parte do lote?
− Claro – comentei. – Tal como as raparigas têm o período, os homens
masturbam-se. Todos, sem exceção.
− Até os que têm namorada? Quer dizer, quem anda a dormir com
alguém.
− Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O estudante de Keiō que
mora no quarto ao lado do meu bate sempre uma antes de se encontrar com
a namorada. Diz que é para relaxar.
− Não sei muito a esse respeito. Andei sempre numa escola de raparigas.
− É o género de coisas que não vem esmiuçado nos suplementos das
revistas femininas.
− Lá nisso tens razão! – concordou Midori. – Mudando de assunto. Estás
livre no domingo?
− Estou livre todos os domingos. Mas tenho de ir trabalhar às seis da
tarde.
− Que tal apareceres em minha casa? Que é como quem diz, na Livraria
Kobayashi? Apesar de a loja estar fechada, tenho de ficar à espera de uma
chamada importante. Podemos almoçar juntos. Preparo qualquer coisa.
− Gostaria muito.
Midori rasgou uma página do caderno e desenhou um mapa que mostrava
ao pormenor como lá chegar. Em seguida, pegou num marcador vermelho e
assinalou um «X» gigante no local onde ficava a casa.
− Não tem nada que enganar. Há uma placa enorme que tem escrito
Livraria Kobayashi. Podes aparecer por volta do meio-dia? Terei o almoço
pronto.
Agradeci e guardei o mapa no bolso. Disse-lhe que precisava de voltar à
universidade para a aula de Alemão, que começava às duas. Midori
anunciou que tinha onde ir e apanhou o comboio na estação de Yotsuya.

***

No domingo, levantei-me às nove da manhã, fiz a barba, lavei a roupa suja


e estendi-a a secar no terraço. Estava um dia magnífico. Pela primeira vez,
cheirava a outono. Empunhando redes, as crianças da vizinhança corriam
atrás de um bando de libélulas que voavam em círculos pelo jardim. Devido
à ausência de vento, a bandeira nacional pendia, flácida, no mastro. Vesti a
camisa mais bem passada, saí de casa e dirigi-me a pé até à estação de
autocarros. O bairro estudantil, com a maioria das lojas fechadas, estava
praticamente despovoado. Os ruídos da cidade ressoavam mais nitidamente
do que era costume. Uma rapariga atravessava a estrada asfaltada
produzindo um som estrepitante com os saltos de madeira das suas socas,
enquanto quatro ou cinco miudinhos armados de pedras faziam pontaria às
latas vazias que tinham alinhado ao longo do depósito perto da garagem dos
autocarros. Aproveitei para comprar um ramo de narcisos na florista, aberta
ao domingo. Era estranho comprar narcisos no outono, mas sempre adorei
essa flor.
Naquela manhã de domingo, dentro do autocarro viajava apenas um
grupo de três senhoras de idade. Quando subi, elas olharam com insistência
para a minha cara e para os narcisos que levava na mão. Uma das velhas
sorriu-me. Retribuí o sorriso. Sentado na última fila, observei pela janela os
velhos edifícios que desfilavam nas ruas. Havia alturas em que o autocarro
quase roçava nos beirais dos telhados. Na varanda de uma das casas
alinhava-se uma dezena de tomateiros dentro dos respetivos vasos e, junto
deles, um enorme gato preto dormitava ao sol. Também avistei crianças
pequenas a soprarem bolhas de sabão num jardim. Ouvi ao longe uma
canção de Ayumi Ishida. O odor do curry impregnava o ar. O autocarro
cortava caminho por entre as ruelas, dando a impressão de tecer a bainha
daquela atmosfera doméstica. Outros passageiros apanharam o autocarro ao
longo do trajeto, mas as três mulheres de idade continuaram sempre a
conversar animadamente, com as cabeças muito juntas.
Desci perto da estação de Ōtsuka e, seguindo a par e passo o trajeto
desenhado por Midori, percorri uma avenida pouco concorrida. Nenhuma
das lojas que encontrei pelo caminho parecia viver tempos de prosperidade.
Os prédios eram, na sua maioria, antigos, e o seu interior sombrio. Os
letreiros estavam quase todos meio apagados. A julgar pela antiguidade e o
estilo arquitetónico, aquele bairro não fora atingido pelos bombardeamentos
durante a guerra. Daí que as casas conservassem o seu traçado original.
Alguns dos prédios, como não podia deixar de ser, deviam ter sido
reconstruídos; outros, restaurados e renovados. Eram esses, de resto, os que
pareciam mais decrépitos.
Uma pessoa ficava com a impressão de que os habitantes tinham
debandado quase todos para a periferia, cansados do aumento do tráfego, da
poluição, do barulho e do preço das casas, e só restavam os apartamentos
baratos, as vivendas reservadas aos funcionários das empresas, as lojas
difíceis de trespassar ou, então, os que ali sempre tinham vivido, criando
raízes naquele lugar envolto por uma pátina cinzenta, conformados com o
fumo dos escapes.
Após ter caminhado uns bons dez minutos, cortei à direita, junto a uma
estação de serviço, e encontrei-me numa pequena rua cheia de lojas, no
meio das quais se via um letreiro a dizer «Livraria Kobayashi». Sem ser
propriamente grande, também não se podia dizer que fosse tão pequena
como a descrição de Midori dava a entender. Era a típica livraria de bairro.
Por sinal, muito parecida com uma onde eu ia sempre a correr quando era
pequeno para comprar as minhas revistas preferidas de banda desenhada no
próprio dia em que saíam. Ali parado diante da livraria, experimentei uma
curiosa sensação de nostalgia. Pelos vistos, em todos os bairros havia uma
livraria daquelas.
A loja tinha a grade metálica corrida e, sensivelmente a meio, havia um
cartaz com publicidade a um semanário: «Bunshun: edição em papel sai à
quinta-feira.» Ainda faltavam quinze minutos para o meio-dia, mas, como
não me estava a apetecer deambular pelas ruas com um ramo de narcisos na
mão, toquei à campainha e recuei dois ou três passos. Quinze segundos
depois, nada. Perguntava eu aos meus botões se devia insistir, quando
alguém abriu com estrépito a janela por cima da minha cabeça. Levantei os
olhos e avistei Midori, inclinada, a secar as mãos.
− Levanta a grade e entra – gritou ela.
− Cheguei mais cedo. Faz-te diferença? – perguntei também aos gritos.
− Claro que não. Sobe. Não posso abandonar o que estou a fazer – disse
ela. Ato contínuo, fechou a janela e voltou para dentro.
Produzindo um ruído infernal, subi a grade metálica cerca de um metro,
esgueirei-me para o interior e tornei a descê-la. Dentro da loja estava escuro
como breu. Consegui chegar ao fundo, depois de quase bater com o nariz no
chão ao tropeçar numa pilha de revistas para devolução atadas com cordel.
Tirei os sapatos e continuei às apalpadelas. A casa estava às escuras. Entrei
numa sala de visitas equipada com um jogo de sofás. A divisão não era
grande: pela janela entrava uma luz difusa que fazia lembrar um filme
antigo polaco. Seguindo pela esquerda, dava para uma espécie de depósito e
para a casa de banho; ao fundo ficava a cozinha. Subi as escadas devagar. Já
no andar de cima, senti um certo alívio ao constatar que aquele piso estava
mais bem iluminado.
− Por aqui – ouvi a voz de Midori vinda de qualquer lado.
A casa, apesar de antiga, parecia ter tido obras recentemente, e tanto o
lava-loiça como as torneiras e os armários, reluzentes, cheiravam a novo.
Midori preparava o almoço. Chegou até mim o rumor de alguma coisa a
cozinhar na panela e a cozinha rescendia a peixe assado no forno.
− Há cerveja no frigorífico. Senta-te e bebe uma – disse Midori.
Tirei uma lata de cerveja do frigorífico, sentei-me à mesa da cozinha e dei
o primeiro gole. De tão gelada, dir-se-ia que a cerveja estava conservada no
frio há para aí meio ano. Em cima da mesa via-se um pequeno cinzeiro
branco, um jornal e um frasco com molho de soja. Também vi uma
esferográfica, um papelinho com um número de telefone anotado e uma
série de números que pareciam ser contas de despesas feitas.
− Mais dez minutos e fica pronto. Aguentas?
− Sim – disse eu.
− Sempre te vai abrindo o apetite. Comida não falta!
Enquanto bebia a cerveja gelada em pequenos goles, observei Midori, de
costas para mim, atarefada a cozinhar. Movia-se com agilidade e destreza,
mostrando-se capaz de fazer quatro tarefas ao mesmo tempo. Mal acabava
de provar o que estava a preparar na panela ao lume, picava qualquer coisa
numa tábua, tirava algo do frigorífico, que colocava em cima de um prato,
ou lavava rapidamente uma frigideira suja. Vista de trás, lembrava um
percussionista índio. Daqueles que fazem soar campainhas, batem numa
tábua de madeira e usam os dedos para percutir um osso de búfalo, numa
sequência irrepreensível. Cada gesto era rigoroso e eficaz, criando um
equilíbrio perfeito. Cheio de admiração, não conseguia tirar os olhos dela.
− Posso ajudar, se quiseres – propus-lhe.
− Não vale a pena. Estou habituada a fazer tudo sozinha – respondeu ela,
virando-se na minha direção e sorrindo.
Vestia calças de ganga justas e uma T-shirt azul-marinho que tinha nas
costas uma maçã, o conhecido logo da Apple Records. Observada de trás, as
ancas eram espantosamente estreitas. Como se a etapa de crescimento em
que os quadris alargam tivesse sido interrompida por qualquer razão. Isto
para dizer que possuía um ar muito mais andrógino que uma vulgar rapariga
enfiada numas jeans apertadas. A claridade suave que entrava pela janela
sobre o lava-loiça contribuía para acentuar os contornos do seu corpo.
− Não precisavas de ter preparado semelhante banquete – comentei.
− Não é nenhum banquete. – Midori virou-se para mim. – A verdade é
que ontem estava demasiado ocupada para ir às compras e agora vejo-me
obrigada a aproveitar o que tinha no frigorífico. Por isso, não te preocupes,
a sério. A hospitalidade é uma tradição nossa. A minha família, vá lá saber-
se porquê, adora receber condignamente. Melhor dizendo, trata-se de uma
autêntica obsessão. Não somos particularmente amáveis, nem muito
populares, mas sempre que temos convidados, procuramos tratá-los o
melhor possível. Para o bem ou para o mal, é uma característica que todos
partilhamos. O meu pai, que não bebe uma gota de álcool, tem a casa cheia
de bebidas alcoólicas. Para quê, perguntarás tu. Para servir às visitas. Por
isso, bebe as cervejas que quiseres.
− Obrigado – disse eu.
Naquele preciso momento, lembrei-me das flores: tinha-me esquecido
delas onde descalçara os sapatos. Regressei ao andar de baixo, peguei nos
narcisos brancos que se destacavam na penumbra e voltei lá para cima.
Midori tirou do armário da cozinha um frasco alto e estreito e enfiou as
flores lá dentro.
− Adoro narcisos – declarou. – Uma vez, numa festa do secundário,
cantei uma canção chamada «Seven Daffodils»21. Conheces?
− Claro que conheço.
− Durante uns tempos, fiz parte de uma banda de música folk. Tocava
guitarra.
Serviu a comida nos pratos sempre a cantarolar a canção.

***

O almoço preparado por Midori ultrapassou em muito as minhas


expectativas. Carapaus de escabeche, uma bela omeleta japonesa, sawara22
marinado, beringelas cozidas, sopa de junsai23, arroz com cogumelos
shimeji, nabo frito cortado às tirinhas finas salpicadas com grãos de
gergelim. Tudo devidamente condimentado à moda de Kansai.
− Está delicioso! – exclamei, genuinamente espantado.
− Diz lá, Tōru Watanabe, com esta é que não contavas! Esperavas que eu
cozinhasse tão bem? Pelo meu aspeto, digo eu.
− Hum... Para ser franco, não – admiti.
− Visto que és da região de Kansai, calculo que goste destes temperos.
− Deste-te a este trabalho só por minha causa? – perguntei.
− Claro que não. Não exageremos... Sempre cozinhámos assim cá em
casa.
− Nesse caso, quem é que nasceu em Kansai? A tua mãe ou o teu pai?
− Não, o meu pai é de cá e viveu na cidade a vida inteira. Quanto à minha
mãe, nasceu em Fukushima. Por mais que procures, não encontrarás
nenhum parente nosso que seja originário de Kansai. Somos uma família de
Tóquio e do norte da região de Kantō.
− Agora é que me deixaste intrigado – declarei. – Explica-me lá por que
razão cozinhas à moda de Kansai.
− É uma longa história – disse ela, saboreando a omeleta. – A minha mãe
detestava todo o tipo de tarefas domésticas e raramente cozinhava. Além
disso, como temos a loja, passava a vida a desculpar-se: «Hoje estou muito
ocupada», dizia ela, acabando por comprar comida já feita, ou uns
croquetes preparados no talho. Desde miúda que sempre embirrei com isso,
mas não podia fazer nada. Havia alturas em que preparávamos uma grande
quantidade de curry... e comíamos o mesmo três dias a fio. Andava no
sétimo ano quando decidi ser eu própria a tratar das refeições. Fui até à
livraria Kinokuniya, em Shinjuku, comprei o maior e mais bonito livro de
receitas que me apareceu à frente, e li-o de uma ponta à outra. Aprendi
tudo: como escolher uma tábua de carne, como afiar uma faca, tirar
espinhas do peixe, ralar peixe seco. O autor do livro era de Kansai, daí que
os meus pratos sejam todos ao estilo da região.
− Quer dizer que aprendeste nos livros a preparar os alimentos e a
cozinhar.
− O passo seguinte consistiu em amealhar dinheiro para frequentar
restaurantes de comida tradicional de Kansai, onde se comia a verdadeira
kaiseki ryōri. Foi assim que me iniciei na arte de bem temperar. Tenho uma
intuição excelente, mas, por outro lado, sou um perfeito desastre no
raciocínio lógico.
− Acho incrível como consegues cozinhar tão bem sem ninguém te ter
ensinado.
− Não penses que foi fácil – confessou Midori, com um suspiro. –
Sobretudo quando a tua família não aprecia nem se interessa pela culinária.
Nunca me deram dinheiro para comprar facas ou panelas decentes. Diziam
sempre que os utensílios que tínhamos chegavam e sobravam. Foi duro. Se
eu tentava explicar que me era impossível amanhar o peixe com uma
daquelas facas, diziam-me logo que não precisava de fazer isso para nada.
Um desespero! Onde é que já se viu uma rapariga de quinze ou dezasseis
anos que gasta o pouco que tem em escorredores, facas de trinchar e
panelas a fim de preparar tempura? Que poupa a mesada toda para comprar
utensílios que podem ir desde pedras de amolar até woks? As minhas
amigas, que recebiam uma mesada muito superior, compravam apenas
vestidos e sapatos... Não te dá vontade de chorar?
Concordei com ela sem deixar de comer a sopa.
− No primeiro ano na universidade, meti na cabeça que havia de ter uma
frigideira especial para as omeletas. Uma espécie de frigideira com lados
rasos e inclinados, estás a ver? Pois bem, comprei-a com o dinheiro que me
deram para um sutiã novo. Nem queiras saber a camisa de onze varas em
que me meti por causa disso. Durante três meses, não tive outro remédio
senão usar sempre o mesmo sutiã. Lavava-o todas as noites, secava-o como
podia, e de manhã voltava a vesti-lo para sair à rua. Era uma tragédia
quando não secava. Não há nada mais desconfortável do que usar um sutiã
húmido. Só de me lembrar, fico com lágrimas nos olhos. E tudo por causa
de uma frigideira para fazer omeletas.
− Tens razão – disse eu, rindo-me.
− Por isso, admito que senti um certo alívio quando a minha mãe morreu,
embora me custe dizê-lo. A partir daí, pude comprar o que queria com o
dinheiro para a casa. O meu pai não se interessa pelas despesas domésticas.
− Quando morreu a tua mãe?
− Há dois anos – respondeu ela, laconicamente. – De cancro –
acrescentou depois. – Um tumor cerebral. Esteve hospitalizada durante um
ano e meio, foi um autêntico martírio e, por fim... perdeu a lucidez.
Passavam dia e noite a enchê-la de analgésicos. Não havia maneira de ela
morrer, e, quando isso aconteceu, foi quase uma bênção. É a morte mais
horrível de todas. Representa um sofrimento atroz para o doente e um
inferno para as pessoas à sua volta. Aqueles últimos tempos levaram-nos as
nossas poupanças. Só as injeções que lhe davam custavam cerca de vinte
mil ienes cada, sem contar com os enfermeiros e as restantes despesas.
Ainda por cima, como tive de tratar dela, não pude estudar. Resultado: perdi
um ano. E depois... − Midori queria acrescentar qualquer coisa, mas
conteve-se; pousou os pauzinhos e soltou um suspiro. − Que conversa tão
deprimente! Como é que fomos parar aqui?
− Começou tudo com a história do sutiã – disse eu.
− Prova lá esta omeleta e diz-me se não vale a pena – respondeu-me ela,
muito séria.
Mal acabei a minha parte, fiquei cheio. Midori não comera tanto como eu.
Explicou-me que cozinhar lhe tirava o apetite. Terminado o almoço,
levantou a mesa, passou-lhe um pano por cima, foi buscar um maço de
Marlboro, acendeu um cigarro, deitou fora o fumo e levou-o novamente aos
lábios. A seguir, ergueu o frasco onde colocara os narcisos e pôs-se a olhar
para as flores.
− Ficam melhor, acho eu – declarou. – Não vale a pena metê-las numa
jarra. Parece que acabaram de ser colhidas nas margens de um lago e
temporariamente colocadas no primeiro utensílio de vidro à mão de semear.
− Apanhei-as no lago em frente à estação de Ōtsuka – disse eu.
Midori soltou uma gargalhada.
− És um sujeito mesmo estranho – afirmou. – Dizes uma série de
disparates com o ar mais sério do mundo.
Com o queixo apoiado na mão, fumou o cigarro até meio e depois
apagou-o vigorosamente no cinzeiro com a outra. A seguir esfregou as
pálpebras, como se lhe tivesse entrado fumo para os olhos.
− Regra geral, as raparigas apagam os cigarros de uma forma mais
elegante – comentei. − Pareces uma lenhadora. Não devias utilizar tanta
força. Basta apagá-lo aos poucos, de lado. Assim não fica todo amassado.
Que exagero! Além disso, uma mulher nunca deve soprar o fumo pelo
nariz. Quando uma rapariga almoça sozinha com um rapaz, não é de bom-
tom contar-lhe que passou três meses a usar o mesmo sutiã.
− Sou rude como uma lenhadora – declarou Midori, esfregando o nariz de
lado. – Não posso armar-me em menina bem. Por vezes tento, em jeito de
brincadeira, mas não funciona. Tens mais alguma crítica?
− Marlboro não é um cigarro feminino.
− Que diferença faz? Afinal, é tudo a mesma droga – defendeu-se ela.
Pegou no maço vermelho e brincou com ele. – Comecei a fumar no mês
passado. Para dizer a verdade, não me apetecia realmente. Tive curiosidade
em experimentar, e pronto.
− Porquê?
Midori uniu as palmas das mãos sobre a mesa e refletiu um pouco.
− E porque não? Tu não fumas?
− Deixei de fumar em junho.
− Por que motivo?
− Estava farto. Não suportava acordar de madrugada e perceber que
estava sem cigarros em casa. Portanto, resolvi parar. Detesto depender de
uma coisa a esse ponto.
− Não há dúvida de que pensas a sério em tudo.
− Pode ser que tenhas razão. Talvez por isso as pessoas nem sempre
simpatizem comigo. É a história da minha vida.
− Isso acontece porque passas a ideia de que não te importas de não ser
amado pelos outros. Se calhar, é o que deixa as pessoas irritadas – disse ela
num sussurro, sempre agarrada ao queixo. − Pela parte que me toca, gosto
de conversar contigo. «Detesto depender de uma coisa a esse ponto.»
Ninguém se exprime como tu, Tōru.

***

Ajudei-a a lavar os pratos. Ao seu lado, enxugava com um pano a loiça que
ela lavava, empilhando-a sobre a bancada.
− Por falar nisso, onde é que anda a tua família? – quis eu saber.
− A minha mãe está enterrada. Morreu há dois anos.
− Bem sei, já me contaste.
− A minha irmã saiu com o namorado. Devem ter ido dar uma volta de
carro. Ele trabalha numa empresa de automóveis e adora tudo o que tenha
rodas. Já eu, sou sincera, não ligo nenhuma a carros.
Midori calou-se e continuou a lavar os pratos, enquanto eu os limpava
também em silêncio.
− Depois, temos o meu pai – acrescentou Midori, passado um bocado.
− A-hã.
− O meu pai viajou para o Uruguai em junho do ano passado e ainda não
voltou.
− Para o Uruguai? – perguntei, apanhado de surpresa.
− Há muito que andava a planear essa viagem. É uma loucura, mas
acontece que um camarada dos tempos do Exército tem uma fazenda lá e,
de repente, o meu pai informou-nos de que estava na disposição de ir até ao
Uruguai tentar a sorte. Meteu-se no avião e foi-se embora. Fizemos por
dissuadi-lo, dizendo que a viagem seria uma perfeita insensatez, que nem
sequer falava o idioma, sobretudo quase nunca tendo saído de Tóquio, mas
em vão. A morte da minha mãe foi um rude golpe para ele. Mexeu com o
seu cérebro, e ele perdeu o tino. Amava a minha mãe. Com todas as forças
do seu ser.
Fiquei de boca aberta, incapaz de dizer fosse o que fosse, a olhar para
Midori.
− Sabes o que nos disse, à minha irmã e a mim, quando a minha mãe
morreu? «Estou de rastos. Preferia mil vezes que vocês tivessem morrido
em vez dela.» Ouvir aquilo foi como um soco no estômago! Nenhuma de
nós conseguiu reagir. Ninguém deveria dizer semelhante coisa, em
circunstância alguma. Eu entendo a dor e o desespero, a tristeza imensa e a
solidão por parte de quem perdeu a pessoa amada. Tenho muita pena dele.
Mas nenhum pai pode dirigir-se às filhas e dizer que preferia que tivessem
sido elas a morrer! É demasiado cruel, não te parece?
− Óbvio que sim.
− Ficámos profundamente feridas – afirmou Midori, abanando a cabeça. –
Bom, seja como for, na minha família temos todos pancada. Um parafuso a
menos.
− Pelos vistos – concordei.
− Ao mesmo tempo, não achas maravilhoso ver duas pessoas que se
amam tanto? Um homem que adora a mulher a tal ponto que gostaria de ver
as suas filhas morrer em vez dela?
− Se colocas a questão dessa forma...
− E pronto, lá partiu para o Uruguai, deixando-nos sozinhas.
Continuei a limpar a loiça sem abrir a boca. Quando terminei a minha
tarefa, Midori arrumou os pratos e os copos no armário.
− E nunca mais tiveste notícias dele desde essa altura?
− Recebemos um único postal, se bem me lembro. Mas não contava nada
de concreto. Escrevia a dizer que estava muito calor e que a fruta não era
tão boa como imaginava... Fiquei pior que estragada! Um postal feiíssimo,
com a imagem de um burro. O meu pai não bate bem da bola! E nem uma
palavra sobre ter conseguido encontrar o tal amigo ou camarada do
Exército! No final, acrescentava que, mal as coisas melhorassem, nos
mandaria ir ter com ele, a mim e à minha irmã. Depois disso, nunca mais
deu notícias nem respondeu às nossas cartas.
− E se o teu pai te pedisse para ires ter com ele ao Uruguai, ias?
− Ia. Parece divertido. Já a minha irmã diz que nem morta! Tem horror a
tudo o que esteja fora de ordem, aos lugares sujos.
− O Uruguai é um país assim tão sujo?
− Não faço ideia. Mas a minha irmã julga que as ruas estão repletas de
fezes de jumento, tudo aquilo coberto de moscas, que não há água nos
autoclismos nem nas casas de banho públicas e que se encontram osgas e
escorpiões a cada esquina. Deve ter visto isso num filme qualquer. Ela
odeia tudo o que seja insetos. Do que ela gosta é de andar a passear pela
costa de Shōnan24 num carro espampanante!
− Estou a ver o género.
− Em contrapartida, o Uruguai atrai-me. Não me importaria nada de ir lá
ter.
− Quem é que toma conta da loja?
− A minha irmã, contrariada. Um tio meu que vive aqui perto ajuda-nos
todos os dias e encarrega-se das entregas. Eu também contribuo com a
minha parte, sempre que posso. Bom, é preciso ver que o trabalho numa
livraria não é tão pesado quanto isso. E, depois, caso não seja possível dar
conta do recado, só temos de fechar a loja e vendê-la. É essa a nossa
intenção, aliás.
− Gostas do teu pai?
Midori abanou a cabeça.
− Não especialmente, para dizer a verdade.
− Nesse caso, por que carga de água estás disposta a ir ter com o teu pai
ao Uruguai?
− Porque tenho confiança nele.
− Confiança?
− Sim, não temos laços muito fortes, mas confio nele. Confio no meu pai,
um homem que recebeu um duro golpe ao perder a mulher, que deixou a
sua casa, as filhas e o trabalho para se refugiar no Uruguai. É meu pai.
Compreendes?
− Compreendo e não compreendo – disse eu, suspirando.
Midori riu-se, divertida, e deu-me duas ou três pancadinhas nas costas.
− Não te preocupes. Não é grave.

***

Naquela tarde de domingo, muita coisa aconteceu. Foi um dia estranho.


Houve um incêndio ali perto e subimos ao terraço para ver melhor.
Resultado: acabámos por nos beijar. Dito deste modo, parece uma
estupidez, mas foi precisamente assim que as coisas se passaram.
Depois da sobremesa, estávamos a beber café e a conversar sobre a
universidade quando ouvimos os carros de bombeiros. À medida que o
volume das sirenes aumentava, as pessoas lá em baixo começaram a correr
e ouviram-se gritos. Midori foi para uma divisão que dava para a rua, abriu
a janela e, pedindo-me que esperasse um pouco, desapareceu lá fora. Ouvi-a
subir os degraus quatro a quatro.
Sozinho, a saborear o café, perguntei a mim mesmo onde diabo ficaria o
Uruguai. Num mapa imaginário, sabia que o Brasil ficava ali, a Venezuela
acolá, e mais à frente a Colômbia, mas não fazia a mínima ideia da
localização do Uruguai. Entretanto, Midori desceu e gritou: «Dá corda aos
sapatos e vem comigo!» Fui atrás dela até ao fundo do corredor e subi por
uma escada íngreme e estreita que ia dar a um terraço. Bastante mais alto do
que os telhados à volta, o terraço permitia-nos dominar com a vista as
redondezas. Espirais de fumo negro erguiam-se a três ou quatro casas de
distância. O ar cheirava a queimado.
− É na casa dos Sakamoto! – exclamou ela, toda debruçada sobre o
parapeito. – O senhor Sakamoto tinha um negócio de materiais de
construção, mas fechou a loja e já não trabalha.
Pendurei-me também por cima do parapeito. A casa ficava por trás de um
edifício de três andares, e não dava para se ver bem o que estava a
acontecer, mas havia três ou quatro carros de bombeiros que se esforçavam
por apagar o incêndio. Visto que a rua era estreita, só podiam entrar dois
carros, no máximo; os restantes aguardavam na via principal. Como seria de
esperar, juntara-se uma multidão de curiosos.
− Talvez seja melhor reunir os objetos de valor e evacuar a casa – sugeri-
lhe. – Por sorte, o vento sopra na direção contrária, mas pode mudar a
qualquer momento, e é bom não esquecer que aqui mesmo ao lado existe
uma estação de serviço. Vamos, ajudo-te a empacotar tudo.
− Não tenho nada de valioso – hesitou Midori.
− Alguma coisa valiosa deves ter. Certificados de aforro, selos antigos,
caderneta bancária, sei lá. Para começar, vais precisar de dinheiro.
− Não preciso, pois não faço tenção de sair de onde estou.
− Mesmo que o incêndio chegue até aqui?
− Sim – respondeu ela. – Não me importo de morrer.
Olhei-a nos olhos. Ela aguentou o meu olhar. Juro que não fazia ideia até
que ponto falava a sério. Mantive os olhos fixos em Midori, mas, às tantas,
pensei: Que se lixe...
− Rendo-me. Fico aqui contigo – disse eu.
− Estás disposto a morrer ao meu lado? – perguntou ela, com os olhos
brilhantes.
− Nem pensar! Quando as coisas ficarem feias, serei o primeiro a pôr-me
na alheta. Se queres morrer, morre sozinha.
− Que frieza!
− Não vou morrer ao teu lado só porque me convidaste para almoçar!
Ainda se tivesse sido um jantar...
− Sim, sim, já percebi! Nesse caso, proponho-te que fiquemos aqui para
ver o que acontece. Podemos cantar, que tal? Se a situação piorar, logo se
vê.
− Cantar?
Midori foi buscar duas almofadas, quatro latas de cerveja e uma guitarra.
Bebemos cerveja enquanto contemplávamos a densa nuvem de fumo. Ela
pôs-se a cantar ao som da guitarra. Perguntei-lhe se os vizinhos não
ficariam escandalizados. Parecia-me pouco sensato ficar ali no terraço a
beber cerveja e a cantar enquanto decorria um incêndio.
− Não te rales. Cá em casa não nos importamos com o que os vizinhos
pensam – declarou ela.
Midori cantou uma série de velhas canções folk. Para ser sincero, não
posso dizer que fosse particularmente dotada, embora parecesse estar a
divertir-se. Do princípio ao fim, interpretou «Lemon Tree», «Puff, the
Magic Dragon», «Five Hundred Miles», «Where Have all the Flowers
Gone?» e «Michael, Row the Boat Aside». De início, ainda me ensinou o
acompanhamento em voz baixa, mas como eu cantava pior do que sei lá o
quê, desistiu e continuou a cantar sozinha, contente da vida. Entre dois
goles de cerveja, sempre a ouvir aquela cantoria, mantive-me atento à
evolução do incêndio. A fumarada adensou-se, voltando depois a diminuir, e
a situação repetiu-se por mais de uma vez. As pessoas gritavam e davam
ordens. O helicóptero de um órgão de comunicação social sobrevoou a
cena, produzindo um forte bater de pás; tiraram fotos e desapareceram.
Oxalá não nos tenham apanhado nas fotografias, pensei. Um polícia com
um altifalante aconselhava os moradores da zona a recuar. Uma criança
soluçava e chamava pela mãe. Ouvia-se o som de vidros a partirem-se. Por
fim, o vento começou a soprar na nossa direção, espalhando em redor uma
chuva de cinzas alvacentas. Mesmo assim, Midori continuou a cantar
alegremente as suas canções, entre um e outro gole de cerveja. Quando
chegou ao fim do repertório, interpretou uma curiosa canção da sua autoria.

Quero cozinhar um estufado,


mas não tenho panela.
Adorava tricotar um cachecol,
mas falta-me a lã.
Adorava escrever poesia,
mas falta-me a caneta.

− Chama-se «Não Tenho Nada» − anunciou ela. Tanto a letra como a


música eram abaixo de cão.
Enquanto ouvia aquela canção sem pés nem cabeça, dizia a mim mesmo
que, se o fogo alcançasse a bomba de gasolina, a casa onde nos
encontrávamos iria pelos ares. Farta de cantigas, Midori pôs a guitarra de
lado e pousou a cabeça no meu ombro, como um gato ao sol.
− O que achaste da minha música? – quis ela saber.
− Original e única, expressa a tua personalidade às mil maravilhas –
respondi, escolhendo minuciosamente as palavras.
− Obrigada – disse ela. – O tema anda à volta de não ter nada...
− Sim, foi essa a ideia com que fiquei.
− Quando a minha mãe morreu – Midori voltou-se de frente para mim −,
não senti uma ponta de tristeza.
− Ai, não?
− E agora que o meu pai partiu, a mesma coisa.
− A sério?
− Parece-te desumano da minha parte?
− Calculo que tenhas as tuas razões.
− Sim, de facto, não se pode dizer que a nossa família seja fácil. Sempre
pensei que seria natural ficar triste no caso dos meus pais, isto é, se eles
morressem ou se separassem. Afinal, as coisas não aconteceram assim. Não
sinto nada, nem tristeza, nem saudade, nem amargura. Quase não penso
neles. Por vezes, sonho com os dois, só isso. Vejo a minha mãe ao longe, na
escuridão, a olhar para mim e a lançar-me acusações: «Confessa que estás
contente por eu ter morrido!» Contudo, mentiria se dissesse que me sinto
afetada por isso. A verdade é que não fiquei triste, não derramei uma
lágrima. Pelo contrário, fartei-me de chorar quando morreu o gatito que
tínhamos desde que eu era pequena.
Por que carga de água sairá tanto fumo, perguntei a mim próprio. Não se
veem chamas, e o incêndio parece estar controlado. Quanto tempo mais
continuará a arder?
− Sentes que nunca foste amada?
Ela virou a cara, pensativa, e depois fez que sim com a cabeça.
− Entre «muito pouco» e «nada de nada», diria. Sempre fui uma rapariga
carente. Nem que tivesse sido apenas uma vez, gostaria de receber amor a
rodos. Até eu dizer: «Pronto, já chega!» Todavia, os meus pais nunca
mostraram o seu afeto por mim. Em contrapartida, só sabiam ralhar comigo
ou mandar-me embora se calhava aparecer-lhes à frente a pedir mimos ou
dinheiro. Passavam a vida a queixar-se. Por isso, prometi a mim mesma
fazer os possíveis e os impossíveis para encontrar alguém que me amasse
com toda a sua alma durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano.
Andava na escola primária quando tomei essa decisão.
− Incrível! – comentei, completamente siderado com tudo aquilo. – E
conseguiste?
− Bom, é isso que me deixa com a corda na garganta – afirmou Midori.
Por momentos, refletiu na questão, sempre de olhos postos no fumo. –
Talvez por ter esperado tanto, agora procuro a perfeição. Essa é a minha
dificuldade...
− Um amor perfeito?
− Nada disso, já não peço tanto. O meu desejo não passa de capricho. Um
puro capricho. Por exemplo, digo-te que tenho vontade de comer uma
tartelete de morango, e tu deixas tudo o que estás a fazer e decides ir
comprar-me uma. Vais a correr e voltas a arfar e dizes: «Toma, Midori, aqui
tens a tartelete!» E eu respondo, atirando o bolo pela janela: «Perdi a
vontade!» É isto que eu procuro.
− Não me parece que seja amor – declarei, atónito.
− Aí é que te enganas. Só que ainda não sabes – replicou Midori. – As
raparigas levam muito a peito este tipo de atitudes.
− Atirar tarteletes de morango pela janela?
− Exatamente. Além disso, quero que o rapaz me diga: «Tudo bem,
Midori. A culpa foi minha. Devia ter imaginado que perderias a vontade de
comer a tartelete de morango. Sou um idiota chapado, um merdas. Estou
disposto a ir comprar-te uma coisa que te apeteça realmente, desde que me
perdoes. O que é que te está a apetitar? Musse de chocolate? Cheesecake?»
− E a seguir?
− Amaria perdidamente esse rapaz.
− Pois eu acho um disparate pegado.
− Pois eu acho que o amor é isso. Embora ninguém me compreenda –
disse Midori, abanando ao de leve a cabeça no meu ombro. – Para certas
pessoas, o amor faz-se de pequenos nadas. Ou então não é amor.
− É a primeira vez que encontro uma rapariga que pensa assim.
− Já muita gente me disse o mesmo – comentou ela, tirando uma cutícula.
– Mas não consigo pensar de forma diferente, e não temo afirmá-lo com
todas as letras. Nunca pensei que pudesse haver diferenças entre a minha
maneira de ver e a dos outros. Longe de mim desejar semelhante coisa. O
problema é que, quando eu sou franca, toda a gente julga que estou a
brincar ou a armar-me aos cucos. Vai dar ao mesmo.
− Continuas a querer morrer no incêndio?
− Claro que não! Estava apenas curiosa para ver a tua reação – declarou
Midori. – Mas não tenho medo de morrer. Palavra de honra. Ficamos
rodeados de fumo por todos os lados, perdemos os sentidos e batemos as
botas, pronto! Num abrir e fechar de olhos. Não me apavora. Sobretudo
comparado com o modo como vi morrer a minha mãe e outros parentes.
Sabias que na nossa família morremos de doenças graves, após uma lenta
agonia? Deve estar-nos no sangue. As pessoas demoram uma eternidade a
morrer. Quando o fim chega, já não se sabe se estão vivas ou mortas. Resta
apenas a consciência da dor e do sofrimento.
Midori levou um cigarro Marlboro à boca e acendeu-o.
− Tenho medo de morrer da mesma maneira. A sombra da morte vai
invadindo o território da vida, muito devagar, e quando menos se espera, cai
um manto escuro e não se vê nada, e toda a gente que te rodeia pensa que
estás mais morto que vivo... Não quero que me aconteça o mesmo. Seria
incapaz de suportar isso.

***

Meia hora mais tarde, o incêndio foi finalmente dado como extinto. Tudo
indicava que não alastrara e que não tinha havido feridos. Os carros de
bombeiros regressaram ao quartel; apenas um ficou no local. Os curiosos
dispersaram, no meio da vozearia. Com as luzes giratórias ligadas, uma
viatura policial permanecia de prevenção, tendo por missão controlar o
tráfego. Dois corvos apareceram vindos sabe-se lá de onde: empoleirados
em cima de um poste, observavam a movimentação na rua.
Midori parecia exausta. O corpo abandonado, o olhar perdido no
horizonte. Mal falava.
− Estás cansada? − perguntei.
− Não é isso – respondeu. – Há muito que não me sentia tão tranquila,
sem pensar em nada.
Olhei-a nos olhos e ela fez o mesmo. Pus os braços à volta dos seus
ombros e beijei-a. Por um momento, os seus ombros estremeceram
ligeiramente, mas depois descontraiu-se e fechou os olhos. Os nossos lábios
permaneceram unidos cerca de cinco ou seis segundos. A sombra das
pestanas, gravada no seu rosto graças ao sol de início de outono, agitou-se
num movimento impercetível.
Foi um beijo doce e carinhoso, sem grande significado. Se não
estivéssemos ali sentados a ver o incêndio e a beber cerveja, possivelmente
não a teria beijado nesse dia, e palpita-me que ela pensava o mesmo. Ao
contemplar os telhados cintilantes das casas, as libélulas avermelhadas,
tínhamos sido envolvidos por uma doce intimidade, que,
inconscientemente, desejáramos materializar desse modo. Estou a falar de
um beijo assim. Mas, tal como acontece com todos os beijos, não estava
isento de perigo.
Midori foi a primeira a manifestar-se. Agarrou ternamente na minha mão
e confessou-me que andava a sair com alguém. Respondi-lhe que já
calculava.
− E tu, gostas de alguma rapariga?
− Sim.
− Mas estás livre todos os domingos?
− É muito complicado.
Compreendi que a magia daquela tarde do início de outono se eclipsara.

***

Às cinco da tarde disse a Midori que tinha de ir trabalhar e fui-me embora.


Desafiara-a para ir beber um copo, mas ela recusara o convite, invocando
ter de ficar em casa à espera de uma chamada.
− É horrível ficar presa o dia inteiro por causa de um telefonema. Quando
estou sozinha, sinto o corpo apodrecer lentamente. Vai-se decompondo e
derretendo aos poucos, até restar apenas um líquido esverdeado que não
tarda a ser absorvido pela terra. Depois, só a roupa sobrevive. É a sensação
que tenho sempre que fico por casa à espera de que me liguem.
− Da próxima vez que isso acontecer, ofereço-me para te fazer
companhia. Desde que o almoço esteja incluído...
− Combinado. Vou ver se arranjo outro incêndio para a sobremesa.

***

No dia seguinte, Midori não pôs os pés na aula de História do Teatro II.
Terminada a aula, fui direito à cantina e comi sozinho um almoço frio e
desenxabido. Depois sentei-me ao sol a contemplar a cena que se
desenrolava à frente dos meus olhos. Ali perto, duas estudantes estavam
embrenhadas numa longa conversa. Uma delas apertava contra o peito uma
raqueta de ténis, como se abraçasse afetuosamente um bebé, enquanto a
outra tinha alguns livros na mão e um LP de Leonard Bernstein. Eram
ambas bonitas e via-se que tinham gosto em tagarelar. Do edifício onde
ficava o clube da universidade chegava até mim o som de alguém a praticar
escalas musicais no piano. Aqui e ali havia grupos de quatro e cinco
estudantes a falar de tudo e mais alguma coisa, discutindo e rindo. Alguns
andavam de skate no parque de estacionamento. Um professor que ia a
passar, carregado com uma pasta de couro, procurou esquivar-se. No
jardim, uma aluna de capacete estava agachada no chão, a escrever um
cartaz de protesto contra o imperialismo norte-americano. Era a típica
paisagem universitária durante o intervalo do almoço. E, no entanto, ao
observar aquela cena familiar, dei-me conta de uma coisa. Todas as pessoas,
cada uma à sua maneira, pareciam felizes. Não saberia dizer se estavam
realmente felizes da vida ou se não passava de uma encenação. Em todo o
caso, naquele agradável início de tarde em finais de setembro, toda a gente
parecia satisfeita, e isso fez com que me sentisse ainda mais solitário. Como
se fosse eu o único a destoar na paisagem.
A que paisagem pertencera eu durante todos aqueles anos? A última cena
familiar que me vinha à memória era a do salão de bilhar, à beira do porto,
onde eu e Kizuki tínhamos jogado juntos. Nessa mesma noite, Kizuki
suicidara-se, e, a seguir, formara-se uma corrente de ar gelado que me
separava do resto do mundo. Refleti sobre o que Kizuki representara para
mim, mas não encontrei resposta. A única certeza que tinha era que a sua
morte servira para destruir para sempre uma parte da minha adolescência.
Sentia e percebia isso com grande clareza. Mas desconhecia o significado
ou as consequências que daí poderiam advir.
Deixei-me ficar ali sentado durante um grande bocado, a observar a
paisagem e o vaivém das pessoas. Talvez encontrasse Midori: ainda não a
vira naquele dia. Terminado o intervalo de almoço, fui para a biblioteca
preparar-me para a aula de Alemão.

***

Nessa tarde de sábado, Nagasawa apareceu no quarto para me perguntar se


queria sair à noite. Pelos vistos, tinham-no autorizado a dormir fora de
portas. Aceitei o convite. A semana relevara-se de tal forma pródiga em
confusões que estava mais do que pronto a dormir com uma rapariga, fosse
ela quem fosse.
Tomei banho ao fim da tarde, fiz a barba e vesti um polo de algodão.
Depois de termos jantado na cantina, Nagasawa e eu apanhámos o
autocarro com destino a Shinjuku. Saímos na animada zona de Shinjuku-
sanchōme, demos uma volta e entrámos num bar em que costumávamos
parar. Ficámos à espera de que as miúdas viessem ter connosco, visto que se
tratava de um local frequentado por mulheres sozinhas. Nessa noite, porém,
nenhuma se mostrou interessada. Demorámo-nos por ali durante quase duas
horas, a beber uísque em pequenos goles para não ficarmos bêbedos. Ao
nosso lado, duas raparigas com ar simpático pediram um gimlet e uma
margarita. Nagasawa aproveitou para meter conversa com elas, mas, pelo
que ficámos a saber, estavam à espera dos respetivos namorados. Isso não
nos impediu de cavaquearmos descontraidamente até à chegada deles.
Nagasawa sugeriu que tentássemos a sorte num bar diferente. Era um
pequeno estabelecimento localizado numa espécie de beco, onde a maioria
dos clientes já estava bem bebida e a armar sarilhos. Juntámo-nos a um
grupo de três raparigas sentadas numa mesa ao fundo e ali ficámos à
conversa. O ambiente era simpático e encontrávamo-nos todos de bom
humor. Mas quando lhes propusemos ir tomar o último copo noutro sítio,
recusaram, argumentando que chegara a hora de recolher, uma vez que a
porta fechava à meia-noite. Viviam numa residência universitária feminina,
adiante-se. Voltámos a mudar de poiso, mas não adiantou de nada. Por uma
razão ou outra, naquela noite a sorte não nos sorriu.
Perto das onze, Nagasawa admitiu a derrota.
− Sinto-me mal por te ter arrastado até aqui para nada – disse ele.
− Deixa lá. Foi um prazer constatar que também tens os teus dias «não».
− Uma vez por ano, é fatal como o destino – brincou ele.
Para ser sincero, estava num estado tal que o sexo me era completamente
indiferente. Após andar a vaguear num sábado à noite durante três horas e
meia pela barulhenta zona de Shinjuku, testemunhando aquela energia fruto
da pulsão sexual e do álcool, o meu desejo passara à história.
− O que queres fazer agora, Watanabe? – perguntou Nagasawa.
− Estou a pensar em ir ver um filme numa dessas salas que têm sessões
pela noite dentro. Não vou ao cinema há anos!
− Bom, aproveito e dou um salto à casa da Hatsumi. Importas-te?
− Claro que não – respondi a rir.
− Se quiseres, posso apresentar-te uma miúda para passares a noite com
ela. Que me dizes?
− Não, apetece-me ir ao cinema.
− Fico com remorsos. Para a próxima, compenso-te – disse ele,
desaparecendo no meio da turba.
Entrei numa hamburgueria aberta vinte e quatro horas por dia, comi um
cheseburguer e bebi uma chávena de café para me livrar dos efeitos do
álcool. A seguir, comprei bilhete num cinema ali perto e assisti à projeção
do filme A Primeira Noite. Não achei o filme grande coisa, mas como não
tinha mais nada para fazer ali, acabei por ficar para a sessão seguinte. Saí
do cinema às quatro da manhã e deambulei sem rumo pelas ruas frias do
bairro de Shinjuku, mergulhado nos meus pensamentos.
Cansado de andar, entrei numa cafetaria aberta a noite inteira, disposto a
ficar ali a ler à espera de que chegasse a hora de apanhar o primeiro
comboio do dia. Pouco depois, o local encheu-se de pessoas que, tal como
eu, faziam horas para o primeiro comboio. Às tantas, o empregado
aproximou-se de mim e perguntou se eu me importava de partilhar a mesa
com outros clientes. Respondi que não via qualquer inconveniente. Absorto
na leitura, era igual ao litro.
Duas raparigas sentaram-me e dividiram a mesa comigo. Deviam ter mais
ou menos a mesma idade que eu. Sem serem propriamente umas beldades,
também não eram de deitar fora. Estavam maquilhadas e vestidas de forma
discreta, o que dava a entender que não eram do tipo de andar a rondar o
bairro de Kabukichō25 às cinco da matina. Devia ter sucedido algo de
inopinado que fizera com que perdessem o último comboio. Tinham um ar
aliviado ser eu o seu companheiro de mesa. Basta dizer que me barbeara
nessa tarde e, além do mais, tinha na mão A Montanha Mágica de Thomas
Mann.
Uma das jovens era alta e encorpada, trazia uma parka cinzenta, calças de
ganga brancas, tinha uns brincos compridos em forma de concha e uma
mala de plástico grande. A outra, mais maneirinha, usava óculos, vestia uma
camisa aos quadrados, um casaco azul e exibia no dedo um anel com uma
turquesa. Volta e meia, tirava os óculos e massajava os olhos com a ponta
dos dedos.
Pediram ambas café com leite e duas fatias de torta, e comeram e
beberam com todo o vagar, trocando confidências em voz baixa. A rapariga
mais alta inclinou várias vezes a cabeça, enquanto a mais pequena abanava
a sua em sinal negativo. A música de Marvin Gaye ou dos Beatles não me
deixava ouvir a conversa. No entanto, a baixinha parecia desnorteada ou
irritada, enquanto a amiga procurava deitar água na fervura. Pela minha
parte, lia e observa-as alternadamente.
A dada altura, a baixinha pôs a mala a tiracolo e foi à casa de banho. Foi
nessa ocasião que a outra me abordou.
− Conheces algum sítio aqui perto onde ainda sirvam bebidas alcoólicas?
− Às cinco da manhã? – perguntei, perplexo.
− Sim.
− A esta hora deve ser difícil. São cinco e vinte, não sei se estás a ver! As
pessoas, regra geral, regressaram a casa para curar a bebedeira.
− Bem sei – replicou ela, envergonhada. – Mas a minha amiga está farta
de insistir comigo para irmos beber um copo a qualquer lado.
− Não me parece que haja outra hipótese senão voltarem para casa e
tomarem uma bebida lá.
− Impossível! Tenho de apanhar sem falta o comboio das sete e meia para
Nagano.
− Nesse caso, a solução é comprar uma garrafa nas máquinas de venda
automática e ir bebê-la para um sítio tranquilo.
− Se não for pedir muito, poderias vir connosco? Não fica bem a duas
meninas fazerem isso sozinhas.
Já passara por várias experiências bizarras em Shinjuku, mas era a
primeira vez que me acontecia ser convidado por duas desconhecidas para
ir tomar uma bebida às cinco e vinte da madrugada. Aborrecia-me inventar
uma desculpa, mas, por outro lado, não tinha nada para fazer. Fui até à
máquina de venda automática mais próxima, comprei várias garrafas de
saqué e qualquer coisa para trincar, e encaminhámo-nos os três para um
lugar vazio na saída oeste da estação, onde improvisámos o nosso banquete.
Elas contaram-me que trabalhavam juntas numa agência de turismo.
Tinham acabado de se licenciar e era o primeiro emprego de ambas.
Pareciam dar-se bem. A baixinha descobrira recentemente que o rapaz com
quem namorava há cerca de um ano a traíra com outra, daí estar tão
deprimida. Por alto, era esta a ideia. Em vez de regressar a casa dos pais,
em Nagano, para o casamento do irmão, resolvera passar a noite em
Shinjuku com a amiga e apenas apanhar o comboio na manhã seguinte.
− Como é que soubeste que ele andava a dormir com outra? – perguntei à
baixinha.
A jovem estava entretida a arrancar ervas daninhas do chão enquanto
bebia o saqué.
− Abri a porta do quarto dele e apanhei-os juntos na cama. Não houve
margem para dúvidas.
− Quando aconteceu isso?
− Anteontem à noite.
− Hum... E a porta estava fechada à chave? – quis eu saber.
− Não.
− Porquê?
− Sei lá... Como é que vou saber?
− Deve ter sido um duro golpe! Nem imagino como a pobre se deve ter
sentido... – interveio a grandalhona, que parecia boa pessoa.
− Se estivesse no teu lugar, falava com ele. Só depois é que decidiria se
lhe perdoava ou não – aconselhei.
− Ninguém sabe como me sinto – lamentou-se a baixinha, cuspindo as
palavras e continuando a arrancar ervas daninhas.
Vindo de oeste, um bando de corvos aproximou-se e sobrevoou os
grandes armazéns Odakyū. Já era de dia. Conversámos sobre uma série de
assuntos até chegar a hora de a grandalhona apanhar o comboio. Demos o
resto do saqué a um sem-abrigo que costumava andar pelo subterrâneo
junto à saída oeste da estação de Shinjuku, comprámos os bilhetes e
despedimo-nos. Quando o comboio desapareceu de vista, a baixinha e eu,
sem ser preciso dizer nada, entrámos num hotel. Nem ela nem eu tínhamos
especialmente vontade de fazer amor, mas era a única forma de pormos um
ponto final naquela história.
Uma vez no quarto de hotel, despi-me e comecei por tomar banho. Enfiei-
me na banheira e refugiei-me na cerveja, como se quisesse afogar as minhas
mágoas. A jovem juntou-se a mim e ali ficámos os dois, calados, a ingerir
cerveja. Por mais que bebêssemos, não havia maneira de o álcool nos subir
à cabeça nem de provocar sono. Ela tinha uma pele branca e aveludada.
Elogiei-lhe as pernas bonitas, e ela agradeceu-me num tom seco e
antipático.
Na cama, revelou-se outra pessoa. Reagia sensivelmente às minhas
carícias, retorcia-se toda, gemia. No momento em que a penetrei, cravou-
me as unhas nas costas e, quase a atingir o orgasmo, pronunciou dezasseis
vezes o nome do outro. Sei isto porque me concentrei na tarefa de contar as
vezes tentando desesperadamente retardar a ejaculação. A seguir,
adormecemos.
Ao acordar, já era meio-dia e meia. A rapariga evaporara-se sem deixar
uma mensagem. Pelo facto de ter bebido tanto fora de horas, sentia um peso
na cabeça. Meti-me debaixo do chuveiro para ver se despertava, fiz a barba
e, nu como vim ao mundo, sentei-me e bebi um sumo de fruta que fui
buscar ao frigorífico. A seguir, esforcei-me por rememorar os
acontecimentos da noite anterior. Parecia-me tudo estranhamente distante e
irreal, como se houvesse entre mim e esses episódios duas ou três paredes
de vidro, mas não havia dúvida de que eu me vira envolvido neles. Os
copos que utilizámos para beber cerveja ainda se encontravam em cima da
mesa e na casa de banho lá estavam as escovas de dentes.
Comi qualquer coisa em Shinjuku. Depois entrei numa cabina telefónica
e liguei para a Livraria Kobayashi. Imaginei que àquela hora ela poderia
estar em casa, esperando uma chamada. O telefone tocou quinze vezes;
ninguém atendeu. Vinte minutos mais tarde, voltei a ligar, com idêntico
resultado. Apanhei o autocarro de volta para a residência. Na caixa de
correio da entrada havia um envelope com o meu nome. Era uma carta de
Naoko.

14 Além de ser um nome muito comum, Midori significa «verde» em japonês. (N. da T.)

15 Momo significa «pêssego». Ko (rapaz/rapariga) é uma palavra que serve de terminação a muitos
nomes femininos. Momo-iro (literalmente, cor de pêssego) significa rosa-pálido, como as pétalas de
rosa. (N. da T.)

16 Caixinhas de merenda para take-away. De plástico e cartão, contêm vários compartimentos


separados com diferentes alimentos, do arroz ao atum e à cavala, passando pelos rebentos de bambu e
pelo molho de soja. (N. da T.)

17 Distritos e bairros de Tóquio onde se encontram muitos edifícios governamentais e moram as


pessoas bem instaladas na vida. (N. da T.)

18 Prefeitura próxima da província de Tóquio, Tōkyō-to, na qual vivem, na maioria, os trabalhadores


que se deslocam diariamente para trabalhar na capital japonesa. (N. da T.)

19 Nome de uma produção televisiva emitida em 1967 pela estação japonesa Nippon Terebi. Mais
tarde, realizou-se uma versão cinematográfica protagonizada por Bruce Lee, que se estreou nos
Estados Unidos em 1974, sendo transmitida no Japão um ano mais tarde. (N. da T.)

20 Título original de um conto de Kenzaburō Ōe inédito em português. Poderia ser traduzido por «O
Homem Sexual» ou «O Ser Sexual». No Japão foi editado em 1963, na revista Shinchō. (N. da T.)

21 «Sete Narcisos», em português. Com letra de Fran Moseley e música de Lee Hays, a canção foi
lançada no início dos anos 1970, pelos Tarriers; existe uma versão mais recente interpretada pelos
Brothers Four. (N. da T.)

22 Scomberamorus niphonius, peixe e aparentado com a cavala. (N. da T.)


23 Planta aquática de águas calmas e sem correnteza, cujas folhas são comestíveis e podem ser
transformadas em ervas aromáticas. (N. da T.)

24 Conhecido lugar de veraneio situado na costa. (N. da T.)

25 Bairro boémio de Tóquio, onde se concentram os bares e lugares de lazer. (N. da T.)
«Obrigada pela tua carta», escrevia Naoko. Tinha recebido a minha missiva
por intermédio dos pais, que a reenviaram de imediato para «ali». «Não só
não me importei de receber a tua carta como fiquei muito contente.
Também estava a pensar em escrever-te.»
Interrompi a leitura neste ponto: abri a janela, despi o casaco e sentei-me
na da cama. Chegava-me aos ouvidos o barulho dos pombos a arrulhar num
pombal perto. O vento fazia esvoaçar as cortinas. Segurando na mão a carta
de sete páginas escrita por Naoko, dei asas à imaginação. Ainda só tinha
lido as primeiras linhas, mas foi o suficiente para que o mundo em redor
começasse a perder a cor. Fechei os olhos e demorei uma eternidade a
ordenar as ideias. Após respirar fundo, retomei a leitura.

Já passaram quatro meses desde que aqui cheguei. Durante este tempo, pensei
imenso em ti. E de tanto pensar, dei-me conta de que tinha sido injusta. Devia ter-
me portado melhor, pois essa seria a atitude de uma pessoa íntegra.
Este raciocínio talvez não seja normal. Para começar, as raparigas da minha idade
não usam palavras como «justo». As miúdas da minha idade estão-se nas tintas para
o facto de as coisas serem ou não justas. Aos olhos da maioria, mais do que justo ou
injusto, interessa-lhes saber se é bonito ou como serem felizes. A «justiça» tem um
cunho eminentemente masculino. O que não impede que, na situação em que me
encontro, seja essa a palavra que descreve na perfeição as minhas preocupações.
Nesta fase, a busca da «beleza» e da «felicidade» é uma perspetiva tão distante e
difícil que prefiro agarrar-me a outros conceitos. A honestidade, a franqueza ou a
universalidade, por exemplo.
Seja como for, acho que fui parcial contigo. Andei em círculos, acabando por te
pressionar e só te causei mais problemas, além de me magoar a mim mesma. Digo
isto não para me defender, tão-pouco pretendo justificar o meu comportamento; é a
pura verdade. As feridas que deixei em ti também são as minhas feridas. Não sintas
ódio por mim. Sou um ser humano imperfeito. Muito mais do que tu imaginas. Por
isso, não quero que me odeies. Saber que me odeias deixar-me-ia de rastos. Ao
contrário de ti, não sou capaz de me refugiar dentro da minha couraça. Apesar de
não te conhecer muito bem, dá-me a impressão de que esse é o teu modo de
funcionar. Por vezes, invejo a tua forma de estar na vida, e se calhar foi essa a razão
por que te arrastei para o meio disto.
É possível que aches esta visão demasiado analítica. Isso não significa, contudo,
que a terapia aqui aplicada seja excessivamente analítica. No estado em que me
encontro, ao fim de vários meses de tratamento, acabo por analisar tudo o que me
rodeia, quer queira, quer não. «Isto aconteceu por causa daquilo», «isto tem este ou
aquele significado», «isto provocou aquilo», e assim por diante. Ainda hoje estou
para perceber se esta maneira de analisar as coisas ajuda a simplificar o mundo ou a
fragmentá-lo.
Seja como for, encontro-me melhor, em comparação com a minha condição
anterior, e os que me rodeiam são os primeiros a reconhecê-lo. Há muito que eu não
me sentava para escrever calmamente umas linhas. A carta que te enviei em julho
representou um esforço sobre-humano (para ser franca, nem me lembro do que
disse, e só espero que não tenha sido nada de terrível), mas desta vez escrevo-te de
uma forma mais leve e descontraída. Parece que era disto que eu precisava: ar puro,
um lugar tranquilo e afastado do mundo, uma vida regrada, exercício físico diário. É
fantástico ser capaz de escrever cartas, acredita! Sentar-me à escrivaninha, pegar na
caneta e alinhavar frases como estas, movida pelo desejo de transmitir os meus
sentimentos a outra pessoa. Se bem que haja uma parte que fique por dizer. Não
importa. Já me sinto feliz pelo simples facto de ter vontade de escrever a alguém.
Daí que tenha decidido entrar em contacto contigo. São sete e meia da tarde, acabei
de jantar e de tomar banho. Lá fora está escuro e silencioso. Não se vê nem uma luz
para amostra. Aqui é costume avistar nitidamente as estrelas do céu, mas hoje
ficaram encobertas pelas nuvens. As pessoas daqui conhecem as constelações todas
e passam o tempo a explicar-me onde fica a Virgem ou o Sagitário. Visto que não há
nada para fazer ao cair da noite, acabaram por se transformar em especialistas.
Sabem tudo e mais alguma coisa acerca de pássaros, flores e insetos. Sempre que
falo com elas, sinto-me uma ignorante de primeira! Confesso que não é uma
sensação lá muito agradável.
Ao todo, somos setenta pessoas a viver aqui. Sem contar com vinte funcionários,
entre médicos, enfermeiras e pessoal administrativo. Dado que este lugar é enorme,
não se pode dizer que seja um número elevado. Pelo contrário, dizer que se trata de
um «lugar deserto» estaria mais próximo da verdade. Fica num terreno espaçoso, no
meio da natureza, onde toda a gente leva uma vida tão tranquila que, às vezes, chego
a pensar que este é o mundo real. Obviamente que não é. No fundo, convém não
esquecer que vivemos todos sujeitos a condições especiais.
Jogo ténis e basquetebol. A equipa de basquetebol é composta por pacientes (uma
palavra detestável, mas que remédio) e funcionários. Acontece uma coisa estranha.
Quando estou concentrada no jogo, perco a noção de quem é quem e, aos meus
olhos, todos parecem deformados.
Um dia, contei isto ao meu médico e ele respondeu-me que essa perceção era em
parte exata. Adiantou que não estamos aqui para corrigir a deformidade, mas para
aprendermos a viver com ela. Mais, que um dos nossos problemas é precisamente a
incapacidade de reconhecer e aceitar essas deformidades. E que, tal como os outros
seres humanos, temos todos um modo distinto de andar, de sentir, de pensar e de ver
as coisas. Por mais que tentemos corrigi-las, dificilmente o conseguiremos. Como é
óbvio, a explicação peca por ser demasiado simplista, mas acho que percebi a
mensagem, até certo ponto. Possivelmente, somos incapazes de nos adaptar por
completo às nossas deformidades. Como tal, não conseguimos aceitar a dor e o
sofrimento reais que provocam. Estamos aqui para escapar a isso. Enquanto tal se
verificar, não faremos sofrer os outros nem os outros nos farão sofrer. Porque
sabemos que somos todos «deformados». É o que nos distingue do mundo exterior,
no qual muito boa gente vive sem ter consciência das suas deformações. Neste
pequeno mundo, porém, as deformações constituem uma condição prévia do nosso
ser. Carregamos essas alterações assim como os índios andam com um pena na
cabeça para indicar a tribo a que pertencem. Vivemos no maior recato a fim de não
nos magoarmos reciprocamente.
Tirando o desporto, temos uma horta e um pomar. Tomates, beringelas, pepinos,
melancias, morangos, cebolinho, repolhos, nabos, plantamos de tudo um pouco.
Sem esquecer a estufa, claro. Os residentes estão a par do cultivo de vegetais e
dedicam-se a fundo a essa atividade. Leem livros, convidam especialistas e passam
o dia, de manhã à noite, a discutir qual o melhor fertilizante ou tipo de terra. Até eu
dei por mim apaixonada pelo assunto. É maravilhoso ver as plantas crescerem aos
poucos. Alguma vez plantaste melancias? Incham como se fossem pequenos
animais.
Comemos diariamente legumes e frutos apanhados na horta. Também nos
alimentamos à base de peixe e carne, naturalmente, mas, uma vez que estamos
rodeados de fruta e legumes, acabamos por sentir menos vontade das outras coisas.
Volta e meia, andamos pelo campo e vamos até aos montes colher outro tipo de
legumes e cogumelos. Temos especialistas nisto (pensando bem, temos especialistas
para dar e vender!), que nos ensinam quais são os cogumelos comestíveis. Daí que
não seja de estranhar que eu tenha engordado três quilos desde que cá cheguei. Ou
seja, estou com o peso ideal, graças ao exercício físico e a levar uma vida regrada,
com refeições a horas.
Quando não ando de volta da horta, leio, ouço música e faço tricô. Rádio ou
televisão é coisa que não existe por estas bandas, mas, em compensação, possuímos
uma biblioteca muito completa e uma grande coleção de discos, desde as sinfonias
todas de Mahler aos álbuns dos Beatles. Habituei-me a pedir discos emprestados
para ouvir sozinha, no meu quarto.
O problema deste sítio é que, uma vez cá dentro, não sentimos vontade (ou, posto
de outro modo, temos receio) de voltar a sair. Aqui vivemos em paz e harmonia
connosco mesmos. Somos capazes de enfrentar as nossas próprias imperfeições.
Sentimo-nos recuperados. Mas não temos a certeza se o mundo lá fora nos aceitaria
de forma idêntica.
O médico responsável pelo meu caso diz que começa a ser altura de eu retomar o
contacto com as pessoas de fora. Por «pessoas de fora» entenda-se, em última
instância, as pessoas normais, que pertencem ao mundo comum. Quando ele me deu
a conhecer isso, o único rosto que me veio à lembrança foi o teu. Francamente, não
tenho grande vontade de rever os meus pais. Estão de tal modo preocupados comigo
que vê-los e conversar com eles só serve para me deixar mais deprimida. Além
disso, há certas coisas que gostaria de te explicar melhor. Ainda não sei quando
estarei em condições de o fazer, mas é muito importante e são coisas essenciais, que
não posso deixar em branco.
Mas, atenção, não quero de forma alguma que me consideres um fardo na tua
vida. Longe de mim tornar-me um peso seja para quem for. Sinto o afeto que tens
por mim, apenas isso, e quero que saibas até que ponto esse afeto é importante. Se
as minhas palavras te incomodam, peço desculpa. Perdoa-me. Tal como disse antes,
sou muito mais incompleta do que imaginas.
Às vezes penso: se tu e eu nos tivéssemos conhecido em circunstâncias normais e
gostado um do outro, como seria? O que teria acontecido se eu fosse normal, se tu
fosses normal (coisa que és, há que reconhecer), e se o Kizuki não tivesse existido?
Como vês, há demasiados «ses» pelo meio... Pelo menos, faço os possíveis por ser
justa e honesta. Neste momento, nada mais posso fazer. Espero conseguir transmitir-
te os meus sentimentos.
Neste centro onde me encontro, ao contrário do que acontece nos hospitais
tradicionais, não há horários de visita. Desde que telefones na véspera a marcar,
podes sempre aparecer. Até podes tomar as refeições comigo ou passar cá a noite.
Vem visitar-me assim que puderes. Estou cheia de saudades. Junto um mapa, para te
orientares melhor. Desculpa ter-me alongado tanto.
Naoko

Cheguei ao fim da carta e voltei ao princípio. Desci as escadas, comprei


uma Coca-Cola na máquina de venda automática, voltei para casa e tornei a
lê-la. Por fim, enfiei as sete folhas de papel no envelope e depositei-o sobre
a mesa. No sobrescrito rosa, o meu nome e a morada apareciam escritos em
caracteres pequenos, numa caligrafia excessivamente precisa para uma
rapariga. Sentei-me à secretária e deixei-me ficar a olhar para o envelope.
No remetente vinha escrito: Amiryō26. Um nome estranho, convenhamos.
Andei às voltas com o vocábulo durante uns bons cinco ou seis minutos, até
que cheguei à conclusão de que devia tratar-se da palavra francesa «ami»,
que é como quem diz, «amigo».
Guardei a carta na gaveta, mudei de roupa e saí. Sabia de ciência certa
que, se transportasse a carta comigo, teria caído na tentação de a reler pelo
menos dez ou vinte vezes. Vagueei sem destino pelas ruas de Tóquio, como
costumava fazer na companhia de Naoko. Ao anoitecer, voltei para
residência, fiz uma chamada interurbana para a Residência Ami, onde se
encontrava Naoko. A rececionista perguntou-me o que desejava. Indiquei-
lhe o nome de Naoko e perguntei se seria possível ir até lá visitá-la no dia
seguinte. Ela quis saber o meu nome e pediu-me para ligar de novo daí a
meia hora.
Quando voltei a telefonar, a mesma mulher confirmou que a visita era
possível e que estariam à minha espera. Agradeci, desliguei o telefone, meti
dentro da mochila uma muda de roupa e alguns artigos de uso pessoal.
Depois, enquanto o sonho não vinha, continuei a ler A Montanha Mágica e
a beber conhaque. Mesmo assim, já passava da uma da manhã quando
consegui finalmente conciliar o sono.

26 Ryō significa, entre outras coisas, residência, dormitório. (N. da T.)


Na segunda-feira, acordei às sete da manhã, lavei a cara a correr, fiz a barba
e, sem tomar o pequeno-almoço, fui direito ao gabinete do responsável pela
residência, a fim de pedir licença para me ausentar durante dois ou três dias
para fazer uma caminhada na montanha. Já não era a primeira vez que isso
acontecia. O diretor limitou-se a concordar. Apanhei uma carruagem de
metro a deitar por fora, comprei um bilhete no comboio-bala para Quioto e
saltei literalmente para o Hikari27 que já saía da plataforma; a minha
primeira refeição do dia consistiu num café quente e numa sanduíche. A
seguir, dormitei durante uma horita.
Cheguei a Quioto ainda não eram onze. Seguindo as indicações de
Naoko, apanhei o autocarro para Sanjō, seguindo de lá a pé até ao terminal
de uma empresa privada e perguntei a que horas largava o autocarro número
dezasseis. Fiquei a saber que sairia do local de partida mais afastado às
onze e trinta e cinco, e que a viagem até ao meu destino se prolongaria por
pouco mais de uma hora. Com o bilhete na mão, entrei numa livraria ali
perto para comprar um mapa. Depois sentei-me na sala de espera e
confirmei a localização exata da Residência Ami. Segundo o mapa, situava-
se nas profundezas da montanha. O autocarro seguiu para norte,
percorrendo as serranias da região e, ao chegar a um ponto em que já não
podia ir mais longe, fazia inversão de marcha e regressava à cidade. Pelos
vistos, teria de me apear antes da última paragem. A acreditar nas
indicações de Naoko, encontraria um carreiro e, depois de andar cerca de
vinte minutos, chegaria à Residência Ami. Assim perdido no coração da
montanha, deve ser um sítio muito tranquilo, pensei.
Com uns vinte passageiros a bordo, o autocarro atravessou a cidade e
seguiu rumo às terras do norte, ao longo do rio Kamo. À medida que
avançávamos, as casas começavam a desaparecer e davam lugar a campos
de cultivo e a descampados. Os telhados de telhas pretas e as coberturas de
plástico das estufas cintilavam ao sol de outono. O autocarro não tardou a
adentrar-se na região montanhosa. O caminho era por demais tortuoso e o
condutor fazia girar sem descanso o volante para a esquerda e para a direita,
o que teve o condão de me deixar enjoado. Ainda me vinha à boca o sabor
do primeiro café da manhã. Passado pouco tempo, as curvas diminuíram.
Respirei de alívio ao ver o autocarro penetrar num bosque de ciprestes frio e
húmido. As árvores erguiam-se altas como uma floresta virgem, impedindo
a passagem dos raios de sol e envolvendo a paisagem num manto negro. O
vento que entrava pela janela aberta tornou-se gelado, e dava para sentir na
pele a humidade cortante. Seguimos durante um bom bocado o curso do rio
e, quando já começava a pensar que o mundo inteiro havia sido engolido
pelos ciprestes, deixámos finalmente para trás o bosque e demos por nós
numa espécie de planalto rodeado de montanhas. Até onde a vista
alcançava, estendiam-se campos verdejantes e, ao fundo, corria um rio de
águas límpidas. À distância, desenhava-se no ar uma espiral de fumo
branco. Aqui e ali avistava-se roupa estendida a secar ao sol; ouviam-se os
cães a ladrar. Diante das casas havia lenha empilhada e, no topo, dormitava
um gato. Junto das casas não se via vivalma.
Esta paisagem reproduziu-se várias vezes. O autocarro entrava num
bosque de ciprestes, chegava a uma zona habitada, atravessava-a de lés a lés
e tornava a penetrar no bosque. Sempre que o autocarro parava numa
povoação, saíam alguns passageiros. Não entrou ninguém. Quarenta
minutos mais tarde, chegámos a um desfiladeiro de onde se avistava uma
vasta panorâmica sobre toda a região. O condutor parou o autocarro e
informou os passageiros de que procederia a uma pausa de seis minutos
para descansar, convidando quem desejasse a fazer o mesmo. Éramos
apenas quatro dentro do autocarro, contando com a minha pessoa, e
descemos todos para esticar as pernas, fumar um cigarro e contemplar a
cidade de Quioto aos nossos pés. O condutor afastou-se e aproveitou para
urinar. Um homem com os seus cinquenta anos e pele tisnada, que entrara
carregado transportando uma enorme caixa de cartão atada com um cordel,
veio ter comigo e perguntou-me se ia fazer uma caminhada na montanha.
Respondi que sim. Era mais cómodo. A conversa morreu ali.
Passado um bocado, surgiu outro veículo de passageiros no sentido
oposto, imobilizou-se ao lado do nosso e o condutor desceu. Após trocarem
meia dúzia de palavras, os condutores subiram para os respetivos
autocarros. Os passageiros regressaram aos seus lugares, e os dois veículos
puseram-se em marcha, cada um na sua direção. Não tardei a descobrir o
motivo pelo qual o nosso autocarro precisara de esperar pelo outro. Mais
abaixo, o caminho estreitava-se bruscamente, impossibilitando que dois
veículos de grande porte circulassem ao mesmo tempo. O autocarro em que
viajava cruzou-se com várias furgonetas e viaturas ligeiras. Por mais de
uma vez, um dos outros carros viu-se obrigado a fazer marcha-atrás e a
encostar o mais possível à curva.
As povoações que encontrámos ao longo do caminho eram cada vez mais
pequenas à medida que avançámos, e os terrenos cultivados cada vez mais
reduzidos. Por seu turno, a montanha tornou-se abrupta, e o autocarro
passava a rasar pelas escarpas. Os cães, esses, ladravam furiosamente à
nossa passagem.
A paragem onde me apeei parecia um deserto. Não se viam casas nem
campos. Tirando um poste solitário a assinalar a paragem, apenas um
pequeno riacho e o trilho montanhoso. À esquerda corria um rio; à direita
havia um bosque. Depois de ter subido pela encosta suave durante um
quarto de hora, avistei uma estradinha onde mal cabia um carro: à entrada,
um cartaz dizia «Residência Ami. Entrada proibida a estranhos»28.
Distinguia-se nitidamente a marca dos pneus no interior do bosque. Por
entre as árvores ouvia-se um som em tudo semelhante ao bater das asas de
um pássaro. Um som estranhamente nítido e amplificado. Chegou-me aos
ouvidos o disparo de uma espingarda, mas não passou de um som surdo,
como se tivesse sido filtrado várias vezes.
À saída do bosque deparei-me com um muro branco. Sem estacas nem
rede metálica, dava-me pela cintura, permitindo a qualquer pessoa saltar por
cima com grande facilidade. O portão de ferro era preto e sólido, e a guarita
encontrava-se deserta. Ao lado do portão divisava-se outra placa com uma
inscrição idêntica à primeira: «Residência Ami. Entrada proibida a
estranhos». Na guarita havia indícios de uma presença humana. Três beatas
apagadas no cinzeiro, restos de chá, um aparelho de rádio numa prateleira,
um relógio de parede com o seu tiquetaque seco. Deixei-me ficar à espera
do guarda, mas, vendo que ele nunca mais chegava, toquei duas vezes à
campainha. Passando a cancela, estavam estacionados um miniautocarro,
um Land Cruiser 4WD e um Volvo azul-escuro. Havia à vontade espaço
para trinta carros, mas só se viam estes três.
Dois ou três minutos mais tarde, aproximou-se um guarda montado numa
bicicleta amarela, vestido com um uniforme azul-marinho. Era um
indivíduo dos seus sessenta anos, alto e com entradas. Encostou a bicicleta
à parede da guarita e, num tom mecânico, pediu desculpa por me ter feito
esperar. No para-lamas da bicicleta tinha o número 32 pintado a branco.
Disse-lhe quem era e ao que vinha. O homem pegou no telefone e repetiu
duas vezes o meu nome. Do outro lado, o interlocutor fez um comentário
qualquer, a que ele respondeu; «Está bem, entendido», desligando logo a
seguir.
− Por favor, queira dirigir-se ao pavilhão principal e perguntar pela
professora Ishida – disse o guarda. – Siga pelo caminho que atravessa o
bosque até chegar a uma rotunda e corte na segunda à esquerda. Segunda à
esquerda, compreendeu? Vai encontrar um prédio antigo, depois vire à
direita e continue sempre por outro bosque, até chegar a um edifício de
betão. É o pavilhão principal. Há placas pelo caminho, não tem nada que
enganar.
Tal como ele me indicara, virei à esquerda na rotunda e, ao longe, lá
descobri uma casa com aquele encanto do antigamente. A decoração do
jardim caracterizava-se pela profusão de rochas belíssimas e lanternas de
pedra; notava-se que as plantas eram tratadas com amor. Sim, devia ter
morado ali alguém, sem sombra de dúvida. Cortando à direita e
ultrapassando um maciço de árvores, surgiu diante de mim um edifício de
betão com três andares que se erguia sobre um terreno escavado, o que
contribuía para reduzir a sua imponência. Tinha linhas simples e um aspeto
imaculado.
A entrada fazia-se pelo primeiro andar. Subi as escadas, abri uma porta de
vidro enorme e dei de caras com uma mulher ainda jovem vestida de
vermelho. Apresentei-me e pedi para falar com a professora Ishida. Ela
sorriu e, muito baixinho, convidou-me a sentar-me, apontando para um sofá
castanho na receção. Com um gesto maquinal, levantou o auscultador e
marcou um número. Libertando-me da mochila, afundei-me no sofá e olhei
em volta. Aquele espaço era limpo e agradável. Havia alguns vasos com
plantas ornamentais, quadros abstratos pendurados nas paredes, e o soalho
de madeira reluzia. Enquanto esperava, entretive-me a contemplar o reflexo
dos meus sapatos no chão. A dada altura, a rececionista anunciou que a
senhora professora não demoraria muito mais. Assenti. Mas que lugar tão
silencioso, pensei para comigo. Não se ouvia o mínimo som. Dir-se-ia que
estava na hora da sesta. A tarde era calma e reinava uma tranquilidade tal
que tudo e todos – pessoas, animais, insetos e plantas – pareciam
profundamente adormecidos.
Pouco depois, precedida pelo som amortecido de uns sapatos com sola de
borracha, apareceu uma mulher de meia-idade de cabelo curto e espetado.
Sem perder um segundo, sentou-se ao meu lado e cruzou as pernas. No
momento em que nos cumprimentámos, pegou na minha mão e observou-a
atentamente.
− Há anos que não toca um instrumento musical, engano-me? – disse ela,
em jeito de saudação.
− É verdade – respondi, surpreendido.
− Percebo isso só de olhar para as mãos – afirmou ela, com um sorriso.
Devo dizer que a mulher era deveras estranha. O seu rosto parecia um
pergaminho. Curiosamente, as rugas, em vez de a envelhecerem, não só
faziam parte dela como acentuavam a sua jovialidade. Quando sorria,
sorriam também, e quando punha uma expressão séria, produziam o mesmo
efeito. Quando não sorria nem estava séria, espalhavam-se pelo semblante,
conferindo-lhe uma expressão a um tempo irónica e calorosa. Tanto podia
ter trinta e cinco anos como quarenta; além de simpática, possuía um
encanto especial. Fiquei de imediato conquistado por ela.
Apresentava o cabelo mal cortado, com pontas espigadas e irregulares, e a
franja caía-lhe em desordem sobre a testa. Todavia, aquele ar despenteado
assentava-lhe às mil maravilhas. Usava um casaco azul por cima da T-shirt
branca, calças largas de algodão creme e ténis nos pés. Era extremamente
magra, alta, quase sem peito, e tinha o hábito de cerrar os lábios de um lado,
tique que emprestava às suas feições uma expressão irónica. No canto dos
olhos desenhavam-se finas rugas. Fazia lembrar uma carpinteira hábil e
gentil, dona de uma certa dose de sabedoria desencantada.
Com o queixo contraído e os lábios franzidos, demorou que tempos a
examinar-me de alto a baixo. Cheguei a temer que a qualquer momento
resolvesse sacar uma fita métrica do bolso, começando a tirar-me as
medidas.
− Toca algum instrumento?
− Não, nenhum – respondi.
− Que pena! Seria divertido.
Acenei afirmativamente com a cabeça, embora não compreendesse aquela
obsessão com os instrumentos musicais.
Tirando do bolso um maço de Seven Stars, ela levou um cigarro à boca e
acendeu-o com o isqueiro, soltando o fumo com visível satisfação.
− Bem, Tōru Watanabe... é esse o seu nome, certo? Antes de se encontrar
com a Naoko, é melhor explicar-lhe como funciona tudo por aqui. Foi por
isso que achei preferível termos primeiro uma conversa a dois. Como se
trata de um sítio diferente, tive medo de que ocorressem alguns mal-
entendidos por falta de informação prévia. Porque o meu amigo desconhece
quase tudo acerca deste local, não é verdade?
− Sim, não sei praticamente nada.
− Então, vamos começar pelo princípio... – prosseguiu ela. De súbito, deu
um estalo com os dedos, como se tivesse acabado de se lembrar de algo
naquele preciso instante. – Por falar nisso, já almoçou? Tem fome?
− Sim, tenho uma certa fome – confessei.
− Nesse caso, venha comigo. Podemos conversar no refeitório. Já passa
da hora do almoço, mas talvez nos arranjem qualquer coisa.
Levantando-se primeiro do que eu, encaminhou-se num passo acelerado
pelo corredor fora, desceu as escadas e seguiu em direção ao refeitório
localizado no piso térreo. As mesas estavam postas para duzentas pessoas,
pelo menos, mas só metade do espaço era utilizado, visto que a outra
metade permanecia fechada por divisórias. Dir-se-ia que estávamos num
hotel turístico em plena temporada baixa. A ementa consistia em batatas
estufadas com massa, salada mista, sumo de laranja e pão. Tal como Naoko
descrevera na sua carta, os legumes eram estupendos. Comi tudo o que me
puseram no prato, deixando-o praticamente limpo.
− Vejo que gostou – disse a mulher, impressionada.
− Está tudo delicioso. Além disso, não tinha comido quase nada durante o
dia.
− Se quiser, pode ficar também com a minha parte. Estou cheia. Aceita?
− Se a senhora não se importar... − respondi.
− Como muito pouco, tenho estômago de passarinho. Em compensação,
para o fumo há sempre espaço – disse ela, acendendo mais um cigarro
Seven Stars. – Ah, pode chamar-me Reiko. É o que toda a gente me chama.
Devorei o resto do estufado e o pão em que ela não tocara, enquanto
Reiko observava a cena com curiosidade.
− A senhora é a médica responsável pela Naoko? – perguntei-lhe.
− Médica? Eu? – exclamou, franzindo a testa. – O que o levou a pensar
isso?
− Disseram-me para falar com a professora Ishida.
− Ah, estou a perceber. Dou aulas de música, é por causa disso que me
chamam professora29. Na realidade, sou uma paciente. Já estou aqui há sete
anos e, como ensino música e ajudo nas tarefas administrativas, às tantas
torna-se difícil dizer se sou doente ou funcionária. A Naoko não lhe falou de
mim?
Fiz que não com a cabeça.
− Estranho?! Bom, de qualquer forma, a Naoko e eu dividimos o mesmo
espaço. Que é como quem diz, somos companheiras de quarto. É divertido
conviver com ela. Conversamos imenso acerca de tudo. E de si também,
escusado será dizer.
− De mim? – exclamei, picado pela curiosidade.
− Bom, deixe-me contar-lhe mais algumas coisas sobre este lugar –
continuou Reiko, ignorando a minha pergunta. – Antes de mais, quero que
saiba que não tem nada que ver com aquilo a que se convencionou chamar
«hospital». Por outras palavras, aqui não se recebe tratamento, estamos num
centro de recuperação. Temos vários médicos a trabalhar connosco, claro,
que fazem a sua ronda diária e dão consultas durante uma hora, mas
limitam-se a tirar a temperatura e coisas do género. Posto de outro modo,
não nos aplicam uma terapia ativa, como acontece nos restantes hospitais.
Daí que não haja grades nas janelas e o portão esteja aberto. As pessoas
vêm ter connosco de forma espontânea e são livres de partir se o desejarem.
Além disso, só aqueles doentes que estiverem aptos a sujeitarem-se a este
tipo de reabilitação é que são admitidos. Trata-se, portanto, de um método
que não se aplica a toda a gente. Aqueles que têm necessidade de um
tratamento específico terão de ser reencaminhados para um hospital
especializado. Até aqui, alguma dúvida?
– Nem por isso. Mas o que significa essa recuperação, em concreto?
Reiko deu uma passa no cigarro e bebeu o resto do sumo de laranja.
– A recuperação consiste na vida que levamos. Horários fixos, exercício
físico, isolamento do mundo exterior, tranquilidade, ar puro. A nossa horta
permite-nos ser praticamente autossuficientes no que respeita à
alimentação, e não há televisão nem rádio. Uma forma de existência
comunitária muito em voga nos dias de hoje. A única diferença é a
mensalidade que se paga para entrar, uma fortuna, ao contrário do que
acontece nas comunas.
– É assim tão caro?
– Bom, não se pode dizer que seja demasiado caro, mas barato não é!
Basta olhar para estas instalações espetaculares. A juntar aos terrenos, que
nunca mais acabam, contamos ainda com um elevado número de
funcionários ao serviço de um reduzido número de pacientes. No meu caso,
como já cá ando há uma data de anos, estou isenta dos custos de
internamento, o que é ouro sobre azul. Apetece-lhe um café?
Respondi afirmativamente. Ela apagou o cigarro, levantou-se, encheu
duas chávenas de café de uma garrafa-termo e trouxe-as para a mesa. Pôs
açúcar, mexeu com uma colher e fez uma careta ao provar o café.
– Esta casa de repouso não visa obter lucro. O que lhe permite estar em
atividade com razoáveis custos de internamento. O terreno foi doado por
uma pessoa, um cavalheiro que ajudou a dar forma ao nosso centro. Há
vinte anos, tudo isto era propriedade dele. Calculo que tenha visto a antiga
casa de campo. Era o único edifício existente, e costumava ser ali que os
pacientes se reuniam para fazer terapia de grupo. A razão por que tudo
começou deve-se ao facto de esse tal filantropo ter um filho que sofria de
perturbações mentais, ao qual um especialista aconselhou terapia de grupo.
O médico que o tratou defendia que certas doenças podem ser tratadas se as
pessoas viverem em grupo num ambiente familiar, separadas do mundo,
ajudando-se uns aos outros, fazendo trabalho físico e contando,
naturalmente, com um médico, que se limita a vigiar e a controlar as suas
condições físicas. Foi dentro deste espírito que tudo começou. A pouco e
pouco, aumentaram os campos de cultivo e, cinco anos mais tarde,
construiu-se o edifício principal.
– Quer dizer que a terapia resultou?
– Sim, mas não significa que seja eficaz para todo o tipo de doenças. Há
doentes que não obtêm uma resposta satisfatória. Muitos dos que já
passaram por outros lugares sem resultados satisfatórios, porém, conseguem
melhorar graças a esta terapia e regressam a casa para fazer uma vida
normal. O melhor de tudo é o espírito de entreajuda. Como sabemos que
somos imperfeitos, procuramos ajudar-nos. Lá fora, os médicos são
médicos, e os doentes são doentes. Um paciente vai à procura de ajuda e o
médico, por sua vez, proporciona-lhe auxílio. Aqui, todos se auxiliam
mutuamente. Somos espelhos uns dos outros. E os médicos são nossos
amigos. Observam-nos discretamente e, quando sentem que precisamos de
alguma coisa, dispõem-se a ajudar-nos. Num certo sentido, nós também os
ajudamos. Por exemplo, eu dou aulas de piano a alguns médicos, um doente
ensina francês às enfermeiras, e assim por diante. Entre as pessoas que
padecem deste tipo de doenças há muitas que têm talento num campo
específico. Neste lugar, somos todos iguais. Doentes, funcionários... até o
Tōru. Enquanto estiver connosco, será mais um de nós, e eu ajudá-lo-ei, da
mesma forma que contarei com a sua ajuda. – Reiko sorriu, pondo em
evidência as rugas do seu rosto. – Tu ajudarás a Naoko e ela ajudar-te-á.
Proponho que nos tratemos informalmente.
– Que deverei fazer nesse sentido, concretamente?
– Primeiro que tudo, é preciso querer ajudar os outros e pensar, ao mesmo
tempo, que precisas de ser ajudado. É preciso que tu próprio desejes ser
ajudado. Em segundo lugar, importa ser honesto. Não mentir, não falsear a
verdade, não manipular as coisas à nossa vontade. Basta isso.
– Farei os possíveis – disse eu. – Por que motivo te encontras aqui há sete
anos, Reiko? Ao ouvir-te falar, ninguém diria que há algo de errado contigo.
– Durante o dia – continuou ela, num tom sombrio. – Mas à noite as
coisas mudam. Começo a rebolar pelo chão e espumo da boca.
– A sério?
– Não sejas tolo! Claro que não, estou a brincar. – Reiko abanou a cabeça,
vagamente desiludida. – Estou recuperada, pelo menos até à data. O que
acontece é que prefiro cá estar e ajudar os meus companheiros a melhorar,
dando aulas de música e cultivando vegetais. Adoro este sítio. Somos todos
amigos. Comparado com isto, o que é que nos oferece o mundo exterior?
Estou com trinta e oito anos, quase a atingir os quarenta. Não sou como a
Naoko. Mesmo que saia daqui, não existe nada à minha espera: não tenho
família, nem um emprego decente, e os meus amigos contam-se pelos dedos
das mãos. Convém não esquecer que vivo aqui há sete anos. Já não sei o
que se passa à nossa volta. Dia sim, dia não, leio o jornal na biblioteca. Ao
longo destes anos todos, nunca pus o pé fora deste espaço. E não vejo
qualquer vantagem em ir-me embora.
– Pode até acontecer que se descortine à tua frente um mundo novo, cheio
de possibilidades – argumentei. – Um mundo que valha a pena explorar.
– Talvez tenhas razão. – Por instantes, fez rodar o isqueiro na palma da
mão. – Tenho os meus motivos para estar aqui, Tōru Watanabe. Se quiseres,
falaremos com calma um dia destes.
Assenti.
– E a Naoko está melhor?
– Parece que sim. De início, estava muito perturbada, o que nos deixou
francamente preocupados e sem saber o que fazer. Mas sinto-a mais
descontraída, já é capaz de expressar os seus sentimentos... Uma coisa é
certa: encontra-se no bom caminho. Devia ter recebido tratamento muito
mais cedo. Na situação dela, os sintomas começaram a manifestar-se na
altura da morte do namorado, Kizuki. A juntar aos antecedentes familiares...
– Aos antecedentes familiares? – perguntei, apanhado de surpresa.
– Não sabias? – exclamou Reiko, ainda mais espantada do que eu.
Calado, abanei a cabeça.
– Pergunta antes à Naoko. É melhor assim. Há assuntos que ela tenciona
discutir contigo pessoalmente. – Reiko tornou a mexer o café com a colher,
sorvendo o resto num pequeno gole. – É bom que saibas que vocês os dois
estão proibidos de estar sozinhos. São as normas. Os visitantes não podem
ficar a sós com os pacientes. Têm de estar sempre na presença de um
observador... que, neste caso, serei eu. Lamento, mas terás de te haver
comigo. De acordo?
– De acordo. – Com um sorriso nos lábios, aceitei o repto.
– Por mim, fiquem à vontade e falem acerca do que quiserem, sem se
preocuparem com a minha presença. Sei praticamente tudo o que há a saber
sobre ti e a Naoko.
– Tudo?
– Quase tudo – corrigiu ela. – Organizamos sessões de grupo. Por isso,
estamos mais ou menos a par do que acontece com os outros. Além do
mais, quando estamos sozinhas, eu e a Naoko, costumamos falar de forma
sincera. Num sítio como este não há espaço para grandes segredos.
Bebi o meu café sem tirar os olhos de Reiko.
– Há uma coisa que me deixa confuso, para ser honesto. Não sei se me
portei como deve ser com a Naoko quando vivíamos os dois em Tóquio.
Passo a vida a refletir sobre isso, mas ainda não encontrei resposta.
– Para mim, também é uma incógnita – declarou Reiko. – A Naoko
também não sabe. É uma coisa que uma boa conversa a dois ajudará a
esclarecer. Não te parece? Desde que haja compreensão de parte a parte,
ainda vão muito a tempo de melhorar o vosso relacionamento. Mais tarde,
terão todo o tempo do mundo para refletir sobre as ações do passado.
Acenei afirmativamente.
– Acho que nós os três podemos ajudar-nos, tu, a Naoko e eu. Temos
apenas de ser francos e, sobretudo, lutar por isso. Por vezes, três pessoas
conseguem obter resultados positivos. Até quando planeias ficar aqui
connosco?
– Preciso de estar em Tóquio depois de amanhã à noite, o mais tardar.
Tenho trabalho, e na quinta-feira espera-me um exame de Alemão.
– Ótimo. Ficarás a dormir no nosso apartamento. Assim não gastas
dinheiro e podemos dialogar à vontade, sem nos preocuparmos com o
tempo.
– Nosso...?
– Meu e da Naoko, claro – acrescentou Reiko. – Não te preocupes. Temos
uma salinha à parte com um sofá-cama. Vais ver que ficas bem instalado.
– Não será complicado? Refiro-me ao facto de um visitante masculino
dormir ao lado de duas mulheres?
– Imagino que não estejas a pensar em entrar no nosso quarto e violar-
nos...
– Claro que não, juro pela minha honra.
– Nesse caso, não há problema. Ficas connosco e conversamos
calmamente. É o mais conveniente. Podemos conhecer-nos melhor e eu
prometo tocar guitarra em tua honra. Sou boa nisso, sabes?
– Tens a certeza de que não vou incomodar?
Reiko levou à boca o terceiro cigarro Seven Stars e acendeu-o, franzindo
o canto da boca.
– A Naoko e eu já discutimos o assunto. É um convite pessoal de nós as
duas. Não achas que devias aceitá-lo, em nome da boa educação?
– Claro, com todo o gosto – respondi.
Reiko observou-me com atenção durante alguns instantes; as rugas ao
canto dos olhos tornaram-se mais profundas.
– Tens uma maneira esquisita de falar – replicou ela. – Não andarás por
acaso a imitar a personagem daquele rapaz, Holden Caulfield, no romance
À Espera no Centeio?
– Longe de mim tal ideia – respondi com uma gargalhada.
Reiko também se riu, sem tirar o cigarro da boca.
– És bom rapaz. Basta-me olhar para uma pessoa e fico imediatamente a
saber. Ao longo dos sete anos que aqui passei, sempre a ver gente a entrar e
a sair, aprendi a distinguir entre aqueles que são capazes de abrir o coração
e os que não são. Fazes parte dos primeiros. Consegues abrir a alma.
– E o que acontece quando as pessoas abrem o coração?
Sem pousar o cigarro, Reiko juntou as palmas das mãos, divertida.
– Ficam curadas.
A cinza do cigarro tombou sobre a mesa, mas ela não fez caso.

***

Saímos do edifício principal, atravessámos uma pequena colina, passámos


por uma piscina, um court de ténis e um campo de basquetebol. Estavam
dois homens a jogar ténis. Um magro, de meia-idade, o outro jovem e
gordo. Nenhum dos dois jogava propriamente mal, mas, na minha opinião,
aquilo pouco tinha que ver com ténis. De facto, parecia que estavam mais
interessados em testar a resistência da bola. Concentrados ao máximo,
empenhavam-se em bater a bola de volta. Estavam ambos encharcados de
suor. O jovem, que se encontrava mais perto de nós, interrompeu a partida
ao ver Reiko e aproximou-se, sorridente, a fim de trocar dois dedos de
conversa com ela. Junto ao court, um homem de rosto inexpressivo aparava
a relva com uma grande máquina.
Mais adiante, chegámos a uma zona de arvoredo com umas quinze ou
vinte harmoniosas vivendas de estilo ocidental, separadas umas das outras.
Junto à porta, quase todas tinham uma bicicleta amarela igual à utilizada
pelo guarda. Reiko informou-me de que era a zona destinada aos
funcionários e às suas famílias.
− Pode encontrar-se aqui tudo o que é preciso sem termos de ir à cidade –
explicou ela pelo caminho. – Como te disse há bocado, somos praticamente
autossuficientes no que toca à alimentação. Criamos ainda galinhas
poedeiras. Temos livros, discos, instalações desportivas e até um
minimercado. A cabeleireira passa por cá todas as semanas. Organizamos
sessões de cinema ao sábado e ao domingo. Podemos encomendar qualquer
artigo aos funcionários que vão à cidade e, no que toca ao vestuário, existe
um sistema de encomenda de roupa por catálogo.
− É proibido ir à cidade? – perguntei.
− Sim, é. Claro que há exceções. Ir ao dentista, por exemplo. Mas, em
princípio, ninguém está autorizado a deslocar-se à cidade. Tens toda a
liberdade para sair daqui, mas depois de partir não há retorno. É como se
fizesses explodir a ponte. Não é permitido passar um par de dias na cidade e
voltar. Pensando bem, tem razão de ser, não achas? Caso contrário, a vida
neste sítio transformar-se-ia num constante rodopio.
Depois de atravessarmos o bosque, chegámos a uma encosta suave por
onde se espalhavam algumas casas de madeira de dois andares. Dispostas
irregularmente, produziam um efeito estranho. Porquê, não me perguntem.
Dava-me a ideia de estar a contemplar uma imagem irreal, como se
tivéssemos pela frente um desenho animado criado por Walt Disney a partir
dos quadros de Munch. Os edifícios tinham o mesmo formato e estavam
todos pintados da mesma cor. Eram, por assim dizer, cúbicos, simétricos,
com uma grande porta e inúmeras janelas. Pelo meio das vivendas passava
um caminho aos esses, parecido com os circuitos destinados aos alunos nas
escolas de condução. A parte dianteira das casas estava decorada com
canteiros irrepreensivelmente tratados. Não se via ninguém e as janelas
tinha as cortinas corridas.
− Aqui é o Bloco C, onde vivem as mulheres. Ou seja, nós! São dez
vivendas ao todo: cada uma está dividida em quatro, e em cada secção
vivem duas mulheres. Logo, dá para acolher oitenta pessoas, apesar de,
neste momento, sermos apenas trinta e duas.
− Que tranquilidade! – constatei.
− A esta hora não há gente em casa – declarou ela. − Recebo um
tratamento especial, o que me permite usufruir do tempo livre, mas a
maioria tem um programa de atividades para cumprir. Alguns praticam
desporto, outros andam na jardinagem, há quem faça terapia de grupo, e
temos ainda os que foram até à região montanhosa apanhar verduras e
legumes. Cada um elabora o seu próprio programa. Ora bem, o que andará a
Naoko a fazer? A pintar ou a mudar papel de parede, não me lembro bem.
Em todo o caso, existem várias atividades que nos mantêm ocupados até às
cinco da tarde.
Reiko entrou na vivenda que tinha escrito C-7 na fachada, subiu as
escadas mais distantes e abriu a porta da direita, que não estava fechada à
chave. A seguir, mostrou-me o resto da casa. Era um apartamento simples e
agradável, de quatro divisões: sala de estar, quarto de dormir, cozinha e casa
de banho. Apesar de a mobília e os objetos decorativos estarem reduzidos
ao essencial, o interior da casa não transmitia a mínima ideia de
austeridade. Por qualquer motivo, senti-me ali como me sentia na presença
de Reiko: descontraído e à vontade. Na sala de estar havia um sofá, uma
mesa e uma cadeira de balanço. Na cozinha, uma mesa para as refeições.
Em cima da mesa via-se um cinzeiro enorme. O mobiliário de quarto
compreendia duas camas, duas mesas e um roupeiro. A mesinha de
cabeceira ficava no meio das camas; havia ainda um candeeiro próprio para
ler e um livro de bolso virado ao contrário. A cozinha estava equipada com
um pequeno fogão elétrico e um frigorífico, de modo a permitir a confeção
de refeições simples.
− Não temos banheira, só chuveiro, mas é um bom espaço, não achas? –
perguntou Reiko. – A casa de banho com banheira e a lavandaria são
comuns.
− Melhor do que bom. Na residência onde vivo, os quartos limitam-se a
quatro paredes, um teto e uma janela.
– Dizes isso porque não sabes como são os nossos invernos – replicou
ela, dando-me uma pancadinha nas costas e convidando-me a sentar a seu
lado no sofá. – O inverno nestas paragens é longo e rigoroso. Para onde
quer que uma pessoa olhe, só vê neve e mais neve. Sente-se uma humidade
que penetra até aos ossos. Passamos os dias a tirar neve às pazadas. Não
temos outro remédio senão aquecer o quarto na temperatura máxima, e
matamos o tempo a ouvir música ou a fazer tricô. Se não tivéssemos este
espaço todo, ficaríamos sufocados e não poderíamos viver aqui. Basta
apareceres por cá no inverno e verás com os teus próprios olhos.
Como se estivesse a experimentar na pele as sensações provocadas pelo
longo inverno, Reiko soltou um longo suspiro e pousou as mãos sobre os
joelhos.
– Logo à noite, abrimos este sofá e fazemos a cama de lavado – disse ela,
dando uma palmadinha no sítio onde estávamos sentados. – Nós as duas
dormimos no quarto, e tu aqui. Concordas?
– Por mim, tudo bem.
– Está decidido – afirmou Reiko. – Devemos regressar por volta das
cinco, uma vez que a Naoko e eu temos as nossas tarefas até essa hora. Não
te importas de ficar sozinho?
– Absolutamente nada. Aproveito para estudar Alemão.
Quando Reiko saiu, estendi-me no sofá e fechei os olhos. Durante um
grande bocado, mergulhei de corpo e alma no silêncio. De repente, veio-me
à memória uma célebre excursão de moto que Kizuki e eu tínhamos feito,
também no outono, se não estava em erro. Outono de que ano? Quatro anos
antes, sim, era isso mesmo. Recordei o odor que se desprendia do blusão de
couro de Kizuki e o estrépito irritante daquela Yamaha 125 vermelha.
Fomos até uma praia distante e voltámos já era noite cerrada,
completamente derreados. Não fizemos nada de especial, mas a verdade é
que nunca mais me esqueci do passeio. O vento de outono silvava com
violência nos meus ouvidos, e firmemente agarrado com ambas as mãos ao
blusão de Kizuki, olhando o céu, sentia o meu corpo prestes a ser lançado
em direção ao espaço sideral.
Sem mudar de posição, deixei-me estar deitado no sofá, passando em
revista as minhas recordações. Não me perguntem porquê, mas vieram-me à
lembrança episódios do passado que não era costume recordar. Alguns
episódios alegres, outros mais tristes.
Quanto tempo permaneci naquele estado? Estava de tal modo imerso
naquela torrente imprevista de recordações (como acontece quando a água
brota abundantemente pelo meio das frestas de uma rocha) que nem dei
pela chegada de Naoko. Ela abriu a porta e entrou na sala sem fazer
barulho. Quando abri os olhos, vi-a diante de mim. Levantei a cabeça e
olhei-a nos olhos. Sentada no sofá, Naoko observava-me. A princípio,
pensei que fosse uma imagem saída da minha imaginação. Mas era Naoko,
em carne e osso.
− Estavas a dormir? – perguntou baixinho.
− Não, estava a meditar. – Sentei-me no sofá. – Como é que vais?
− Tudo bem. – O sorriso dela fazia lembrar uma paisagem distante em
tons de sépia. – Tenho pouco tempo. Para ser franca, nem deveria estar
aqui, mas escapei-me por minutos. Diz a verdade: estou com um cabelo
horrível, não achas?
− Nada disso – respondi −, fica-te até muito bem. − Tinha um penteado
muito simples, parecia uma colegial. Assentava-lhe que nem uma luva; de
facto, era como se o tivesse usado sempre. Fez-me pensar numa bela jovem
das que se veem retratadas nas gravuras antigas.
− Estava farta, por isso pedi à Reiko para me cortar o cabelo. A sério que
gostas?
− Sim, gosto muito.
− A minha mãe acha que estou horrível – comentou Naoko. Tirou o
travessão, deixou cair os cabelos e alisou-os várias vezes, tornando depois a
prendê-los. – Apetecia-me estar contigo a sós antes de nos encontrarmos os
três. Não tenho nada de urgente para te dizer, mas queria ver a tua cara e
habituar-me a ter-te por perto. Se não for assim, estranho. Não tenho jeito
para lidar com as pessoas.
− E já te sentes habituada a mim?
− Um pouco – respondeu ela, levando de novo a mão ao travessão. –
Acabou-se o nosso tempo, por agora. Tenho de me ir embora.
Assenti com a cabeça.
− Obrigada por teres vindo, Tōru. Fico mesmo feliz, acredita. Mas se
sentires que estar aqui representa um peso para ti, quero que me digas,
ouviste? Este lugar é especial e tem as suas próprias regras. Há pessoas que
sentem dificuldade em acostumar-se. Se isso acontecer contigo, diz-me
francamente. Não ficarei dececionada, nem nada que se pareça. Aqui somos
todos sinceros. Comunicamos de peito aberto.
− Prometo ser franco – disse eu.
Naoko sentou-se outra vez no sofá e encostou-se a mim. Abracei-a e ela
pousou a cabeça no meu ombro, ficando com o nariz enterrado no meu
pescoço. Permaneceu imóvel nessa posição, como se estivesse a medir-me a
temperatura do corpo. Ao abraçá-la, senti o peito inundar-se de calor. Por
fim, levantou-se sem dizer uma palavra e, tal como tinha entrado, abriu a
porta de mansinho e saiu.
Depois de Naoko se ter ido embora, adormeci no sofá. Confortado por a
ter visto, caí num sono pesado, como já não me lembrava de experimentar
desde há muito. Na cozinha fui encontrar a loiça usada por ela; a sua escova
de dentes estava na casa de banho; no quarto ficava a cama onde dormia.
Naquele espaço impregnado pela sua presença, dormi profundamente,
espremendo, gota a gota, o cansaço acumulado em cada uma das minhas
células. Sonhei que era uma borboleta dançando na penumbra.
Ao acordar, os ponteiros do relógio de pulso marcavam 16h35. A
tonalidade da luz mudara, o vento amainara e as próprias nuvens tinham
formas diferentes. Tirei da mochila uma toalha para limpar o rosto suado e
mudei de camisa. A seguir, fui à cozinha beber água da torneira e olhei lá
para fora. Pela janela sobre o lava-loiça avistei o edifício em frente. No
interior daquela casa havia várias figurinhas de papel recortadas suspensas
por fios. Silhuetas de pássaros, nuvens, vacas e gatos. Não se via uma alma
nem se ouvia o menor ruído. Era como se eu fosse a única pessoa no meio
de ruínas perfeitamente preservadas.

***

Passavam poucos minutos das cinco quando os residentes começaram a


regressar ao Bloco C. Através da janela da cozinha avistei duas, não, três
mulheres lá em baixo. Uma vez que as três usavam chapéu, não consegui
ver-lhes a cara nem adivinhar a sua idade, mas, a julgar pelo tom de voz, já
não deviam ser jovens. Quando desapareceram por trás de um edifício,
aproximaram-se outras quatro, que, vindas da mesma direção, percorreram
idêntico caminho. Anoitecia aos poucos. Da janela da sala distinguiam-se o
bosque e o contorno das montanhas. Acima dessa linha flutuava um halo de
luz pálida.
Naoko e Reiko voltaram para casa às cinco e meia. Eu e Naoko
cumprimentámo-nos naturalmente, como se nos tivéssemos encontrado pela
primeira vez. Ela parecia sentir-se intimidada pela minha presença. Reiko
reparou no livro que eu andava a ler e quis saber o título. Respondi-lhe que
era A Montanha Mágica, de Thomas Mann.
− Com tantos livros que há, o que te levou a trazer esse romance para um
lugar como este? – perguntou ela, admirada.Vi-me obrigado a dar-lhe
razão30.
Reiko preparou café para os três. Referi a Naoko o desaparecimento
repentino do Facho e contei-lhe que, no último dia, ele me oferecera um
pirilampo. Naoko lamentou que o Facho se tivesse ido embora e confessou
que gostaria de me ouvir contar mais histórias das dele. Dado que Reiko
também queria ficar a conhecê-las, contei duas ou três, e as risadas não se
fizeram esperar. Bastava contar um dos muitos episódios vividos pelo
Facho para desencadear uma gargalhada geral.
Às seis da tarde, dirigimo-nos para o refeitório, no edifício principal.
Naoko e eu comemos peixe frito, salada de verduras, nimomo, arroz e sopa
de miso.31 Reiko contentou-se com uma salada de massa e uma chávena de
café. No fim, puxou de um cigarro.
− À medida que envelhecemos, o corpo modifica-se e já não precisamos
de comer tanto – observou ela, à laia de explicação.
Devia haver umas vinte pessoas à nossa volta. Enquanto jantámos,
entraram mais umas quantas e saíram outras. Tirando o cenário, era quase
tudo idêntico ao que sucedia na residência universitária. Ali, porém, toda a
gente tagarelava no mesmo tom de voz. Ninguém levantava a voz nem
sussurrava. Ninguém dava gargalhadas nem gritos de surpresa, ninguém
levantava a mão para chamar a atenção de outra pessoa. Todos conversavam
amenamente. Comiam em grupos de três pessoas, cinco no máximo.
Sempre que um começava a falar, os demais ouviam com atenção e
assentiam com a cabeça; quando aquele terminava, começava outro. Não
fazia a mínima ideia do que estariam a dizer, mas aquela troca de
impressões fez-me lembrar a estranha partida de ténis a que assistira da
parte da tarde. Perguntei a mim mesmo se Naoko também falaria assim
quando estava na presença deles. Sei que isto pode parecer-vos estranho,
mas, por breves momentos, senti uma pontinha de ciúme misturada com
tristeza.
Na mesa atrás de mim, um homem calvo vestido com uma bata branca
(sem dúvida um médico) explicava pormenorizadamente a um jovem de
óculos com ar neurótico e a uma mulher de meia-idade com cara de esquilo
o efeito do estado não gravitacional sobre a secreção gástrica. O jovem e a
mulher bebiam as palavras dele num silêncio cortado apenas por
exclamações de espanto e admiração. Após ter escutado a dissertação,
comecei a duvidar que o homem calvo fosse realmente médico.
No refeitório ninguém prestava atenção à minha pessoa. Ninguém me
olhava com curiosidade nem parecia reparar em mim. Para eles, um
visitante devia ser a coisa mais natural do mundo. O homem de bata branca
foi o único que se virou uma vez na nossa direção para me perguntar:
− Até quando vai ficar por aqui?
− Duas noites. Regresso a casa na quarta-feira.
− Escolheu uma bela altura para nos visitar. Mas aconselho-o a voltar no
inverno. Fica tudo branco, sabe? É um espetáculo lindíssimo.
− É provável que a Naoko saia de cá antes de nevar – explicou-lhe Reiko.
− Seja como for, o inverno é muito bonito por estas bandas – repetiu o
homem com uma expressão solene.
A cada minuto que passava, tinha mais dúvidas de que ele fosse médico.
− De que falam as pessoas que aqui estão? – perguntei a Reiko. Ela olhou
para mim como se não tivesse compreendido a pergunta.
− De que falamos? De tudo o que possas imaginar. Conversamos acerca
do que aconteceu durante o dia, dos livros que andamos a ler, da previsão
do tempo para o dia seguinte, esse tipo de coisas... De certeza que não
estavas à espera de que alguém se levantasse e desatasse a gritar: «Amanhã
vai chover porque um urso polar devorou todas as estrelas do céu!»
− Não foi isso que quis dizer – esclareci. – Mas falam todos muito
baixinho e isso despertou a minha curiosidade.
− É natural. Pelo simples facto de estarmos num lugar tão tranquilo, toda
a gente se habitua desde logo a falar baixo – declarou Naoko. Depois de ter
arranjado o peixe e juntado as espinhas na beira do prato, limpou a boca
com o guardanapo. – Além do mais, não é preciso levantar a voz. Não
sentimos necessidade de convencer os outros nem de chamar as atenções.
− Tens razão – concordei. Contudo, à medida que comia, dei por mim a
ter saudades do bulício contagiante da residência universitária. Apetecia-me
ouvir gargalhadas, gritos sem sentido, impropérios mil. Apesar de estar
farto da balbúrdia, dificilmente me conseguia descontrair enquanto comia o
meu peixe naquele ambiente estranhamente silencioso. A atmosfera do
refeitório fazia lembrar uma exposição de máquinas industriais. Pessoas
com interesses concretos num determinado campo, todas reunidas a fim de
trocarem informações que só elas próprias são capazes de entender.

***

Logo a seguir ao jantar, já no apartamento, Naoko e Reiko avisaram-me de


que iam utilizar a zona de banhos comum do Bloco C. Desde que me
contentasse com o chuveiro, podia tomar banho no apartamento,
acrescentaram. Respondi que era isso que faria. Depois de elas terem saído,
despi-me, tomei duche e lavei a cabeça. Enquanto secava o cabelo com o
secador, pus a tocar um disco de Bill Evans que tirei da estante. Só nessa
ocasião me dei conta de que era precisamente o disco que eu e Naoko
tínhamos ouvido vezes sem conta no dia dos seus anos. A noite em que
Naoko chorara e eu a abraçara. Tinham-se passado apenas seis meses, mas,
na minha opinião, aquela cena pertencia definitivamente ao passado. De
tanto ter pensado naquilo, a noção do tempo acabara por se distorcer.
Envolvido pelo brilho da Lua, apaguei as luzes, estendi-me no sofá e ali
me deixei estar a ouvir o piano de Bill Evans. O luar que entrava pela janela
prolongava as sombras dos objetos e projetava na parede pálidas pinceladas
de tinta da China diluída. Fui à mochila buscar um frasco metálico com
conhaque e bebi um trago, deixando o líquido deslizar devagar. Senti o
calor escorrer pela garganta até ao estômago, espalhando-se por todo o
corpo. Bebi mais um gole, tapei o frasco e tornei a guardá-lo. A luz da Lua
parecia dançar ao sabor da música.
Cerca de meia hora mais tarde, Naoko e Reiko regressaram dos banhos.
− Assustei-me ao ver a luz apagada e a casa às escuras – admitiu Reiko. –
Pensei que tinhas pegado nas tuas coisas e voltado para Tóquio.
− Brincas? Há tanto tempo que não via uma Lua tão clara que achei
melhor apagar as luzes.
− Assim temos mais ambiente – interveio Naoko. – Olha lá, Reiko, onde é
que guardaste as velas que usámos daquela vez em que faltou a corrente?
Naoko foi até à cozinha, abriu a gaveta e voltou trazendo uma grande vela
branca. Acendi-a, deixei cair a cera num pratinho. Reiko aproveitou para
acender um cigarro. Em redor, para não variar, existia um silêncio absoluto.
Sentados à volta da vela e mergulhados naquele ambiente tranquilo, dir-se-
ia que éramos três náufragos perdidos nos confins do mundo. Na parede, as
sombras silenciosas da Lua sobrepunham-se às sombras oscilantes
produzidas pela luz da vela. Naoko e eu sentámo-nos lado a lado, no sofá;
Reiko instalou-se na cadeira em frente.
− Apetece-te vinho? – perguntou Reiko.
− É permitido beber álcool? – exclamei, surpreendido.
− Na realidade, não – respondeu Reiko, um tanto embaraçada, coçando o
lóbulo da orelha. – Mas fazem vista grossa, regra geral, desde que
estejamos a falar de vinho ou cerveja e não exageremos na quantidade.
Volta e meia, peço a um funcionário conhecido e ele compra-nos uma
garrafita.
− Chegamos a organizar festas e tudo... – acrescentou Naoko.
− Mas que bem – disse eu.
Reiko foi a frigorífico buscar uma garrafa de vinho branco, abriu-a com o
saca-rolhas e trouxe com ela três copos. O vinho era delicioso e leve, quase
parecia ter sido acabado de fazer nas vinhas ali perto. Quando o disco
chegou ao fim, Reiko tirou a guitarra de debaixo da cama e, após ter
afinado o instrumento meticulosamente, começou a tocar baixinho uma
Fuga de Bach. Enganou-se por mais de uma vez, mas tivemos direito a um
Bach interpretado com alma e sentimento. A par da alegria, transmitia uma
sensação de calor humano e intimidade.
− Iniciei-me na guitarra logo que cá cheguei, uma vez que não existe
piano. Aprendi sozinha, como deves ter percebido, e os meus dedos ainda
não estão adaptados. Contudo, adoro dedilhar as cordas desta guitarra. É
pequena, maneirinha... como um quarto pequeno mas confortável.
Reiko tocou outra peça breve de Bach, um andamento extraído de uma
Suite. À luz da vela, bebendo vinho e ouvindo Bach interpretado por Reiko,
senti a calma invadir-me pouco a pouco. Quando a peça chegou ao fim,
Naoko pediu à amiga que tocasse qualquer coisa dos Beatles.
− Está na hora das músicas pedidas – disse Reiko, com uma piscadela de
olho. – Desde o dia em que a Naoko chegou, dei por mim na triste condição
de escrava musical e não faço outra coisa senão tocar temas dos Beatles.
Apesar das queixas, interpretou «Michelle» brilhantemente.
− É uma canção espantosa, não achas? Adoro. – Reiko bebeu um gole de
vinho e fumou um cigarro. – Faz-me pensar na chuva a cair devagarinho
sobre uma vasta planície.
A seguir, interpretou «Nowhere Man» e «Julia». Enquanto tocava, havia
fases em que fechava os olhos e abanava a cabeça. Bebeu mais um pouco
de vinho e fumou outro cigarro.
− Toca «Norwegian Wood» − pediu Naoko.
Reiko trouxe da cozinha um pequeno mealheiro em forma de maneki-
neko32 e Naoko enfiou uma moeda de cem ienes lá dentro.
− O que estão vocês a fazer? – perguntei.
− Fizemos um pacto. De todas as vezes que eu lhe peço para tocar
«Norwegian Wood», desembolso cem ienes – explicou Naoko. – Isto
porque é a minha canção preferida. Funciona como um momento espiritual.
− E eu fico com dinheiro para o tabaco.
Depois de desentorpecer os dedos, Reiko atacou «Norwegian Wood». A
sua interpretação caracterizava-se pela emoção que imprimia ao tema, sem
nunca cair no sentimentalismo. Peguei numa moeda de cem ienes e meti-a
no mealheiro.
− Obrigada – agradeceu Reiko, sorridente.
− Esta canção tem o condão de me deprimir – confessou Naoko. – Não
sei porquê, mas é como se estivesse perdida nas profundezas de um bosque.
Sozinha, ao frio e às escuras e sem ter quem me ajude. Por isso, a menos
que seja eu a pedir, a Reiko nunca toca a dita música.
− Parece que estamos no filme Casablanca – acrescentou Reiko a sorrir.
Depois, interpretou vários temas de bossa nova. Pela minha parte não
tirava os olhos de Naoko. Tal como ela própria dissera na carta, tinha um
aspeto mais saudável do que anteriormente, estava bronzeada, mostrando o
corpo rijo e musculado graças à prática de desporto e às atividades ao ar
livre. Os olhos continuavam graves e transparentes como um lago, e os
lábios tremiam de timidez. No conjunto, porém, a crescente beleza
transformara-a numa mulher madura. Aquele seu lado − cortante como o fio
gelado de uma fina lâmina –, que se tornava percetível nas sombras da sua
beleza e fazia gelar o sangue nas veias, atenuara-se, dando lugar a uma doce
tranquilidade. A nova beleza de Naoko tocou-me fundo. Ao mesmo tempo,
não fui capaz de reprimir uma certa nostalgia só de pensar no que ela
poderia ter perdido ao transfigurar-se tão radicalmente em escassos seis
meses. Nunca mais voltaria a conhecer aquela beleza ensimesmada, própria
de uma adolescente que abrira as asas e voara.
Naoko disse que tinha curiosidade em saber coisas sobre a minha vida.
Contei-lhe da greve na universidade e de Nagasawa. Era a primeira vez que
lhe falava dele. Explicar a estranha personalidade do sujeito, a filosofia de
vida muito própria e a originalidade da sua visão moral não se afigurava
empresa fácil, mas Naoko compreendeu a mensagem. Não referi o facto de
andar com ele na noite, à procura de companhia feminina. Limitei-me a
acrescentar que o único amigo que fizera na residência era pouco vulgar.
Entretanto, Reiko pegara de novo na guitarra para dedilhar a Fuga de Bach,
fazendo pequenas pausas para beber vinho e fumar o seu cigarro.
− Deve ser um rapaz bastante estranho – comentou Naoko.
− Com efeito, é um sujeito estranho – confirmei.
− E tu gostas dele mesmo assim?
− Nem eu próprio sei – respondi. – Acho que sim. Não pertence à
categoria daquelas pessoas de quem gostamos ou não gostamos. De resto,
não pretende agradar a gregos e a troianos. Nesse sentido, podemos dizer
que é honesto. Diria até que a sua atitude tem qualquer coisa de estoico.
− É estranho chamares estoico a um homem que vai para a cama com
tantas mulheres – observou Naoko, sorrindo vagamente. – Com quantas é
que já dormiu?
− Palpita-me que anda na casa das oito dezenas – respondi. – No caso do
Nagasawa, quanto maior o número de engates, menos significado parece ter
o ato em si mesmo, e, no fundo, acho que é precisamente o que ele procura.
− E chamas a isso ser estoico? – voltou ela à carga.
− No modo de ver dele, sim.
Naoko refletiu por breves instantes nas minhas palavras.
− Julgo que o teu amigo está muito pior do que eu.
− Tens toda a razão – concordei. – Com a diferença de que o Nagasawa
engendrou uma teoria que lhe permite racionalizar as suas deformações.
Estamos a falar de um indivíduo extraordinariamente inteligente. Se viesse
aqui parar, punha-se a andar ao fim de dois dias, dizendo qualquer coisa
como: «Isso já eu sei, como é evidente, desculpem lá, mas percebi tudo de
ginjeira.» Está no feitio dele. E as pessoas respeitam-no tal como é.
− Nesse caso, devo ser mesmo tolinha – afirmou Naoko. – Há montes de
coisas que ainda não compreendi bem, incluindo algumas que dizem
respeito a mim própria.
− De tola não tens nada. Acontece o mesmo comigo. Há uma data de
coisas sobre mim que desconheço. Chama-se a isso ser uma pessoa normal.
Naoko pôs as pernas em cima do sofá, dobrou-as e apoiou o queixo nos
joelhos.
− Gostaria de ficar a conhecer-te melhor, Tōru Watanabe − disse ela.
− Sou uma pessoa igual às outras. Nasci numa família normal, recebi uma
educação normal, tenho feições vulgares, penso como o comum dos mortais
– declarei.
− Não foi o teu querido Scott Fitzgerald que disse que não nos podíamos
fiar naqueles que se autoproclamam normais? Li a frase num livro dele que
me emprestaste – disse Naoko, sorrindo com malícia.
− Sem dúvida – concordei. – Mas, no meu caso, não o digo por falsa
modéstia. É como me sinto realmente. Sou uma pessoa normalíssima. Vês
alguma coisa em mim que não seja comum?
− Óbvio! – exclamou Naoko. – Não me digas que nunca deste por isso?!
Porque é que julgas que fui para a cama contigo? Pensavas que estava com
os copos e que dormi contigo como podia ter dormido com outro qualquer?
− Não, até porque não penso no assunto.
Naoko permaneceu calada, a olhar para os seus pés. Sem saber o que
dizer, fui bebendo vinho.
− Com quantas raparigas te deitaste, Tōru? – murmurou ela, como se
tivesse acabado de se lembrar daquilo.
− Com oito ou nove – respondi.
Reiko parou de tocar, deixando cair bruscamente a guitarra no colo.
− Mas ainda nem fizeste vinte anos, certo? Que raio de vida é a tua?
Naoko continuava silenciosa, observando-me com os seus olhos límpidos.
Contei a Reiko como fora a minha primeira vez e como nos tínhamos
separado. Confessei que não me apaixonara por ela. Também lhe disse que,
a seguir, instigado por Nagasawa, começara a dormir com quem calhava.
− Não digo isto para me justificar – expliquei a Naoko −, mas para mim
foi muito difícil. Fazia-me sofrer ver-te todas as semanas, falar contigo, e
saber que o Kizuki era dono do teu coração. Se calhar, foi por isso que tive
sexo com desconhecidas.
Naoko abanou a cabeça várias vezes e tornou a encarar-me.
– Daquela vez, perguntaste-me porque é que não fizera amor com o
Kizuki. Ainda estás interessado?
– Talvez seja uma coisa que eu deva saber – respondi.
– Também acho – disse Naoko. – Os mortos estão mortos, mas nós
continuamos vivos.
Concordei com um aceno. Reiko prosseguiu com os seus exercícios,
repetindo as passagens difíceis.
– Eu queria ir para a cama com ele. – Naoko libertou os cabelos e
entreve-se a brincar com o travessão em forma de borboleta. – E ele queria
dormir comigo, claro. Tentámos repetidas vezes, mas não havia nada a
fazer. Nunca conseguimos. Naquela altura, não entendia porquê, e ainda
hoje continuo sem atinar com a razão. Estava apaixonada pelo Kizuki e não
me importava de perder a virgindade. Teria feito tudo o que ele quisesse.
Mas não fui capaz.
Naoko tornou a prender os cabelos com o travessão.
– Não havia maneira de ficar excitada – murmurou baixinho. – Nunca me
abri para ele. Doía-me horrores sempre que tentávamos. Experimentámos
tudo e mais alguma coisa. Mesmo usando creme e isso, doía-me na mesma.
Por isso, acabava por usar a boca ou os dedos... Entendes o que digo?
Assenti em silêncio.
Naoko contemplou a Lua através da janela. Parecia maior e mais
luminosa do que o habitual.
– Preferia mil vezes não tocar no assunto. Se pudesse, guardaria esta
história a sete chaves no meu coração. Mas não tenho outro remédio.
Preciso de desabafar. Não posso continuar calada, por mais que me custe,
até porque não tenho respostas. Estava toda molhada quando fizemos amor,
lembras-te?
– Sim.
– Na noite em que fiz vinte anos, fiquei húmida mal te vi. E não
conseguia parar de te desejar. Só queria que me abraçasses, que acariciasses
o meu corpo, desejava ser penetrada. Foi a primeira vez que senti uma coisa
do género. Porquê? Como se explica isso? E logo comigo, que amava o
Kizuki de alma e coração.
– Quer dizer que não estavas apaixonada por mim?
– Desculpa – disse Naoko. – Longe de mim ferir os teus sentimentos, mas
quero que percebas. A minha relação com o Kizuki era muito especial.
Conhecíamo-nos desde os três anos. Crescemos juntos e sempre
conversámos acerca de tudo e de nada. Estávamos no quinto ano quando
demos o primeiro beijo e foi maravilhoso! Quando fiquei menstruada pela
primeira vez, fui ter com ele a chorar baba e ranho. Tínhamos uma relação
desse género. Depois da morte dele, perdi por completo a noção de como
estabelecer relação com as pessoas que me rodeiam. Deixei de saber o que
significa amar alguém.
Naoko fez menção de pegar no copo, mas calculou mal o gesto e acabou
por entornar o vinho pelo chão, sujando a alcatifa. Pus-me de gatas, agarrei
no copo e tornei a pô-lo em cima da mesa. Perguntei a Naoko se queria
mais um pouco de vinho. Ela permaneceu calada por instantes e depois
rompeu num choro convulsivo. Curvada para a frente, com o rosto nas
mãos, soluçava com a mesma violência que lhe vira na famigerada noite.
Reiko abandonou a guitarra, aproximou-se dela e pôs-se a fazer-lhe festas
nas costas. Quando a amiga lhe rodeou os ombros com os braços, Naoko
encostou a cabeça ao seu peito como se fosse um bebé.
– Tōru – pediu Reiko, virando-se para mim –, desculpa, mas importas-te
de sair durante um quarto de hora e ir dar uma volta? Talvez seja melhor.
Assenti, levantei-me e vesti uma camisola por cima da camisa.
– Perdoa-me – disse eu a Reiko.
– Não digas isso, a culpa não é tua. Quando regressares, já estará tudo
mais calmo – afirmou ela, piscando-me o olho.
Caminhei sem destino naquele terreno iluminado por uma Lua
estranhamente irreal, aventurando-me bosque adentro. Os ruídos em volta
produziam uma estranha vibração ao luar. O som amortecido dos meus
passos parecia provir da direção oposta, como se caminhasse no fundo do
mar. A intervalos regulares, ouvia um ligeiro rumor seco nas minhas costas.
O pequeno bosque estava envolto numa atmosfera sufocante, dando a ideia
de que os animais noturnos aguardavam, imóveis e retendo a respiração,
que eu me afastasse.
Deixei para trás o arvoredo, fui sentar-me na encosta e dali observei o
edifício onde Naoko vivia. Era fácil identificar a janela. Bastava procurar a
única luz que tremulava ao longe. Rendi-me a essa fugaz claridade,
querendo a todo o custo protegê-la e cobri-la com as mãos. Fiquei durante
muito tempo de olhos cravados nessa luz ténue e incerta, tal como Jay
Gatsby contemplava, noite após noite, a pequena luz do outro lado da baía.

***

Regressei ao apartamento meia hora mais tarde. Ao chegar à entrada do


edifício, ouvi Reiko tocar guitarra. Subi as escadas pé ante pé e bati à porta.
Dentro de casa, nem sombra de Naoko; Reiko estava sozinha, sentada na
almofada, a tocar. Apontou para o quarto. O gesto dava a entender que
Naoko se encontrava ali. Pousando a guitarra no chão, Reiko sentou-se no
sofá e pediu-me que lhe fizesse companhia. A seguir, repartiu o vinho que
restava na garrafa pelos nossos dois copos.
– Ela está bem – afirmou, dando-me uma pancadinha no joelho. – Se a
deixarmos sozinha um bocado, acabará por sossegar. Não te preocupes. A
conversa tocou-lhe numa corda sensível. Que tal irmos dar um passeio?
Reiko e eu percorremos lentamente o carreiro iluminado pelos candeeiros
e, ao chegarmos aos campos de ténis e de básquete, sentámo-nos num dos
bancos. Ela tirou uma bola de básquete cor de laranja de debaixo do banco e
fê-la girar nas mãos. Passados uns instantes, perguntou-me se eu jogava
ténis. Respondi que sim, embora jogasse mal.
– E basquetebol?
– Digamos que não é a minha especialidade.
– Afinal, qual é a tua especialidade? Tirando ir para a cama com miúdas,
claro. – Quando Reiko se riu, apareceram as tais rugas no canto dos olhos.
– Não tenho nenhuma especialidade em particular – ripostei, um nadinha
magoado.
– Não te irrites. Foi uma brincadeira. Agora, falando a sério, diz-me lá:
qual é o teu forte?
– Não sou bom em nada. O que acontece é que gosto de fazer certas e
determinadas coisas.
– O quê, por exemplo.
– Caminhadas, nadar, ler.
– Vejo que preferes a solidão.
– Acho que sim, tens razão – admiti. – Os jogos de equipa nunca me
atraíram por ali além. Para ser franco, não só não lhes acho piada como
perco rapidamente o interesse.
– Nesse caso, deves vir até cá no inverno. Fazemos esqui nos bosques e
nos trilhos. Aposto que irias gostar de passar um dia inteiro na neve e a suar
em bica – disse Reiko, examinando a mão direita à luz dos candeeiros de
rua, como se estudasse um instrumento musical antigo.
– É costume a Naoko ficar naquele estado? – perguntei.
– Já aconteceu. – Reiko observava agora atentamente a mão esquerda. –
Tem dias. Quando fica descontrolada, desata a chorar. Mas podemos dizer
que há males que vêm por bem, uma vez que está a exteriorizar as suas
emoções. O perigo é quando ela não consegue deitar tudo cá para fora.
Nessa altura, as emoções acumulam-se lá dentro, solidificam aos poucos e
acabam por morrer. É terrível quando isso sucede.
– Será que eu disse o que não devia?
– Nem pensar. Não te preocupes, porque não disseste nada de errado. Seja
o que for que tenhas para dizer, di-lo francamente. É a melhor política.
Mesmo que te arrisques a deixar alguém à beira de um ataque de nervos,
como há pouco. A longo prazo, é o melhor método. Se quiseres que a
Naoko recupere, faz isso. Como te disse ao princípio, não se trata tanto de a
querer ajudar, mas de conseguir que, através da recuperação dela, te ajudes
a ti próprio. É assim que as coisas funcionam. Em resumo, enquanto cá
estiveres, deves ser o mais honesto possível. No mundo exterior, as pessoas
nem sempre usam da maior franqueza. Concordas comigo?
– Tens razão – disse eu.
– Ao longo destes últimos sete anos, vi chegar e partir muito boa gente –
prosseguiu Reiko. – Talvez mais do que gostaria. Por isso, sei
instintivamente se uma pessoa tem ou não hipóteses de ficar curada. No
caso da Naoko, não estou cem por cento certa. Sou incapaz de adivinhar o
que lhe acontecerá. Tanto pode ficar curada no mês que vem como demorar
anos. Portanto, não estou em condições de te dar conselhos no que toca à
Naoko. Sejam sinceros e ajudem-se reciprocamente.
– Porque será que só com a Naoko é que não consegues adivinhar o que
vai acontecer?
– Talvez porque gosto dela. Se calhar, sinto dificuldade em compreendê-
la por causa dos elos que nos ligam. Gosto da Naoko a sério, sabes? Além
do mais, e isto é outra história, no caso dela os problemas formam uma
intrincada teia de fios emaranhados. Soltar esses fios pode levar uma data
de anos, mas também é possível que se desenredem da noite para o dia. Por
isso não te posso dizer nada.
Reiko pegou novamente na bola de básquete, fê-la girar nas mãos e
atirou-a ao solo.
– O mais importante é não teres pressa – disse Reiko, batendo a bola. – É
um conselho que te dou. Não te precipites. Mesmo que a situação esteja de
tal modo confusa que não saibas como sair dela, evita perder a paciência e
forçar as coisas. Tens de desenredar os fios, um por um, demore essa
operação o tempo que demorar. Achas-te capaz?
– Vou tentar.
– Mesmo que leve o seu tempo, é possível que ela nunca recupere
completamente. Tens consciência disso?
Assenti com a cabeça.
– A espera é difícil – afirmou Reiko, continuando a bater a bola. –
Sobretudo com a tua idade. Significa que terás de esperar para ver se ela
melhora. Sem prazo nem garantia. Achas que vais conseguir? Amas a
Naoko a esse ponto?
– Não sei – reconheci sinceramente. – Tal como a Naoko, também não sei
ao certo o que significa amar outra pessoa, se bem que ela sinta isso de
forma diferente. Mas vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance. Senão,
eu próprio irei sentir-me ainda mais perdido. Como disseste há pouco, a
Naoko e eu precisamos de nos salvar um ao outro, e é esse o único caminho
para a nossa salvação.
– E vais continuar a deitar-te com outras mulheres?
– Também não sei o que farei nesse capítulo – respondi. – O que me
aconselhas? Devo esperar por ela e contentar-me com a masturbação?
Adianto já que não sou muito bom a controlar esse género de coisas.
Reiko pousou a bola no chão e deu-me umas pancadinhas amistosas no
joelho.
– Olha, não te estou a sugerir que deixes de ir para a cama com outras
mulheres. Se achas que é essa a atitude certa, tudo bem. No fim de contas, a
vida é tua e tu é que tens de decidir. O que eu quero dizer é que talvez seja
melhor não te desgastares de forma contrária às leis da natureza. Seria um
autêntico desperdício. O período entre os dezanove e os vinte anos é por
demais importante na formação da personalidade, e infligir a ti mesmo
semelhante experiência na formação da personalidade numa fase dessas
levará forçosamente ao arrependimento, à medida que os anos forem
passando.
Respondi que iria refletir no assunto.
– Já tive vinte anos há muitas luas – acrescentou ela. – Acreditas?
– Claro que acredito.
– Acreditas mesmo?
– Acredito mesmo – afirmei, sorrindo.
– No meu tempo também era bonita; nada que se comparasse com a
Naoko, mas era. Não tinha tantas rugas.
Confessei-lhe que gostava imenso das suas rugas. Ela agradeceu-me.
– Daqui em diante, aconselho-te a nunca dizeres às mulheres que as rugas
te fascinam. Pela minha parte, gosto do elogio, mas sou uma exceção.
– Estarei atento – respondi-lhe.
Reiko sacou a carteira do bolso das calças, tirou lá de dentro uma
fotografia a cores que mostrava uma linda menina dos seus dez anos e
mostrou-ma. Estava vestida para enfrentar a neve e sorria, com os esquis
calçados.
– Não é bonita, a minha filha? – perguntou Reiko. – Enviou-me esta foto
em janeiro. Já anda no quarto ano.
– Tem um sorriso parecido com o teu – declarei, devolvendo-lhe a
fotografia.
Ela guardou a carteira no bolso e fungou ao de leve, antes de acender um
cigarro.
– Quando era mais nova, queria ser pianista profissional. Tinha algum
talento e toda a gente reconhecia isso. Cresci sabendo o que era ser
incentivada por meio mundo. Ganhei vários concursos, tive as melhores
notas no conservatório e, uma vez com o canudo na mão, já tinha
praticamente tudo tratado para continuar os meus estudos na Alemanha. Isto
para dizer que tive uma adolescência perfeita. Corria tudo
maravilhosamente, e as pessoas à minha volta contribuíam para tal. Um dia,
porém, aconteceu uma coisa estranha e o comboio começou a descarrilar.
Andava eu no quarto ano do conservatório, a ensaiar dia e noite para um
concurso importante. De um momento para o outro, deixei de conseguir
mexer o dedo mindinho da mão esquerda. Não sei dizer-te porquê, mas
ficou totalmente paralisado. Experimentei massajá-lo, meti o dedo dentro de
água quente, estive três dias sem tocar, mas de nada serviu. Aterrada, acabei
por me dirigir ao hospital. Submeti-me a uma série de exames, mas nenhum
médico foi capaz de fazer um diagnóstico preciso. Não detetaram nenhuma
anomalia; pelos vistos, o nervo estava bom, logo, não havia qualquer razão
para não o conseguir mover. Tudo apontava para causas psicológicas,
devido ao stresse provocado pelo anunciado concurso musical. Fui então à
procura de um psiquiatra. Aconselhou-me a ficar afastada do piano durante
uma temporada.
Reiko inalou o fumo do cigarro e depois expirou fundo. A seguir, inclinou
várias vezes o pescoço numa espécie de exercício para aliviar a tensão.
− Passei vários meses a recuperar na casa da minha avó, em Izu. Desisti
do concurso e achei por bem descansar, fazendo apenas o que me apetecia.
Em bom rigor, não consegui deixar de pensar no piano. Fizesse eu o que
fizesse, havia perguntas que não me saíam da cabeça. E se nunca voltasse a
mexer o mindinho? Como poderia viver? Passava dias obcecada com esses
pensamentos. De resto, não podia ser de outra forma. Até à data, a minha
vida resumira-se ao piano. Começara a aprender a tocar aos quatro anos e,
desde então, a minha vida girava em torno daquele instrumento. Por
exemplo, com medo de me magoar, nunca fiz trabalhos domésticos. Além
do mais, a única preocupação das pessoas à minha volta era o meu talento.
Experimenta tirar o piano a uma menina que cresceu agarrada a ele! O que
fica?
«E foi então que os meus parafusos saltaram e a minha mente se
transformou num perfeito caos. Bum! Ficou tudo às escuras.
Reiko deitou fora o cigarro, pisou-o até o apagar de vez e tornou a mover
a cabeça.
− Foi o fim do meu sonho de ser pianista. Passei dois meses internada
num hospital psiquiátrico. Pouco depois, recuperei a mobilidade do dedo e
pude regressar ao conservatório para terminar os estudos. Porém, alguma
coisa tinha desaparecido. Era como se uma massa de energia se tivesse
dissipado interiormente. Os médicos disseram que tinha o sistema nervoso
enfraquecido e aconselharam-me a desistir da ideia de me tornar
concertista. Uma vez formada, comecei a dar aulas de piano em casa a
alunos particulares. Mas isso representou para mim um sofrimento enorme.
A minha vida terminara após ter feito vinte anos! Cruel, não achas? Tinha o
futuro todo à minha frente e, de repente, ficara de mãos vazias. Nem
aplausos, nem palavras de incentivo, nem louvores! Fechada em casa todo o
santo dia, a ensinar sonatinas e exercícios de solfejo a crianças pequenas.
Sofria horrores e chorava de manhã à noite. Sentia-me imensamente
mortificada de todas as vezes que outras pessoas, menos dotadas que eu,
ficavam em segundo lugar num concurso de piano ou davam um recital
numa sala de concertos.
«Os meus pais tratavam-me com mil cuidados, como se eu fosse feita de
vidro, mas eu bem via que se sentiam dececionados. Pouco tempo antes, a
filha era o seu grande orgulho, e acabara por ser internada num hospital
psiquiátrico! Nem sequer tinham grandes hipóteses de me ver casada.
Quando vivemos debaixo do mesmo teto, torna-se difícil eludir sentimentos
deste género. E eu odiava isso. Receava sair à rua porque tinha a impressão
de que os vizinhos faziam comentários nas minhas costas. E então a cena
repetiu-se. Bum! O parafuso soltou-se, os fios enredaram-se novamente e
ficou tudo escuro na minha mente. Tinha vinte e quatro anos. Dessa
segunda vez, passei sete meses numa casa de repouso. Não foi nesta, era um
lugar mais normal, por assim dizer, rodeado de altos muros e com as portas
trancadas. Um autêntico pardieiro, onde não havia piano... Na época,
lembro-me de me sentir perdida, sem saber o que fazer. Só pensava em sair
dali quanto antes. Apavorada com a ideia de morrer naquelas paragens, lutei
com todas as minhas forças e consegui recuperar. Sete meses é muito
tempo. Foi nessa altura que comecei a ganhar rugas.
Reiko sorriu, esticando os lábios.
− Após ter abandonado o hospital, conheci um rapaz e casei-me com ele.
Era um dos meus alunos, um ano mais novo, e trabalhava numa empresa de
construção aeronáutica. Um homem às direitas. Falava pouco, mas era
meigo e sincero. Ao fim de seis meses, pediu-me em casamento. Sem mais
nem menos, quando estávamos a tomar chá, um belo dia, depois da aula.
Inacreditável, não achas? Até aí, nunca saíramos os dois nem sequer
déramos a mão. Fiquei sem palavras. Depois, disse-lhe que era impossível
casar com ele. Expliquei que o achava uma ótima pessoa e um rapaz
simpatiquíssimo, mas que, dadas as circunstâncias, não podia ser sua
mulher. Uma vez que ele queria saber a razão por trás da minha recusa,
contei-lhe: o facto de ter sido internada duas vezes devido a problemas
psiquiátricos, enfim, tudo ao pormenor. Conversámos acerca das causas, do
estado em que me encontrava, sem esquecer a possibilidade de isso tornar a
acontecer-me. Ele pediu-me tempo para pensar, e eu aconselhei-o a refletir
calmamente. Quando voltou, na semana seguinte, manifestou a sua intenção
de casar comigo. Propus-lhe que esperássemos três meses. Se depois disso
ele ainda estivesse interessado em mim, o casamento iria para a frente.
«Entretanto, saíamos juntos uma vez por semana. Íamos a vários sítios e
conversávamos sobre tudo e mais alguma coisa. Quando me dei conta,
estava apaixonadíssima por ele. A seu lado, sentia-me tranquila e dava-me a
sensação de que recomeçara a viver. Esqueci as minhas antigas angústias.
Pelo facto de não poder tornar-me pianista profissional ou por ter sido
internada num hospital psiquiátrico, a vida não acabara. Ainda me
esperavam coisas maravilhosas e desconhecidas. E, pelo simples facto de
me ter feito sentir assim, estava-lhe imensamente grata. Passados três
meses, comunicou-me que continuava decidido a casar comigo. Disse-lhe
então: “Se quiseres fazer amor comigo, não me importo. Nunca fui para a
cama com ninguém, mas gosto de ti. Casar-me contigo é outra história. Ao
casares comigo, vais ser obrigado a partilhar os meus problemas. Será
muito mais duro do que possas imaginar. Entendes?”
«Ele respondeu-me que não se importava, que a sua intenção nunca fora
simplesmente dormir comigo, mas casar-se e partilhar tudo. Mais, que
desejava isso de todo o coração. E é preciso ver que estava a ser honesto,
pois era daquelas pessoas que dizem sempre o que pensam e honram os
seus compromissos. “Muito bem”, disse eu, “vamos casar-nos.” Que mais
poderia eu ter feito? A cerimónia celebrou-se quatro meses depois, se não
estou em erro. Por causa do casamento, entrou em litígio com os pais. O
meu marido pertencia a uma família tradicional da zona rural de Shikoku.
Os pais mandaram investigar o meu passado e descobriram que eu estivera
internada duas vezes. Resultado: não só se manifestaram contra o
casamento como cortaram relações. Por isso, não tivemos direito a uma
cerimónia tradicional. Limitámo-nos a ir ao registo e passámos duas noites
em Hakone. Correu tudo lindamente. Aos nossos olhos, tudo era motivo de
felicidade. Afinal, acabei por me manter virgem até ao dia do casamento,
tinha então vinte e cinco anos.
Reiko suspirou e tornou a pegar na bola de básquete.
− Acreditava piamente que, desde que ele estivesse por perto, as coisas
correriam bem – acrescentou Reiko. – Que o meu estado não pioraria nunca
tendo-o ao meu lado. O mais importante, no que respeita a esta doença, é o
sentimento de confiança. Pensava que podia deixar o meu destino nas suas
mãos. Que, no caso de piorar, que é como quem diz, de o parafuso voltar a
soltar-se, ele perceberia e trataria de o apertar, com o seu proverbial carinho
e toda a paciência do mundo. Enquanto existisse entre nós aquela confiança,
a minha doença não tornaria a dar sinal. Aquele bum! não se repetiria.
Andava feliz da vida. Sentia que alguém me resgatara de um mar revolto e
gélido, enrolando-me num cobertor e ocupando-se do meu bem-estar.
«Dois anos depois do casamento, fui mãe e, a partir daí, a minha vida
passou a girar em função da minha filha. Graças a ela, esqueci-me quase
por completo da doença. Acordava de manhã, executava as tarefas
domésticas, cuidava da bebé e, quando o meu marido chegava a casa, servia
o jantar. Aqui tens a minha rotina, dia após dia. Era feliz. Provavelmente,
foi a época mais feliz da minha vida. Quanto tempo durou? Até aos meus
trinta e um anos. Então, deu-se nova explosão. Bum!
Reiko acendeu um cigarro. O vento acalmara. O fumo erguia-se a direito,
acabando por se desvanecer no meio das trevas. Dei-me conta das inúmeras
estrelas que brilhavam no firmamento.
− O que sucedeu? – perguntei.
− Bom – respondeu Reiko −, aconteceu uma coisa estranhíssima. Como
se alguém me tivesse montado uma armadilha. Ainda hoje sinto calafrios
quando penso nisso. – Esfregou a testa com a mão livre. – Mas não é justo.
Eu a falar sem descanso acerca da minha pessoa, quando tu vieste até cá por
causa da Naoko.
− Estou interessadíssimo na tua história – repliquei. – Se não te importas,
gostaria de conhecer o resto.
− Bom, a minha filha entrou para o infantário e, aos poucos, recomecei a
tocar piano − pegou ela de novo no fio da meada. – Comecei a tocar peças
curtas de Bach, Mozart e Scarlatti. Ao fim de tanto tempo, como seria de
esperar, a minha sensibilidade ressentiu-se. Os meus dedos não se moviam
como dantes. Mas estava satisfeita, apesar de tudo. Podia tocar piano outra
vez! Ao fazê-lo, compreendi até que ponto amava aquele instrumento. E o
mais maravilhoso de tudo era que podia interpretar música para mim
mesma.
«Como já te disse, tocava piano desde os meus quatro anos, e, pensando
bem, tal nunca acontecera antes. Sempre tocara com o propósito de passar
nos exames, por se tratar de uma composição pedida, ou para impressionar
terceiros. Atenção, não digo que não seja importante para dominar o
instrumento. Contudo, a partir de uma certa idade, precisamos de executar a
música para nós próprios. Afinal, a música é isso. Foi preciso viver trinta e
um anos e abandonar o circuito de elite para entender um ponto fulcral.
Levava a minha filha ao infantário, despachava as coisas que tinha para
fazer em casa e, depois, interpretava durante uma ou duas horas as minhas
peças favoritas. Até aí, tudo bem. Segues o meu raciocínio?
Assenti com a cabeça.
− Certo dia, apareceu-me lá em casa uma vizinha que só conhecia de
vista. Vinha perguntar-me se eu estaria disposta a dar lições de piano à filha.
Chamo-lhe vizinha, mas a mulher ainda vivia longe, e eu nem sequer
conhecia a miúda. Segundo ela, a filha costumava passar diante da nossa
casa e, ao ouvir-me tocar piano, ficava emocionada. Acresce que já me
tinha visto na rua e dizia sentir uma grande admiração por mim. Andava no
sexto ano e já tivera aulas de piano, mas a escola ficara sem professor.
«Recusei. Disse-lhe que estivera muitos anos sem tocar e que não
hesitaria em aceitar a filha, caso se tratasse de uma principiante, mas que
estava fora de questão ensinar uma aluna que recebera aulas antes. A
senhora pediu-me então que aceitasse encontrar-me ao menos com a filha
dela. Diante de tamanha insistência, acabei por responder que, visto que se
tratava de um simples encontro, não via mal nisso. Três dias depois, a
jovenzinha apresentou-se lá em casa, sozinha. Era linda de morrer. Possuía
uma beleza angelical. Foi a primeira vez na vida que vi uma rapariga tão
bonita. Tinha cabelos compridos, preto tinta da China, braços e pernas
compridos e elegantes, olhos brilhantes, lábios finos e macios, como se
acabassem de ser desenhados. Quando a vi, a sua beleza deixou-me sem
palavras. Sentou-se no sofá, e a sala pareceu transformar-se como que por
magia. Fiquei deslumbrada ao olhar para ela. Era uma rapariga desse
género. Ainda me lembro como se fosse hoje.
Reiko semicerrou os olhos por um momento, como se estivesse a recordar
a cena.
− Conversámos cerca de uma hora enquanto tomávamos café. Abordámos
variadíssimos assuntos. Falámos de música, da escola... Parecia ser uma
jovem inteligente. Sabia manter um diálogo, as suas opiniões eram claras e
perspicazes, e possuía um talento natural para atrair o interesse do seu
interlocutor. Chegava a ser assustador. Porque seria? Naquela época, não
alcancei a origem daquilo, limitando-me a pensar vagamente que se devia à
sua inteligência. Em resumo, influenciada pela juventude e pela beleza dela,
dei por mim a considerar-me uma pessoa rude e inferior. Era como se os
meus pensamentos negativos em relação a ela fossem fruto da minha mente
perversa e suja.
Reiko abanou a cabeça repetidamente.
− Se eu fosse assim tão bonita e inteligente, teria sido uma pessoa mais
normal. Que poderia aquela rapariga querer, além da beleza e dos dotes do
intelecto? Sendo adorada por toda a gente, porque sentia ela necessidade de
atormentar os seres inferiores, mais fracos? Vendo bem, não tinha motivos
para tal, não te parece?
− Ela fez-te mal?
− Vamos por partes. Para começar, a dita menina era mentirosa
compulsiva e mitómana. Um caso patológico, sem sombra de dúvida.
Inventava as histórias mais mirabolantes. E, à medida que dava asas à sua
imaginação, acabava ela própria por se convencer da veracidade de tudo o
que dizia. Graças ao raciocínio assustadoramente célere, adiantava-se às
pessoas e modificava o discurso a seu bel-prazer, a fim de que o interlocutor
não se desse conta. Da sua boca só saíam mentiras. Não passava pela
cabeça da maioria das pessoas que uma jovem tão bonita fosse capaz de
mentir com quantos dentes tinha. Eu fui uma das pessoas enganadas. Pela
parte que me toca, andei um ano e meio a ser iludida, fruto da capacidade
de efabulação dela. É incrível como pude ser tão idiota!
− Que tipo de mentiras te contou?
− De todos os tipos. – Reiko sorriu com sarcasmo. – Quando se prega
uma mentira, há que inventar uma série de outras petas para encobrir a
primeira. Chama-se a isso mitomania. Na maioria dos casos, as mentiras
que pregam são inofensivas, e as pessoas dão-se conta disso mesmo. Mas
no caso desta menina era diferente. Inventava histórias para defender os
seus interesses, sem qualquer escrúpulo de magoar os outros. Mentia em
função da pessoa que tinha pela frente. Não mentia por sistema à mãe nem
às amigas do peito, sabendo que dariam pela farsa, ou então, quando o
fazia, tomava todas as precauções possíveis. Contava mentiras que nunca
poderiam ser detetadas. No caso de a verdade vir à tona, arranjava uma
desculpa esfarrapada ou pedia encarecidamente desculpa, com os belos
olhos repletos de lágrimas. Escusado será dizer que ninguém conseguia
zangar-se com ela.
«Até hoje, continuo sem entender se me elegeu para vítima das suas
mentiras ou como tábua de salvação. Como é óbvio, já não tem
importância, uma vez que terminou tudo, e do modo que sabemos.
Fez-se um breve silêncio.
− Ela repetiu tudo o que a mãe me tinha dito. Contou que se emocionava
sempre que passava diante de nossa casa e me ouvia tocar piano, que se
cruzara comigo meia dúzia de vezes na rua e me venerava. Utilizou o
vocábulo «veneração». Corei. Imagina: ser objeto de veneração por parte de
uma rapariga mais bela do que sei lá o quê! E eu que não desconfiei de
nada! Claro que já estava na casa dos trinta, não era especialmente bonita
nem inteligente como ela, nem tinha dotes específicos. No entanto, alguma
coisa dentro de mim a atraíra. Algo que ela não tinha, estou em crer. Deve
ter sido o que despertou o seu interesse. Só agora me apercebo disso. Podes
ter a certeza de que não estou a vangloriar-me.
− Não, compreendo-te muito bem.
− A seguir, perguntou-me se poderia tocar uma partitura que tinha trazido.
Concordei e pedi-lhe que a tocasse. Executou uma Invenção de Bach. Achei
a interpretação interessante. Ou deveria antes dizer estranha? Seja como for,
era fora do vulgar. Faltava-lhe destreza, convém acrescentar. A jovenzinha
nunca estudara numa escola de música e, além disso, tivera aulas
particulares sem qualquer regularidade. Precisava de praticar. Se realizasse
provas práticas de admissão ao conservatório com uma interpretação
daquelas, seria rejeitada na hora. Ao mesmo tempo, a interpretação tinha
qualquer coisa de cativante. Resumindo, noventa por cento eram sofríveis,
mas os dez por cento restantes revelavam uma certa qualidade musical.
Vendo bem, tratava-se de uma Invenção de Bach! Na realidade, a minha
curiosidade em relação a ela adensara-se.
«Claro que o que não falta são jovens capazes de interpretar Bach com
virtuosismo, mil vezes melhor do que ela. Todavia, essas interpretações, na
sua maioria, revelam-se inócuas. São insípidas e vazias. Apesar de a sua
técnica ser deficiente, possuía algo que atraía as pessoas, ou, pelo menos,
que me atraía a mim. Imaginei então que valeria a pena tê-la como aluna.
Como calculas, seria impossível corrigir alguns dos erros e transformá-la
numa profissional. Mas talvez fosse possível fazer dela uma pianista capaz
de sentir prazer em tocar piano, capaz de tocar para seu próprio deleite,
como então acontecia comigo, e ainda acontece. No fim de contas, foi um
desejo vão. Ela não era do género de fazer fosse o que fosse discretamente,
apenas para si mesma. Era uma menina que utilizava meticulosamente os
expedientes à sua disposição, no sentido de granjear a admiração das
pessoas. Sabia com exatidão o que fazer para ser elogiada e admirada. Mais,
sabia como chamar a minha atenção. Tinha tudo pensado ao pormenor.
Aposto que deve ter treinado inúmeras vezes os trechos que desejava que eu
ouvisse. Parece que estou a vê-la.
«Agora que tenho consciência de tudo, ainda assim não deixo de me
espantar com a sua maravilhosa execução. Se voltasse a ouvi-la, estou certa
de que me comoveria novamente. Apesar de todas as suas mentiras e dos
imensos defeitos. Acredita que há muito disso neste mundo.
Após ter controlado um ataque de tosse seca, Reiko interrompeu a
narrativa e permaneceu calada.
− Afinal, sempre acabaste por aceitá-la como aluna? – perguntei.
− Sim. Recebia-a uma vez por semana. Ao sábado de manhã, para não
coincidir com os dias de escola. Era a aluna ideal: nunca faltava nem
chegava atrasada. Praticava os exercícios que lhe mandava como trabalho
de casa e, a seguir, fazíamos um intervalo para conversar e comer doces... –
Neste ponto, Reiko consultou o relógio de pulso, como se tivesse acabado
de se lembrar de alguma coisa. – Acho melhor regressarmos, pode ser?
Estou preocupada com a Naoko. Ou já te esqueceste dela?
− Claro que não – respondi, a rir. – A verdade é que o teu relato prendeu-
me a atenção.
− Se quiseres saber o resto, conto-te amanhã. É uma história demasiado
longa para ser contada de uma só vez.
− Já pareces a Xerazade.
− Por este andar, nunca mais regressas a Tóquio – afirmou Reiko, rindo-
se também.
Atravessámos o bosque e voltámos pelo mesmo caminho. Tanto a vela
como o candeeiro da sala de estar estavam apagados. A porta do quarto
continuava aberta, e a luz da mesinha de cabeceira alastrava até à sala.
Fomos dar com Naoko sentada no sofá, rodeada pela penumbra. Tinha os
pés em cima do sofá e os joelhos dobrados. Reiko foi ter com ela e pôs-lhe
a mão na cabeça.
− Estás melhor?
− Sim, já me sinto bem. Desculpa a trabalheira que te dei – disse Naoko
num fio de voz. Depois, virando-se para mim, justificou-se igualmente. –
Assustaste-te?
− Um bocadinho – respondi, sorrindo.
− Anda cá – pediu-me. Logo que me sentei ao lado dela, encostou-se a
mim, como se tencionasse dizer-me um segredo, e deu-me um beijo ao de
leve. – Desculpa – repetiu em voz baixa ao meu ouvido. Depois afastou-se.
– Às vezes, nem eu própria entendo o que se passa – confessou.
− Acontece-me o mesmo, acredita – disse-lhe eu.
Naoko olhou para mim com um sorriso.
− Se não te importas, gostaria que me contasses mais coisas sobre ti –
pedi-lhe. – Sobre a vida que levas aqui. Como é que passas os dias, com
quem te dás...
Naoko descreveu-me o seu dia a dia em meia dúzia de frases curtas, mas
com grande clareza. Acordava às seis da manhã, tomava o pequeno-almoço
em casa e, depois de limpar o galinheiro, costumava trabalhar no campo.
Cultivavam legumes. Depois de almoço, e durante uma hora, tinha encontro
marcado com o médico ou participava em discussões de grupo. A seguir,
tinham a tarde por sua conta, havendo um plano de atividades ao ar livre e
desportos vários. Naoko frequentava aulas de francês, tricô, piano e História
da Antiguidade.
− A Reiko anda a ensinar-me a tocar piano – declarou ela. – E também
tenho aulas de guitarra. Aqui, somos professores e alunos ao mesmo tempo.
Quem é fluente em francês ensina francês, quem era professor de ciências
sociais ensina história, quem sabe tricotar ensina a fazer tricô. Com a ajuda
de todos, acabámos por criar uma pequena escola. Para mal dos meus
pecados, não há nada que eu possa ensinar...
− Nem eu.
− De qualquer forma, sinto muito mais vontade de me aplicar aqui do que
tinha na universidade. Não só estudo como isso me diverte.
− O que fazes depois do jantar?
− Converso com a Reiko, leio livros, vou ter com outras pessoas ao
quarto para jogar, e assim – respondeu Naoko.
− Eu toco guitarra e escrevo as minhas memórias – aproveitou Reiko para
contar.
− As tuas memórias?
− Estou a brincar. – Reiko soltou uma gargalhada. – Temos por hábito ir
para a cama às dez da noite. Não achas que levamos uma vida saudável?
Dormimos como pedras.
Olhei para o relógio. Faltavam poucos minutos para as nove.
− Nesse caso, quer dizer que daqui a nada começam a ter sono.
− Hoje é diferente, podemos ficar acordadas até mais tarde – disse Naoko.
– Não nos vemos há muito e quero conversar contigo. Conta mais coisas.
− Há bocado, quando estava sozinho, comecei a pensar nos velhos
tempos – referi. – Recordas-te de quando o Kizuki e eu fomos visitar-te ao
hospital? Aquele que ficava à beira-mar? Quando é que aconteceu isso? No
verão do sexto ano?
− Foi quando fiz a operação ao tórax – declarou Naoko, sorrindo. –
Lembro-me perfeitamente. Vocês foram de moto. Quando lá chegaram, os
chocolates que me ofereceram estavam todos derretidos. Só a muito custo
consegui comê-los! Não tens a impressão de que aconteceu há séculos?
− Tens razão. Na época, se bem me lembro, escrevias longos poemas.
− Qualquer rapariga daquela idade escreve versos – afirmou Naoko com
um riso terno. – A que propósito te lembraste disso agora?
− Não sei. Lembrei-me. De repente, veio-me à memória o cheiro do mar e
dos loendros – disse eu. – O Kizuki foi visitar-te muitas vezes?
− Raramente. Chegámos a discutir por causa disso. Apareceu por uma
ocasião, sozinho, depois foi contigo, e nunca mais tornou a pôr lá os pés.
Horrível, não achas? Da primeira vez não parava quieto e foi-se embora
passados dez minutos. Levou-me laranjas. Grunhiu qualquer coisa,
descascou-me uma laranja, continuou a queixar-se e partiu pouco depois.
Disse que não tinha estômago para hospitais. – Naoko soltou uma
gargalhadinha. – Ainda era muito infantil nesse tipo de coisas, não te
parece? Haverá alguém que goste de hospitais? Por isso mesmo é que as
pessoas vão visitar os doentes aos hospitais. Para lhes dar ânimo. Mas não
havia maneira de ele entender uma coisa tão básica.
− Mas quando fomos visitar-te não aconteceu nada. Ele comportou-se
normalmente.
− Porque tu lá estavas – retorquiu Naoko. – À tua frente, comportava-se
dessa forma. Esforçava-se por não dar parte fraca. O Kizuki gostava muito
de ti, podes crer. Fazia questão de mostrar apenas o seu lado bom. Comigo
era outra história. Descontraía-se. Na realidade, tinha um humor instável.
Por exemplo, num minuto fazia as honras da conversa, e no minuto seguinte
ficava deprimido. Parecia um cata-vento. Foi sempre assim, desde criança.
O que não impedia que quisesse mudar, que se esforçasse por melhorar.
Naoko ajeitou as pernas no sofá.
− Tentava mudar e superar-se, e quando não conseguia, irritava-se ou
ficava triste. Apesar de ter muitas virtudes, nunca confiou em si mesmo e
passou a vida a pensar: «Tenho de fazer isto», ou: «Devo mudar aquilo.»
Pobre Kizuki!
− Sim, tal como tu dizes, esforçava-se por me mostrar apenas o seu lado
bom, e nesse aspeto conseguiu os seus intentos. Garanto-te que só lhe vi
qualidades.
Naoko sorriu.
− Se ele pudesse ouvir-te, ficaria feliz da vida. Eras o único amigo que
tinha.
− Também ele era o meu único amigo – confessei. – Nem antes nem
depois tive alguém a quem pudesse chamar amigo.
− Por isso é que gostava tanto de estar na vossa companhia. Nesses
momentos, até eu só conseguia ver o lado positivo dele, e isso fazia-me
bem, sentia-me mais tranquila. Adorava quando estávamos os três juntos:
eu, tu e o Kizuki. E tu?
Anuí.
− Ao mesmo tempo, preocupava-me com o que tu poderias pensar –
revelei.
− O problema é que o nosso pequeno círculo não podia durar
eternamente. O Kizuki tinha consciência disso, eu também, e tu a mesma
coisa, certo?
Assenti.
− Para ser sincera – prosseguiu Naoko −, adorava as fraquezas dele. Tal
como apreciava as suas qualidades. Não tinha ponta de malícia nem de
maldade. Era fraco, só isso. Mesmo quando era eu a dizer-lho, recusava-se a
acreditar. Respondia-me sempre a mesma coisa: «Dizes isso, Naoko, porque
me conheces demasiado bem, convivemos desde os três anos de idade. Os
defeitos e as virtudes misturaram-se de tal modo que não os consegues
destrinçar.» Dizia-me sempre isto. Mas, independentemente do discurso
dele, eu amava-o e não estava interessada em mais ninguém.
Naoko olhou para mim e sorriu com tristeza.
− A nossa relação nada tinha que ver com a de um banal par amoroso. Era
como se os nossos corpos estivessem biológica e fisicamente ligados.
Podíamos separar-nos, mas uma misteriosa força de atração tornava a unir-
nos. Começámos a namorar com a maior naturalidade. Estava fora de
questão, não havia alternativa. Tínhamos doze anos quando demos o nosso
primeiro beijo, e aos treze já nos tocávamos. Eu ia ao quarto dele, ou ele
aparecia no meu, e eu masturbava-o com a mão. Nem sequer nos
considerávamos precoces. Era a ordem natural das coisas. Não me
incomodava minimamente quando ele sentia vontade de acariciar o meu
peito ou de me tocar na vagina, e se ele queria ter prazer e ejacular, não me
constrangia nada ajudá-lo. Mais, se alguém nos criticasse, acho que ficaria
admirada, para não dizer zangada. Afinal, não estávamos a cometer crime
nenhum. Mostrávamos o corpo um ao outro, sem falso pudor, como se os
nossos corpos fossem propriedade comum. Contudo, decidimos não
avançar mais. Tínhamos medo de que eu engravidasse. Naquela época, não
se sabia grande coisa acerca dos métodos anticoncecionais. E lá fomos
crescendo, unidos, de mãos dadas. Por assim dizer, não chegámos a
experimentar a urgência do sexo e as angústias de um ego de todo o
tamanho, que, regra geral, acompanham a puberdade. Como te disse antes,
existia uma grande abertura no que tocava ao sexo e, como absorvíamos e
partilhávamos os respetivos egos, não tínhamos uma consciência muito
forte de nós mesmos. Segues o meu raciocínio?
− Acho que sim – respondi.
− Éramos inseparáveis. Se o Kizuki ainda estivesse vivo, provavelmente
continuaríamos juntos, partilhando o nosso amor e sendo cada vez mais
infelizes.
− Porquê infelizes?
Naoko passou a mão pelos cabelos. Uma vez que tirara o travessão, o
cabelo caía-lhe para a cara quando inclinava a cabeça.
− Talvez porque seríamos obrigados a pagar a nossa dívida ao mundo –
referiu Naoko, erguendo a cabeça. – Refiro-me às dores do crescimento.
Como não pagámos o preço na devida altura, agora recebemos a conta. Por
isso, o Kizuki acabou como acabou e eu vim parar aqui. Fomos uma espécie
de crianças que cresceram nuas à solta numa ilha deserta. Se a fome
apertasse, comíamos uma banana; se nos sentíssemos sós, dormíamos
abraçados. Uma situação que não podia durar para sempre. À medida que
crescemos, chegou a hora de ocupar o nosso lugar na sociedade. E foi aí
que tiveste um papel preponderante, funcionando como o elo que nos ligava
ao mundo exterior. Através de ti, esforçámo-nos por nos adaptar à vida
externa. Infelizmente, a coisa não funcionou.
Acenei afirmativamente.
− Sobretudo, não penses que te usámos. O Kizuki gostava realmente de ti,
e o nosso relacionamento contigo foi o primeiro e o último que
alimentámos. E continua a ser assim. O Kizuki morreu e já não está aqui,
mas tu continuas a ser a única ligação que tenho ao mundo exterior. E eu
gosto de ti da mesma maneira que o Kizuki gostava. Longe de nós ferir os
teus sentimentos, embora possa ter acontecido. Nunca imaginámos, nem
nos nossos sonhos, que tal pudesse suceder.
Naoko tornou a baixar a cabeça e ficou calada.
− Que tal uma chávena de chocolate quente? – sugeriu Reiko.
− Adoraria, sim – respondeu Naoko.
− Preferia beber um pouco do conhaque que trouxe, se não se importam –
disse eu.
− Estás à vontade – exclamou Reiko. – Posso provar?
− Claro – respondi a rir.
Reiko trouxe dois copos e fizemos um brinde. Depois regressou à cozinha
e pôs-se a preparar o chocolate quente.
− E se falássemos de coisas mais alegres? – propôs Naoko.
Mas não me ocorreu nenhum assunto pitoresco para dar o mote. Ah,
pensei, se ao menos o Facho aqui estivesse! Com ele por perto, as anedotas
surgiam umas atrás das outras e bastaria puxar pela sua veia para animar a
malta. À falta de melhor, pus-me a dissertar sobre as lamentáveis condições
higiénicas em que vivíamos na residência universitária. De tão repugnante,
até eu fiquei maldisposto com o relato, mas elas as duas divertiram-se tanto
que rebolaram a rir. A seguir, Reiko imitou alguns doentes. O episódio
também teve a sua graça. Às onze da noite, a cara de sono de Naoko não
enganava ninguém. Reiko baixou as costas do sofá, converteu-o em cama e
passou-me para as mãos os lençóis, um cobertor e a almofada.
− Se quiseres violar alguém de madrugada, cuidado! Não te enganes na
pessoa – brincou ela. – O corpo sem rugas do lado esquerdo pertence à
Naoko.
− Mentira! Eu durmo do lado direito! – contestou Naoko.
− Ah, é verdade. Arranjei maneira de nos dispensarem das atividades
programadas para amanhã à tarde. Que me dizem a um piquenique? Não
muito longe, há um local espetacular – acrescentou Reiko.
Após terem lavado os dentes por turnos na casa de banho, retiraram-se as
duas para o quarto. Bebi mais um pouco de conhaque, estiquei-me no sofá e
rememorei os acontecimentos. Tinha a impressão de que o dia fora
invulgarmente longo. A sala continuava iluminada pela luz esbranquiçada
da Lua. No quarto onde Naoko e Reiko dormiam imperava o silêncio; não
se ouvia o menor ruído. De tempos a tempos, a cama rangia. Fechando os
olhos, via minúsculas figuras geométricas flutuando no escuro e aos
ouvidos chegava-me o eco dos acordes de guitarra dedilhados por Reiko,
mas não durou muito. O sono chegou e transportou-me a um lodaçal tépido.
Sonhei com salgueiros. Árvores em fila de ambos os lados de um trilho
montanhoso. Salgueiros que nunca mais acabavam. Soprava um vento forte,
mas os ramos não se mexiam. Porquê?, perguntei a mim mesmo,
estranhando. Foi então que reparei nos pequenos pássaros pendurados em
cada galho. O peso que exerciam sobre os ramos impedia que estes
balançassem. Agarrei num pau e experimentei bater no galho mais próximo.
A minha intenção era espantar os pássaros e permitir que os ramos se
mexessem. Mas as aves não levantaram voo. Em vez disso, transformaram-
se em pássaros mecânicos e caíram no chão com grande estrépito.
Ao acordar, tive a sensação de que continuava a sonhar. O luar ainda
iluminava a sala. Instintivamente, olhei para o chão em busca dos pássaros
metálicos, mas, como é óbvio, não havia nem um. Em contrapartida, Naoko
estava sentada aos pés do sofá, olhando fixamente lá para fora. Tinha as
pernas dobradas e o rosto apoiado nos joelhos, evocando uma órfã
esfomeada. Olhei na direção do relógio pousado na mesa de cabeceira, se
bem que não me lembrasse de o ter visto antes. Pela posição da Lua,
calculei que fossem duas ou três da manhã. Senti uma sede exagerada, mas
optei por me deixar ficar ali, sem mexer um músculo. Naoko vestia a
mesma camisa de noite azul e tinha o cabelo apanhado de lado pelo
travessão em forma de borboleta. A sua bonita testa destacava-se
nitidamente, recortada ao luar. Que estranho, pensei, antes de se deitar, vi-a
tirar o travessão.
Naoko permanecia na mesma posição. Dir-se-ia um pequeno animal
noturno atraído pelo luar. O contorno dos seus lábios amplificava-se devido
ao ângulo da luz. Aquela silhueta vulnerável pulsava suavemente ao
compasso do coração, ou, quem sabe, dos seus pensamentos. Era como se
sussurrasse palavras inaudíveis à escuridão noturna.
Engoli em seco, procurando acalmar a sede que sentia, e aquele som
ressoou, atroador, na calada da noite. Como se o som fosse um sinal, Naoko
reagiu. Produzindo um leve rumor, levantou-se e veio ajoelhar-se no chão,
aos pés da cama, cravando os olhos nos meus. Olhei-a fixamente, mas os
seus olhos estavam ausentes. As pupilas eram de uma limpidez artificial:
através delas quase podia penetrar num outro mundo. Por mais que olhasse,
não consegui distinguir nada. A face de Naoko estava a trinta centímetros da
minha, mas sentia-a a anos-luz de distância.
Estendi o braço e tentei alcançá-la; instintivamente, Naoko recuou. Notei-
lhe um leve tremor nos lábios. Em seguida, ela levantou os braços e
começou a desabotoar a camisa de noite. Como no prolongamento do
sonho, contemplei os seus dedos finos e elegantes enquanto ela desapertava
os botões por ordem. Mal acabou de soltar os sete pequenos botões brancos,
Naoko deixou a camisa de noite deslizar-lhe pelo corpo até à cintura, à
imagem e semelhança de um inseto a desembaraçar-se da casca, e ficou
nua, uma vez que não usava nada por baixo. Tinha apenas o travessão em
forma de borboleta posto. Despida, deixou-se estar a olhar para mim.
Banhado pela suave luz da Lua, o seu corpo ostentava o esplendor e a
fragilidade de um recém-nascido. Quando se mexeu um tudo-nada, as
partes do corpo iluminadas pelo luar moveram-se e a sua silhueta mudou de
forma. Os seios arredondados, os pequenos mamilos, a cavidade do
umbigo, o osso ilíaco, os pelos púbicos, todas as texturas formavam uma
sombra áspera e granulosa cujo formato variava, evocando as ondas
concêntricas sobre a superfície serena de um lago.
Que corpo perfeito, pensei. Desde quando teria Naoko um corpo tão
perfeito? E onde teria ido parar, afinal, o corpo que eu abraçara numa noite
de primavera?
Naquela noite, enquanto despia lentamente com ternura uma Naoko
lavada em lágrimas, ficara com a ideia de que o seu corpo era imperfeito.
Senti os seus seios duros, os mamilos rijos e demasiado protuberantes, as
ancas inesperadamente rígidas. Naoko era dona de um corpo sedutor, sem
sombra de dúvida. Excitava-me sexualmente, exercendo sobre mim um
fascínio irresistível. Ao abraçá-la, enquanto acariciava o seu corpo nu e o
beijava, apoderou-se de mim uma estranha emoção provocada pela
sensação de desequilíbrio e pelo retraimento do corpo humano. Desejaria
ter podido dizer-lhe que estava a fazer amor com ela. «Estou dentro de ti,
mas nada disto importa. É uma coisa como outra qualquer. Uma relação
puramente física, que podemos descrever como dois corpos imperfeitos que
se encontram. Partilhamos assim as nossas imperfeições.» Claro que jamais
seria capaz de traduzir isto em palavras. Calado, limitei-me a apertar Naoko
nos braços, experimentando na pele a sensação áspera de um corpo estranho
que existia dentro dela e que me escapava. Essa sensação fez com que eu
sentisse um grande amor por Naoko e provocou-me uma ereção tremenda.
Contudo, tinha diante de mim um corpo completamente diferente. Era
como se o corpo dela, após uma série de metamorfoses, tivesse atingido a
perfeição, renascendo à luz da claridade noturna. Para começar, o corpo
roliço de adolescente desaparecera, dando lugar à carne de uma mulher
adulta. O corpo de Naoko adquirira uma beleza tal que eu deixara de me
sentir excitado. Limitei-me a admirar, atónito, a curva dos seus quadris, os
seios redondos e reluzentes, o ventre liso que vibrava suavemente ao ritmo
da respiração e, um pouco mais abaixo, a sombra escura dos pelos púbicos.
Julgo que Naoko terá permanecido cinco ou seis minutos diante de mim,
mostrando-me o seu corpo desnudo. Pouco depois, voltou a vestir a camisa
de noite e apertou os botões um por um, começando por baixo. Quando
acabou, levantou-se, abriu a porta do quarto sem fazer barulho e evaporou-
se.
Deixei-me ficar deitado, imobilizado. Às tantas, mudei de ideias,
levantei-me, apanhei o relógio do chão e vi as horas à luz da Lua. Eram três
e quarenta. Fui até à cozinha, bebi vários copos de água e voltei a estender-
me no sofá. Não consegui conciliar o sono até de manhãzinha, altura em
que os raios de sol penetraram na sala e dissolveram as derradeiras sombras
prateadas de luar. Encontrava-me naquele estado de torpor que antecede o
sono quando Reiko apareceu ao meu lado e, dando-me uma palmadinha na
cara, chamou:
− Acorda! Já é de dia!

***

Enquanto Reiko fechava o sofá-cama, Naoko preparava o pequeno-almoço


na cozinha. Virou-se na minha direção, sorriu e deu-me os bons-dias. Disse-
lhe bom dia, pela minha parte. Fui colocar-me a seu lado enquanto punha
água a ferver e cortava o pão sempre a cantarolar, mas não notei nela nada
que sugerisse o episódio da noite anterior.
− Tens os olhos vermelhos – observou Naoko, servindo o café. – Que te
aconteceu?
− Acordei a meio da noite e depois não consegui adormecer.
− Espero que nós as duas não estivéssemos a ressonar – interveio Reiko.
− Nada disso – respondi.
− Ainda bem – disse Naoko.
− Ele está apenas a ser educado – acrescentou Reiko.
De início, pensei que Naoko estivesse a fingir diante de Reiko que não
acontecera nada, ou que sentisse vergonha, mas quando a amiga se ausentou
por momentos da sala para ir ao quarto, não houve qualquer mudança na
atitude dela e os seus olhos continuavam transparentes e límpidos.
− E tu, dormiste bem? – perguntei-lhe.
− Que nem uma pedra – respondeu, como se nada fosse. Apanhara o
cabelo com um travessão simples, desprovido de enfeites.
Fiquei sem saber como agir, e a sensação perdurou durante todo o
pequeno-almoço. Enquanto punha manteiga no pão ou partia a casca do ovo
cozido, ia lançando olhares de esguelha a Naoko, sentada diante de mim, à
espera de um sinal.
− Tōru Watanabe, porque é que não tiras os olhos de mim? – quis saber
ela, admirada.
− Está apaixonado, só pode ser – comentou Reiko.
− Ai, sim? Estás apaixonado por alguém? – perguntou Naoko.
A rir, respondi que talvez estivesse. Enquanto as duas gozavam comigo,
achei melhor não matar a cabeça a pensar no episódio da noite anterior;
comi o pão e bebi uma chávena de café.
Terminado o pequeno-almoço, elas comunicaram-me que iam dar de
comer às aves no galinheiro. Ofereci-me para as acompanhar. Vestiram
calças de ganga, camisa de trabalho e calçaram galochas brancas. A zona
dedicada à criação situava-se no meio de um pequeno parque, mesmo por
trás do court de ténis, e aí fui encontrar diversas espécies de aves, desde
galinhas e pombos, incluindo um par de pavões e até um papagaio. A toda a
volta viam-se vários canteiros, arbustos e bancos. No caminho, deparámo-
nos com dois homens, que tinham todo o ar de estarem ali internados, a
apanhar as folhas mortas. Deviam ter quarenta e muitos anos. Reiko e
Naoko foram ao encontro deles, deram os bons-dias; Reiko disse uma piada
que os fez rir. Nos canteiros havia cosmos-de-jardim em flor e os arbustos
estavam primorosamente tratados. Ao reconhecerem Reiko, as aves
começaram a voar em círculo dentro da capoeira, emitindo sons estridentes.
Enfiaram-se numa espécie de barracão mesmo ao lado e trouxeram de lá
um saco de rações e uma mangueira de borracha. Naoko fixou a mangueira
e abriu a torneira. A seguir, entraram as duas na capoeira, tomando as
devidas precauções para que as aves não escapassem. Enquanto Naoko
lançava jorros de água sobre os dejetos, Reiko varria vigorosamente o solo
com uma vassoura. A água cintilava ao sol, e um dos pavões fugiu dos
salpicos e correu a refugiar-se no fundo do galinheiro. Um peru ergueu o
pescoço e fitou-me com olhos de velho rabugento, e o papagaio pousado
num galho desatou a bater as asas em sinal de desaprovação. Quando Reiko
se virou na direção do papagaio e imitou um gato a miar, a ave afastou-se
para um canto e escondeu a cabeça debaixo da asa, gritando de seguida:
«Obrigado! Doido! Vai à merda!»
− Quem lhe terá ensinado essas coisas? – exclamou Naoko, suspirando.
− Não olhes para mim! Nunca me lembraria de lhe ensinar semelhante
linguagem – disse Reiko, recomeçando a miar. O papagaio calou-se.
− Em tempos, o pobre bicho passou por uma experiência traumatizante
com gatos e desde então tem-lhes um medo de morte – explicou Reiko,
rindo-se.
Terminada a operação, as duas abandonaram os utensílios de limpeza e
distribuíram as rações pelas vasilhas. Os pavões aproximaram-se a
chafurdar nas poças, inclinaram-se sobre os recipientes de comida e, apesar
de Naoko lhes bater ao de leve na cauda, devoraram a ração sofregamente.
− Fazem isto todas as manhãs? – perguntei.
− Sim. É uma tarefa reservada às recém-chegadas, por ser fácil. Queres
ver os coelhos?
Respondi que sim. Atrás do galinheiro havia duas gaiolas com cerca de
uma dezena de coelhos aninhados no meio da palha. Após ter recolhido as
caganitas com uma pá e enchido os comedouros, Naoko agarrou num
coelho e encostou-o à cara.
− Não é amoroso? – disse ela, toda contente. Deixou-me pegar nele. A
bolinha de pelo macio e quente encolheu-se nos meus braços e deixou-se
ficar nessa posição, com as orelhas frementes.
− Calma. Não tenhas medo que ele não te magoa – disse Naoko ao
coelho, acariciando a cabeça do bicho com o dedo e sorrindo ao olhar para
mim. Estava radiante, sem sombra de preocupações, e o sorriso dela
contagiou-me. Perguntei a mim mesmo o que teria acontecido, de facto, na
noite passada. Não tinha sonhado: a verdadeira Naoko despira-se e
mostrara-me o seu corpo desnudo.
Assobiando harmoniosamente uma versão de «Proud Mary», Reiko
despejou o lixo num saco de plástico. Ajudei-a a transportar os artigos de
limpeza e os sacos de ração.
− A manhã é a minha parte preferida do dia – confidenciou Naoko. –
Parece que recomeça tudo. Ao fim da tarde, fico triste. O anoitecer é a parte
que mais detesto. Sinto isso todos os dias.
− E, entretanto, vamos envelhecendo todos − afirmou Reiko. – Pensando
que a um dia sucede outro dia – acrescentou ela com um sorriso. – O tempo
voa e as pessoas nem se dão conta.
− Tu pareces gostar de envelhecer – observou Naoko.
− Não gosto particularmente de envelhecer – replicou Reiko. – Mas
também não gostaria de voltar a ser jovem.
− Porquê – perguntei-lhe.
− Porque dá muito trabalho. Não é evidente? – E, continuando a assobiar
«Proud Mary», atirou a vassoura para dentro do barracão e fechou a porta.

***

De regresso ao apartamento, trocaram as botas de borracha por ténis e


comunicaram-me que iam até à horta. Reiko explicou que não era uma
atividade que me interessasse, além de que trabalhavam em grupo, por isso,
o melhor era eu ficar pelo apartamento a ler.
− Ah, é verdade. Na casa de banho está um balde cheio de cuecas usadas.
Podes lavá-las, por favor?
− Deves estar a gozar com a minha cara, não? – perguntei, apanhado de
surpresa.
− Claro que sim – afirmou Reiko, sorridente. – Se não existisses, tinhas
de ser inventado. Não achas, Naoko?
− Tens razão – concordou a outra, rindo-se também.
− Bom, vou estudar Alemão – disse eu.
− Estaremos de volta antes do meio-dia. Porta-te bem e estuda muito –
disse Reiko. Saíram as duas do apartamento, no meio de risadinhas.
Ouviam-se os passos e as vozes das pessoas que passavam na rua.
Fui à casa de banho, passei de novo a cara por água e deitei a mão ao
corta-unhas. Tendo em conta que se tratava de uma sala de banho utilizada
por duas mulheres, o espaço, surpreendentemente, primava pela sobriedade.
Quase não havia produtos de maquilhagem, apenas creme de limpeza,
creme de contorno dos olhos, batom para o cieiro e protetor solar. Quando
acabei de cortar as unhas, fiz café, que bebi sentado à mesa com o livro de
Alemão aberto à minha frente. Sentado naquela cozinha banhada de sol, de
T-shirt em cima da pele, esforçando-me por decorar uma tabela de verbos
alemães, apoderou-se de mim uma sensação peculiar. Era como se a
gramática alemã e a mesa daquela cozinha estivessem separadas por uma
distância insuperável.
Por volta das onze e meia, elas regressaram da horta, revezaram-se no
chuveiro e trocaram de roupa, optando por vestimentas leves. A seguir,
pegámos em nós, fomos almoçar ao refeitório e encaminhámo-nos para o
portão principal. Desta vez, o guarda estava no seu posto, a comer com
apetite o almoço que, imagino eu, lhe tinham levado. O aparelho de rádio
colocado em cima da prateleira transmitia uma canção popular. Assim que
nos aproximámos, ergueu a mão e saudou-nos. Nós fizemos o mesmo.
Reiko informou-o de que íamos dar um passeio pelas redondezas e que
regressaríamos daí a três horas.
− Claro, vão e aproveitem bem – disse ele –, está um dia bonito. Cuidado
com o caminho do vale, por causa do recente deslizamento de terras. Fora
isso, não deve haver problema.
Reiko apontou o seu nome e o de Naoko num formulário destinado a esse
efeito, acrescentando o dia e o horário de saída.
− Tenham cuidado e bom passeio – disse o guarda.
− O homem parece simpático – comentei.
− É um bocado apanhado – ripostou Reiko, tocando com a ponta do dedo
na cabeça.
A verdade é que estava realmente um dia magnífico, tal como dissera o
guarda. O céu era de um azul puro e penetrante, e as nuvens brancas
disseminavam-se lá em cima, fazendo lembrar pinceladas num quadro.
Caminhámos durante alguns minutos ao longo do muro, após o que
deixámos a Residência Ami e começámos a subir em fila indiana a encosta
estreita e escarpada. Reiko seguia na frente, Naoko no meio e eu por último.
Reiko avançava firmemente, como se quisesse mostrar que conhecia a
região montanhosa como as palmas das suas mãos. Mal trocámos palavra,
de tão concentrados na subida. Naoko vestia calças de ganga e blusa branca;
levava o casaco na mão. Eu avançava sem tirar os olhos dos seus cabelos
lisos, pelo pescoço, baloiçando ao sabor dos passos. De vez em quando,
virava-se para trás e, quando os seus olhos se encontravam com os meus,
sorria. A ladeira parecia não ter fim, mas Reiko não dava mostras de
afrouxar a passada; Naoko seguia-a sem se atrasar, enxugando o suor de vez
em quando. Pela minha parte, estava completamente derreado, talvez por
não subir uma montanha desde há muito.
− Costumam fazer isto regularmente? – perguntei a Naoko.
− Uma vez por semana, acho eu – respondeu ela. – É duro para ti?
− Um bocado – respondi.
− Chegámos a dois terços do caminho, já falta pouco. És homem ou não?
Vá, não sejas piegas!
− É o que faz a falta de exercício – desculpei-me.
− Claro, passas os dias a fazer exercício físico de outro género... –
resmungou Naoko, como se falasse com os seus botões.
Pensei em responder-lhe à letra, mas estava sem fôlego e não consegui
abrir a boca. Pássaros vermelhos com penachos na cabeça passavam a voar
rente a nós. A sua silhueta recortava-se com grande nitidez contra o céu
azul. No prado à volta desabrochavam mil e uma flores coloridas: brancas,
azuis e amarelas. Um pouco por toda a parte, ouvia-se o zumbido das
abelhas.
Passados dez minutos, chegámos por fim a uma espécie de planalto.
Parámos um bocado para descansar, limpámos o suor, recuperámos o fôlego
e bebemos a água que levávamos nos cantis. Reiko entreteve-se a tocar um
apito feito a partir de uma folha apanhada do chão.
O carreiro descia lentamente, bordejado de altas espigas de susuki.
Caminhámos durante uns bons quinze minutos e atravessámos um lugarejo
onde não se via alma viva, que devia ter perto de uma dúzia de casas com
todo o ar de estarem abandonadas. Em redor das casas cresciam ervas altas,
que nos davam pela cintura, e os buracos abertos nos muros estavam
pejados de dejetos secos e esbranquiçados dos pombos. Algumas das
habitações haviam sido destruídas, restando apenas as colunas, mas também
se viam algumas que pareciam habitáveis, bastando para tal abrir as janelas.
Abrimos caminho por entre as casas silenciosas e mortas.
− Sabiam que até há sete ou oito anos viviam aqui pessoas? − perguntou
Reiko. – À volta eram tudo plantações. Mas foi-se toda a gente embora. A
vida por estas bandas é muito dura. No inverno, a neve acumula-se e
bloqueia a passagem. Além de que a terra não é tão fértil quanto isso.
Ganha-se mais indo trabalhar para a cidade.
− Que pena! Algumas destas casas podiam ser habitadas – comentei.
− Há tempos estiveram por cá uns hippies a viver, mas foram-se embora
quando se aperceberam dos rigores do inverno.
Depois de atravessarmos a aldeola, avançámos no terreno e fomos ter a
um amplo pasto rodeado por cercas a toda a volta. Ao longe via-se meia
dúzia de cavalos a tasquinhar na erva. Um canzarrão aproximou-se de nós a
abanar o rabo. Apoiou as patas sobre os ombros de Reiko e cheirou-a. A
seguir, saltou para cima de Naoko, querendo brincadeira. Quando assobiei,
veio ter comigo e lambeu-me a mão com a sua língua comprida.
− É um cão-pastor – disse Naoko, acariciando a cabeça do animal. – Deve
ter quase vinte anos e, como tem os dentes fracos, só consegue comer coisas
moles. Passa o dia a dormitar à frente da loja; quando pressente passos, vem
a correr para lhe fazermos festas.
Naoko tirou da mochila um pedaço de queijo. O cão, farejando a comida,
deu um salto e abocanhou-a, todo satisfeito.
− Não tarda nada, deixaremos de o ver por estas bandas. – Reiko
acariciou a cabeça do cão. – Em meados de outubro, enfiam os cavalos e os
bois num camião e levam-nos para o estábulo mais abaixo. No verão,
voltam a trazê-los até aos pastos e abrem uma pequena cafetaria para os
turistas. Turistas é uma força de expressão, claro, já que aparecem por cá
vinte pessoas por dia, quando muito... Vamos tomar alguma coisa?
− Boa ideia – concordei.
O cão conduziu a comitiva até ao estaminé. Era uma casinha pintada de
branco com um terraço na parte da frente; um letreiro descolorido com o
formato de uma chávena de café estava pendurado no telhado. O canídeo
foi o primeiro a chegar, esparramou-se no terraço e fechou os olhos. Assim
que nos sentámos à mesa, saiu do interior do café uma rapariga. Tinha um
rabo de cavalo e vestia camisola e calças de ganga brancas. Cumprimentou
Reiko e Naoko como se fossem velhas amigas.
Reiko fez as apresentações.
− Este é um amigo da Naoko.
− Bom dia! – disse a jovem.
− Bom dia! – respondi.
Enquanto as três mulheres falavam disto e daquilo, acariciei o pescoço
duro e o pelo do cão debaixo da mesa. De todas as vezes que eu coçava as
partes rijas da nuca, o bicho fechava os olhos e uivava de contentamento.
− Como é que ele se chama? – perguntei à rapariga da cafetaria.
− Pepe – respondeu ela.
− Pepe – chamei, mas o cão não reagiu minimamente.
− É surdo. Só ouve se berrarmos – avisou ela.
− Pepe! – gritei a plenos pulmões. O cão abriu os olhos, mexeu-se e
ladrou.
− Vamos, dorme descansado e tem uma longa vida – disse a rapariga.
Pepe veio deitar-se novamente a meus pés.
Naoko e Reiko mandaram vir um granizado de leite, e eu, uma cerveja. A
pedido de Reiko, a jovem ligou o rádio numa estação FM. Os Blood, Sweat
and Tears cantavam «Spinning Wheel».
− Para dizer a verdade, venho a este sítio só para ouvir rádio em FM –
afirmou Reiko, toda satisfeita. – Onde moramos não se sintoniza a rádio, e
se de vez em quando não aparecer por estas bandas, fico sem saber quais as
músicas que andam nos ouvidos do mundo.
− Também dorme aqui? – perguntei à rapariga da cafetaria.
− Só se fosse louca! – ripostou ela a rir. – Se passasse a noite num
estaminé destes, arriscava-me a morrer de solidão. Ao anoitecer, o pessoal
leva-me de volta para a cidade. Depois, regresso logo de manhãzinha –
acrescentou a jovem apontando para um todo-o-terreno estacionado diante
do escritório, que ficava um pouco mais afastado.
− Está quase na hora de encerrarem as portas, certo? – perguntou Reiko.
− Sim, já não falta muito para a temporada de verão chegar ao fim –
respondeu a rapariga. Reiko ofereceu-lhe um cigarro e fumaram as duas.
− Vamos sentir a sua falta – afirmou Reiko.
− Regresso em março do ano que vem – declarou a jovem, sorrindo.
A rádio transmitia agora «White Room», dos Cream, e, a seguir aos
anúncios, ouviu-se «Scarborough Fair», de Simon & Garfunkel. Quando a
canção chegou ao fim, Reiko confessou que era das suas eleitas.
− Vi esse filme – exclamei.
− Quem é que entra?
− Dustin Hoffman.
− Não conheço. – Reiko abanou a cabeça com uma expressão
melancólica. – O mundo muda todos os dias... Uma pessoa nem se dá
conta!
Reiko pediu à empregada da cafetaria se poderia emprestar-lhe a guitarra.
A jovem assentiu, desligou o rádio e foi ao fundo da loja buscar o
instrumento. O cão ergueu o focinho e farejou o ar.
− Não é para comer! – disse Reiko a fingir que estava a ralhar com ele.
Uma brisa atravessou o terraço trazendo o cheiro da erva. Diante dos nossos
olhos, a montanha recortava-se nitidamente.
− Parece uma cena do filme Música no Coração – comentei com Reiko,
entretida a afinar a guitarra.
− O que é isso? – perguntou ela.
Dedilhou os acordes iniciais de «Scarborough Fair». Pelos vistos, era a
primeira vez que tocava sem partitura e, de início, hesitou, até atinar com a
nota certa. Porém, após várias tentativas, mostrou-se capaz de tocar a
canção de fio a pavio. À terceira, sem grande dificuldade, introduziu certos
floreados da sua lavra, .
− Bom ouvido − disse Reiko, piscando-me o olho e apontando para si
mesma. – Basta-me ouvir três vezes e sou capaz de tocar qualquer tema sem
partitura.
Cantarolando baixinho, interpretou a cantiga da dupla Simon &
Garfunkel corretamente até ao fim. Aplaudimos os três, e ela inclinou a
cabeça numa vénia.
− Quando antigamente eu interpretava Mozart nos concertos que dava,
aplaudiam com mais entusiasmo – comentou ela.
A rapariga da cafetaria prometeu que os granizados de leite seriam de
borla se ela tocasse «Here Comes the Sun», dos Beatles. Reiko concordou
erguendo o polegar. Cantou ao som da guitarra. Possuía uma voz rouca,
talvez por fumar demais, mas cantava com alma e de uma forma expressiva.
Contemplando as montanhas e bebendo cerveja enquanto escutava a
canção, quase me pareceu que o Sol ia nascer de novo. Por sinal, uma
sensação agradável e calorosa.
Quando acabou de cantar «Here Comes the Sun», Reiko devolveu a
guitarra à jovem e pediu-lhe para ligar outra vez a rádio em FM. Sugeriu
então a Naoko que fôssemos os dois dar uma volta.
– Fico por aqui – disse ela −, a ouvir rádio e na converseta. Desde que
estejam de regresso às três, perfeito.
− Não haverá problema se ficarmos sozinhos durante tanto tempo? –
perguntei.
− Em rigor, é contra as normas, mas desta vez fecho os olhos. Não sou
propriamente a vossa ama e também gosto de estar sozinha. Além disso,
aposto que têm muito que falar – respondeu Reiko, acendendo novo cigarro.
− Anda – disse Naoko, levantando-se.
Pus-me de pé e segui-a. O cão acordou e ainda foi atrás de nós, mas não
tardou a desistir, regressando ao seu poiso habitual. Caminhámos devagar
pelo trilho plano de terra batida, ao longo da cerca que rodeava a pastagem.
Volta e meia, Naoko agarrava-me na mão ou dava-me o braço.
− Isto não te faz lembrar os velhos tempos?
− Bom, «velhos tempos» é capaz de ser exagero. Estamos a falar da
última primavera – disse eu, a rir. – Passámos uma temporada juntos, até à
primavera. Se consideras isso «velhos tempos», o que aconteceu há dez
anos pertence à antiguidade...
− Olha que parece que aconteceu na pré-história – comentou Naoko. –
Desculpa aquilo de ontem. Não foi justo, sobretudo depois de te teres dado
ao trabalho de me vir visitar.
− Tudo bem. Palpita-me que precisávamos os dois de deitar cá para fora
as nossas emoções. Se me quiseres massacrar com as tuas, conta comigo.
Servirá para nos ficarmos a conhecer melhor.
− O que acontecerá no caso de ficares a conhecer-me profundamente?
− Pelos vistos, não entendeste. Não se trata do que possa acontecer. Neste
mundo, há quem goste de consultar os horários dos comboios e passe os
dias nisso. E também há aqueles que constroem navios de um metro com
paus de fósforos. O que há de estranho no facto de existir uma pessoa
interessada em conhecer-te?
− Como uma espécie de passatempo? – disse Naoko, parecendo divertida
com a ideia.
− Se quiseres. Regra geral, as pessoas normais costumam chamar a isso
simpatia ou amor, mas se quiseres chamar-lhe passatempo, estás à vontade.
− Diz-me uma coisa – pediu ela. – Gostavas do Kizuki, não gostavas?
− É evidente que sim – respondi.
− E da Reiko?
− Também gosto dela. Parece-me uma excelente pessoa.
− Porque é que só gostas desse tipo de gente? – quis saber Naoko. – Tudo
pessoas desequilibradas, que têm qualquer coisa que não funciona, pessoas
que se afundam aos poucos por não saberem nadar. Eu, o Kizuki, a Reiko.
Porque é que não consegues gostar de pessoas mais normais.
− Porque não os vejo assim, provavelmente − respondi, depois de pensar
por um momento. − Não creio que tu, o Kizuki e a Reiko sejam
«desequilibrados». Aqueles que considero desequilibrados andam todos a
passear lá fora, numa boa.
− Mas somos todos desequilibrados – ripostou Naoko. – Falo por mim.
Continuámos a caminhar em silêncio. O trilho afastou-se do terreno
vedado pela cerca e foi ter a um prado com forma circular rodeado de
árvores, fazendo lembrar um pequeno lago.
− Há manhãs em que acordo apavorada – confessou Naoko, encostando-
se ao meu braço. – Se continuar sempre assim, sem voltar ao que era dantes,
acho que acabarei por envelhecer aqui. Quando penso nisso, até sinto o
sangue gelar-me nas veias. É uma sensação pavorosa, profundamente
glacial.
Passei os braços pelos ombros dela.
− É como se o Kizuki entendesse a mão de dentro da escuridão e
reclamasse a minha presença. «Ei, Naoko! Não podemos ficar separados!»
Quando o oiço dizer isto, fico petrificada.
− O que fazes nessa altura?
− Por favor, Tōru, não quero que me interpretes mal. Prometes?
− Prometo – disse eu.
− Peço à Reiko que me abrace – confidenciou Naoko. – Acordo-a, meto-
me na cama dela e peço-lhe para me estreitar com força. E choro. Ela
acaricia-me até o meu corpo recuperar o calor. Achas tudo isto estranho?
− Estranho não diria, mas preferia ser eu a acariciar-te, em vez da Reiko.
− Abraça-me aqui, agora – pediu Naoko.
Sentámo-nos na relva e abracei-a. Os nossos corpos ficaram
completamente encobertos pelas ervas altas: só víamos o céu e as nuvens.
Deitei-a docemente na erva e envolvi-a nos meus braços. Sentia a
proximidade daquele corpo macio e morno, e as suas mãos procuraram-me.
Beijámo-nos ternamente.
− Tōru? – sussurrou Naoko ao meu ouvido.
− Diz.
− Queres fazer amor?
− Claro – respondi.
− Mas consegues esperar?
− Claro que sim.
− Preciso de colocar em ordem a minha mente, primeiro. Sentir-me bem
comigo mesma e tornar-me uma pessoa capaz de te agradar. Achas que
consegues esperar?
− Claro.
− Está dura?
− A sola do pé?
− Parvo – riu-se ela.
− Se queres saber se estou com uma ereção, a resposta é «claro que sim».
− Não te importas de parar de repetir «claro» a torto e a direito?
− Tudo bem.
− É doloroso para ti?
− O quê?
− Ficar duro?
− Doloroso?
− Quer dizer... dói-te?
− Depende do ponto de vista.
− Queres que te dê uma ajuda?
− Com a mão?
− Sim – disse Naoko. – Sinto-o duro contra mim e faz-me doer.
Mudei ligeiramente de posição.
− Está melhor assim?
− Obrigada.
− Ouve uma coisa, Naoko...
− O que é?
− Gostaria que o fizesses.
− Está bem – disse ela, sorrindo. A seguir, correu o fecho das calças para
baixo e segurou-me no pénis ereto.
− Está quente – disse.
Naoko fez menção de mover a mão, mas impedi-a. Desabotoei-lhe a blusa
e enfiei a mão nas costas da blusa a fim de desapertar o sutiã. Beijei-lhe os
seios macios e rosados. Naoko fechou os olhos e os seus dedos começaram
a massajar-me devagar.
− Fazes isso muito bem, sabes?
− Sê um menino bonito e fica calado.

***

Depois de ejacular, apertei-a nos meus braços e beijei-a de novo. Naoko


apertou o sutiã e abotoou a blusa, e eu puxei o fecho das calças para cima.
− Sentes-te melhor? – quis saber Naoko.
− Graças a ti.
− Vamos dar uma volta.
− Parece-me bem.
Atravessámos o prado, depois o bosque, depois outro prado. Enquanto
caminhávamos, Naoko falou-me da morte da sua irmã mais velha. Embora
até àquele dia quase nunca tivesse comentado o facto, sentia-se na
necessidade de desabafar comigo.
− Era seis anos mais velha e tínhamos personalidades bastante diferentes,
mas dávamo-nos bem – contou ela. – Nunca discutíamos. Palavra de honra.
A diferença de idades entre nós impedia que entrássemos em confronto.
«A minha irmã era uma dessas pessoas que se destacam em tudo. Era
sempre a primeira nos estudos e nos desportos, tinha o dom de agradar a
gregos e a troianos, capacidade de liderança, era simpática e honesta, o que
a tornava sobremaneira popular junto dos rapazes. Os professores traziam-
na nas palminhas. Toda a gente se ria das suas piadas. Tinha as paredes do
quarto repletas de menções honrosas e diplomas. Há sempre uma rapariga
como ela em todas as escolas públicas. Não digo isto por ser minha irmã,
até porque não era do tipo de se armar em boa e de se mostrar uma menina
mimada; preferia até não dar nas vistas. Acontece que era a melhor em tudo
o que fazia, pura e simplesmente.
«Por isso, sempre quis ser como ela desde pequena.
Naoko fez girar entre os dedos uma espiga de susuki.
− Não é de estranhar, já que cresci a ouvir toda a gente dizer como a
minha irmã era inteligente, boa desportista e popular até dizer basta.
Dificilmente estaria em posição de competir com ela. Apesar de não ser a
mais bem-parecida, os meus pais decidiram educar-me para ser a menina
bonita da família. Inscreveram-me numa escola prestigiada, compraram-me
vestidos de veludo, blusas de renda, sapatos de verniz, inscreveram-me em
aulas de piano e de ballet, isto desde a primária... Por sorte, a minha irmã
alinhou e sempre me apoiou imenso. Era a sua adorada irmãzinha mais
nova, não sei se estás a ver! Passava a vida a comprar-me pequenos
presentes, andava comigo para todo o lado, ajudava-me a fazer os trabalhos
de casa. Chegava a levar-me atrás quando se encontrava com o namorado.
Numa palavra, uma irmã fora de série.
«Ninguém soube quais as razões que a levaram a suicidar-se. A mesma
história do Kizuki, no fundo. Também ela tinha dezassete anos e nada fazia
supor que fosse tirar a sua própria vida. Não deixou nenhuma carta, tão-
pouco. O caso apresenta semelhanças, não achas?
− Assim parece.
− Todos os que a conheciam disseram que era demasiado inteligente, que
lia livros a mais, coisas do género. Sem dúvida que ela lia bastante. Tinha
livros que nunca mais acabavam e, depois da sua morte, aproveitei para ler
muitos deles, mas isso contribuiu para me deprimir ainda mais. Estavam
cheios de anotações, e entre as páginas encontrei flores secas e cartas de
rapazes. Fartei-me de chorar.
Naoko calou-se por momentos, fazendo girar a espiga de susuki.
− Regra geral, era uma pessoa que gostava de resolver as coisas sozinha.
Nunca pedia conselhos nem ajuda a ninguém. Não porque fosse orgulhosa,
julgo eu, mas por acreditar que essa era a atitude normal. Os nossos pais,
habituados a isso, achavam que não havia problema e deixavam-na em paz.
Pela minha parte, passava o tempo a fazer-lhe perguntas. Ela ajudava-me
sempre, mas nunca pedia conselhos. Resolvia tudo sozinha. Nunca se
enervava e andava sempre bem-disposta. Por exemplo, não sei se sabes,
mas quando as mulheres têm a menstruação, costumam ficar mais irritáveis
e vingar-se nos outros. Pois isso nunca sucedia no caso dela. Em vez de
ficar de mau humor, mostrava-se deprimida. De dois em dois meses,
acontecia. Deitava-se na cama, deixava de ir às aulas e mal tocava na
comida. Apagava as luzes do quarto e ali ficava, num estado de catalepsia.
«Quando eu chegava da escola, chamava-me, obrigava-me a sentar-me na
cama e fazia perguntas sobre o meu dia. Coisas sem importância. A que
brincara no recreio, o que dissera o professor, que notas tinha tido...
Escutava-me com grande atenção e aconselhava-me. Mas quando eu não
estava em casa, se calhava ir brincar com as minhas amigas ou tinha aula de
ballet, tornava a fechar-se na sua concha. Ao fim de dois dias, passava-lhe
tudo, automaticamente, e lá ia ela para a escola, feliz e aos pulinhos. Julgo
que este estado de coisas terá durado quatro anos. De início, os nossos pais
mostraram-se preocupados e chegaram a consultar um médico, mas como
depois voltava tudo à normalidade, desistiram da ideia, convencidos de que
o melhor seria não dar demasiada importância ao caso e deixá-la sossegada.
«Contudo, após a morte da minha irmã, uma vez ouvi uma conversa entre
os nossos pais. Falavam acerca de um irmão do meu pai que morrera anos
antes. Também ele um rapaz inteligentíssimo, mas que se encerrara em casa
durante quatro anos, entre os dezassete e os vinte e um, até que um dia saiu
porta fora e se atirou para debaixo do comboio. O meu pai acrescentou
então: “Deve ser hereditário, da parte da minha família.”
Enquanto desabafava, Naoko desfizera inconscientemente com a ponta
dos dedos a espiga, que se dispersou ao sabor do vento. A seguir, enrolou o
caule à volta do dedo, como se fosse um cordel.
− Fui eu que descobri o corpo da minha irmã – prosseguiu Naoko. –
Aconteceu no outono, andava eu no sexto ano. Em novembro,
concretamente. Num dia sombrio, em que chovia. A minha irmã
frequentava o último ano do secundário. Voltei para casa às seis e meia da
aula de piano e a minha mãe estava a fazer o jantar. Pediu-me para ir
chamar a minha irmã. Subi ao andar de cima, bati na porta do quarto e
gritei: «O jantar está pronto!» Mas não obtive resposta; no quarto reinava o
silêncio absoluto. Achei estranho. Voltei a bater e depois abri a porta.
«Estará a dormir?», pensei. No entanto, não a encontrei deitada na cama.
Fui dar com ela junto à janela, com o pescoço ligeiramente inclinado para
um lado e a olhar fixamente lá para fora. Como se estivesse a pensar na
morte da bezerra. Não dava para ver grande coisa, uma vez que o quarto
estava mergulhado na escuridão. «O que estás aí a fazer?», perguntei. «O
jantar está na mesa.» Ao dizer estas palavras, dei-me conta de que ela estava
mais alta do que era normal. Aquele pormenor despertou a minha
curiosidade. Estaria a usar sapatos de salto alto? Teria subido a um
banquinho?
«Aproximei-me e, no momento em que me preparava para falar com ela,
entendi tudo. Havia uma corda amarrada à volta do seu pescoço. A corda
descia diretamente de uma viga no teto, espantosamente a direito, quase
parecendo que alguém traçara uma linha com a régua. A minha irmã vestia
uma blusa branca... uma blusa vulgar, como esta que eu trago hoje, saia
cinzenta, e os seus pés apontavam para baixo, como se dançasse em pontas.
Com a diferença de que existia um espaço vazio de vinte centímetros entre
ela e o chão.
«Vi tudo isso ao pormenor. Sem esquecer o rosto dela. Era impossível não
o ver. Pensei que tinha de descer as escadas, de contar à minha mãe. Mas o
corpo não me obedecia. Ganhara vida própria, separada da minha
consciência. Apesar de a minha mente saber que precisava de descer o mais
rápido possível ao andar de baixo, o meu corpo, movendo-se
independentemente, procurava libertar a minha irmã da corda. Como não
podia deixar de ser, era impossível a uma rapariguinha executar semelhante
tarefa, e limitei-me a ficar de pé no escuro durante cinco ou seis minutos,
incrédula, com o espírito ausente, até que a minha mãe chegou junto de
mim e me perguntou: “O que estão vocês a fazer às escuras?”
Naoko abanou a cabeça.
− A seguir, passei três dias sem dizer uma palavra. Deitada na cama,
como morta, de olhos muito abertos e a olhar para o vazio. Não entendia
nada do que se estava a passar. – Naoko encostou-se ao meu braço. –
Escrevi isso na carta, lembras-te? Sou uma pessoa muito mais imperfeita do
que pensas. A minha doença é muito pior do que imaginas, tem raízes muito
profundas. Por isso é que quero que sigas o teu caminho, se possível. Não
esperes por mim. Se tiveres vontade de dormir com outras, gostaria que o
fizesses. Não te preocupes comigo, faz o que te der na real gana. Não quero
ser um obstáculo na tua vida, melhor dizendo, na vida de ninguém. Como já
te disse, vem visitar-me de vez em quando e nunca te esqueças de mim. É o
único desejo que tenho.
− Mas não é o meu único desejo – disse eu.
− Ao meu lado, estás a desperdiçar a tua vida.
− Não estou a desperdiçar coisa nenhuma.
− Pensa bem. É possível que nunca recupere por completo. Estás disposto
a esperar na mesma? Serias capaz de esperar por mim dez, vinte anos?
− Tens demasiados medos – ripostei. – Escuridão, pesadelos, o poder dos
mortos. O melhor a fazer é esqueceres tudo isso. É quanto basta para te
curares de vez.
− Quem me dera ser capaz! – afirmou Naoko, abanando a cabeça.
− Que me dizes a vivermos juntos quando saíres daqui? – propus. –
Assim, posso proteger-te das trevas, dos sonhos maus e abraçar-te se as
coisas piorarem e a Reiko não estiver por perto.
Naoko encostou-se mais ao meu braço.
− Seria maravilhoso – disse ela.

***

Regressámos à cafetaria pouco passava das três da tarde. Reiko lia um livro
e ouvia o Segundo Concerto para Piano de Brahms.
Era uma experiência única ouvir a música de Brahms tendo diante de nós
uma paisagem deserta a perder de vista. Reiko assobiou a parte do
violoncelo no início do terceiro movimento.
− Backhaus e Böhm – disse ela. – Uma vez, ouvi este disco tantas vezes
que o gastei. Ficou cheio de riscos feitos pela agulha. Ouvi-o sem parar,
para absorver a música do princípio ao fim.
Naoko e eu pedimos café.
− Conversaram tudo? – perguntou Reiko, dirigindo-se a Naoko.
− Nem imaginas – respondeu ela.
− Depois logo me contas em pormenor. Se ele se portou à altura...
− Não fizemos nada – disse Naoko, corando.
− A sério? Nada? – insistiu Reiko, virada para mim.
− A sério. Nada de nada.
− Mas que desilusão! – exclamou Reiko, com uma expressão
dececionada.
− Tens toda a razão – concordei, bebendo um gole de café.

***

O jantar foi parecido com o da véspera. O ambiente, as vozes e os rostos


eram os mesmos, apenas a ementa mudou. O homem de casaco branco, que
no dia anterior discorrera longamente sobre as secreções gástricas em
estado não gravitacional, juntou-se ao nosso grupinho... discorrendo sem
parar acerca da correlação entre o tamanho do cérebro e o grau de
inteligência. Enquanto comíamos os hambúrgueres de soja, escutámos as
suas teorias sobre a capacidade cerebral de Bismarck ou de Napoleão.
Colocando o prato de lado e sacando da esferográfica, deu-se ao trabalho de
traçar um cérebro. A seguir, corrigiu o desenho. «Não, não está correto.»
Quando deu a tarefa por terminada, guardou com todo o cuidado o bloco e a
esferográfica no bolso da camisa, onde assomavam três outras canetas,
alguns lápis e uma régua. Assim que acabou de comer, despediu-se de nós
dizendo as mesmas palavras da véspera. «Aconselho-o a voltar no inverno.»
E eclipsou-se.
− Este senhor é um médico ou um doente? – perguntei a Reiko.
− O que te parece?
− Não faço ideia. Em todo o caso, parece-me simpático.
− É médico. É o doutor Miyata – respondeu Naoko.
− De todos nós, estou em crer que é ele o mais louco. Queres apostar? –
interveio Reiko.
− Se bem que o guarda da portaria, o senhor Ōmura, também seja um
bom candidato – observou Naoko.
– Tens razão. É outro desparafusado que tal – concordou Reiko,
espetando os brócolos com o garfo.
– Alguma vez o viste logo de manhã, quando se põe a fazer ginástica e a
gritar coisas ininteligíveis? Antes de tu cá chegares, havia uma rapariga
neurótica chamada Kisoshita, que trabalhava na contabilidade e se tentara
suicidar na sequência de uma depressão, sem esquecer aquela enfermeira, a
Fukushima, que foi despedida no ano passado por ter um grave problema de
alcoolismo.
– Quase poderíamos inverter os papéis no que diz respeito aos médicos e
aos doentes – disse eu, espantado.
– Tens toda a razão – retorquiu Reiko, agitando o garfo no ar. – Vejo que
começas a compreender como funcionam as coisas por estas bandas.
– Também me parece.
– O que faz de nós pessoas normais é saber que não somos normais –
filosofou Reiko.

***

Já no quarto, e enquanto Naoko e eu jogávamos às cartas, Reiko pegou na


guitarra e recomeçou a tocar Bach.
– A que horas estás a pensar ir-te embora amanhã? – quis ela saber,
interrompendo os exercícios e acendendo um cigarro.
– Logo a seguir ao pequeno-almoço. Aliás, o autocarro passa pouco
depois das nove, o que significa que me dá tempo de estar no emprego à
noite.
– Que pena! Poderias ficar mais um pouco.
– Se isso acontecesse, correria o risco de nunca mais sair daqui – disse eu
a rir.
– Lá isso é verdade – concordou Reiko. Depois, virou-se para a Naoko e
disse: – Ah, é verdade. Tenho de passar pelo apartamento do senhor Oka
para ir buscar as uvas. Esqueci-me por completo.
– Queres que vá contigo?
– Para dizer a verdade, preferia que me emprestasses o Tōru, pode ser?
– Claro que sim.
– Vamos dar o nosso passeio noturno? – propôs-me Reiko, pegando-me
na mão. – Ontem quase chegámos lá, mas hoje à noite faço questão de ir até
ao fim.
– Tudo bem. Como achares melhor – replicou Naoko com um risinho
abafado.
Levantara-se um vento frio. Reiko vestira o casaco azul por cima da
blusa. Caminhava de mãos enfiadas nos bolsos, de olhos postos no céu e
farejando o ar da noite como fazem os cães. Passado um bocadinho, disse
que vinha aí chuva. De facto, o céu estava coberto de nuvens que
escondiam por completo a Lua.
– Quando uma pessoa já aqui vive há muito tempo, aprende a prever o
tempo através do olfato.
No momento em que penetrámos no bosque, precisamente no local onde
se erguiam as residências dos funcionários, Reiko pediu-me que esperasse e
foi sozinha bater à campainha de uma das moradias. Apareceu uma mulher
à porta, pelos vistos a dona da casa, e as duas ficaram de pé a conversar e a
rir baixinho. Em seguida, a senhora entrou e voltou trazendo na mão um
saco de plástico. Reiko agradeceu, deu-lhe as boas-noites e voltou para ao
pé de mim.
– Olha só para estas uvas que me ofereceram – disse ela, mostrando-me o
interior do saco cheio de cachos. – Gostas de uvas?
– Gosto.
Reiko pegou num cacho e deu-me outro.
– Podes comer à vontade, foram lavadas.
Saboreei as minhas uvas enquanto caminhava e cuspi as grainhas e a pele
para o chão. Sabiam maravilhosamente. Reiko também comeu as dela.
– Por vezes, dou lições de piano ao filho do casal. Em jeito de retribuição,
pagam-me em géneros. O vinho que ontem bebemos foi oferecido por eles.
Além disso, compram-me o que for preciso na cidade.
– Gostava de ouvir o resto da história – disse eu.
– Por mim, perfeito – concordou ela. – Mas se voltarmos tardíssimo para
o apartamento todas as noites, não achas que a Naoko ficará desconfiada?
– E depois? Quero ficar a conhecer o que falta contar...
– Okay. Vamos procurar um sítio coberto. Hoje está um bocado mais de
frio.
Virámos à esquerda ao passarmos diante do court de ténis. Reiko desceu
uma escada estreita até a um lugar onde havia várias pequenas arrecadações
ao lado umas das outras que faziam lembrar casas prefabricadas. Abriu a
porta de uma delas e acendeu a luz.
– Entra. Não é grande coisa, mas sempre está quase vazio...
Lá dentro encontravam-se vários pares de esquis em fila, bastões e botas
cuidadosamente arrumados, e no chão acumulavam-se instrumentos e sacos
de sal grosso para remoção da neve.
– Antigamente, vinha até aqui praticar guitarra. Ou quando me apetecia
estar sozinha. É um lugar agradável.
Reiko sentou-se num saco de sal e disse-me para fazer o mesmo.
Obedeci.
– Importas-te que fume um cigarro? Aviso já que vai ficar tudo
empestado.
– Claro que não, fuma à vontade.
– O vício do tabaco é a única coisa que não consigo largar – confessou
Reiko, enrugando a testa.
Acendeu um cigarro com visível gosto. Raramente via alguém fumar com
tanto prazer. Pela minha parte, comia as uvas, uma a uma, tendo o cuidado
de cuspir a pele e as grainhas para uma caixa de lata que fazia as vezes de
caixote do lixo.
– Onde é que ficámos ontem? – perguntou Reiko.
– Na altura em que tu, em plena noite de tempestade, te viste obrigada a
escalar uma ravina escarpada para resgatares um ninho de andorinha –
respondi.
– Tem graça, até porque se torna engraçado – disse ela com um ar
condescendente. – Acho que fiquei na parte em que comecei a dar aulas de
piano nas manhãs de sábado à tal jovenzinha.
– Isso mesmo.
– Se as pessoas que habitam este mundo fossem divididas entre as que
sabem ensinar e as que não sabem, eu estaria sem dúvida incluída entre as
primeiras – recomeçou Reiko a contar. – Quando era nova, não pensava
assim. No fundo, talvez não quisesse confessar os meus dotes, mas, a partir
de uma certa idade, há que reconhecer as verdades. Tenho jeito para ensinar.
Juro pela minha saúde.
– Acredito em ti.
– Tenho muito mais paciência com os outros do que comigo mesma, e
mais facilidade em descobrir o lado positivo das pessoas. Sou feita dessa
massa. A minha existência pode comparar-se à lixa que existe na parte
lateral das caixas de fósforos. Mas não faz mal, vivo bem com isso. Palavra
de honra. Prefiro ser uma caixa de fósforos de primeira qualidade que um
palito de segunda. Só me dei conta disso a partir da altura em que comecei a
ensinar a dita rapariga. Nos meus verdes anos, quando me dediquei ao
ensino a tempo parcial, não pensava assim. Só quando as aulas tiveram
início é que ganhei consciência desse facto. Pela primeira vez na minha
vida, pensei para comigo: «Tenho realmente talento para ensinar!»
«Como te disse anteriormente, a técnica da jovenzinha não era nada de
especial. Atendendo ainda ao facto de não pretender tornar-se profissional,
pude ensinar-lhe a tocar piano descontraidamente. Mais a mais,
frequentando ela uma escola de raparigas que lhe permitiria entrar
automaticamente na universidade, a mãe da rapariga até me disse que eu
podia “ir com calma”, sem ter de me esforçar muito. Além disso, palpitava-
me desde o nosso primeiro encontro que ela não gostava de ser pressionada.
Era do género de dizer que sim a tudo, mas depois, pelas costas, fazia única
e exclusivamente o que lhe dava na real gana. Desde o início, deixei-a tocar
o que queria, sem interferir. A seguir, eu tocava a mesma peça de todas as
maneiras possíveis e imaginárias. Depois, discutíamos qual a execução mais
correta. Só então lhe pedia que tocasse de novo. Escusado será dizer que a
interpretação melhorava substancialmente. Ela compreendera os pontos
positivos e apropriara-se deles.
Reiko interrompeu o fio à meada, respirou fundo e contemplou a ponta
acesa do cigarro. Continuei calado, a comer uvas.
− Acho que tenho um sentido musical bastante apurado, mas o dela era
superior ao meu. Que desperdício! Se desde pequena tivesse tido um bom
professor e recebido a preparação devida, teria atingido um nível excelente.
No entanto, a questão era outra. Aquela jovem mostrava-se incapaz de
absorver o talento único de que era portadora, faltava-lhe disciplina. Há
pessoas assim neste mundo. Conseguem interpretar maravilhosamente
peças dificílimas, olhando apenas para a partitura, ao ponto de nos fazerem
sentir pequeninos e de nos deixarem sem fôlego. A partir daí, não evoluem.
Porquê? Porque não se esforçam o suficiente. Não possuem a disciplina
necessária que lhes permita sistematizar o seu esforço. As peças que outras
crianças demoram três semanas a aprender, dominam-nas em metade do
tempo. Vendo que o aluno tem capacidade, o professor passa naturalmente à
peça seguinte. Que, por sua vez, elas aprendem a dominar em metade do
tempo. Ignorantes das reais dificuldades envolvidas no processo, perdem
um elemento essencial à formação da personalidade. É trágico, sabes?
Também eu vivi na pele este drama, mas felizmente apanhei pela frente um
professor muito severo e evitei a desgraça.
«Apesar de tudo, ensiná-la dava-me um certo gozo. Era o mesmo que
conduzir um automóvel desportivo de luxo numa autoestrada. Basta um
ligeiro movimento de dedos e a reação é imediata. Por vezes,
excessivamente rápida, convenhamos. O truque para ensinar uma rapariga
como ela consiste em não exagerar nos panegíricos. Desde pequenas, estão
habituadas a ser elogiadas a torto e a direito, e por mais encómios que
possam receber, isso já não lhes diz rigorosamente nada. O melhor é tecer
um elogio de quando em quando, na altura certa. O mais importante é não
as pressionar. Dar-lhes espaço de manobra, em vez de as incentivar a ir
sempre mais longe, obrigá-las a refletir. Só isso. Se agirmos deste modo,
corre tudo às mil maravilhas.
Reiko deixou cair o cigarro no chão e apagou-o com o pé. Depois
inspirou fundo, como se quisesse acalmar o coração.
− No fim da aula, tomávamos um chá e conversávamos. Volta e meia,
tocava qualquer coisa de jazz. Bud Powell, Thelonious Monk. Mas na maior
parte do tempo era ela quem fazia as honras da conversa. E se aquela
menina tinha o verbo fácil e era capaz de arrastar os outros atrás dela! Tal
como ontem te disse, não passava quase tudo de invenções, mas, ainda
assim, ficávamos presos às histórias. Ela possuía um sentido de observação
muito apurado, exprimia-se corretamente, por vezes com sarcasmo e
sentido de humor, e isso bastava para despertar as emoções e tornar o
diálogo apaixonante. Em todo o caso, era dotada de genuíno talento no que
tocava a estimular e exacerbar os nossos sentimentos. Por outro lado, tendo
perfeita consciência desse dom, utilizava-o habilmente a seu bel-prazer.
Sabia como jogar com os sentimentos do seu interlocutor, a fim de provocar
nele o mais variado rol de emoções: ódio, tristeza, compaixão,
desapontamento, alegria. Manipulava os sentimentos alheios sem outra
finalidade que a de testar as suas próprias capacidades nesse domínio.
Logicamente, na altura não compreendi o que estava a acontecer comigo, e
só mais tarde me dei conta disso.
Abanando a cabeça, Reiko comeu meia dúzia de bagos de uva. Parecia
refletir na melhor maneira de me apresentar a versão daquela história.
− Durante meia dúzia de meses diverti-me bastante. De tempos a tempos,
havia coisas que me surpreendiam ou que me pareceram bizarras, mas não
liguei. Depois, ao escutar os seus desabafos, apavorou-me a violenta
aversão que era capaz de sentir fosse por quem fosse, o que, no meu modo
de ver as coisas, era pouco razoável e desprovido de sentido. Nesses
momentos, ficava chocada e perguntava a mim mesma o que aquela jovem
inteligente pensaria de verdade. Todos nós temos os nossos defeitos, certo?
Além disso, eu não passava de uma mera professora de piano, e não me
cabia avaliar a personalidade dela e o seu carácter. Desde que trabalhasse
com afinco, era o suficiente. E, depois, para ser franca, até simpatizava com
ela...
«Seja como for, o melhor era não abordar assuntos demasiado pessoais,
dizia-me o meu instinto. Por isso, sempre que ela tentava tirar nabos da
púcara... sim, porque é bom não esquecer que era bestialmente curiosa...
limitava-me a transmitir-lhe informações inofensivas. Falava acerca dos
anos da minha formação, as escolas que frequentara, enfim, coisas desse
género. Ela dizia sempre que desejava saber mais sobre a minha pessoa.
Respondia-lhe que não havia nada para contar: levava uma vida banal, com
um marido e um filho comuns, e passava o tempo a tratar da roupa, da
comida e das limpezas, como qualquer vulgaríssima dona de casa. Olhava-
me então com um ar suplicante e confessava que gostava de mim. Caía-me
o coração aos pés, confesso. Ao mesmo tempo, porém, não desgostava de
todo. No entanto, nunca lhe disse mais do que o estritamente necessário.
«Um dia, estávamos em maio, se bem me lembro, a meio da aula referiu
que não se estava a sentir bem. Ficara pálida de repente e começara a
transpirar. Perguntei-lhe se queria voltar para casa. Respondeu-me que
preferia deitar-se na minha cama. Transportei-a quase ao colo até à cama do
nosso quarto, uma vez que o sofá lá de casa era muito pequeno. Pediu
desculpa pelo transtorno e eu disse-lhe que não se preocupasse. Ofereci-lhe
água ou o que preferisse. Disse-me que não precisava de nada, mas insistiu
para que ficasse a fazer-lhe companhia, tendo-me eu comprometido a ficar
o tempo que fosse preciso.
«Pouco depois, pediu-me numa voz sofrida se podia massajar-lhe as
costas. Parecia em sofrimento. Transpirava abundantemente, o que me
levou a fazê-lo de mansinho. Foi então que me pediu que lhe desapertasse o
sutiã, que estava a incomodá-la. Desapertei-lhe o sutiã, que remédio! Visto
que a camisa lhe estava muito justa, comecei por desabotoar os botões antes
de tocar nos colchetes do sutiã. Estava bastante desenvolvida para uma
rapariga de treze anos, e o peito era o dobro do meu. O sutiã não era do tipo
usado por adolescentes; tratava-se de um modelo luxuoso destinado a
mulheres adultas. Mas, vendo bem, isso não era o mais importante.
Continuei com as massagens nas costas, feita parva. Pela parte dela, não
parava de se desculpar numa voz lamuriosa. E eu sempre a repetir que não
fazia mal.
Reiko deu um toque no cigarro e a cinza tombou aos seus pés. Nessa
altura, totalmente absorvido pela história, já me esquecera das uvas.
− Passados instantes, desatou a soluçar. «O que é que tens?», quis eu
saber. «Nada», respondeu ela. «Alguma coisa deve ser», aventei. «Sê
honesta comigo.» Então ela disse: «Já me tem acontecido ficar assim. Não
sei o que fazer. Sinto-me sozinha, triste, sem ninguém a quem recorrer,
ninguém que me possa ajudar. É uma sensação de tal modo violenta que me
põe neste estado lastimoso. Não consigo pregar olho, tenho falta de apetite,
e a minha única distração é vir ter consigo, professora.» Pedi-lhe que me
explicasse melhor a situação, disse-lhe que era toda ouvidos.
«Contou-me que as coisas não corriam bem em família. Que não sentia
afeto pelos pais e que estes, por seu turno, não gostavam dela. O pai tinha
uma amante e nunca parava em casa, e a mãe, meio enlouquecida de dor,
vingava-se nela e era raro passar um dia sem lhe bater. Resumindo,
recusava-se a voltar para casa, confessava entre soluços. Tinha os bonitos
olhos cheios de lágrimas. Nem os deuses teriam ficado indiferentes ao vê-
la. Disse-lhe que poderia vir sempre ter comigo, mesmo que não tivéssemos
lição de piano, já que lhe era tão difícil regressar para junto dos pais. Ela
agarrou-se a mim, pedindo desculpa. “Que seria de mim sem a professora!
Por favor, não me abandone. Se me abandonar, não terei a quem recorrer!”
«Apertei-a nos meus braços e fiz-lhe festas no cabelo, procurando a todo
o custo consolá-la. Ato contínuo, ela rodeou-me com os braços e começou a
afagar-me as costas. Aquele gesto provocou em mim uma sensação deveras
estranha. O meu corpo ardia por dentro. Põe-te no meu lugar! Deitada na
cama, abraçada a uma bela rapariga que parecia ter saído das páginas de
uma revista e que me acariciava as costas com sensualidade. Confesso que
o meu marido não lhe chegava aos pés. O meu corpo como que saía dos
eixos a cada carícia, só para tu veres! Quando dei por mim, ela despira-me a
blusa e afagava-me os seios. Só nessa altura percebi que era lésbica. Aquilo
já acontecera uma vez comigo. Nos tempos do secundário, com uma das
minhas colegas ricaças. Disse então à minha aluna que não podia ser e pedi-
lhe para parar com o que estava a fazer.
«“Por favor, só mais um bocadinho. Sinto-me tão sozinha. Não é mentira.
Não tenho mais ninguém, peço-lhe, não me abandone.” Então, pegando na
minha mão, levou-a ao peito dela. Possuía uns seios extraordinariamente
perfeitos e, ao tocar-lhes, mesmo sendo mulher, recebi uma descarga
elétrica. Senti-me perdida, sem saber o que fazia. Limitava-me a repetir,
como uma idiota: “Não pode ser, não pode ser!” O corpo não me obedecia.
No secundário, lembro-me de ter sido capaz de me esquivar, mas naquele
momento foi superior a mim. A sua mão esquerda pressionava os meus
seios, ao mesmo tempo que me lambia, mordia-me delicadamente os
mamilos, acariciando-me as costas e as nádegas com a mão direita. É
espantoso, quando penso nisso, como me deixei despir por uma
rapariguinha de treze anos, as duas fechadas num quarto às escuras... sim,
porque quando me dei conta, já ela me desembaraçara o corpo de todas as
peças de roupa, e eu estava à beira de ceder às carícias dela. Que estupidez
a minha! Naquele momento, contudo, era como se estivesse subjugada por
um feitiço. E ela sempre a chupar os meus seios, repetindo: “Sinto-me tão
sozinha! Só a tenho a si, professora. Não me abandone. Estou
verdadeiramente só”, enquanto eu continuava a balbuciar que aquilo não
estava certo.
Reiko interrompeu a sua história e soprou o fumo do cigarro.
− É a primeira vez que conto isto a um homem – disse Reiko, olhos nos
olhos. – Palpita-me que me fará bem, mas não impede que me sinta
envergonhada.
− Desculpa – murmurei. Que outra coisa podia dizer?
− Ainda continuámos naquilo durante um bom bocado, até que a mão
dela desceu aos poucos. Tocou-me através das cuecas. Chegada àquele
ponto, já eu estava molhada até dizer chega. Tenho vergonha de confessar,
mas nunca me sentira tão excitada. Nem antes nem depois. Até à data,
sempre passara ao lado do sexo. Por isso fiquei espantada ao experimentar
na pele aquela sensação. A seguir, ela enfiou os dedos dentro de mim e...
bom, podes imaginar mais ou menos. Nem eu consigo traduzir por palavras.
Foi completamente diferente de quando era um homem a tocar-me com os
seus dedos. Torna-se difícil explicar, mas foi incrível. Como se me
estivessem a fazer cócegas com uma pena. Tinha a cabeça à beira de
explodir. Naquele estado de confusão, algo me alertava para o perigo.
Bastava acontecer uma vez e continuaria a fazê-lo, e a carregar comigo um
segredo que serviria apenas para me complicar a vida, como não podia
deixar de ser. A seguir, pensei na minha filha. Que aconteceria se ela nos
apanhasse em flagrante? Costumava ficar com os meus pais ao sábado até
às três da tarde, mas o que aconteceria se, por qualquer razão, voltasse para
casa mais cedo? Foi nisso que pensei. Reuni todas as minhas forças,
endireitei-me e gritei: «Para com isso, peço-te!»
«Mas ela não parou. Despiu-me as cuecas e começou a usar a língua.
Sendo pudica por natureza, raramente deixara que o meu marido me fizesse
aquilo, e eis senão quando aquela rapariguinha de treze anos me lambia
sofregamente. Como reagir? Só me apetecia chorar. Ao mesmo tempo,
sentia-me no sétimo céu.
«“Basta!”, gritei de novo, e dei-lhe uma bofetada. Por fim, parou. A
seguir, recompondo-se, encarou-me. Nessa altura, estávamos as duas
completamente nuas, olhando-nos fixamente. Ela tinha treze anos... e eu era
uma mulher de trinta e um, mas o seu corpo exercia sobre mim um fascínio
poderosíssimo. Lembro-me nitidamente dele como se fosse hoje. Custava a
crer que fosse o corpo de uma menininha de treze anos, e ainda me custa a
acreditar. Comparado com o dela, o meu corpo dava vontade de chorar.
Continuei calado, sem saber o que dizer.
− Ela perguntou-me então por que motivo devíamos parar. «Também
gosta disto, não gosta? Percebi desde o início. Gosta, não é verdade? Sente-
se arrebatada. Muito melhor do que com um homem. Não vê como está
húmida? Posso dar-lhe ainda mais prazer. A sério. Posso fazer com que se
derreta de prazer. Que me diz?» Tinha razão. Era tal qual como ela dizia.
Excitara-me muito mais do que o meu marido, e eu queria continuar a fazer
amor com ela. Mas não podia ser. «Vamos fazer isto uma vez por semana.
Passará a ser um segredo só nosso», propôs-me.
«Mas eu levantei-me, vesti o robe e mandei-a embora, dizendo-lhe que
nunca mais aparecesse à minha frente. Ela cravou os olhos em mim. Ao
contrário do que era normal, estavam completamente desprovidos de
expressão. Faziam lembrar olhos inexpressivos pintados sobre um pedaço
de cartão. Sem profundidade. Após ter medido forças com o meu olhar,
agarrou nas roupas em silêncio e vestiu as peças uma a uma, dando mostras
de uma lentidão simulada, como se quisesse exibir-se. Depois regressou à
sala do piano, sacou uma escova da mala, penteou-se, limpou o sangue dos
lábios com um lenço, calçou os sapatos e saiu. Antes de partir, disse-me:
− A senhora é lésbica. Tenho a certeza. E vai ser durante toda a vida, até
morrer.
− É verdade? – quis eu saber.
Reiko refletiu na pergunta, crispando os lábios.
− Sim e não. A bem dizer, senti mais prazer ao fazer sexo com aquela
miúda do que com o meu marido, é inegável. Isso fez com que, durante
algum tempo, passasse os dias angustiada, a perguntar a mim mesma se era
lésbica ou não. Vendo bem, podia nunca me ter dado conta. Hoje já não
penso assim. Claro que não significa que não tenha essa tendência.
Provavelmente existe. Mas não sou lésbica na verdadeira aceção da palavra.
Porque não sinto qualquer desejo sexual ao ver uma mulher. Entendes o que
te digo?
Assenti com a cabeça.
− Por outro lado, algumas mulheres engraçam comigo. Pode dizer-se que
mais não faço do que reconhecer essa atração. Por exemplo, se abraçar a
Naoko, não sinto nada de especial. Quando está calor, andamos
praticamente nuas pelo apartamento, chegamos a tomar banho juntas e a
dormir na mesma cama... Ora, não existe nada entre nós. Ela tem um corpo
fantástico, mas não passa disso. Uma vez, eu e a Naoko fingimos que
éramos lésbicas. Imagino que não estejas interessado nisso...
− Estou, conta-me tudo.
− Depois de eu lhe ter dito o que me acontecera, uma vez que nós as duas
não temos segredos uma para a outra, despimo-nos e ela acariciou o meu
corpo de todas as maneiras e feitios para ver no que dava. Não deu em nada.
Lembro-me de ter cócegas, ao ponto de sentir uma enorme vontade de rir.
Só de pensar nisso, fico com comichão. A Naoko não nasceu para esse tipo
de coisas. Aliviado?
− Para ser sincero, sim.
− Bom, foi mais ou menos isto que aconteceu – acrescentou ela, coçando
a sobrancelha com a ponta do mindinho. – Depois de a jovenzinha se ter ido
embora, fiquei prostrada na cadeira, sem pensar em nada. Não sabia de que
terra era. Ouvia o coração a palpitar no meu peito, produzindo um som
surdo, os braços e as pernas estranhamente rígidos, e a garganta seca como
se tivesse engolido borboletas ou coisa parecida. Sabendo que a minha filha
devia estar a aparecer, tomei banho. Além do mais, queria lavar as partes do
meu corpo que tinham sido acariciadas e lambidas. Mas por mais que eu
esfregasse com sabonete, não havia maneira de me libertar daquela
sensação viscosa. Nessa noite, pedi ao meu marido para fazermos amor.
Para tentar libertar-me das impurezas. Como é óbvio, não lhe expliquei o
motivo. Disse-lhe apenas para me apertar nos seus braços e fazer amor
comigo. Pedi-lhe para fazer durar a coisa, para ir mais devagar do que era
costume. Fizemos durar a coisa, e ele foi o mais meigo que possas imaginar.
Tive um orgasmo incrível. Nunca gozara assim desde que me casara. Sabes
porquê? Porque a sensação dos dedos dela permanecia dentro de mim.
Única e exclusivamente. Espantoso! Até tenho vergonha de falar sobre o
assunto. Fiquei a suar. Nem acredito quando me oiço dizer «pedi-lhe para
fazermos amor», «tive um orgasmo»...
Reiko sorriu e tornou a franzir os lábios.
− Seja como for, de nada adiantou. Passados dois ou três dias, continuava
a senti-la dentro de mim. E aquelas últimas palavras que pronunciara
ressoavam na minha mente como uma espécie de eco.
«No sábado seguinte, não apareceu. Esperei por ela, ansiosa, sem saber
muito bem o que faria no caso de nos voltarmos a ver. Era incapaz de fazer
outra coisa a não ser esperar. Mas não veio. Lógico. Uma rapariga
orgulhosa como ela... Também não apareceu na semana seguinte, nem na
outra, isto durante um mês a fio. Pensei que me esqueceria de tudo com o
tempo, mas tal não se verificou. Quando estava sozinha em casa, não sabia
o que era ter sossego, sempre a pressentir a sua presença. Deixei de tocar
piano por completo, de raciocinar. Não era capaz de me concentrar em
nada. Ao fim de um mês neste estado de alma, dei-me conta de que se
passava algo de estranho sempre que saía à rua. As pessoas da vizinhança
olhavam para mim de uma forma estranha, como se me quisessem evitar.
Cumprimentavam-me, naturalmente, mas o tom de voz e a atitude estavam
diferentes. Até uma vizinha que costumava passar lá por casa parecia evitar-
me. Esforcei-me por não ligar. Afinal, alimentar pensamentos obsessivos é
um dos primeiros sinais da doença.
«Um belo dia, uma das vizinhas com quem eu tinha mais afinidade veio
visitar-me. Éramos íntimas, por assim dizer, uma vez que tínhamos a
mesma idade, ela era filha de uma amiga da minha mãe e as nossas filhas
andavam no mesmo jardim de infância. Apareceu-me lá em casa
inesperadamente e, sem dizer água-vai, perguntou-me se eu estava a par do
rumor que corria a meu respeito. Respondi que não sabia de nada. «Que
rumor?”, perguntei. “Até me custa contar-te.” “Já que começaste, mais vale
contares-me tudo.”
«Ela hesitou um bocado, mas consegui arrancar-lhe a verdade. Contou-
me então que corria o boato de que eu era uma lésbica assumida com várias
passagens por hospitais psiquiátricos. Mais, tentara abusar de uma das
minhas alunas de piano, que, ao resistir, recebera uma bofetada tão violenta
ao ponto de ficar com a cara inchada. A reconstituição da história era
terrível, mas o que mais me deixou espantada foi o facto de ela estar a par
dos meus internamentos.
«A vizinha minha amiga disse-me que explicara a toda a gente que me
conhecia desde há muito e que eu não era esse tipo de pessoa. Os pais,
esses, acreditaram na filha e espalharam a história pelo bairro. Visto que a
jovem afirmara que eu abusara dela, investigaram e descobriram que eu
tinha um historial de internamentos em hospitais psiquiátricos.
«Segundo a minha amiga ouvira dizer, um dia, o famigerado dia em que
tudo aconteceu, a jovem regressou da aula de piano lavada em lágrimas e a
mãe perguntou-lhe o que sucedera. Tinha o rosto inchado, o lábio a sangrar,
os botões da blusa arrancados e a roupa interior rasgada. Inacreditável, não
achas? Escusado será dizer que tinha sido ela a encenar tudo aquilo para
tornar o relato mais credível. Deu-se ao trabalho de manchar a blusa de
sangue, arrancar dois ou três botões, rasgar a renda do sutiã, chorar até ficar
com os olhos vermelhos, desgrenhar a cabeleira e, ao entrar em casa,
desfiou um rosário de mentiras. O pior era que dava para imaginar a cena.
«Dito isto, não posso criticar aqueles que acreditaram na versão dela. No
seu lugar, se calhar teria reagido da mesma maneira. É natural que as
pessoas acreditem piamente numa menina linda como um anjo e com uma
língua de víbora, sobretudo quando ela afirma a pés juntos que não quer
dizer mais nada e que tem vergonha. Para complicar mais as coisas, a
verdade é que eu passara por um hospital psiquiátrico, além de a ter
esbofeteado na realidade. Quem é que acreditaria em mim? Só o meu
marido, com sorte.
«Depois de hesitar muito, achei por bem conversar com ele. Obviamente,
acreditou em mim. Contei-lhe que esbofeteara a insolente porque ela tentara
fazer comigo coisas que uma lésbica faria. Como é evidente, não fui
honesta ao ponto de lhe confessar os meus sentimentos. O meu marido
reagiu violentamente e disse: “O assunto é demasiado sério para ficarmos
de braços cruzados. Vou a casa deles e colocarei tudo em pratos limpos.
Afinal, tu és uma mulher casada e mãe de família. Por que carga de água
tens de te sujeitar a ser tratada como lésbica?”
«Mas eu impedi-o. Pedi-lhe para não ir. Disse que só serviria para piorar
tudo. Na realidade, já percebera até que ponto a rapariga era passada da
cabeça. Já vira muita gente doente, mas aquela jovem, em concreto, estava
doente por dentro. Debaixo da sua aparência bela e sedutora, estava
corrompida até à alma. Sei que é horrível falar nestes termos, mas não
deixava de ser verdade. O comum dos mortais, todavia, jamais entenderia, e
contra isso não podia fazer nada. Ela era extraordinariamente hábil a
manipular as emoções dos adultos e não tínhamos nenhum elemento
positivo a nosso favor. Quem acreditaria que uma menina de treze anos
tivesse tentado converter ao lesbianismo uma mulher na casa dos trinta?
Costuma dizer-se que as pessoas só acreditam no que querem. Lutar contra
aquele estado de coisas só serviria para piorar a situação.
«Sugeri ao meu marido que mudássemos de casa. Aos meus olhos, era a
única solução. Expliquei-lhe que permanecer no bairro mais tempo
aumentaria apenas a pressão sobre mim, correndo o risco de fazer saltar o
parafuso na minha cabeça. Nessa altura já me sentia atordoada quanto baste.
De qualquer modo, propus que nos mudássemos para um lugar distante,
onde ninguém me conhecesse. Mas o meu marido não tinha vontade disso.
Ainda não se dera conta da gravidade da situação. Passou-se isto numa
altura em que ele estava fortemente empenhado no seu trabalho,
acabáramos de comprar uma casinha prefabricada, a nossa filha já se
adaptara ao jardim de infância. Respondeu-me que não podíamos mudar de
vida assim do pé para a mão, argumentando que corria o risco de não
arranjar trabalho, que nos veríamos obrigados a vender a casa, andar à
procura de outro infantário para a menina, o que levaria dois meses, na
melhor das hipóteses.
«Insisti. Disse-lhe que se não agíssemos rapidamente, ficaria de tal forma
humilhada que poderia nunca mais me recompor. Confesso que foi um
bocado para lhe meter medo, mas, no fundo, era a pura verdade. Sentia-o na
pele. À data, começara já com zumbidos nos ouvidos, sofria de alucinações
e de insónia. Então ele propôs-me que fosse à frente, que se juntaria a nós
assim que eu tivesse a vida organizada. Foi a minha vez de lhe dizer que
não estava disposta a isso. Caso o abandonasse naquela altura do
campeonato, ficaria feita num oito. “Preciso de ti”, desabafei. “Por favor,
não me abandones.”
«Ele abraçou-me. E pediu-me para ter um pouco de paciência. Para
aguentar mais. “Dá-me um mês e eu trato do assunto. Peço a demissão,
vendo a casa, arranjo um novo jardim de infância e um novo emprego. Com
sorte, talvez até arranje trabalho na Austrália. Um mês é tudo o que te peço.
Prometo que as coisas se vão resolver.” Que podia eu argumentar? Quanto
mais argumentasse, mais isolada ficaria...
Reiko suspirou e olhou para o candeeiro do teto.
− Não fui capaz de esperar um mês. Certo dia, o parafuso na minha
cabeça soltou-se... e bum! Dessa vez foi mais grave. Tomei comprimidos
para dormir, abri o gás. Quando voltei a mim, estava deitada numa cama do
hospital. E foi o fim de tudo. Meses mais tarde, quando recuperei o ânimo,
pedi o divórcio. «É a melhor solução, tanto para ti como para a nossa filha»,
disse ao meu marido. Ele respondeu-me que não estava nos seus planos
divorciar-se de mim. «Vamos começar uma vida nova, longe daqui, os três
juntos», propôs-me. «É demasiado tarde», repliquei. «Acabou tudo no
momento em que me pediste para esperar um mês. Nunca deverias ter dito
isso se pretendias realmente recomeçar. Para onde formos, por mais longe
que seja, a história voltará a repetir-se. Acabarei por te fazer sofrer de novo,
voltarei a pedir-te a mesma coisa, e isso é o que menos desejo.»
«E foi assim que nos divorciámos. Ou, melhor dizendo, que eu o obriguei
a divorciar-se de mim. Tornou a casar-se há coisa de dois anos, e até hoje
não me arrependo de ter tomado aquela decisão. Palavra de honra. Na
época, estava plenamente convencida de que a doença se prolongaria até ao
fim dos meus dias e não queria ver mais ninguém envolvido. Longe de mim
forçar uma pessoa a viver no constante pavor de que eu pudesse
enlouquecer de um momento para o outro.
«Ele foi sempre um marido exemplar. Era um homem sincero, cheio de
energia, paciente, em quem eu podia confiar plenamente. Fez tudo ao seu
alcance para me ajudar com a minha doença, e esforcei-me ao máximo por
ficar curada. Tanto por causa dele como da nossa filha. Acreditei realmente
que estava curada. No fim de contas, tivemos um casamento feliz durante
os seis anos que durou. E, de repente, bum! Bastou uma coisinha de nada e
tudo se desmoronou numa fração de segundo. Por causa daquela fedelha.
Reiko apanhou as beatas caídas aos pés e deitou-as para dentro da lata.
− É uma história terrível. Esforçámo-nos tanto por construir qualquer
coisa, pouco a pouco... e tudo acabou enquanto o diabo esfrega um olho.
Não ficou nada de pé.
Reiko levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos.
− Vamos regressar. Começa a ficar tarde.
O céu estava mais preto, se possível, e carregado de nuvens, e a Lua
desaparecera por completo. Agora também eu conseguia sentir o cheiro da
chuva, misturado com o odor das uvas frescas dentro do saco.
− É por isso que não posso ir-me embora daqui – acrescentou ela. –
Apavora-me a ideia de partir e de encontrar pela frente uma data de gente e
novas sensações.
− Compreendo os teus sentimentos – afirmei. – Mas estou em crer que
serias capaz. Tenho a certeza de que te desenvencilharias lindamente lá fora.
Reiko sorriu mas não disse nada.

***

Naoko estava sentada no sofá a ler um livro. Tinha as pernas cruzadas e a


ponta do dedo a pressionar a testa, como se tentasse tocar e memorizar as
palavras que lhe entravam na cabeça. Lá fora começaram a cair grossas
bagas de chuva. À luz do candeeiro, o corpo de Naoko parecia coberto por
uma poalha fina. Ao reencontrá-la, depois daquela longa conversa com
Reiko, a juventude dela surgia diante de mim com uma frescura renovada.
− Desculpa termos demorado tanto – disse Reiko, acariciando os cabelos
de Naoko.
− Divertiram-se? – perguntou ela, levantando a cabeça.
− Claro que sim – respondeu Reiko.
− O que andaram os meninos a fazer? – perguntou-me Naoko.
− Um cavalheiro não fala dessas coisas – respondi-lhe.
Naoko pousou o livro e riu-se baixinho. Em seguida, comemos as uvas
enquanto ouvíamos cair a chuva.
− Quando chove assim, dá-me a sensação de que somos as únicas pessoas
no mundo – observou Naoko. – Se chovesse eternamente, poderíamos ficar
juntos para sempre.
− E enquanto vocês os dois estivessem na marmelada, eu, feita escrava,
limitar-me-ia a abaná-los com um leque comprido ou tocaria música
ambiente na minha guitarra, não? Pois bem, podem tirar o cavalinho da
chuva – disse Reiko.
− Bom, podia emprestar-to de quando em vez – retorquiu Naoko a rir.
− Sendo assim, o caso muda de figura – afirmou Reiko. – Que chova!

***

Continuou a chover sem tréguas. Volta e meia, ouvia-se um ou outro trovão.


Quando acabou de comer as uvas, Reiko acendeu um cigarro, para não
variar, tirou a guitarra de debaixo da cama e começou a tocar. Interpretou
«Desafinado» e «A Garota de Ipanema»33, e a seguir atacou vários temas de
Burt Bacharach, à mistura com outros tantos de John Lennon e Paul
McCartney. Reiko e eu bebemos um pouco de vinho e, quando acabámos a
garrafa, partilhámos o conhaque que restava na minha garrafa. Envoltos por
uma agradável sensação de intimidade, conversámos acerca de tudo e mais
alguma coisa. Quem me dera, também a mim, que a chuva continuasse
eternamente a cair.
− Virás cá visitar-nos de novo? – perguntou Naoko, olhando para mim de
frente.
− Claro que sim.
− E também prometes escrever-me?
− Todas as semanas.
− E a mim? – quis saber Reiko.
− Se quiseres, terei todo o gosto – disse eu.
Às onze da noite, Reiko transformou o sofá numa cama, tal como fizera
na noite anterior. Demos as boas-noites, apagámos a luz e fomos deitar-nos.
Como ainda não tinha sono, saquei do saco a minha lanterna de leitura, o
romance A Montanha Mágica e comecei a ler. Pouco antes da meia-noite, a
porta do quarto abriu-se devagar e Naoko veio deitar-se a meu lado. Ao
contrário da véspera, era a Naoko de sempre. Perdera o olhar vago e os seus
gestos eram ágeis. Aproximou a boca da minha orelha e disse-me:
− Não sei porquê, mas não consigo dormir.
Disse-lhe que o mesmo se passava comigo. Larguei o livro, apaguei a luz,
abracei-a e dei-lhe um beijo. A obscuridade e o ruído da chuva envolviam-
nos docemente.
− E a Reiko?
− Não te preocupes, está a dormir profundamente. Quando adormece, não
há nada nem ninguém que a acorde – disse Naoko. – Prometes vir mais
vezes?
− Prometo.
− Mesmo que eu não possa fazer nada por ti?
Assenti no escuro. Senti a forma dos seios dela de encontro ao meu peito.
Através da camisa de noite, acariciei-a. Percorri-lhe com as palmas das
mãos dos ombros às costas, até chegar às ancas, gravando na memória as
linhas e a macieza do seu corpo. Depois de nos abraçarmos com ternura por
breves momentos, Naoko beijou-me na testa e deslizou para fora da cama.
Vi a sua camisa de noite azul-celeste flutuar como um peixe na água escura.
− Sayonara34 – sussurrou ela.
Escutando o rumor da chuva, embarquei num sono retemperador.

***

Na manhã seguinte, continuava a chover. Ao contrário da noite anterior,


tratava-se de uma chuva outonal, tão fina que mal se sentia. Não fora os
círculos que se formavam nas poças e o gotejar nas telhas, nem se daria por
ela. Quando abri os olhos, o céu, de um branco leitoso, estava coberto de
nuvens, porém, à medida que o Sol subia mais alto, o vento encarregou-se
de varrer a bruma, permitindo distinguir aos poucos o contorno das árvores
e das montanhas.
Tal como na manhã anterior, tomámos o pequeno-almoço juntos e a
seguir fomos tratar do aviário. Naoko e Reiko usavam impermeáveis
amarelos com capuz. Eu vesti um corta-vento por cima da camisola. O ar
estava frio e húmido. As aves encontravam-se agrupadas a um canto para
fugir da chuva.
− Quando chove, faz mais frio – comentei com Reiko.
− Sempre que chove, a temperatura baixa, e não tarda nada começará a
nevar – explicou ela. – As nuvens vindas do mar do Japão largam a neve ao
atravessar esta região.
− O que acontece aos pássaros durante o inverno?
− Ficam abrigados, evidentemente. Ou achavas que, com a chegada da
primavera, temos por hábito desenterrar os pássaros congelados e, depois de
descongelarmos o corpo deles, dizemos: «Vamos, meus bravos, venham
comer»?
No momento em que toquei com o dedo na rede metálica, o papagaio
agitou as penas e gritou: «Vai à merda! Obrigado! Doido!»
− Não me importava nada de congelar este – disse Naoko com ar
melancólico. – Ouvir a mesma lengalenga todas as manhãs deixa qualquer
pessoa fora de si...
Assim que demos por terminada a limpeza do galinheiro, regressámos ao
apartamento e eu comecei a fazer a mala. Enquanto isso, elas preparavam-
se as duas para ir até à horta. Saímos juntos e separámo-nos um pouco antes
de chegarmos ao court de ténis. Fizemos as nossas despedidas. Prometi que
voltaria para nova visita. Naoko sorriu-me antes de dobrar a curva e
evaporou-se.
Até chegar junto do portão, cruzei-me com várias pessoas. Envergavam
todas um impermeável amarelo igual ao de Naoko e da amiga, com o capuz
enterrado na cabeça. A chuva tornara mais vivas as cores à volta. O solo
estava enegrecido, os ramos dos pinheiros eram de um verde brilhante, e as
pessoas envoltas nas suas capas de plástico faziam lembrar uma categoria
especial de espíritos, aos quais só era permitido vaguear pela terra nas
manhãs chuvosas. Moviam-se silenciosamente, carregando as suas
ferramentas agrícolas, cestos e uma espécie de sacos.
Quando cheguei ao portão, o guarda lembrava-se do meu nome e, mal saí,
assinalou-o na lista dos visitantes.
− Veio de Tóquio, não foi? – perguntou o velhote, deitando uma olhadela
à minha morada. – Só fui a Tóquio uma vez. Achei a carne de porco
deliciosa.
− Ah, sim? – observei, sem perceber muito bem onde é que ele pretendia
chegar.
− Nem tudo o que comi em Tóquio me soube bem, mas a carne de porco
era excelente. Calculo que tenham métodos especiais para a engorda.
Expliquei que não estava por dentro do assunto e que era a primeira vez
que ouvia alguém dizer que a carne de porco em Tóquio prestava para
alguma coisa.
− Quando foi isso? – perguntei-lhe. – A sua visita a Tóquio, digo.
− Deixe-me cá ver – disse o velho guarda, inclinando a cabeça. – Julgo
que terá sido por ocasião do casamento do príncipe herdeiro. O meu filho
morava em Tóquio e insistiu para eu ir visitá-lo nem que fosse uma vez.
Escolhi essa data.
− Sem dúvida que, nessa altura, a carne de porco em Tóquio devia ser
uma delícia – disse eu.
− E agora, que tal?
Respondi-lhe que não tinha a certeza, mas que não me lembrava de ter
ouvido qualquer comentário a esse respeito. Ele pareceu ficar um nadinha
dececionado. Saltava à vista que o homem estava desejoso de ficar ali a
conversar durante mais tempo. No entanto, fui obrigado a interrompê-lo
para dizer que estava na hora de apanhar o autocarro, e pus-me finalmente a
caminho. Nalguns pontos do caminho que acompanhava o curso do rio
ainda havia restos de neblina que o vento se encarregava de afastar para os
lados da montanha. Parei por mais de uma vez, olhei para trás e suspirei
sem razão de ser. Dir-se-ia que chegara a um planeta com uma gravidade
diferente. Sim, claro, pensei com uma certa tristeza, este é o mundo
exterior.

***

Eram quatro e meia quando cheguei a casa. Larguei a bagagem no quarto,


mudei rapidamente de roupa e dirigi-me de imediato para a loja de discos
de Shinjuku onde trabalhava. Das seis às dez da noite fiquei à frente da loja
e vendi alguns discos. Durante esse tempo, entretive-me a observar, como
quem não quer a coisa, as pessoas dos mais variados segmentos sociais que
passavam diante da loja. Famílias, casais, bêbedos, membros da yakuza,
raparigas de minissaia, hippies cabeludos, mulheres que trabalhavam em
bares de alterne, entre outros indivíduos difíceis de classificar. Bastava eu
pôr a tocar rock da pesada e, automaticamente, tanto os hippies como os
jovens desempregados que por ali se arrastavam começavam logo a juntar-
se à frente da montra para dançar, cheirar cola, ou limitando-se a ficar
sentados. Se eu punha um disco de Tony Bennett, pisgavam-se logo.
Ao lado da loja havia uma sex-shop onde o proprietário, um velhote de
olhar sonolento, vendia brinquedos para adultos. Confesso que sempre tive
dificuldade em perceber quem poderia gostar daquele género de artefactos,
mas o negócio parecia ir de vento em popa. Numa ruela em frente, um
estudante com uns copos a mais vomitava. No game center do bairro, o
cozinheiro de um restaurante matava as horas a jogar bingo. Um sem-abrigo
de rosto imundo estava agachado, imóvel, de encontro às grades metálicas
de uma loja fechada. Uma rapariga com os lábios pintados de batom rosa-
vivo entrou na loja para perguntar se eu não poderia pôr a tocar «Jumpin’
Jack Flash» dos Rolling Stones. Procurei, pus o trinta e três rotações no
prato do gira-discos, e ela acompanhou o ritmo fazendo estalar os dedos e
dando às ancas. A seguir, perguntou-me se eu lhe arranjava um cigarro.
Ofereci-lhe um dos Lark do maço que o gerente da loja deixara ficar. A
jovem fumou o cigarro com gosto e, quando o disco terminou, foi-se
embora sem uma palavra de agradecimento. De quinze em quinze minutos
ouvia-se a sirene de uma ambulância ou de um carro da polícia. Três
funcionários de fato e gravata, cada um mais bêbedo que o outro, riam e
gritavam obscenidades a uma jovem bonita de cabelos compridos, que fazia
uma chamada telefónica de uma cabina pública.
Confrontado com aquele cenário, senti-me cada vez mais confuso e sem
compreender nada. O assunto deu-me que pensar. Qual o sentido de tudo
aquilo?
O gerente regressou à loja depois do jantar.
− Sabes, Watanabe, ontem fui para a cama com a empregada da loja da
esquina?
Andava há muito de olho numa rapariga que trabalhava na dita loja e
tinha por hábito oferecer-lhe discos. Dei-lhe os parabéns, e ele contou-me
tudo ao pormenor. Aconselhou-me a fazer o mesmo, que é como quem diz,
mimosear com prendas uma mulher e levá-la a beber uns copos valentes até
ela ficar perdida de bêbeda. Depois, acrescentou, era só acabar o
trabalhinho.
Apanhei o comboio e voltei para o dormitório, ainda perturbado. Fechei
as cortinas, apaguei a luz e estendi-me ao comprido na cama, imaginando
que, de um momento para o outro, Naoko viria ter comigo. De olhos
fechados, senti a curva macia dos seios dela de encontro ao meu peito, ouvi
a sua voz a sussurrar e acariciei os contornos do seu corpo. Na obscuridade,
regressei ao pequeno mundo de Naoko. Aspirei o perfume da erva, ouvi a
chuva cair. Pensei em Naoko, nua ao luar, e revisitei o seu corpo bonito e
macio como veludo por baixo do impermeável amarelo, ocupada a tratar do
galinheiro ou dos legumes na horta. Segurei no meu pénis duro e pensei em
Naoko até me vir. A confusão na minha mente pareceu acalmar-se um
pouco, mas eu continuava sem conseguir conciliar o sono. Apesar de estar
terrivelmente cansado, não havia maneira de adormecer.
Levantei-me, fui até à janela e ali me deixei ficar, distraído, a observar o
pódio onde a bandeira nacional costumava ser içada. O mastro branco sem
bandeira surgiu diante de mim fazendo lembrar um gigantesco osso branco
incrustado na noite escura. Pensei em Naoko e perguntei a mim próprio o
que ela estaria a fazer àquela hora. A dormir, como não podia deixar de ser.
Devia estar profundamente adormecida, envolta nas trevas do seu pequeno
e estranho mundo. Rezei para que não tivesse pesadelos.

27 O Hikari era, à data, o comboio-bala Shinkansen mais rápido. (N. da T.)

28 Localizada no meio do bosque e cercada de muros, a Residência Ami apresenta algumas


semelhanças com a cidade que os leitores de Murakami encontraram no romance O Impiedoso País
das Maravilhas e o Fim do Mundo. Os doentes procuram libertar-se do stresse e das preocupações
diárias do mundo lá fora, uma transcendência em tudo semelhante aos habitantes desprovidos de bom
senso (e de bom coração) da cidade cercada pelas altas muralhas. (N. da T.)

29 Em japonês, o tratamento para professora e médico é o mesmo: sensei. Como tal, Ichida-sensei
tanto significa «professora Ishida» como «doutora Ishida». (N. da T.)

30 Reiko refere-se ao facto de Tōru ter revelado porventura falta de sensibilidade ao levar na viagem
um romance cuja ação decorre num sanatório suíço especializado em tuberculose e problemas
psiquiátricos, embora, como escreve Jay Rubin em Haruki Murakami and the Music of Words,
utilizar a expressão «psicanálise» nos dias que antederam a Primeira Guerra Mundial pudesse fazer
Hans Castorp, a figura central da narrativa, rir a bandeiras despregadas. (N. da T.)

31 Nimono é um prato típico japonês preparado com verduras, peixe ou carne cozida. Misoshiro ou
sopa de miso é uma sopa tradicional japonesa: o dashi (caldo de peixe) é a base da sopa, onde se
dissolve o miso. (N. da T.)

32 À letra, «gato que convida ou chama». O maneki-neko é a figura de um gato com a pata levantada,
que os donos dos estabelecimentos comerciais japoneses utilizam amiúde para atrair clientes. (N. da
T.)

33 Amante da bossa nova, Murakami sempre revelou predileção por este tema de Vinicius de Moraes
e Antônio Carlos Jobim. Desse gosto particular nasceu «The 1963/1982 Girl from Ipanema», uma
história deliciosa e divertida, na qual, sempre ao som do sax tenor aveludado de Stan Getz, o escritor
japonês discorre sobre os temas da perda e do envelhecimento, da memória e da música, da realidade
e da descida ao poço. (N. da T.)

34 Adeus. (N. da T.)


Na manhã do dia seguinte, uma quinta-feira, dei várias braçadas na piscina
de cinquenta metros durante a aula de Educação Física. O exercício
vigoroso ajudou-me a aclarar as ideias e teve o condão de me abrir o
apetite. Após um almoço substancial, dirigi-me à biblioteca da Faculdade de
Letras para pesquisar meia dúzia de coisas. Pelo caminho, encontrei Midori
Kobayashi. Estava acompanhada por uma jovem baixinha, de óculos. Mal
me viu, veio ter comigo.
− Aonde vais? – perguntou-me.
− À biblioteca – respondi.
− Porque é que não vens antes almoçar comigo?
− Acabei agora mesmo de almoçar.
− E depois? Almoças outra vez!
Acabei por aceitar o repto. Midori e eu entrámos numa cafetaria do
bairro: ela mandou vir arroz com curry e eu tomei apenas café. Sobre a
blusa branca de mangas compridas trazia um colete amarelo de malha com
peixes bordados, usava um cordão de ouro e um relógio da Disney. Comeu
o curry avidamente e bebeu três copos de água.
− Por onde andaste estes dias? Telefonei-te uma série de vezes – disse
Midori.
− Precisavas de alguma coisa?
− Nada em particular. Falar contigo.
− A-hã – murmurei
− O que significa esse «a-hã»?
− Nada. É uma expressão como outra qualquer – ripostei. – Diz-me uma
coisa. Tem havido muitos incêndios?
− Não. Mas olha que aquele a que assistimos foi divertido. Não provocou
grandes danos, mas, em compensação, a fumarada toda teve um efeito
bastante realista.
Dito aquilo, Midori bebeu vários goles de água. A seguir, respirou fundo e
fitou-me, compenetrada.
− Que se passa, Tōru? Pareces meio aluado. Nem sequer consegues fixar
o olhar.
− Nada de grave. Regressei de viagem e estou cansado.
− Parece que viste um fantasma.
− A-hã – fiz eu.
− Tens aulas hoje à tarde?
− Alemão e História da Religião.
− Dá para te baldares?
− À de Alemão é impossível. Tenho teste.
− A que horas acaba?
− Às duas.
− Nesse caso, que tal irmos até à cidade beber um copo depois da aula?
− Beber às duas da tarde?
− Uma vez sem exemplo, qual é o mal? Pareces tão em baixo! Vem beber
comigo para ver se te animas. Que me dizes?
− Está bem. Vamos lá tomar um copo – disse eu, suspirando. – Encontro-
me contigo às duas no pátio da faculdade.

***

A seguir à aula de Alemão, apanhámos o autocarro e fomos até Shinjuku, a


um bar chamado DUG35 que ficava na cave de um prédio, nas traseiras da
livraria Kinokuniya. Mandámos vir duas vodcas-tónica.
− Volta e meia, venho até cá. Podemos tomar uma bebida sem sermos
olhados de lado – disse ela.
− Costumas beber à tarde?
− Tenho dias – respondeu Midori, fazendo chocalhar ruidosamente o gelo
no copo. – Quando a vida está mais difícil, passo por aqui para beber uma
vodca-tónica.
− A vida está difícil?
− Sim, por vezes – confessou Midori. – Também tenho os meus
problemas.
− E quais são os teus problemas?
− A minha família, o meu namorado, a menstruação irregular... Uma data
de coisas.
− Mandamos vir nova rodada?
− Vamos nessa.
Levantei o braço para chamar o empregado e encomendei mais duas
vodcas-tónica.
− Lembras-te daquele domingo em que foste ter comigo a casa e me
beijaste? – perguntou Midori. – Pensei no assunto e cheguei à conclusão de
que gostei muito do teu beijo.
− Tanto melhor.
− Com que então, tanto melhor? – repetiu Midori. – De facto, falas de
uma forma mesmo esquisita.
− Achas? – perguntei.
− Bom, isto para dizer que gostaria que aquele tivesse sido o meu
primeiro beijo. Caso estivesse nas minhas mãos reverter a ordem dos
acontecimentos, quem me dera que fosse o primeiro beijo dado a um
homem em toda a minha vida. Sem sombra de dúvida. Depois viveria o
resto dos dias a pensar: «Que estará a fazer aquele rapaz, Tōru Watanabe de
seu nome, que me beijou pela primeira vez no terraço da minha casa? Que
será feito dele, agora que já deve ter cinquenta e oito anos?» Não achas
espantoso?
− Imagino que sim – disse eu, retirando a casca a um pistácio.
− Explica-me porque é que andas tão distante? Já não é a primeira vez
que te faço esta pergunta.
− Se calhar, ainda não me adaptei completamente ao mundo – disse eu
depois de ter ponderado bem. – Tenho a impressão de que este não é o
mundo real. As pessoas e a paisagem em redor não se me afiguram
verdadeiras.
Midori pousou os cotovelos em cima do balcão e olhou-me nos olhos.
− Há uma letra de Jim Morrison que tem uma letra parecida.
− «People are strange when you’re a stranger.» Que é como quem diz, as
pessoas são estranhas quando tu és estranho.
− Peace – disse Midori.
− Peace – disse eu.
− Gostaria que viajasses comigo até ao Uruguai – declarou Midori
sempre com os cotovelos em cima do balcão. − Que abandonasses tudo:
namorada, família, universidade.
− Não é mal pensado – disse eu a rir.
− Não achas fantástico deixar tudo para trás e partir para um lugar onde
ninguém te conhece? Há alturas em que só tenho vontade de fazer uma
coisa desse género. Uma vontade diabólica. Vamos imaginar que me
levavas para longe. Dar-te-ia um rancho de filhos saudáveis e fortes como
touros. E seríamos felizes para sempre... Rebolando pelo chão.
Ainda a rir, acabei a minha segunda vodca-tónica e pedi a terceira.
− Estou a ver que não desejas o tal rancho de crianças fortes como
touros... – observou Midori.
− Tenho uma certa curiosidade. Pelo menos, gostava de ver no que dava.
− Se não quiseres, tudo bem – disse Midori, comendo um pistácio. – Foi
apenas uma ideia que me passou pela cabeça a meio da tarde, já com uns
copos em cima! Sinto vontade de mandar tudo à fava e de me pôr a
caminho do Uruguai. Sabendo que o mais certo é ir encontrar apenas
excrementos de burro...
−Quem sabe?
− Cagalhões de burro por toda a parte. Tanto aqui como lá, é uma bosta!
Toma este, mais duro do que sei lá o quê – disse ela, entregando-me um
pistácio. Descasquei-o com muito custo. – Naquele domingo, senti-me
verdadeiramente descontraída. Os dois no terraço, a observar o incêndio, a
beber e a cantar. Há muito tempo que não me sentia tão bem. Pressionam-
me de todos os lados. Assim que dão por mim, começam a debitar ordens, é
automático! Tu, ao menos, deixas-me em paz.
− Ainda não te conheço suficientemente bem para te exigir seja o que for.
− Quer isso dizer que vais pressionar-me quando me conheceres melhor?
− É uma possibilidade – declarei. – No mundo real, vivemos todos a
exercer pressão uns sobre os outros.
− No teu caso, duvido. E acredita que tenho olho para estas coisas. Não é
nada o teu género. Por isso é que me sinto mais descontraída quando estou
contigo, sabias? Os mesmos que só pensam em pressionar os outros não se
importam de ser pressionados. Depois vão para a rua gritar. Adoram. Mas
eu, pelo contrário, não gosto nada. Se o faço, é porque não me resta
alternativa.
− E de que maneira pressionas os outros? Ou a que coisas te pressionam
eles?
Midori pôs uma pedra de gelo na boca e entreteve-se a chupá-la.
− Queres conhecer-me melhor?
− Pode ser.
− Acabei de te perguntar se me querias conhecer melhor... Não achas a
tua resposta cruel?
− Okay, quero conhecer-te melhor, Midori – respondi.
− Queres?
− Quero.
− Mesmo que sejas obrigado a desviar o olhar?
− É assim tão terrível?
− Num certo sentido, sim – afirmou Midori, franzindo a cara. – Preciso de
mais um copo.
Fiz sinal ao empregado e mandei vir a quarta rodada. Enquanto as bebidas
não chegavam, Midori manteve os cotovelos apoiados no balcão. Em
silêncio, deixei-me ficar a ouvir Thelonious Monk interpretar «Honeysuckle
Rose». No bar havia mais cinco ou seis clientes, mas só nós é que
estávamos a beber. O aroma penetrante do café imprimia ao interior
sombrio do bar uma atmosfera intimista e acolhedora.
− Estás livre no domingo que vem?
− Se não me engano, já te disse que estou sempre livre aos domingos.
Menos a partir das seis, por causa do meu emprego.
− Então, que tal marcarmos encontro para domingo?
− Parece-me bem.
− Vou buscar-te a casa. Só não te consigo dizer ainda a que horas. Pode
ser.
− Por mim...
− Sabes o que me apetecia fazer agora, Tōru Watanabe?
− Não faço ideia.
− Apetecia-me estar estendida numa cama enorme e confortável, para
começar – disse Midori. – Estou bêbeda o suficiente para me sentir no
sétimo céu, sem excrementos de burro por perto, e quero-te deitado ao meu
lado. Aos poucos, começas a despir-me, uma peça de cada vez, dando
mostras de grande delicadeza. Devagar, tal como as mães despem os filhos
pequenos.
− A-hã.
− Até determinado ponto, deixo-me ir, um nadinha entorpecida. De
repente, dou-me conta do que está a acontecer e grito: «Não faças isso,
Tōru!» E acrescento: «Gosto muito de ti, mas tenho outra pessoa na minha
vida. É impossível. Sabes como eu sou rigorosa nestas coisas. Por isso,
basta. Para, por favor.» Mas, tu não paras.
− Garanto-te que pararia.
− Bem sei. Isto é uma efabulação – explicou Midori. – E é então que me
mostras a tua coisa. Totalmente dura. Tapo os olhos, mas ainda assim vejo-a
por uma fração de segundo. «Não, por favor! Não podes enfiar essa coisa
tão grande e tão dura dentro de mim!»
− Não é tão grande como isso. Tem um tamanho normal, se queres saber.
− Não estragues o meu devaneio. Nesse ponto, pões uma cara tristíssima.
E eu, com pena de ti, consolo-te: «Coitadinho, não fiques assim...»
− Estás a dizer-me que é isso que queres fazer agora?
− Isso mesmo.
− Fogo! – exclamei.

***

Ao todo, bebemos cinco vodcas-tónica cada um antes de sairmos do bar.


Quando me dispunha a pagar, Midori deu uma palmada na minha mão, tirou
da carteira uma nota novinha em folha de dez mil ienes e acartou com a
despesa.
− Hoje convido eu. Não te preocupes, recebi dinheiro à conta de uns
trabalhos que fiz. A menos que sejas um daqueles fascistas encartados que
não admitem que uma mulher pague a conta!
− Não sou desses.
− Além do mais, não te deixei penetrar-me.
− Por ser grande e dura...
Ligeiramente bêbeda, Midori meteu o pé em falso e quase caiu pelas
escadas. Na altura em que saímos do bar, as nuvens que encobriam o céu
tinham-se dissipado e o sol de fim de tarde derramava uma luz suave.
Midori e eu caminhámos durante algum tempo sem destino pelas ruas da
cidade. Ela manifestou desejo de subir a uma árvore, mas em Shinjuku não
havia árvores e os portões do parque imperial já estavam fechados.
− Que pena! Adoro trepar pelos troncos – lamentou-se Midori.
À medida que íamos vendo as montras das lojas, a cidade deixou de me
parecer tão irreal.
− Graças a ti, sinto-me mais adaptado ao mundo – confessei.
Midori interrompeu o passeio e fitou-me atentamente.
− Confirmo. Adquiriste um olhar menos vago. Pelos vistos, faz-te bem
sair comigo, meu rapaz!
− Tens razão.
Às cinco e meia, Midori anunciou que estava na hora de regressar a casa
para fazer o jantar. Disse-lhe que também ia apanhar o autocarro, estava na
hora de voltar para a residência. Acompanhei-a até à estação de Shinjuku e
aí nos despedimos.
− Sabes o que gostaria que acontecesse agora? – perguntou-me Midori na
hora da despedida.
− Não faço a mínima ideia do que passa pelos teus pensamentos –
respondi.
− Quem me dera que aparecessem uns piratas que nos fizessem
prisioneiros, nos despissem e atassem juntos com uma corda.
− E por que carga de água fariam semelhante coisa?
− Porque não passam de um bando de pervertidos.
− Parece-me que a única pervertida aqui és tu – disse eu.
− Depois, seríamos abandonados no porão do navio e mandar-nos-iam
gozar assim juntinhos e amarrados, pois voltariam dentro de uma hora.
− E então?
− Então tiraríamos partido da situação durante aquela hora. Rebolando
pelo chão e contorcendo-nos.
− É o que desejas fazer neste preciso instante?
− Sim.
− Fogo! – exclamei, abanando a cabeça.

***

No domingo seguinte, Midori veio buscar-me às nove e meia da manhã.


Acabara de me levantar da cama e nem sequer tinha lavado a cara. Alguém
bateu à porta do meu quarto aos berros: «Ei, Tōru Watanabe, tens aqui uma
miúda para falar contigo!» Desci até à entrada e vi Midori vestida com uma
minissaia de ganga incrivelmente curta, sentada de pernas cruzadas e a
bocejar. Ao passar diante dela, os meus camaradas de residência devoravam
com os olhos as pernas longas e esguias de Midori. Tinha, de facto, umas
pernas lindíssimas.
− Cheguei cedo demais? – perguntou ela. – Não me digas que acabaste de
sair da cama?
− Vou só lavar a cara e fazer a barba. Dás-me quinze minutos?
− Não me importo de esperar, mas é bom que saibas que os rapazes não
tiram os olhos das minhas pernas.
− Óbvio, não te parece? Quem é que mandou aparecer numa residência
masculina com uma saia dessas? Não te podes queixar.
− Tudo bem, não me incomodam. Hoje tenho umas cuecas bonitas. Cor-
de-rosa, com rendinhas. Mesmo a calhar!
− Isso só piora as coisas – afirmei com um suspiro. Voltei para o quarto e
fiz os possíveis por despachar as minhas abluções matinais. Enfiei um
casaco de malha por cima da camisa azul desportiva, desci e acompanhei
Midori até ao portão principal. Estava cheio de suores frios.
− Esta malta que aqui mora costuma masturbar-se? – perguntou ela,
levantando os olhos para o edifício.
− Provavelmente.
− Os homens pensam sempre em raparigas enquanto se masturbam?
− Imagino que sim – respondi. – Palpita-me que será difícil um tipo
masturbar-se a pensar no mercado de valores, em conjugações verbais ou no
canal do Suez. Acho que tem mais lógica pensar em mulheres.
− O canal do Suez?
− É apenas um exemplo.
− Quer então dizer que eles pensam numa rapariga em concreto?
− Porque é que não perguntas antes ao teu namorado? – sugeri. – Por que
diabo tenho de te explicar essas coisas numa manhã de domingo?
− Tenho curiosidade em saber, mais nada – justificou-se ela. – Além
disso, o meu namorado iria aos arames. Acha que as mulheres não devem
fazer certas perguntas.
− E tem toda a razão!
− Mas eu quero saber! Responde lá a isto, por pura curiosidade. Quando
te masturbas, pensas numa rapariga em especial?
− No meu caso, penso. Mas não te sei dizer o que fazem os outros –
declarei, resignado.
− Já o fizeste a pensar em mim? Sê sincero. Prometo não ficar zangada.
− Para dizer a verdade, nunca. – E era verdade.
− Porquê? Não me achas bonita?
− Não é isso. Tu és atraente, bonita, e ficas muito bem nessas roupas
provocantes.
− Nesse caso, porque não pensas em mim?
− Porque te considero minha amiga, primeiro que tudo, e não quero
envolver-te nas minhas fantasias sexuais. Em segundo lugar...
− Tens outra pessoa nos teus pensamentos.
− Isso mesmo – afirmei.
− Até numa questão destas és bem-educado – comentou Midori. – Adoro
essa tua faceta. Mas não poderias incluir-me, nem que fosse uma única vez,
nas fantasias sexuais ou nos pensamentos libidinosos? Gostaria imenso que
tal acontecesse. Estou a pedir-te como amiga, vá lá! Esta noite, quando te
masturbares, pensa em mim. Não é propriamente o tipo de coisa que se
possa pedir a qualquer um. Só o faço porque somos amigos. E depois
contas-me como foi.
Deixei escapar um suspiro.
− Mas nada de penetração, combinado? Afinal, somos amigos. Podes
fazer o que te der vontade, desde que não haja penetração.
− Isso já me parece mais complicado. Nunca me masturbei com tantos
condicionalismos...
− Prometes pensar no assunto?
− Prometo.
− Ouve, Tōru, não quero que penses que sou uma mulher depravada,
insatisfeita ou armada em provocante. Acontece que tenho uma grande
curiosidade em relação a este tema. Cresci rodeada de meninas típicas de
um colégio de raparigas. Sinto uma vontade louca de saber o que pensam os
homens e como funciona o seu corpo. Sem ser o que se lê nos suplementos
das revistas femininas, mas sim baseado numa autêntica investigação com
base científica.
− Base científica? – murmurei à beira do desespero.
− De cada vez que expresso a minha curiosidade, ou se quero fazer isto e
aquilo, o meu namorado fica piurso. Chama-me doida varrida. Outras vezes
diz que não estou boa do juízo. Nem sequer me deixa fazer sexo oral. E eu
que desejo aprofundar o tema.
− A-hã.
− Não gostas que te façam sexo oral?
− Bom, não desgosto...
− Então quer dizer que gostas!
− Sim, digamos que sim. E que tal deixarmos este tema para outro dia?
Não me está nada a apetecer estragar a nossa bela manhã de domingo a
falar sobre punhetas e felação. Mudemos de assunto, sim? O teu namorado
anda a estudar na nossa universidade?
− Não, está inscrito noutra. Conhecemo-nos durante a escola secundária,
num dos clubes de estudantes. Eu andava no colégio das meninas e ele no
dos rapazes. É vulgar organizarem concertos de música e outros eventos em
conjunto. Mas só começámos a namorar depois do secundário. Olha uma
coisa, Tōru...
− O quê?
− Uma vez é quanto basta. Pensa em mim quando o fizeres.
− Vou tentar – respondi, resignado.

***

Apanhámos o comboio e fomos até Ochanomizu. Como não tinha comido


nada de manhã, ao fazermos transbordo em Shinjuku comprei uma
sanduíche mais fina do que sei lá o quê e bebi um café requentado com
sabor a tinta de jornal no bar da estação. Naquela manhã, o comboio estava
cheio de famílias e de parzinhos em excursão de domingo. Vários rapazes
vestidos de igual e transportando bastões de basebol corriam pelas
carruagens provocando a confusão generalizada. Viam-se muitas raparigas
de minissaia, embora não tão curtas como a de Midori. Volta e meia, ela
ajeitava a saia e puxava-a para baixo. Pela parte que me tocava, sentia-me
pouco à vontade, pois alguns homens não tiravam os olhos das suas coxas.
Contudo, a minha companheira parecia não se ralar com isso.
− Sabes o que me apetecia fazer agora? – perguntou Midori em voz baixa
quando passávamos por Ichigaya.
− Não faço a mínima ideia – respondi. – Mas peço-te que não comeces
com conversas daquele género que a gente sabe dentro do comboio. As
outras pessoas não têm nada com o assunto, e só serviria para me
envergonhar.
− Que pena. Acabei de ter uma ideia ainda mais mirabolante – replicou
Midori num tom pesaroso.
− A propósito, o que vamos fazer a Ochanomizu?
− Espera e logo verás.
Naquele domingo, Ochanomizu estava invadido por estudantes de liceu
que deviam andar a fazer exercícios simulados ou exames. Agarrando com
a mão esquerda a alça da mala a tiracolo, Midori esgueirou-se agilmente por
entre a multidão de estudantes e pegou-me na mão.
− Consegues explicar-me a diferença entre o condicional presente e o
condicional perfeito dos verbos ingleses, Tōru?
− Julgo que sim – respondi.
− E podes dizer-me qual é a utilidade disso na vida de todos os dias?
− Que eu saiba, não tem utilidade praticamente nenhuma – respondi. –
Mais do que servir para alguma coisa de concreto, tem por função ajudar-
nos a compreender a realidade de um modo sistemático.
Com a cara mais séria do mundo, Midori refletiu naquilo durante um bom
bocado.
− Tu és o máximo – exclamou. – Até hoje nunca tinha encarado a questão
desse ponto de vista. Perguntava apenas a mim mesma para que servia o
condicional, o cálculo diferencial, os símbolos químicos... Foi por isso que
sempre ignorei essas matérias complicadas. Achas que fiz mal?
− Ignoraste, dizes tu?
− Sim, vivi até hoje como se nada disso existisse. Não percebo
rigorosamente nada de senos e cossenos.
− E conseguiste acabar o secundário e entrar na universidade? –
perguntei, espantado.
− Não sejas ingénuo! – ripostou Midori. – Até parece que não sabes do
que a casa gasta! Quem possui intuição consegue passar nos exames,
mesmo não sabendo a ponta de um corno. E intuição é coisa que não me
falta. Descubro num abrir e fechar de olhos qual a resposta certa entre as
várias opções de um teste de escolha múltipla.
− Pois eu, à falta de uma intuição boa como a tua, não tive outra opção
senão aprender a pensar de maneira sistemática. Da mesma forma que um
corvo vai acumulando fragmentos de vidro no buraco de uma árvore.
− E isso serve para quê?
− Depende – afirmei. – Calculo que facilite uma data de coisas.
− Concretamente o quê?
− Por exemplo, o raciocínio metafísico, ou a aprendizagem de línguas...
− E, insisto, para que é que isso serve?
− Depende das pessoas. É útil a alguns, ao passo que para outros não
serve de nada. Mas como se trata, acima de tudo, de um treino, a questão da
utilidade torna-se secundária, tal como te expliquei anteriormente.
− Não me digas! – exclamou Midori, impressionada. Arrastou-me pela
mão e continuámos a descer a encosta. – Já te disseram que tens o dom de
explicar bem as coisas?
− Achas?
− Sem dúvida. Antes de ti, fartei-me de perguntar às pessoas para que
servia o condicional dos verbos ingleses, mas nunca ninguém foi capaz de
me dar uma explicação convincente como tu. Nem sequer os próprios
professores de inglês! Sempre que lhes fazia a pergunta, ficavam confusos,
irritados ou tratavam-me como se eu fosse atrasada mental. Quando penso
que, se me tivessem explicado tudo direitinho, se calhar teria manifestado
interesse pelo modo condicional...
− Estou a ver.
− Leste O Capital, de Karl Marx?
− Claro. Logicamente, não li tudo. Como a maior parte das pessoas.
− Compreendeste a obra?
− Algumas passagens, sim, outras não. Para assimilar corretamente um
livro como O Capital é necessário adquirir um sistema de raciocínio. Creio
que consigo compreender o marxismo até certo ponto, nos seus princípios
gerais.
− Achas que um estudante que acabou de entrar para a universidade e
praticamente nunca leu livros desse género está em condições de o
apreender numa primeira leitura?
− Acho que é praticamente impossível – respondi.
− Quando entrei para a universidade, tinha vontade de cantar. Inscrevi-me
num clube de música folk, que veio a revelar-se um lugar cheio de
mistificadores da pior espécie. Só de pensar nisso fico com arrepios. Mal
chegavas, punham-te a ler O Capital. «Para o próximo dia, lê de tal a tal
página», diziam. Faziam discursos para nos explicar de que modo a música
folk estava ligada à sociedade e ao movimento radical. Por esta amostra já
podes ver! Como não havia volta a dar, regressava a casa e esforçava-me
por ler Marx. Mas era pior a emenda que o soneto e não entendia patavina.
Desistia à terceira página. Na reunião seguinte, explicava que tinha lido mas
não entendera nada. Resultado: tratavam-me como uma perfeita idiota,
acusando-me de não ter consciência dos problemas e de falta de consciência
social. Foi muito triste. E tudo porque eu confessara que não alcançava a
mensagem. Não achas o cúmulo?
− Acho.
− E os chamados «debates» eram de fugir. Os membros, sem exceção,
usavam palavras difíceis, dando-se ares de grandes peritos no assunto. Ora,
como não havia meio de compreender, eu voltava à carga. «O que significa
a exploração capitalista? Tem alguma relação com a Companhia das Índias
Orientais?» Ou então: «Abaixo a cooperação entre os industriais e os
estudantes. Quer dizer que, ao sair da universidade, não devemos procurar
trabalho numa empresa?» Mas ninguém me explicava as coisas como deve
ser. Pelo contrário. Ficavam supinamente irritados. Dá para acreditar?
− Acho que sim.
− Passavam o tempo a gritar comigo. «Como é possível que não entendas
isto? O que tens dentro da cabeça?» Foi a gota de água. Não aguentei mais.
Posso não ser muito inteligente, até aí concordo. Sou uma pessoa comum,
faço parte do povo. Acaso não serão as pessoas comuns que sustentam a
humanidade? Assim sendo, que revolução é essa, amigo, que faz alarde de
palavras com que o povo não atina? Onde é que está a transformação da
sociedade? Também quero melhorar o mundo, sem sombra de dúvida. Se
alguém anda a ser explorado, há que tomar providências. É isso que me leva
a fazer perguntas. Tenho ou não razão?
− Sim, tens razão.
− Foi então que cheguei à conclusão de que aqueles tipos não passavam
de uns impostores. Que ficavam satisfeitos pelo simples facto de usarem
palavras caras, pretendendo apenas impressionar as caloiras e tendo por
objetivo enfiar a mão debaixo das suas saias. E no último ano de faculdade
cortavam o cabelo curto e candidatavam-se a um emprego na Mitsubishi, na
IBM ou no Banco Fuji, casavam-se com alguma beldade que nunca lera
Marx na vida e, por ironia do destino, batizavam os filhos com nomes
pretensiosos em voga. É a isso que chamam «cooperação entre os
industriais e os estudantes»? É tão engraçado que dá vontade de chorar.
Sem esquecer que os outros caloiros não eram melhores! Apesar de nenhum
deles perceber peva, riam-se e punham um ar entendido. Mais tarde,
vinham ter comigo e diziam: «Não sejas estúpida! Mesmo que não
compreendas, tens de fingir.» E há uma coisa que ainda me deixou mais
furiosa. Queres que te conte?
− Claro.
− Um belo dia, fomos convocados para uma reunião política à meia-noite.
Disseram a cada uma das raparigas para levar vinte onigiri36 para a ceia.
Deviam estar a gozar com a nossa cara! Queres maior discriminação
sexual? Para não levantar problemas, preparei os vinte bolinhos de arroz
sem uma palavra de protesto. Recheeio-os com umeboshi e embrulhei-os
com nori. Sabes o que disseram? Que dentro dos meus bolinhos só havia
umeboshi. Pelos vistos, as outras tinham-nos recheado à base de salmão ou
ovas de bacalhau e até mesmo de tiras de ovo estrelado. De tão danada,
fiquei sem fala. Aqueles sujeitos, que só sabiam falar da revolução, tinham
o palato demasiado delicado e só se importavam realmente com bolinhos de
arroz! Basta pensar nas crianças carenciadas que vivem na Índia...
Desatei a rir.
− E como acabou essa história do clube de estudantes?
− Em junho deixei de pôr lá os pés. Estava farta até aos cabelos –
explicou Midori. – Esses estudantes universitários são quase todos idiotas
chapados. Morrem de medo só de pensar que os outros venham a descobrir
a ignorância deles. Leem os mesmos livros, dizem as mesmas coisas,
masturbam-se intelectualmente com a música de Coltrane e os filmes de
Pasolini. Chamas a isso fazer a revolução?
− Nunca vivi uma revolução, por isso não me perguntes.
− Se a revolução é isto, não contem comigo. O mais certo era ter de
enfrentar um pelotão de fuzilamento por ter recheado os bolinhos de arroz
com ameixas secas e nada mais. E tu também serias fuzilado, uma vez que
dominar o uso do modo condicional é contrarrevolucionário.
− É provável.
– Até compreendo, sabes? Não te esqueças de que sou uma pessoa do
povo. Haja ou não revolução, o povo continuará sempre a viver na corda
bamba. Revolução? O que muda é apenas o nome do partido no governo!
Mas aquela gente, que mais não faz do que usar e abusar da verborreia, não
tem noção disso. Alguma vez viste um inspetor das Finanças?
− Não.
− Pois eu sim, montes de vezes. Entram-nos pela casa dentro sem pedir
licença, pondo-se a fazer mil e uma perguntas. «Onde é que estão os livros
de contabilidade? Como explica este negócio estranho? Quer que eu
acredite que isto é a despesa? Mostre-me os recibos.» Não tínhamos outro
remédio senão ficar encolhidos a um canto e, quando chegava a hora do
almoço, mandávamos vir sushi para eles dos restaurantes mais caros. É
preciso que saibas que o meu pai nunca se furtou a pagar impostos. Juro. É
um homem do mais honesto que há, um cavalheiro à moda antiga. E, no
entanto, os funcionários dos impostos não lhe davam tréguas! Sempre a
achar que os rendimentos declarados eram baixos. Se isso acontecia, era
porque o negócio andava mal. Escusado será dizer que aquilo reapresentava
uma humilhação para nós. Apetecia-me gritar: «Vão investigar os ricos,
aqueles que têm dinheiro a sério!» Achas que, se a revolução triunfar, Tōru,
a atitude do pessoal das Finanças mudará?
− Duvido muito.
− Nesse caso, não acredito na revolução. Só acredito no amor.
− Peace – disse eu.
− Peace – disse ela.
− A propósito, para onde estamos a ir?
− Para o hospital. Tenho o meu pai lá internado e hoje é a minha vez de
lhe prestar assistência.
− O teu pai? – Fui apanhado de surpresa. – Não estava no Uruguai?
− Era mentira – disse Midori, imperturbável. – Passava a vida a ameaçar
que se ia embora para o Uruguai, mas nunca chegou a ir. Para ser sincera,
mal consegue sair de Tóquio.
− Como está ele?
− É uma questão de tempo, sinceramente.
Caminhámos durante um bocado sem trocar uma palavra.
− Sei do que falo, porque ele sofre da doença que a minha mãe tinha. Um
tumor cerebral. A minha mãe morreu disso fez há pouco tempo dois anos. E
agora tocou-lhe a ele.

***

Pelo facto de ser domingo, a par dos doentes que apresentavam sintomas
ligeiros, o Hospital Universitário estava repleto de visitantes. Flutuava no ar
o cheiro inconfundível dos hospitais. Um odor a desinfetante misturado
com flores, urina e roupa de cama, no meio de um cenário por onde as
enfermeiras deambulavam fazendo soar o som seco das suas socas37.
O pai de Midori estava instalado num quarto duplo e ocupava a primeira
cama, junto à porta. A sua figura fazia lembrar um animalzinho
mortalmente ferido. Deitado de lado, sem se mexer, com a agulha de soro
espetada no braço direito. Tratava-se de um sujeito pequeno e magro, e ao
olhar para ele dava a impressão de que estava condenado a emagrecer e a
mirrar ainda mais. Tinha uma ligadura branca a envolver-lhe a cabeça e os
braços cheios de marcas feitas pelas picadas de injeções e agulhas de soro.
O olhar semicerrado fixava-se no vazio; quando entrei no quarto, senti os
olhos injetados de sangue cravarem-se em nós. Ao fim de alguns segundos,
voltaram a perder-se num ponto fixo.
Ao olhar para ele, percebi de imediato que não tardaria a morrer. Restava-
lhe apenas um sopro de vida. O seu corpo fazia lembrar uma velha casa
despojada de móveis e de alicerces, sem teto entre ruínas. À volta dos lábios
secos despontava uma barba rala com meia dúzia de pelos parecidos com
ervas daninhas. Achei estranho que a barba continuasse a crescer num
homem que perdera a sua energia vital.
Midori cumprimentou o indivíduo gordalhufo de meia-idade que se
encontrava deitado na cama ao lado da janela. O doente, incapaz de falar,
limitou-se a sorrir e a acenar afirmativamente. Após tossir várias vezes,
bebeu um pouco da água que tinha num copo pousado sobre a mesa de
cabeceira, e a seguir virou-se com dificuldade e ficou a observar a paisagem
lá fora. Através da janela viam-se apenas postos e fios elétricos. Nem
sequer uma nuvem para amostra.
− Estás melhor, pai? – perguntou Midori, encostando a boca à orelha dele,
como se estivesse a testar um microfone. − Como te sentes hoje?
− Mal – respondeu ele. Mais do que falar, limitara-se a expulsar o ar seco
que tinha no fundo da garganta, transformando-o em palavras.
− Dói-te a cabeça? – perguntou Midori.
− Sim – respondeu o pai.
Pelos vistos, não conseguia articular mais do que uma ou duas sílabas.
− Não há nada a fazer – disse Midori. – Depois de uma operação, é
normal que tenhas dores. Sei que deve custar-te horrores, mas procura ter
um pouco mais de paciência. Olha, este é o meu amigo Tōru Watanabe.
− Muito gosto – cumprimentei-o.
O pai dela entreabriu os lábios, fechando-os logo a seguir.
− Senta-te ali – disse Midori, apontando para uma cadeira de plástico
vaga aos pés da cama. Obedeci. A seguir, deu a beber ao pai água da garrafa
e perguntou-lhe se queria fruta ou gelatina.
− Não – respondeu o pai.
Quando Midori insistiu, dizendo que precisava de se alimentar, ele
retorquiu:
− Já... comi.
Ao lado da cama havia uma mesa de cabeceira com vários objetos. A
saber: um jarro com água, um copo, um prato e um pequeno relógio. De um
grande saco de papel guardado debaixo da mesa, Midori tirou um pijama
lavado, roupa interior e vários artigos, que arrumou no armário existente à
entrada. No fundo do saco ficou a comida destinada ao doente: duas
toranjas, gelatina de fruta e três pepinos.
− Pepinos? – exclamou Midori, sem crer no que os seus olhos viam. – O
que está isto a fazer aqui? Não sei onde é que a minha irmã tem a cabeça,
francamente! Como pode uma pessoa doente mastigar pepino? Disse-lhe ao
telefone tudo o que deveria comprar... e não lhe falei em pepinos.
− Se calhar, fez confusão com quivis38 – aventei.
Midori fez estalar os dedos.
− Deve ser isso. Se tivesse puxado pela cabeça, perceberia
automaticamente. Pai, queres um pepino?
− Não – respondeu o pai.
Midori sentou-se à cabeceira da cama e contou ao pai as novidades lá de
casa. Segundo ela, a televisão não andava a funcionar bem e tinham
chamado um técnico para resolver o problema de receção de imagem. A tia
Takai prometera fazer-lhes uma visita em breve, o Sr. Miyawaki da
farmácia dera novo tombo da moto, e assim por diante. O pai limitava-se a
dizer «a-hã» de vez em quando.
− Pai, não queres comer nada, a sério?
− Não – respondeu ele.
− Apetece-te uma toranja, Tōru?
Neguei com a cabeça.
Pouco depois, Midori propôs-me que fôssemos até à sala da televisão.
Sentámo-nos no sofá e ela fumou um cigarro. Havia três doentes de pijama
a fumar enquanto assistiam a um debate político na televisão.
− Estás a ver aquele sujeito de muletas? Desde que chegámos que não tira
os olhos das minhas pernas. Aquele que tem óculos e um pijama azul –
observou Midori com ar divertido.
− Elementar. Toda a gente repara numa saia desse tamanho.
− Qual é o mal? Esta gente aborrece-se de morte, é bom que tenham
oportunidade de recrear a vista de vez em quando. Aposto que um pouco de
excitação só lhes faz bem e contribui para a recuperação.
− Só espero que não tenha o efeito contrário!
Por momentos, Midori contemplou o fumo do cigarro desenhando uma
linha direita no ar.
− O meu pai não é má pessoa – declarou ela. – Por vezes, diz coisas
terríveis e aborreço-me com ele, mas, no fundo, é um homem de princípios,
e adorava a minha mãe. À sua maneira, levou uma vida intensa e foi um
lutador, apesar de se ter revelado fraco e sem jeito para o negócio. Nunca
gozou de grande popularidade, mas, comparado com os indivíduos
matreiros e sem escrúpulos que por aí andam, é um homem sério. Como eu
também sou do género de não dar o braço a torcer, sempre nos travámos de
razões. Mas não é má pessoa, palavra de honra.
Midori pegou-me na mão, como quem agarra num objeto caído na rua, e
colocou-a no colo. Metade em cima da saia, a outra metade sobre a coxa.
Deixou-se ficar a olhar para mim.
− Custa-me pedir-te isto, até porque sei que um hospital não é um lugar
agradável, mas ficas aqui comigo mais um bocadinho? – disse ela passado
um bocado.
− Posso ficar o tempo que quiseres, mas só até às cinco – respondi. –
Além de me agradar a tua companhia, não tenho nada de especial
combinado.
− Como é que costumas passar os domingos?
− A lavar roupa – respondi. – E a passar a ferro.
– Estou a ver que não tens grande vontade de falar acerca da rapariga com
quem andas.
− Nisso tens razão. Não quero mesmo. É complicado e dificilmente te
conseguiria explicar.
− Tudo bem. Não precisas de explicar nada – observou Midori. – Agora,
posso dizer-te como imagino a coisa?
− Claro. Deve ser interessante. Sou todo ouvidos.
− Para já, acho que é uma mulher casada.
− A-hã.
− Uma mulher bonita e cheia de massa, com os seus trinta e dois ou trinta
e três anos, que usa casaco de peles, sapatos Charles Jourdain, roupa
interior de seda e, além do mais, é ninfomaníaca. Daquelas que gostam de
se entregar a jogos lascivos. Durante a semana, vocês encontram-se todos
os dias ao fim da tarde e entregam-se ao prazer. Mas aos domingos, como o
marido está em casa, nada feito. Acertei?
− Parece-me uma teoria interessante – reconheci.
− Ela obriga-te a amarrá-la e a vendar-lhe os olhos, e deixa-te lamber
cada centímetro do seu corpo. Pensa nisso durante todo o dia, até porque
não tem mais nada com que se entreter. «Quando o Tōru chegar, fazemos
isto e aquilo.» Na cama, arde de desejo: recorrendo a posições dignas de
uma contorcionista, deixa que tu enfies nela objetos estranhos e tem três
orgasmos de seguida. E diz-te o seguinte: «Não tenho um corpo fantástico?
As jovenzinhas que andam por aí nunca te conseguirão satisfazer. Ou achas
que uma rapariga te fará sentir isto? Diz! Estás a sentir? Não te venhas
ainda.»
− Palpita-me que andas a ver demasiados filmes pornográficos... – disse
eu sem conseguir conter o riso.
− Se calhar, tens razão. A verdade é que adoro filmes pornográficos.
Vamos combinar ir juntos?
− Tudo bem. Quando tiveres uma aberta.
− A sério? Olha que é bem divertido! Vamos ver um filme
sadomasoquista, que tal? Daqueles em que os homens empunham o chicote
e obrigam as miúdas a urinar à frente deles. São os meus preferidos.
− Combinado.
− Sabes o que mais me atrai nos cinemas que passam fitas pornográficas?
− Não faço a mínima ideia.
− Pois bem, confesso que gosto das cenas de sexo, mas o melhor de tudo
é o barulho feito pelos espectadores a engolir em seco – disse Midori. –
Adoro esse som. É uma coisa do outro mundo.

***
De regresso ao quarto, Midori tornou a sentar-se ao pé do pai e começou a
contar-lhe certas coisas. Ele escutava a filha em silêncio, intercalando sinais
de aprovação e um ou outro grunhido breve à laia de resposta. Por volta das
onze chegou a esposa do paciente da cama ao lado, mudou o pijama do
marido e descascou-lhe uma peça de fruta. A mulher, que, diga-se de
passagem, tinha uma cara redonda e simpática, conversou um bocado com
Midori acerca de assuntos triviais. A enfermeira apareceu, mudou o saco de
soro e foi-se de novo embora, depois de ter trocado algumas palavras com
Midori e a outra senhora. Enquanto isso, sem nada para fazer, entretive-me
a examinar o interior do quarto e os cabos elétricos lá fora. De vez em
quando, os pardais pousavam sobre os cabos. Midori falava com o pai,
limpava-lhe o suor do rosto, ajudava-o a soltar o muco e a expetoração,
conversava com a senhora ao lado, com as enfermeiras e comigo. Sem
nunca deixar de lançar olhares atentos ao soro, que continuava a cair, gota a
gota.
Às onze e meia da manhã, o médico fez a ronda da praxe, e Midori e eu
ficámos a aguardar no corredor. Assim que o médico saiu, Midori
interrogou-o acerca do estado do pai.
− Acabou de ser operado e ainda se encontra sob o efeito dos analgésicos.
Como tal, está relativamente debilitado – explicou o médico. – Precisamos
de mais dois ou três dias para analisar o resultado da operação. Se tudo tiver
corrido bem, ótimo, caso contrário, então definiremos o que fazer a seguir.
− Não me diga que será necessário abrir outra vez o crânio dele.
− Neste momento, nada posso adiantar – disse o clínico. – Vejo que hoje
optou por uma minissaia reduzida até dizer basta!
− Bonita, não acha?
− Sem dúvida. Como é que faz para subir as escadas?
− Como sempre. Mostro tudo – respondeu Midori, enquanto a enfermeira
deixava escapar uma gargalhada.
− É melhor abrirmos a sua cabeça um dia destes, para vermos o que se
passa – afirmou o médico, estupefacto. – Já agora, enquanto estiver aqui no
hospital, faça-me um favor e utilize apenas o elevador. Não quero que o
número de doentes aumente por causa dessa minissaia. Já tenho trabalho
que chegue.
Perto do fim da hora de visita, chegou o almoço. A auxiliar percorreu os
quartos com o carrinho da comida, distribuindo os tabuleiros pelos
respetivos doentes. A refeição do pai de Midori consistiu em sopa, fruta,
peixe cozido e espapaçado, sem espinhas, que mais parecia uma massa
amolecida, e aquilo que parecia ser uma espécie de gelatina de legumes
triturados. Midori ajudou o pai a deitar-se de costas, deu a volta à manivela
para elevar a cabeceira da cama e começou a dar-lhe sopa à boca. Ao fim de
cinco ou seis colheradas, o pai virou o rosto e disse «não».
− Não podes comer só isto – disse ela.
− Depois − acrescentou o pai.
− Que vou eu fazer contigo! Se não comes, nunca vais melhorar – ralhou
Midori. – Tens vontade de fazer chichi?
− Não – respondeu o pai.
− Que tal irmos comer qualquer coisa à cafetaria do hospital, Tōru
Watanabe? − sugeriu ela.
Concordei com a cabeça, mas não estava com grande apetite, para falar
com franqueza. A cafetaria estava apinhada de médicos e enfermeiras,
misturados com os familiares dos pacientes. Cadeiras e mesas alinhavam-se
na ampla cave do hospital, sem janelas, e as conversas, na sua maioria,
giravam em torno da comida. Aquele som ecoava pelos corredores como
dentro de uma passagem subterrânea. Volta e meia, a chamada que chegava
pelos altifalantes sobrepunha-se ao burburinho de vozes. Enquanto eu
reservava lugar numa mesa, Midori foi buscar as nossas refeições servidas
em bandejas de alumínio. Da ementa do almoço constavam croquetes,
salada de batata, verduras cruas, legumes cozidos, arroz branco e sopa de
miso, tudo alinhado no tabuleiro nos mesmos recipientes de plástico branco
usados para a comida dos doentes. Comi metade e deixei o resto. Midori
comeu tudo com evidente prazer.
− Não estás com fome? – quis saber ela, bebericando o chá quente.
− Nem por isso.
− A culpa é do hospital – declarou Midori, olhando em volta. − Acontece
sobretudo a quem não está acostumado. O cheiro, os sons, o ar pesado, o
rosto dos doentes, o stresse, a irritação, o desespero, o sofrimento e o
cansaço: são tudo causas. Provocam a contração do estômago e a perda de
apetite. Mas se te habituares, já não há problema. Além disso, se numa
pessoa não se alimentar decentemente, não está em condições de tomar
conta de um doente. É a pura verdade. Sei do que falo porque tomei conta
de quatro doentes, ao todo: o meu avô, a minha avó, a minha mãe e, agora,
o meu pai. De repente, pode surgir algum imprevisto que te impeça de
comer. Por isso, convém alimentares-te enquanto podes.
− Percebo o teu ponto de vista – concordei.
− Quando as pessoas da nossa família vêm visitar o meu pai, comemos
sempre aqui na cafetaria, e também eles têm por hábito deixar metade no
prato. Ao verem que eu como cheia de apetite, dizem: «Que bom saber que
te alimentas como deve ser, Midori. No meu caso, não me passa nada pela
garganta. A emoção não me deixa comer, mas, vendo bem, quem cuida do
doente sou eu! Não estou a brincar. Os outros limitam-se a dar um ar da sua
graça, muito de vez em de quando. Mas quem limpa as necessidades, a
gosma e dá banho ao doente sou eu! Se a compaixão bastasse para limpar a
merda, eu teria mil vezes mais compaixão do que todos eles juntos. Em vez
disso, lançam-me olhares de desaprovação por me verem devorar tudo o
que está no tabuleiro. «Que bom saber que te alimentas como deve ser,
Midori.» Será que a família me toma por uma burra de carga? Por que raio é
que esta gente não compreende como funcionam as coisas? Falar é muito
fácil, mas o que importa é saber se algum deles está disposto a meter as
mãos na porcaria. Tenho alturas em que me vou abaixo, em que me sinto
completamente estafada. Só me dá vontade de chorar. Imagina a situação:
os médicos abrem a cabeça de um homem e andam a escarafunchar lá
dentro, apesar de saberem que não há qualquer esperança de melhoras, e
repetem o ritual, piorando sempre tudo e diminuindo cada vez mais as
faculdades ao pobre diabo. Quem aguenta isto? Sem contar com a questão
financeira. Sim, porque as nossas economias estão a ir pelo cano abaixo!
Nem sequer sei se conseguirei pagar os três anos e meio que faltam para
acabar a faculdade ou se poderei suportar as despesas do casamento da
minha irmã.
− Quantas vezes por semana vens ao hospital? – perguntei.
− Quatro vezes – respondeu Midori. – Em princípio, deveriam ser eles a
prestar total assistência aos doentes. Na prática, porém, as enfermeiras não
dão conta do recado. Fazem o melhor que podem, mas, como são em
número insuficiente, não têm mãos a medir. Como tal, a presença da família
torna-se indispensável. Uma vez que a minha irmã tem de tomar conta da
loja, acabo por passar por cá entre uma aula e outra. Ainda assim, a minha
irmã consegue vir três vezes por semana, e eu, quatro. Aproveitamos o
tempo que sobra para nos encontrarmos com amigos. Um programa muito
apertado, como podes constatar.
− Se estás tão ocupada, por que motivo te encontras comigo?
− Porque gosto de estar contigo – afirmou ela, brincando com a taça de
plástico vazia.
− Vai dar um passeio – disse eu. – Entretanto, fico aqui a tomar conta do
teu pai.
− Porquê?
− Vai fazer-te bem descansar um pouco, longe do hospital. Não fales com
ninguém, areja a cabeça.
Midori refletiu por momentos antes de concordar.
− Talvez tenhas razão. Mas sabes o que é preciso fazer? Alguma vez
tomaste conta de um doente?
− Estive a observar-te e não creio que tenha dificuldade. Verificar o soro,
limpar-lhe o suor da cara, as secreções. O urinol está debaixo da cama e, se
ele tiver fome, dou-lhe o que sobrou do almoço. Se acontecer alguma coisa
e eu tiver dúvidas, pergunto à enfermeira.
− É mais do que suficiente – disse Midori, sorrindo. – Às vezes, ele
começa a perder o tino e diz coisas que não fazem sentido, perfeitamente
incoerentes. Se te disser uma coisa do género, não ligues.
− Vai correr tudo bem – asseverei.

***

Ao voltar para o quarto, Midori explicou ao pai que tinha de sair por
momentos e que ficava outra pessoa a cuidar dele; que é como quem diz,
eu. O pai recebeu a notícia com indiferença. Ou também podia acontecer
que não tivesse percebido as palavras de Midori. Estava deitado de costas,
imóvel, com o olhar cravado no teto. Dir-se-ia que estava morto, não se
desse o caso de pestanejar de vez em quando. Tinha os olhos de um bêbedo,
injetados de sangue, e as narinas dilatavam-se um tudo-nada quando
respirava fundo. Tirando isso, não tugia nem mugia, e não reagiu
minimamente quando Midori lhe dirigiu a palavra. Pela minha parte, sentia-
me incapaz de adivinhar o que se passava nas profundezas da sua
consciência entorpecida.
Após Midori ter saído do quarto, ainda pensei em falar com ele, mas, sem
saber ao certo o que dizer, optei por ficar calado. Pouco depois, fechou os
olhos e adormeceu. Sentado à cabeceira da cama, observei as contrações
regulares das suas narinas, rezando para que não morresse. Seria estranho,
pensei, se ele soltasse o último suspiro comigo ao seu lado, a tomar conta
dele. Afinal de contas, acabava de conhecer o senhor e Midori constituía o
único elo de ligação entre nós. Sem esquecer que a relação que eu tinha
com ela ia pouco mais além de frequentarmos as mesmas aulas de História
do Teatro II.
Felizmente, o homem não estava a morrer. Dormia profundamente, tão-
só. Aproximei o ouvido do rosto dele e consegui ouvir-lhe a respiração
fraca. Aliviado, meti conversa com a senhora do lado. Pensando que eu era
o namorado de Midori, fartou-se de a elogiar.
− É uma joia de rapariga – disse. – Toma conta do pai, é amável,
carinhosa, atenta, forte e, além do mais, bonita. Trata-a bem e não a deixes
escapar. Moças como ela não se encontram por aí ao pontapé.
− Assim farei – respondi para lhe agradar.
− Tenho uma filha de vinte e um anos e um filho com dezassete que quase
nunca põem os pés no hospital. Quando têm tempo livre, arranjam sempre
uma desculpa: ou é o surf, ou um encontro marcado com os amigos... Que
tristeza. Só servem para nos sacar a mesada, e adeusinho que se faz tarde.
À uma e meia da tarde, a dita senhora abandonou o quarto, avisando que
tinha umas compras para fazer. Os dois doentes dormiam o sono dos justos.
Os suaves raios de sol da tarde inundavam o quarto e tive a sensação de
que, também eu, acabaria por passar pelas brasas, sentado na cadeira. Sobre
a mesa, ao lado da janela, os crisântemos brancos e amarelos enfiados numa
jarra eram sinal de que estávamos no outono. O cheiro adocicado do peixe
cozido servido ao almoço, que o pai de Midori deixara intacto, permanecia
no quarto. As enfermeiras que circulavam pelos corredores, produzindo o
habitual ruído seco de passadas, pareciam estar com a corda toda, e as suas
vozes estridentes e nítidas chegavam até mim. Volta e meia, entravam no
quarto e, ao ver os dois pacientes dormindo profundamente, dirigiam-me
um sorriso antes de se evaporarem. Desejei ter alguma coisa para ler, mas
não havia livros, nem revistas, nem jornais à vista. A única coisa que tinha
caracteres era um calendário pendurado na parede.
Pensei em Naoko, no corpo nu de Naoko, apenas com o travessão posto.
Evoquei a curva das suas ancas, a sombra dos pelos púbicos. Porque se teria
despido à minha frente? Teria tido algum ataque de sonambulismo? Ou não
passaria tudo de uma alucinação minha? Com o passar do tempo, ganhava
distância em relação àquele pequeno mundo, duvidava aos poucos da
autenticidade dos acontecimentos. Se me convencesse de que eram reais,
tornavam-se reais, e se acreditasse que não passavam de uma ilusão,
acabaria por acreditar nisso.
Os pormenores revelavam-se demasiado vívidos para serem uma ilusão, e
demasiado belos para serem reais. Tanto o corpo de Naoko como a
claridade do luar.
O pai de Midori acordou de súbito com um ataque de tosse,
interrompendo os meus devaneios. Recolhi as secreções com a ajuda de um
lenço de papel e limpei-lhe o suor da testa com a toalha.
− O senhor deseja beber água? – perguntei-lhe, e ele assentiu com um
vago aceno.
Conforme bebia a água devagar e em golinhos da pequena garrafa de
vidro, os seus lábios ressequidos tremeram e o pomo de Adão contraiu-se
ligeiramente. Bebeu o conteúdo tépido da garrafa inteira.
− Quer mais? – perguntei.
Deu-me a impressão de que pretendia dizer qualquer coisa. Aproximei o
ouvido. «Chega», murmurou num fio de voz, porventura ainda mais fraca.
− Gostaria de comer alguma coisa? Deve estar com fome – insisti.
O pai de Midori esboçou um aceno afirmativo. Tal como vira Midori
fazer, girei a manivela da cama e dei-lhe a comer, à boca, a gelatina de
verduras e o peixe cozido, alternando as colheradas. Demorou uma
eternidade a comer metade, até que virou a cabeça um nadinha de lado para
mostrar que não queria mais. Tudo indicava que qualquer movimento mais
amplo lhe faria doer a cabeça. Quando perguntei se queria uma peça de
fruta, fez que não. Limpei-lhe a boca com um guardanapo, voltei a colocar
a cama na horizontal e levei os pratos para o corredor.
− Estava bom?
− Bodega – respondeu.
− Imagino. Não tinha grande aspeto – disse eu a rir.
Ele manteve-se calado e de olhos postos em mim, como se não soubesse
se devia fechá-los ou mantê-los abertos. Será que sabe quem eu sou?,
perguntei a mim mesmo. Dava-me a ideia de que se sentia mais à vontade
comigo do que na presença da filha. Estaria a confundir-me com outra
pessoa? Se assim era, tanto melhor.
− Lá fora está um dia espetacular – d u, sentando-me de novo e cruzando
as pernas. – Em pleno outono, é domingo, o tempo está bom, dezenas de
pessoas por toda a parte. Nestes dias, o melhor é uma pessoa ficar
tranquilamente num quarto como este. Ajuda a descontrair a mente e o
corpo. Andar por sítios cheios de gente só serve para nos cansarmos e, além
disso, o ar está irrespirável. Regra geral, aproveito os domingos para lavar
roupa. Lavo-a de manhã, ponho-a a secar no terraço do meu prédio e, antes
de escurecer, levo-a para dentro e passo tudo a ferro. Gosto da sensação de
endireitar a roupa amarfanhada. A bem dizer, até sou bastante bom nisso.
Claro que ao princípio era um autêntico desastre. As peças de roupa
ficavam cheias de vincos. Precisei de um par de meses para dominar a
tarefa. Por isso, o domingo passou a ser o meu dia de lavar e passar roupa.
Hoje não deu, evidentemente. Pena, porque é o dia ideal.
«Não há problema. Amanhã levanto-me cedinho e trato disso. Não se
preocupe. Não tenho mais nada para fazer aos domingos.
«Amanhã de manhã, depois de lavar e estender a roupa ao ar livre, tenho
aulas às dez. A Midori também. A cadeira chama-se História do Teatro II e
estamos a dar Eurípides. O senhor sabe quem é? Um grego da Antiguidade,
considerado, juntamente com Ésquilo e Sófocles, um dos três grandes
dramaturgos gregos. Segundo parece, morreu depois de ter sido mordido
por um cão, na Macedónia, embora haja outras versões. Estamos a falar de
Eurípides... Pessoalmente, prefiro Sófocles, mas é uma questão de gosto.
«As suas tragédias caracterizam-se por haver muitos acontecimentos que
se misturam, obrigando por vezes a que as personagens não tenham por
onde escapar. Compreende? São muitas, as personagens, colocadas nas
mais diversas situações, com as suas razões e motivos, sempre à procura da
justiça e da felicidade. Como tal, enfrentam uma série de dilemas.
Elementar, não acha? Isto porque, fundamentalmente, é impossível que
todos obtenham justiça e alcancem a felicidade. O que prevalece, portanto,
é o caos. E que lhe parece que sucede? Na realidade, uma coisa muito
simples: por fim, entra em cena um deus que controla tudo. Tu segues
aquele caminho, tu vens para aqui, tu vais ter com aquele, tu ficas quietinho
por enquanto, e assim por diante. Alguém que tem a missão de pôr ordem
nas coisas. E tudo se resolve a contento. Chama-se a isso «deus ex
machina». Nas tragédias de Eurípides aparece quase sempre o deus ex
machina, e sobre esse ponto a crítica divide-se.
«Mas tudo seria mais simples se esse deus ex machina existisse no mundo
real, não lhe parece? Em circunstâncias difíceis, quando somos obrigados a
enfrentar situações de impasse, um deus desceria das alturas e resolveria
tudo. Nada mais simples. Aqui tem a matéria que damos nas aulas de
História do Teatro II. É o género de coisas que se aprende na universidade.
Enquanto eu discorria sobre o tema, o pai de Midori permanecia calado,
fitando-me com um olhar inexpressivo. Era impossível perceber se
entendera uma palavra do que eu dissera.
− Peace – experimentei dizer.
Aquele monólogo fizera-me fome. Além de ter comido pouquíssimo ao
pequeno-almoço, deixara metade do almoço no prato. Arrependi-me de não
ter almoçado decentemente, mas era tarde demais para alimentar
sentimentos desses. Procurei no armário, mas só encontrei uma lata de
algas, rebuçados Vicks e molho de soja. No saco de papel havia toranjas e os
famigerados pepinos.
− Importa-se que eu coma os pepinos? – perguntei.
O pai de Midori nada respondeu. Lavei os três pepinos39 no lavatório da
casa de banho. A seguir, coloquei um pouco de molho de soja num prato,
mergulhei os pepinos e deliciei-me com o repasto.
− Estão deliciosos, sabe? – comentei. – Leves, frescos, sabem-me pela
vida. Belos pepinos, sim senhor! Muito melhores do que os quivis.
Ao terminar o primeiro pepino, ferrei o dente no segundo. O curioso som
resultante de trincar um pepino ressoou em todo o quarto. Só depois de ter
acabado o segundo é que acalmei a fome. Predispus-me então a ferver água
e preparei um chá.
− Deseja beber alguma coisa? – perguntei ao pai de Midori. – Água,
sumo?
− Pepino – respondeu ele.
Sorri.
− Muito bem. Com algas?
Ele fez um ligeiro gesto afirmativo. Tornei a levantar a cama, usei uma
faca própria para fruta a fim de descascar o pepino no tamanho ideal para
ele comer, enrolei os pedaços em alga, molhei-o no molho de soja e,
espetando tudo num palito, dei-lhe a provar. Mastigou durante muito tempo,
sem nunca mudar de expressão.
− Que me diz? É bom ou não é?
− Bom – disse ele.
− É importante comer alimentos saborosos. Prova que estamos vivos.
Vendo bem, acabou por comer um pepino inteiro. Pareceu-me que tinha
ficado com sede e dei-lhe mais água da garrafa. Logo a seguir, indicou que
precisava de urinar: tirei o urinol de debaixo da cama e coloquei-lhe a ponta
do pénis na boca do urinol. A seguir, esvaziei a urina e lavei o recipiente na
casa de banho. Regressei ao quarto e acabei de beber o meu chá.
− Como se sente? – perguntei.
− Cabeça... – murmurou ele.
− Dói-lhe a cabeça?
Franziu de novo a cara, como quem quer dizer que sim.
− Bom, imagino que seja normal, uma vez que acabou de ser operado.
Apesar de não saber o que isso é, pois nunca fui operado.
− Bilhete – disse ele.
− Bilhete? Que bilhete?
− Midori. Bilhete.
Fiquei calado, sem saber a que se referia. Também ele guardou silêncio
durante algum tempo. Então acrescentou:
− Por... favor.
Pelo menos foi o que me pareceu ouvir. Arregalou os olhos, fitando-me
diretamente. Dir-se-ia que pretendia comunicar-me algo, mas eu não
imaginava o que pudesse ser.
− Ueno – disse ele. − Midori.
− Refere-se à estação de comboios de Ueno?
Ele assentiu ao de leve com a cabeça.
− Bilhete. Midori. Por favor. Ueno − recapitulei.
No entanto, continuava sem compreender. Calculei que fosse devido à
mente desorientada, mas o seu olhar mostrava-se mais firme do que nunca.
Estendeu o braço que não estava a receber soro gota a gota e estendeu-o na
minha direção. Para ele, aquele gesto deve ter representado um esforço
sobre-humano, pois a mão tremia-lhe. Pus-me de pé e agarrei a sua mão
engelhada. Ele correspondeu, pressionando a minha.
− Por... favor – repetiu.
Disse-lhe que não se preocupasse, eu encarregar-me-ia do bilhete e de
Midori. Só então ele baixou a mão, fechou os olhos e, exausto, adormeceu
finalmente. Depois de me certificar de que não estava morto, saí do quarto e
aqueci água para mais um chá. Foi então que me dei conta de sentir um
certo afeto por aquele homem à beira da morte.

***

Pouco depois, apareceu a mulher do paciente. Perguntou-me se tinha


corrido tudo bem. Respondi-lhe que sim. O marido continuava mergulhado
num sono tranquilo.
Midori regressou já passava das três da tarde.
− Andei a passear no parque – disse ela. – Tal como tu sugeriste, sem
falar com ninguém, a ver se arejava a cabeça.
− E que tal?
− Sinto-me bastante melhor. Não sei como te agradecer. Ainda estou meio
abananada, mas noto o corpo muito mais leve. Devia estar mais cansada do
que pensava.
O pai dormia a sono solto e, como não tínhamos nada para fazer ali,
tirámos cafés na máquina de venda automática, e fomos bebê-los para a sala
da televisão. Contei a Midori tudo o que acontecera na sua ausência: o pai
dormira a sono solto, acordara, comera metade dos restos do almoço e, ao
ver-me mordiscar os pepinos, disse que também queria um. A seguir, tinha
urinado e voltara a cair nos braços de Morfeu.
− És realmente fora de série – disse ela, espantada comigo. – Estamos nós
aqui desesperados para ver se ele come alguma coisa... e chegas tu e
consegues que ele devore um pepino inteiro! Contado nem se acredita!
− Não sei como foi possível. Se calhar, foi porque me viu comer os
pepinos cheio de apetite.
− Ou será porque tens o dom de tranquilizar as pessoas?
− Que ideia! – disse eu, desatando a rir. – Conheço muito boa gente que
te diria o contrário.
− Que impressão te causou o meu pai?
− Gosto dele. É certo que ainda não tivemos grandes conversas, mas
parece-me boa pessoa.
− Esteve calmo?
− Muito calmo.
− Na semana passada foi horrível – confessou Midori, abanando a cabeça.
– Perdeu a noção de tudo e tornou-se violento. Atirou-me um copo à cara ao
mesmo tempo que gritava uma data de asneiras. Acontece por vezes a quem
sofre desta doença. Não sei porquê, mas, a dada altura, as pessoas tornam-
se perversas. Já com a minha mãe sucedeu o mesmo. Queres saber o que ela
me disse? «Tu não és minha filha. Odeio-te.» Ao ouvir aquilo, por
momentos vi tudo negro à minha volta. Parece que se trata de uma
característica da doença. Faz pressão sobre uma parte do cérebro, deixando
os doentes irritados e levando-os a dizer coisas pavorosas. Estou farta de
saber isso, mas não deixo de ficar magoada. Imagina o que é estar aqui, a
fazer tudo o que é humanamente possível, e ouvir semelhantes disparates.
Dá cabo de uma pessoa.
− Entendo-te muito bem – afiancei. Lembrei-me nesse preciso instante
das palavras sem nexo proferidas pelo pai.
− Bilhete? Estação? Ueno? – repetiu ela. – Não faço a menor ideia do que
significa.
− Ah, e depois ele acrescentou «por favor» e «Midori».
− Talvez ele estivesse a pedir-te para tomares conta de mim...
− Ou então desejava que fosses até à estação de Ueno para lhe comprares
um bilhete – sugeri. – Em todo o caso, como a ordem das palavras era
confusa, não dava para perceber o significado. A estação de Ueno não te diz
nada?
− A estação de Ueno? – repetiu Midori, pensativa. – A única coisa que me
vem à lembrança são as duas vezes em que fugi de casa, andava eu no
terceiro ano, da primeira vez, e depois foi no quinto ano. Nas duas ocasiões
apanhei o comboio nessa estação para ir até Fukushima. Roubei dinheiro da
caixa registadora da livraria e comprei os bilhetes. Estava aborrecida por
um motivo qualquer e fugi de casa para me vingar. Uma tia de quem eu
gostava imenso vivia em Fukushima, daí eu ter escolhido esse destino. O
meu pai trouxe-me de volta. Foi lá buscar-me. Cada um comeu a sua
refeição individual bentō no comboio. O meu pai aproveitou as duas
ocasiões para me contar uma data de histórias, intercalando as conversas
com períodos de silêncio. Sobre o grande terramoto de Kantō40, sobre a
guerra, sobre a época em que nasci. Pensando bem, essas foram as únicas
vezes em que o meu pai e eu tivemos oportunidade de conversar
calmamente os dois sozinhos. Quando aconteceu o grande terramoto de
Kantō, o meu pai, apesar de se encontrar no coração de Tóquio, não deu por
isso.
− A sério? – exclamei, atónito.
− É como te digo. Circulava por Koishikawa numa bicicleta com atrelado
e não sentiu absolutamente nada. Ao chegar a casa, encontrou as telhas
todas caídas e a família agarrada às colunas, a tremer de medo. Sem
compreender o que se passava, perguntou: «Posso saber o que estão a
fazer?» É dessa maneira que o meu pai recorda o grande terramoto de
Kantō. – Midori soltou uma gargalhada. – As histórias que ele me conta
acerca do seu passado são assim. Nada têm de dramático. Fogem todas ao
padrão vulgar. Ao ouvi-las, temos a impressão de que nada de realmente
importante se passou no Japão durante os últimos cinquenta ou sessenta
anos. Até o golpe de Estado de mil novecentos e trinta e seis, conhecido
como «incidente de vinte e seis de fevereiro»41, ou a Guerra do Pacífico
surgem aos nossos olhos como acontecimentos insignificantes, ao ponto de
as pessoas nem se darem conta de que aconteceram de verdade. É no
mínimo curioso, não te parece?
«O meu pai contou-me esses episódios no regresso de Fukushima a Ueno.
Quando acabava de falar, dizia-me sempre: “Midori, onde quer que vás, é
tudo igual.” Ao ouvir isto, eu, que não passava de uma criança, acreditava
piamente nele.
− É isso que a estação de Ueno te faz lembrar?
− É – respondeu Midori. – E tu, alguma vez fugiste de casa?
− Nunca.
− Porquê?
− Nunca me passou pela cabeça fugir de casa.
− Se não existisses, tinhas de ser inventado – afirmou Midori, abanando a
cabeça.
− Achas?
− Seja como for, creio que o meu pai tentava pedir-te para tomares conta
de mim.
− A sério.
− A sério. Tenho um sexto sentido que me diz que sim. E o que foi que
lhe respondeste?
− Como não estava a perceber bem onde ele queria chegar, disse-lhe que
não se preocupasse, eu encarregar-me-ia do bilhete e de ti.
− Prometeste-lhe isso? Que ias cuidar de mim? – Midori encarou-me
muito séria.
− Não é isso – apressei-me a explicar. – É preciso não esquecer que eu
não entendi o que ele estava a dizer.
− Tem calma, estou a brincar. – Só queria ver a tua reação – declarou
Midori a rir. – Adoro essa tua faceta, sabes?

***

Quando acabámos de tomar café, regressámos ao quarto. O pai de Midori


continuava a dormir como uma pedra. Aproximei-me e escutei a sua
respiração. Conforme a tarde avançava, a luz ia mudando e adquiria uma
tonalidade suave e tranquila, vincadamente outonal. Um bando de aves veio
pousar nos fios elétricos, levantando voo logo a seguir. Midori e eu
sentámo-nos lado a lado ao fundo e ali ficámos, a conversar em voz baixa.
Ela entreteve-se a adivinhar o meu futuro nas palmas das mãos. Previu que
eu viveria até aos cento e cinco anos, que me casaria três vezes e que
morreria num acidente de viação. Pensei para comigo que não era uma vida
má de todo.
Passava das quatro quando o pai dela acordou. Midori sentou-se à
cabeceira da cama, limpou-lhe o suor da cara, ajudou-o a beber água e
perguntou-lhe se estava com dores de cabeça. A enfermeira apareceu, mediu
a temperatura, anotou o número de vezes que ele tinha urinado e verificou o
soro. Fui sentar-me na sala da televisão e fiquei um bocado a ver o jogo de
futebol.
Às cinco da tarde, disse a Midori que estava na altura de me ir embora.
Depois, virei-me para o pai dela e expliquei:
− Tenho o meu trabalho à espera. Das seis às dez e meia vendo discos
numa loja de Shinjuku.
Ele olhou para mim e esboçou um débil aceno.
− Não sei como te agradecer o que fizeste por mim hoje, Tōru... – disse
Midori, acompanhando-me à entrada.
− Não foi nada do outro mundo – retorqui. – Se precisares da minha
ajuda, conta comigo no domingo que vem. Gostaria de rever o teu pai.
− Estás a falar a sério?
− Não tenho nada de especial para fazer na residência, como sabes. Pelo
menos aqui sempre posso comer pepinos!
De braços cruzados, Midori batia com o salto do sapato no chão de
linóleo.
− Gostaria de ir beber um copo contigo, uma noite destas – disse ela,
pensativa, inclinando ligeiramente a cabeça.
− E o filme pornográfico?
− Vemos o filme e vamos para os copos – sugeriu Midori. – E, como não
pode deixar de ser, passamos o tempo a dizer obscenidades.
− Desculpa lá, mas quem diz obscenidades és tu! – protestei.
− Vai dar ao mesmo. O que interessa é que vamos os dois beber e falar de
coisas indecentes, acabamos por ficar perdidos de bêbedos e fazemos sexo.
− Já estou a imaginar o próximo capítulo. – Suspirei. – E depois eu entro
em ação e tu dás-me com os pés.
Ela soltou uma gargalhada sonora.
− Bom, fica combinado que me vais buscar no domingo que vem.
Viremos juntos para o hospital.
− Trago uma saia mais comprida?
− Parece-me melhor.

***

Mas no domingo seguinte acabei por não ir ao hospital. O pai de Midori


morreu na sexta-feira de madrugada.
Às seis e meia da manhã, Midori ligou-me a dar a notícia. Foi só o tempo
de a campainha que anunciava os telefonemas soar, de vestir uma camisola
por cima do pijama, e desci ao primeiro andar para atender. Caía uma chuva
fria e silenciosa. Baixinho, Midori comunicou-me que o pai acabara de
morrer. Coloquei-me à disposição dela para o que fosse preciso.
− Obrigada. Tenho tudo controlado – respondeu ela. – Estamos
habituados a funerais. Queria dar-te a notícia, mais nada.
Soltou uma espécie de suspiro.
− Não venhas à cerimónia. Detesto funerais. Prefiro não te encontrar num
sítio desses.
− De acordo.
− Levas-me a ver um filme pornográfico?
− Está prometido.
− Tem de ser um dos mais obscenos.
− Deixa comigo.
− Depois dou notícias – acrescentou Midori. E desligou.

***

Todavia, passou-se uma semana sem que desse sinais de vida. Não me
encontrei com ela na universidade nem recebi qualquer chamada. De todas
as vezes que voltava para a residência universitária, a primeira coisa que
fazia era averiguar se tinha algum recado, contudo, ninguém ligou. Uma
noite, para honrar a promessa feita a Midori, tentei masturbar-me a pensar
nela, mas não surtiu efeito. A meio do ato, vi-me obrigado a substituí-la por
Naoko. Porém, nem mesmo a imagem de Naoko resultou. Acabei por
desistir, sentindo-me totalmente estúpido. Bebi um dedal de uísque, lavei os
dentes e fui dormir.

***

Na manhã de domingo, escrevi a Naoko. Na carta, falei-lhe do pai da


Midori. Escrevi a contar que fora visitar o pai de uma colega de curso e que
comera os pepinos que tinham sobrado. Ver-me comer, abrira o apetite ao
senhor e ele também comera. Infelizmente, acabara por morrer cinco dias
depois. Ainda me lembrava com exatidão do barulhinho feito pelo pai de
Midori a mastigar o pepino. Decididamente, a morte de uma pessoa deixa
atrás de si pequenas e estranhas recordações. A carta continuava.

Quando acordo de manhã, ainda deitado na cama, lembro-me de ti, da Reiko e do


galinheiro. Parece-me estar a ver o pavão, os pombos, o papagaio, os perus e até os
coelhos. Lembro-me do impermeável amarelo com capuz que vocês as duas
envergavam naquela manhã de chuva. É reconfortante pensar em ti debaixo dos
lençóis, no quente da cama. Dá-me a sensação de que dormes encostada a mim,
encolhida como um cordeiro. E penso como seria maravilhoso que isso fosse
verdade.
Apesar de às vezes me sentir diabolicamente triste, regra geral as coisas têm-me
corrido bem. Da mesma forma que tu tratas dos pássaros e trabalhas na horta,
também eu tento dar corda a mim mesmo todas as manhãs. Levanto-me, faço a
barba, tomo o pequeno-almoço, visto-me a preceito, saio da residência e, até chegar
à universidade, contam-se em trinta e seis as vezes que dei corda à minha pessoa. É
um ritual que me permite começar cada dia cheio de ânimo. Nunca tinha dado por
isso, mas ultimamente falo sozinho. Imagino que seja uma espécie de monólogo que
acompanha o ato de dar corda.
É difícil estar sem te ver, mas acho que a minha vida aqui em Tóquio seria mil
vezes pior se tu não existisses. É precisamente por pensar em ti todas as manhãs, na
cama, que me decido a dar corda e a enfrentar um novo dia. Tal como tu lutas por
seguir em frente, também eu dou o meu melhor por estas bandas.
Mas acontece que hoje é domingo. Aos domingos não tenho por hábito dar-me
corda. Procedi à lavagem da roupa, como de costume, e agora sentei-me a escrever-
te. Assim que terminar, vou colocar um selo na carta e deitá-la no correio. A seguir,
fico livre de tarefas até ao fim da tarde. Como é domingo, não pego nas sebentas.
Durante a semana, estudo o suficiente na biblioteca, nos intervalos das aulas, por
isso posso dar-me ao luxo de não fazer rigorosamente nada. Costumo passá-los
sozinho, a ler livros e a ouvir música. Tenho alturas em que recordo, um por um, os
passeios que demos pela cidade de Tóquio ao domingo. Lembro-me inclusivamente
da roupa que tinhas vestida. As minhas tardes de domingo estão repletas de
recordações.
Dá cumprimentos meus à Reiko. À noite, sinto falta da guitarra dela.

Quando acabei de escrever a carta, deitei-a num marco do correio a dois


quarteirões da residência universitária, comprei uma sanduíche de ovo e
uma Coca-Cola numa pastelaria ali perto e fui sentar-me num banco do
parque a almoçar. Para matar o tempo, fiquei a observar a miudagem
entretida a jogar basebol. À medida que o outono avançava, o céu tornava-
se cada dia mais azul e profundo; ao erguer os olhos de repente, deparei-me
com duas linhas paralelas que cruzavam o céu na horizontal em direção a
oeste, duas linhas deixadas por aviões, paralelas como as vias-férreas.
Quando devolvi a bola que viera a rolar até aos meus pés, os miúdos tiraram
o boné num gesto de agradecimento. Como acontece com a maioria das
equipas de basebol juvenis, os maus lançamentos e as corridas para a base
antes de tempo foram mais do que as mães.
Ao princípio da tarde regressei ao meu poiso, li um livro e, quando já não
conseguia concentrar-me, pus-me a olhar para o teto e a pensar em Midori.
Perguntei a mim mesmo se o pai me pedira, de facto, para tomar conta dela.
Obviamente que nunca teria hipótese de tirar o caso a limpo. Se calhar,
confundira-me com outra pessoa. De qualquer forma, o velho senhor
morrera numa manhã de sexta-feira chuvosa e fria, e agora era impossível
apurar a verdade. Imaginei que o homem, antes de morrer, ficara ainda mais
encolhido, sendo depois cremado a alta temperatura num forno até só
restarem as suas cinzas. Deixara atrás de si uma livraria insignificante num
bairro comercial anódino e duas filhas – uma delas excêntrica até dizer
chega. Que vida era a dele?, pensei. Que lhe terá passado pela cabeça ao
ver-me, deitado numa cama de hospital, com a cabeça aberta e confusa?
Pensar no pai de Midori desmoralizou-me de tal modo que tirei a roupa da
corda antes de estar seca. Fui até Shinjuku e vagueei sem destino. As ruas
movimentadas trouxeram-me algum alívio. Na livraria Kinokuniya, mais
apinhada do que uma carruagem de metro à hora de ponta, comprei Luz em
Agosto, de Faulkner. A seguir, entrei no clube de jazz mais ruidoso que
possam imaginar e bebi um café intragável, a escaldar e amargo, enquanto
ouvia Ornette Coleman e Bud Powell e lia o romance acabado de comprar.
Dei a noite por terminada às cinco e meia; nessa altura, interrompi a leitura
e saí para comer qualquer coisa. Perguntei-me quantos domingos (dezenas?
centenas?) iguais àquele se repetiriam ao longo da minha vida. Domingos
silenciosos, pacíficos e solitários, disse em voz alta. Aos domingos não
estava no programa dar corda a mim próprio.

35 Café no coração do bairro de Shinjuku, em Tóquio, onde os frequentadores podem passar as


tardes a beber café e ouvir tranquilamente jazz; as noites costumam ser mais agitadas, também no que
à música diz respeito. Após o êxito espantoso deste romance no Japão, tornou-se o bar da moda. (N.
da T.)

36 Bolinhos de arroz embrulhados numa tira de alga (nori) e recheados de diferentes alimentos,
como, por exemplo, umeboshi (ameixas secas), sake (salmão). (N. da T.)

37 Geta são as ancestrais socas de madeira, que fazem parte integrante da vestimenta tradicional do
povo japonês. Nos nossos dias, já obedecem aos ditames da moda, conhecendo vários modelos mais
modernos. (N. da T.)

38 Kyūri, o termo japonês para designar o pepino, e kyuwi (quivi) têm um som idêntico. (N. da T.)

39 Os pepinos cultivados no Japão são mais pequenos do que os nossos. (N. da T.)

40 Tremor de terra seguido de um grande incêndio que assolou em 1923 a região de Kantō, onde se
ergue hoje a cidade de Tóquio. (N. da T.)

41 O culminar de uma série de tentativas de revolta contra o Governo por parte da extrema-direita, no
decorrer da qual alguns oficiais, comandando uma força de mil e quatrocentos homens, atacaram os
edifícios governamentais e assassinaram vários membros do executivo e do Ministério da Casa
imperial. Após três confrontos, a revolta foi dominada e os seus responsáveis conduzidos perante a
justiça. (N. da T.)
A meio da semana, sensivelmente, cortei-me com um pedaço de vidro e fiz
um golpe profundo na palma da mão. Não reparei que a divisória de vidro
de uma estante com discos estava partida. Para meu espanto, o sangue
escorreu de tal maneira que tingiu de vermelho o chão a meus pés. O
gerente da loja apressou-se a trazer várias toalhas e improvisou uma
ligadura apertada. A seguir, telefonou para as informações a fim de saber
onde ficava o serviço de urgências mais perto. O dito gerente costumava ser
um tipo desinteressante ao máximo, mas, por uma vez, revelou-se bastante
prestável. Por sorte, o hospital mais próximo ficava quase ao virar da
esquina, mas até lá chegar não só as toalhas ficaram empapadas de sangue
como o sangue não absorvido pingava em grossas bagas sobre o asfalto. As
pessoas afastavam-se automaticamente do meu caminho. Talvez pensassem
que o ferimento ficara a dever-se a uma rixa. Não sentia dores. O que não
impedia que o sangue continuasse a derramar-se.
Impassível, o médico removeu as toalhas ensanguentadas, apertou-me
com força o pulso para estancar a hemorragia, desinfetou a ferida e coseu-a,
pedindo-me para voltar no dia seguinte. Mal regressei à loja, o gerente
recambiou-me para casa e prometeu não descontar no ordenado. Apanhei o
autocarro e voltei para a residência. Quando cheguei, fui direito ao quarto
de Nagasawa. O incidente deixara-me nervoso e tinha necessidade de
conversar, além de que já não o via há uma data de tempo.
Nagasawa encontrava-se no quarto a beber cerveja enquanto assistia a
uma aula de espanhol na televisão.
− O que te aconteceu à mão? – perguntou ele assim que viu o penso.
Expliquei-lhe que me ferira, mas sem gravidade. Ele ofereceu-me uma
cerveja. Recusei.
− O programa está quase a acabar – disse Nagasawa, prosseguindo com
os seus exercícios de pronúncia do espanhol. Fervi água e preparei um chá
para mim. Uma rapariga espanhola lia uma frase. «É a primeira vez que
chove torrencialmente. Em Barcelona, várias pontes foram arrastadas pelas
águas.» O meu companheiro repetiu a frase em voz alta. – Que frases mais
idiotas! – disse ele em tom de protesto. – Inventam cada uma nestes cursos
de idiomas!
Assim que a aula de espanhol chegou ao fim, Nagasawa desligou o
televisor e foi buscar mais uma cerveja ao minifrigorífico.
− Atrapalho-te?
− Claro que não! Pelo contrário, estava chateado que nem um peru. De
certeza que não vai uma cervejinha?
Respondi-lhe que não me apetecia.
− Ah, é verdade. Já saiu o resultado das provas que fiz há dias. Passei! –
exclamou Nagasawa.
− Referes-te às provas para o Ministério dos Negócios Estrangeiros?
− Sim. O nome oficial é Prova de Seleção de Funcionários Públicos de
Classe 1 para o Serviço de Relações Exteriores. Que cambada de idiotas!
− Parabéns – disse eu, estendendo-lhe a mão.
− Obrigado.
− Não foi surpresa para mim.
− Para mim também não. – Nagasawa riu-se. – Seja como for, fico
satisfeito por ter sido oficialmente reconhecido.
− Vais trabalhar para fora? Quero dizer, logo que entrares para o
ministério?
− Não, durante o primeiro ano terei de fazer vários cursos de formação no
país. Só depois disso é que devo ser enviado para o estrangeiro.
Enquanto eu bebia o meu chá, ele saboreava a cerveja com evidente
satisfação.
− Se quiseres, podes levar este frigorífico quando eu me for embora –
disse ele. – Gostavas? Sempre dá para manter a cerveja gelada.
− Adoraria, mas não te vai fazer falta? Imagino que ficarás a morar num
apartamento...
− Não digas disparates! Quando me vir daqui para fora, faço tenções de
comprar um frigorífico com o dobro do tamanho deste, ter uma casa maior
e viver no luxo. Aguentei quatro anos neste humilde tugúrio. Não quero
voltar a pôr os olhos em cima desta tralha toda. Podes ficar com o que
quiseres: televisor, garrafa-termo, rádio...
− Aceito tudo o que me vier parar às mãos – disse eu. Peguei no livro de
textos de espanhol que estava em cima da mesa e passei os olhos por ele. –
Começaste a aprender espanhol?
− Comecei. Quanto mais línguas uma pessoa souber, melhor, e eu tenho
jeito. Aprendi a falar francês sozinho e desenrasco-me muito bem. No
fundo, é uma espécie de jogo. Assim que aprendes as regras de uma língua,
as outras são todas iguais. Acontece o mesmo com as mulheres.
− Uma maneira profunda de encarar a vida – observei com ironia.
− A propósito, que tal irmos jantar fora uma noite destas? – propôs ele.
− Para engatar miúdas?
− Não, desta vez é apenas para jantar. Eu, tu e a Hatsumi, num bom
restaurante. Para comemorar a minha colocação. Se possível, num sítio
chique. Afinal de contas, quem paga é o meu pai.
− Nesse caso, porque é que não vais jantar sozinho com a Hatsumi?
− Porque tanto para mim como para ela será mais divertido se tu estiveres
connosco – afirmou Nagasawa.
A história repetia-se. Tal qual como quando éramos eu, Kizuki e Naoko.
− Depois do jantar, passo a noite em casa da Hatsumi. Podemos jantar os
três nas calmas.
− Se vocês fizerem questão, tudo bem – concordei. – Mas o que é que
vais fazer em relação à Hatsumi? Depois do tal período de formação, serás
destacado para o estrangeiro. E ela?
− O problema é dela, não meu.
− Não entendo muito bem o que queres dizer com isso.
Com os pés em cima da mesa, ele bocejou e continuou a beber a sua
cerveja.
− Vamos lá ver uma coisa. Não está nos meus planos casar-me com
ninguém, e já disse à Hatsumi isso mesmo. Se ela achar melhor ficar à
minha espera, que espere. Aqui tens o que quis dizer.
− Caramba! – exclamei, perfeitamente estupefacto.
− Deves achar que sou um merdas!
− Podes crer.
− O mundo é injusto por natureza. Não tenho culpa. Sempre foi assim,
dizem, e nunca há de ser diferente. Não enganei a Hatsumi a esse respeito.
Ela está fartinha de saber o que eu penso e que pode separar-se de mim se
não estiver satisfeita. Já lho disse com todas as letras.
Nagasawa acabou de beber a cerveja e acendeu um cigarro.
− Não tens medo de nada na vida? – perguntei.
− Não sou idiota a esse ponto – respondeu ele. – A vida mete-me medo,
muitas vezes. Como acontece a todos os comuns mortais. A diferença é que
eu não admito que o medo funcione como premissa. Quero chegar onde
puder e estou disposto a ir até ao limite das minhas forças. Fico com o que
quero e deito fora o resto. É esta a minha filosofia. Quando a coisa não bate
certo, paro e reconsidero tudo. Se pensares bem, uma sociedade injusta,
pelo contrário, é uma sociedade que permite a exploração até ao limite das
tuas próprias capacidades.
− Sinceramente, parece-me uma forma muito egoísta de encarar a
existência humana.
− Não penses que fico a olhar para o céu, à espera de que os frutos caiam.
À minha maneira, esforço-me muito. Dez vezes mais do que tu, no mínimo.
− Ninguém põe em dúvida – concordei.
− Por isso, muitas vezes olho à minha volta e fico com o estômago feito
num oito. Porque será que as pessoas não se esforçam mais, em vez de
passarem a vida a queixar-se das injustiças deste mundo?
Olhei para ele, siderado.
− O quê? Na minha opinião, as pessoas matam-se a trabalhar – repliquei,
mas admito que possa estar enganado.
− Não me estás a entender. Aquilo a que tu chamas trabalho não passa de
trabalho braçal – retorquiu Nagasawa. – São duas coisas completamente
diferentes. Para mim, a noção de esforço é mais subjetiva, implica ter um
objetivo preciso e iniciativa própria.
− Por exemplo, estudar espanhol quando todos os outros estão de papo
para o ar depois de terem dado o litro?
− Acertaste em cheio. Espero conseguir dominar a língua espanhola antes
da primavera. Já falo inglês, alemão e francês. Ah, e pode dizer-se que
arranho o italiano. Achas que tudo isto se consegue sem esforço?
Enquanto Nagasawa fumava o seu cigarro, eu pensava no pai de Midori.
A uma pessoa como ele nunca lhe teria passado pela cabeça começar a
aprender espanhol seguindo os cursos dados na televisão. Provavelmente,
também nunca refletira sobre a diferença entre esforço e trabalho. Devia
estar demasiado ocupado para se preocupar com semelhante questão.
Trabalhava afanosamente na livraria e ainda se vira obrigado a ir até
Fukushima buscar a filha, que fugira de casa.
− Quanto ao nosso jantar, que tal marcarmos para sábado?
− Perfeito.

***

Nagasawa escolheu um restaurante francês, um local tranquilo e elegante


numa rua recatada do bairro de Azabu. Deu o nome à entrada e fomos
conduzidos a uma salinha privada. Viam-se cerca de quinze litografias
penduradas nas paredes. Enquanto esperávamos por Hatsumi, bebemos um
vinho delicioso e conservámos acerca dos romances de Joseph Conrad. Ele
usava um fato cinzento que devia ter custado os olhos da cara, e eu, um
normalíssimo blazer azul-marinho.
Hatsumi chegou quinze minutos mais tarde. Estava maquilhada com
esmero, usava brincos de ouro, um elegante vestido azul-escuro e sapatos
vermelhos muito chiques. Elogiei o tom do vestido e ela respondeu-me que
se chamava midnight blue, azul-meia-noite.
− Que sítio tão elegante – exclamou Hatsumi.
− O meu velho costuma comer aqui sempre que vem à capital. Já cá
estivemos juntos uma vez. Eu não sou particularmente fã destes restaurantes
pretensiosos – afirmou Nagasawa.
− Uma vez por outra não faz mal – disse Hatsumi, virando-se para mim. –
Não és da mesma opinião?
− Desde que não sejas tu a pagar, claro – comentei.
− O meu pai costuma vir cá na companhia de uma mulher – acrescentou
Nagasawa. – Tem uma amante em Tóquio.
− Estás a falar a sério? – admirou-se Hatsumi.
Continuei a beber o meu vinho, como se não fosse nada comigo.
O empregado de mesa apareceu junto de nós e fizemos o pedido.
Escolhemos salada e sopa, e, como prato principal, Nagasawa mandou vir
pato, eu e Hatsumi robalo. Os pratos demoraram uma eternidade, o que nos
deu tempo para ir bebendo e conversando sobre os mais variados assuntos.
Nagasawa começou por falar no concurso para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Disse-nos que a maioria dos candidatos não prestava
rigorosamente para nada, apesar de haver um ou outro que se safava, e que
o melhor que se podia fazer com eles era atirá-los a um pântano sem fundo.
Perguntei-lhe se, em comparação com a sociedade em geral, a proporção
era alta ou baixa.
− É a mesma – respondeu ele, olhando para mim como se fosse a coisa
mais óbvia. – É igual em toda a parte. Estamos a falar de uma lei imutável.
Quando o vinho acabou, Nagasawa mandou vir mais uma garrafa e um
uísque duplo.
Hatsumi começou então a falar-me de uma rapariga que gostaria de me
apresentar. Era o eterno tema de conversa entre nós. Ela pretendia
apresentar-me a «uma loura amorosa», mais novinha, que fazia parte do seu
clube de estudantes, e eu, para não variar, esquivava-me ao máximo.
− Mas olha que é uma ótima rapariga. E lindíssima. Da próxima vez,
trago-a comigo e vocês os dois conversam um bocado. Tenho a certeza de
que vais gostar dela.
− Nem pensar – reagi. – Sou demasiado pelintra para andar a sair com as
tuas colegas da faculdade. Além de estar sempre teso, não temos assuntos
em comum.
− Não digas isso. Olha que é boa moça, com uma excelente cabeça. E de
convencida não tem nada.
− Vá lá, Watanabe, não te custa nada conhecê-la – interveio Nagasawa. –
Não és obrigado a fazer sexo com ela.
− Espero que não – respondeu Hatsumi, alarmada. – Seria um passo em
falso, uma vez que ela é virgem.
− Como tu, há uns tempos.
− Exato, como eu era – confirmou Hatsumi, rindo-se. – Mas, Tōru, essa
história de ser um pobrezinho ou algo do género é um disparate pegado. Na
minha turma há uma data de raparigas pretensiosas até dizer basta, mas,
regra geral, somos pessoas vulgaríssimas. Ao almoço, comemos por
duzentos e cinquenta ienes no refeitório...
− Sabes, Hatsumi – interrompi eu −, na minha universidade temos três
ementas à hora do almoço: A, de cento e vinte ienes, B, de cem ienes, e C,
que custa oitenta ienes. Quando me acontece escolher o prato C, toda a
gente faz má cara. Ah, e os que não têm sequer dinheiro para o prato C
comem uma malga de rāmen por sessenta ienes. É esse tipo de universidade
que frequento. Continuas a achar que eu e ela teríamos assunto para
conversa?
Hatsumi soltou uma gargalhada.
− Se é assim tão barato, acho que vou começar a ir almoçar à cantina da
tua universidade. Agora, deixa-me que te diga: com um rapaz como tu de
certeza que não faltarão temas de conversa. Pode até muito bem acontecer
que ela goste de comer uma refeição pela módica quantia de cento e vinte
ienes.
− Acho difícil – afirmei, rindo. – Duvido que alguém goste daquela
mistela. Quem come, fá-lo por não ter outra opção.
− Só te peço que não nos julgues pela aparência, Tōru. Mesmo tratando-
se de uma universidade destinada a meninas bem, muitas delas são boas
raparigas e têm uma visão séria da vida. Nem todas desejam apenas arranjar
um namorado que ande de descapotável.
− Tenho a certeza disso – afirmei.
− O Watanabe está apaixonado por uma miúda – referiu Nagasawa. – Mas
não se abre comigo sobre o assunto. É um caso sério para lhe arrancar
qualquer coisa. A rapariga é um mistério completo.
− É verdade?
− Confirmo. Mas não existe mistério nenhum. Acontece que a situação é
complicada e eu tenho dificuldade em falar nisso.
− Um amor ilícito? Olha que posso dar-te conselhos...
Bebi um gole de vinho para disfarçar.
− Estás a ver como ele esconde o jogo? – insistiu Nagasawa, que já ia no
seu terceiro uísque. – Quando este gajo decide ficar calado, não há nada que
o faça mudar de ideias.
− Que pena – comentou Hatsumi, cortando uma fatia fina de terrine e
levando uma garfada à boca. – Se as coisas dessem certo entre ti e essa
rapariga, poderíamos sair os quatro.
− Sim, poderíamos embebedar-nos e mudar de parceiro.
− Não digas disparates! – repreendeu-o Hatsumi.
− Não é disparate nenhum, o Watanabe tem um fraquinho por ti.
− Isso não tem nada que ver com o que eu estou a dizer – declarou
Hatsumi, impassível. – O Tōru não é esse género de pessoa. Dá valor ao
que tem. Pelo menos, é o que sinto. Por isso, gostaria de lhe apresentar
alguém.
– Mas nós já nos envolvemos numa espécie de troca de casais, sabias?
Não foi, Watanabe? – declarou Nagasawa como se estivesse a dizer a coisa
mais inocente do mundo, aproveitando para esvaziar o copo e pedir mais
um.
Hatsumi pousou os talheres, limpou ao de leve a boca com o guardanapo
e encarou-me.
– A sério que fizeste isso, Tōru?
Fiquei calado, sem saber o que responder.
– Desembucha. Qual é o problema? – interveio Nagasawa.
Palpitou-me que a conversa estava a descambar, ameaçando ganhar um
cunho cruel. Quando bebia, a crueldade de Nagasawa vinha ao de cima.
Naquela noite, o seu alvo privilegiado era Hatsumi, e não eu. O simples
facto de ter consciência disso tornava a situação ainda mais desagradável.
– Conta-me mais. Parece muito interessante – disse Hatsumi.
– Eu estava bêbedo – argumentei em minha defesa.
– Não te preocupes. Longe de mim criticar alguém. Só queria que me
contasses como tudo se passou.
– Estávamos a tomar um copo, o Nagasawa e eu, num bar em Shibuya, e
travámos conhecimento com duas raparigas. Eram universitárias, também já
tinham a sua conta e... bom, acabámos por ir parar a um hotel dos arredores.
Ficámos em quartos contíguos. De madrugada, o Nagasawa bateu à porta
do meu quarto e propôs que trocássemos de parceiras. E foi então que eu fui
para o quarto dele e ele veio para o meu.
– E as raparigas não ficaram aborrecidas?
– Além de estarem bêbedas, tanto se lhes dava um parceiro como outro.
– É preciso não esquecer que tivemos uma razão para fazer o que
fizemos.
– Qual? – quis saber Hatsumi.
– O facto de as duas serem o oposto uma da outra. Uma era linda de
morrer, a outra, um verdadeiro estafermo. Quero dizer, como me calhou a
beldade, pareceu-me injusto que o Watanabe ficasse com a feiosa. Não foi,
camarada?
– Foi.
Para dizer a verdade, gostei francamente mais da rapariga que não era
nenhuma beldade. Tinha uma conversa interessante e bom feitio. Depois de
fazermos amor, estávamos nós a conversar, quando Nagasawa apareceu no
quarto e propôs que fizéssemos uma troca. Perguntei se ela se importaria;
respondeu-me que estava bem, desde que eu quisesse. Deve ter pensado que
estava interessado em ter sexo com a sua bela amiga.
– Foi divertido? – perguntou-me Hatsumi.
– A troca?
– Tudo.
– Nem por isso – confessei. – Foi apenas sexo. Ir para a cama com
mulheres dessa maneira não é forçosamente divertido.
– Nesse caso, porque o fizeste?
– Porque eu o desafiei – interveio Nagasawa.
– Estou a perguntar ao Tōru – cortou ela rispidamente. – Por que razão
fazes isso?
– Porque sinto vontade de fazer amor com uma rapariga, volta e meia.
– Se gostas de uma pessoa, não seria melhor tentares fazer amor com ela?
– perguntou Hatsumi, depois de refletir um bocado.
– A situação é complicada.
Hatsumi suspirou.
Nesse momento, a porta abriu-se e trouxeram-nos os pratos principais. O
pato foi colocado diante de Nagasawa e os robalos à nossa frente, de mim e
de Hatsumi. Como acompanhamento, os empregados serviram legumes
quentes com molho por cima. Saíram logo a seguir, deixando-nos
novamente sozinhos. Nagasawa cortou o pato e comeu com apetite, sempre
a beber uísque. Provei os espinafres. Hatsumi não tocou na comida.
– Sabes, Tōru, ignoro qual é a situação a que te referes, mas acho que
uma atitude dessas não é digna de ti. Que me dizes? – declarou ela. Com as
mãos pousadas na mesa, não tirava os olhos dos meus.
– Bom, talvez tenhas razão – respondi. – Há dias em que também acho o
mesmo.
– Então porque não te deixas disso?
– Porque há alturas em que tenho necessidade de calor humano – tornei a
confessar. – E quando isso acontece, sinto-me terrivelmente sozinho. É uma
sensação insuportável.
– Vou explicar resumidamente o que se passa – intrometeu-se de novo
Nagasawa. – O Watanabe ama uma rapariga, mas existem determinadas
circunstâncias que impedem que eles durmam juntos. Então, para ter sexo,
vê-se obrigado a desenvencilhar-se. Qual é o galho? Aliás, é a coisa mais
lógica, na minha opinião. Sempre é melhor do que ficar fechado no quarto a
bater uma, não achas?
– Mas se gostas mesmo dessa rapariga, Tōru, não dá para aguentares?
– Sim, talvez – disse eu, levando à boca uma garfada de robalo com
molho branco.
– Decididamente, não entendes como funciona o desejo masculino – disse
Nagasawa a Hatsumi. – Por exemplo, nós os dois andamos juntos há três
anos e, durante esse tempo, dormi com uma série de raparigas. Contudo,
não me lembro de rigorosamente nada acerca de uma que seja! Não sei o
nome delas e não me lembro das caras. Limitei-me a ir para a cama uma
única vez com cada uma. Conhecemo-nos em qualquer parte, temos sexo e
adeusinho, que se faz tarde. Capítulo encerrado. Vês alguma coisa de mal
nisto?
– A tua arrogância é insuportável, sabes? – declarou Hatsumi com a maior
calma do mundo. – O problema aqui não é dormir com esta ou com aquela.
Pela parte que me toca, até hoje nunca me zanguei a sério contigo por
dormires com outras, pois não?
– Nem sequer se pode chamar a isso dormir com outras. É um jogo, mais
nada. Ninguém se magoa.
– Eu fico magoada – disse ela. – Porque é que eu não sou suficiente para
satisfazer os teus desejos?
Nagasawa ficou em silêncio durante um bom bocado, agitando o copo de
uísque.
– Não se trata de ser suficiente, é uma questão completamente diferente,
que nos levaria a uma outra discussão. É como se dentro de mim existisse
uma sede que só pode ser saciada desse modo. Desculpa se te magoei. Mas,
repito, não se prende com uma pessoa satisfazer a outra ou não. Sou um
homem que vive pressionado por essa sede. A sede que sinto faz parte
integrante de mim, não há volta a dar. Que posso fazer?
Hatsumi resolveu-se por fim a pegar nos talheres e começou a comer o
peixe.
– Bem, não deverias envolver o Tōru nos teus esquemas.
– Eu e ele temos muitos pontos em comum. – Nagasawa voltou à carga. –
Tanto um como o outro estamos profundamente interessados apenas em nós
mesmos. O que nos distingue é a arrogância. Mas, vendo bem, ambos nos
interessamos tão-somente por aquilo que pensamos, pelo que sentimos, pela
maneira como agimos. Isto para dizer que conseguimos refletir sobre as
coisas de maneira diferente dos outros. É, de resto, isso que aprecio
sobremaneira nele. Só que o Tōru não tem plena consciência desse facto e,
por vezes, sente dúvidas e hesita.
– Diz-me uma pessoa que nunca hesita nem se magoa – declarou
Hatsumi. – Ou estás apostado em demonstrar que nunca tiveste dúvidas
nem viste os teus sentimentos feridos?
– É óbvio que já me aconteceu. Mas acredito que, com alguma disciplina,
é possível minimizar a dor. Até os ratos, quando são submetidos a choques
elétricos, escolhem o caminho que acarreta menor sofrimento.
– Mas os ratos não se apaixonam.
– «Os ratos não se apaixonam» – repetiu Nagasawa, virando-se para mim.
– Que lindo! Só falta o violino como música de fundo. Uma orquestra com
duas harpas...
– Deixa-te de brincadeiras. Estou a falar a sério – afirmou Hatsumi.
– Estamos a meio do jantar – disse Nagasawa. – Além disso, o Watanabe
está aqui connosco. Como tal, acho que seria de bom-tom deixar esta
conversa para outras núpcias.
– Querem que me vá embora? – perguntei.
– Não, prefiro que fiques – respondeu Hatsumi.
– Já que aqui estás, aproveita e come a sobremesa – disse Nagasawa.
– Isso é o menos.
Continuámos a refeição calados. Eu comi o peixe todo; Hatsumi deixou
metade no prato. Nagasawa, que foi o primeiro a acabar, continuava a beber
um uísque atrás do outro.
– O robalo estava uma delícia – disse eu, mas nenhum deles fez qualquer
comentário. Foi o mesmo que atirar um pedregulho para dentro de um poço.
Os empregados retiraram os pratos da nossa frente e trouxeram sorvete de
limão e café expresso. Nagasawa mal tocou quer num quer noutro e
acendeu um cigarro. Hatsumi nem chegou a provar o gelado. Sentindo o
cansaço apoderar-se de mim, devorei o gelado e engoli o café. À minha
frente, Hatsumi contemplava as mãos pousadas sobre a mesa. Tal como
tudo o que lhe dizia respeito, também as mãos eram elegantes e refinadas.
Lembrei-me de Naoko e de Reiko. O que andariam as duas a fazer naquele
preciso momento? Imaginei Naoko deitada no sofá a ler e Reiko,
provavelmente, entretida a interpretar «Norwegian Wood» na guitarra. Senti
um desejo imenso de voltar àquele pequeno quarto que ambas partilhavam.
Afinal de contas, o que estava eu ali a fazer?
– O que nos torna tão parecidos, o Watanabe e eu, é que não ligamos a
ponta de um corno à opinião alheia – afirmou Nagasawa. – É isso que nos
distingue dos outros. As pessoas vivem obcecadas com aquilo que os seus
semelhantes pensam delas. Ora, eu e o Watanabe não somos feitos dessa
massa. Marimbamo-nos completamente. Eu sou eu, os outros são os outros.
– É verdade? – perguntou Hatsumi.
– Nada disso – respondi. – Pela minha parte, não sou forte o suficiente
para tal. Gosto que me compreendam. Pelo menos, há certas pessoas que
quero compreender e que quero que me compreendam. Até certo ponto, é
inevitável que isso não aconteça com os demais, mas nada posso fazer. Já
desisti desse campeonato. Por isso, não estou de acordo com o Nagasawa
quando ele diz que não me ralo se os outros não me compreenderem.
– O que digo não difere muito – continuou Nagasawa na dele, com a
colher de café na mão. – É praticamente o mesmo. Qual a diferença entre
tomar o pequeno-almoço tarde e almoçar cedo? A comida é igual, o horário
é o mesmo, só muda o nome.
– Quer dizer que não te faz mossa se eu te compreendo ou não? –
perguntou Hatsumi.
– Parece que não me faço entender. Se uma pessoa compreende outra, é
porque o momento é propício, e não porque a primeira deseje ser
compreendida.
– Significa, portanto, que é um erro da minha parte alimentar o desejo de
ser compreendida? Por ti, só para dar um exemplo.
– Não, não é um erro – respondeu Nagasawa. – A maioria das pessoas
chama a isso amor. É o teu caso, visto que queres a todo o custo
compreender-me. O meu sistema de vida é bastante diferente do das outras
pessoas.
– Não estás apaixonado por mim, é isso?
– Precisamente, o meu sistema e o teu...
– Quero que o teu sistema se lixe! – gritou Hatsumi. Foi a primeira e a
última vez que a ouvi levantar a voz.
Nagasawa tocou numa campainha ao lado da mesa, e o empregado trouxe
a conta. O meu comparsa entregou-lhe o cartão de crédito.
– Desculpa lá isto, Watanabe – declarou ele. – Vou levar a Hatsumi a
casa. Faz o que quiseres.
– Sem espinhas. Obrigado pelo belo repasto – disse eu, mas ninguém se
dignou responder-me.
O empregado voltou a trazer o cartão de crédito. Nagasawa assinou o
recibo depois de conferir a conta. Levantámo-nos da mesa e saímos do
restaurante. Nagasawa mandou parar um táxi, mas Hatsumi impediu-o.
– Obrigada, mas hoje não me apetece ver-te mais. Não precisas de me
levar a casa. Obrigada pelo jantar.
– Como preferires – disse Nagasawa, sem insistir.
– Gostaria que o Tōru me acompanhasse.
– Faz como quiseres – disse Nagasawa. – Olha que o Watanabe não é
muito diferente de mim. Pode ser um rapaz simpático e delicado, mas, se
virmos bem, há qualquer coisa nele que o impede de amar do fundo do
coração. Algo que está sempre alerta e que tem uma ânsia que devora
qualquer um. Para mim, ele é como um livro aberto.
Mandei parar um táxi, ajudei Hatsumi a subir e disse a Nagasawa que me
encarregaria de levá-la a casa.
– Desculpa a maçada – murmurou ele entre dentes, mas via-se que estava
com o pensamento longe.
– Para onde vais? Regressas a Ebisu? – perguntei a Hatsumi. O
apartamento dela ficava nesse bairro.
Fez que não com a cabeça.
– Queres ir tomar uma bebida a qualquer lado?
– Quero – respondeu ela.
– Siga para Shibuya – disse eu ao motorista.
Cruzando os braços, Hatsumi fechou os olhos e encostou-se para trás no
banco. Os seus pequenos brincos de ouro cintilavam ao ritmo dos
solavancos do táxi. O vestido midnight blue parecia ter sido encomendado
para combinar com a obscuridade que reinava no interior do carro. Volta e
meia, os seus lábios pálidos, belíssimos, mexiam-se discretamente, como se
estivesse a falar consigo própria. Bastava observá-la para perceber melhor
as razões que tinham levado Nagasawa a escolhê-la como parceira
privilegiada. Havia dezenas de raparigas mais bonitas que Hatsumi, e ele
poderia ter seduzido qualquer uma. No entanto, Hatsumi possuía algo que
nos tocava fundo. Emanava dela uma energia calma, que despertava a
empatia das pessoas. Segui de olhos postos nela durante todo o caminho até
Shibuya, perguntando-me o que seria aquela emoção que eu sentia. Mas não
fui capaz de atinar com a resposta.

***

Só doze ou treze anos mais tarde vim a descobrir o que era. Deslocara-me a
Santa Fé, no Novo México, para entrevistar um pintor. Ao cair da noite,
entrei numa pizaria e, enquanto bebia uma cerveja e comia a minha piza,
foi-me dado ver um pôr do Sol tão belo que mais parecia um milagre. O
mundo dir-se-ia tingido de vermelho. As minhas mãos, os pratos, as mesas,
tudo o que via diante dos meus olhos era de um encarnado vivo e brilhante,
como se tivesse mergulhado num sumo de frutos vermelhos. Naquele
espantoso entardecer, recordei a imagem de Hatsumi. E compreendi, por
fim, em que consistia aquela agitação que ela me provocara. Era uma
espécie de aspiração ardente e pura, que vivia em mim desde os meus
verdes anos, como que adormecida, e que nunca lograra concretizar, ao
ponto de me ter esquecido da sua existência. Hatsumi tivera o condão de
despertar aquela parte de mim mesmo. Ao dar-me conta disso, apoderou-se
do meu ser uma tristeza tão grande que as lágrimas quase me saltaram dos
olhos. Ela era, de facto, uma mulher especial. Merecia que alguém a tivesse
salvado.
Mas nem eu nem Nagasawa fomos capazes de fazer isso. Tal como
aconteceu com tanta gente que eu conhecia, Hatsumi chegou a uma
determinada altura e decidiu, de repente, acabar com a própria vida. Dois
anos depois de Nagasawa ter partido rumo à Alemanha, casou-se com outro
homem e, passados outros tantos, cortou os pulsos com uma lâmina de
barbear.
Foi Nagasawa quem me comunicou a sua morte, obviamente. Escreveu-
me de Bona. «Alguma coisa se quebrou nas minhas veias com a morte da
Hatsumi, provocando em mim uma tristeza insuportável.» Rasguei a carta e
deitei-a fora. Nunca mais lhe escrevi.

***

Hatsumi e eu entrámos num barzinho e tomámos duas ou três bebidas.


Praticamente nenhum de nós abriu a boca. Como um velho casal entediado,
ali nos deixámos ficar, sentados frente a frente, calados, a beber e a comer
amendoins. Quando o local começou a encher-se, decidimos ir dar um
passeio. Hatsumi propôs-se pagar a conta, mas como tinha sido eu a
convidar, insisti em pagá-la.
Lá fora, a noite refrescara. Hatsumi pôs aos ombros o seu casaquinho
cinzento-claro e acompanhou-me em silêncio. Caminhei ao lado dela sem
destino pelas ruas escuras, vagarosamente, com as mãos enfiadas nos
bolsos. De súbito, apercebi-me de que tinha feito o mesmo na companhia de
Naoko, em tempos que já lá iam.
– Conheces algum lugar onde se possa jogar bilhar – perguntou-me ela,
de supetão.
– Bilhar? – exclamei, apanhado de surpresa. – Sabes jogar?
– Sim, e não jogo nada mal. E tu?
– Sei jogar bilhar às três tabelas, mas não sou nenhum terror dos panos
verdes.
– Vamos a isso?
Entrámos num salão de bilhar ali perto. Era um estaminé pequeno, que
ficava ao fundo de uma ruela estreita. Demos nas vistas, como seria de
esperar. Hatsumi com o seu elegante vestido, e eu com o meu blazer azul-
marinho e a gravata às riscas. Sem ligar nenhuma aos olhares alheios, ela
escolheu um taco e esfregou energicamente giz na ponta. Depois sacou da
mala um travessão, prendeu os cabelos e afastou a franja, para que não
atrapalhasse as suas jogadas.
Jogámos duas partidas. Hatsumi, tal como tinha avisado, jogava
muitíssimo bem, ao passo que eu não dava uma para a caixa, em grande
parte por causa da ligadura que tinha na mão. Enfiou três bolas seguidas e
falhou a quarta, batendo-me aos pontos.
– Tens jeito para isto – disse-lhe, admirado.
– Estás a ver como as aparências enganam? – retorquiu ela com um
sorriso nos lábios, medindo cuidadosamente a posição das bolas.
– Onde aprendeste a jogar assim?
– O meu avô paterno adorava jogar e instalou uma mesa de bilhar em
casa. Desde pequenos que eu e o meu irmão nos habituámos a brincar com
os tacos e as bolas sempre que íamos visitá-lo. Quando já éramos mais
crescidos, o meu avô ensinou-nos a jogar como deve ser. Era uma excelente
pessoa. Um homem muito bem-parecido e elegante. Infelizmente, já
morreu. Passava a vida a vangloriar-se de ter travado conhecimento com a
atriz e cantora Deanna Durbin, em Nova Iorque.
Hatsumi acertou três vezes seguidas, mas falhou a quarta bola. Pela
minha parte, acertei uma à tangente e falhei uma bola fácil.
– A culpa é do penso – consolou-me ela.
– Não, a verdade é que não jogo há uma data de tempo. Dois anos e cinco
meses, mais concretamente.
– Como é que te lembras com essa exatidão toda?
– Porque joguei com um amigo que morreu nessa mesma noite. Marcou-
me, e muito.
– Foi por causa disso que não voltaste a jogar?
– Não, não foi – respondi, após ter refletido sobre o assunto. – A ocasião
não se proporcionou, apenas isso.
– Como morreu o teu amigo?
– Num acidente de carro – menti.
Hatsumi deu umas valentes tacadas. Sempre que procurava enfiar uma
bola, concentrava-se a sério, seguia com o olhar a trajetória da bola e
utilizava a força precisa. Ao vê-la jogar, com os seus lindíssimos cabelos
apanhados, os brincos de ouro cintilantes, os sapatos firmemente cravados
no chão, aquele salão de jogos transfigurou-se por completo e transformou-
se no cenário de um sofisticado evento social. Nunca ficáramos sozinhos
antes, e revelou-se uma experiência maravilhosa. Na sua presença, parecia
que a minha vida atingira um estádio superior. No final da terceira partida –
ganhou Hatsumi, escusado será dizer –, a mão começou a doer-me e
decidimos ficar por ali.
– Desculpa. Não devia ter-te desafiado para jogar bilhar – disse ela,
abatida.
– Deixa lá isso. Não é nada de grave e, além do mais, diverti-me imenso.
Na altura de sairmos, uma senhora magra de meia-idade, com todo o ar de
ser a gerente do salão de jogos, elogiou Hatsumi.
– É muito boa com o taco, jovem.
Hatsumi agradeceu com um sorriso enquanto pagava a conta.
– Dói-te? – perguntou ela.
– Quase nada – respondi. – Achas que a ferida abriu?
– Não me parece.
– Vem até minha casa. Dou uma espreitadela e aproveito para te mudar o
penso – propôs ela. – Tenho gaze e desinfetante, e o meu apartamento não
fica longe.
Tornei a dizer que não era grave e que ficaria bem, mas ela insistiu em
verificar se a ferida não abrira.
– Ou será que a minha companhia não te agrada e que só pensas em
regressar à residência o mais depressa possível?
– Não é nada disso – objetei.
– Nesse caso, deixa-te de cerimónias e anda comigo. Estamos perto.
O apartamento da Hatsumi ficava a quinze minutos a pé de Shibuya, em
direção a Ebisu. O prédio nada tinha de luxuoso, mas era acolhedor, com
um pequeno vestíbulo e elevador. Hatsumi mandou-me sentar à mesa da
cozinha e desapareceu no quarto ao lado para mudar de roupa. Apareceu-me
à frente com uma camisola com capuz a dizer «Princeton University» e
calças de algodão. Ah, tirara os brincos de ouro. Trouxe com ela o estojo de
primeiros socorros, desinfetou o corte e colocou-me uma nova ligadura na
mão. Sempre com grande destreza.
– Como é que fazes para ter jeito para tudo? – quis eu saber.
– Trabalhei durante uns tempos como voluntária num hospital e aprendi
com as enfermeiras – respondeu ela.
Assim que acabou de pôr a ligadura, foi ao frigorífico buscar duas
cervejas. Bebeu metade de uma lata e eu emborquei lata e meia. A seguir,
mostrou-me uma fotografia das suas colegas da faculdade, caloiras como
ela. Algumas eram extremamente bonitas.
– Quando estiveres disposto a arranjar uma namorada decente, vem ter
comigo e eu apresento-te as minhas amigas.
– Combinado.
– Deves pensar que sou uma espécie de alcoviteira. Confessa.
– Até certo ponto – respondi com um sorriso. Hatsumi também se riu.
Ficava lindíssima quando sorria.
– O que achas da minha relação com o Nagasawa?
– Em que sentido?
– Refiro-me ao que devo fazer daqui em diante?
– Não importa o que eu penso – declarei, dando um gole na cerveja
gelada.
– Mesmo assim, gostaria de saber qual a tua opinião.
– Se fosse a ti, separava-me dele. Arranja uma pessoa com ideias mais
normais e que te faça feliz. Tem simpatia para dar e vender, mas não é um
homem ao lado do qual se possa encontrar a felicidade. O Nagasawa não
almeja encontrar a felicidade nem fazer os outros felizes. Por mais que te
esforces, jamais serás feliz com ele. Na minha opinião, já foi um milagre
teres aguentado três anos. Claro que gosto dele, à minha maneira. É um tipo
divertido e com as suas qualidades. Além de que não lhe chego aos
calcanhares em matéria de talento e energia. Mas tem uma maneira de
pensar e de viver atípica. Quando estou à conversa com ele, muitas vezes
tenho a sensação de andar em círculos. O processo que o faz avançar leva-
me a mim a dar voltas e mais voltas. Ele atinge sempre o que pretende, e eu,
pelo contrário, não passo da cepa torta. Isso deprime-me bastante. Guiamo-
nos por sistemas diferentes. Entendes o que te digo?
− Perfeitamente – disse Hatsumi, indo buscar-me outra cerveja ao
frigorífico.
− Mais a mais, ele entrou no quadro do Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Ao fim de um ano de estágio, acabará por ir para o
estrangeiro. E tu, que farás nessa altura? Sabes perfeitamente que não está
nos planos dele casar-se.
− Sei isso tão bem como tu.
− Nesse caso, nada mais há a dizer.
− Tens razão.
Deitei lentamente a cerveja no copo e dei um gole.
− Há bocado, ocorreu-me o seguinte – disse eu. – Sou filho único, cresci
sozinho, mas, apesar disso, nunca me senti solitário nem desejei a
companhia de irmãos. Sempre vivi bem entregue a mim próprio. Porém,
quando estávamos a jogar bilhar, pus-me a pensar que gostaria de ter tido
uma irmã mais velha como tu. Uma irmã bonita e elegante, a quem um
vestido midnight blue e uns brincos de ouro assentassem como uma luva, e
que soubesse jogar bilhar como ninguém.
Feliz da vida, Hatsumi sorriu-me.
− Foi a melhor coisa que me disseram neste último ano. Juro.
− Quero que sejas feliz – afirmei, corando ligeiramente. – Mas não deixa
de ser estranho. Porque é que uma pessoa como tu, podendo ser feliz com
qualquer homem, acabou por ficar presa a um tipo como o Nagasawa?
− Aconteceu, pura e simplesmente. Nem sequer pude fazer nada. O
Nagasawa diria que a responsabilidade é minha.
− Podes crer.
− Tōru, escuta uma coisa, não sou tão inteligente como tu pensas. Para ser
sincera, sou estúpida e tenho ideias antiquadas. Pouco me ralam os sistemas
e as responsabilidades. Acima de tudo, desejo casar-me, ser abraçada todas
as noites pelo homem que amo e ter filhos. É quanto basta.
− O Nagasawa quer o oposto.
− As pessoas mudam. Não acreditas? – perguntou-me ela.
− Quando enfrentam a vida em sociedade e não têm outro remédio senão
aparar os golpes, é a isso que te referes?
− Exatamente. Talvez os sentimentos dele se modifiquem depois de
estarmos afastados durante uma temporada.
− Isso costuma acontecer com uma pessoa normal – disse eu. − Mas com
ele é diferente. Tem uma determinação muito mais forte do que se possa
imaginar e, além disso, fortalece a sua posição a cada dia que passa.
Agiganta-se diante das dificuldades. O Nagasawa é um indivíduo que
prefere comer lesmas a dar o braço a torcer. O que esperas de alguém
assim?
− O problema é que não posso fazer mais nada a não ser esperar, Tōru –
concluiu Hatsumi, com os cotovelos fincados na mesa e o queixo apoiado
nas mãos.
− Amas o Nagasawa a esse ponto?
− Amo – respondeu ela de imediato.
− Caramba! – exclamei com um suspiro, antes de beber o resto da
cerveja. – Deve ser maravilhoso amar alguém com tanta convicção.
− Ora, sou apenas uma rapariga tola e fora de moda – disse Hatsumi. –
Queres mais cerveja?
− Não, obrigado. Tenho de me ir embora. Obrigado pelo curativo e pelas
cervejas.
Estava na entrada a calçar os sapatos quando o telefone começou a tocar.
Hatsumi olhou para mim, deitou uma olhadela ao telefone e fitou-me de
novo.
− Boa noite – disse eu, saindo. Ao fechar a porta, estava ela a pegar no
auscultador. Foi a última vez que a vi.

***
Cheguei à residência por volta das onze e meia. Fui direito ao quarto de
Nagasawa e bati à porta. Depois de uma dúzia de toques, lembrei-me. Era
sábado. Aos sábados à noite, teoricamente, Nagasawa tinha autorização
para ir dormir a casa de uns parentes.
Fui para o meu quarto, tirei a gravata, pendurei as calças e o casaco num
cabide, vesti o pijama e lavei os dentes. Resignado à minha sorte, pensei
que no dia seguinte ainda só era domingo. Era como se fosse domingo de
quatro em quatro dias. Mais dois domingos e completaria vinte anos.
Deitado na cama, deixei-me ficar a olhar para o calendário, dominado por
pensamentos sombrios.

***

No domingo de manhã, sentei-me à secretária e preparei-me para escrever


de novo a Naoko. Escrevi uma longa carta enquanto bebia uma chávena
enorme de café e escutava um disco de Miles Davis. Lá fora, caía uma
chuva fina e dentro do quarto fazia tanto frio como num aquário. A
camisola grossa que acabara de tirar da caixa onde guardava a roupa
cheirava a naftalina. Uma mosca gordalhufa estava pousada no cimo da
vidraça, completamente imóvel. Devido à falta de vento, a bandeira do Sol
Nascente não se mexia, antes se enrolava à volta do mastro fazendo lembrar
a toga de um antigo senador romano. Um canito castanho-avermelhado,
magro e com ar medroso, penetrara no pátio, vindo sabe-se lá de onde, e
farejava as flores do canteiro, uma a uma. Que andaria aquele cão ali a
fazer, a cheirar flores num dia de chuva?
Sentado à escrivaninha, escrevi um verdadeiro testamento. Quando a mão
direita me começava a doer, por causa da ferida, descansava um bocado e
punha-me a contemplar o pátio debaixo de chuva.
Na carta, contei a Naoko que fizera um golpe profundo na mão enquanto
estava a trabalhar na loja de discos e que, no sábado à noite, Nagasawa,
Hatsumi e eu tínhamos saído para festejar a entrada do meu amigo para o
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Descrevi o restaurante e a refeição.
Acrescentei que a comida era excelente, mas que o clima entre nós se
degradara ao longo do jantar.
Hesitei em mencionar a minha ida ao salão de bilhar na companhia de
Hatsumi, e, por associação de ideias, o jogo de bilhar com Kizuki. No
entanto, acabei por pôr tudo no papel. Senti que tinha essa obrigação.

Ainda me lembro nitidamente da última tacada do Kizuki, naquele dia, ou seja, no


dia em que ele morreu. Tratou-se de uma bola extraordinariamente difícil, que
exigiu o recurso ao reste, e nunca pensei que ele conseguisse marcar. Mas, talvez
por mero acaso, a tacada revelou-se perfeita e as bolas brancas e vermelhas
chocaram umas com as outras suavemente sobre o pano verde, quase sem fazer
barulho, dando assim ao Kizuki os pontos necessários para se sagrar vencedor. Foi
uma jogada de mestre, que me ficou para sempre na retina. Depois disso, não toquei
num taco durante quase dois anos e meio.
Contudo, na famigerada noite em que joguei com a Hatsumi, não pensei no
Kizuki até ao final do primeiro jogo, e isso constituiu um choque para mim. O que
estou a tentar dizer é que eu imaginava que, depois da morte do meu amigo,
recordaria aquele momento sempre que jogasse. Afinal de contas, só quando,
terminado o jogo, fui buscar uma Pepsi à máquina de venda automática é que me
lembrei dele. Mais. Se me recordei do Kizuki, foi porque no salão de bilhar onde
íamos os dois também existia uma máquina que vendia Pepsi e costumávamos
apostar o preço de uma garrafa de refrigerante.
Confesso que me senti culpado por não ter pensado nele desde o início. Tive a
sensação de o ter abandonado. Naquela noite, porém, de regresso ao meu quarto,
pus-me a refletir: já se passaram dois anos e meio, e o meu amigo continua a ter
dezassete anos. Mas não significa que as lembranças dele se tenham apagado. Tudo
o que se prende com a sua morte continua vivo dentro de mim, e algumas dessas
sensações tornaram-se ainda mais nítidas do que o eram à data. O que pretendo
dizer com isto é que não tardarei a fazer vinte anos. Parte das coisas que eu e o
Kizuki partilhámos entre os dezasseis e os dezassete anos desvaneceu-se. Por mais
que lamente o facto, as coisas não voltarão ao que eram. Aqui tens. Pouco mais
posso acrescentar, mas acho que vais entender, até porque me pareces ser a única
pessoa no mundo capaz de compreender este género de coisas.
Penso em ti mais do que nunca. Hoje está um dia de chuva. Os domingos com
chuva mexem comigo. Quando chove, deixo de poder lavar roupa e, em
consequência disso, não a posso passar a ferro. Do mesmo modo, fico
impossibilitado de dar o meu passeio higiénico e de me deitar esparramado no
terraço. Resultado: não me resta mais nada para fazer senão sentar-me à secretária, a
observar distraidamente a paisagem do pátio e a ouvir «Kind of Blue», tocando
vezes sem conta, com a agulha a voltar ao princípio graças ao braço mecânico do
gira-discos. Como te disse na carta anterior, aos domingos não dou corda a mim
mesmo. Daí que esta carta se tenha convertido num autêntico testamento. Bom, fico
por aqui. Vou almoçar ao refeitório.
Adeus.
No dia seguinte, segunda-feira, Midori não pôs os pés na aula. Perguntei a
mim próprio o que teria acontecido. Desde a última vez que faláramos ao
telefone tinham-se passado dez dias. Pensei em ligar-lhe para casa, mas
depois lembrei-me das suas palavras: seria ela a dar sinal de vida.
Na quinta-feira dessa semana, cruzei-me com Nagasawa no refeitório.
Veio sentar-se ao meu lado com o tabuleiro na mão e não perdeu tempo a
desculpar-se pela cena do sábado anterior.
− Não tem importância. Pelo contrário, eu é que te agradeço pelo opíparo
jantar – referi. – Embora tenha de reconhecer que foi uma maneira estranha
de festejar a tua promoção.
− Eu que o diga!
Continuámos a comer em silêncio.
− Já fiz as pazes com a Hatsumi – anunciou ele.
− Era de esperar – comentei.
− Se bem me lembro, também fui desagradável contigo.
− O que se passa, sentes a consciência pesada? Estás doente ou quê?
− Talvez – admitiu ele, acenando afirmativamente com a cabeça duas ou
três vezes. – Olha lá, a Hatsumi disse-me que a tinhas aconselhado a
separar-se de mim.
− Tem lógica, não te parece?
− É possível que sim.
− Ela é uma excelente pessoa – adiantei, bebendo a minha sopa de misō.
− Bem sei – declarou com um suspiro. – Mal empregada para mim.
***

Quando o telefone começou a tocar, eu dormia tão profundamente como se


estivesse morto. Estava no meu primeiro sono. Escusado será dizer que não
percebi nada do que se passava. Tinha a sensação de ter o cérebro debaixo
de água. Pelo relógio, eram seis horas, mas eu não estava em condições de
saber se de noite ou de dia. Não me lembrava do dia nem do ano. Quando
olhei pela janela, não avistei a bandeira no mastro. Deduzi que seriam seis e
um quarto da tarde. Afinal de contas, o hastear da bandeira sempre servia
para alguma coisa.
− Estás livre? – perguntou Midori.
− Que dia é hoje?
− Sexta-feira.
− De manhã ou de tarde?
− De tarde, claro. Mas que tipo mais esquisito que me saíste! São... deixa-
me cá ver... seis e dezoito.
De facto, pensei, é quase noite. Lembrava-me de me ter deitado na cama
para ler um livro e de ter caído num sono profundo. Sexta-feira...
Raciocinei rapidamente. Nas noites de sexta estava de folga.
− Estou livre. Onde é que paras?
− Na estação de Ueno, a caminho de Shinjuku. Que tal encontrarmo-nos
em qualquer lado?
Combinámos o sítio e a hora antes de desligarmos.

***

Quando cheguei ao DUG, já Midori se encontrava sentada, a tomar uma


bebida ao fundo do balcão. Vestia uma camisola amarela fina debaixo da
gabardina branca com pregas de corte masculino e usava calças de ganga.
Tinha duas pulseiras num dos braços.
− O que estás a beber?
− Um Tom Collins.
Depois de pedir um uísque com soda, reparei na enorme mala de viagem
a seus pés.
− Fui de viagem. Acabei de chegar.
− Onde é que foste?
− A Nara e a Aomori.
− Na mesma viagem?
− Estás louco? Nunca iria às duas cidades de uma assentada.42 Fiz duas
viagens separadas. Fui a Nara com o meu namorado e viajei sozinha para
Aomori.
Dei um gole no uísque e acendi com o fósforo um Marlboro que ela
acabara de levar à boca.
− Foi muito penoso? O funeral e o resto?
− Lá em casa já estamos habituadas a funerais. Basta vestir o quimono
preto e ficar sentada com cara de circunstância, e os outros à nossa volta
encarregam-se de tudo. Compram saqué, encomendam sushi, consolam-nos,
choram, queixam-se, contam histórias do defunto. Como vês, não custa
muito. Quando comparado com a trabalheira que dá tomar conta de um
doente, é como fazer um piquenique. Eu e a minha irmã estávamos tão
cansadas que nem força tínhamos para verter lágrimas. Palavra de honra. O
problema é que, quando não choramos, todos pensam que temos um
coração de pedra. Mais uma razão para não o fazermos. Aguentámo-nos
sem derramar uma lágrima. Chorar lágrimas de crocodilo é a coisa mais
fácil do mundo, e nós não queríamos fingir. Nesse aspeto, eu e a minha irmã
somos parecidas, apesar de termos feitios muito diferentes.
As pulseiras no braço de Midori tilintaram quando ela levantou a mão
para chamar o empregado e pedir mais um Tom Collins e uma tacinha com
pistácios.
− A seguir ao funeral, quando toda a gente se foi embora, nós as duas
devemos ter bebido uns dois litros de saqué até de madrugada. E
desancámos em todas aquelas línguas viperinas: são uns idiotas, uns
merdas, cambada de cães sarnosos, porcos e hipócritas, uns patifes da pior
espécie! Ficámos de alma aliviada.
− Acredito.
− Perdidas de bêbedas, caímos na cama e ferrámos no sono. Nem sequer
ouvimos o telefone tocar. Quando acordámos, mandámos vir sushi e
decidimos, de comum acordo, fechar a livraria durante uma temporada,
enquanto pensávamos no que faríamos de futuro. Até à data, trabalhámos no
duro e merecíamos descansar um pouco. A minha irmã foi passar uns dias
com o namorado e eu fui até Nara com o meu para fodermos como se não
houvesse amanhã. – Midori calou-se por instantes e coçou a orelha. –
Desculpa a minha linguagem.
− Não é grave. Com que então, foram até Nara?
− Fomos. Sempre adorei Nara.
− E foderam loucamente?
− Nem uma única vez – disse ela, suspirando. – Mal pousámos as malas
no hotel, veio-me a história.
Não pude reprimir uma gargalhada.
− Pois fica a saber que não teve graça nenhuma. A menstruação apareceu-
me uma semana antes do previsto. Deu-me vontade de chorar, juro. O meu
namorado, esse trepou pelas paredes. É daqueles que se irrita por tudo e por
nada. Mas que culpa tinha eu? Não controlo estas cenas. Mais a mais, passo
sempre pessimamente na altura do período. Nos dois primeiros dias, fico de
rastos. Nesses dias é preferível que ninguém me veja.
− Mesmo que eu quisesse ver-te, como é que iria saber que estás na altura
difícil do mês?
− Bom, vou passar a usar a minha boina vermelha um par de dias antes da
menstruação. Funcionará como sinal – disse Midori a rir. – Se te cruzares
comigo e eu estiver de boina vermelha na cabeça, já sabes: não me dirijas a
palavra e muda de passeio!
− Todas as mulheres deviam fazer a mesma coisa – observei. – E como é
que passaram o tempo em Nara?
− À falta de outra coisa melhor para fazer, passeámos pelos arredores e
brincámos com os cervos. Que seca! Discuti com ele e depois disso não
voltei a vê-lo. Regressei a Tóquio, descansei dois ou três dias e fui até
Aomori nas calmas. Passei dois dias em Hirosaki, onde tenho amigos, e
ainda fui dar uma volta por Shimokita e Tappi. Sítios lindíssimos. Em
tempos, cheguei a escrever sobre a região. Alguma vez lá foste?
Fiz que não com a cabeça.
− Bem – continuou ela, dando um gole no Tom Collins e descascando
mais um pistácio −, enquanto andei a viajar sozinha, fartei-me de pensar em
ti. Desejei o tempo todo que estivesses ali comigo.
− Porquê?
− Porquê? – repetiu Midori, com um olhar ausente. – Como assim?
− Quero saber por que razão pensaste em mim.
− Porque gosto de ti, como é óbvio. Que outra razão poderia haver? Ou
achas que alguém neste mundo tem desejo de estar com uma pessoa de
quem não goste.
− Sim, mas tu tens namorado, logo, não deverias pensar em mim –
retorqui, saboreando o meu uísque com soda.
− Tenho namorado, logo é proibido pensar em ti! É isso?
− Não, não é isso...
− Escuta bem o que te digo, Tōru – declarou ela, de dedo em riste. – Há
um mês que me sinto angustiada, e qualquer dia rebento! Começo a ficar
farta, estou a avisar-te. É pavoroso. Por isso, deixa de me dizer essas coisas
desagradáveis, senão abro a torneira aqui mesmo. Olha que, quando
começo, passo a noite inteira a chorar. Estás preparado? Choro que nem
uma Madalena arrependida.
Fiz sinal de ter compreendido e fiquei-me por ali. Pedi mais um uísque e
entretive-me com os pistácios. Fazendo-se ouvir por cima do barulho do
liquidificador, dos copos que se entrechocavam e da máquina de fazer gelo,
Sarah Vaughan cantava uma antiga canção de amor.
− Para te dizer a verdade, foi depois do incidente com o tampão que a
nossa relação se deteriorou.
− Incidente com o tampão?
− Sim. Estávamos nós os dois e alguns amigos dele, para aí cinco ou seis
pessoas, e eu contei a história de uma vizinha minha à qual um tampão saiu
disparado quando deu um espirro. Não achas engraçado?
− Acho – concordei a rir.
− Este episódio fez sucesso no meio do pessoal, mas ele ficou piurso.
Proibiu-me de contar histórias tão vulgares. Aquilo foi um banho de água
fria para mim.
− A-hã.
− Não digo que não seja bom rapaz, atenção. Mas é intolerante ao
máximo em relação a certos assuntos – prosseguiu Midori. – Por exemplo,
irrita-se imenso quando uso roupa interior que não seja branca. Não achas
que é ser um bocado estreito de vistas?
− Talvez, mas é questão de gosto, aí tens – respondi eu. Achava espantoso
como pudera um tipo como ele apaixonar-se por Midori, mas achei melhor
calar-me.
− E tu, que fazes por estes dias? – perguntou-me.
− Nada de especial. O eterno ramerrão. – Ao dizer aquilo, lembrei-me de
me ter masturbado a pensar nela, tal como prometera. Contei-lhe baixinho,
para impedir que mais alguém ouvisse a história.
Midori deu um estalo com os dedos, o seu rosto iluminou-se.
− E foi bom?
− Por vergonha, não fui até ao fim.
− Como é possível? – exclamou Midori, com um ar agastado. – Não tens
nada que te envergonhar. Pelo contrário, dou-te licença para pensares numa
série de coisas escabrosas. «Oh, que bom... isso, aí mesmo... para, estou a
vir-me, oh, não faças isso...» Da próxima vez, vou dizer-te coisas do género
enquanto estiveres a masturbar-te.
− O telefone fica num canto do vestíbulo, não sei se sabes? Há sempre
gente a passar por ali – expliquei. – Se o diretor da residência me apanhar a
bater uma punheta num sítio daqueles, irei parar ao olho da rua.
− Sim, tens razão, é o mais certo...
− Deixa estar. Qualquer dia tento de novo, quando estiver sozinho.
− Não me desapontes.
− Podes ficar descansada.
− Se calhar, não me achas sexy...
− Não, o problema não é esse – repliquei. – Como é que posso explicar?
É uma questão de atitude.
− Sou particularmente sensível às carícias nas costas, sabes?
− Tentarei lembrar-me.
− E se fôssemos ver um filme pornográfico agora? Um daqueles
sadomasoquistas – propôs Midori.
Fomos jantar a um restaurante especializado em enguias e, a seguir,
enfiámo-nos num dos muitos cinemas quase desertos que existem no bairro
de Shinjuku e assistimos a três filmes pornográficos de enfiada. A acreditar
no jornal, aquele era o único cinema que exibia fitas sadomasoquistas.
Havia um cheiro indefinível lá dentro. Chegámos em boa hora, já que o
filme estava mesmo a começar. Era a história de uma jovem secretária e da
irmã, estudante do liceu, raptadas por um punhado de homens e submetidas
a toda a espécie de práticas sádicas. Ameaçando violar a irmã mais nova, os
homens obrigam a mais velha a fazer coisas verdadeiramente abjetas,
acabando por transformá-la numa perfeita sadomasoquista. Ao assistir a
tudo aquilo, a irmã mais nova enlouquece. O enredo primava pelo tom
sombrio e deprimente, mais repetitivo do que sei lá o quê, ao ponto de eu
começar a bocejar a partir de dada altura.
− No lugar da irmã nova, não enlouqueceria com aquela facilidade –
observou Midori. – Tentaria ver tudo com os olhos bem abertos.
− Tenho a certeza disso – disse eu.
− Não achaste os mamilos da jovenzinha demasiado escuros, sendo ela
virgem?
− Sem sombra de dúvida.
Midori mantinha os olhos cravados no ecrã, como se quisesse devorar o
filme. Fiquei espantado e pensei para comigo que valia bem o dinheiro dos
bilhetes, visto que ela assistia aos filmes com tal avidez. Volta e meia, lá
vinha um comentário: «Olha-me bem para ali! Como é que conseguem
fazer aquilo?», ou: «Que horror! Três homens de uma vez vão rebentar com
a pobre!» Ah... «Tōru, estou mortinha por fazer isto com alguém.» Enfim,
estão a ver o género. Confesso que era muito mais interessante observar
Midori do que assistir ao filme propriamente dito.
Quando as luzes da sala se acenderam, no intervalo, olhei à minha volta.
Midori era a única mulher no cinema. Ao dar pela presença de Midori, um
rapaz que estava ao pé de nós, com pinta de estudante, levantou-se e foi
sentar-se mais longe.
− Tōru, quando vês cenas destas ficas excitado?
− Às vezes, acontece – respondi. – Estes filmes são feitos para isso
mesmo.
− Será que os outros espectadores ficam todos de pau feito ao verem as
cenas mais picantes? Já imaginaste? Trinta ou quarenta ao mesmo tempo?
Pensando bem, não achas esquisito?
Respondi que, olhando as coisas por esse ângulo, ela tinha razão.
O segundo filme era mais normal e, como tal, ainda mais fastidioso do
que o primeiro. Tinha várias cenas de sexo oral e, a cada ato de felação,
cunilíngua, ou sessenta e nove, o som onomatopeico das lambidelas e das
mamadas reverberava pela sala. Ao ouvir aquilo, uma estranha emoção
apoderou-se de mim pelo facto de viver num planeta tão estranho.
− Quem se lembra de inventar sons assim? – perguntei a Midori.
− Gosto imenso – respondeu-me ela.
Isto sem esquecer o som do pénis a entrar e a sair da vagina. Até então,
nunca tivera consciência de semelhante som. O homem arfava, a mulher
ofegava, dizendo coisas como «é tão bom!», ou «mais, mais». Ouvia-se
também o ranger da cama. As cenas nunca mais tinham fim. De início,
Midori assistiu a tudo cheia de curiosidade, mas, aos poucos, começou a
ficar enjoada e acabou por pedir para nos irmos embora. Levantámo-nos e,
já fora da sala, respirámos fundo. Pela primeira vez, o ar de Shinjuku teve
em mim um efeito refrescante.
− Que divertido! – exclamou Midori. – Temos de repetir a dose.
− No fundo, as cenas são iguais ao litro.
− De que estavas à espera? Fazemos todos sempre as mesmas coisas.
Pensando bem, ela tinha razão.
Entrámos num bar. Pedi um uísque e Midori bebeu dois ou três cocktails.
À saída, confessou que tinha vontade de trepar a uma árvore.
− Não há árvores por estas bandas. E no estado em que estás, duvido
muito que consigas – adverti-a.
− Que grande desmancha-prazeres que me saíste! Fiquei bêbeda porque
quis. Tens alguma coisa contra? Pois fica sabendo que mesmo com os copos
consigo subir às árvores. Que merda! Vais ver se não subo à árvore mais
alta que encontrar e faço chichi em cima das pessoas, como se fosse uma
cigarra!
− Estás com vontade de ir à casa de banho? – perguntei.
− Acertaste em cheio.
Acompanhei Midori até à zona das casas de banho pagas na estação de
Shinjuku, enfiei uma moedinha para abrir a cabina e empurrei-a lá para
dentro. A seguir, comprei a edição vespertina do jornal e pus-me a ler
enquanto esperava. Mas quem é que dizia que ela saía de lá? Ao fim de
quinze minutos, comecei a ficar preocupado. Quando já me dispunha a
investigar o sucedido, apareceu por fim. Estava extremamente pálida.
− Desculpa. Adormeci sentada na sanita – disse ela.
− Como te sentes? – perguntei, ajudando-a a vestir o casaco.
− Não muito bem.
− Levo-te a casa – declarei. – Quando chegares, tomas um banho quente e
vais logo para a cama, é o conselho que te dou.
− Não quero voltar para casa. Não tenho nada nem ninguém à minha
espera e, além disso, não quero dormir sozinha.
− Bonito! – exclamei. – E então, como é a nossa vida?
− Vamos para um dos love hotels aqui perto e enroscamo-nos. Quero
dormir abraçada a ti. Profundamente, até ser dia. Amanhã de manhã, depois
de tomarmos o pequeno-almoço num sítio qualquer, vamos juntos para a
faculdade.
− Quando me telefonaste, já tinhas esta fisgada? Confessa.
− Claro.
− Devias ter ligado ao teu namorado, e não a mim. Seria o mais normal,
não te parece? É para isso que os namorados existem.
− Mas é contigo que eu sinto desejo de estar.
− Impossível – disse-lhe friamente. – Em primeiro lugar, tenho de entrar
no dormitório até à meia-noite. Caso contrário, serei castigado por dormir
fora sem autorização. Já me aconteceu e deu-me uma trabalheira dos
diabos! Em segundo lugar, se me deito ao lado de uma mulher, é porque
sinto vontade de ter sexo com ela, naturalmente, e não de ficar agarradinho.
Às tantas, acabaria por te violar.
− Bates-me, amarras-me e vais-me por trás?
− Olha que estou a falar a sério.
− Sinto-me triste e muito sozinha, é a pura verdade. Custa-me por tua
causa, palavra de honra. Passo a vida a pedir-te favores. Digo o que me vem
à cabeça, obrigo-te a vires ter comigo, arrasto-te para sítios que não
lembram ao diabo. Mas tudo isso acontece porque és a única pessoa com
quem posso contar. Nunca, nestes vinte anos de vida, houve quem tivesse
prestado atenção aos meus caprichos. A minha mãe nunca me ligou a ponta
de um corno, e o meu namorado não é esse tipo de homem. Pouco caso faz
dos meus desejos, quando não fica irritado. Resultado: acabamos por nos
zangar. Só tu me dás ouvidos. Estou tão cansada que preciso de adormecer
ao lado de alguém que me diga que sou bela e encantadora. Só isso. Ao
despertar, sentir-me-ei como nova e nunca, juro a pés juntos, te vou pedir
que faças uma coisa do género. Passarei a comportar-me como uma menina
bonita.
− Estás a colocar-me numa situação difícil – disse eu.
− Peço-te por tudo. Senão, vou ficar aqui sentada a chorar durante a noite
inteira. E vou para a cama com o primeiro que me dirigir a palavra.
Incapaz de a fazer mudar de ideias, liguei para a residência e mandei
chamar Nagasawa ao telefone. Pedi-lhe para se desenrascar e ajudar-me a
fingir que regressara nessa noite. Expliquei-lhe que estava com uma miúda.
− Sendo assim, terei todo o prazer em ajudar – respondeu-me ele. – Vou
virar a placa com o teu nome para toda a gente pensar que já cá estás. Não
te preocupes e diverte-te. Amanhã de manhã só tens de entrar pela janela do
meu quarto.
− Obrigado. Fico a dever-te um favor – agradeci antes de desligar.
− Conseguiste? – perguntou Midori.
− Acho que sim – respondi, deixando escapar um profundo suspiro.
− Ainda é cedo. Vamos a uma discoteca.
− Pensei que estavas cansadíssima...
− Para ir à discoteca nunca estou cansada.
− Fogo!

***

Com efeito, assim que entrou na discoteca e começou a dançar, Midori


pareceu estar a recuperar aos poucos a energia. Bebeu dois uísques com
Coca-Cola e percorreu a pista de dança até ficar coberta de suor.
− Estou a divertir-me imenso – disse ela nos breves minutos de descanso
que se permitiu. – Há séculos que não dava um pezinho de dança. Quando o
corpo se movimenta, até o espírito parece mais liberto.
− Dá-me ideia de que o teu espírito está permanentemente em liberdade.
− Aí é que te enganas – disse ela, rindo e inclinando a cabeça. – Seja
como for, agora que já me sinto melhor, deu-me fome. Que tal irmos comer
uma piza?
Levei-a a uma pizaria onde costumava ir e pedi uma piza grande de
anchovas e uma imperial. Como não estava com muito apetite, comi apenas
quatro das doze fatias. Midori devorou o resto.
− Vejo que recuperaste totalmente! Ainda há bocadinho estavas pálida
como um fantasma e meio zonza – comentei, atónito.
− Isso acontece porque os meus desejos foram realizados – explicou
Midori. – O cansaço foi à vida. Esta piza é uma pequena maravilha!
− Há alguém em tua casa?
− Não, não está lá ninguém. A minha irmã ficou em casa de uma amiga. É
medrosa até dizer chega e não consegue dormir sozinha quando eu não
estou.
− Vamos deixar a cena do love hotel para segundas núpcias – propus. –
Esses lugares deprimem-me. Vamos antes para tua casa. Deves ter uma
cama para mim, não?
Midori ficou pensativa e depois concordou.
− Tudo bem. Passamos a noite em minha casa.
Apanhámos o comboio na linha de Yamanote até Ōtsuka, e passado
pouco tempo levantámos a grade metálica da Livraria Kobayashi. Um
cartaz na porta anunciava que a loja se encontrava temporariamente
fechada. Lá dentro flutuava no ar o cheiro de papel velho, como se a livraria
estivesse fechada há uma eternidade. O interior parecia vazio e mais frio do
que da primeira vez que lá estivera. Fazia lembrar a carcaça de um navio
abandonado na praia.
− Estão a pensar em encerrar as portas de vez? – perguntei.
− Decidimos vender a livraria – disse Midori. – A seguir, repartimos o
dinheiro pelas duas. Ganharemos uma certa independência e deixaremos de
precisar de um tutor. A minha irmã casa-se no mês que vem, e eu faço
tenções de acabar a faculdade daqui a três anos. Entretanto, arranjarei um
trabalho qualquer a tempo parcial. Depois de vendermos a loja, vamos
alugar um apartamento a meias, durante uns tempos.
− Achas que será fácil vender a livraria?
− Talvez. Uma pessoa nossa conhecida pretende abrir uma retrosaria e já
fomos sondadas nesse sentido – acrescentou Midori. – Coitado do meu pai.
Lutou durante toda a vida para comprar a livraria, pagar o empréstimo ao
banco e, no fim de contas, pouco sobrou. Esfumou-se tudo como bolas de
sabão.
− Sobraste tu! – disse eu.
− Eu? – exclamou Midori, rindo-se com estranheza. – Vamos subir? Está
frio aqui.
Fomos para o andar de cima. Ela mandou-me ficar sentado enquanto
enchia a banheira. Aproveitei para ferver água na chaleira. Até o banho ficar
pronto, bebemos chá à mesa da cozinha, um em frente do outro. Sempre
com o queixo apoiado nas mãos, Midori olhou-me fixamente. Só se ouvia o
tiquetaque do relógio e o termóstato do frigorífico a ligar e a desligar
automaticamente. Os ponteiros aproximavam-se da meia-noite.
− Vendo bem, até tens uma cara interessante – comentou Midori.
− Achas? – perguntei, vagamente ofendido.
− Tenho uma queda por rostos bonitos. Quanto mais olho para o teu, mais
o acho aceitável.
− Tenho dias em que também penso o mesmo.
− Não te ofendas. Já sabes que tenho dificuldade em traduzir os
sentimentos. Daí que muita gente interprete mal as minhas palavras. Isto
para dizer que gosto de ti. Já te tinha dito, não tinha?
− Já.
− Aos poucos, começo a aprender umas coisas sobre os homens.
Midori levantou-se para ir buscar um maço de Marlboro e acendeu um
cigarro.
− Quando se parte do zero, há muito para aprender.
− Como é evidente.
− Ah, já me ia esquecendo. Queres acender um pau de incenso pelo meu
pai? – perguntou Midori.
Acompanhei-a ao quarto onde ficava o altar budista, acendi o incenso
junto da fotografia do pai e pus as mãos em oração.
− Um dia destes, fiquei nua diante da foto do meu pai. Tirei a roupa toda
e deixei que ele me visse como vim ao mundo, numa pose de ioga. «Olha,
pai, aqui tens os meus seios e o meu sexo...»
− Por que carga de água fizeste uma coisa dessas? – perguntei-lhe,
abismado.
− Nada de especial, deu-me para isso! Afinal de contas, devo metade da
minha pessoa aos espermatozoides do meu pai, certo? Qual é o problema de
lhe mostrar o resultado? Ficar a saber como a filha é... Bom, aqui para nós
que ninguém nos ouve, estava embriagada e foi por isso.
− Ah, bom.
− A minha irmã quase teve um ataque de coração quando chegou a casa e
me viu despida, de pernas abertas, diante da fotografia do nosso progenitor.
Saiu a correr da sala, profundamente chocada. É muito conservadora em
relação a certas coisas.
− Pareceu-me normalíssima.
− Expliquei-lhe as minhas razões. Convidei-a a juntar-se a mim, mas ela
não quis.
− Não admira.
− Diz-me, Tōru, o que achaste do meu pai?
− Regra geral, fico sempre pouco à vontade quando encontro uma pessoa
pela primeira vez, mas devo confessar que não me senti angustiado na
presença dele. Foi até bastante agradável. Conversámos acerca de uma série
de assuntos.
− Acerca de quê, em concreto?
− De Eurípides.
Midori soltou uma gargalhada.
− És mesmo um tipo bizarro. Duvido que outra pessoa fosse capaz de se
pôr a conversar sobre Eurípides com um doente que acabou de conhecer e
que agoniza no leito de morte.
− Também duvido que exista uma filha que fique nua e de perna aberta
diante da fotografia do pai – repliquei.
Midori rui-se baixinho e fez soar o pequeno sino do altar budista.
− Boa noite, papá. Não te preocupes, dorme bem, que nós vamos divertir-
nos um pouco. Podes descansar tranquilamente, agora que já não estás em
sofrimento. Calculo que não sofras, uma vez que morreste. Se ainda
passares mal, queixa-te ao Buda. Diz-lhe que já chega! Espero que
encontres a minha mãe no paraíso e que passem bons momentos os dois.
Quando te ajudei a fazer chichi, reparei no tamanho impressionante do teu
pénis. Nada mal! Aproveita. Boa noite.

***

Cada um tomou banho à vez. A seguir, vestimos os pijamas. Midori


emprestou-me um que era do pai, ainda por estrear. Ficava-me um nadinha
pequeno nas mangas e nas pernas, mas sempre era melhor do que nada.
Midori deu um jeito no quarto das visitas, o mesmo onde ficava o altar.
− Tens medo de dormir em frente do oratório? – perguntou ela.
− Nada fiz de mal, logo, não tenho medo – respondi a rir.
− Mas até eu adormecer prometes que ficas ao pé de mim e me abraças?
− Claro.
Deitado na beira da pequena cama de Midori, e arriscando-me a cair por
mais de uma vez, abracei-a. Ela mantinha o nariz encostado ao meu peito e
as mãos nos meus quadris. Passei o braço direito pelas suas costas,
enquanto me agarrava com a mão esquerda à armação da cama, a fim de
não tombar no chão. Estava longe de ser um ambiente propício ao despertar
de uma ereção. A cabeça de Midori roçava na ponta do meu nariz e os seus
cabelos faziam-me cócegas.
− Diz qualquer coisa – pediu Midori, com o rosto colado ao meu.
− O quê, por exemplo?
− Tanto faz. Uma coisa que me anime.
− És muito bonita.
− Midori. Pronuncia o meu nome.
− És muito bonita, Midori.
− Muito... isso quer dizer quanto?
− Bonita ao ponto de fazer as montanhas desabar ou o mar ficar seco.
Midori ergueu a cabeça e olhou-me nos olhos.
− Falas de uma maneira única.
− O meu coração derrete-se ao ouvir-te dizer isso – afirmei, rindo-me.
− Diz-me mais coisas bonitas.
− Gosto muito de ti, Midori.
− Muito... quanto?
− Gosto de ti como de um urso na primavera.
− Um urso na primavera? – Midori tornou a levantar a cabeça. – O que
significa gostar de um urso na primavera?
− Imagina que estamos na primavera, caminhas sozinha por uma pradaria
e, de repente, vês aproximar-se de ti um lindo urso bebé, com olhos
redondos e pelo aveludado. O ursinho vira-se para ti e pergunta se queres
rebolar com ele na erva. Então, passam o dia abraçados e a brincar, rolando
pela encosta coberta de trevos. Bonita cena, não te parece?
− Muito bonita.
− Pois bem, simboliza o quanto gosto de ti.
Midori abraçou-se a mim com força.
− Nunca ouvi nada mais maravilhoso – disse ela. – Se gostas assim tanto
de mim, farás tudo o que te pedir? Não te amofines!
− Claro que não.
− E prometes tomar conta de mim?
− Óbvio que sim – respondi. Ao dizer aquilo, acariciei os seus cabelos
curtos e macios como os de um rapazinho. – Não tens motivos de
preocupação. Vai correr tudo bem.
− Mesmo assim, tenho medo.
Continuei a abraçá-la docemente, até que, aos poucos, os seus ombros
começaram a subir e a descer ao ritmo regular da respiração de quem
adormeceu. Deslizei para fora da cama sem fazer barulho, encaminhei-me
para a cozinha e bebi uma cerveja. Como não tinha sono, pensei em ler um
livro, mas, olhando em redor, não encontrei nada que se parecesse com um
livro, nem de perto nem de longe. Ainda pensei em regressar ao quarto de
Midori com a intenção de ir buscar um livro, mas desisti, com medo de a
acordar.
Entretive-me a beber cerveja durante um bom bocado. Às tantas, lembrei-
me da livraria que ficava no andar de baixo. Desci as escadas, acendi a luz e
fui à procura da estante com livros de bolso.
Além de já ter lido a maioria, encontrei apenas meia dúzia de livros que
me apetecesse ler. O certo, porém, é que precisava de ler alguma coisa.
Optei por um exemplar de Debaixo das Roda, de Hermann Hesse, que
devia estar na loja há uma data de tempo, a julgar pela capa desbotada, e
deixei dinheiro à conta junto da caixa. Pelo menos contribuíra para reduzir a
dívida da Livraria Kobayashi.
Sentado à mesa da cozinha, entre dois goles de cerveja, comecei a ler.
Tinha lido o romance pela primeira vez no início do secundário. Agora, oito
anos mais tarde, ali estava eu a relê-lo, de madrugada, sentado na cozinha
da casa de uma rapariga, trazendo no corpo o pijama do seu falecido pai,
que, por sinal, mal me servia. Matutei na estranheza da situação. Se não
fossem as circunstâncias, provavelmente jamais tornaria a ler aquele livro.
Apesar do tom um tanto ultrapassado, Debaixo da Roda é um bom
romance. Naquela cozinha silenciosa, pela calada da noite, deu-me um
prazer enorme reler a obra com todo o vagar, linha a linha. Na estante,
descobri uma garrafa de conhaque coberta de pó. Deitei uma pequena
quantidade numa chávena de café e bebi. O conhaque teve o condão de
aquecer o corpo, mas nem por isso me fez sono.
Um pouco antes das três, fui espreitar Midori. Dormia profundamente. A
claridade emitida pelos candeeiros de rua penetrava pela janela, inundando
o quarto de uma luminosidade branca parecida com o luar, e Midori dormia
de costas para a luz. Era como se o seu corpo estivesse congelado e
completamente inerte. Ao inclinar-me para ela, senti a sua respiração
regular. Parece o pai a dormir, pensei.
Distingui a mala de viagem ao lado da cama e a gabardina branca
pendurada nas costas da cadeira. Os objetos em cima da secretária estavam
perfeitamente arrumados. Pendurado na parede via-se um calendário do
Snoopy. Levantei um tudo-nada o cortinado da janela e observei a rua
deserta. Os estabelecimentos tinham as grades corridas, sem exceção, e
apenas as máquinas automáticas esperavam em silêncio o romper do dia,
mesmo à frente da loja de bebidas. De tempos a tempos, o rolar dos pneus
de um camião de transporte fazia vibrar com violência o ar à volta.
Regressei à cozinha, servi-me de outra dose de conhaque e embrenhei-me
de novo na leitura de Hermann Hesse.
O céu começava a clarear quando cheguei ao fim do romance. Fervi água,
preparei um café instantâneo, peguei na esferográfica e escrevi uma
mensagem no bloco de notas que estava em cima da mesa. Disse a Midori
que tinha bebido conhaque, comprado o livro e, quando o dia amanhecera,
resolvera voltar para casa. Após uma ligeira hesitação, acrescentei: «Ficas
muito bonita a dormir.» A seguir, lavei a chávena de café, apaguei a luz da
cozinha, desci as escadas e, procurando não fazer barulho, levantei a grade
metálica e saí de casa. Tinha um certo receio de que algum elemento da
vizinhança achasse a minha presença suspeita, mas ainda nem sequer eram
seis da manhã e não se via ninguém na rua. Apenas os corvos, pousados
sobre o telhado, permaneciam fiéis à missão de vigiar as redondezas. Após
ter deitado uma olhadela às cortinas rosa-pálido da janela de Midori, dirigi-
me para a estação e apanhei o comboio. Desci no fim da linha e fui a pé até
à residência. Pelo caminho, encontrei uma cafetaria aberta e tomei o
pequeno-almoço: arroz com sopa de misō, legumes verdes e uma omeleta.
Dei a volta à residência de estudantes até chegar às traseiras e bati
devagarinho à janela de Nagasawa, que ficava no primeiro andar. Ele abriu-
me logo a janela e eu entrei no quarto.
− Queres café? – perguntou ele.
Recusei. Agradeci-lhe imenso antes de regressar ao meu quarto. Lavei os
dentes, despi as calças e caí na cama de olhos bem fechados. Não tardei a
mergulhar num sono sem sonhos, pesado como uma porta de chumbo.

***

Todas as semanas, escrevia a Naoko e recebia cartas delas, por sinal


bastante curtas. Numa delas contava-me que, desde novembro, a
temperatura começara a baixar gradualmente, logo de manhãzinha.

O teu regresso a Tóquio coincidiu com a chegada do outono, e durante um certo


tempo fiquei sem saber ao certo se o vazio que sentia dentro de mim ficara a dever-
se à tua ausência ou à mudança de estação. A Reiko e eu fartamo-nos de falar de ti e
ela manda-te lembranças. Continua a ser muito minha amiga. Sem ela ao meu lado,
creio que não aguentaria a vida aqui. Sempre que me sinto triste, choro. No dizer da
Reiko, chorar faz bem à alma. Mas uma pessoa sentir-se sozinha é muito duro.
Quando me sinto mais deprimida, aparecem pessoas de dentro das trevas para me
consolar. Dirigem-se a mim e conversam comigo, como o vento que sussurra entre
as copas das árvores à noite. Costumo conversar com o Kizuki e a minha irmã mais
velha dessa maneira. Também eles sentem o peso da solidão e procuram alguém
com quem desabafar.
Na solidão das minhas noites, acontece-me por vezes reler as tuas cartas. Na sua
maioria, as notícias que me chegam do mundo exterior deixam-me perturbada, mas
o que tu me contas apazigua-me. Estranho, não achas? Porque será? Então releio as
tuas cartas, uma e outra vez, e a Reiko a mesma coisa. A seguir, conversamos sobre
o que escreves. Gostei muito do que me contaste acerca do pai dessa rapariga, a
Midori. Todas as semanas, esperamos sempre ansiosamente a chegada da tua carta –
por estas bandas, uma carta é uma das poucas diversões que temos, acredita.
Na medida do possível, também eu procuro arranjar tempo para te escrever, mas
quando me encontro diante da folha de papel, desanimo. O simples facto de te
escrever esta carta obrigou-me a chamar a mim toda a minha energia. Foi a Reiko
quem insistiu comigo, dizendo-me que tinha de te responder. Peço-te que não me
interpretes mal. Há uma data de coisas que te quero contar e partilhar contigo. Só
que não sei como traduzi-las em palavras. Escrever é difícil, no meu caso.
Por falar na Midori. Fiquei com a impressão de que se trata de uma rapariga
muito divertida. Ao ler a tua carta, palpitou-me que ela está apaixonada por ti, e até
comentei isso com a Reiko. «É natural. Até eu estou apaixonada por ele»,
respondeu-me ela. Vamos apanhar cogumelos e castanhas todos os dias... e todos os
dias nos servem arroz com castanhas, ou arroz com cogumelos matsutake. O que
vale é que são tudo coisas boas e nunca nos fartamos. A Reiko mal toca na comida
mas continua a fumar como uma chaminé. As aves e os coelhos estão bem e
recomendam-se.
Adeus

Três dias depois do meu vigésimo aniversário, recebi uma encomenda de


Naoko. Lá dentro havia uma camisola cor de vinho com decote redondo e
uma carta.

Feliz Aniversário! Desejo que passes os teus vinte anos com alegria. Pela parte que
me toca, tenho a impressão de que os meus acabarão mal, para não variar, mas
ficarei contente se a tua felicidade der para nós os dois. A camisola foi tricotada a
meias, por mim e pela Reiko. Se fosse apenas eu a trabalhar nela, não terias a
camisola pronta antes do Dia dos Namorados do próximo ano. A metade bem
tricotada é a da Reiko, e a malfeita é a minha. A Reiko tem jeito para tudo e mais
alguma coisa e, só de olhar para ela, há alturas em que me detesto. Afinal, não tenho
nada de que me possa orgulhar. Adeus. Fica bem.
Havia ainda uma curta mensagem da Reiko.

Como estás? Aos teus olhos, talvez a Naoko represente o cúmulo da felicidade, mas,
da forma como eu a vejo, é uma jovem muito pouco jeitosa de mãos. Com sorte, lá
conseguimos acabar a camisola a tempo. Que tal? Gostas? A cor e o formato foram
escolhidos pelas duas. Feliz aniversário!

42 Nara e Aomori são cidades localizadas nas províncias com o mesmo nome, respetivamente a sul e
a norte de Tóquio. (N. da T.)
Quando olho para trás e recordo o ano de 1969, a única coisa que me vem à
cabeça é um pântano imenso. Um lodaçal profundo e viscoso, onde os meus
sapatos pareciam ficar colados a cada passo que dava. Caminhava com
esforço sobre-humano na lama. Não via a ponta de um corno, nem à minha
frente nem atrás de mim. Apenas um lodaçal de cores sombrias estendendo-
se a perder de vista.
O tempo arrastava-se lentamente, ao ritmo dos meus passos. As pessoas à
volta tinham-se adiantado bastante, e apenas eu e o meu tempo
continuávamos a arrastar-nos vagarosamente por aquele pântano. Muito boa
gente morreu nesse ano, incluindo John Coltrane. A população exigia
grandes reformas, e a verdade é que as mudanças se encontravam ao virar
da esquina. Contudo, as alterações não passavam de um pano de fundo
destituído de substância e significado. Pela minha parte, limitava-me a
viver, dia após dia, de cabeça baixa. Nos meus olhos refletia-se apenas o
pântano infinito. Levantava o pé direito, depois o esquerdo, tornando a
levantar o direito. Ignorava onde me encontrava, tão-pouco sabia se
avançava na direção certa. Contentava-me em seguir em frente, colocando
um pé à frente do outro, sabendo que tinha de progredir no terreno.
Fiz vinte anos, o outono deu lugar ao inverno, mas a minha vida não
conheceu mudanças significativas. Profundamente desmotivado, continuei a
frequentar a faculdade, a trabalhar na loja de discos três vezes por semana, a
reler O Grande Gatsby sempre que podia e, chegando o domingo, a lavar a
roupa e a escrever longas cartas a Naoko. Volta e meia, encontrava-me com
Midori e íamos comer qualquer coisa juntos, passear pelo jardim zoológico
ou a uma sessão de cinema. O projeto de venda da Livraria Kobayashi
decorreu sem problemas e Midori e a irmã alugaram um apartamento com
sala e dois quartos, perto da estação de metro de Myōgadani. Midori tinha-
me dito que estava nos seus planos mudar-se logo a seguir ao casamento da
irmã. Convidou-me uma vez para almoçar e pude constatar que se tratava
de um belo apartamento, cheio de sol. Midori parecia muito mais feliz do
que quando morava na livraria.
Nagasawa convidou-me várias vezes para sairmos e andarmos juntos na
boa-vai-ela, mas desculpei-me sempre a pretexto disto ou daquilo. Não
estava para aí virado, pura e simplesmente... não quer dizer, como é lógico,
que não me apetecesse ir para a cama com uma rapariga. À partida, porém,
ficava desmotivado só de pensar na trabalheira que me esperava até atingir
esse fim: passar a noite nos copos, encontrar a miúda adequada, conversar
com ela, levá-la para um hotel. No fundo, admirava alguém que, como
Nagasawa, se mostrava capaz de repetir esse mesmo ritual sem desanimar
nem dar mostras de fastio. Talvez por causa do que Hatsumi me tinha dito,
sentia-me mais feliz a pensar em Naoko do que a dormir com jovens
mulheres pouco interessantes, das quais nem o nome sabia. O toque dos
dedos de Naoko fazendo-me vir no meio da pradaria permanecia mais
vívido em mim do que qualquer outra coisa.
No princípio de dezembro escrevi a Naoko e perguntei-lhe se podia ir
visitá-la durante as férias de inverno. Quem me respondeu foi Reiko. Na
carta, mandava dizer que ficariam muito contentes por me ver e que
aguardavam ansiosamente a minha chegada. Explicou que Naoko, nos
últimos tempos, não se sentia capaz de escrever, daí ter-se encarregado ela
disso. Acrescentava que eu não devia ficar preocupado, que o estado da
amiga não era preocupante. Acontece que passava por uma das suas fases
menos boas.
Assim que começaram as férias, enfiei meia dúzia de coisas na mochila,
calcei as botas de neve e pus-me a caminho de Quioto. Como o estranho
médico fizera questão de alardear, as montanhas cobertas de neve ofereciam
um espetáculo lindíssimo. Tal como da outra vez, dormi duas noites no
apartamento delas e passei três dias na companhia das duas, cumprindo
mais ou menos as mesmas rotinas. Ao fim da tarde, Reiko pegava na
guitarra e púnhamo-nos à conversa. Em vez do piquenique ao meio-dia,
fizemos esqui. Após termos deslizado pelas montanhas durante cerca de
uma hora, ficámos sem fôlego e cobertos de suor. No meu tempo livre,
ajudei a limpar a neve. O doutor Miyata, essa pitoresca figura, tornou a
aproximar-se da nossa mesa, um dia ao jantar, e fez questão de nos explicar
por que motivo o dedo médio da mão era maior do que o indicador, ao
passo que tal não sucedia no que tocava aos dedos dos pés. O guarda, de
nome Ōmura, voltou à carga, elogiando a carne de porco de Tóquio. Reiko
adorou os discos que lhe levei e transcreveu algumas canções para poder
tocá-las à guitarra.
Naoko mostrou-se muito mais taciturna do que durante a minha visita
anterior, no outono. Quando estávamos os três juntos, mal abria a boca.
Limitava-se a ficar sentada no sofá, com um sorriso nos lábios. Reiko
falava pelas duas.
− Não ligues – aconselhou-me Naoko. – É uma fase que estou a
atravessar. Diverte-me muito mais ouvir as vossas histórias, acredita.
Numa altura em que Reiko, por qualquer razão, saiu de casa, Naoko e eu
abraçámo-nos deitados na cama. Beijei ternamente o pescoço dela, os seus
ombros e os seios, e ela, tal como da outra vez, masturbou-me. Após ter
atingido o orgasmo, sempre abraçado a ela, confidenciei-lhe que, durante os
últimos dois meses, nunca mais esquecera o toque dos seus dedos. E que me
masturbara a pensar nela.
− Foste para a cama com alguém? – quis ela saber.
− Não – respondi.
− Então, vou dar-te outro motivo para te lembrares de mim – disse ela.
Curvou-se, tomou delicadamente o meu pénis nos lábios, introduziu-o na
boca e usou a língua para me excitar. Os seus cabelos lisos caíam sobre o
meu baixo-ventre e baloiçavam ao sabor do movimento dos seus lábios.
Ejaculei pela segunda vez.
− Achas que vais conseguir lembrar-te? – perguntou Naoko.
− Claro que sim. Vou lembrar-me sempre.
Puxei-a para cima e enfiei os dedos na sua vagina, mas estava seca. Ela
abanou a cabeça e afastou a minha mão. Ficámos agarrados durante algum
tempo, em silêncio.
− Quando acabar o curso, gostava de sair da residência e ir à procura de
um apartamento algures – contei-lhe. – Estou farto de viver ali, e creio que
o dinheiro que ganho chegará para cobrir as despesas. Se quisesses,
podíamos viver juntos. Que te parece? Já te tinha falado no assunto.
− Obrigada, Tōru. A tua proposta deixa-me muito feliz – agradeceu
Naoko.
− Repara, este não me parece um lugar mau para se viver – acrescentei. –
É tranquilo, e sempre tens a companhia da Reiko, que é uma excelente
pessoa. Mas acho que não se trata de um lugar para uma pessoa ficar
eternamente. E quanto mais tempo ficares aqui, mais te custará ires-te
embora.
Calada, Naoko contemplava a paisagem lá fora. Estava tudo coberto de
branco. Apenas uma estreita fresta entre a terra e o céu deixava perceber a
presença de nuvens ameaçadoras, carregadas de neve.
− Pensa no assunto – disse eu. – Em todo o caso, só me mudarei em
março. Podes ir ter comigo quando quiseres.
Naoko acenou afirmativamente com a cabeça. Abracei-a com todo o
cuidado, como se pegasse num frágil objeto de vidro. Ela passou o braço
em volta do meu pescoço. Eu estava completamente nu, e ela vestia apenas
umas cuecas brancas. Era espantosamente bem feita. Nunca me cansaria de
percorrer o seu corpo com o olhar.
− Porque será que não fico molhada? – sussurrou Naoko. – Só me
aconteceu uma vez. Em abril, no dia dos meus anos. Naquela noite em que
me abraçaste. Porquê?
− É psicológico. Vais ver que passa com o tempo. Não fiques angustiada a
pensar nisso.
− Os meus problemas são todos psicológicos – confessou ela. – E se
nunca me excitar ao ponto de ficar molhada, se nunca puder fazer amor o
resto da vida? Vais satisfazer-te se eu usar unicamente as mãos e a boca? Ou
resolverás a questão indo para a cama com outras?
− Sou uma pessoa otimista por natureza – disse eu.
Naoko sentou-se na cama, enfiou a T-shirt pela cabeça, vestiu a camisa de
flanela e as calças de ganga. Vesti-me também.
− Dá-me tempo para refletir – pediu ela. – E aproveita para pensar com
calma.
− Vou pensar no assunto – respondi. – Aproveito para dizer que apreciei
imenso o que acabaste de me fazer.
Naoko corou ligeiramente e sorriu.
− O Kizuki dizia a mesma coisa.
− Sempre tivemos os dois opiniões e gostos parecidos, eu e ele –
acrescentei a rir.
Separados pela mesa da cozinha, conversámos do passado enquanto
tomávamos uma chávena de café. Naoko começou a abrir-se mais e a falar
acerca de Kizuki. Exprimia-se numa voz entrecortada, escolhendo
cuidadosamente as palavras. Nevou e deixou de nevar, mas o sol nunca deu
um ar da sua graça durante aqueles três dias. Na hora de partir, disse-lhe
que poderia regressar em março.
A seguir, abracei Naoko ternamente por cima do grosso casaco de inverno
e beijei-a na boca.
− Adeus – despediu-se ela.

***

Chegou finalmente 1970, um ano que prometia ser diferente, colocando um


ponto final na minha adolescência. Pude então dar um passo em frente e
mergulhar num pântano distinto. Passei com relativa facilidade nos exames.
Na falta de outra coisa melhor para fazer, ia a todas as aulas e passava dias a
fio fechado na universidade. Mesmo sem estudar muito, passei a tudo.
Houve uma série de complicações na residência. Uns indivíduos que
pertenciam a uma fação política qualquer esconderam barras de ferro e
capacetes nos quartos, provocando uma série de escaramuças com os
estudantes que integravam a equipa desportiva treinada pelo diretor.
Resultado: dois deles ficaram feridos e outros seis acabaram por ser
expulsos. As repercussões do incidente prolongaram-se, dando azo a
discussões e disputas quase diárias. Reinava uma atmosfera pesada e
vivíamos todos com os nervos à flor de pele. Por pouco não me livrei de
levar uma tareia, mas, graças à pronta intervenção de Nagasawa, lá me
safei. Seja como for, decidi que estava na altura de sair dali.
Terminados os exames, comecei à procura de casa. Demorei uma semana
a encontrar um sítio que me conviesse, nos arredores de Kichijōji. A
localização deixava muito a desejar no que dizia respeito aos transportes,
mas a casinha, uma espécie de pequeno pavilhão, era excelente. Um
verdadeiro achado. Ficava situada ao fundo de um jardim deixado ao
abandono, longe da casa principal, e fazia as vezes de casa do jardineiro. O
proprietário usava a entrada principal, e eu, a das traseiras, o que me
garantia total privacidade. Tinha um quarto, uma cozinha pequena, uma
casa de banho e um enorme armário embutido incrivelmente
desproporcionado. Havia até uma varanda que dava para o jardim.
Alugaram-me a casa por um preço muito abaixo dos praticados no mercado,
na condição de eu abandonar o local no caso de os netos dos proprietários
virem instalar-se em Tóquio no ano seguinte. Os donos da casa, um casal de
idade muito simpático, deu-me toda a liberdade, declarando que eu podia
fazer o que me desse na real gana.
Contei com Nagasawa para me ajudar a fazer a mudança. O meu amigo
alugou uma camioneta, carregámos as minhas tralhas e ele, tal como
prometera, ofereceu-me o frigorífico, um televisor e a sua enorme garrafa-
termo. Dois dias mais tarde, foi a vez de ele se mudar de armas e bagagens
para o bairro de Mita.
− Watanabe, palpita-me que tão cedo não te porei a vista em cima. Toma
conta de ti – declarou ele na hora da despedida. – Como já tive
oportunidade de te dizer, creio que voltaremos a encontrar-nos, daqui a uns
anos, num lugar estranho.
− Assim espero – retorqui.
− Lembras-te da noite em que trocámos de raparigas? A feia era de longe
a melhor.
− Totalmente de acordo – disse eu a rir. – E tu, toma bem conta da
Hatsumi. Olha que terás dificuldade em arranjar alguém como ela. Além do
mais, é mais vulnerável do que parece.
− Sim, tenho consciência disso – reconheceu Nagasawa. – Por isso é que
o melhor seria tu poderes tomar conta dela depois de mim. Tenho a certeza
de que os dois fariam um par perfeito.
− Brincas? – perguntei, atónito.
− Estou a gozar contigo – disse ele. – Bom, espero que sejas feliz.
Independentemente do que te acontecer, acredito que serás capaz de levar a
água ao teu moinho, ou não fosses um obstinado do caraças. Posso dar-te
um conselho?
− Claro que sim.
− Nunca sintas pena de ti próprio – disse ele. – Deixa isso para os
imbecis.
− Não me esquecerei – disse eu.
Apertámos a mão. Ele partiu em direção a um novo mundo, e eu voltei
para o meu pântano.
***

Três dias após a mudança, escrevi a Naoko. Descrevi-lhe ao pormenor a


minha nova casinha e contei que me sentia feliz da vida e aliviado por me
ter livrado de vez do meu quarto na residência daqueles estudantes idiotas e
das suas ideias igualmente estúpidas. Estava pronto para começar uma nova
vida, e extraordinariamente animado.

A janela dá para um amplo jardim onde se reúne a gataria da vizinhança. Quando


estou sem nada para fazer, deito-me na varanda e deixo-me ficar ali a observá-los.
Não sei ao certo quantos serão, mas, seja como for, são uma data deles. Põem-se a
dormitar ao sol. Palpita-me que não gostam lá muito da minha presença, mas no
outro dia dei-lhes um resto de queijo e vários aproximaram-se, um bocado a medo, e
devoraram tudo. Pode ser que nos tornemos amigos. Entre eles há um macho com o
pelo listado e uma orelha meio arrancada, que me faz lembrar o diretor da residência
de estudantes. Há alturas em que não me admirava nada que ele começasse a arriar a
bandeira nacional no meio do jardim.
Fico um bocado mais longe da universidade, é certo, mas não me parece que isso
constituía problema de monta. Assim que começar o novo ano letivo, passarei a ter
menos aulas na parte da manhã. Pelo contrário, até será melhor, uma vez que
poderei ler os meus livrinhos tranquilamente durante as viagens de metro. Agora só
me falta ir à procura de um emprego em tempo parcial por estas bandas e que não
seja muito cansativo. Então, poderei voltar a dar corda aos meus dias.
Longe de mim pôr o carro à frente dos bois, mas a primavera parece-me a estação
ideal para começar de novo. Gostaria imenso que passássemos a morar juntos a
partir do mês de abril. Se tudo correr pelo melhor, podes inclusivamente regressar às
aulas na universidade. Caso não queiras viver comigo, proponho-me ir à procura de
um apartamento para ti aqui perto. O mais importante é estarmos perto um do outro.
Não tem de ser na primavera, claro... Se achares que o verão é a melhor altura, por
mim tudo bem. Sem espinhas. Achas que consegues dar-me uma resposta, para eu
saber com o que contar?
A partir de agora, está nos meus planos trabalhar mais horas, e assim suportar a
despesa feita com a mudança. Quando uma pessoa começa a viver sozinha, vê-se
obrigada a gastar uma pipa de massa. Tive de comprar panelas, loiça e coisas do
género. Mas em março terei mais tempo e irei visitar-te sem falta. Diz-me qual é a
data que mais te convém, para eu planear a viagem. Estou cheio de vontade de te
ver. Fico ansiosamente à espera da resposta.

Os dois ou três dias seguintes, passei-os a vaguear pelo bairro de


Kichijōji, à procura do resto das coisas que me faziam falta em casa.
Comecei também a preparar refeições simples. Numa loja ali perto, comprei
uma tábua de madeira, mandei cortá-la numa carpintaria e transformei-a
numa secretária. Decidi utilizá-la também para fazer as minhas refeições.
Instalei prateleiras e comprei todas as especiarias possíveis e imaginárias.
Uma gatinha branca, que devia ter uns seis meses, afeiçoou-se a mim e
começou a vir comer dentro de casa. Dei-lhe o nome de Gaivota.
Depois de ter a casa mais ou menos arrumada, desloquei-me à cidade e
arranjei emprego temporário como pintor, trabalhando as duas semanas
seguintes na qualidade de aprendiz. O ordenado era razoável, embora o
serviço fosse duro e o cheiro dos solventes me deixasse meio zonzo. Assim
que a jornada de trabalho chegava ao fim, ia jantar a um restaurante em
conta, bebia um par de cervejas e, de regresso a casa, brincava um
bocadinho com a gata e deitava-me. Passaram duas semanas sem receber
qualquer resposta da Naoko.
Um belo dia, estava eu a pintar paredes, lembrei-me de Midori. Dei-me
conta de que não falava com ela há quase três semanas. Nem sequer lhe
chegara a falar na mudança. Tinha-lhe dito, isso sim, que planeara mudar de
poiso. Desinteressada, ela respondera qualquer coisa como: «Ai, sim?»
Ficáramos por aí.
Entrei numa cabina telefónica e marquei o número de casa dela.
Respondeu-me uma rapariga que devia ser a irmã mais velha. Ao ouvir o
meu nome, pediu-me para esperar um momento. Por mais que esperasse,
porém, Midori não havia maneira de me responder do outro lado do fio.
− A Midori está zangada e mandou-me dizer que não quer falar consigo –
disse a rapariga que devia ser a irmã. – Parece que mudou de casa e não a
avisou. Desapareceu de um dia para o outro sem lhe dar cavaco, certo? Nem
sequer se deu ao trabalho de deixar a nova morada, pura e simplesmente
desapareceu do mapa. É por isso que ela está danada. E quando ela fica
assim, é um caso sério para voltar ao estado normal. Torna-se um bicho
autêntico.
− Posso explicar tudo. Por favor, ela que atenda o telefone.
− A minha irmã não quer saber das suas explicações para nada.
− Então, que tal se eu lhe explicasse a si? Depois transmitia à sua irmã...
− Nem pensar, não me quero meter nisso – atirou-me a irmã de Midori,
secamente. – Seja um homenzinho e assuma as suas responsabilidades.
Não tive outro remédio! Agradeci educadamente e desliguei. Vi-me
obrigado a admitir que Midori tinha boas razões para estar piursa comigo.
Ocupado com a mudança, a instalação na casa e o novo trabalho, não fizera
caso dela. E não só dela. Vendo bem, não estivera quase a esquecer-me de
Naoko? Fui sempre assim. Quando um assunto qualquer absorve a minha
atenção, esqueço-me de que o mundo existe.
Esforcei-me por me colocar na posição dela e imaginar como me teria
sentido se Midori tivesse mudado de casa sem me dizer nada e ficasse três
semanas sem dar sinal de vida. Profundamente ferido. Porque, apesar de
não formarmos um casal no rigoroso sentido da palavra, existia entre nós
uma cumplicidade maior do que entre muitos amantes. Ao pensar nisso,
fiquei angustiadíssimo. A verdade é que não suporto magoar os outros,
especialmente aqueles de quem mais gosto.
Ao regressar ao trabalho, sentei-me no escritório e predispus-me a
escrever uma carta a Midori. Contei-lhe tudo o que me ia na alma. Sem me
refugiar em pretextos nem explicações, pedi-lhe mil desculpas pela minha
falta de atenção e pela insensibilidade demonstrada. Acrescentei que
gostaria muito de a rever. Queria que ela me viesse visitar à casa nova.
Colei um selo no sobrescrito e enviei a carta por correio urgente.
Por mais que esperasse, a carta dela nunca chegou.
Foi um início de primavera estranho. Passei as férias a aguardar resposta
às minhas cartas. Resultado: vi-me impossibilitado de viajar, de visitar a
família e de trabalhar decentemente. A qualquer momento poderia receber
uma carta de Naoko pedindo-me para ir ter com ela na data tal. Durante o
dia, assistia a uma sessão dupla num cinema de Kichijōji, ou passava o
tempo a ler num bar de jazz. Não me encontrava nem trocava impressões
com praticamente ninguém. Uma vez por semana, escrevia a Naoko. Nas
cartas nunca mencionava que estava à espera de uma resposta.
Desagradava-me a ideia de a pressionar. Falava-lhe do meu biscate como
pintor, das flores do pessegueiro no jardim, da simpática vendedora de tofu
e da empregada mal-encarada que me atendia no estaminé das refeições
rápidas. Mesmo assim, continuei sem obter resposta.
Sempre que me cansava de ler e de ouvir discos, cuidava do jardim. Pedi
emprestados ao dono da casa uma vassoura, um ancinho, uma pá e uma
tesoura de podar e dediquei-me a arrancar as ervas daninhas e a aparar os
frondosos arbustos. Passado pouco tempo, o jardim estava irreconhecível.
Ao dar pela diferença, o proprietário convidou-me um dia para tomar chá
com ele. Sentados na varanda da casa principal, bebemos chá acompanhado
de biscoitos e conversámos um pouco. Ele contou-me que, já reformado,
ainda trabalhara durante algum tempo numa companhia de seguros, mas
que, dois anos atrás, pedira a demissão e agora aproveitava as benesses da
ociosidade. As casas e o terreno pertenciam-lhe desde há muito, e com os
filhos crescidos e entregues à sua vida podia dar-se ao luxo de passar o resto
da velhice sem fazer nenhum. Era essa a razão pela qual ele e a mulher
viajavam com frequência.
− Parece-me muito bem – comentei.
− Não diria tanto – retorquiu ele. – As viagens aborrecem-me de morte.
Quem me dera ainda poder trabalhar.
Explicou-me então que o estado desleixado em que se encontrava o
jardim ficara a dever-se ao facto de não ter encontrado um jardineiro capaz,
e que, nos últimos tempos, deixara de poder ocupar-se ele próprio do
terreno, devido a uma alergia grave que o impedia de tocar em tudo o que
fossem plantas.
Depois do chá levou-me a conhecer o barracão das ferramentas e,
desculpando-se por não me poder recompensar pelo trabalho, autorizou-me
a utilizar todos os utensílios, uma vez que não lhe faziam falta.
O barracão, em bom rigor, só tinha tralha: uma banheira de madeira
própria para os banhos quentes, bastões de basebol, e até uma piscina
infantil de quintal. Encontrei ainda uma bicicleta velha, uma mesa de
cozinha e duas cadeiras, um espelho e uma guitarra, e perguntei-lhe se ele
não se importaria que eu levasse tudo aquilo emprestado.
Passei um dia inteiro a tirar a ferrugem da bicicleta, a oleá-la, a encher os
pneus e a endireitar o guiador. A seguir, levei-a até à loja de bicicletas para
substituir as correias. Ficou como nova. Limpei o pó à mesa e passei-lhe
uma camada de verniz. Substituí as cordas da guitarra e colei as partes de
madeira da caixa que ameaçavam soltar-se. Removi escrupulosamente a
ferrugem com uma escova de cerdas de metal e ajustei as cavilhas. A
guitarra não era um instrumento de primeira qualidade, mas produzia sons
afinados. Para ser franco, desde o secundário que eu não tinha nas mãos
uma guitarra. Sentei-me à janela e toquei devagar, de memória, o tema «Up
on the Roof», dos Drifters, numa espécie de viagem ao passado. Para meu
grande espanto, ainda me lembrava da maioria dos acordes.
Em seguida, usei o resto da madeira para fazer uma caixa de correio,
pintei-a de vermelho, escrevi o meu nome e cravei-a no solo, diante da
porta. Até ao dia 3 de abril, contudo, a única correspondência que recebi foi
uma carta reenviada para a nova morada a avisar-me da reunião de turma
dos antigos alunos do secundário... à qual eu não tinha intenção de
comparecer. Kizuki e eu andáramos juntos nessa mesma turma. O convite
foi direitinho para o caixote do lixo.
Na tarde do dia 4 de abril, encontrei uma carta na caixa do correio. No
remetente estava escrito um nome: Reiko Ishida. Fui buscar uma tesoura,
abri o envelope com todo o cuidado, instalei-me na varanda e comecei a ler
a carta.
Nas primeiras linhas, Reiko desculpava-se por ter levado tanto a
responder à minha carta. Comentou que Naoko fizera um esforço para ser
ela a responder, mas que não fora capaz. Reiko oferecera-se então para me
escrever em vez dela, dizendo que não era justo deixar-me tanto tempo à
espera. Mas Naoko insistia em que o assunto era pessoal e intransmissível,
e que teria de ser ela própria a escrever, daí a demora. Lamentava os
inconvenientes que o atraso pudesse ter-me causado.

Deve ter sido extremamente difícil para ti esperar um mês inteiro pela resposta, mas
garanto-te que também para a Naoko esse tempo foi de grande sofrimento. Peço-te
que entendas. Para ser sincera, o estado dela inspira uma certa preocupação.
Esforçou-se por melhorar, porém, até à data, ainda não se registou qualquer sinal
positivo.
Olhando para trás, o primeiro sintoma foi precisamente a incapacidade de te
escrever, em finais de novembro ou no início de dezembro. Depois, começou a ouvir
vozes. Sempre que tentava escrever, as vozes de várias pessoas impediam-na de se
concentrar. Até à tua segunda visita, esses sintomas manifestaram-se ao de leve, e
eu, verdade seja dita, não lhes dei grande importância. Até certo ponto, os nossos
sintomas tendem a repetir-se. No entanto, depois de teres partido, os sintomas
agravaram-se. Nos dias que correm, a Naoko tem uma enorme dificuldade em
manter uma conversa normal. Mostra-se incapaz de encontrar as palavras. E isso
deixa-a confusa. Confusa e assustada. As alucinações aumentaram
consideravelmente.
Temos sessões diárias com especialistas. A Naoko, eu e o médico conversamos os
três sobre o assunto e procuramos encontrar o que lhe falta, quais as partes
danificadas. Propus, caso fosse possível, realizar uma sessão que te incluísse, mas a
Naoko opôs-se. Aqui tens o que ela disse, textualmente: «Quando estivermos juntos,
quero que ele encontre o meu corpo limpo.» Esforcei-me ao máximo por convencê-
la de que o problema não se encontrava aí, e que ela deveria recuperar-se quanto
antes, mas em vão.
Como julgo que já te expliquei, este não é um hospital especializado. Temos bons
médicos e dispomos de tratamentos eficazes, como é óbvio, mas seria complicado
seguir uma terapia intensiva neste local. O objetivo da instituição é criar um
ambiente propício em que os pacientes possam tratar-se a eles próprios, logo, tal não
inclui tratamentos médicos. Portanto, se o estado da Naoko se agravar, será preciso
transferi-la para outro hospital ou instituição médica. Confesso que eu iria sofrer
imenso com isso, mas se calhar é a única solução. Claro que, a realizar-se, essa
transferência funcionaria como uma espécie de «licença temporária», e ficaria
sempre em aberto a hipótese de ela regressar, uma vez completado o tratamento. Ou,
na melhor das hipóteses, de ela recuperar totalmente e ter alta. Em todo o caso,
estamos empenhados ao máximo no processo, e falo também pela Naoko. Por favor,
reza para que ela recupere. E continua a escrever-lhe como tens feito.
Reiko Ishida

A carta era do dia 31 de março. Depois de a ter lido, continuei sentado na


varanda a contemplar o jardim. A velha cerejeira tinha as flores quase todas
abertas. Soprava uma brisa suave e a luz conferia à paisagem uma estranha
tonalidade. Passado pouco tempo, apareceu a Gaivota, vinda sabe-se lá de
onde, e, depois de afiar as garras nas tábuas de madeira da varanda,
estendeu-se prazenteiramente a meu lado para fazer uma soneca.
Disse para comigo que precisava de ponderar o assunto, mas o certo é que
não sabia por onde começar. Além disso, não me apetecia pensar
rigorosamente em nada. Naquele momento, pelo menos, recusava-me a
raciocinar.
Deixei-me ficar toda a tarde na varanda, encostado a um pilar, a
contemplar o jardim e a fazer festas à Gaivota. Era como se as forças me
tivessem abandonado. A tarde chegava ao fim, instalou-se o lusco-fusco e as
trevas azuladas da noite não tardaram a envolver o jardim. A Gaivota já se
pusera a andar dali para fora, e eu sempre a contemplar os botões de
laranjeira. À luz daquele crepúsculo primaveril, as flores pareciam de carne
viva, irrompendo de uma ferida infetada. O jardim estava impregnado do
odor putrefacto e adocicado de carne podre. Veio-me à memória o perfume
que o corpo de Naoko exalava. O seu magnífico corpo estava deitado no
escuro, e inúmeros rebentos de plantas, pequenos e verdes, irrompiam da
sua pele, oscilando suavemente ao sabor da brisa. Por que diabo um corpo
tão perfeito tem de adoecer? Porque é que não deixam a Naoko em paz?
Voltei para casa e corri as cortinas, mas, como seria de esperar, o perfume
da primavera instalara-se por todos os cantos, invadira o mundo inteiro. A
única coisa em que me fazia pensar era no odor pútrido da morte. Encerrado
em casa, senti um ódio profundo contra a primavera. Odiei tudo o que
aquela estação me trouxera. Odiei a dor surda que sentia nos recessos mais
fundos do meu ser. Era a primeira vez na vida que detestava violentamente
alguma coisa.
Os três dias que se seguiram foram estranhíssimos. Sentia-me como se
caminhasse pelo fundo do mar. Quando alguém falava comigo, não
entendia o que me dizia; sempre que eu dirigia a palavra a alguém, não se
percebia patavina. Era como se o meu corpo estive envolto por uma
membrana hermética, impedindo-me de entrar em contacto com o mundo
exterior. Ao mesmo tempo, porém, as pessoas não conseguiam tocar-me.
Perdera as forças, mas, enquanto permanecesse naquele estado, elas não
tinham qualquer poder sobre mim.
Encostado à parede, observava vagamente o teto, comia o que estivesse à
mão de semear, bebia água e, quando a tristeza me invadia, emborcava um
copo de uísque e deixava-me dormir. Deixei de tomar banho, de fazer a
barba. Passei três dias assim.
A 6 de abril recebi uma carta de Midori. Propunha que nos
encontrássemos no pátio da universidade a 10, dia da matrícula, para
almoçarmos juntos.
«Demorei muito a responder-te, bem sei. Agora estamos quites e já
podemos fazer as pazes. Tenho saudades tuas.»
Reli a carta quatro vezes, mas tive uma certa dificuldade em compreender
a mensagem. Afinal, qual o significado da carta? Tinha a cabeça vazia e não
estava em condições de ler nas entrelinhas. Por me encontrar com ela no dia
da matrícula ficávamos quites? O que tinha o cu a ver com as calças?
Porque queria almoçar comigo? Bom, estou a perder o juízo, pensei. Sentia
a cabeça azamboada, como as raízes de uma planta subterrânea que se
enchem de humidade e incham. Não posso continuar neste estado, pensei
no meio do meu aturdimento. Nesse preciso momento, de repente, vieram-
me à mente as palavras de Nagasawa: «Nunca sintas pena de ti próprio.
Deixa isso para os imbecis.»
Ah, grande Nagasawa, és um tipo do caraças!, pensei. E levantei-me com
um suspiro.
Fui tratar da roupa, coisa que já não acontecia há um certo tempo, tomei
banho e fiz a barba, arrumei o quarto, comprei o que era necessário para
preparar uma refeição decente, dei comida à Gaivota, que estava faminta,
bebi apenas cerveja e fiz meia hora de ginástica. Ao observar-me no espelho
da casa de banho, reparei que começava a ficar com ar macilento. Os olhos
pareciam querer saltar das órbitas, e tive dificuldade em reconhecer-me.
No dia seguinte, fui dar um pequeno passeio de bicicleta e, depois de
regressar a casa e almoçar, reli a carta de Reiko. Assentei ideias e comecei a
pensar seriamente na forma como poderia proceder de futuro. O motivo
principal pelo qual a carta dela me afetara tanto prendia-se com o facto de
ter destruído em décimas de segundo a minha convicção otimista de que
Naoko estava a caminhar para uma cura definitiva. Naoko confidenciara-me
que a sua doença tinha raízes profundas, ao passo que Reiko reconhecera
que não sabia o que poderia acontecer. Apesar disso, eu fora visitar Naoko
por duas vezes, ficara com a impressão de que estava melhor, acreditando
que bastaria ela ganhar coragem para se integrar na sociedade e o problema
ficaria resolvido. Caso Naoko fosse capaz de recuperar essa coragem, tinha
a certeza de que, com a ajuda de nós os dois, tudo bateria certo.
Bastara, no entanto, a carta de Reiko para o castelo de cartas, por mim
construído sobre uma frágil hipótese, ruir pela base, deixando apenas uma
superfície plana e insensível. Tinha de repensar a situação. Imaginei que
Naoko demoraria bastante tempo a recuperar-se. E, mesmo partindo do
princípio de que tal seria possível, ficaria mais debilitada e teria ainda
menos confiança em si mesma do que dantes. Decididamente, precisava de
me adaptar às novas circunstâncias. Estava consciente de que o simples
facto de fortalecer a minha posição não resolveria os problemas todos, mas,
em todo o caso, sempre me ajudaria a manter o moral elevado. Depois, era
uma questão de esperar pacientemente que ela recuperasse.
Olha, Kizuki, pensei. Ao contrário de ti, decidi levar a vida da maneira
mais correta. Por certo sofreste, mas eu também sofro, garanto-te. Tudo o
que está a acontecer é por tua culpa, pois escolheste a morte deixando a
Naoko para trás. Mas eu nunca a abandonarei, entendes? Não só porque
gosto dela como por ser mais forte. E está nos meus planos fortalecer-me
ainda mais. Crescer. Vou atingir a maioridade. É obrigação minha. Até à
data, desejava permanecer eternamente nos dezassete ou dezoito anos.
Agora já não penso assim. Sinto-me responsável, não sou nenhum
adolescente. Sabes, Kizuki, já não sou o mesmo de quando convivíamos.
Acabei de fazer vinte e um anos. E devo pagar o preço por continuar a
viver.

***

− O que se passa, Tōru? Diz-me – pediu Midori. – És só pele e osso!


− Achas que sim?
− Não será de andares a foder a tal mulher casada?
Abanei a cabeça, perdido de riso.
− Desde outubro do ano passado que não sei o que é ir para a cama com
uma rapariga.
Midori soltou um assobio rouco.
− Com que então, não tens sexo há mais de seis meses? Vai contar isso a
outra!
− É a pura verdade.
− Nesse caso, porque é que emagreceste tanto?
− Porque entrei na idade adulta – respondi.
Midori pousou as mãos sobre os meus ombros e encarou-me, olhos nos
olhos. Franziu a testa por momentos e acabou por soltar uma gargalhada.
− Tens razão. Alguma coisa em ti parece ter mudado.
− Tornei-me adulto, já te disse.
− És uma coisa do outro mundo! Só mesmo tu para alimentares esse tipo
de pensamentos. – Midori parecia genuinamente impressionada. – Vamos lá
almoçar. Estou esganada.
Escolhemos um restaurantezinho que ficava por trás da universidade.
Pedi o prato do dia e ela também.
− Estás zangado comigo, Tōru? – perguntou ela.
− Por que carga de água?
− Porque não te respondi logo, só por vingança. Achas que não deveria
ter agido assim? Afinal, tu foste muito educado e pediste desculpa.
− Quem se portou mal fui eu. Tive o que merecia.
− A minha irmã defende que não procedi bem e deu-me cabo do juízo,
dizendo que eu não deveria ter feito o que fiz. Segundo ela, fui intransigente
e infantil.
− Mas ficaste aliviada, ao menos? Isto é, por te teres vingado de mim.
− Sim.
− Então, tudo bem.
− És realmente muito tolerante, Tōru! – exclamou Midori. – A sério que
não tens relações sexuais há seis meses?
− Isso mesmo.
− Significa que, naquele dia em que ficámos abraçados na cama, devias
estar a rebentar de desejo?
− Talvez.
− Mesmo assim, não tentaste nada.
− Tu és a minha melhor amiga e não gostaria de te perder.
− Naquele dia, se tivesses realmente desejado fazer amor comigo, não
teria dito que não. Lembro-me de ter hesitado muito... mas estava de rastos.
− Porque a tenho dura e grande?
Midori sorriu e acariciou-me ternamente o pulso.
− Pouco antes, tinha decidido confiar em ti a cem por cento. Por isso,
naquele dia consegui dormir tranquilamente. Sabia que contigo ao lado
podia estar tranquila. Dormi que nem uma pedra, calculo.
− Podes crer.
− Se me tivesses dito: «Ouve, Midori, vamos fazer amor e verás como
tudo se resolve», talvez eu aceitasse o repto. Não penses que te digo isto
para tentar seduzir-te ou excitar-te. Estou a ser o mais sincera possível.
− Bem sei.
No decorrer da refeição, cada um mostrou ao outro a respetiva matrícula,
e descobrimos que nos inscrevêramos em duas aulas juntos. Que é como
quem diz, ia vê-la duas vezes por semana. A seguir, Midori contou-me
coisas acerca da sua vida. De início, tanto ela como a irmã tinham sentido
dificuldade em adaptar-se ao novo apartamento. Sobretudo porque a vida
era muito mais agradável, comparada com a anterior rotina. Estavam
acostumadas a andar sempre a correr de um lado para o outro, a cuidar de
doentes e a ajudar na loja.
− Ultimamente, já nos habituámos à ideia de que é uma bela vida –
afirmou Midori. – A vida que, no fundo, deveríamos ter tido sempre. Não
temos de nos privar de nada e podemos movimentar-nos à vontade. Ao
princípio, só de pensar nisso, ficávamos nervosas. Sentíamo-nos como se o
nosso corpo flutuasse a dois ou três centímetros do chão. Não sei, dava a
ideia de que era mentira, de que uma vida tão facilitada não deveria ser
possível. Ficávamos tensas, à espera de que tudo voltasse ao que era dantes.
− As manas sofredoras! – disse eu a rir.
− Até agora tem sido difícil – declarou Midori. – Por mim, tudo bem. Mas
daqui em diante fazemos questão de recuperar o tempo perdido.
− Conhecendo-te, de certeza que vão conseguir os vossos intentos –
comentei. – O que anda a tua irmã a fazer por estes dias?
− Uma amiga dela acaba de abrir uma loja de acessórios em Omotesandō.
Além disso, aprendeu a cozinhar, sai com o namorado, fica de papo para o
ar, enfim, aproveita a vida.
Midori fez-me perguntas sobre a minha atual existência e eu descrevi-lhe
a casa nova, o jardim enorme, falei-lhe da Gaivota, a minha gata, e do
proprietário.
− Estás a gostar? – quis ela saber.
− Não é mau – respondi.
− No entanto, não estás com grande aspeto.
− Apesar de estarmos na primavera!
− Apesar de teres uma bonita camisola feita pela tua namorada...
Espantado, olhei para a camisola cor de vinho que tinha vestido.
− Como é que sabes?
− Não consegues esconder nada! Disse-o por mero acaso – respondeu ela,
desconcertada. – Mas andas desanimado, não andas?
− Estou a ver se me animo.
− Olha, pensa na vida como sendo uma lata de biscoitos.
Abanei várias vezes a cabeça antes de olhar para ela.
− Talvez por não ser muito inteligente, por vezes fico às aranhas com
certas coisas que dizes!
− Numa caixa há vários tipos de biscoitos: gostamos de alguns e não
gostamos dos outros, certo? Se comermos logo os biscoitos preferidos,
sobram apenas aqueles de que não gostamos muito. Penso sempre nesta
imagem quando passo por uma situação difícil. Se fizer uma coisa que não
me agrada, as coisas tornam-se mais fáceis depois. Porque a vida é como
uma lata de biscoitos.
− Acho que podemos chamar a isso uma filosofia de vida.
− Mas é verdade, garanto-te. Aprendi por experiência própria.

***
Enquanto tomávamos café, entraram no restaurante duas raparigas, pelos
vistos colegas de Midori. Começaram logo a comparar os respetivos
horários e, durante um bom bocado, não fizeram mais nada senão falar disto
e daquilo: das notas que tinham tido no ano anterior a Alemão, de um
colega que ficara ferido no decorrer das manifestações, dos sapatos
lindíssimos de uma delas («Onde é que os compraste?»)... Ia ouvindo sem
dar grande importância, mas com a sensação de que a conversa parecia vir
do outro extremo do planeta. Ao mesmo tempo, observava através da janela
a paisagem lá fora e bebia o meu café aos golinhos. Era a paisagem típica
da universidade em plena primavera. Céu nublado, cerejeiras em flor e
estudantes com ar de caloiros passando na rua carregados de livros novos.
Mergulhado na contemplação, senti um enorme vazio interior. Pensei em
Naoko, que naquele ano não poderia regressar às aulas. Ao lado da janela
havia um pequeno vaso com anémonas.
Depois de as duas se terem despedido e encaminhado para outra mesa,
Midori e eu abandonámos o restaurante e fomos passear pelas ruas do
bairro. Demos uma volta pelos alfarrabistas e comprámos vários livros,
entrámos numa cafetaria e bebemos outro café, jogámos flíperes num salão
de jogos, sentámo-nos no parque e conversámos. Na maior parte do tempo,
Midori fazia as honras da conversa e eu apenas assentia com a cabeça. A
páginas tantas, disse-me que estava cheia de sede e fui a uma pastelaria
comprar duas latas de Coca-Cola. Entretanto, ela pegou na esferográfica e
garatujou qualquer coisa num bloco de notas. Quando lhe perguntei de que
se tratava, respondeu que não era nada de importante.
Às três e meia da tarde, comunicou-me que estava na hora de se ir
embora, pois tinha combinado encontrar-se com a irmã em Ginza.
Encaminhámo-nos para a estação de metro e aí nos despedimos. Na altura
de nos separarmos, ela introduziu-me uma folha de papel dobrada em
quatro no bolso do casaco. Disse-me para só ler o bilhete quando chegasse a
casa. Li-o no comboio.

Aproveito o facto de teres ido comprar Coca-Cola para te escrever esta carta. No
meu caso, é a primeira vez que escrevo a alguém sentada num banco de jardim. Mas
foi a única maneira que encontrei para comunicar contigo. Por mais que fale, parece
que não me ouves. Estou errada?
Hoje fizeste uma coisa terrível, pela parte que me toca. Não te apercebeste sequer
de que mudei de penteado! Tive um trabalhão enorme para deixar crescer o cabelo
e, na semana passada, consegui finalmente ficar com um penteado feminino
decente. Tu, porém, não reparaste em nada. E eu que pensava que estava bonita e
pretendia impressionar-te, imaginando que, após tanto tempo afastados, ficarias
admirado! É o cúmulo, não te parece? Aposto que nem te lembras da roupa que eu
vestia hoje... Sou uma rapariga, sabes? Por mais absorto que estejas nos teus
pensamentos, poderias ao menos olhar para mim com olhos de ver. Bastava que
tivesses dito uma frase do género «O novo penteado fica-te bem.» Teria perdoado
tudo, mesmo que estivesses com a cabeça noutro sítio.
Para castigo, vou revelar-te uma mentira. Não é verdade que tenha marcado
encontro com a minha irmã em Ginza. Planeava passar a noite em tua casa, e até
tinha trazido comigo o pijama. Podes crer! Na minha mala está o pijama e uma
escova de dentes. Ah, que estúpida! Tu nem sequer me convidaste para ir a tua casa.
Mas não é grave, deixa lá. Visto que te estás a marimbar para mim, deixo-te
entregue à tua solidão. Por mim, podes matar a cabeça à vontade.
Atenção, não penses que estou zangada contigo. Estou apenas triste. Pelos vistos,
não há nada que eu possa fazer por ti, apesar de tudo o que fizeste por mim. A
verdade é que estás sempre encerrado no teu próprio mundo. Por mais que eu bata à
porta e chame por ti, limitas-te a levantar os olhos, para logo a seguir voltares a
fechar-te.
Aproximas-te neste preciso momento com os nossos refrigerantes. Dir-se-ia que
tens a cabeça nas nuvens, e só espero que não dês um tombo valente... mas não
caíste. Acabas de te sentar ao meu lado, dando grandes goles na tua Coca-Cola.
Esperava que, ao aproximares-te, te saísses por fim com a frase da ordem: «Ah,
estou a ver que mudaste de penteado!» Mas não. Caso tivesses dado por isso,
rasgaria esta carta em pedacinhos e teria dito: «Vamos até tua casa.» A seguir,
preparar-te-ia um bom jantar e dormiríamos juntos. Mas és tão insensível como uma
chapa de aço.
Adeus.
P.S.: A partir de agora, peço-te que não me dirijas a palavra quando me vires nas
aulas.

Tentei ligar para casa dela da estação de Kichijōji, mas ninguém atendeu.
Como não tinha nada para fazer, deambulei pelas ruas da cidade à procura
de emprego, um trabalho a tempo parcial compatível com os horários da
universidade. Estava disponível para trabalhar aos fins de semana ou às
segundas, quartas e quintas, depois das cinco da tarde, mas não foi fácil
encontrar uma ocupação que se ajustasse aos meus horários. Desisti e
regressei a casa. Quando saí para comprar o jantar, tornei a ligar a Midori.
Respondeu-me a irmã, que me disse que ela ainda não regressara e que não
fazia ideia a que horas voltaria. Agradeci e desliguei.
Depois do jantar, tentei escrever-lhe uma carta. Após várias tentativas
infrutíferas, decidi escrever antes a Naoko.
Contei-lhe que a primavera chegara e que, com ela, novo ano letivo
começara. Sentia muito a sua falta e desejava vê-la e conversar com ela,
desse lá por onde desse. Acrescentei que decidira ser forte. Era o único
caminho a seguir.

Mas uma coisa te garanto. Talvez diga respeito apenas à minha pessoa e pode não
ter importância, aos teus olhos, mas não durmo com mais ninguém. Porque não
quero esquecer as tuas carícias. Para mim, aqueles momentos importam muitíssimo
mais do que possas pensar. Passo a vida a lembrar-me neles.

Meti a carta no envelope, colei o selo, sentei-me à secretária e ali me


deixei ficar, pensativo. A carta era significativamente mais curta do que as
outras. Ao mesmo tempo, porém, tinha a impressão de que serviria para
melhor lhe transmitir os meus sentimentos. Servi-me de três dedos de
uísque, que bebi de um trago antes de cair na cama.

***

No dia seguinte, perto da estação de Kichijōji, encontrei uma ocupação para


os sábados e os domingos: empregado de mesa num restaurante italiano. O
ordenado não era nada de especial, mas tinha a vantagem de incluir almoço
e, além disso, pagavam-me os transportes. Veio mesmo a calhar.
Combinámos ainda que eu substituiria os meus colegas nas noites de
segunda, quarta e quinta, altura em que estavam de folga. O patrão
prometeu aumentar-me o salário ao fim de três meses e quis que eu fosse
trabalhar logo nesse sábado. Comparado com o idiota que estava à frente da
loja de discos de Shinjuku, parecia ser um homem honesto e sério.

***

Quando telefonei para o apartamento de Midori, atendeu de novo a irmã.


Disse-me que ela ainda não regressara a casa e que também queria saber por
onde andaria a irmã. Numa voz cansada, perguntou-me se eu fazia ideia do
seu paradeiro. Tudo o que eu sabia era que ela tinha um pijama e uma
escova de dentes na mala.
***

Avistei Midori na aula de quarta-feira. Trazia uma camisola bege e os


óculos verde-escuros que costumava usar durante o verão. Estava sentada
na última fila, a conversar com uma rapariga franzina de óculos graduados.
Já a vira por lá antes. Aproximei-me e disse-lhe que gostaria de falar com
ela no fim da aula. A rapariga de óculos olhou primeiro para mim e depois
para Midori. O novo penteado era bastante mais feminino, sem sombra de
dúvida. Dava-lhe um ar de mulher feita.
− Tenho um compromisso – disse Midori, inclinando levemente a cabeça.
− Não te vou demorar muito. Cinco minutos, quando muito – repliquei.
Midori tirou os óculos escuros e semicerrou os olhos. Parecia observar de
longe uma casa em ruínas.
− Não quero falar contigo. Tenho muita pena.
A rapariga que usava óculos olhou para mim como se dissesse: «Ela já te
disse que não quer falar contigo.»
Fui sentar-me na primeira fila à direita, mesmo na ponta, e assisti à aula
(Introdução ao Teatro de Tennessee Williams – O Seu Lugar na Literatura
Americana); no final, contei devagar até três antes de me virar. Midori
tinha-se evaporado.
Abril é o mês mais cruel para se estar sozinho. Em redor, toda a gente
parecia feliz da vida. As pessoas despiam o casaco, conversavam ao sol,
jogavam à bola e apaixonavam-se. Quanto a mim, vivia na mais completa
solidão. Naoko, Midori, Nagasawa: todos eles se tinham afastado da minha
pessoa. E não havia mais ninguém que eu pudesse cumprimentar com um
«bom dia» ou a quem dizer «viva». Até do Facho sentia saudades. Passei o
mês de abril neste triste isolamento. Tentei entrar em contacto com Midori
por mais de uma vez, mas bati sempre com o nariz na porta. Respondia-me
que não estava disposta a falar comigo, e, pelo tom de voz, percebi que não
queria mais conversas. Andava quase sempre com a rapariga dos óculos e,
volta e meia, na companhia de um rapaz alto de cabelo curto. As pernas
dele eram extraordinariamente compridas e calçava sempre ténis brancos de
básquete.
Abril chegou ao fim, entrámos em maio, e as coisas pioraram. No mês de
maio, em plena primavera, foi impossível adiar o coração. Sentia-o tremer,
sobretudo ao cair da noite. Na pálida obscuridade impregnada pelo suave
perfume das magnólias, sentia um aperto no coração: todo ele estremecia
sem motivo, trespassado pela dor. Nessa altura, fechava os olhos e
permanecia imóvel, cerrando os dentes, à espera de que tudo acabasse.
Pouco a pouco, o sofrimento desvaneceu-se, deixando atrás de si uma dor
surda.
Aproveitava esses momentos para escrever a Naoko. Nas cartas, falava
apenas de coisas agradáveis, divertidas, bonitas. O cheiro da erva, a
refrescante brisa primaveril, o luar, um filme que tinha ido ver, uma canção
que me ficara no ouvido ou um livro que me emocionara. Consolava-me
reler as minhas próprias cartas. Acreditava então que vivia num mundo
maravilhoso. Escrevi muitas missivas neste tom. Naoko e Reiko nunca me
chegaram a responder.
No restaurante onde trabalhava travei conhecimento com um rapaz
chamado Itō, que andava no mesmo ano que eu e com quem conversava às
vezes. Era um rapaz calmo e calado, estudante de pintura em Belas-Artes.
Demorei um certo tempo a quebrar o gelo, mas lá acabámos por estabelecer
uma bela amizade. Ganhámos o hábito de sair depois do trabalho para
trocar dois dedos de conversa e beber uma cerveja num dos bares das
redondezas. Ele partilhava comigo o gosto pela leitura e pela música, e as
nossas conversas giravam amiúde à volta desses assuntos. Era magro, bem-
parecido, usava cabelo curto e tinha um aspeto asseado, longe do arquétipo
dos estudantes de Belas-Artes da época. Não se podia dizer que fosse muito
comunicativo, embora tivesse gostos e opiniões bem definidas. Gostava de
literatura francesa, adorava ler Georges Bataille e Boris Vian e ouvia
Mozart e Ravel. Tal como eu, procurava um amigo com quem pudesse
conversar acerca dos seus interesses.
Certo dia, convidou-me para ir ao seu apartamento. Ficava num prédio de
um único andar, de construção peculiar, situado por trás do parque de
Inokashira. A casa estava atulhada de telas e de material de pintura. Pedi-lhe
para me mostrar os quadros, mas ele recusou-se, dizendo que eram obras
indignas de ser exibidas. Bebemos o Chivas Regal que ele trouxera às
escondidas de casa do pai e comemos peixe grelhado num pequeno fogão,
ao som do concerto para piano de Mozart interpretado por Robert Casadeus.
Itō era de Nagasáqui e deixara uma namorada na sua cidade natal. Ia para
a cama com ela sempre que regressava a casa. Nos últimos tempos, porém,
as coisas não pareciam correr bem entre eles.
− Sabes como são as mulheres – confidenciou-me. – Assim que chegam
aos vinte anos43 ou aos vinte e um, começam a assentar ideias. De repente,
pecam por ser excessivamente realistas. Quando isso acontece, tudo o que
nelas achávamos encantador passa a ser, aos nossos olhos, vulgar e
deprimente. A minha namorada, de todas as vezes que temos sexo,
pergunta-me o que tenciono fazer quando acabar a universidade.
− E quais são os teus planos, a propósito? – perguntei.
Ele abanou a cabeça, levando uma garfada de peixe à boca.
− O que posso eu fazer? Sou estudante de artes, não tenho grande opção.
Se as pessoas se preocupassem com isso, não haveria ninguém a estudar
pintura a óleo. Conheces alguém que ganhe a vida assim? Mas sempre que
lhe dou esta resposta, aconselha-me a voltar para Nagasáqui e a tornar-me
professor de desenho. O sonho dela é ser professora de inglês.
− Não te sinto muito apaixonado por ela. Tenho razão?
− Tens toda a razão – admitiu Itō. – Mais a mais, não tenciono vir a ser
professor de desenho. Longe de mim acabar os meus dias a ensinar a arte de
bem desenhar a alunos do secundário que se comportam como macacos
mal-educados.
− Independentemente disso, não seria melhor pores fim a esse
relacionamento, de uma vez por todas? – perguntei.
− Também penso o mesmo. Mas não sei como lhe dizer, tenho pena dela.
Está convencida de que ficaremos juntos. Como vês, não é fácil virar-me
para ela e dizer: «Olha, acho melhor separarmo-nos. Já não gosto de ti.»
Bebemos o nosso uísque com gelo e, quando acabámos o peixe, cortámos
pepino e aipo às fatias fininhas, que comemos depois de as mergulhar em
misō. Enquanto mastigava, veio-me à lembrança o malogrado pai de
Midori. Fui assaltado por um sentimento de angústia ao pensar em como a
minha vida se tornara enfadonha desde que perdera aquela rapariga. Sem
que me desse conta, a sua existência ocupara um espaço importante no meu
coração.
− Tens namorada? – perguntou Itō.
Depois de respirar fundo, respondi-lhe que sim. Expliquei que, por obra e
graça de uma série de circunstâncias, de momento éramos obrigados a viver
longe um do outro.
− Mas estão no mesmo comprimento de onda? – insistiu ele.
− Acho que sim. De contrário, estou feito ao bife – disse em tom de
brincadeira.
Na sua voz calma, ele pôs-se a falar sobre a grandeza da música de
Mozart. Conhecia a obra de Mozart como as palmas das suas mãos, do
mesmo modo que os camponeses conhecem a fundo os caminhos da
montanha. Explicou-me que o pai era um apaixonado por Mozart e que ele
se acostumara a ouvi-lo desde os três anos de idade. Os meus
conhecimentos de música clássica não lhe chegavam aos calcanhares, mas
ao escutar aquele concerto de Mozart reforçado pelas suas preciosas
explicações, carregadas de emoção («Ouve-me só este trecho...», «E que me
dizes a este?»), senti-me em paz pela primeira vez desde há muito tempo.
Bebemos a garrafa inteira de Chivas Regal, enquanto contemplávamos a
Lua em quarto crescente pairando sobre o parque de Inokashira. Belo
uísque.
Itō propôs-me que ficasse a dormir lá em casa, mas recusei dizendo que
tinha um compromisso. Agradeci o uísque e abandonei o apartamento antes
das nove. De regresso a casa, entrei numa cabina telefónica e liguei a
Midori. Para meu grande espanto, foi ela quem me respondeu do outro lado
da linha.
− Desculpa, mas não quero falar contigo – disse ela.
− Bem sei. Já me disseste isso mil vezes. Mas não quero que a nossa
relação acabe assim. És uma das poucas amigas que tenho e é muito
doloroso não estar contigo. Quando poderemos falar com calma? É só isso
que quero saber.
− Eu ligo-te. Quando chegar a altura.
− Tudo bem contigo? – perguntei.
− Tudo – respondeu ela. E desligou.

***

Em meados de maio recebi uma carta de Reiko.

Venho por este meio agradecer todas as cartas que tens enviado. A Naoko gosta
imenso de receber cartas tuas e dá-mas a ler. Espero que não te importes.
Desculpa ter estado tanto tempo sem escrever. Para ser honesta, tenho andado um
bocado cansada e, além disso, as novidades boas escasseavam. A nossa amiga
Naoko não tem passado bem. No outro dia, a mãe dela veio de Kōbe e discutimos o
caso: a Naoko, a mãe, o médico e eu. Estamos todos de acordo. A Naoko deve ser
transferida para um hospital especializado e submetida a uma terapia intensiva.
Quanto ao regresso aqui, dependerá dos resultados obtidos. A Naoko preferia
continuar por cá até melhorar ou curar-se, mas, para falar com franqueza, torna-se
cada vez mais complicado para nós controlá-la. Na maior parte do tempo, não dá
sinal de estar com problemas, mas, por vezes, o seu estado emocional revela-se
terrivelmente instável e, quando tal acontece, não temos mão nela. Nunca sabemos o
que vai acontecer. Tem alucinações violentas e fecha-se na sua concha.
Por tudo isto, acho que a melhor solução é interná-la num estabelecimento
durante uma temporada a fim de receber o tratamento adequado. É triste, mas nada
podemos fazer. Como já te disse, há que ter paciência. Ir desenredando a meada,
sem perder a esperança. Por mais que o estado dela nos pareça desesperado,
acabaremos, sem dúvida, por compor o novelo. Quando nos encontramos às escuras,
não temos outro remédio senão acostumar os olhos à escuridão reinante.
Quando receberes esta carta, a Naoko já terá sido transferida para outro hospital.
Desculpa não te ter avisado antes, mas foi tudo decidido em cima da hora. O novo
hospital tem uma excelente reputação e ótimos médicos. Dou-te a morada. A partir
de agora, podes enviar a correspondência para lá. Pela minha parte, à medida que
me forem dando notícias, tratarei de entrar em contacto contigo. Calculo que para ti
também seja difícil lidar com esta situação, mas não percas o ânimo. Escreve-me de
vez em quando.
Até breve.

Nessa primavera, fartei-me de escrever cartas. Uma por semana, a Naoko,


várias cartas a Reiko, sem esquecer Midori. Escrevia durante as aulas,
sentado à secretária, com a Gaivota ao colo, durante o intervalo do trabalho
no restaurante italiano. Pelos vistos, escrever era a forma que eu encontrara
para estabelecer ligação entre os vários pedaços da minha vida em vias de
se desmoronar.
Nas cartas enviadas a Midori, expliquei-lhe que os meses de abril e maio
haviam sido muito difíceis e solitários. Confessava que aquela fora a
primavera mais triste da minha vida. Preferia mil vezes, escrevi, que o mês
de fevereiro nunca tivesse chegado ao fim. Sabia que tudo o que dissesse
naquele momento de nada adiantaria, mas o novo penteado ficava-lhe a
matar. Estava muito bonita. Contei-lhe que trabalhava agora num
restaurante italiano e que o cozinheiro me ensinara a fazer uma massa
deliciosa. Esperava sinceramente ter oportunidade de cozinhar a receita
para ela.

***
Ia às aulas na universidade todos os dias. Trabalhava no restaurante italiano
duas ou três vezes por semana, falava com Itō de livros e música, li vários
livros de Boris Vian que ele me emprestou, escrevi cartas, brinquei com a
Gaivota, preparei pratos de massa italiana, cuidei do jardim, masturbei-me a
pensar em Naoko e fui ver uma série de filmes ao cinema.
Íamos em meados de junho quando Midori se dignou dirigir-me a
palavra. Estivéramos dois meses sem nos falarmos. Quando a aula acabou,
ela veio sentar-me a meu lado e permaneceu em silêncio, com o queixo
apoiado nas mãos. Lá fora chovia. Era uma chuva que caía a direito, fina e
sem vento, própria da estação, empapando tudo de maneira uniforme.
Mesmo depois de os outros alunos terem abandonado a sala, Midori deixou-
se ficar calada, na mesma posição. Tirou então um Marlboro do bolso das
calças de ganga e entregou-me a caixa de fósforos. Acendi-lhe o cigarro.
Ela franziu os lábios, lentamente, e soprou o fumo devagarinho para cima
de mim.
− Gostas do meu penteado?
− Muito.
− Muito quanto?
− É tão bonito que podia derrubar as árvores das florestas do mundo
inteiro – disse eu.
− Estás a falar a sério?
− Estou.
Midori olhou-me nos olhos por momentos e estendeu-me a mão direita.
Apertei-a. Ela pareceu ficar ainda mais aliviada do que eu. Deixou cair a
cinza para o chão e levantou-se.
− Vamos comer qualquer coisa. Estou a morrer de fome.
− Onde?
− Ao restaurante dos grandes armazéns Takashimaya, em Nishonbashi.
− Porquê esse sítio?
− Apetece-me.
Apanhámos o metro e fomos até ao distrito de Nishonbashi. Devido à
chuva que não parava de cair, provavelmente, a loja estava praticamente
deserta. Lá dentro cheirava a terra molhada. Encaminhámo-nos para o
restaurante e, após estudar a ementa afixada num escaparate, decidimo-nos
por um maku no uchi-bentō44. Apesar de ser hora de almoço, o restaurante
não estava cheio.
− Há muito que não comia no restaurante de uns grandes armazéns –
disse eu, bebendo o chá verde por uma chávena branca, das que é costume
encontrar naquele género de locais.
− Gosto de cá vir – disse Midori. – Dá-me a sensação de estar a fazer algo
de especial. Deve ser por causa das recordações de infância. Os meus pais
quase nunca me traziam aqui.
− Pois eu passava a vida a comer em restaurantes destes. A minha mãe
adorava fazer compras.
− Sorte a tua!
− Não concordo. Nunca gostei de ir às compras.
− Não estás a perceber. Tiveste sorte em ter quem se preocupasse contigo.
− Sou filho único – afirmei.
− Na minha meninice pensava que, quando crescesse, iria sozinha aos
grandes armazéns e comeria tudo aquilo que me desse na gana. Patético,
não achas? Qual é o gozo de uma pessoa comer sozinha num lugar destes?
Além de a comida não prestar, nada tem de divertido. São restaurantes
demasiado grandes e cheios de gente, barulhentos até dizer basta. Mesmo
assim, volta e meia, apetece-me cá vir.
− Passei estes dois meses muito triste – disse eu.
− Senti isso nas tuas cartas – observou Midori, num tom pouco
expressivo. – Bom, vamos comer. Neste preciso momento não consigo
pensar em mais nada.
Comemos os alimentos servidos nas caixas lacadas em forma de meia-
lua, bebemos a sopa e o chá verde da ordem. Midori acendeu um cigarro.
Depois, sem dizer uma palavra, levantou-se e pegou no guarda-chuva.
Imitei-a e levantei-me.
− E agora, onde vamos? – perguntei.
− Ao terraço, claro. É onde as pessoas costumam ir quando vêm almoçar
aos grandes armazéns – declarou Midori.
Não se via ninguém no terraço batido pela chuva. Nem sequer os
vendedores da secção dos animais de estimação. Tanto os quiosques como a
bilheteira dos espetáculos infantis estavam fechados. Midori e eu abrimos
os nossos guarda-chuvas e passeámos pelo meio dos cavalos de madeira, as
cadeiras de jardim e os expositores. Espantou-me ver um lugar tão deserto e
desolado no coração de Tóquio. Midori queria à viva força espreitar pelo
telescópio, por isso não tive outro remédio senão meter uma moeda na
ranhura e segurar no guarda-chuva enquanto ela observava a cidade de
olhos semicerrados.
A um canto do terraço havia um salão de jogos coberto, onde se
alinhavam as mais variadas maquinetas mecânicas para miúdos. Midori e eu
sentámo-nos ao lado um do outro, numa espécie de plataforma, e ficámos a
ver a chuva cair.
− Fala comigo − disse ela. – Deves ter coisas para me dizer.
− Não é minha intenção justificar-me, mas naquele dia estava deprimido e
não conseguia raciocinar como deve ser – declarei. – Mas uma coisa
percebi durante o tempo em que ficámos sem nos vermos. Longe de ti,
sinto-me desesperado e profundamente sozinho.
− Não imaginas... Não imaginas, Tōru, como também eu sofri e fui infeliz
durante estes dois meses.
− Pois não – disse eu, admirado. – Pensei que não me quisesses pôr a
vista em cima, uma vez que estavas furiosa.
− Por acaso serás estúpido? Claro que queria encontrar-me contigo. Não
sou uma rapariga volúvel, que gosta e deixa de gostar por dá cá aquela
palha. Nem sequer isso és capaz de entender?
− Claro que sei disso, mas...
− Estava danada contigo, só tinha vontade de te bater! Estivemos sem nos
vermos durante uma eternidade, e tu, com a cabeça nas nuvens, sempre a
pensar na outra rapariga, sem me ligares a ponta de um corno. Era natural
que tivesse ficado piursa, não achas? Aliás, o sentimento não é recente. Já
há uns tempos que pergunto a mim própria se não seria melhor estar uma
temporada longe de ti. Para clarificar as coisas.
− Que coisas?
− A nossa relação, óbvio. O que pretendo dizer é que, aos poucos,
comecei a sentir-me melhor contigo do que com o meu namorado. E isso
não é normal, para não dizer que não é um bom sinal. Gosto dele,
naturalmente. É um bocado egoísta, intolerante e reacionário, mas tem
outras qualidades, além de ter sido o meu primeiro amor. Mas tu... tu és
uma pessoa muito especial. Quando estou contigo, sinto-me em perfeita
sintonia. Confio em ti. Gosto de ti. Não quero perder-te. Naquele
famigerado dia em que me fui embora furiosa, encontrei-me com o meu
namorado e abri-lhe o coração. Pedi-lhe conselho. Ele disse-me que não
devia tornar a ver-te. Caso contrário, acabaria tudo comigo.
− E o que foi que aconteceu?
− Acabei tudo com ele. – Midori levou um Marlboro à boca, acendeu-o
protegendo o cigarro com as mãos e inspirou o fumo.
− Porquê?
− Ainda perguntas? – gritou ela. – Serás bom da cabeça? Sabes tudo sobre
o conjuntivo dos verbos ingleses, entendes de trigonometria, consegues ler
Marx... e não entendes uma coisa tão simples como esta? Porque me fazes
essa pergunta? Porque é que obrigas uma rapariga a dizer isto? Acabei
namoro com ele porque gosto mais de ti. Preferia estar apaixonada por um
homem mais bonito, mas que se há de fazer? Apaixonei-me por ti.
Tentei dizer alguma coisa, mas sentia um nó na garganta que me impedia
de falar.
Midori atirou o cigarro para uma poça de água.
− Não faças essa cara de espanto! Deprimes-me! Vais acabar por me fazer
chorar. Não te preocupes. Sei que gostas de outra pessoa, por isso não tenho
esperança. Podes abraçar-me, ao menos? Estes dois meses foram muito
difíceis para mim.
Abraçamo-nos debaixo dos guarda-chuvas, nas traseiras do salão de
jogos. Pressionámos os corpos e encostámos os lábios. Os seus cabelos e as
mangas do casaco conservavam o cheiro da chuva. Foi com emoção que
descobri até que ponto o corpo de uma mulher consegue ser macio e quente.
Sentia os seios dela apertados de encontro ao meu peito, debaixo da roupa.
Ocorreu-me que há muito não tinha contacto físico com outro ser humano.
− Conversei com o meu namorado na última noite em que estivemos os
dois juntos – esclareceu Midori. – Separámo-nos.
− Midori, amo-te – disse eu. – Com todo o meu coração. Nunca mais te
deixarei. Mas nada posso fazer. Neste momento, estou de mãos e pés
atados.
− Por causa da tal?
Fiz que sim com a cabeça.
− Já foste para a cama com ela?
− Uma única vez, no ano passado.
− E não voltaste a vê-la depois disso?
− Encontrámo-nos por duas vezes. Mas não aconteceu nada – expliquei.
− Porquê? Ela não gosta de ti?
− Não te sei dizer – respondi. – A situação é muito complicada. Existem
vários problemas. Tudo isto se tem prolongado por demasiado tempo, e eu,
para ser sincero, já não percebo rigorosamente nada. Nem eu nem ela. A
única coisa que sei é que, como ser humano, sinto-me responsável. Não
posso fugir ao meu dever. Pelo menos, é como vejo a situação. Mesmo que
ela não goste de mim.
− Deixa-me que te diga isto – afirmou Midori, encostando o rosto ao meu
pescoço. – Sou uma mulher de carne e osso. Estou abraçada a ti e confessei
que te amo. Farei aquilo que me disseres. Apesar de ser um bocado maluca,
tenho-me na conta de boa rapariga e mulher honesta. Sou trabalhadora,
bonita, tenho seios perfeitos, cozinho bem e o meu pai deixou-me numa
confortável situação financeira. Não me achas um bom partido? Se me
deixares escapar, acabarei por encontrar outro homem.
− Preciso de tempo – disse eu. – Tempo para pensar, para pôr a cabeça em
ordem, para tomar a melhor decisão. Tenho muita pena, mas, neste
momento, é tudo o que posso dizer.
− Mas amas-me do fundo do coração e não te queres separar nunca mais
de mim, certo?
− Sim.
Midori afastou-se, olhou-me nos olhos e sorriu.
− Tudo bem, esperarei por ti. Porque confio em ti – disse ela. – Mas se
me escolheres, escolhe-me só a mim. Quando fizeres amor comigo, pensa
só em mim. Compreendes o que quero dizer?
− Perfeitamente.
− Podes fazer o que quiseres, desde que não me magoes. Já me magoaram
mais do que o suficiente. Quero ser feliz.
Apertei-a com força e beijei-a.
− Que tal se largasses a porcaria do guarda-chuva e me abraçasses com
força? – sugeriu ela.
− Sem o guarda-chuva vamos ficar encharcados...
− Não faz mal, estou-me nas tintas. Quero que me apertes nos teus braços
e não penses em mais nada. Há dois meses que espero por isto.
Pousei o guarda-chuva aos pés e abracei-a com toda a força, debaixo de
chuva. Apenas se ouvia o som abafado dos pneus dos carros que passavam
em direção à autoestrada. A chuva continuava a cair, silenciosamente, sem
parar, molhando-nos o cabelo, rolando pelas nossas faces como lágrimas,
tingindo de escuro o blusão de ganga dela e o meu corta-vento de nylon
amarelo.
− Que tal irmos à procura de um sítio abrigado?
− Vem até minha casa – sugeriu ela. – Não tem ninguém a esta hora. Aqui
vamos acabar por apanhar uma constipação valente.
− Podes crer!
− Parece que atravessámos o rio a nado – comentou Midori, rindo-se. –
Ah, que bom! Estou tão feliz!
Aproveitámos para comprar uma toalha na secção de atoalhados dos
grandes armazéns e, à vez, enxugámos o cabelo na casa de banho. A seguir,
apanhámos o metro e fomos até ao apartamento de Midori. Deixou-me
tomar duche primeiro, e depois foi a vez dela. Emprestou-me um robe até a
minha roupa secar e vestiu uma saia e um polo. Depois bebemos uma
chávena de café sentados à mesa da cozinha.
− Fala-me de ti – pediu ela.
− O que queres saber?
− Bom... O que mais detestas?
− Carne de frango, doenças venéreas e barbeiros demasiado faladores.
− E que mais?
− Noites solitárias de abril e telefones com capas de renda.
− E que mais?
Abanei a cabeça.
− Não estou a ver mais nada.
− O meu namorado, ou, melhor dizendo, o meu ex-namorado, detestava
uma grande quantidade de coisas. Detestava ver-me de minissaia, detestava
que eu fumasse ou ficasse com os copos, que dissesse asneiras, que
criticasse os amigos dele... Caso haja algo em mim de que não gostes, sê
franco, peço-te por tudo. Se puder, tentarei corrigir essa falha.
− Não estou a ver nada, assim à primeira – disse eu, após ter refletido um
pouco.
− Estás a falar a sério?
− Gosto da forma como te vestes, do que fazes, do que dizes, da tua
maneira de andar e de ficares bêbeda. Gosto de tudo em ti.
− Não há nada que gostasses de mudar em mim?
− Não estou a ver, o que significa que estás bem assim.
− Até que ponto me amas?
− Ao ponto de todos os tigres das selvas espalhadas pelo mundo inteiro se
dissolverem até ficarem transformados em manteiga.
− Hum... – murmurou ela, fingindo-se insatisfeita. – Podes abraçar-me
outra vez?
Deitámo-nos nos braços um do outro. Beijámo-nos debaixo da roupa da
cama ouvindo o barulho da chuva e falámos de tudo o que se possa
imaginar, desde a formação do Universo até ao tempo de cozedura dos
ovos.
− O que farão as formigas nos dias de chuva? – quis saber ela.
− Não faço a mínima ideia – disse eu. – Talvez limpem o formigueiro e
aproveitem para arrumar a despensa. Não sei se sabes, mas as formigas são
muito trabalhadoras.
− Nesse caso, porque é que não evoluíram e deixaram de ser formigas?
− Não te sei responder a isso. Mas estou em crer que a sua estrutura física
não favorece a evolução. Isto é, quando comparada com a dos macacos.
− Afinal de contas, Tōru, há muitas coisas que desconheces – observou
Midori. – E eu a pensar que o mundo não tinha segredos para ti.
− O mundo é infinitamente vasto – argumentei.
− As montanhas são altas, os mares profundos – disse ela. Fazendo
deslizar a mão por baixo do robe, agarrou no meu pénis ereto. Engoliu em
seco. – Agora a sério, Tōru. Não vai resultar. Uma coisa tão dura e tão
grande como a tua não caberá dentro de mim. Impossível
− Estás a gozar comigo? – disse eu, suspirando.
− Sim – respondeu ela, soltando uma gargalhada abafada. – Tudo bem.
Podes ficar descansado. De certeza que cabe. Posso espreitar melhor?
− Podes fazer o que quiseres.
Ela desapareceu debaixo da roupa de cama e apalpou-me de todas as
maneiras possíveis e imaginárias. Arregaçou-me a pele do pénis e sopesou-
o na palma da mão. Depois pôs a cabeça de fora e respirou.
− Aprovado. Gostei imenso do que vi. E não estou a dizer isto para te
agradar.
− Obrigado – agradeci educadamente.
− Mas tu não queres fazer amor, pois não, Tōru? Até esclareceres tudo,
certo?
− Não é que não queira, sabes? Morro de desejo. Mas julgo que não devo.
− És um obstinado da gaita! Se eu estivesse no teu lugar, saltava-me para
cima. Depois logo pensaria no assunto.
− Farias mesmo isso?
− Não, minto – disse ela num murmúrio. – Acho que não seria capaz. É
isso que aprecio em ti. Amo-te muito.
− Amas-me a que ponto?
Em vez de responder, ela encostou-se toda a mim, beijou-me os mamilos
e começou a mexer devagar a mão que segurava no meu sexo. A primeira
coisa que me veio à mente foi a diferença na maneira como Midori e Naoko
me agarravam no pénis. Eram as duas delicadas e maravilhosas, mas faziam
a coisa de maneira diferente.
− Estás a pensar na outra, Tōru?
− Não, não estou – menti.
− Juras?
− Juro.
− Odiaria que, nestes momentos de intimidade, pensasses noutra pessoa.
− Seria incapaz disso.
− Queres acariciar o meu peito ou tocar-me mais abaixo? – perguntou
Midori.
− Gostaria muito, mas é melhor não. Tantos estímulos de uma só vez são
demasiada areia para a minha camioneta.
Midori assentiu e meteu a mão por baixo da roupa para tirar as cuecas e
pô-las na ponta do pénis.
− Podes usar as minhas cuequinhas.
− Vão ficar sujas.
− Não digas disparates, que ainda me fazes chorar – disse ela com voz
lagrimosa. – Basta lavá-las a seguir. Por isso, não te reprimas e goza à
vontade. Se a questão te preocupa tanto, só tens de me comprar umas novas.
Ou vais dizer que não consegues ir até ao fim por serem minhas?
− Claro que não!
− Então vamos lá. Despacha-te.
Mal acabei, examinou o meu esperma.
− Nada mal! – comentou, aparentando estar admirada.
− Demasiado?
− Para com isso. Não sejas parvo. Goza à vontade – disse Midori a rir,
antes de me beijar.

***
Ao fim da tarde, saiu de casa para ir às compras ali perto e preparou o
jantar. Sentados à mesa da cozinha, bebemos cerveja e comemos tempura
com arroz de ervilhas.
− Tens de te alimentar bem para produzires bastante esperma – disse
Midori. – Já sabes que podes contar comigo para te libertares dele.
− Agradecido.
− Conheço várias maneiras. Quando éramos donos da livraria, aprendi
uma data de coisas nas revistas femininas. Por exemplo, fiquei a saber que
as mulheres grávidas que não podem fazer sexo têm à sua disposição as
mais variadas técnicas, tudo para evitar que os maridos se deitem com
outras. Queres experimentar?
− Mal posso esperar.
Depois de me despedir dela, já no comboio, abri o vespertino que tinha
comprado na estação, mas dei-me conta de que não me estava nada a
apetecer ler aquelas notícias. Fiquei a olhar fixamente para as
incompreensíveis manchetes, ao mesmo tempo que pensava no que faria a
partir daí e no modo como as coisas mudariam. Tinha a sensação de que o
mundo à minha volta pulsava. Soltei um suspiro profundo e fechei os olhos.
Não me arrependia de nada, e estava convencido de que, caso fosse possível
voltar atrás, repetiria todos os gestos. Teria abraçado Midori no terraço,
debaixo da chuva inclemente, ficaríamos os dois ensopados, teríamos ido
parar à cama dela e, uma vez ali deitados, deixaria que ela me masturbasse.
Disso não tinha a mínima dúvida. Amava Midori e estava feliz da vida por
ela ter voltado para mim. Acreditava que a coisa poderia funcionar. E, tal
como ela mesma dissera, tratava-se de uma mulher de carne e osso que se
abandonara nos meus braços. Fizera tudo ao meu alcance para reprimir o
violento desejo de a despir e de a penetrar, mergulhando no seu calor. Vi-me
incapaz de a impedir de me agarrar no sexo e de o acariciar com os seus
dedos experientes. Queria que ela fizesse aquilo, e ela própria desejava
fazê-lo. Estávamos apaixonados. Quem poderia impedir-nos? Sim, eu
estava apaixonado por Midori. E provavelmente já o sabia antes. Só que
evitara durante muito tempo chegar a essa conclusão.
O problema era que não podia de forma alguma explicar a Naoko o rumo
que as coisas tinham tomado. Em circunstâncias diferentes, talvez tivesse
conseguido dizer-lhe que me apaixonara por outra. Sem esquecer que eu a
amava, de facto. Por mais que esse sentimento conhecesse agora uma forma
estranha e distorcida, não tinha dúvidas quanto ao amor que sentia por ela,
nem ao espaço intacto que lhe reservava no meu coração.
Restava-me escrever a Reiko e contar-lhe tudo, sem esconder nada. Já em
casa, sentei-me na varanda, a observar o jardim fustigado pela chuva, e
alinhavei meia dúzia de frases. «É com a maior tristeza que te escrevo esta
carta», comecei. Passei então a explicar-lhe o relacionamento que mantinha
com Midori e o que sucedera connosco naquele dia.

Continuo a amar a Naoko da mesma forma. Mas o que existe entre mim e a Midori é
algo definitivo. Sinto que se trata de uma força irresistível que, muito
possivelmente, acabará por nos arrastar em direção ao futuro. O amor que sinto pela
Naoko é calmo, meigo e inocente, ao passo que os meus sentimentos pela Midori
são de natureza totalmente diferente. O meu amor por ela tem pernas para andar,
respira, palpita. Faz-me vibrar por dentro. Sinto-me confuso, sem saber o que fazer.
Longe de mim pretender justificar-me, mas tenho a consciência de ter vivido até à
data de uma forma honesta, até para comigo próprio, sem mentir a ninguém. Sempre
tive cuidado para não magoar os outros. Mesmo assim, vi-me atirado para dentro de
um verdadeiro labirinto. Como é possível? Não encontro explicação, sinceramente.
Não sei o que fazer. Podes ajudar-me? És a única pessoa a quem posso pedir
conselho.

Coloquei a carta num envelope de correio urgente e enviei-a naquela


mesma noite.
A resposta de Reiko chegou às minhas mãos cinco dias depois, mais
concretamente, a 17 de junho.

Antes de mais, as boas notícias. Fui informada de que a Naoko está a recuperar bem
mais depressa do que se esperava. Falei com ela uma vez ao telefone e, só pela voz,
pareceu-me que estava bastante lúcida. É possível que ela regresse para junto de nós
dentro em breve.
Agora, vamos à parte que te diz respeito.
Penso que não deverias levar as coisas tão a sério. Amar outra pessoa é
maravilhoso, e se esse sentimento for sincero, ninguém pode sentir-se enfiado num
labirinto. Confia em ti.
O meu conselho é muito simples. Em primeiro lugar, se te sentes genuinamente
atraído por essa rapariga, de nome Midori, nada mais natural do que estares
apaixonado por ela. Pode ser que resulte, pode ser que não. Mas as coisas do
coração, regra geral, são assim mesmo. Quando amamos alguém, é normal que nos
entreguemos a essa paixão. Esta é a minha opinião, pelo menos, e também a minha
maneira de ser sincera.
Em segundo lugar, no que diz respeito às relações sexuais com a Midori, prefiro
não opinar, muito honestamente. Fala com ela e arranjem uma solução que vos
satisfaça a ambos.
Em terceiro lugar, não digas nada à Naoko. Se isso algum dia tiver de acontecer,
então logo discutiremos os dois a melhor maneira de abordar a questão. Por
enquanto, é melhor fechares-te em copas. Deixa, que eu trato do assunto.
Em quarto lugar, devo reconhecer que apoiaste imenso a Naoko, e mesmo que
não seja amor o que sentes, continuas a poder fazer muito por ela. Como tal, não
leves o assunto tão a peito. Todos nós (e refiro-me a todas as pessoas, tanto as
normais como as que não o são) somos seres imperfeitos vivendo num mundo
imperfeito. Não devemos encarar a vida de maneira tão rígida, medindo as nossas
ações com uma régua e o ângulo das questões com um transferidor, não te parece?
Pessoalmente, acho que a Midori deve ser uma jovem fantástica. Ao ler a tua
carta, compreendi porque te sentes atraído por ela. Ao mesmo tempo, também
compreendo por que razão estás apaixonado pela Naoko. Não é crime nenhum,
convenhamos. Acontece muitas vezes. É o mesmo que sair para dar um passeio num
belo barco, num bonito lago, e pensar que o céu e o barco são estupendos. Não te
tortures. Deixa as coisas seguirem o seu rumo. Por mais que te esforces, quando
chega a altura de uma pessoa se magoar, não há nada a fazer. É a vida. Pode parecer
pretensioso da minha parte, mas já está na hora de aprenderes a viver assim. Às
vezes, tenho a impressão de que exageras, por tentares que a vida se adapte à tua
maneira de viver. Se não queres acabar os dias num hospital psiquiátrico, abre o teu
coração e deixa-te levar pelo curso dos acontecimentos. Volta e meia, até mesmo
uma mulher impotente e incompleta como eu chega à conclusão de que a vida pode
ser maravilhosa. Procura ser feliz. Em frente é o caminho.
Naturalmente que fico triste pelo facto de as coisas entre ti e a Naoko não terem
tido o chamado final feliz. Mas quem pode saber o que teria sido melhor? Portanto,
agarra-te a essa oportunidade sem te preocupares com o que os outros pensam, já
que acreditas nela. Pela minha experiência pessoal, há que aproveitar e ser feliz.
Oportunidades destas aparecem duas ou três vezes na vida, e se as deixares escapar,
arrepender-te-ás para sempre.
Continuo a tocar guitarra todos os dias, embora não tenha quem me oiça. Uma
estupidez, não achas? Também eu detesto as noites sombrias e chuvosas. Espero vir
um dia a tocar de novo para ti e para a Naoko, enquanto saboreamos umas belas
uvas no nosso apartamento.
Até breve.
Reiko Ishida

43 Considerada a idade em que se atinge a maioridade, no Japão. (N. da T.)

44 Um tipo de bentō, apresentado numa caixa lacada e servido tradicionalmente no teatro, durante o
intervalo. O menu variado consiste em arroz e vários alimentos: picles, peixe grelhado, tempura e
frango. (N. da T.)
Reiko escreveu-me umas quantas vezes depois da morte de Naoko. Não era
culpa minha nem de ninguém, disse-me e tornou a dizer, tal como não se
podia assacar a responsabilidade da chuva a quem quer que fosse. Mas
nunca lhe respondi. O que poderia dizer-lhe? Além do mais, nada adiantava.
Naoko já não fazia parte deste mundo; transformara-se num punhado de
cinzas.
No final de agosto, logo a seguir ao discreto funeral de Naoko, em Kōbe,
regressei a Tóquio. Fui bater à porta do meu senhorio para lhe comunicar
que precisava de me ausentar durante uns tempos. Aproveitei a onda e
comuniquei ao dono do restaurante italiano que não regressaria ao trabalho.
A seguir, escrevi a Midori umas curtas linhas a explicar que tinha muita
pena e que, de momento, não podia adiantar muito. Pedi-lhe para esperar
mais um pouco. Passei três dias mergulhado numa verdadeira maratona de
filmes. Após ter visto todos os filmes exibidos nas salas de cinema de
Tóquio, meti as minhas coisas na mochila, levantei o dinheiro que tinha à
ordem na conta bancária, dirigi-me à estação de Shinjuku e apanhei o
primeiro comboio.
Não me lembro dos sítios por onde passei, nem de como lá fui parar.
Lembro-me, isso sim, e com uma nitidez espantosa, das paisagens, dos
cheiros e dos sons. Quanto aos nomes das localidades, não tenho qualquer
memória. Tão-pouco me recordo da ordem por que os visitei. Apanhei o
comboio e fui de cidade em cidade, meti-me no autocarro, apanhei boleia
de um camião, passei noites em descampados, numa estação, num parque, à
beira-rio ou na praia, em qualquer sítio onde pudesse estender o saco-cama.
Cheguei a dormir numa esquadra de polícia e paredes-meias com um
cemitério. Adormecia em qualquer lado, desde que não incomodasse
ninguém e pudesse dormir tranquilamente. Cansado de tanto andar, enfiava-
me no saco-cama e caía nos braços de Morfeu depois de ter emborcado uma
dose de uísque barato. Nas cidades hospitaleiras, as pessoas traziam-me
comida e davam-me paus de incenso para afastar os mosquitos; nas cidades
pouco acolhedoras, chamavam a polícia ou expulsavam-me dos parques
públicos. Estava-me perfeitamente nas tintas. Tudo o que eu queria era
dormir num lugar desconhecido.
Quando o dinheiro se acabava, trabalhava no duro durante três ou quatro
dias, o suficiente para ganhar umas massas que me permitissem satisfazer
as minhas necessidades imediatas. Encontrei sempre trabalho, fosse onde
fosse. Deambulava de cidade em cidade, sem destino. O mundo estava
repleto de coisas (e pessoas) estranhas. Certo dia, liguei para casa de
Midori. Morria de vontade de ouvir a voz dela.
− Não sei se reparaste, mas as aulas começaram há séculos – disse ela do
outro lado da linha. – Os professores de algumas disciplinas já começaram a
marcar data de entrega para os trabalhos. Afinal de contas, qual é a tua
ideia? Onde é que estás? O que andas a fazer?
− Desculpa, mas por enquanto não posso regressar a Tóquio – respondi.
− É só isso que tens para me dizer?
− Não posso mesmo explicar nada agora. Em outubro...
Midori desligou-me o telefone na cara.
Continuei viagem. Volta e meia, passava a noite numa pensão para tomar
banho e fazer a barba. O espelho devolvia-me uma imagem desanimadora.
Tinha a pele tisnada pelo sol, os olhos afundados e as faces cheias de cortes
e de manchas. Parecia um homem acabado de sair das profundezas de uma
caverna, mas reconhecia-me naquele rosto.

***

Naquela altura já descera a costa do mar do Japão, afastando-me o mais


possível de Tóquio. Talvez andasse por terras de Tottori e pela costa norte
de Hyōgo. Percorrer a costa era prático e agradável. Na praia, encontrava
com facilidade onde dormir confortavelmente e podia sempre apanhar
bocados de madeira trazidos pela maré e assar peixe fresco comprado na
peixaria. Bebia o meu uísque e pensava em Naoko, ouvindo o marulhar das
ondas. Causava-me uma grande estranheza pensar que ela morrera e que já
não estava entre nós. Decididamente, não conseguia aceitar essa realidade.
Mesmo depois de ter ouvido o som dos pregos a serem cravados na tampa
do seu caixão, não havia maneira de me habituar ao facto de ela ter
regressado ao nada.
As recordações de Naoko permaneciam vivas na minha memória. Ainda
me lembrava do dia em que ela pusera delicadamente o meu pénis na boca,
deixando os cabelos caírem em cascata sobre a minha barriga. Sentia ainda
o calor do seu corpo, o hálito quente e a doce sensação ao ejacular.
Visualizava a cena com grande nitidez, como se tivesse acabado de
acontecer. E tinha a impressão de que Naoko se encontrava ao meu lado e
que me bastaria estender o braço para lhe tocar. Mas ela não estava lá. O
seu corpo já não existia.
Nas noites de insónia, vinham-me à mente várias imagens de Naoko. Era
mais forte do que eu. Havia demasiadas recordações armazenadas dentro de
mim, e assim que uma delas encontrava uma minúscula fresta por onde
escapar, todas as outras aproveitavam e iam saindo, uma a uma. Sentia-me
totalmente impotente para travar aquela torrente.
Recordava-me de Naoko naquela manhã de chuva, de impermeável
amarelo, a limpar o aviário e a acartar um saco de grão. Lembrava-me do
bolo de anos meio esmigalhado e da minha camisa molhada pelas suas
lágrimas. Sim, naquela noite também chovia. Estávamos no inverno. Naoko
caminhava a meu lado com o seu casaco de pele de camelo. Usava sempre
um travessão no cabelo e passava o tempo a brincar com ele. Olhava-me de
forma penetrante com aqueles olhos transparentes, lembro-me. Via-a com
uma camisola azul, sentada no sofá, com o queixo apoiado nos joelhos
dobrados.
As imagens de Naoko atingiam-me como o refluxo das marés, arrastando
o meu corpo para um lugar estranho. Ali, convivia com os mortos. Naoko
estava viva, e podíamos conversar e abraçar-nos. A morte, naquele lugar,
não era o elemento decisivo que punha termo à vida. Ali, a morte não
passava de um dos muitos elementos que englobavam a vida. Naoko
continuava a viver uma vida com a morte dentro de si. E dizia-me: «Não te
preocupes, Tōru, é apenas a morte. Não ligues.»

***
Quatro dias depois de regressar a Tóquio, recebi uma carta de Reiko.
No envelope reconheci um selo de correio urgente. O conteúdo era
extremamente sucinto. «Não consegui entrar em contacto contigo e estou
preocupada. Gostaria que me telefonasses. Vou esperar a tua chamada junto
do telefone todos os dias, das nove da manhã às nove da noite.»
Liguei para o número dela às nove da noite. Reiko atendeu ao primeiro
toque.
− Como estás? – perguntou-me.
− Vou indo – respondi.
− Posso ir visitar-te depois de amanhã?
− Visitar-me? Aqui em Tóquio?
− Sim. Preciso de conversar calmamente contigo.
− Quer dizer que vais abandonar a residência?
− É a única maneira de poder estar contigo – disse ela. – Já não era sem
tempo. Estou aqui há oito anos. Se ficar mais um dia que seja, arrisco-me a
apodrecer.
Fiquei calado por momentos, sem saber o que dizer.
− Chego à estação de Tóquio no comboio-bala das três e vinte. Podes ir
buscar-me? Ainda te lembras da minha cara, espero... Ou, agora que a
Naoko morreu, já não te interessas por mim?
− Não digas disparates! Podes contar comigo amanhã na estação de
Tóquio, quando forem três e vinte.
− Vais reconhecer-me logo. Não devem andar por aí muitas senhoras de
idade com uma guitarra às costas.

***

De facto, não tive qualquer dificuldade em identificá-la. Vestia um casaco


de tweed de corte masculino, calças brancas e ténis vermelhos. Tinha o
cabelo curto, como de costume, com algumas pontas espetadas e reviradas
para fora. Carregava uma mala de viagem de pele castanha na mão direita e,
na esquerda, o estojo com a guitarra. Assim que me viu, esboçou um
sorriso, o que acentuou as suas rugas. Ato contínuo, sorri também. Tirei-lhe
a mala da mão e caminhámos lado a lado, até à plataforma da linha de
Chūō.
− Desde quando é que estás com esse aspeto horrível, Tōru? A menos que
seja moda em Tóquio, nos dias que correm.
− Andei a viajar durante uns tempos e só comi porcarias – desculpei-me.
– Então, fizeste boa viagem?
− Pavorosa. No comboio-bala não se pode abrir as janelas. Vi-me e
desejei-me a meio da viagem quando quis comprar qualquer coisa para
comer.
− Mas no comboio costuma haver vendedores que passam pelas
carruagens com os carrinhos...
− Referes-te a umas sanduíches que não prestam para nada e custam os
olhos da cara? Nem sequer um cavalo morto de fome comeria aquela
bodega. Pela minha parte, sempre gostei da comida que vendem na estação
de Gotenba.
− Se continuares a falar assim, ainda vão pensar que és uma senhora de
idade.
− E eu ralada! Sou uma senhora de provecta idade – declarou Reiko.
No caminho até Kichijōji, sempre calada, mas cheia de curiosidade,
Reiko viu desfilar pela janela a cidade de Musashino.
− A paisagem mudou muito nestes oito anos? − perguntei.
− Consegues imaginar o que me vai na alma, Tōru?
− Não faço ideia.
− Tenho tanto medo que me sinto prestes a perder o juízo – reconheceu
Reiko. – Não sei o que fazer. Fui atirada para este mundo e estou entregue a
mim própria. – Calou-se por instantes. – Não achas espantosa uma
expressão como «perder o juízo»?
Agarrei na mão dela, a rir.
− Tem calma. Vai correr tudo bem. Afinal, saíste de lá por tua expressa
vontade.
− Por minha vontade... não é bem assim – replicou Reiko. – Saí de lá,
sobretudo, graças a ti e à Naoko, incapaz de suportar a vida naquele local
sem ela por perto. Além disso, precisava de falar contigo à vontade. Foi
também por essa razão. Caso contrário, ficaria na residência até ao fim dos
meus dias.
Assenti com um movimento de cabeça.
− O que vais fazer agora?
− Vou para Asahikawa. Imagina só, Asahikawa! – respondeu ela. − Uma
amiga dos tempos da universidade dirige uma escola de música e há dois ou
três anos propôs-me que a fosse ajudar. Na altura disse-lhe que não, uma
vez que não me estava nada a apetecer ir viver para uma cidade tão fria.
Lógico, não? Agora que me vi livre da residência, vou parar ao cu de Judas!
São as ironias do destino!
− Olha que não é tão mau como tu pensas – disse eu, rindo-me. – Já lá
estive, em tempos, e a cidade até tem a sua graça.
− Estás a falar a sério?
− Claro. Sempre é melhor do que viver em Tóquio.
− Bom, o certo é que não há mais nenhum sítio para onde ir, além de já
ter despachado a bagagem – declarou ela. – Que tal ires visitar-me a
Asahikawa, amigo Tōru?
− Podes contar com isso. Mas vais já para lá ou ficas uns dias em Tóquio?
− Sim, estava a pensar ficar por cá um par de dias. Achas que posso
dormir em tua casa? Prometo não te incomodar.
− Não há problema. Posso perfeitamente dormir no saco-cama, dentro do
armário do meu quarto.
− Custa-me obrigar-te a essa maçada.
− Não te preocupes. É um armário enorme.
Reiko tamborilava com as unhas no estojo da guitarra, colocado entre as
pernas.
− Preciso de me readaptar à vida antes de partir para Asahikawa. Ainda
não estou familiarizada com o mundo exterior. Há montes de coisas que não
compreendo e sinto-me um bocado nervosa. Ajudas-me? Não tenho mais
ninguém a quem pedir.
− Farei tudo o que estiver ao meu alcance para te ajudar – prometi.
− Espero não atrapalhar a tua vida.
− Atrapalhar em quê?
Reiko olhou para mim e contraiu o canto dos lábios numa espécie de
sorriso. Depois não abriu mais a boca.

***

Saímos do comboio na estação de Kichijōji, apanhámos o autocarro até


minha casa e, durante o trajeto, pouco conversámos, tirando um ou outro
comentário casual acerca das mudanças ocorridas na capital, a sua vida de
estudante na universidade e a minha viagem a Asahikawa. Sobre Naoko,
nem uma palavra. Há dez meses que eu não via Reiko, mas, caminhando ao
lado dela, sentia-me estranhamente aliviado e reconfortado. Lembrava-me
de ter experimentado na pele uma sensação parecida ao percorrer as ruas de
Tóquio na companhia de Naoko. Assim como eu partilhara com Naoko a
morte de Kizuki, eu e Reiko partilhávamos agora a morte de Naoko. Aquele
pensamento deixou-me incapaz de dizer fosse o que fosse. Reiko continuou
a falar, mas, dando-se conta de que eu estava calado, ficou também em
silêncio até chegarmos ao nosso destino.
Estava uma tarde luminosa de outono, tirada a papel químico daquela em
que eu fora visitar Naoko a Quioto, um ano antes. As nuvens,
esbranquiçadas, eram finas como ossos, e o céu estava incrivelmente alto.
Mais um outono, pensei. O cheiro do ar, a claridade dos raios de sol, as
flores crescendo no meio das ervas daninhas e a subtil reverberação dos
sons anunciavam a sua chegada. A cada novo ciclo de estações, mais eu me
distanciava dos mortos. Kizuki continuava com dezassete anos, Naoko com
vinte e um. Eternamente.

***

− Que alívio ter chegado a este sítio – comentou Reiko ao descer do


autocarro, olhando em redor.
− Dizes isso porque aqui não há nada – respondi.
Entrámos no jardim pelo portão das traseiras e mostrei-lhe a casa. Reiko
não cabia em si de espanto.
− Que espetáculo! – exclamou. – Foste tu quem fez tudo? As prateleiras,
as mesas?
− Sim – respondi, enquanto punha água ao lume para o chá.
− És muito habilidoso, Tōru. Está impecável.
− Agradece ao Facho. Graças a ele, converti-me num verdadeiro maníaco
da limpeza.
− Ah, é verdade. Tenho de ir cumprimentar o teu senhorio – disse Reiko.
– Mora do outro lado do jardim, não foi o que me disseste?
− Cumprimentá-lo? A que propósito?
− É óbvio. Que pensará ele ao ver uma velha enfiada em tua casa a tocar
guitarra? O melhor é conduzirmos as coisas de forma correta de início. Já a
contar com isso, trouxe-lhe uma caixa de doces.
− Bem lembrado – observei.
− Os anos ensinam muitas coisas. Vou dizer ao senhor que sou tua tia, do
lado da mãe, e que acabei de chegar de Quioto, por isso não contradigas. Há
alturas em que a diferença de idades dá um certo jeito. Assim, ninguém
suspeitará de nada.
Reiko retirou da mala a caixinha e pôs-se a caminho da casa do senhorio,
e eu fui sentar-me na varanda a beber um chá e a brincar com a gata. Ela
regressou passados vinte minutos e foi de novo à mala, desta vez para ir
buscar uma caixa de biscoitos de arroz. Entregou-ma e disse que era um
presente.
− De que é que falaram durante mais de vinte minutos? – perguntei,
mordiscando um biscoito.
− De ti, claro – respondeu ela. Tinha a gatita em cima dos joelhos e,
encostando a cara ao pelo, fez-lhe festas. – Ele mostrou-se impressionado
com o facto de seres um estudante bem-comportado e sério.
− Eu?
− Claro, quem havia de ser? – disse Reiko, sorrindo.
Pegou na minha guitarra e, depois de ter afinado as cordas, interpretou o
tema «Desafinado», de Tom Jobim. Há muito que eu não a ouvia tocar e, tal
como das outras vezes, aquilo teve o condão de me aquecer o coração.
− Estás a aprender a tocar?
− O senhorio tinha a guitarra na arrecadação. Pedi-lha emprestada para
desenferrujar os dedos, só isso.
− Mais tarde, dou-te uma aula de borla – prometeu Reiko. Pôs a guitarra a
um canto, despiu o casaco de tweed e encostou-se à coluna para fumar um
cigarro. Trazia uma blusa aos quadrados de várias cores, de manga curta. –
Não achas esta blusa bonita?
− É lindíssima – respondi. O padrão era, de facto, muito elegante.
− Pertencia à Naoko – afirmou. – Vestíamos o mesmo tamanho.
Sobretudo nos primeiros tempos, quando ela chegou à residência. Depois
engordou um bocadinho, mas, mesmo assim, a roupa de uma servia à outra.
Blusas, calças, sapatos, chapéus. Só o número de sutiã é que era diferente.
Tenho o peito mais pequeno. Trocávamos de roupa imensas vezes. A bem
dizer, os nossos trapinhos pertenciam às duas.
Observei-a de alto a baixo. Efetivamente, tinha um corpo parecido com o
de Naoko. Devido ao formato da cara e aos pulsos finos, dava a impressão
de ser mais magra e mais baixa do que a amiga, mas, olhando com atenção,
via-se que era robusta.
− As calças e o casaco também lhe pertenciam. Era tudo da Naoko. Faz-te
impressão que eu use a roupa dela?
− Pelo contrário. De certeza absoluta que a Naoko ficaria satisfeita se
alguém a usasse. Especialmente tu.
− É estranho – comentou Reiko, dando pequenos estalos com os dedos. –
A Naoko não deixou testamento, mas, no que toca à roupa, deu-se ao
trabalho de escrever um bilhete. Apenas uma frase garatujada num bloco de
notas, que deixou à vista, em cima da mesa. «Por favor, deem todas as
minhas roupas à Reiko», escreveu ela. Não achas estranho? Quer dizer,
quem é que se preocupa com as roupas no momento em que decide tirar a
própria vida? Que importância tem isso? De certeza que ela devia ter muito
mais coisas para dizer.
− Talvez não.
Reiko soltou o fumo do cigarro, mergulhada nos seus pensamentos.
− Calculo que estejas interessado em ouvir a história do princípio ao fim.
− Sim, por favor.

***

− O resultado dos testes a que se submeteu indicou que o estado da Naoko


apresentava melhoras, mas, tendo em conta o seu bem-estar futuro, seria
aconselhável ela permanecer no hospital durante mais algum tempo,
prosseguindo com a terapia intensiva. Tenho a certeza de que te escrevi a
dar conta disto numa das cartas. Deve ter sido a que te enviei no dia dez de
agosto.
− Li essa carta.
− No dia vinte e quatro de agosto, recebi um telefonema da mãe da
Naoko a dizer que a filha queria ir visitar-me e perguntando se podia ser.
Explicou que a Naoko gostaria de passar uma noite no nosso apartamento,
não só para poder arrumar as suas coisas, mas porque depois não teríamos
oportunidade de conversar calmamente nos tempos mais próximos. Por
mim, encantada da vida. Também estava cheia de saudades. No dia
seguinte, vinte e cinco de agosto, chegaram as duas de táxi. Arrumámos as
três os pertences dela, sempre a trocar impressões. Mais para a noite, a
Naoko disse à mãe que poderia regressar a casa, que nós nos
encarregaríamos do resto. A senhora mandou chamar um táxi e foi-se
embora. A Naoko mostrava-se animada e nem eu nem a mãe suspeitámos de
nada. Para ser franca, até aí a minha preocupação com ela era grande.
Imaginava-a abatida, deprimida e triste. Sei por experiência própria até que
ponto os exames e tratamentos podem deixar uma pessoa de rastos. Porém,
bastou-me olhar para ela para verificar que corria tudo bem. Estava com
boa cara, porventura mais saudável do que se pensava, sorria e fazia piadas,
e a sua maneira de falar revelava-se muito mais lúcida do que dantes. Até
me contou que tinha ido ao cabeleireiro e que gostava imenso do novo
penteado... Enfim, achei que não havia motivo para preocupações pelo facto
de ficarmos só as duas, sem a progenitora. «Vou fazer os possíveis por me
curar de uma vez por todas durante o tempo em que estiver hospitalizado»,
declarou. Concordei com ela: era o mais acertado. Fomos passear e falámos
do que queríamos fazer no futuro. Perguntou-me se eu gostaria de ir viver
com ela quando deixássemos a residência.
− Vocês as duas?
− Isso mesmo – respondeu Reiko, encolhendo ligeiramente os ombros. –
Disse-lhe que estava de acordo com a ideia, mas perguntei onde é que tu
ficavas no meio desta história. Ela respondeu que trataria do assunto. Foi
tudo. A seguir, conversámos acerca do sítio onde iríamos viver, o que
faríamos juntos, e coisas desse género. Fomos a pé até ao aviário e
distraímo-nos com as aves durante um bom bocado.
Fui ao frigorífico buscar um gelado. Reiko acendeu outro cigarro. A gata
dormia serenamente no colo dela.
− Isto só para tu veres como ela tinha tudo planeado desde o início. Se
calhar, por isso é que se mostrava tão risonha e em grande forma. No fundo,
deve ter tomado uma decisão e isso deixou-a mais aliviada. Em seguida,
passámos revista ao quarto, esvaziámos as gavetas de coisas e loisas e
queimámos tudo o que não lhe fazia falta no caixote do lixo que havia no
jardim. Cadernos que ela usara como diário, cartas, e assim. Achei aquilo
esquisito e perguntei-lhe por que motivo queimava as cartas, sobretudo as
tuas, que costumava reler com tanto agrado. «Quero desfazer-me do
passado e começar uma vida nova», foi a resposta que me deu. Aquelas
palavras tiveram o condão de me convencer. Tinha a sua lógica. Tudo o que
eu desejava era que ela ficasse curada de vez e fosse feliz. Estava lindíssima
naquele dia, tinhas de ver!
«Como de costume, fomos jantar ao refeitório, tomámos banho, abri uma
garrafa de bom vinho que guardara para uma ocasião especial, bebemos e
toquei guitarra. Canções dos Beatles, para não variar. “Norwegian Wood” e
“Michelle”, as suas canções preferidas. Sentíamo-nos nas nossas sete
quintas. Decidimos até apagar as luzes, despimo-nos e fomos para a cama.
Estava uma noite quente e, mesmo abrindo a janela, o ar praticamente não
entrava. Lá fora estava escuro como breu e ouvia-se, em alto e bom som, o
zumbido dos insetos. O cheiro intenso da erva penetrava no quarto,
tornando o ambiente quase irrespirável. De repente, a Naoko começou a
falar de ti. Da vossa relação sexual. Contou-me tudo ao pormenor. A
maneira como tu a despiste e lhe tocaste, como ela ficou molhada, o
momento da penetração, e como fora maravilhoso. Fiquei a saber tudo, de
uma forma bastante gráfica. Perguntei-lhe então por que razão me contava
aquilo, uma vez que nunca abordara o tema do sexo abertamente comigo.
Como é evidente, faláramos do sexo enquanto terapia, mas a Naoko tinha
vergonha de entrar em pormenores. Daí que aquele comportamento dela me
tenha deixado espantada. “Apeteceu-me, só isso” disse ela. “Se não
estiveres para aí virada, mudamos de assunto.” “Não, tudo bem. Se sentes
necessidade, desabafa” disse eu. “Sou todo ouvidos.”
«A Naoko continuou e contou-me mais coisas.» “No instante em que o
pénis dele me penetrou, a dor foi tão violenta que quase perdi a noção de
tudo. Era a minha primeira vez. Como estava molhada, o sexo entrou
facilmente, mas doeu-me na mesma. Quando pensou que já estava todo lá
enfiado, ele ergueu um pouco as minhas pernas e enterrou-se mais. Nesse
momento, senti um calafrio pelo corpo. Era como se alguém estivesse a
fustigar-me com água gelada. Os braços e as pernas ficaram dormentes e
comecei a tremer. Perguntava a mim própria o que estaria a acontecer e
cheguei a pensar que iria morrer, mas não me importava. Ele, porém, mal
percebeu que me estava a magoar, parou de se mexer e abraçou-me
ternamente, beijou-me os cabelos, o pescoço, os seios, isto durante tempos
infindos. Aos poucos, o meu corpo recuperou calor. Então, começou a
mexer-se devagar e... Foi maravilhoso, Reiko. Uma experiência daquelas
capazes de nos liquefazer o cérebro. Apetecia-me ficar assim para sempre,
abraçada a ele. A sério.”
«“Se foi assim tão bom, porque é que não ficaste com ele?”, perguntei.
“Poderiam fazer amor todos os dias.”
«Mas ela respondeu-me que sabia, de ciência certa, que tal seria
impossível. “Foi uma coisa que aconteceu e que não voltará a repetir-se.
Acontece uma vez na vida. Tanto antes como depois, nunca voltei a ter
desejo, nunca mais fiquei excitada daquela maneira.”
«Tentei explicar-lhe que era vulgar isso acontecer com as raparigas novas,
e que era um problema que a idade se encarregaria de resolver. Fiz-lhe ver
que, uma vez que a experiência tinha sido boa, não havia motivos para se
preocupar. Confidenciei-lhe que também passara pelo mesmo nos primeiros
tempos do meu casamento.
«Ao que ela respondeu: “Não é isso. Não estou preocupada, Reiko. Só
não quero voltar a ser penetrada. Não quero que mais ninguém torne a
violar-me.”
Acabei a cerveja e Reiko acabou o cigarro. A gata arqueou o dorso em
cima dos joelhos dela e mudou de posição antes de voltar a adormecer.
Reiko parecia indecisa, mas acabou por acender um terceiro cigarro.
− Depois, começou a chorar baixinho – prosseguiu Reiko. – Sentei-me na
sua cama, fiz-lhe uma festa na cabeça e disse-lhe que não se preocupasse,
que tudo se resolveria. Uma rapariga jovem e bonita como ela acabaria por
encontrar a felicidade nos braços de um homem. Por causa do calor que se
fazia sentir, a Naoko estava banhada em suor e lágrimas. Fui à casa de
banho buscar uma toalha e enxuguei-lhe a cara e o corpo. Como tinha as
cuecas molhadas, despi-lhas. Um gesto perfeitamente inocente, atenção.
Nós tomávamos banho juntas imensas vezes e ela era como uma irmã para
mim.
− Bem sei.
− A Naoko pediu-me então que a abraçasse. Respondi que estava
demasiado calor, mas ela argumentou que seria a última vez, e eu acabei por
ceder. Envolvi-a na toalha turca e ficámos ali abraçadas durante algum
tempo. Quando serenou, enxuguei-lhe o suor, vesti-lhe o pijama e deitei-a.
Adormeceu automaticamente. Ou, então, fingiu que tinha adormecido,
confesso que não sei. Bom, de qualquer forma, estava linda de morrer.
Parecia uma jovenzinha com treze ou catorze anos que nunca sofrera na
vida. Ao vê-la assim, acabei por adormecer mais descansada.
«Quando acordei, às seis da manhã, a Naoko desaparecera. O pijama
estava enrodilhado, a um canto, e as suas roupas, os ténis e a lanterna
tinham desaparecido. Tive um mau pressentimento. O facto de ter levado a
lanterna significava que saíra ainda de noite, quando estava escuro. Por via
das dúvidas, olhei para cima da mesa e encontrei o tal bilhete escrito por
ela: “Por favor, deem as minhas roupas à Reiko.” Corri a avisar toda a gente
e separámo-nos para ir à procura dela. Vasculhámos todos os cantos da
residência e os bosques à volta. Só a encontrámos ao fim de cinco horas de
aturadas buscas. Até se dera ao trabalho de trazer a corda com ela.
Reiko suspirou, acariciando a gata.
− Apetece-te um chá? – perguntei.
Fervi a água, preparei o chá e voltei para a varanda. A noite aproximava-
se a passos largos, os raios de sol enfraqueciam e as sombras do jardim
estendiam-se aos nossos pés. Bebendo o chá em pequenos goles, observei
aquele jardim composto por uma estranha mescla de rosas amarelas, azáleas
cor-de-rosa e arbustos altos e verdes.
− A ambulância para transportar o corpo chegou pouco depois. Fui
interrogada pela polícia. Quer dizer, não havia grande coisa a perguntar. A
Naoko deixara aquela nota antes de morrer, era evidente que se tratava de
suicídio. De resto, os polícias davam a entender que o suicídio costumava
ser frequente entre os doentes mentais. No fundo, as perguntas que me
fizeram não passaram de mera formalidade. Assim que a polícia se foi
embora, enviei-te aquele telegrama.
− O funeral foi muito triste – declarei. – Terrivelmente silencioso e com
pouca gente. A família parecia apenas preocupada com o facto de as pessoas
virem a conhecer as circunstâncias da morte dela. Calculo que não
quisessem que se soubesse que fora suicídio. Para dizer a verdade, não
devia ter ido ao funeral. Fiquei ainda pior do que já estava. Logo a seguir,
fui viajar.
− E se fôssemos dar uma volta? – propôs Reiko. – Podíamos comprar
qualquer coisa para o jantar. Estou esfomeada.
− Apetece-te comer alguma coisa em especial?
− Há anos que não provo um sukiyaki – respondeu ela. – Cheguei a
sonhar com isso. Carne, cebola, massas konnyaku45, tofu grelhado,
verduras... tudo cozinhado em lume brando.
− Gostava muito de satisfazer o teu desejo, mas não tenho uma panela
adequada.
Reiko saiu porta fora, em direção à casa principal, e voltou trazendo com
ela uma panela, um fogareiro a gás portátil e uma mangueira comprida.
− Que tal? Fantástico, não achas?
− Perfeito – respondi, admirado.
Comprámos a carne de vitela, os ovos, as verduras e o tofu ali perto. Na
loja de bebidas, adquirimos uma garrafa de vinho relativamente decente.
Ainda puxei da carteira, mas Reiko insistiu em ser ela a pagar.
− Se a família descobrisse que deixei o meu sobrinho pagar a conta da
mercearia, seria motivo de gozo – disse ela. – Além disso, estou bastante
abonada. Não precisas de te preocupar. Seria incapaz de sair da residência
sem um cêntimo no bolso.
De regresso a casa, Reiko lavou o arroz e levou-o ao lume, e eu instalei o
fogão a gás para podermos cozinhar o sukiyaki na varanda. Com tudo
preparado, ela tirou a guitarra do estojo, sentou-se lá fora, na penumbra, e,
como se estivesse a afinar o instrumento, tocou uma Fuga de Bach.
Interpretou as passagens mais bonitas intencionalmente devagar, outras
mais depressa, com sentimento, atenta a cada acorde. Parecia uma rapariga
de dezassete ou dezoito anos a olhar, extasiada, para um vestido novo.
Tinha os olhos brilhantes, os lábios entreabertos num sorriso. Quando
acabou de tocar, encostou-se à coluna e observou o céu, mergulhada nos
seus pensamentos.
− Podemos falar? – perguntei-lhe.
− Claro. Estava a pensar que tinha fome, mais nada – disse ela.
− Vais visitar o teu marido e a tua filha? Moram em Tóquio, certo?
− Em Yokohama. Mas não faço tenção de os ver. Acho preferível eles não
estarem em contacto comigo, agora que têm uma nova vida. Encontrar-me
com eles só serviria para reabrir a ferida. É melhor não.
Reiko amachucou o maço vazio de Seven Stars, sacou outro da mala,
abriu-o e levou um cigarro à boca. Mas não o acendeu.
− Estou acabada. Como ser humano, digo eu. A Reiko que tens diante de
ti é apenas uma sombra do que fui em tempos. O que havia de mais
importante dentro de mim morreu há muito, e agora limito-me a agir
mecanicamente.
− Gosto de ti tal como és agora. Não importa se a Reiko atual é um
resquício da memória ou outra coisa. E pode ser que não tenha qualquer
importância, mas fico muito satisfeito ao ver-te usar as roupas da Naoko.
Reiko sorriu e acendeu o cigarro.
− Para um rapaz tão jovem, não há dúvida de que sabes como fazer uma
mulher feliz!
Corei.
− Limito-me a dizer o que sinto.
− Eu sei – disse Reiko, sorrindo.
O arroz ficou pronto. Untámos a panela de azeite e começámos a preparar
o prato.
− Será que estou a sonhar? – perguntou Reiko, inspirando profundamente
o aroma libertado pelos ingredientes.
− É um sukiyaki cem por cento genuíno. Falo com conhecimento de
causa.
Quase sem trocarmos uma palavra, devorámos o nosso jantar,
acompanhado de cerveja, e por fim comemos o arroz. A Gaivota apareceu
por ali a farejar e partilhámos com ela um pedacinho de carne. De barriga
cheia, encostámo-nos a uma coluna da varanda contemplando a Lua.
− Ficaste satisfeita? – perguntei.
− Muito. Nada a apontar – respondeu Reiko, falando com dificuldade. –
Nunca na vida comi tanto.
− O que é te apetece fazer agora?
− Fumar um cigarro e ir aos banhos públicos. Preciso de lavar a cabeça.
− Sem espinhas. Temos uns banhos públicos aqui bem perto.
− A propósito, Tōru. Gostaria que me dissesses uma coisa, se puder ser.
Foste para a cama com aquela rapariga, a Midori?
− Perguntas-me se fizemos sexo? Não, não fizemos. Decidi não dormir
com ela até que a situação ficasse esclarecida.
− Mas agora já está tudo resolvido, não é verdade?
Inclinei a cabeça, perturbado.
− Queres com isso dizer que a morte da Naoko veio facilitar as coisas?
− Não, não é isso. No fundo, tu já tinhas tomado uma decisão antes de a
Naoko morrer. Disseste que não abandonarias a Midori. E isso não tem
nada que ver com o facto de a Naoko estar viva ou morta. Tu escolheste a
Midori, e a Naoko escolheu a morte. Deves assumir as tuas
responsabilidades, como pessoa adulta que és. Caso contrário, tudo será em
vão.
− Mas acontece que eu não consigo esquecer a Naoko – repliquei. – Disse
à Naoko que esperaria por ela. Nos momentos finais, abandonei-a. Não é
uma questão de ser culpado ou inocente. É um problema meu. Mesmo que
não a tivesse abandonado a meio caminho, iria dar ao mesmo. A Naoko
provavelmente teria optado por se matar. Independentemente disso, não
consigo perdoar-me a mim mesmo. Dizes tu que não há volta a dar, uma
vez que se trata de um movimento natural do coração, mas a ligação entre
mim e a Naoko não era tão simples quanto possas julgar. Quando paro para
pensar, dou-me conta de que, desde os primórdios da nossa relação,
estivemos sempre na fronteira entre a vida e a morte.
− Se te ressentes pela morte da Naoko, terás de carregar esse sofrimento
até ao resto dos teus dias. Se puderes retirar daí alguma lição, aprende com
a dor. No entanto, aconselho-te a procurares a felicidade junto da Midori. O
teu sofrimento não tem nada que ver com ela. Caso a magoes ainda mais,
ficarás num beco sem saída. Não é fácil, bem sei, mas tens de ser forte.
Cresce, torna-te adulto. Foi para te dizer isto que abandonei a residência,
acredita. Vim de propósito naquele comboio que mais parece um ataúde.
− Compreendo muito bem o que queres dizer – afirmei. – Mas ainda não
me sinto preparado. Sabes, aquele funeral deixou-me inconsolável.
Ninguém devia morrer daquela maneira.
Reiko estendeu o braço e fez-me uma festa no cabelo.
− Todos morrermos um dia, de uma maneira ou de outra.

***

Demorámos cinco minutos até aos banhos públicos, seguindo sempre ao


longo do rio, e voltámos para casa devidamente refrescados. Abrimos uma
garrafa de vinho e sentámo-nos na varanda a beber.
− Podes trazer-me outro copo, Tōru?
− Claro, mas qual é a tua ideia?
− Vamos fazer um funeral à Naoko, só os dois – disse Reiko. – Um
funeral que não tenha nada de deprimente.
Reiko encheu de vinho o terceiro copo e depositou-o sobre uma lanterna
de pedra no jardim. Em seguida, sentou-se na varanda, de costas apoiadas
na coluna, com a guitarra numa das mãos e um cigarro na outra.
− Podes trazer-me uma caixa de fósforos, já agora? Se possível, a maior
que encontrares...
Trouxe uma caixa de fósforos grande da cozinha e sentei-me ao lado dela.
− Bom, agora vou tocar, e por cada música vais alinhar os paus de fósforo
ali, um a um. Pela minha parte, procurarei interpretar o maior número de
canções.
Para começar, executou o tema «Dear Heart», de Henry Mancini. Assisti
a uma interpretação belíssima e pungente.
− Foste tu quem deu este disco à Naoko, se não me engano – disse ela.
− Acertaste. Há dois anos, no Natal. Ela adorava esta canção.
− Também gosto. É bonita e comovente. – Reiko bebeu um pouco de
vinho e tocou mais uns acordes. – Vamos lá ver quantas músicas
conseguirei interpretar antes de ficar bêbeda. Um funeral assim não é uma
má ideia, não te parece? De triste não tem nada, pelo menos.
Reiko passou para os Beatles e atacou «Norwegian Wood», «Yesterday»,
«Michelle», «Something», «Here Comes the Sun», altura em que juntou a
voz à guitarra. Para fechar, «Fool on the Hill». Alinhei sete fósforos.
− Sete canções. – Reiko bebeu outro gole de vinho e fumou mais um
cigarro. – Aqueles tipos deviam conhecer a fundo as alegrias e as agruras da
vida.
«Aqueles tipos», escusado será dizer, eram, John Lennon, Paul
McCartney e George Harrison.
Suspirando, Reiko apagou o cigarro, pegou de novo na guitarra e tocou
«Penny Lane», «Blackbird», «Julia», «When I’m 64», «Nowhere Man»,
«And I Love Her» e «Hey Jude».
− Já foram quantas?
− Catorze – respondi.
Novo suspiro.
− E tu, não tocas nada?
− Não. Sou péssimo.
− Não faz mal.
Fui buscar a minha guitarra e, após alguma hesitação, comecei a
interpretar «Up on the Roof». Reiko aproveitou para fumar calmamente um
cigarro e foi bebericando o vinho. Quando acabei, aplaudiu com
entusiasmo.
Foi a vez de ela se esmerar e tocar uma adaptação para guitarra de
«Pavane pour Une Infante Défunte», de Ravel e «Clair de Lune», de
Debussy. Confidenciou-me que aperfeiçoara aquelas duas peças depois da
morte de Naoko, acrescentando que os seus gostos musicais nunca tinham
ultrapassado o limite do sentimentalismo.
Seguiram-se várias canções de Burt Bacharah: «Close to You»,
«Raindrops Keep Falling on my Head», «Walk on By», «Wedding Bell
Blues».
− Já temos vinte – informei.
− Pareço uma jukebox ambulante – disse ela, divertida. – Se os meus
professores do conservatório me vissem, tinham um ataque.
Entre um e outro gole de vinho, foi tocando, umas a seguir às outras, as
canções que conhecia. Interpretou umas dez de bossa nova e muitas outras
da autoria de Rogers and Hart, Bob Dylan, Ray Charles, Carole King, os
Beach Boys, Stevie Wonder e também «Sukiyaki», de Kyū Sakamoto,
«Blue Velvet», «Green Fields». Por vezes, fechava os olhos e abanava a
cabeça ao ritmo da melodia.
Quando acabámos com a garrafa de vinho, passámos ao uísque. Despejei
o resto do meu vinho sobre a lanterna do jardim e deitei uísque no copo
vazio.
− Quantas é que já toquei?
− Quarenta e oito – respondi.
A cantiga número quarenta e nove foi «Eleanor Rigby», e para a seguinte
elegeu de novo «Norwegian Wood». Ao terminar as cinquenta músicas,
Reiko fez uma pausa para beber uísque.
− Já chega, não achas?
− Acho – respondi. – Foi um momento incrível.
− Ouve uma coisa, Tōru Watanabe. Esquece de vez daquele funeral
sombrio – disse Reiko, olhando fixamente para mim. − Lembra-te apenas
deste. Não foi espantoso?
Fiz que sim com a cabeça.
− Aqui vai outra, para fecharmos com chave de ouro – disse ela.
E para o tema número cinquenta e um escolheu tocar a Fuga de Bach da
praxe. Mal terminou, disse com uma voz que não passava de um sussurro:
− E se fizéssemos amor?
− Que estranho – disse eu. – Estava precisamente a pensar na mesma
coisa.

***
No quarto às escuras, com as persianas corridas, Reiko e eu abraçámo-nos
espontaneamente e os nossos corpos procuraram-se como se fosse a coisa
mais natural do mundo. Despi-lhe a blusa e as calças, bem como a roupa
interior.
− Aconteceram-me muitas coisas curiosas, mas nunca imaginei ver um
rapaz de dezanove anos a despir-me as cuecas.
− Preferes ser tu a despi-las? – propus.
− Não, força – consentiu ela. – Mas aviso-te já que o meu corpo está
marcado pelas rugas, espero que não fiques dececionado.
− Adoro as tuas rugas.
− Cala-te, que ainda me fazes chorar...
Beijei-lhe o corpo todo e percorri com a língua cada uma das suas rugas.
Envolvi com a minha mão os seus seios de menina, mordendo
delicadamente os mamilos, e depois enfiei os dedos na vagina cálida e
húmida e comecei a movimentá-los.
− Tōru – sussurrou Reiko ao meu ouvido. – Aí só encontras uma ruga...
− Como é que consegues dizer piadas num momento como este? –
perguntei, siderado.
− Desculpa – disse Reiko. – Tenho medo, entendes? Há muito que não sei
o que é fazer amor. Sinto-me como uma jovenzinha de dezassete anos que
foi ter com um rapaz ao quarto dele e de repente se viu nua.
− E eu sinto-me como se estivesse a violar uma rapariga de dezassete
anos.
Introduzi os dedos naquela «ruga», beijei-a do pescoço à orelha e
belisquei-lhe os mamilos. Quando a respiração dela acelerou e a garganta
começou a palpitar, abri-lhe as pernas esguias e penetrei-a.
− Tomaste as devidas precauções para não me engravidar, espero? –
perguntou-me Reiko baixinho. – Seria uma vergonha ficar grávida nesta
idade.
− Tudo bem. Não te preocupes.
Quando toquei no ponto mais profundo, ela estremeceu e suspirou.
Acariciei delicadamente as suas costas, como se as estivesse a massajar;
ejaculei com violência, sem conseguir conter-me. Agarrado a ela, senti o
meu sémen pulsar dentro do seu sexo quente.
− Desculpa. Não me consegui aguentar – disse eu.
− Não sejas parvo. Não tens nada que pedir desculpa – disse Reiko,
dando-me uma palmadinha nas nádegas. – Pensas sempre nisso quando vais
para a cama com uma mulher?
− Pode dizer-se que sim.
− Comigo não precisas de te preocupar. Esquece. Goza quando te
apetecer e quantas vezes te der na gana. Foi bom?
− Melhor do que bom. Por isso é que me vim desta maneira, sem me
conseguir controlar.
− O controlo não é para aqui chamado. Deixa lá isso. Também foi muito
bom para mim.
− Ouve uma coisa, Reiko – disse eu.
− Diz lá.
− Tens de te apaixonar novamente por alguém. És uma mulher
extraordinária, seria uma pena ficares sozinha.
− Prometo pensar no assunto – replicou ela. – Resta saber se será possível
uma pessoa apaixonar-se num lugar como Asahikawa.
Pouco depois, voltei a introduzir o pénis na sua vagina. Debaixo de mim,
Reiko contorcia-se de prazer e respirava de forma entrecortada. Abraçado a
ela, mexia-me lentamente, trocando frases sussurradas. Era maravilhoso
conversar dentro dela. Sempre que eu dizia uma coisa engraçada, Reiko ria-
se. Ficámos abraçados assim durante muito tempo.
− É a melhor sensação do mundo – afirmou ela.
− Também não é mau quando nos movemos – disse eu.
− Apetece-te experimentar?
Levantei-lhe os quadris e penetrei-a até aos copos, deleitando-me com a
sensação de me mexer dentro dela até que, atingindo o máximo prazer,
ejaculei de novo.

***

Naquela noite, fizemos amor quatro vezes46. Ao fim da cada uma delas,
Reiko abandonava-se nos meus braços, fechava os olhos e suspirava
profundamente. O seu corpo estremecia.
− Agora posso ficar sem fazer amor, não é? – disse ela. – Diz que não,
peço-te por tudo. Sinto que já fiz amor para o resto da vida.
− Quem sabe?
***

Aconselhei-a a viajar de avião até Asahikawa, sem dúvida a maneira mais


prática e rápida, mas ela preferiu o comboio.
− Gosto de fazer a travessia de barco entre Aomori e Hakodate. Não me
apetece ir de avião.
Acompanhei-a até à estação de Ueno. Ela transportava o estojo com a
guitarra, e eu, a mala de viagem. Sentámo-nos lado a lado no banco da
plataforma, à espera do comboio. Reiko vestia o mesmo casaco de lã e as
calças brancas que lhe vira no dia em que chegou a Tóquio.
− Achas mesmo que Asahikawa não é um lugar assim tão mau? –
perguntou-me.
− Vais ver que é uma bela cidade – respondi. – Irei visitar-te um dia
destes e logo falamos.
− A sério?
Fiz que sim com a cabeça.
− Vou escrever-te.
− Gosto das tuas cartas. Pena que a Naoko as tenha queimado todas.
Eram fabulosas...
− Não passam de um pedaço de papel, as cartas – afirmei. – Podes
queimá-las, mas o que tiver de permanecer ficará para sempre guardado no
coração. Mesmo que as guardes, o que tiver de desaparecer acabará por se
desvanecer.
− Para ser sincera, estou apavorada com esta viagem até Asahikawa.
Escreve-me, não te esqueças. Quando leio as tuas cartas, é como se
estivesses ao meu lado.
− Se as minhas cartas têm esse efeito, podes contar com cartas em
catadupa. Mas não tens razão para estar preocupada. De certeza que correrá
tudo bem onde quer que estejas.
− Tenho a impressão de que ainda existe alguma coisa presa dentro de
mim. Será ilusório?
− Restos de memória – disse a rir. Reiko também se riu.
− Não te esqueças de mim – pediu-me ela.
− Nunca me esquecerei de ti – prometi.
− Talvez não nos voltemos a encontrar, mas, onde quer que eu esteja, as
recordações que guardo de ti e da Naoko estarão sempre comigo.
Olhei para Reiko. Estava a chorar. Beijei-a, num impulso. As pessoas que
passavam por nós olharam de esguelha, mas não me importei. Estávamos os
dois vivos e só tínhamos de nos preocupar com isso.
− Espero sinceramente que sejas feliz – disse-me Reiko, à despedida. – Já
te dei todos os conselhos que tinha a dar, nada mais há a dizer. Desejo que
sejas feliz. Sê feliz pela Naoko e por mim.
Ficámos de mão dada antes de nos separarmos.

***

Telefonei a Midori.
− Preciso de falar contigo. Tenho muitas coisas para te contar. Precisamos
de conversar a sério. És tudo o que desejo neste mundo. Quero estar contigo
para conversarmos. Começar uma vida nova contigo a meu lado – disse-lhe.
Do outro lado da linha, Midori permaneceu calada durante muito tempo.
O silêncio prolongou-se, como se toda a chuva do mundo desabasse sobre a
face da Terra. Enquanto isso, de olhos fechados, eu encostava com força a
testa no vidro da cabina telefónica. Midori quebrou finalmente o silêncio.
− Onde estás neste momento? – perguntou numa voz calma.
Onde estava eu naquele momento?
Com o auscultador na mão, ergui o olhar e olhei em redor. Não fazia a
mínima ideia de onde estava. Afinal, que lugar era aquele? As minhas
pupilas refletiam apenas a sombra da multidão que passava por mim a
caminho de nenhures. E no meio desse lugar sem lugar, eu chamava por
Midori.

45 Planta da família da Colocasia, originária da Ásia tropical. A partir da raiz moída obtêm-se massas
de consistência gelatinosa, que se utilizam como ingrediente na nabe-ryōri, comida que se cozinha à
mesa num pequeno fogão, nomeadamente o sukiyaki. (N. da T.)

46 Em japonês, o número quatro pronuncia-se como a palavra «morte» (shi). Os japoneses evitam o
«quatro», conforme os mais supersticiosos tentam esquivar-se ao 13. Anteriormente, já tinha havido
referência às quatro visitas semanais de Midori ao pai no hospital e ao facto de Tōru reler a carta de
Midori quatro vezes. (N. da T.)

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